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DECIS – Departamento de Ciências Sociais, Políticas e Jurídicas PGHIS – Programa de Pós-Graduação em História “O nacional-popular na obra de Elis Regina (1961-1974)” Débora Dutra Fantini São João del-Rei 2011

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DECIS – Departamento de Ciências Sociais, Políticas e JurídicasPGHIS – Programa de Pós-Graduação em História

“O nacional-popular na obra de Elis Regina (1961-1974)”

Débora Dutra Fantini

São João del-Rei

2011

2

DECIS – Departamento de Ciências Sociais, Políticas e JurídicasPGHIS – Programa de Pós-Graduação em História

“O nacional-popular na obra de Elis Regina (1961-1974)”

Dissertação de mestrado apresentada aocurso de Pós-Graduação em História daUniversidade Federal de São João del-Rei,como parte dos requisitos necessários àobtenção do grau de Mestre em História.Orientadora: Profª. Dra. Silvia MariaJardim Brügger.

Débora Dutra Fantini

São João del-Rei

2011

3

“O nacional-popular na obra de Elis Regina (1961-1974)”

Débora Dutra Fantini

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em História, doDepartamento de Ciências Sociais, Políticas e Jurídicas, da Universidade Federal de SãoJoão Del Rei, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre emHistória.

Aprovada em ____ de _________________________ de ________

Comissão Examinadora:

___________________________________________Profª. Drª. Silvia Maria Jardim Brügger (Orientadora)

__________________________________________Profª. Drª. Eleonora Zicari Costa de Brito

__________________________________________Prof. Dr. Danilo José Zioni Ferretti

__________________________________________Prof. Dr. Ivan Vellasco de Andrade (Suplente)

São João del-Rei2011

4

A todos os amantes de música brasileira

5

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer ao meu irmão Lucas. Dentre as inúmeras

intrigas costumeiras que permearam nosso caminho, foi através de suas audições que o

Brasil de Elis me chegou fortemente.

Esta pesquisa surgiu na época em que eu estava terminando a graduação e, ao

conversar com meu orientador sobre o negro e o Brasil na obra da Elis, ainda sem saber

muito do que se tratava uma análise como esta, me recordo frequentemente de sua

resposta/pergunta: você não está buscando encontrar chifre na cabeça de cavalo? Adorei

a analogia e insisti no assunto, hoje vejo que minhas dúvidas eram pertinentes e as

apresento aqui na minha dissertação.

Gostaria de agradecer especialmente ao Danilo, orientador e mestre, que tanto

me apoiou em momentos de dúvidas e incertezas e me apontou, com muita sabedoria,

caminhos a seguir.

Silvia sempre esteve atrelada às minhas grandes paixões desde o início da

faculdade e divide comigo inúmeras destas. O Malungo1 me apresentou importantes

questões e deu uma boa guinada no projeto que coordeno juntamente com meu marido,

denominado Mucambo. O impulso de Silvia, assim como a aquisição de instrumentos

musicais, possibilitada por este projeto, nos ajudou bastante nos primeiros passos desta

longa caminhada em pesquisar e ensinar os elementos da cultura popular afro-brasileira.

Aos grandes amigos queridos, em especial ao César e a Mariana. A todos os

mucambeiros que estremeceram e estremecerão a terra comigo! Aos amigos de pesquisa

que sempre apoiaram e responderam prontamente às minhas dúvidas, especialmente

Mateus, Marlon e Ciro.

Ao Ailton que resolve todos os nossos problemas burocráticos. Por sua simpatia

e prontidão.

1 Núcleo Malungo – Pesquisa, Extensão e Ensino sobre Escravidão e Cultura Afro-brasileira.

6

A Myriam, não somente por ser minha mãe, mas por ser uma forte guerreira que

me ensinou, sem perceber, a nunca entregar os pontos. E claro, ao magnífico Dondom,

amigo de todas as horas.

Ao Genaro, que foi meu pai e me ensinou a sorrir e ter calma quando tudo

parecia ruir... Deixará saudades eternas.

Ao grande amor da minha vida, André Mendes, que não só leu e comentou

incansavelmente vários aspectos desta pesquisa, como realizou a análise musical.

Companheiro de inúmeras jornadas.

Agradeço à CAPES pelo apoio financeiro que muito ajudou neste duro

caminhar.

7

RESUMO

Esta dissertação objetiva analisar a contribuição da intérprete Elis Regina no processo

de formação da música popular brasileira em um período de intenso debate em torno do

papel da arte enquanto veículo de conscientização e difusão de identidades nacionais,

atentando para alguns aspectos como sua relação com o Brasil e com o popular. Há uma

valorização do conceito nacional-popular na obra da cantora, do período de 1965 até

1968, permeada por um movimento de “ida ao povo”. A partir de suas experiências

musicais e pessoais a cantora pode construir sua própria carreira baseada também na

valorização do Brasil.

Palavras-chave: Nacional-popular, popular, Elis Regina, Brasil

8

ABSTRACT

This dissertation aims to analyze the interpreter Elis Regina’s contribution to the

formation process of the Brazilian popular music in a period of intense argumentation

around art’s role as a vehicle of awareness and diffusion of national identities, paying

attention to some aspects such as its relation to Brazil and to what is popular. There is

an appreciation of the national-popular concept in the singer’s work from the year of

1965 until 1968, permeated by a so called “going to the people” movement. From her

musical and personal experiences, the singer was able to build her own career based,

also, in Brazil’s appreciation.

Keywords: National-popular, popular, Elis Regina, Brazil, Brasil

SUMÁRIO

Introdução _____________________________________________________________________12

Capítulo 1 – Formação musical e primeiros passos artísticos______________________________24

1.1 - A infância __________________________________________________________________27

1.2 - Nas ondas da Rádio Nacional __________________________________________________31

1.3 - O programa Clube do Guri ____________________________________________________44

1.4 - Os primeiros LPs ____________________________________________________________56

Capítulo 2 – O surgimento da temática nacional-popular no repertório de Elis ________________67

2.1 - O cenário musical brasileiro do início a meados dos anos sessenta _____________________67

2.2 - O nacional-popular enquanto ato de conscientização_________________________________78

2.3 - Elis e a televeisão____________________________________________________________85

2.4 - O Programa O Fino da Bossa __________________________________________________88

2.5 - Elis nos festivais _____________________________________________________________94

2.6 - Os LPs 2 na bossa____________________________________________________________98

2.7 - Os LPs lançados entre 1965-1968_______________________________________________111

Capítulo 3 – O Brasil em foco_____________________________________________________124

3.1 - O tropicalismo pede passagem _________________________________________________133

3.3 - Elis: mudanças e continuidades ________________________________________________145

3.4 - 1969 _____________________________________________________________________149

3.5 - 1970 _____________________________________________________________________152

3.6 - 1971 _____________________________________________________________________158

3.7 - 1972 _____________________________________________________________________161

3.8 - 1973______________________________________________________________________168

3.9 -1974______________________________________________________________________173

3.10 - Balanços e perspectivas______________________________________________________175

Conclusão ____________________________________________________________________178

Fontes discográficas _____________________________________________________________182

Revistas e jornais _______________________________________________________________183

10

DVDs e vídeos _________________________________________________________________184

Sites consultados________________________________________________________________185

Bibliografia ____________________________________________________________________185

Anexo ________________________________________________________________________191

Lista de quadros

Quadro 1 - Viva a Brotolândia _____________________________________________________59

Quadro 1.1 - Poema de amor_______________________________________________________60

Quadro 1.2 - O bem do amor________________________________________________________61

Quadro 1.3 - Ellis Regina__________________________________________________________63

Quadro 2 - Temáticas das músicas do LP Dois na Bossa_________________________________100

Quadro 2.1 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Dois na bossa________102

Quadro 2.2 - Temáticas das músicas do LP Dois na Bossa número 2_______________________103

Quadro 2.3 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Dois na bossa 2 ______105

Quadro 2.4 - Temáticas das músicas do LP Dois na Bossa número 3_______________________107

Quadro 2.5 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Dois na bossa 3______109

Quadro 2.6 - Temáticas das músicas do LP Samba eu canto assim_________________________111

Quadro 2.7 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Samba eu canto assim_113

Quadro 2.8 - Temáticas das músicas do LP O Fino do Fino- Elis Regina e Zimbo Trio_________113

Quadro 2.9 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP O fino do fino_______114

Quadro 2.10 - Temáticas das músicas do LP Elis_______________________________________115

Quadro 2.11 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Elis_______________117

Quadro 2.12 - Temáticas das músicas do LP Elis Especial_______________________________118

Quadro 2.13 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Elis Especial________119

Quadro 3 - Temáticas das músicas do LP Elis, como e por quê____________________________150

Quadro 3.1 - Temáticas das músicas do LP Elis no Teatro da Praia________________________153

11

Quadro 3.2 - Temáticas das músicas do LP Em pleno verão______________________________155

Quadro 3.3 - Temáticas das músicas do LP Ela________________________________________158

Quadro 3.4 - Temáticas das músicas do LP Elis________________________________________163

Quadro 3.5 - Temáticas das músicas do LP Elis________________________________________169

Quadro 3.6 - Temáticas das músicas do LP Elis e Tom__________________________________173

Quadro (Anexo) - Relação dos discos analisados, com o número de canções por temática,

demonstrando as mudanças no repertório de Elis ao longo do período analisado______________191

Lista de tabelas

Tabela 1 - Percentual de gêneros gravados nos LPs de 1961-1963__________________________64

Tabela 2 - Percentual dos aspectos nacional-populares em cada LP (1965-1968)______________123

Tabela 3 - Frequência com o nome das cantoras no título dos discos________________________180

Introdução

“Toda gravação que Elis Regina fazia era direta, sem playbacks, sem nenhuma

correção de voz. Ela preferia repetir a música quantas vezes fosse necessário até que

ficasse perfeita, mas não tolerava fazer emendas na gravação.” 2

Inicio este trabalho citando Marcos Mazzola, produtor musical que trabalhou

com Elis. Vários outros aspectos, além deste a que Mazzola faz menção, devem ser

levados em consideração quando nos debruçamos sobre a obra e vida de Elis Regina.

Sua busca pela perfeição fora uma constante em toda sua vida, a própria artista citou

este fato em momentos diferentes de sua carreira3. A personalidade difícil4, bem como

suas mudanças de opinião em curto espaço de tempo, foram citadas por inúmeros

personagens que conviveram com Elis.5

Esta pesquisa busca discutir as canções de Elis Regina, compreendidas pelos

seus conteúdos nacionais e políticos, mas também a partir de outras formas de

expressão presentes em sua obra. Nessa discussão, foram importantes tanto as intenções

da artista, expressas em entrevistas e diversas declarações, quanto a análise das canções.

Ao mesmo tempo em que não elegi um único referencial de análise, procurei ver em que

medida os conteúdos políticos, de crítica e denúncia social coexistiam com outras

temáticas. Não quis mostrar uma Elis engajada e nem tampouco mostrá-la unicamente

em sua faceta romântica, mas compreender sua obra a partir da complexidade existente

na articulação de conteúdos nacionais que expressaram os conflitos de Elis, em meio a

uma sociedade que sofria várias transformações políticas e culturais. Elis também sofreu

profundas transformações pessoais ao longo de sua trajetória artística, as quais estão, de

alguma maneira, expressas na escolha do repertório e no seu modo de interpretá-lo.

Refletindo acerca das possíveis leituras realizadas através de determinadas

músicas, suas interpretações e sentidos, Chico Buarque nos dá um bom exemplo, com a

música Jorge Maravilha, em 2005: “Queriam que a música fosse para a filha do Geisel.

2 MAZZOLA, Marcos. Ouvindo estrelas: a luta, a ousadia e a glória de um dos maiores produtoresmusicais do Brasil. – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007, p. 77.3 Dentre eles ao programa MPB Especial realizado pela TV Cultura em 1973.4 Expressas por Elis a LANCELLOTTI, Silvio. (entrevistador). “Quero apenas cantar”. Revista Veja01/05/1974.5 Fato citado em entrevista à Regina Echeverria por Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal e tambémNelson Motta. In: ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007.

13

Eu nunca pensei em fazer uma música pra filha do Geisel, eu nunca pensei nisso. Até

hoje falam isso.” 6

Questão primordial, que acredito ser pertinente citar nesta dissertação, é a visão

de um artista sobre as apropriações feitas de suas músicas e as possíveis distorções deste

diálogo realizado entre a obra produzida e sua respectiva abordagem por estudiosos, ou

mesmo críticos. Muitas vezes, o sentido que o artista intencionou alcançar com

determinadas canções ultrapassa seus desejos e essas canções acabam ganhando outros

significados. Não quero, com isso, me eximir de realizar uma análise que leve em

consideração a ambiguidade destas questões, somente enfatizo a pluralidade de sentidos

existentes em uma obra de arte.

A música produzida no contexto histórico das décadas de cinquenta, sessenta e

setenta do século XX, assim como outros fazeres artísticos, pode ser uma das formas de

se analisar a maneira pela qual a sociedade se expressava e refletia seus ideais acerca do

país no qual estava inserida. A carreira e a obra da intérprete Elis Regina constituem um

importante aspecto a ser analisado, uma vez que sua obra musical nos permite refletir

sobre a relação entre história e música: nela, estão presentes desde elementos políticos,

aspectos culturais, como a valorização do negro e dos desfavorecidos socialmente, até a

vivência amorosa. Outro fator relevante com relação a Elis, reside no fato de sua

carreira se iniciar em um período no qual a chamada moderna música popular brasileira

se encontrava em processo de formação e consolidação, como veremos adiante.

