de profundis clamavi: corpo e religião na poesia de ... · É notório que literatura e religião...

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De profundis clamavi: corpo e religião na poesia de Charles Baudelaire Ricardo Meirelles 1 Introdução É notório que literatura e religião sempre caminharam juntas através da história da humanidade, outrora absolutamente juntas, em seus primórdios, os livros mitológicos contavam façanhas de deuses entre homens, façanhas que se tornavam orientações de comportamento civilizado, explicando a natureza e sua submissão a esses homens civilizados, tornando-se depois, mais do que isso, verdades sociais, verdades que hoje interpretamos estéticamente. Quando Homero escreveu a Ilíada e a Odisséia, descrevendo a mitologia vigente, estabeleceu parâmetros culturais que se mantém inabaláveis ao longo dos séculos. Os poemas da seção Revolta, inserida no livro Les Fleurs du Mal, de Charles Baudelaire, foram todos compostos antes de 1853. São indicativos de uma atitude típica dos românticos, naturalmente: criticar a ordem social e, em seguida, observando a natureza insatisfatória da condição humana, finalmente colocar o próprio Deus em questão. Esta lógica leva ao desafio de Deus e o louvor a Satanás, ele é encontrado em Byron, especialmente em seu Cain, em Don Juan, de Hoffmann e, mais perto dos círculos literários frequentados por Baudelaire, em Petrus Borel. Além de Baudelaire, é sempre notório lembrar de outro poeta estrangeiro que também foi largamente confundido como macabro ou satanista: Lord Byron chegou a ser o patrono do ultra-romantismo brasileiro, exemplo do poeta romântico declamado longamente nos cemitérios paulistas por estudantes de direito nas últimas décadas do século XIX. Os poetas românticos brasileiros, como Fagundes Varela, fizeram de Byron um poeta da morte e do diabo, quando na verdade só um de seus poemas tem o tom que o consagrou por aqui (Cranio Feito Taça). 1 Ricardo Meirelles é Doutor em Letras – Língua e Literatura Francesas, pela FFLCH/USP (São Paulo-SP) e Professor dos programas de Pós-graduação do Centro Universitário Anhanguera (ANHANGUERA/Osasco-SP) e da Faculdade Capital Federal (FECAF/Taboão da Serrra-SP).

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Page 1: De profundis clamavi: corpo e religião na poesia de ... · É notório que literatura e religião sempre caminharam juntas ... Lord Byron chegou a ... como Fagundes Varela, fizeram

De profundis clamavi: corpo e religião na poesia de Charles Baudelaire

Ricardo Meirelles1

Introdução

É notório que literatura e religião sempre caminharam juntas através da história da

humanidade, outrora absolutamente juntas, em seus primórdios, os livros mitológicos

contavam façanhas de deuses entre homens, façanhas que se tornavam orientações de

comportamento civilizado, explicando a natureza e sua submissão a esses homens

civilizados, tornando-se depois, mais do que isso, verdades sociais, verdades que hoje

interpretamos estéticamente. Quando Homero escreveu a Ilíada e a Odisséia, descrevendo a

mitologia vigente, estabeleceu parâmetros culturais que se mantém inabaláveis ao longo

dos séculos.

Os poemas da seção Revolta, inserida no livro Les Fleurs du Mal, de Charles

Baudelaire, foram todos compostos antes de 1853. São indicativos de uma atitude típica dos

românticos, naturalmente: criticar a ordem social e, em seguida, observando a natureza

insatisfatória da condição humana, finalmente colocar o próprio Deus em questão. Esta

lógica leva ao desafio de Deus e o louvor a Satanás, ele é encontrado em Byron,

especialmente em seu Cain, em Don Juan, de Hoffmann e, mais perto dos círculos literários

frequentados por Baudelaire, em Petrus Borel.

Além de Baudelaire, é sempre notório lembrar de outro poeta estrangeiro que

também foi largamente confundido como macabro ou satanista: Lord Byron chegou a ser o

patrono do ultra-romantismo brasileiro, exemplo do poeta romântico declamado

longamente nos cemitérios paulistas por estudantes de direito nas últimas décadas do

século XIX. Os poetas românticos brasileiros, como Fagundes Varela, fizeram de Byron um

poeta da morte e do diabo, quando na verdade só um de seus poemas tem o tom que o

consagrou por aqui (Cranio Feito Taça).