Todas as sociedades elaboram suas práticas musicais. De acordo com o

etnomusicólogo John Blacking, a música é uma habilidade humana que se desenvolve

em todos os grupos sociais de formas distintas, de acordo com seus rituais simbólicos e

seu conjunto de saberes e crenças. Participar de uma experiência musical significa

entrar em contato com esses códigos culturais, valores sociais e sentimentos

compartilhados, que fornecem elementos para a construção de identidades sociais e

laços afetivos. Isso significa que a música é uma forma de comunicação e que sua

circulação determina as condições sobre as quais essa comunicação irá ocorrer,

influenciando diretamente a construção de sentidos das práticas musicais.7

O sentido - ou os sentidos - que damos à música é construído culturalmente. A

proposta desta pesquisa é pensar nas relações que determinados grupos (dando ênfase ao

6 DVD Chico Buarque Vai passar. Produzido em 2005 pela Rede Bandeirante de Televisão e dirigido porRoberto de Oliveira.7 BLACKING, Jonh. How music is man? Seatttle: University of Washington Press, 1955.

14

artístico musical) elaboraram através de suas estratégias simbólicas, textuais e musicais,

criando uma determinada identidade. Neste projeto, a música é vista como um veículo

de conscientização e difusão de identidades nacionais. Poucas linguagens nesse período

tiveram um poder tão grande de difusão e inserção na casa de grande parte dos

brasileiros quanto a música popular.

A situação política brasileira pós-1964 provocou ainda mais confusões sobre o

papel da arte sob a sociedade urbana de consumo e foi, precisamente, a penetração

popular da canção que a teria revelado como veículo ideal para a divulgação de

determinados ideologias. Alguns artistas oriundos da bossa nova iniciaram um amplo

movimento que desembocou na chamada canção de protesto. Vinícius de Moraes,

Carlos Lyra, Edu Lobo, Nara Leão, dentre outros, começaram a abordar os problemas

sociais do país. Este novo olhar crítico sobre a canção popular enfatizou seu aspecto de

denúncia. Frente à ditadura instaurada no país, a música se converteu em um importante

vetor para se divulgarem os desejos por um país melhor.

O Brasil teve, na produção musical dos anos sessenta e início dos setenta, um

papel decisivo na construção de novas identidades nacionais, que a partir deste

momento passaram a ser marcadas pela articulação do “próprio” e do “alheio”. A

música se tornou um meio para discutir questões ideológicas e que representassem o

país. Os criadores da MPB, a partir dos anos sessenta, auxiliaram a criação de um novo

tipo de relação identitária, uma nova busca de identificação, com símbolos e elementos

nacionais, sobretudo quando a parcela mais jovem da população passou a ser sua maior

receptora, através dos auditórios e da televisão. Assim sendo, podemos pensar na

música enquanto uma das possíveis leituras da sociedade em questão.

Essa discussão estava presente nos jornais, nos filmes dos cinemas, nos

espetáculos musicais e inserida na própria tomada de consciência dos artistas, e também

de Elis, que não só gravou músicas compostas por membros dos CPCs, como de Ruy

Guerra, diretor do cinema novo; namorou Solano Ribeiro, idealizador dos festivais e

também ator do teatro de Arena; influenciou, com suas músicas e espetáculos, a

produção musical e artística do período. Sua carreira e obra são elementos fundamentais

para a compreensão dessa discussão acerca do nacional-popular e da música popular

brasileira neste momento de constantes debates.

O Brasil tem e teve inúmeros significados para diferentes pessoas em diversos

períodos de nossa história. Em busca do que viria a ser verdadeiramente brasileiro,

vários discursos surgiram na tentativa de solucionar tal questão. Discursos esses

15

presentes nos debates acadêmicos, nas obras literárias, nas canções, e levados aos meios

de comunicação, a ponto do Jornal do Brasil identificar Elis como defensora da música

brasileira. As diversas imagens que a nação brasileira teve variaram muito com o

decorrer do tempo. Em diferentes momentos de nossa história brasileira, pode-se

perceber a problemática da cultura popular se vincular à de identidade nacional.

Renato Ortiz chama a atenção para um ponto crucial desta questão:

“A procura de uma “identidade brasileira” ou de uma “memóriabrasileira” que seja em sua essência verdadeira é na realidade um falsoproblema. A questão que se coloca não é a de saber se a identidade ou amemória nacional apreendem ou não os “verdadeiros” valoresbrasileiros. A pergunta fundamental seria: quem é o artíficie destaidentidade e desta memória que se querem nacionais: A que grupossociais elas se vinculam e a que interesses elas servem”. 8

Nesta dissertação, a música, e mais especificamente a música produzida por Elis

Regina, é o artífice desta identidade e memória nacionais, já que temos inúmeras provas

de sua ampla participação via televisão, no rádio e também pela grande vendagem de

seus discos. Temos, no entanto, que analisar a que grupo se vincula? A que tipo de

interesses serve? E quanto aos locais de suas apresentações? Continuam os mesmos ou

se modificam? Tentaremos responder estas e outras questões ao longo desta dissertação.

Benedict Anderson, em Comunidades Imaginadas, dedica parte de seu livro à

história da Ásia e das Américas. Com sua abordagem cultural da política, ele analisa a

história do nacionalismo moderno e identifica as raízes da “cultura do nacionalismo”,

não na teoria política, mas em atitudes semiconscientes ou inconscientes a respeito do

tempo, da religião. Benedict cunhou a expressão “comunidades imaginadas”, dando

muita importância aos veículos das publicações, especialmente os jornais, na construção

das novas comunidades imaginadas, como a nação. O autor acredita no poder da

imaginação coletiva, das imagens partilhadas, e examina como o nacionalismo capta e

expressa anseios e esperanças reais, nascidos no calor de conflitos reais. 9 Relevante a

esta pesquisa, é a análise do repertório e carreira de uma artista que, através de suas

escolhas, cantou canções que, em um momento de fervorosos debates acerca de que

Brasil construir, contribuiu para a invenção de nossa nação.

8 ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e identidade nacional. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. SãoPaulo: FAPESP e Annablume, S/D.9ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão donacionalismo. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

16

Eric Hobsbawn trata como nação qualquer corpo de pessoas suficientemente

grande, cujos membros consideram-se como pertencentes de uma nação, e não

considera nação como uma entidade social originária ou imutável. Nação, segundo o

autor, pertence exclusivamente a um período particular e historicamente recente, e

enfatiza o elemento do artefato, da invenção e da engenharia social que entra na

formação das nações. A nação é um fenômeno construído e só pode ser compreendido,

se analisado em termos das suposições, esperanças, necessidades, aspirações e

interesses das pessoas comuns. 10

Levando em consideração o caráter de artificialidade de uma identidade que se

pretenda nacional e vendo a “realidade brasileira” como fruto de uma construção

ideológica, faz-se necessário que pensemos também nos agentes que mediam esta idéia.

Se pensarmos em identidade como algo artificial, estamos fatalmente nos referindo aos

agentes que a constroem. Se existem fenômenos nacionais, é necessário um elemento

exterior a essa dimensão que atue como agente intermediário e que a transforme em algo

compreensível. O processo de construção da identidade nacional se fundamenta sempre

em uma interpretação. As interpretações que caracterizam o Brasil são o resultado de

sentidos criados por mediadores. E quem seriam esses mediadores? Podem ser

intelectuais ou políticos, literatos ou outros agentes, mas, no caso desta dissertação, penso

na música brasileira enquanto definidora desta identidade, uma vez que a música pode

representar desejos, aspirações, anseios e sentimentos de inúmeros sujeitos sociais.

Segundo Néstor Canclini:

“Tanto o culto quanto o popular, o nacional como o estrangeiro sãoconstruções culturais. Não têm nenhuma consistência como estruturas“naturais”, inerentes à vida coletiva. Sua verossimilhança foi alcançadahistoricamente mediante operações de ritualização de patrimôniosessencializados. A dificuldade de definir o que é culto e o que é popularderiva da contradição de que ambas as modalidades são organizaçõesdo simbólico geradas pela modernidade, mas ao mesmo tempo amodernidade – por seu relativismo e anti-substancialismo – as desgastao tempo todo.” 11

Elis Regina construiu sua carreira mesclando influências nacionais (samba,

forma de cantar inspirada nas cantoras do rádio, etc) a aspectos claramente identificados

como estrangeiros, como o jazz utilizado em seus discos, além do instrumental para

executá-lo, dentre outros elementos, demonstrando que sua obra se configurou através

10 HOBSBOWN, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. RJ: Paz e Terra, 1990, p.1911 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade. - SãoPaulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997. – Ensaios Latino-Americanos, p.362.

17

de uma complexa construção cultural, diálogos, referências e influências. Na prática,

essas contradições se configuram enquanto organizações simbólicas viáveis e possíveis,

uma vez que fazem parte de comportamentos humanos e, por isso mesmo, nada

naturais. Elis foi uma das artistas, dentre inúmeros outros mediadores, que também

contribuiu para a construção de uma identidade brasileira, no caso dela, através da

música. 12 Podemos tratar seus shows e programas televisivos como rituais modernos,

que ajudaram na elaboração de símbolos e imagens nacionais para seus espectadores.

Analisando a obra da cantora, opto por trabalhar, nessa pesquisa, com os LPs

produzidos por ela no período compreendido entre 1961 e 1974.13 O recorte se justifica,

pois é nessa fase que se inicia e se consolida sua carreira. Suas primeiras gravações

datam de 1961. Os discos lançados por Elis estão inseridos em um período no qual a

música popular brasileira passa por um processo de institucionalização, em que o debate

estético-ideológico se voltava para a discussão em torno do nacional e do popular.14Assim, proponho a análise do repertório da cantora, mostrando a abordagem do Brasil,

tentando apontar como a mesma se relacionava com o discurso de valorização do

popular da época.

Tomando como objeto de análise a carreira da cantora, no período compreendido

entre 1961 e 1974, pretendo mostrar como se deu a relação de Elis com o que acontecia

naquele momento e também pensar em como a trajetória da artista atuou e contribuiu

para o processo de institucionalização da MPB. Discutirei, ainda, a maneira como o

Brasil aparece representado em sua obra. Lembremos que os anos sessenta foram

marcados por uma valorização do popular e também pelo surgimento de movimentos

culturais, dentre eles o cinema novo e o teatro de Arena que, assim como a música,

tinham como proposta questionar a situação do país.

De acordo com a análise do repertório dos discos gravados por Elis Regina no

referido período, pretendo fornecer novas compreensões para a percepção de como a

intérprete aborda questões referentes à temática nacional em sua carreira e como se dá a

12 Mateus Pacheco analisou os espetáculos produzidos por Elis a partir de 1975 e percebeu a abordagemdesses espetáculos incidirem sempre numa busca por compreensão do cotidiano no qual estavaminseridos. PACHECO, Mateus. Elis de todos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção.Dissertação (mestrado) – Universidade de Brasília. Departamento de História, 2009.13 Elis passa a ter autonomia na escolha de seu repertório somente após 1965. No entanto, como quem dizisso é a própria Elis, é necessário relativizar esta afirmação, uma vez que a autonomia ou a falta delafazem parte de uma complexa relação. Há que se considerar como os argumentos dos sujeitos sãoreconstruídos posteriormente.14 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp: 2001.

18

relação dessa abordagem com o discurso de valorização do popular, no contexto

ideológico, cultural e político dos anos de sessenta e setenta.

A partir dos aspectos da vida e obra de Elis Regina abordados por esta pesquisa,

a presente dissertação pretende indicar como se dá a relação da cantora com questões

referentes ao Brasil e como estas aparecem em sua obra. Levanto, então, algumas

perguntas: A partir de que momento as músicas com este tipo de referência começam a

aparecer em seu repertório? Elis gravou estas músicas antes ou depois de se mudar para

o Rio de Janeiro? De que forma estas canções se apresentam em seu repertório? São

canções que fazem referências ao Brasil e sua gente como tema central? Estas músicas

com tais temáticas fazem parte de um projeto de construção de um repertório popular?

De que Brasil fala/ canta Elis? É de um só Brasil ou de mais de um?

Para alcançar tais objetivos, a pesquisa toma por fontes documentais o repertório

musical de Elis Regina, a performance da intérprete, suas declarações às mídias da

época, assim como sua biografia, escrita por uma jornalista, biografias de outros artistas

e também reportagens e entrevistas com artistas ligados à sua carreira.

Em termos metodológicos, o livro História e música de Marcos Napolitano

norteou a pesquisa. A maneira com que a música deve ser abordada, no caso de uma

análise histórica, depende da forma como “fazemos perguntas” para a nossa análise.

Marcos Napolitano salienta a importância de se levar em consideração o fato de que,

por muito tempo, as letras das canções eram consideradas somente quando usadas como

fontes ou instrumentos de análise. Napolitano defende a análise das letras de maneira

integrada a outros elementos formadores das canções, como por exemplo, a harmonia, o

ritmo e a melodia, como também a interpretação dada à música. Para ele, as letras de

uma canção podem fornecer importantes dados, como “para quem” se dirige o discurso

da canção. O autor aponta também as dificuldades que se impõem àqueles que

pretendem uma abordagem interdisciplinar entre História e Música, já que o

“desenvolvimento de uma sociologia histórica ou de uma história cultural da música

brasileira ainda demanda uma ‘revolução das fontes’ e uma melhor organização de

arquivos e museus especializados em nossa história musical.” 15

Segundo Napolitano, para uma pesquisa não reduzida de uma obra musical,

devemos articular o “texto” ao “contexto”, para que não façamos uma análise

puramente descritiva da obra, ou mesmo a biografia dos autores de determinadas

15 NAPOLITANO, Marcos. História e Música: História Cultural da Música Popular. Belo Horizonte:Autêntica, 2002, p. 89.

19

canções. O entrecruzamento das análises de diferentes elementos presentes em uma

obra musical pode nos fornecer informações capazes de criar reflexões mais complexas,

sendo esse o objetivo central desta pesquisa. O autor, ao tratar da problematização da

“escuta” musical, aborda a relação entre os aspectos estruturais e a performance, ou

seja, a interpretação dada pelos músicos a uma determinada obra. Em se tratando da

MPB, a liberdade do performer é ainda maior, se comparada às execuções de música

erudita. De acordo com o autor, a estrutura e a performance “realizam” socialmente a

canção, mas não devem ser reduzidas uma à outra. Nem a estrutura deve ser

superdimensionada, nem a performance vista como reino da absoluta liberdade de

(re)criação. Seria mais produtivo, sobretudo para a análise histórica, trabalhar com o

“entre-lugar” das duas instâncias. Esse “entre – lugar” é a própria canção, enquanto

obra e produto cultural concreto.” 16

Santuza Naves comenta o fenômeno da “canção crítica” da seguinte maneira:

“A partir da década de sessenta, os compositores passaram a comentartodos os aspectos da vida, do político ao cultural, tornando-se“formadores de opinião”. Na medida em que a canção popular, noBrasil, desenvolveu um estatuto peculiar, tornando-se um lócus paraonde passaram a confluir informações de diversas áreas, artísticas,culturais e políticas, o compositor criou a identidade de intelectual, numsentido mais amplo do termo. A canção popular tornou-se assim oveículo por excelência do debate intelectual, tanto com relação aquestões textuais quanto a problemas contextuais. Por um lado, ocompositor, como é comum ocorrer com o artista “moderno”, passou aatuar como crítico no próprio processo de composição da canção. Poroutro, a crítica também era dirigida aos fatos culturais e políticos dopaís, de maneira congruente com a proposta destes compositores dearticular arte e vida. O compositor popular, à maneira de Baudelaire,tornou-se um crítico. Ao operar criticamente no processo de composi-ção, o compositor popular fez uso da metalinguagem, daintertextualidade e de outros procedimentos que remetem a diversasformas de citação, como a paródia e o pastiche. E ao estender a atitudecrítica para além dos aspectos formais da canção, o compositor populartornou-se um pensador da cultura.” 17

Podemos pensar em Elis como uma jornalista de seu tempo, como a própria

artista chegou a afirmar, em entrevista ao Vox Populi, programa da TV Cultura,

realizado em 1978. A artista tomou para si a tarefa de refletir sobre a sociedade na qual

16 NAPOLITANO, Marcos. História e Música: História Cultural da Música Popular. Belo Horizonte:Autêntica, 2002, p.8517 NAVES, Santuza C. Palestra proferida na Semana do Patrimônio da Fiocruz, realizada de 21 a 25 demaio de 2007 na Fundação Oswaldo Cruz, em mesa-redonda intitulada “De Mário de Andrade a MPB eoutras viagens musicais”. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 25 de maio de 2007.

20

estava inserida, pela qual era influenciada e sobre a qual exercia influência, por sua vez.

Ao inserir em seu repertório músicas que mencionavam problemas nacionais, Elis passa

a ser considerada uma destas “compositoras” com identidade de um intelectual.

Mais do que somente interpretar, Elis ganhava um status de compositora ao

selecionar e interpretar à sua maneira determinadas canções. Acreditando que um

mesmo discurso pode ser transmitido de diferentes maneiras por diferentes intérpretes,

onde alguns podem dar mais dramaticidade ao ato de cantar do que outros, e também

que o ato de interpretar se soma ao ato de compor, acho pertinente citar Adalberto

Paranhos:

“... as interpretações, quaisquer que sejam elas, são sempre portadorasde sentido. Isso recoloca, a todo instante, problemas de ordemmetodológica. Do meu ponto de vista, interpretar implica tambémcompor. Inevitavelmente, quando alguém canta e/ou apresenta umamúsica sob essa ou aquela roupagem instrumental, atua igualmente,num determinado sentido, como compositor. O agente opera, em maiorou menor medida, na perspectiva de decompor e/ou recompor umacomposição.” 18

Acredito que mesmo não assinando a composição das canções de seu repertório,

Elis Regina deu novos sentidos aos discursos e às músicas que interpretou. Através de

técnicas próprias, adquiridas ao longo de sua vida, seu canto atribuía novos sentidos a

essas canções. Além de dar-lhes novo sentido, ela as escolhia dentre inúmeras outras

canções a serem interpretadas.

A música popular começou a despertar a atenção dos intelectuais, sobretudo, a

partir da bossa nova. O interesse da crítica estava ligado aos aspectos discursivos da

canção popular, motivando inúmeros debates sobre suas propostas políticas, sociais e

culturais. Dessa maneira, os artistas ocupariam posições engajadas ou alienadas diante

deste novo cenário. E, de fato, muitos compositores e cantores, dentre eles Elis Regina,

tomaram para si uma missão de cultura, transformando-se em intelectuais, ao intervir

sobre o terreno do político através de seus trabalhos artísticos.

Questionado em entrevista sobre qual teria sido seu posicionamento no momento

em que o campo musical estava muito dividido, cheio de polêmicas, no final dos anos

sessenta, em que o pessoal da tropicália polemizava com o pessoal da MPB tradicional e

vice-versa, Nelson Motta responde:

18 PARANHOS, Adalberto. A música popular e a dança dos sentidos: distintas faces do mesmo. RevistaArtCultura. Uberlândia: EDUFU, 2004, p.25.

21

“Isso era uma época muito efervescente, muito estimulante também,porque você tinha discussão noite e dia. Mas, é claro, esse espírito dediscussão foi exacerbado pela ausência de discussão política e de debatepolítico, porque estávamos sob a ditadura militar. Se o debate políticofosse livre como hoje, certamente o debate musical seria muito, muito,muito minimizado, provavelmente ia se manter mais circunscrito aocampo especificamente cultural. Por causa dessa falta de espaçopolítico, a música popular acaba se transformando numa coisa muitomaior que ela.” 19

De acordo com Caetano Veloso:

“Depois da bossa nova, passara-se a levar a música popular muito asério no Brasil. E isso em todos os sentidos: dos aspectos propriamentemusicais e literários aos políticos, havia uma atitude pretensiosa eresponsável em toda atividade ligada à canção.” 20

Caetano disse ainda:

“Num ambiente estudantil altamente politizado, a música popularfuncionava como arena de decisões importantes para a cultura brasileirae para a própria soberania nacional – e a imprensa cobriacondizentemente... Mas em todos os níveis tinha-se a ilusão, mais oumenos consciente, de que ali se decidiam os problemas de afirmaçãonacional, de justiça social e de avanço na modernização.” 21

Estes depoimentos têm em comum o aspecto de apontarem a importância que a

música popular teve no Brasil enquanto espaço de reflexão e representação dos

problemas nacionais. Ao analisarmos a música como um objeto histórico, devemos

refletir sobre o significado que ela tem enquanto documento. Quanto ao significado de

documento, recorro ao conceito de Le Goff, segundo o qual, todo documento é também

monumento. Uma obra musical, e neste caso, a de Elis Regina, é passível de

interpretação histórica, na medida em que carrega em si a intencionalidade de quem a

produziu, além das questões da época em que foi composta e gravada. É necessário

levar em consideração, a partir de uma leitura crítica, a complexa construção deste

nosso objeto de análise. Segundo Le Goff:

“O documento não é inócuo. É, antes de mais nada, o resultado de ummontagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, dasociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivasdurante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quaiscontinuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio.” 22

19 A MPB em discussão: entrevistas / Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho, Tatiana Bacal(Organizadores) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 44.20 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p. 122.21 Idem, p. 177.22 LE GOFF, Jacques. História e memória. 5°edição – Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003, p.538.

22

Assim sendo, acho necessário analisar não só a obra musical de Elis, como

também a complexa relação existente entre a sua biografia e seu diálogo com o

momento político e o tumultuado debate cultural que acompanhou o período. Tanto a

música, quanto outros documentos em geral captam apenas uma parcela do que seus

autores vivenciaram. Nesse sentido, resta ao historiador saber somar, à obra musical

analisada, outras fontes e compreender que sua reconstituição é parcial e construída

através da reunião de fragmentos de realidades descritas por indivíduos que, por sua

vez, selecionaram do passado, aquilo que lhes era importante.

Tentarei compreender o diálogo existente entre o texto e a música, levando em

consideração a melodia, os arranjos, os instrumentos utilizados, os timbres e os gêneros

musicais. Não realizo uma análise musicológica, já que não se trata de uma análise

puramente musical e sim, priorizo a análise textual, dando ênfase a questões históricas.

Os aspectos musicais, como, por exemplo, determinadas melodias ou dinâmicas

instrumentais, entram na análise para esclarecer sentidos que somente a letra não é

capaz de explicar. Tento ao máximo atrelar o sentido textual à sonoridade e timbres dos

arranjos que o acompanham.

O primeiro capítulo trará a análise da infância de Elis Regina e seus primeiros

contatos com o aprendizado musical, além de analisar a importância do rádio na sua

vida e profissionalização. Para tanto, utilizo bibliografia referente ao assunto e um

estudo realizado sobre o programa do qual Elis participou durante boa parte de sua

infância. Analiso, ainda, a primeira parte de sua obra, que constitui 4 LPs, gravados

enquanto Elis ainda morava em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

No segundo capítulo, o objetivo é analisar o surgimento da temática nacional-

popular na obra de Elis. Pretende-se compreender, através das canções gravadas por ela,

bem como algumas de suas entrevistas e vídeos, e também, através depoimentos de

artistas envolvidos direta ou indiretamente com sua carreira, as tensões presentes nas

relações sociais de meados dos anos sessenta que se referem à problemática nacional.

Analiso sua relação com a televisão, a proposta do programa O Fino da Bossa e

também sua participação em festivais. Analiso os LPs lançados de 1965 até 1968, nos

quais percebo a predominância da temática nacional-popular, o que se modifica a partir

de 1969.

No terceiro e último capítulo, abordarei a carreira de Elis Regina após o LP

lançado em 1968, Elis Especial, no qual é perceptível uma efetiva tentativa de mudança,

23

tanto no repertório quanto em sua sonoridade mais próxima da bossa nova, além de

influências musicais de outros gêneros, como, por exemplo, o rock progressivo.

Analisarei como o nacional-popular, tão presente no repertório de Elis desde 1965, se

modifica ao longo de sua carreira e, em especial, a partir de 1968, quando o conceito

passa a ser altamente combatido pelos tropicalistas. Tentarei esclarecer se, de fato,

houve uma influência do movimento tropicalista na carreira e obra de Elis e como se

deu essa interferência. Como fontes para a realização deste capítulo, serão utilizados

jornais, revistas, vídeos, além de bibliografia referente ao tema e análise da discografia

deste período.

Vamos ao trabalho!

24

Capítulo 1 - Formação musical e primeiros passos artísticos

Estudos recentes sobre a história da música popular brasileira23 dão ênfase aos

movimentos musicais em detrimento das trajetórias individuais, principalmente os

trabalhos relacionados com a música produzida após o surgimento da bossa nova e com

a conjuntura pós-golpe militar. Tais estudos vêem a história da música brasileira a partir

de uma sucessão de movimentos musicais ou a partir da relação de determinados

compositores com o regime ditatorial, dando destaque para as canções engajadas. O

aspecto frágil destas análises está na forma como as trajetórias individuais são pensadas,

uma vez que elas tendem a ser inseridas nos movimentos e não estes a serem pensados a

partir das trajetórias.

A escolha do individual, no caso, Elis Regina Carvalho Costa, não pode ser vista

como contraditória à do social, trata-se apenas de uma abordagem diferente, uma vez

que, ao acompanharmos o fio de um destino particular – de Elis, de um grupo de artistas

– e, com ele, a multiplicidade dos espaços e dos tempos, percebemos a meada das

relações nas quais ela se inscreve. Minha análise busca, portanto, a compreensão de

uma experiência coletiva a partir da individual. 24

E.P.Thompson explica que os procedimentos exigidos para observarmos o

comportamento de uma pessoa não são os mesmos exigidos para observarmos os

acontecimentos históricos. Não podemos construir nosso conhecimento histórico ou

econômico pressupondo primeiro indivíduos isolados. É legítimo ver uma pessoa como

portadora de estruturas, mas só podemos chegar a ela através da soma de muitos

ângulos; nem uma pessoa e nem mesmo uma sociedade podem ser vistas como uma

soma de determinações que se cruzam, mas sim, através da observação no tempo. 25

Escolher estudar uma artista, como qualquer outro sujeito, contribui para que se

compreenda melhor a relação que existe entre agentes históricos individuais e processos

históricos coletivos. Não existe um contexto que independa de sujeitos, e o estudo de

23 CASTRO, RUY Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa nova. SP, Cia. das Letras,1990, e NAPOLITANO, Marcos Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp: 2001, dentre outros.24 REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In: Jacques (org.). Jogos de escalas. Rio deJaneiro, FGV, 1998, pp. 21-22.25 THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. 1978, The Merlin Press, deLondres, Inglaterra, p. 169.

25

casos específicos são importantes, uma vez que pensamos em sua participação e,

conseqüentemente, na modificação da realidade na qual esse sujeito atua.

Analisarei, neste capítulo e nos demais, a capacidade da música popular (na

qualidade de campo cultural) em agenciar tensões advindas da invenção de um Brasil

“moderno”. Realizarei uma análise polifônica, tramada na trajetória de Elis Regina e

nos espaços que ela ocupou, perpassando por casos do cotidiano da produção musical,

pelas letras das músicas que interpretou, pelas tensões sociais das quais participou e

influenciou, na dinâmica política, bem como nas transformações culturais por que

passava a sociedade naquele momento.