1 Ricardo Meirelles é Doutor em Letras – Língua e Literatura Francesas, pela FFLCH/USP (São Paulo-SP) e Professor dos programas de Pós-graduação do Centro Universitário Anhanguera (ANHANGUERA/Osasco-SP) e da Faculdade Capital Federal (FECAF/Taboão da Serrra-SP).

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Fizeram dele, Byron, um poeta muito mais carregado do espírito do mal, seus

poemas transbordavam melancolia e tédio, trata-se de um caso embelmático de invenção da

influência; através da tradução de seus poemas: os tradutores brasileiros criaram um poeta

que respaldava suas próprias intenções estéticas. A situação social era muito diferente,

enqunto os franceses tinham em Paris uma cidade relativamente desenvolvida, já em

1850,com grandes avenidas e iluminação pública, por exemplo, os brasileiros ainda

aguardariam sessenta anos até que Pereira Passos reformasse o Rio de Janeiro

No caso da Revolta de Baudelaire, do satanismo e do mal que se apresenta, trata-se

muito mais de uma cobrança, de uma provocação: como Deus pode deixar o homem tão

desamparado enquanto ele clama das profundezas? Então esse Deus ausente merece sua fé,

sua devoção? Não, pelo contrário, merece o ataque e o escárnio, o abandono e a traição;

muito melhor é Satã, que não se ausenta, nunca se priva, sempre presente fazendo tudo o

que pode para satisfazer os desejos humanos, ele sim é uma entidade a quem devemos

endereçar nossas litanias.

No satanismo de Baudelaire, portanto, não há nada de novo e seria errado exagerar

sua importância. No entanto, este é um passo necessário para uma viagem que levou o

poeta a recusar qualquer mediocridade do destino humano. Neste texto difícil, Revolta,

Baudelaire desenvolve uma linguagem ao mesmo tempo erudita, diretamente herdada da

literatura cristã e das representações da Paixão de Cristo, e complexa, de imagens e

fortemente apoiada em uma retórica de construção sólida; ele é obrigado a analisar a

ambiguidade de forma cursiva: as imagens mostram o horror, por vezes, à beira da

relutância, mas são consistentes com a tradição iconográfica do cristianismo, que é

fisicamente padecer dos ferimentos, dos sofrimentos, porque foram usados para a redenção

da humanidade de acordo com o dogma, e com a retórica que organiza em argumentos de

fato uma visão crítica da religião cristã e da idéia primordial de sua fundação: a redenção.

Baudelaire no Brasil: traduções

Este trabalho parte da reunião das traduções dos poemas do livro Les Fleurs du mal,

do poeta francês Charles Baudelaire, publicadas no Brasil em meio impresso – livros e

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periódicos – e procura refletir tanto sobre a relevância e o diálogo dessas traduções dentro

da História da Literatura Brasileira, quanto sobre qual é o seu posicionamento em relação a

esse clássico universal da literatura francesa.

Primeiro, em minha dissertação, Entre brumas e chuvas: tradução e influência

literária (2003), e depois, em minha tese, “Les Fleurs du mal” no Brasil: traduções (2010),

discuti e considerei o papel da tradução poética dentro da História da Literatura Brasileira e

a sua influência estética, observando específica e atentamente a recepção desses poemas

escritos por Baudelaire; ao longo desses estudos, procurei questionar alguns métodos e

teorias da tradução poética, observando principalmente autores brasileiros, e comparando

traduções de vários tradutores ao longo do tempo, sempre levando em conta aspectos

lingüísticos, históricos e culturais que poderiam se depreender de cada texto.

Os poemas do livro escolhido – publicado primeiro em Paris, em 1857, sendo que

ainda receberia mais duas importantes edições aumentadas: em 1861, pelo próprio poeta; e

em 1868, em edição já póstuma – foram traduzidos por mais de sessenta poetas brasileiros –

alguns traduzindo apenas um poema, outros, o livro todo – que contém cerca de cento e

sessenta poemas, dependendo da edição – sendo a tradução brasileira de um poema,

publicada em livro, mais antiga datada de 1872.