O objeto desta pesquisa se enquadra na gama dos novos objetos abordados pela

História Cultural: a música, mais especificamente, a popular brasileira. A música é um

objeto que se constitui tanto de aspectos estéticos, sociológicos, lingüísticos, sonoros,

performáticos, quanto de históricos, pois através de uma produção musical é possível

analisarmos, dentre outros aspectos, a realidade de uma determinada época, uma vez

que a música não só está presente no cotidiano de milhares de pessoas, como também o

representa e nele interfere; bem como a maneira como determinada sociedade encarava

seus problemas e os musicava.

A tensão entre práticas e representações atravessa tanto a “nova história social”,

quanto a “nova história cultural” e constitui um dos eixos centrais do debate a respeito

dos limites do conhecimento histórico nessas duas áreas. Recentes trabalhos da história

social vêm demonstrando que os novos aspectos da experiência humana devem ser

levados em conta, mas que eles só podem ser explicados ou interpretados se atentarmos

para as complexas relações culturais que os informam. Diferentes vozes falam de

cultura com significados variados, referindo-se a pesquisas de natureza bastante diversa.

Por isso mesmo, faz-se necessária a realização de discussões sobre os sentidos e limites

deste campo de reflexão histórica, tanto quanto o questionamento sobre os diversos

modos de conceber a atividade histórica, de formular problemas e a abordagem de

diferentes documentos. 26

Minha intenção com esta pesquisa não é postular continuidades essenciais, ou

mesmo buscar fatores que independam da experiência, e sim, buscar a “historicização”

da relação de Elis com a sociedade que se faz presente em sua obra. Historicizar tem

26 LARA, Silvia Hunold. História cultural e história social. Revista Diálogos, UEM, 0:25 – 32, 1997.

26

aqui o sentido de acompanhar o processo de emergência desta relação, seus modos de

constituição e funcionamento, bem como suas possibilidades de existência.

Carlo Ginzburg nos chama atenção para o fato de que mesmo que as pretensões

de conhecimento sistemático mostrem-se como veleidades, nem por isso a idéia de

totalidade deve ser abandonada. Pelo contrário, a existência de uma profunda conexão

que explica os fenômenos superficiais é reforçada no próprio momento em que se

afirma que um conhecimento direto de tal conexão não é possível. Se a realidade é

opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la. O

paradigma indiciário ou semiótico aborda minúsculas particularidades e as emprega

como pistas que permitem reconstruir trocas e transformações culturais, mais do que

deduzir, o método reconhece que a força está na observação do pormenor revelador. 27

No caso desta pesquisa, uma trajetória individual trará muitos sinais que só farão

sentido se analisados à luz do período estudado.

Busco, neste capítulo, indícios do início da carreira de Elis Regina, através de

investigação cuidadosa, afastando o perigo de permanecer restrita ao ambiente do

discurso interno e do universo do gosto. Ao tentarmos compreender as relações internas

da música e a relação delas com a sociedade, é necessário evitarmos reducionismos

mecânicos, que constantemente tentam determinar as relações culturais como simples

reflexos das estruturas históricas mais gerais.

Considerando que a música, sobretudo a popular, pode ser compreendida como

parte constitutiva de uma trama repleta de contradições e tensões, em que os sujeitos

sociais, com suas relações e práticas coletivas e individuais e por meio dos sons e

textos, (re) constroem partes da realidade social e cultural, os signos ligados à obra de

Elis Regina, nunca serão analisados isoladamente nessa pesquisa. Tais signos não

podem ser analisados exclusivamente em uma única série documental, nem podem ser

entendidos enquanto um conteúdo pura e simplesmente, pois os mesmos estão inseridos

em processos e, mais do que isso, ganham vida e materialidade a partir do cruzamento

de discursos que, por sua vez, se cruzam com práticas, seja no plano dos discos

gravados, seja no plano da recepção desta obra, ou em ambos.

Neste capítulo, abordarei o cenário artístico da década de cinquenta,

especialmente o que interferiu e influenciou o início da carreira musical de Elis Regina

Carvalho Costa. São escassas as fontes referentes a esta fase da vida de Elis. Utilizarei

27GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. – São Paulo: Companhia dasLetras, 1989, p. 177.

27

as entrevistas, com a mãe de Elis, como a realizada por Regina Echeverria28 e citada em

sua biografia, porém não transcrita na íntegra29, e outra concedida à Rede Globo30, bem

como depoimentos de Elis em diferentes momentos de sua carreira, sobre esta fase de

sua vida, trabalhos referentes à temática do rádio e em especial ao programa Clube do

Guri31, no qual Elis ingressou aos 11 anos de idade, além da análise do repertório

gravado por ela no início de sua carreira.

1.1 - A infância

Elis Regina Carvalho Costa nasceu no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, em

1945. Segundo Dona Ercy, mãe de Elis, em entrevista cedida à jornalista Regina

Echeverria, em suas recordações mais remotas, a filha era uma criança obediente e que

gostava de brincar sozinha, costumava andar pelo quintal com uma bolsa de palha,

falando consigo mesma. Até perder o emprego de chefe do almoxarifado na Companhia

Sul brasileira de vidros, Romeu Costa, pai de Elis, era um homem sensível, que gostava

de ler Ernest Hemingway, ouvir Chico Alves e Carlos Gardel. Em 1952, os Carvalho

Costa deixaram o bairro de Navegantes. Industriário, seu Romeu teve direito de ocupar

um apartamento na vila IAPI32, na região norte da capital gaúcha. Foi morando neste

apartamento que Romeu perdeu o emprego, quando a Sul brasileira de vidros faliu. Seu

Romeu passou o resto da vida se aventurando em empregos variados: representante

comercial, caixeiro-viajante, dono de açougue, feirante. Na época em que Elis tinha 9

anos, ela recebeu lições de piano da professora Waleska, uma vizinha na vila do IAPI.

Estudou por dois anos. Aprendeu rápido demais, tão rápido que se viu diante do dilema:

ou comprava um piano ou parava de estudar. E Elis começou a cantar, porque sua

família não pôde comprar um piano. 33

28 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007.29 Entrei em contato com a jornalista para ter acesso a estas entrevistas, no entanto, ela alegou não aspossuir mais.30 Para o programa Por toda minha vida exibido pela Rede Globo em 28/12/2006.31 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical.2004.32 Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários.33 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, pp. 22 a 24.

28

Esta rememoração de Dona Ercy nos fornece várias informações sobre a infância

de Elis. Uma é que seus pais não tinham uma situação financeira tão favorável, afinal o

pai de Elis viveu trocando de empregos depois que saiu da Sul Brasileira e, depois que

ficou desempregado, provavelmente a situação financeira da família piorou ainda mais.

Indica também que o pai de Elis ouvia Chico Alves e Carlos Gardel, o que influenciaria

o gosto musical da filha. As aulas de piano atestam, por sua vez, o contato musical de

Elis ainda pequena com as notações musicais, fato rememorado por ela, no programa

MPB Especial, de 1973:

“A transa maior da minha vida tinha que ser com música. Eu era semprerequisitada em casa nas horas de arte. Eu queria era estudar piano, era onegócio maior da minha vida. Estudei mas tinha que ir para oconservatório e passei no teste. Até que um dia realmente me puserampara estudar no conservatório, mas não tinha instrumento. Entre comer eter um piano optaram por comer, o que achei ótimo. Tinha muito somna cabeça pra sair pra fora. Comecei a cantar e dei de presente deaniversário para minha avó cantar no Clube do Guri, quando gostei equis dar o presente pra mim quiseram cortar essa, afinal cantora derádio... Mas aí já não tinha mais jeito.” 34[grifos meus]

O depoimento de Elis, apesar de não detalhar a maneira como estudou (se com

uma professora particular ou de outro modo), confirma que ela estudara música e que

passara no teste do conservatório, mas, por não possuir instrumento em casa, não pode

frequentar a escola de música. Temos aqui o primeiro indício da ligação de Elis com o

ensino musical. Porém é difícil precisar o tipo de aprendizado que ela teve. Depende do

tipo de professora particular que era Waleska e do seu plano pedagógico e sua

metodologia. É provável que ela tivesse aulas de piano tradicionais, no sentido de

valorizar a leitura de partituras e decorar peças musicais do repertório elementar. Hoje

em dia, normalmente se busca, a partir da exploração do instrumento, descobrir aspectos

ligados tanto ao seu repertório mais simples e acessível (o bife, por exemplo), quanto

musicalizar a criança, nos aspectos mais abstratos da música, como melodia e ritmo.

A mãe de Elis35 diria ainda que:

“Ela era muito tímida. E era muito educada. Elis foi a primeira filha,primeira neta primeira sobrinha, foi tudo primeira. Quando pequena elacantava Adios pampa mia. A vida dela era cantar, ela tinha um ouvido,tudo que ela ouvia já saia cantando. Ela chegou pra mim e disse: mãe tume leva no Clube do Guri? Era inverno, ela tava de luva e furou a luva

34 Programa MPB Especial produzido por Fernando Faro em 1973 pela TV Cultura.35 Em entrevista ao programa Por toda minha vida exibido pela Rede Globo em 28/12/2006.

29

mordendo a luva. Por causa desta timidez ela tinha hemorragias nasaisincríveis, não sei se era conseqüência disso, eu sei que ela tinha. Teveum dia que ela tava com um vestido muito rodado e ficou lavada desangue. Ela se fechava no quarto dela, no quarto tinha uma vitrola e láela ficava ela estudava ouvindo música.(...)E o que você vai fazer lá noClube do Guri? Já te levei lá tu não quis cantar. Daí ela : me levaporque agora eu vou cantar.”

A fala de Dona Ercy enfatiza a forte ligação de Elis com o universo musical:

desde pequena, ela gostava de cantar e repetir o que ouvia, o que já demonstra uma

forma de aprendizado através da imitação. O depoimento materno salienta a grande

timidez de Elis, através de fatos como comer a luva, ou mesmo pôr sangue pelo nariz.

Essa timidez e insegurança da artista seriam relembradas pela própria em futuros

depoimentos.

Elis, ao falar sobre sua trajetória, afirma ter uma forte ligação com o universo

musical desde criança. A música se fez presente desde quando se tem recordação:

“Eu ouvia a Rádio Nacional da hora que eu acordava até a hora dedormir. Eu ouvia Francisco Alves, Marlene, Emilinha, César deAlencar. Me marcou muito, minha casa parava domingo ao meio-diapara ouvir Francisco Alves, quando ele morreu meu pai ficou de lutouma semana, minha mãe chorava que parecia que alguém da famíliahavia morrido.”36

Este trecho é bastante significativo, pois percebe-se a forte influência que os

cantores de rádio tiveram na formação e gosto musical de Elis, que anos depois faria uso

do gestual e dos timbres vocais semelhantes aos daqueles cantores. Segundo

Napolitano, o retorno de alguns parâmetros “tradicionais” da música popular, como a

intensidade vocal, o gestual expressivo e os timbres mais metálicos, ao mesmo tempo

em que foram ao encontro de um público mais massivo, pouco adaptado à bossa nova

“original”, causaram algum mal-estar entre aqueles que defendiam a “linha evolutiva”

da música brasileira. 37

Marcos Filho, em sua pesquisa sobre da cultura da gravação no Brasil e suas

práticas de estúdio, nos fornece informações sobre os modos de cantar de alguns dos

cantores do rádio. Segundo Filho, na era mecânica, são identificados dois paradigmas de

canto na musica popular brasileira: de um lado o paradigma do canto falado, tendo o

cantor Bahiano como seu maior expoente e, de outro lado, o paradigma do bel canto,

36 Programa MPB Especial produzido por Fernando Faro em 1973 pela TV Cultura.37 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2001, p. 150.

30

inspirado nos discos de ópera que aqui chegavam, tendo como representantes, dentre

outros, Vicente Celestino e, mais tarde, Francisco Alves.38

De acordo com o autor:

“O paradigma do bel canto, muito utilizado por cantores de ópera(sobretudo a italiana), de teatros de revista e pela música erudita de umamaneira geral, sempre esteve associado à necessidade de projeçãosonora. De fato, as gravações de música erudita feitas no exteriorapresentavam um bom equilíbrio entre a voz e grandes gruposinstrumentais. No entanto, o entendimento do texto não era um objetivoa ser alcançado, mesmo porque o repertório erudito europeu já eraamplamente conhecido no mundo ocidental. As principaiscaracterísticas do paradigma do bel canto usado nas canções popularesbrasileiras - além do alto nível de energia empregada na impostaçãovocal - são o vibrato, pouca flexibilidade de articulação nas consoantese largo prolongamento das vogais.” 39

Segundo Filho, a grande expansão no processo de registro sonoro se deu a

partir da gravação elétrica iniciada em1925 e, no Brasil, em 1927. O interlocutor desse

novo processo foi o microfone elétrico, desenvolvido pela Western Electric, através de

estudos voltados para as transmissões radiofônicas. De acordo com o autor, a partir de

então, os sons puderam ser captados a uma distância maior da fonte e não era mais

necessário aos instrumentistas forçarem sua interpretação ou tocarem muito agrupados,

direcionando seu som para um único cone de metal. O microfone trouxe, também, a

possibilidade de uma maior captação e definição no timbre das vozes femininas, o que

ocasionou um acréscimo efetivo na participação das cantoras ao longo da era elétrica.40

Marcos Filho descreve que:

“Francisco Alves era um cantor atento às novas tendências e seadaptava muito facilmente. Na era mecânica ele possuía um canto maisimpostado e próximo da estética do bel canto utilizada nos teatros derevista. Nos anos 1930 o cantor fez dupla com Mario Reis e se adaptoufacilmente à estética do canto falado. Nos anos 1940, o cantor,influenciado pela música romântica, retomaria o canto impostado.” 41

Esta afirmação é importante, pois demonstra que a maneira de cantar impostada

e com a utilização de vibratos, como no bel canto, fora utilizada por Francisco Alves,

que a abandonara e depois a reutilizaria para estar afinado com as canções românticas.

Francisco Alves, bem como outros cantores e cantoras ouvidos por Elis e ela própria, na

38 FILHO, Marcos Edson Cardoso. Pelo gramofone: a cultura da gravação e a sonoridade do samba(1917–1971). Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Música. 2008,p.82.39 Idem, p. 83.40 Idem, ibidem, p. 90.41 Idem, ibidem, p.116.

31

fase inicial de sua carreira, se utilizavam dessa técnica. No entanto, isso variaria ao

longo de sua carreira, assim como variou na de Francisco Alves, como veremos nos

capítulos seguintes.

A forte ligação de Elis e de sua família com a Rádio Nacional demonstrada no

fato de a “ouvir da hora que acordava até a hora de dormir” é um indício de como este

meio de comunicação fez parte da vida da cantora de maneira significativa.

No tópico apresentado a seguir, analisarei o surgimento do rádio no Brasil. O

eixo central, Elis, retornará logo após com sua efetiva participação na Rádio Gaúcha.

Acredito que uma análise pormenorizada da rádio é pertinente para que se compreenda

melhor sua influência na vida e obra da cantora.

1.2 - Nas ondas da Rádio Nacional

De acordo com Eric Hobsbawm, na década de 1930, na Europa, e

principalmente nos EUA, o rádio já trazia o mundo para dentro de casa, “sua capacidade

de falar simultaneamente a incontáveis milhões, cada um deles sentindo-se abordados

como indivíduos, transformava-o numa ferramenta inconcebivelmente poderosa de

informação.”42Especificamente no campo da produção cultural, Hobsbawm aponta a

dificuldade de reconhecimento das inovações trazidas pelo rádio, já que “muito daquilo

que ele iniciou tornou-se parte da vida diária”.43

Néstor Canclini, fugindo de uma visão unidirecional da comunicação, na qual

existe uma manipulação absoluta dos meios de comunicação sobre a recepção das

mensagens, questiona o alcance desses efeitos. De acordo com Canclini:

“A noção de indústrias culturais, útil aos frankfurtianos para produzirestudos tão renovadores quanto apocalípticos, continua servindo quandoqueremos nos referir ao fato de que cada vez mais bens não são geradosartesanal ou individualmente, mas através de procedimentos técnicos,máquinas e relações de trabalho equivalentes aos que outros produtos daindústria geram; entretanto, esse enfoque costuma dizer pouco sobre oque é produzido e o que acontece com os receptores.” 44

42 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX. 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras,1995, p. 194.43 Idem, p. 195.44 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. SP,EDUSP, 1998, p. 257.

32

Canclini avança os limites da idéia de submissão absoluta do receptor à

mensagem. E assim, nos possibilita pensar na maneira como o rádio passa a fazer parte

da vida de Elis Regina, não só como ouvinte, mas também como alguém que faria parte

da produção/elenco da Rádio Gaúcha, como veremos a seguir. Esta dissertação busca,

então, contribuir para uma melhor compreensão sobre a produção dos bens culturais

(musicais/profissionais) deste período.

De acordo com Canclini:

“As tecnologias comunicativas e a reorganização da indústria da culturanão substituem as tradições nem massificam homogeneamente, mastransformam as condições de obtenção e renovação do saber e dasensibilidade. Propõe outro tipo de vínculo da cultura com o território,do local com o internacional, outros códigos de identificação dasexperiências, de decifração de seus significados e modos decompartilhá-los. Reorganizam as relações de dramatização ecredibilidade com o real. Tudo isso se enlaça, como sabemos, com umaremodelação da cultura em termos de investimento comercial, ainda queas transformações simbólicas citadas não se deixem explicar apenaspelo peso que o econômico adquire.” 45

A partir das condições de obtenção e renovação do saber e da sensibilidade

possibilitadas pelas tecnologias comunicativas (neste caso especificamente, o rádio),

penso na identificação de Elis com as cantoras do rádio e no modo como aprendera com

elas. Elis tentava decifrar suas técnicas de cantar, ouvindo-as e repetindo-as, e,

posteriormente, passou a ser uma cantora de rádio. Inicialmente seu desejo em se tornar

uma cantora não se baseava somente no fator econômico, mas principalmente no status

que tinham as divas do rádio, com inúmeros fãs e seus extensos “paparicos”,

amplamente divulgados em revistas especializadas no assunto. Pode-se pensar também

no vínculo de Elis com cantores internacionais (foi a rádio que possibilitou esse

“encontro”), com os quais ela compartilhava modos de cantar, além de tentar decifrar as

técnicas por eles utilizadas.

De acordo com Lia Calabre:

“O rádio foi o primeiro meio de comunicação a falar individualmentecom as pessoas, cada ouvinte era tocado de forma particular pormensagens que eram recebidas simultaneamente por milhões depessoas. O novo meio de comunicação revolucionou a relação cotidianado indivíduo com a notícia, imprimindo uma nova velocidade esignificação aos acontecimentos. Ao partilharem das mesmas fontes de

45 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. SP,EDUSP, 1998, p. 263.

33

notícias, os indivíduos se sentiam mais integrados, possuíam umrepertório de questões comuns a serem discutidas. No campo específicoda produção cultural, o rádio inovou ao mesmo tempo em que absorveue adaptou outras formas de arte já existentes.” 46

Segundo Calabre, o rádio foi lançado no Brasil por um grupo de intelectuais que

via no veículo a possibilidade de elevar o nível cultural do país. Quem se empenhou na

empreitada da Rádio Sociedade foi o médico e antropólogo Edgar Roquete Pinto,

membro da Academia Brasileira de Ciências, da Academia Nacional de Medicina e do

Instituto nacional de Cinema Educativo e Henrique Morize, presidente da Academia

Brasileira de Ciência. Ambos viam no rádio a saída para o que denominavam “os males

culturais do país”. Os dois eram acompanhados por alguns intelectuais que iam à

emissora proferir palestras, conceder entrevistas, sempre em prol da causa do

aprimoramento do nível cultural do país. Esse rádio da década de 1920, com uma

programação intelectualizada e de preços altos, terminava sendo ouvido pelo mesmo

grupo que o produzia, ou seja, era um veículo de comunicação ligado às camadas altas

da população.47

De acordo com Calabre, o rádio no Brasil de 1920 até o início dos anos sessenta

se destacou pelas radionovelas, programas de auditório, pelas cantoras sendo eleitas

como “rainhas do rádio”, programas humorísticos e de variedade. A autora conta, ainda,

que foi ao longo dos anos cinquenta que o rádio se tornou acessível à grande maioria da

população:

“O rádio brasileiro estabeleceu-se a partir de uma dupla determinação:um veículo de comunicação privado, portanto subordinado às regras domercado econômico, mas, ao mesmo tempo, controlado pelo Estado,que é responsável tanto pela liberação da concessão para ofuncionamento das emissoras quanto pela cassação das mesmas, casohaja desrespeito às leis do código de comunicação em vigência.” 48

A autora afirma que, apesar do desenvolvimento do rádio se efetuar em

diversas regiões do país ao mesmo tempo, as emissoras cariocas e paulistas tiveram uma

posição de destaque no cenário radiofônico nacional. Ela salienta que ao longo das

décadas de quarenta e cinqüenta a Rádio Nacional do Rio de Janeiro configurou-se

como uma espécie de modelo de programação a ser seguido pelo restante do país.49

46 CALABRE, Lia. A era do rádio. 2. Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p. 9.47 Idem, p. 22.48 Idem, ibidem, p. 12.49 Idem, ibidem, p. 11.

34

Calabre conta ainda que a Rádio Nacional estrearia sua primeira transmissão oficial em

12 de setembro de 1936. Ou seja, anos antes de nascer Elis, a rádio já dava seus

primeiros passos na configuração de status de difusora da cultura nacional.

A intenção de transformar a rádio em uma espécie de integradora das regiões

brasileiras se fez presente no discurso de inauguração dos novos estúdios da Rádio

Nacional, em 19 de abril de 1942, proferida pelo diretor geral do Departamento de

Imprensa e Propaganda- DIP, Lourival Fontes:

“As distâncias foram sempre um dos inimigos eficientes do nossoprogresso. Durante longos anos os brasileiros, espalhados por todas aslatitudes, que trabalhavam pala grandeza nacional, viveram um poucoesquecidos, à míngua de contatos. Com o rádio pôde o Brasildesvanecer essas dificuldade, vencendo seu pior inimigo.” 50

Anos antes, Lourival expressaria sua crença no rádio, também como um

instrumento de ação político-social:

“Dos países de grande extensão territorial, o Brasil é o único que nãotem uma estação de rádio “oficial”. Todos os demais têm estações quecobrem todo o seu território. Essas estações atuam como elemento deunidade nacional. Uma estação de grande potência torna o receptorbarato e, portanto, o generaliza. (...) Não podemos desestimar a obra depropaganda e de cultura realizada pelo rádio e, principalmente, a suaação extra-escolar; basta dizer que o rádio chega até onde não chegam aescola e a imprensa, isto é, aos pontos mais longínquos do país e, até, àcompreensão do analfabeto.” (Lourival Fontes, Voz do Rádio, 20 fev1936)51

Tais colocações feitas por Lourival com uma distância de seis anos entre

si,dimensionam bem a intenção integradora a ser realizada pela Rádio Nacional,

demonstrando que a emissora neste período se configurou, nesse período, como um

elemento de construção de uma determinada identidade nacional, expressa no próprio

nome da emissora. As pretensões de integração nacional se somavam também ao fato da

rádio se configurar em um poderoso instrumento político, além de sua potencialidade

educativa e civilizatória, como queriam seus idealizadores.

Outro depoimento sobre os primeiros tempos da emissora que revela a pouca

utilização da música brasileira em seu repertório, é o do maestro, pianista e arranjador

Radamés Gnattali:“A Nacional tinha orquestra de jazz dirigida por Gaó, Patené dirigia ade tangos, onde eu era pianista. Naquele tempo não se tocava música

50 SAROLDI, Luiz Carlos e Sônia Virgínia MOREIRA. Rádio Nacional: o Brasil em sintonia.3.ed.[ampl. E atualizada]. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 10.51 Idem, p. 27.

35

brasileira com orquestra, só com regional. As orquestras de salãotocavam música ligeira, operetas, valsas, por aí.”.52

Já no que diz respeito à larga utilização da música estrangeira na programação

da Rádio Nacional e sobre a tentativa de se inserir a música brasileira em maior medida

nessa programação, Paulo Tapajós afirma:

“Anos atrás, a nossa música popular recebia um tratamento que nãocondizia com a sua riqueza, enquanto a música estrangeira merecia umainstrumentação luxuosa. A Rádio nacional rompeu com essa tendência etomou outro caminho. Não somente forçamos a melhor programação damúsica brasileira, isto sem qualquer sentido de xenofobia, comopassamos a dar um tratamento digno ao nosso patrimônio musicalpopular. Desde quando eu era diretor artístico da emissora que esteinstrumento se fez sentir seriamente. Foi aliás Radamés Gnattali quemprimeiro instrumentou dignamente a nossa música popular. Chegamosaté a fundar o Departamento de música brasileira para tratarespecialmente desta questão....Outra iniciativa a lembrar são os dezFestivais da Música Brasileira que realizamos há anos, sendo que o 11°será efetuado agora em setembro, mês das comemorações doaniversário da Rádio nacional, no Teatro Municipal. É com orgulho,portanto, que situamos a decisiva atuação da Rádio Nacional na obra devalorização da nossa música popular.”53

No entanto, há que se relativizar este tipo de rememoração, uma vez que a

inserção da música brasileira na programação foi se inserindo gradualmente e,

certamente, se fez com a intenção não só de Tapajós ou mesmo de outros importantes

membros da rádio. Há que se focar nos inúmeros fatores e práticas que fizeram com que

o repertório nacional fosse ocupando aos poucos o repertório das rádios. Não houve,

contudo, nenhum trabalho que analisasse detalhadamente esta questão, dentre os citados

neste capítulo.

De acordo com Ruy Castro, nos anos pós-guerra, a concorrência era feroz e, em

certo momento, havia mais conjuntos vocais no Rio do que rádios, gravadoras e boates

capazes de absorvê-los. Eram quase todos do Norte. Mesmo com os Anjos do Inferno e

o Bando da Lua fora do Brasil, os microfones não conseguiam acomodar os Quatro

Ases e um Coringa, os Titulares do Ritmo, os Vocalistas Tropicais, o Trio Nagô, o

Grupo “X”, o Quarteto de Bronze, Os Trovadores, Os Tocantins, Os Vagalumes do

Luar, os Quitandinha Serenaders e Os Cariocas. De acordo com Castro, todos queriam

52 (Radamés Gnattali, Especial JB, 11 out 1977) Apud SAROLDI, Luiz Carlos e Sônia VirgíniaMOREIRA. Rádio Nacional: o Brasil em sintonia. 3.ed.[ampl. E atualizada]. – Rio de Janeiro: JorgeZahar Ed., 2005, p. 41.53 (Paulo Tapajós, dpm., PN – Anuário do Rádio, set 1956, p.55.) Apud SAROLDI, Luiz Carlos e SôniaVirgínia MOREIRA. Rádio Nacional: o Brasil em sintonia. 3.ed.[ampl. E atualizada]. – Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 2005, p.135.

36

ser modernos e, para isso, mantinham-se afinadíssimos com o que de melhor se fazia

em conjuntos vocais nos Estados Unidos. 54

Castro descreve ainda que, em 1950, a Rádio Nacional pertencia ao Estado e era

tão lucrativa, que podia permitir-se todas as extravagâncias. Seu departamento musical,

no 21° andar do edifício A noite, na praça Mauá, era um cenário de primeiro mundo.