Ao rastrear as diversas traduções publicadas, perseguindo listas bibliográficas

apresentadas – acompanhando ora diversos estudos sobre a influência da poesia e da

estética de Baudelaire no Brasil, ora as traduções propriamente ditas – foi possível

colecionar um grande número de poemas (cerca de dois mil) o que acabou resultando em

uma interessante e profícua “baudelaireana brasileira”, capaz de suscitar e diversificar em

muito as visões futuras sobre essa obra francesa dentro da Literatura Brasileira.

Um possível resultado dessa baudelaireana seria uma “História do livro Les Fleurs du

mal no Brasil: além do resgate historiográfico promovido, recuperando algumas importantes

e significativas leituras da obra francesa, comparando suas traduções com outras produzidas

ao longo do tempo, vislumbrando não uma evolução, mas sim uma diferenciação entre as

abordagens historiográficas e tradutórias, construídas sempre dentro de seu momento

estético, histórico e ideológico, que está nelas refletido, inevitavelmente.

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Dessa forma, foi possível traçar um panorama dessa "baudelairiana brasileira"

através do tempo, seguindo um percurso cronológico. Optei, então, em me deter em alguns

pontos que considerei mais representativos, analisando poemas que de algum modo me

pareceram necessários e apropriados, buscando sempre verificar qual a relação intertextual

que poderiam ter dentro da produção da literatura brasileira e a relação direta com a

influência do modelo estrangeiro na sua produção original.

É certo que ao longo da história nenhuma literatura nacional pôde escapar da

influência das literaturas estrangeiras, quaisquer que elas fossem, e a literatura brasileira

certamente não foge a essa regra. Não poderia ter ocorrido de outro modo, tão atenta como

sempre foi à literatura européia, principalmente à francesa.

Charles Baudelaire e uma idéia de Modernidade

Charles Baudelaire (1821-1867), poeta parisiense, singular por ter empregado o

termo “modernidade” como o entendemos hoje, além de incluir a temática do grotesco e do

escatológico como objeto da lírica ocidental contemporânea, apresentou e tratou

literariamente uma série de novos personagens, habitantes da cidade, que até então não

eram "visíveis" na sociedade européia do século XIX. Dentre esses novos seres urbanos –

como os cegos, os pobres, os velhos, entre outros – emerge, da multidão que se acumula, a

mulher solitária – e, além dela, a mulher lésbica e a mulher idosa – como expressão máxima

da idéia de transitoriedade como característica determinante da beleza verdadeira.

Não é preciso nos demorarmos aqui expondo o quanto e como foi importante toda a

obra de Charles Baudelaire dentro da cultura ocidental, tendo em vista a complexidade e

diversidade de tal obra: sobre pintura ele escreveu os textos sobre os três salões, a

exposição universal de 1855, Delacroix e “Le peintre de la vie moderne”; a respeito de

literatura, ele escreveu textos fundamentais sobre Edgar Allan Poe, Theophile Gautier, Victor

Hugo, Gustave Flaubert, e ainda as notas sobre Les Laisons Dangereux, de Chordelos de

Laclos; com referência à música, ele escreveu “Richard Wagner et Tannhäuser à Paris”.

Contudo, quando se fala em Baudelaire, não pensamos logo no crítico, mas sim no

poeta: o dândi que pintava os cabelos de verde, vestia seu costume extremamente

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engomado e saía para flanar pelas ruas de Paris. Ele é o modelo exemplar de como deve se

comportar o poeta ao longo de várias épocas: orgulhoso, boêmio, céptico irregular, épateur

de bourgeois. É esse o autor do livro de poemas Les Fleurs du mal, publicado em 1857, livro

importantíssimo que é encarado como o marco precursor da idéia de modernidade. Ainda à

procura da perfeição formal – porque o verbo poético permite transmutar a realidade – ele

também compõe poemas em prosa consagrados nos encontros insólitos pela cidade. Eles

são os "pequenos poemas em prosa", reunidos no livro póstumo Le Spleen de Paris,

publicado em 1868.

Baudelaire quis que a sua obra se ligasse exclusivamente ao mundo moderno, ele

está interessado na Modernidade, tratando a sociedade tal como se vive numa grande

cidade, isto é, ele quis captar aquilo que há de eterno e de essencial nas cenas múltiplas e

variadas, mas de forma poética, convenientemente curta e concisa.