Nele cabiam nada menos que sete estúdios e um auditório, famoso por ter o palco sobre

molas. O elenco fixo contava com 1sessenta instrumentistas, noventa cantores e quinze

maestros, dentre os quais estavam Radamés Gnatalli, Leo Peracchi e Lyrio Panicalli.

Segundo Castro, a música internacional batia o samba por 3 a 1, sendo que as

versões dos sucessos americanos entravam na conta da música brasileira. Com todos os

seus músicos e cantores especialistas em foxes, mambos, rumbas, tangos, valsas e

boleros, é provável que a Rádio Nacional fosse, segundo o autor, a maior democracia

rítmica do mundo. 55

Essa descrição de Castro mostra como a música internacional era admirada e

reinterpretada por músicos brasileiros e também que o grande espaço de produção e

reprodução musical dos anos cinquenta se concentrava nas rádios. Sobre esse assunto,

contamos ainda com o depoimento de Nelson Motta:

“... com 13 anos... 1957... a música, pelo menos a que se ouvia no rádioe nos discos, era insuportável para um adolescente de Copacabana nofinal dos anos 50. Boleros e samba-canções falavam de encontros edesencontros amorosos infinitamente distantes de nossas vidas de praiae cinema, de livros e quadrinhos, de início da televisão e da ânsia demodernização.” 56

Sobre a música tocada nas rádios dos anos cinquenta, Alcir Lenharo afirma que,

além do carnaval, a música brasileira vinha apertada nas paradas de sucesso por uma

onda avassaladora de boleros mexicanos que tomaram conta do país no final da década

anterior. Lenharo afirma, ainda, que:

“Na verdade, desde que o mercado fonográfico se expandiu no país, aquestão das versões sempre esteve presente. Em face da riqueza daprodução musical e da popularização do cinema falado, a música norte-americana acentuava sua presença no cenário musical brasileiro.Enquanto lutavam para se impor no mercado, os artistas brasileirosdefendiam-se da penetração das músicas estrangeiras, vertendo-as.Dessa forma, ficava amenizado o impacto da invasão estrangeira, de um

54 CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. – São Paulo: Companhiadas Letras, 1990, p. 57.55 Idem, p. sessenta.56 MOTTA, Nelson. Noites Tropicais solos, improvisos e memórias musicais. Editora Objetiva, 2000, p. 9

37

lado, e de outro o artista brasileiro beneficiava-se em participar de umproduto que já chegava pronto. Artistas como Chico Alves e OrlandoSilva gravaram muita música estrangeira, e com ótimos resultadosartísticos. Também a música portenha firmou-se no cenário musical dasgrandes cidades, principalmente na vida noturna. Mas os bolereirostambém foram chegando, assim como os ritmos do Caribe, queHollywood difundia pelo mundo todo. Carmen Miranda que o diga, poismais de uma vez teve que passar por rumbeira. No início dos anos 50 acanção francesa também penetrou forte no Rio, assim como dez anosdepois a canção italiana marcaria presença. Mas então chegara a era dorock e o tema das versões ganharia uma outra amplitude.” 57

Os depoimentos e as análises realizadas pelos autores citados acima, descrevem

como era o cenário musical brasileiro dos anos cinquenta, ocupado principalmente por

repertório internacional, muitos boleros, tangos, músicas caribenhas, dentre outras. As

citações dos maestros da Nacional demonstram que a música estrangeira ocupava

grande parte da produção musical da época. E este é um fato bastante significativo para

a nossa análise, uma vez que grande parte do repertório de Elis gravado em seus

primeiros discos teria sido inspirado no que estava sendo tocado nas rádios de então.

A reflexão e compreensão acerca de um fenômeno de comunicação de massa

específico, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro nos anos 50, carrega uma carga

significativa fundamental para a compreensão do comportamento e mesmo das relações

sociais dominantes da nossa sociedade, afirma Goldfeder. Para a realização de sua

pesquisa, Goldfeder recorreu a entrevistas de inúmeras personalidades ligadas ao mundo

radiofônico, musical e jornalístico, pertencentes ou não à época. Ela utilizou-se também

de artigos, entrevistas e colunas contidas em revistas. Segundo a autora, a Rádio

Nacional, no período analisado, se constituiu em um dos mais eficazes instrumentos de

propagação cultural da época, através de uma ação hegemônica, a nível nacional. A

Rádio Nacional chegou a atingir 50,2% de audiência média no Rio de Janeiro, em

1952.58

Goldfeder afirma que a emissora, com departamentos de funções definidas e

administração altamente centralizada, não recebia financiamento oficial. Sustentava-se

por verbas publicitárias, o que nas épocas áureas lhe permitia manter uma equipe

enorme, com salários excelentes e ainda reinvestir os lucros na própria organização. De

acordo com a autora, a partir dos anos 50, a Rádio Nacional teria conseguido atingir a

57 LENHARO, Alcir. Cantores do rádio – A trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart e o meio artístico deseu tempo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995, p. 73.58GOLDFEDER, Miriam. Manipulação e participação – a Rádio Nacional em debate. Dissertação(mestrado) – Universidade de Campinas. Departamento de Ciências Sociais. 1977.

38

perfeita coordenação de seus propósitos, enquanto empresa disposta a ampliar suas

bases e como órgão cultural destinado a elaborar um projeto eficaz pela sua penetração

e atendimento às expectativas psico-sociais dos setores populares.59De acordo com a

autora, a programação da Rádio Nacional consistia em programas de grande auditório,

programas humorísticos e nas radionovelas.

Marta Avancini, em seu trabalho sobre os cantores do rádio, enfatiza o processo

de popularização destes, que chegou aos anos cinquenta como um dos focos principais

de atenção do público radiofônico. Os auditórios dos programas de rádio ficavam

lotados por pessoas ávidas por encontrar seus artistas preferidos, juntamente com os fãs-

clubes organizados por estes como eixos de sustentação e promoção dos artistas.

Avancini afirma ainda que, para se analisar o papel desempenhado pelos ídolos do rádio

nesta época, é preciso observar a complexidade existente ao nível da constituição destes

ídolos, não se tratando de apreendê-los somente como modelos e elementos ideológicos

exteriores ao contexto social, mas sim, compreender que tipo de relação se articula a

partir de sua presença no social, ou seja, perceber formas de subjetividade, de

identificação dos fãs frente aos seus ídolos dentro de um quadro mais complexo da

sociedade daquele momento, como fazendo parte de uma generalização de formas de

sensibilidades em jogo naquela época.

A autora diz que, quando falamos sobre rádio no Brasil, ou mais precisamente

em suas estrelas, nos vem à mente um amontoado de imagens e referências que nos

remetem práticas, modos de sociabilidade, percepção e estética que caracterizam a

radiofusão brasileira entre os anos 40 e 50: os auditórios lotados das grandes emissoras,

as disputadas eleições de Rainha do Rádio, o engajamento dos fãs-clubes, as tardes de

sábado embaladas pelo programa de César Alencar, a rivalidade Marlene-Emilinha, as

marchinhas de carnaval, os boleros e samba-canções, os agudos de Dalva de Oliveira, o

romantismo de Ângela Maria, o exotismo de Marlene. A autora salienta, ainda, que

tanto as estrelas quanto o engajamento em torno delas são centrais para se pensar no

rádio dos anos 40 e 50 e é também neste momento que ocorre o rompimento com o

modelo educativo predominante nos primeiros anos de rádio no Brasil, quando este

ainda era encarado como um potencial instrumento de elevação cultural e intelectual de

massa. Fundada por Roquete Pinto e Henrique Moritze em 1923, a rádio Sociedade do

59 GOLDFEDER, Miriam. Manipulação e participação – a Rádio Nacional em debate. Dissertação(mestrado) – Universidade de Campinas. Departamento de Ciências Sociais. 1977, p. 31.

39

Rio de Janeiro, tinha como slogan: Trabalhar pela cultura dos que vivem em nossa

terra e pelo progresso do Brasil.60

As duas abordagens clássicas acerca do debate sobre a radiofonia brasileira

podem ser, segundo Avancini, sintetizadas nos trabalhos de José Ramos Tinhorão e

Maria Elvira Frederico. O primeiro vê a priorização da dependência do rádio às

estruturas de poder econômico e político, e, consequentemente, a ênfase no sentido de

dominação inerente a ele, o segundo, percebe a possibilidade de o rádio funcionar como

um autêntico canal de expressão popular, embora a determinação econômica não seja

completamente descartada. Avancini percebe a impossibilidade de se fixar nestas

leituras clássicas, uma vez que, a radiofonia deste período fica reduzida a uma

modalidade de funcionamento e expressão de cultura de massa, implicando na

impossibilidade de perceber a singularidade de funcionamento dos diferentes meios de

comunicação.61

O processo de constituição das estrelas radiofônicas, analisado por Avancini,

ocorre por meio da combinação de informações sobre as carreiras e as vidas pessoais

das cantoras, onde a veracidade do que é publicado (transformando-as em alvo de

interesse) não é essencial. As revistas especializadas constroem uma intimidade que não

está necessariamente vinculada à realidade de vida destas cantoras. Segundo a autora, o

investimento na intimidade é intrínseco ao processo de construção da estrela – seja ela

do cinema, do rádio ou da televisão – não é novidade. Este tipo de investimento foi

intensificado e generalizado com a difusão dos meios de massa durante o século 20. 62

Segundo Avancini, as estrelas do rádio se constituem a partir de signos e

referências que ultrapassam o âmbito artístico propriamente dito e abarcam regiões do

comportamento, gosto, valores e da estética. Elas são uma espécie de condensação de

diversas séries discursivas e modeladas a partir de falas referentes à psicologia

feminina, à educação da mulher, a modos de ser e viver, materializados em “revelações”

sobre a personalidade e o cotidiano das cantoras, em suas declarações e até nas canções

que interpretam. 63

60 AVANCINI, Maria Marta Picarelli. Nas Tramas da Fama – As estrelas do rádio em sua época áurea,Brasil, anos 40 e 50. Dissertação (mestrado) – Universidade estadual de Campinas. Departamento deHistória, 1996.61 Idem, p. 7.62Idem, ibidem, p. 30.63 Idem, ibidem, p. 38.

40

A autora relata que ficaram famosas as histórias de que o assoalho do auditório

da Rádio Nacional teria se abalado pelas batidas dos pés dos espectadores, e também as

lutas corporais entre as fãs de cantoras rivais.64

De acordo com Avancini, o que parece não ter sentido, ser absurdo e irracional,

se olhado de fora, ganha inteligibilidade e materialidade em práticas, modos de

sociabilidade, em uma estética e até em uma linguagem radiofônica cultural e

temporalmente demarcada. Incorporados às transmissões de rádio entre o final dos anos

30 e início dos 40, os programas de auditório passaram a representar a diversão e o lazer

da programação. Nesse período, também surgiram outros gêneros, como os programas

de calouros, os humorísticos, as radionovelas, garantindo uma dinâmica inédita,

facilitando a expansão do veículo, a qual geralmente é entendida como aproximação

com o universo cultural e estético do público.65

Problematizando as leituras acerca da cultura de massa pelo viés estritamente

econômico, ou mesmo quando a mesma é compreendida como um meio de expressão

de conteúdos ou identidades, a autora prioriza uma análise que leve em consideração a

cultura de massa como um território onde efetivamente se produzem práticas, modos de

sociabilidade e estética. Ela chama nossa atenção para que pensemos na cultura de

massa e nos seus modos específicos de funcionamento, para evitarmos uma

caracterização unívoca de tipos distintos de manifestação, práticas e linguagens. É

preciso não uniformizar e homogeneizar fenômenos diversos, onde diferenças são

tratadas como mero efeito de superfície.66

Quanto ao fato de ter havido um rompimento com o modelo educativo

prevalecente no Brasil durante os anos 20, Avancini afirma que os anúncios

publicitários seriam os responsáveis pela modificação do perfil da programação do

rádio, forçando assim sua adaptação à lógica comercial. No entanto, a autora sugere que

há forças que ultrapassam essa simplificação e nos convida a perceber que, na verdade,

se trata de processos paralelos, que se imbricam e se potencializam mutuamente. O que

realmente é significativo nesse processo de constituição da radiofonia comercial é o fato

de que o rádio deixou de ser eminentemente um transmissor de informação cultural e

64, AVANCINI, Maria Marta Picarelli. Nas Tramas da Fama – As estrelas do rádio em sua época áurea,Brasil, anos 40 e 50. Dissertação (mestrado) – Universidade estadual de Campinas. Departamento deHistória, 1996, p. 61.65 Idem, p. 63.66Idem, ibidem, p. 68.

41

educativo e passou a constituir gêneros de programas e modos de comunicação

próprios.67

Enquanto nos programas de calouros o público se integrava à dinâmica do

programa, subindo ao palco, nos auditórios, eles apenas participavam enquanto público,

na platéia. Os dois gêneros se sustentavam sobre a competição, fosse com o objetivo de

ascender ao Olimpo radiofônico ou o de ganhar prêmios. A autora chama ainda a

atenção para o fato de existir uma forte presença de jogos, concursos, competições e

brincadeiras durante este período por ela estudado, os quais funcionavam como

delineadores de práticas e dinâmicas que se tornaram características destes gêneros.

Além do caráter lúdico, a dinâmica se define pelo modo de estruturação da

programação: intercalação de quadros curtos e diversificados ao longo de três ou quatro

horas. Dinâmica que transforma também uma audição de rádio em espetáculo.68

Segundo Avancini, desde meados dos anos trinta, a rádio se configurava como

uma espécie de vitrine dos cantores, divulgando seus nomes e, em alguns casos,

garantindo-lhes projeção nacional. O que se assiste, no entanto, a partir da segunda

metade dos anos quarenta, principalmente, não é uma mera continuação do que vinha

acontecendo: As estrelas que emergem nessa época surgem no próprio rádio, através de

programas de calouros, diferentemente daquelas que já haviam gravado discos e tinham

na rádio um meio de divulgação. Práticas de adoração às estrelas, que até então não

existiam, também são criadas nesse período, baseadas na competição e na lógica do

espetáculo, em especial, nos programas de auditório e de calouros.69

A importância das estrelas do rádio não se efetua somente enquanto chamariz de

público, mas sim como peça fundamental dentro da organização e funcionamento desses

programas, como forte fator de mobilização e organização do público e também na

criação de uma atmosfera de euforia, afirma Avancini. Era comum que cada programa

contasse com sua estrela, o que transformava cada programa em uma espécie de ponto

de encontro e contato do público com sua favorita e, consequentemente, um lugar de

reiteração de seu status de estrela por meio de homenagens, da participação e vibração

do público. Juntamente com as revistas especializadas, os auditórios consistiam em

espaços de fabricação das estrelas radiofônicas. De acordo com a autora, é possível

67 AVANCINI, Maria Marta Picarelli. Nas Tramas da Fama – As estrelas do rádio em sua época áurea,Brasil, anos 40 e 50. Dissertação (mestrado) – Universidade estadual de Campinas. Departamento deHistória. 1996, p. 70.68 Idem, p. 71.69Idem, ibidem, p. 79.

42

reconhecer a existência de uma espécie de divisão territorial dentro do rádio brasileiro

dos anos cinquenta, já que cada cantora vinculava-se a um programa, como ocorria com

Emilinha e Marlene, com Ângela Maria e Dalva de Oliveira.70

A versatilidade musical de Ângela Maria foi descrita por Lenharo:

“... à medida que as mudanças se aceleram no final dos 50, Ângelasurgia inclusive como a cantora mais preparada para navegar sobre asondas turbulentas da crise. Cantava do melhor da música popular aomais cafona bolero, vertido para o português, passando pelo tango, pelofado, palas guarânias, rumbas, canções francesas, rocks-baladas. Só abossa nova ficou de lado.” 71

Além disso, Lenharo também descreve o início da carreira da intérprete:

“Dancings e gafieiras constituíam os espaços populares de dança nacidade. Os dancings abrigavam boas orquestras e cantores de prestígiocomo Jamelão, Nelson Gonçalves, Elizeth Cardoso, Jorge Goulart, RuyRey, com suas famosas maracas. O dancing virou mania nos anos 40 –um espaço de sociabilidade e refúgio para os solitários e tristes. Seusucesso assegurava bons rendimentos para músicos, cantores ebailarinos, abria possibilidades para a carreira artística: Elizeth Cardosoe Ângela Maria foram bailarinas de dancings antes de crooners.”72

Os espaços musicais foram se transformando ao longo dos anos quarenta e

cinquenta, no entanto, as cantoras do rádio faziam sua performance para um auditório

ao vivo, o que significa que estas se utilizavam de todo um gestual para cativar o

público. Antes do rádio, as apresentações em boates e dancings também significavam

um contato direto com o público.

Elis demonstra, em diferentes entrevistas e em diversos momentos de sua

carreira, uma grande admiração pela cantora Ângela Maria.73 Em um desses

depoimentos Elis, além de se intitular fã de Ângela, cita também gostar muito de utilizar

o vibrato:74

“(...) O vibrato era uma coisa que me fascinava muito (...). Mas na horade cantar mesmo, eu me ligava mais na mulherada, no jeito que a

70AVANCINI, Maria Marta Picarelli. Nas Tramas da Fama – As estrelas do rádio em sua época áurea,Brasil, anos 40 e 50. Dissertação (mestrado) – Universidade estadual de Campinas. Departamento deHistória. 1996, p. 85.71 LENHARO, Alcir. Cantores do rádio – A trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart e o meio artístico deseu tempo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995, p. 185.72 Idem, p. 23.73 Por exemplo, a citação feita por Elis ao programa MPB Especial de 1973, dentre outros.74 Assim o dicionário Aurélio define vibrato: Na técnica vocal, repetição rápida de uma nota sem produziroscilações em sua altura. [Cf. vibrato.].

43

mulher cantava. Quando eu pintava cantando, pintava de EllaFitzgerald, essas coisas. No Brasil, Ângela Maria nota 10.”75

Jairo Severiano conta, ainda, que Ângela Maria imitava Dalva, que muito

provavelmente também deveria imitar alguém:

“Admiradora inveterada de Dalva, a quem começou imitando, ÂngelaMaria (Abelim da Cunha, Macaé, RJ, 13 de maio de 1928) foi sua maiorrival artística, igualando-a em atributos, como o timbre raro e acapacidade de interpretação, e até superando-a em vigor, com sua vozsuperpotente. Ex-tecelã, com passagens por coros evangélicos,programas de calouros e orquestras de dancings a desconhecida Abelimtransformou-se na estrela Ângela Maria ao ser descoberta e levada àMayrink Veiga e à RCA Victor em 1951 pelo compositor ErasmoSilva...Constante freqüentadora das paradas de sucesso pelo resto dadécada principalmente com sambas-canção...”76

Podemos analisar a admiração de Elis por Ângela e de Ângela por Dalva como

uma maneira dessas artistas aprenderem modos de agir e de cantar. É claro que tais

cantoras não intencionavam ensinar suas fãs através de suas apresentações. No entanto,

a ação de imitar representou para elas uma forma de aprendizagem. Foi, então, no

próprio ato de ouvir rádio, que Elis começou a seguir seus primeiros passos artísticos e

aprender a utilizar a voz pelo processo de imitação e repetição.

Este processo é muito comum aos músicos populares, Lucy Green em seu

trabalho77 nos informa sobre as diferenças de aprendizado musical em contextos formais

e informais, onde a imitação é fundamental na aprendizagem de determinados modos de

fazer música. Green, pesquisadora da sociologia da educação, destaca que a prática de

aprendizagem informal envolve, principalmente, a atividade de “tirar de ouvido”

diretamente de uma gravação, diferentemente de instruções verbais e exercícios

presentes na educação formal; e também que o estudante informal geralmente não está

sozinho, utiliza seus aprendizados em grupo, em que, de maneira consciente ou

inconsciente, troca informações e aprendizados específicos, em um processo de escuta e

imitação mútua. No caso da educação formal, geralmente existe a figura de um adulto

responsável com habilidades superiores que orienta a atividade. Green afirma ainda que

ao longo do processo de aprendizagem informal há uma integração entre escutar,

75 Texto do encarte do cd Elis no Fino da Bossa ao vivo volume 2.76 SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. SãoPaulo: Ed. 34, 2008, p. 293.77 GREEN, Lucy. Popular music education in and for itself, and for ‘other’ music: current research inthe classroom. The Institute of Education, University of London, 2006, UK.

44

executar, enquanto se improvisa e se compõe, dando ênfase à criatividade. Dentro do

reino formal há mais de uma separação de habilidades e se dá ênfase à reprodução.

Depois de analisar o surgimento do rádio no Brasil, saliento a importância da

prática radiofônica enquanto espaço de sociabilização, além de fornecedora de modos

de aprendizado (que iam sendo elaborados frente às demandas que surgiam) para seus

produtores/artistas, bem como para seus ouvintes. Percebo que o rádio possibilitou o

encontro de cantores, arranjadores e atores, se configurando em um espaço de

aprendizagem coletiva para a maioria desses artistas, ainda em fase de

profissionalização, além disso, exerceu forte influencia nos artistas que cresciam

naquele momento, embalados pelas ondas do rádio, como Elis Regina.

1.3 - O programa Clube do Guri

Segundo Echeverria, cantar no Clube do Guri virou hábito para a menina Elis.

Dos onze aos treze anos e meio, Elis frequentou o programa quase todos os domingos.

Virou secretária do apresentador Ary Rego, apresentando candidatos, lendo recados dos

ouvintes e dando parabéns aos aniversariantes do dia. Elis deixou a Rádio Farroupilha,

para assinar seu primeiro contrato profissional com a Rádio Gaúcha, em 1959. Passou a

cantar por um cachê de cinqüenta cruzeiros por mês, equivalente hoje a cerca de 24

dólares, no Programa Maurício Sobrinho. Maurício Sirotsky contou à Veja que, como

animador de auditório, costumava anunciar a entrada de Elis com frases retumbantes,

que levavam os três mil expectadores, que lotavam o cinema Castelo, ao delírio. No

início de 1964, Elis cantava na noite como crooner do conjunto Flamboyant. 78

Estes dados muito dizem sobre o início da carreira de Elis. Foi no rádio que Elis

começou a dar seus primeiros passos artísticos, cantou como crooner de um conjunto e

também para uma platéia lotada com mais de três mil expectadores. Podemos supor que,

ao cantar para grandes platéias, Elis ganhava cancha de palco, de comunicação com os

espectadores.

O trabalho realizado por Marta Schmitt denominado O Rádio na formação

musical: um estudo sobre as idéias e funções pedagógico-musicais do programa de

rádio Clube do Guri (1950-1966) nos é bastante elucidativo, pois através das entrevistas

78 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, pp.24-29.

45

e análises realizadas pela pesquisadora podemos perceber a história do programa muitas

vezes se entrelaçar com a carreira de Elis. Através de grande parte das entrevistas

transcritas no corpo da pesquisa, percebe-se a própria história de Elis. Vários dados

surgem no decorrer da dissertação desvelando acontecimentos e dados sobre esta fase

inicial de sua carreira.

De acordo com Schmitt, o programa Clube do Guri foi um dos maiores sucessos

da Rádio Gaúcha das décadas de cinquenta e sessenta. O programa ficou no ar durante

dezesseis anos, de agosto de 1950 a julho de 1966, na emissora Rádio Farroupilha, de

Porto Alegre, a PRH-2. O mesmo era destinado a crianças e jovens de cinco a quinze

anos de idade, que também participavam do programa, cantando, declamando,

dançando, fazendo locução ou interpretando algum instrumento. Ao mesmo tempo em

que o Clube do Guri permitia aos participantes mostrar seus conhecimentos e vivências

musicais, também lhes estimulava a buscarem novas canções, propiciando novos

aprendizados, como a seleção de músicas, aprendizagem de novas canções, trabalho da

expressividade, posicionamento em palco, uso de microfone e canto, em grupos.

Segundo Schmitt, o programa ficou nacionalmente conhecido por ter sido o local no

qual a cantora Elis Regina iniciou sua trajetória musical.

Tema de sua dissertação de mestrado, o Clube do Guri foi analisado por Marta

Schmitt, através da investigação da contribuição do programa na formação musical de

crianças e jovens que dele participavam. Ela buscou compreender qual era sua

importância para essas pessoas, como se dava a participação musical, qual era o

formato, o conteúdo e a concepção do programa, quais suas funções pedagógico-

musicais, bem como a relação do programa com a escola.

Como percebeu escassa a documentação, e que as diversas publicações em

jornais da época geralmente relacionavam-se a aspectos restritos às apresentações e aos

concursos, além de não terem sido localizadas gravações de áudio, pois no período do

Clube do Guri não havia o hábito de se realizar registros sonoros de programas

veiculados no rádio, e os equipamentos técnicos disponíveis para este fim eram bastante

precários, Schmitt teve que recuperar a história do programa para, então, poder refletir

sobre as questões que norteariam sua pesquisa, com base em entrevistas.79

79 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) -Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004.

46

De acordo com Schmitt, Elis Regina tinha muitos fãs e recebia muitos

“pedidos de fotografias” 80. Quando Elis completou quinze anos de idade e saiu do

Clube do Guri, Ary Rego, além de conseguir que ela fosse incluída na programação da

Rádio Farroupilha, no Programa Rádio Seqüência, também conseguiu, na tipografia da

Neugebauer, uma impressão de uma foto com uma mensagem no verso assinada pela

empresa patrocinadora. Fora o próprio Ary Rego que redigira o texto que ia impresso na

fotografia. O texto consistia em:

Ernesto Neubbauer S/A. Há oito anos consecutivos, os patrocinadoresdo programa Clube do Guri, ao microfone da rádio Farroupilha, tem oprazer de prestar esta homenagem a Elis Regina Costa, valor precoce epositivo entre os mais promissores que surgiram até hoje na radiofoniasul-riograndense. Como autêntica revelação do Clube do Guri, que é oprograma preferido da garotada gaúcha, a jovem Elis Regina é bem umsímbolo da mocidade futurosa da nossa terra. A quem se dirige estamensagem de admiração e confiança, enviada pelos patrocinadoresdeste já tradicional programa infantil.81

A freqüência das citações de Elis Regina nos depoimentos recolhidos é tanta,

que Schmitt dedicou um tópico da dissertação à “presença de Elis Regina nos

depoimentos”. Nesse item, a autora descreve a forte lembrança de Elis presente nos

depoimentos recolhidos, demonstrando o orgulho dos entrevistados em terem convivido

com Elis Regina no Clube do Guri. De acordo com Schmitt, o nome de Elis, além de

cantora reconhecida nacional e internacionalmente, serve também como uma

demarcação temporal, como um referencial para registrar períodos, épocas e

acontecimentos para os participantes.82

Importante fonte de análise para a pesquisa é a citação da entrevista dada por

Maria Helena Andrade, que trabalhou três ou quatro anos ao lado de Elis e a tem como

um marco em sua trajetória na rádio; quando questionada sobre o programa, Maria

Helena falou:“Todas as crianças da época, tinha a secretária do programa, quem era asecretária? Era a Elis Regina (rindo), era a secretária do programa,então dava os prêmios, ela sabia tudo, o que se desenrolava noprograma, já pelo tempo que ela estava aqui em Porto Alegre, então elaera a secretária do Ary Rego, diretor do programa, ela anunciava, ela

80 Dado fornecido pelas entrevistas.81SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004, p.133.82 Idem, p. 110.

47

sabia as entradas, quem entra agora, quem não entra, sabia as músicasque iam ser cantadas, participava ativamente, além de cantar também,porque ela começou também como caloura, depois começou aquelahistória, tava ganhando muito, tava ganhando todos os concursos, entãoo que que eles deram, uma atividade para ela de secretária do programa,até que ela chegou aos quinze anos de idade, e passou a cantarprofissionalmente, o que eu já estava fazendo antes dela, que eu deviater o quê, uns três anos a mais que ela, entendeu, então eu tive um bomrelacionamento com ela, aquele tempo de rádio, de praticamentedaquela fase menina- moça, como se diz... é isso mesmo, tivemos unstrês, quatro anos assim na mesma rádio.”83

Este depoimento nos fornece importantes dados, o primeiro é que Elis era

funcionária do programa, começara como caloura e por ganhar todas as competições

fora transformada em parte integrante da programação. Desde os seus 12 ou 13 anos

Elis já era recompensada financeiramente pelo seu envolvimento profissional com o

universo musical, através do programa Clube do Guri. Outro importante dado

informado por Maria Helena é a profissionalização da cantora a partir dos seus quinze

anos de idade, quando não se aceitava mais a participação no programa. A partir de

então, Elis passou a receber uma remuneração, pois as secretárias eram parte integrante

do quadro de funcionários, e também tornou-se cantora “profissional”. A fala indica

também que ela não era a única habitué do programa, a própria Maria Helena o era.