Em seus dois livros de poesia, em verso e em prosa, Les Fleurs du mal e Le Spleen de

Paris, Baudelaire anuncia temas importantes para a composição da idéia de modernidade: a

solidão que é diferente do ódio ou do despeito; o despeito do materialismo da realidade, o

vil interesse, o dinheiro; a procura difícil e vã da beleza, a condição do artista; a ausência de

um universo real ao qual pertença o poeta; o gosto, a paixão vital, pela evasão, pela viagem,

pelas nuvens; além de outros temas que também podem ser encontrados: a horrível carga

do tempo inimigo; a angústia entre o "eu" e o "outro"; a vaporização e a centralização do eu;

as multidões e a necessidade de um mergulho nos outros; os tipos urbanos: as viúvas, os

pobres e os mendigos.

Tanto Les Fleurs du mal como Le Spleen de Paris introduzem elementos novos na

linguagem poética, fundindo o grotesco ao sublime e explorando as secretas analogias do

universo. Quase toda a crítica moderna concorda que Baudelaire inventou uma nova

estratégia da linguagem: Erich Auerbach observou que sua poesia foi a primeira a incorporar

a matéria da realidade grotesca à linguagem sublimada do romantismo. Nesse sentido

Baudelaire criou a poesia moderna, concedendo a toda realidade o direito de ser submetida

ao tratamento poético.

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Quer pelo interesse inerente a sua grande poesia, quer pelos vislumbres que essas

confissões propiciam, Baudelaire se destaca entre os poetas franceses mais estudados por

ensaístas e críticos. Jean-Paul Sartre situou-o como protótipo de uma escolha existencial que

teria repercussões no século XX, enquanto a crítica centrada nas relações históricas, como a

de Walter Benjamin, dedicou-se a examinar sua consciência secreta de uma relação

impossível com o mundo social.

Charles Baudelaire, o Corpo e a Religião

A inovação essencial da modernidade literária depois de 1848 consiste justamente na

distância que ela toma da linguagem de seu século. Assim como o público afastou-se da

literatura, ela se afastou do palavrório; em outros termos, a literatura moderna caracteriza-

se pelo fato de denunciar toda cumplicidade com o espírito do tempo.

As origens dessa estética, que será chamada de antiburguesa, é paradoxal e

complexa, sendo composta, como descreve Dolf Oehler, de “uma profunda perplexidade

diante da burguesia como fenômeno e uma ingenuidade romântica diante da função

histórica da nova classe dominante”. (OEHLER, 1997, p.11). É preciso buscar um conjunto de

valores que já não se encontram na nova sociedade que se apresenta. Serve como exemplo

a exaltação baudelairiana do amor entre as mulheres:

Somente Lesbos... faz desabrochar os sonhos de profunda delicadeza e paixão que não

sobrevivem a uma noite sequer na heterossexualidade, sobretudo no casamento. No

amor lésbico, confiança, intimidade, delicadeza, dedicação, paixão e volúpia, na relação

sexual burguesa, insensibilidade, egoísmo, brutalidade, violência, terror e barbarismo.

(OEHLER, 1997, p. 13).

Como um exemplo oposto e complementar, podemos lembrar da descrição da

relação sexual entre o homem e a mulher que aparece em seus Journaux Intimes (Diários

Íntimos):

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Dans l’amour, comme dans presque toutes les affaires humaines, l’entente cordiale est le

résultat d’un malentendu. Ce malentendu, c’est le plaisir. L’homme crie: “Oh mon ange!”

La femme roucoule: “Maman! Maman!” Et ces deux imbéciles sont persuadés qu’ils

pensent de concert. – Le gouffre infranchissable, qui fait l’incommunicabilité, reste

infranchi. (BAUDELAIRE, 1976, p. 1113).

A definição e a descrição moderna é tão complexa e paradoxal como a nova estética

que Baudelaire procura estabelecer, como muito bem nos explica Tamara Bassim:

Il est toujours attiré par des mirages, nourri de rêves et toujours accablé par la tristesse

des renoncements, entraîné par un aveuglement de lucidité de trop grande clarté ébloui,

projeté dans un univers d'âmes closes où il ne lui reste qu'une solution toujours sensible

aux ondes mystérieuses et mystiques de l'idéal qui lui parviennent des profondeurs du

néant humain. (BASSIM, 1974, p. 186)

Para Baudelaire, assim como para outros artistas e pensadores daquela época, o

papel social do cidadão mudou significativamente com o advento da revolução industrial e

da consolidação da burguesia capitalista como classe dominante. Pobreza, solidão, frio e

fome são apenas algumas das mazelas pelas quais passam os habitantes da metrópole que

surge e se estabelece, mas que, apesar disso, preservam certo encanto especial e único,

capturado pelo olhar arguto do poeta.

Como foi dito, as mudanças sofridas pelo corpo humano, bem como as sofridas pelo

corpo social, são intensas e devastadoras e se transformam em conteúdo lírico. Em toda a

obra de Baudelaire o corpo será objeto de análise. As mudanças no corpo do ser humano

provocadas pelas mudanças no corpo social são notórias e determinantes das releções

humanas que passam a se estabelecer. Claudio Willer procura definir como é estabelecido o

corpo para Baudelaire:

São pelo menos três as aproximações ao corpo discerníveis em sua obra. Um deles, o

corpo abjeto, degradado, em decomposição. Outro, um corpo sublime, apresentado por

meio de das imagens que equiparam a mulher desejada a um mundo maravilhoso, ao

universo. O terceiro, o corpo transformado, artificial: aquele do dandy, o suporte para a

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exibição da moda e da maquiagem, das provocações pelo vestuário e por atitudes; e

também o das lésbicas. Talvez ainda seja possível ver um quarto corpo em sua obra: o

ausente, inteiramente sublimado. (WILLER, 2013, p. 194)

As definições apresentadas por Willer se correspondem e se misturam ao longo dos

poemas de Baudelaire e podem mesmo aparecer todas juntas em um mesmo poema: como

já foi dito, a definição da mulher moderna é complexa e paradoxal. Contudo, para

Baudelaire, é possível afirmar que a mulher moderna provoca horror e fascinação, além de

representar o contrário da vida, como nos explica Robert Smadja:

Or ces visions de la mort physique expriment également l'horreur même du corps: c'est

dans le cadavre que corps et vie se dissocient, que le corps est plus totalement corps,

parce que la vie, la beauté, la sensualité qui avaient occulté sa corporéité brute l'ont

déserté et rendu à sa pitoyable tragédie de corps matériel. C'est cette corporéité brute

que Baudelaire, horrifié-fasciné, recherche et contemple de toutes ses forces maladives.

(...) Corps propre, corps de l'autre, corps féminin. Cette déficience du sentiment de la vie

que Baudelaire porte en son propre corps, il la projette naturellement sur le corps de la

femme. (SMADJA, 1988, pp. 16 e 17)

É justamente esse horror surpreendente provocado pela degradação do corpo físico,

do corpo natural, que será elaborado e desenvolvido em muitos dos poemas de Baudelaire.

Essa degradação evidencia a transitoriedade da beleza e da vida, uma transitoriedade que

alcança a velocidade do instante na sociedade moderna, provocando a tensão existencial

entre o tédio e o ideal, equilibrados pelo poeta.

En tout état de cause, l'expérience du corps propre est vécue par Baudelaire su le mode

du manque, du déficit. Sentiment de mort, dépersonnalisation, pert de parties du coprs

propre, complexe de castration, fantasmes du corps morcelé, tout cela renvoie à un

univers intérieur torturé, à un vécu corporel apocalyptique et profondément insécure.

Peut-être serait-on fondé à recehercher les mécanismes de défense par lesquels le corps

propre cherche à reconquérir l'unité perdue, comme nous avons reconnu dans certains

thèmes le désir de réparation du corps maternel. (SMADJA, 1988, p. 54)

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A negação de São Pedro

Nós temos um texto bastante complexo: discursivo e reflexivo, de modo

argumentativo, mas também poético e pictórico, contendo uma reflexão sobre a noção de

revolta construída em três fases: as duas primeiras estrofes evocam um Deus saciado de

sofrimento humano; as estrofes seguintes questionam Jesus sobre se seu sacrifício na cruz

parece-lhe aceitável sob as esperanças e a promessa de seu Pai de um mundo melhor; na

última estrofe o poeta fala em seu próprio nome, e este é o lugar onde São Pedro chega

como um exemplo a ser seguido na conclusão das duas partes anteriores: uma vez que Deus

é um tirano, uma vez que o sacrifício de Jesus é inútil, é justo negar-lhe. É aqui que está a

frase-chave do poema, devemos deixar "um mundo onde a ação não é a irmã de sonhos."

No segundo conjunto, degradando o corpo encarnado de Deus, é limpa a ruptura,

marcada pelo uso do hífen e a interjeição "Ah! Jesus": descreve o sofrimento do crucificado,

relembrando-o em uma espécie de memento: "lembre-se do Jardim das Oliveiras!" Aqui é a

dor, que procura marcar Baudelaire por verbos, da violência física, "plantavam", "cuspir",

"penetrarem", e adições atribuindo e emprestando do vocabulário do corpo no qual ele é

mais sensível, a "carne viva", a "cabeça"; a violência da crucificação também observa

imagens hiperbólicas da deformação do corpo humano, "peso horrível", "seu dois braços

distendidos"; a imagem que fecha a quinta estrofe: "posou como um alvo", é um recall

global deste sacrifício, e seu valor de demonstração.

A última frase nesta segunda parte do argumento contém uma acusação implícita na

pergunta retórica: "O remorso não penetrou em Seu lado mais fundo que a lança?" O

conceito de remorso, comum em Baudelaire, aqui é fortemente demonstrado pela

comparação com a "lança" que atravessa o coração da vítima. Alguém poderia pensar que

Baudelaire procura em Jesus a dúvida da utilidade do seu sacrifício, que concordou com um

pai bárbaro e cruel, e este é o processo de retórica que prepara a terceira seção do poema.

Recorde-se que, de acordo com a história cristã, Pedro teria sacado sua espada e

cortado a orelha de um dos soldados que vieram prender Jesus, um único ato de violência de

um apóstolo. Mas Baudelaire coloca este ato, sem dizer-lhe, em paralelo aos da crucificação,

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e chicotes e tiros distribuídos aos mercadores do templo. Sua maneira de demanda é muito

forte gramaticalmente e retoricamente: ele usa o subjuntivo do desejo, valioso, poder tenso,

e um efeito de simetria rítmica som e da repetição da palavra reivindicação "espada" de uma

morte violenta para si. Aqui encontramos sem a palavra ser nomeada, o tema do título da

coleção.

Revolta

Apresentamos aqui a tradução em Língua Portuguesa do conjunto de poemas

Revolta, publicado em Paris (França) na primeira edição do livro Les Fleurs du mal, em 1857,

por Charles Baudelaire.

Revolta

A negação de São Pedro

O que é que Deus faz desta enxurrada de anátemas que

sobe todos os dias pelos seus caros Serafinhos? Como um

tirano empanturrado de carne e vinhos, adormece ao doce

som das nossas horríveis blasfêmias.

Os soluços dos mártires e dos torturados são uma sinfonia

inebriante, sem dúvida, já que, apesar do sangue que Sua

volúpia custa, os céus ainda não estão satisfeitos!

- Ah! Jesus, lembre-se do Jardim das Oliveiras! Em Sua

simplicidade Você rezou de joelhos, àquele que em Seu céu

ria ao barulho dos cravos que ignóbeis algozes plantavam

em Suas carnes vivas.

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Quando Você vai cuspir em sua divindade o biltre da guarda

e das cozinhas, e quando Você sentiu penetrarem os

espinhos em Seu crânio, onde viveu a imensa Humanidade;

Quando de Seu corpo quebrado a acuidade horrível estendia

Seus dois braços distendidos, que Seu sangue e Seu suor

escorria do Seu rosto pálido, quando foi diante de tudo

colocado como um alvo,

Que Você sonhou com esses dias tão brilhantes e tão belos

em que veio para cumprir a eterna promessa, onde Você

pisou, montado em um doce jumento, os caminhos todos

repletos de flores e de ramos,

Onde, o coração todo inchado de esperança e de coragem,

Você chicoteava todos estes vis comerciantes com uma

vingança, onde Você estava, Mestre, afinal? O remorso não

penetrou em Seu lado mais fundo que a lança?

- Certo, saio, quanto a mim, satisfeito de um mundo onde a

ação não é a irmã do sonho, Posso usar a espada e morrer

pela espada! São Pedro renegou Jesus... bem feito!

Abel e Caim

Raça de Abel, dorme, come e mama

Deus te sorri complacentemente.

Raça de Caim, dentro da lama

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Roça e morre miseravelmente.

Raça de Abel, o teu sacrifício

Agrada o nariz do Serafim!

Raça de Caim, o teu suplício

Terá ele então jamais um fim?

Raça de Abel, vê as tuas cocanhas

e teu gado ir gordo e são;

Raça de Caim, as tuas entranhas

Uivam de fome feito um cão.

Raça de Abel, aquece teu ventre

em tua lareira patriarcal;

Raça de Caim, nesse teu antro

Tirita de frio, pobre chacal.

Raça de Abel, ama e pulula!

Teu ouro também faz boas pepitas.

Raça de Caim, flor de gudula,

Toma guarda desses apetites.

Raça de Abel, cresces e pastas

Como os percevejos nos matos!

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Raça de Caim, às rotas vastas

Arrasta tua família aos ladros.

II

Ah! raça de Abel, tua carniça

Enriquece o solo fumegante!

Raça de Caim, teu serviço

Não foi feito bem o bastante;

Raça de Abel, eis teu labéu:

O ferro, a lança venceu!

Raça de Caim, suba ao céu,

E sobre a terra jogue Deus!

As litanias de Satã

Oh tu, o mais sábio e o mais belo dos Anjos

Deus traído pelo destino e privado dos louvores,

Oh Satã, tende piedade de minha longa miséria!

Oh Príncipe do exílio, a quem se fez injustiça,

E que, vencido, sempre te ergues mais forte,

Oh Satã, tende piedade de minha longa miséria!

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Tu que sabes tudo, grande rei das coisas subterrâneas,

Curandeiro familiar das angústias humanas,

Oh Satã, tende piedade de minha longa miséria!

Tu que, mesmo aos leprosos, aos párias malditos,

Ensinas por amor o gosto do Paraíso,

Oh Satã, tende piedade de minha longa miséria!

Oh tu que da Morte, tua velha e forte amante,

Engendrou a Esperança, - uma louca fascinante!

Oh Satã, tende piedade de minha longa miséria!

Tu que fazes ao proscrito esse olhar calmo e alto

Que condena todo um povo entorno do cadafalso

Oh Satã, tende piedade de minha longa miséria!

Tu que sabes em quais cantos das terras invejosas

O Deus ciumento esconde as pedras preciosas,

Oh Satã, tende piedade de minha longa miséria!

Tu cujo olhar claro conhece os profundos arsenais

Onde dorme enterrado o povo dos metais,

Oh Satã, tende piedade de minha longa miséria!

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Tu cuja larga mão esconde os precipícios

Do sonâmbulo errante na borda dos edifícios,

Oh Satã, tende piedade de minha longa miséria!

Tu que, magicamente, amacia os velhos ossos

Do beberrão atrasado pisado pelos cavalos,

Oh Satã, tende piedade de minha longa miséria!

Tu que, para consolar o homem frágil que sofre,

Nos ensinou a misturar o salitre e o enxofre,

Oh Satã, tende piedade de minha longa miséria!

Tu que pousas tua marca, oh cúmplice sutil,

Sobre a fronte do Creso implacável e vil,

Oh Satã, tende piedade de minha longa miséria!

Tu que pões nos olhos e no coração das moças

O culto da praga e o amor dos trapos,

Oh Satã, tende piedade de minha longa miséria!

Bastão dos exilados, lâmpada dos inventores,

Confessor dos enforcados e dos conspiradores,

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Oh Satã, tende piedade de minha longa miséria!

Pai adotivo daqueles que em sua cólera negra

Do paraíso terrestre afugentou o Deus Padre,

Oh Satã, tende piedade de minha longa miséria!

Preçe

Gloria e louvor a ti, Satã, nas alturas

Do Céu, onde reinas, e nas profunduras

Do Inferno, onde, vencido, sonhas em silêncio!

Faça que minha alma um dia, sob a Árvore da Ciência,

Perto de ti repouse, na hora em que sobre tua face

Como um Templo novo seus ramos se espalhem!

Considerações finais

Uma leitura contemporânea da obra poética de Baudelaire exige, tanto para a sua

crítica quanto para a sua tradução, além da percepção do lírico no auge do capitalismo, a

compreensão do poeta que finge ser sociólogo e que analisa e apresenta, de forma

perspicaz, o nascimento de uma nova sociedade humana, na qual o cidadão passa a ter um

novo reconhecimento e uma nova consideração.

Referências Bibliográficas

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