Portanto, é a trajetória posterior das duas que define a diferença das memórias sobre

elas.

De acordo com Schmitt, o Clube do Guri derivou-se de um programa já

existente em São Paulo. A idéia foi apresentada pelo agente de anúncios Júlio

Rosemberg à Rádio Farroupilha, a qual designou o então locutor da emissora, Ary

Rego, para comandá-lo. O nome era derivado de um produto que a empresa Neugebauer

iria lançar no mercado. O programa permaneceu no ar sempre na Rádio Farroupilha,

conhecida como a mais potente emissora do Rio Grande do Sul, tendo alcance inclusive

em outros estados como Santa Catarina, Paraná e São Paulo. A repercussão de sua

programação era mais expressiva do que de outras emissoras da época.84

83(Maria Helena, E1, p2-3) Apud SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudosobre as idéias e funções pedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966).Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área deconcentração Educação Musical, 2004, p. 110.84 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004, p.62.

48

Rego contou à Schmitt que, entre as décadas de trinta e sessenta, havia uma

programação infantil bastante significativa nas emissoras de Porto Alegre,

principalmente programas que contavam histórias. A realização do programa era feita

quase sempre no auditório da Rádio Farroupilha. Nas datas festivas, aniversários e

concursos, o programa se transferia para teatros e cinemas de Porto Alegre que

comportavam um número maior de espectadores.85

O Clube do Guri era um programa patrocinado pela fábrica de chocolates e

derivados Neugebauer. A empresa fornecia prêmios que eram distribuídos para os

participantes, brindes para o público que comparecia no auditório, diplomas para os

sócios do programa, cachês para as secretárias, além de infraestrutura para as viagens

ao interior do estado, realizadas pelo elenco do Clube do Guri. 86 [grifo meu]

Ary Rego conta que não havia prêmios em dinheiro, mas sempre em produtos,

com uma farta distribuição de balas, chocolates e um prêmio especial para quem

encerrasse a sua participação no Clube do Guri quando atingisse a idade de 15 anos. Ele

lembra com detalhes:

A Neugebauer mandava para lá caixas e caixas de bombom. Prêmio emdinheiro não tinha. Tinha o prêmio em dinheiro, um pagamento emdinheiro, para as secretárias do programa que eu consegui com a firmafinanciadora, uma coisa modesta, na época, primeiro em 50 [sic] reais,depois passou para 100[sic] reais ou 80, uma coisa assim. E eles nãomandavam no sábado, na véspera, sexta feira até porque sábado afábrica não trabalhava, aquele montão de caixa e tinha um produto, GuriVitaminado, que eles botavam numa embalagenzinha celofane paraamostra. Mandavam tudo aquilo, caixas de bombom, balas e tal emandavam o dinheiro para o cachê. Entregavam tudo lá no auditório, oencarregado do auditório recebia tudo, guardava, e domingo de manhãme entregava e distribuía lá [ ] e cada menino que cantava ganhava umacaixa de bombom, e quando completava os quinze anos, ganhava umacaixa bem maior, ganhava um ramalhete de flores, se era menina, e umdiploma especial, ta e tchau, vai que terminou, menos alguns quepassaram a ser profissionais, que foi o caso de Elis Regina.87

De acordo com Schmitt, o programa iniciava-se com as crianças todas no palco

cantando a vinheta. A cortina ia se abrindo devagarzinho, o apresentador fazia as

saudações iniciais e seguia com a apresentação dos calouros. Ary Rego, da sua

85 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004, pp. 63-64.86 Idem, p. 66.87 Idem, ibidem, p. 68.

49

banqueta, anunciava as crianças e conversava com elas, auxiliado por uma secretária e

tendo o acompanhamento do professor Ruy Silva, ao piano, e do regional da Rádio

Farroupilha. Entre um número e outro, havia as intervenções dos locutores com os

anúncios publicitários e a leitura realizada pelas secretárias dos nomes dos sócios-

ouvintes que estavam aniversariando naquela semana. 88

O Clube do Guri ia ao ar aos domingos, das 10 às 11 da manhã.89Após o Clube

do Guri a programação da rádio seguia com o Domingo Alegre, também apresentado

pelo animador Ary Rego, mas já com os remanescentes do Clube, aqueles que saiam,

por terem ultrapassado a idade limite de quinze anos. Schmitt conta, ainda, que as

secretárias funcionavam como apoio ao apresentador, desempenhando tarefas como

conduzir os participantes no palco, ajustar os microfones, ler a nominata dos sócios que

escreviam para o programa, dar recados, distribuir brindes para os participantes,

anunciar e apresentar alguns cantores, acompanhar excursões no interior do estado,

enfim, prestar uma acessoria ao apresentador. 90

Segundo o entrevistado Darcílio Messias, os ensaios iniciavam com a seleção

dos novatos, com aqueles que iriam participar pela primeira vez do programa. Depois, o

professor Ruy Silva seguia com os convidados, os quais “eram os cantores mesmo do

Clube do Guri, que ele sabia que já tinham qualidade”, então ele mesclava com aqueles

novos, para fazer programas; assim que era feito, entende, para manter um nível bom do

programa.91

Este relato nos mostra como a ênfase dada aos ensaios se fez presente na vida

de Elis Regina, desde a época em que ela era parte integrante do programa Clube do

Guri. Os inúmeros ensaios, já conhecidos da cantora, ainda em sua infância, viriam a se

tornar uma marca apontada por músicos que trabalharam com ela ao longo de sua

carreira.92

Segundo Schmitt, os concursos do Clube do Guri marcaram a trajetória do

programa. Além de lotarem o auditório da Rádio Farroupilha e também cinemas e

88 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004, p. 69.89 De acordo com Schmidtt, durante os 16 anos que permaneceu no ar, o programa, provavelmente,passou por alguns ajustes de horário. Conforme o jornal Diário de Notícias, do dia 28 de junho de 1950,p.8, o horário, chamando a estréia do programa era das 9:30 às 10:30 da manhã.90. Idem, pp. 71-72.91 Idem, ibidem, p. 80.92 Jair Rodrigues em entrevista à Echeverria fala sobre a grande quantidade de ensaios exigidos por Elis,por exemplo.

50

teatros com quase dois mil lugares, os concursos ganhavam as páginas de jornais e

revistas de Porto Alegre, como demonstraram os arquivos pessoais de Darcílio Messias.

De acordo com Messias, houve apenas cinco anos de concurso. Já Ary Rego, ora se

lembra que as edições foram até o término do programa, em 1966, ora recorda que

houve apenas três anos de concurso. A escolha dos melhores cantores era feita sempre

através do voto escrito da platéia. A escolha não era por aplauso. O público quando

comprava o ingresso, recebia um bilhete, um talãozinho para votar. O concurso

consistia de várias etapas classificatórias.93

Schmitt conta que, além dos concursos, das viagens e “shows” pelo interior do

estado, das participações das crianças em programas em diferentes estados brasileiros,

de se corresponderem com fãs e de serem reconhecidos como “pequenos artistas”, outro

elemento que caracterizava o programa era a farta distribuição de brindes e prêmios

para os participantes e espectadores do programa. A empresa patrocinadora distribuía

chocolates, fazia sorteios de eletrodomésticos, como liquidificadores e batedeiras, e, em

determinados períodos, distribuía rádios. Havia um certo glamour em participar do

programa Clube do Guri. Para Maria Helena Andrade, se apresentar e conquistar os

prêmios do programa era como ganhar um “troféu”. Outro importante elemento

apresentado pelos participantes, era o fato de os mesmos serem acompanhados por

músicos profissionais, instrumentistas reconhecidos, que integravam a programação da

rádio Farroupilha.94

De acordo com Schmitt, Daisy Rego, mulher de Ary, teve um papel

fundamental na formação musical dos participantes do programa Clube do Guri,

auxiliando a escolha do repertório, bem com na aprendizagem das canções. Daisy narra:

“Eu tinha uma facilidade muito grande e gostava muito de lidar comcriança...então era isso aí. E às vezes ensinava uma que ia declamar,dava as inflexões. A Elis mesmo, muitas vezes ela ia aprender asmúsicas na vitrola lá em casa. E perguntava: “...Faço assim, nãofaço...canto essa, não canto”. Ela tinha, a Elis era um pouco tímida nocomeço. Ela tinha medo de mostrar a voz. Tinha um alcance de vozmuito bom, e às vezes escolhia umas músicas...e... as mais arrojadas elaficava com medo.” 95

93 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004, p. 82.94 Idem, p. 96.95 Idem, ibidem, p.117.

51

Em entrevista à Echeverria, Dona Ercy, mãe de Elis, conta que, com o

primeiro salário, Elis comprou um sofá-cama para seu quarto, um tapete e uma vitrola

hi-fi. Adquiriu tudo de uma tia rica, Aida, madrinha de seu filho Rogério. 96 Este fato

juntamente com a citação feita acima, por Daisy, mostra que a formação musical dos

participantes do programa se fazia pela audição da vitrola, ou seja, a audição dos discos

era o auxílio para o aprendizado musical.

Segundo Schmitt, Daisy Rego diz ter auxiliado bastante Elis Regina durante

sua participação no programa, porque ela era muito amiga da sua filha mais velha, e

estava sempre na sua casa. Daisy sugeria repertório e a incentivava a interpretar

algumas canções. Ela lembra que dizia: “Elis porque tu não canta essa música, ‘Ah

mas...’ , Não é difícil, tu vais alcançar, consegue”. Muitas vezes Daisy cantava junto, e

diz que Elis tinha uma facilidade muito grande, “tu cantava duas vezes uma música

nova para ela, e ela já sabia cantar... era um ouvido fantástico... afinação, tudo.” 97

Schmitt conta que o repertório do Clube do Guri era bem variado. Da ópera ao

samba, passando pelo tango, bolero, temas de carnaval, música italiana, espanhola,

francesa, enfim, música nacional e internacional. De acordo com o apresentador do

programa, as músicas que eram interpretadas eram variadas, “música popular da época,

canções, muita música estrangeira, italiana, boleros mexicanos, música norte-

americana”. Darcílio Messias salientou que o repertório do Clube do Guri era bem

variado, que “se cantava de tudo”, que não havia um tipo de música mais executado,

embora destacasse que eram “músicas da moda, tanto nacionais, quanto internacionais.”98

A escolha do repertório se realizava de várias maneiras. Ary não intervinha

constantemente. Daisy e Ary comentaram, sobre as escolhas musicais de Elis Regina,

que se tratava de músicas difíceis e que não era o que mais agradava ao público que

freqüentava o auditório do programa:

Daisy: A Elis (vibrante) cantava muita música espanhola, músicas maisdifíceis Malagueña, não esta Malagueña, do ...Ary: Malagueña ela cantava muito bem.Daisy: ...ela cantava muita música da Ângela Maria...Ary: já cantava muito bem.

96 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, p. 27.97 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004, p. 118.98 Idem, pp. 124-126.

52

Daisy:...e dava um banho com as músicas da Ângela Maria. Mas eu nãosei...não era, aquele público que ia lá, era um público assim, maispopular, não era um...botou um samba no palco (palma), tirava de letra.Esse tipo de coisa. ”99

Daisy Rego, ao mostrar um álbum de fotografia da Escola Dom Diogo de

Souza, onde foi professora, e também onde Elis Regina estudou, contou que a cantora

fazia parte do “orfeão” e que cantava num “conjunto musical que elas mesmas fizeram”.

Neste grupo atuava uma das filhas de Ary e Daisy Rego, que “tocava violão” e “também

outras meninas tocavam violão, e elas iam nas festinhas quando convidavam, os

casamentos de professores”. Daisy registra que Elis Regina “ia junto e cantava assim na

maior simplicidade, como se fosse uma...”. 100

Este depoimento de Daisy nos informa novamente sobre a predileção de Elis

por Ângela Maria, além de registrar a participação da cantora no orfeão, ou seja, canto

coral também de um conjunto musical na escola, o qual realizava algumas

apresentações. A atuação musical de Elis não se limitava, portanto, às participações nos

programas de rádio.

Não foram todos os participantes do programa que seguiram a carreira como

cantores profissionais na rádio. De acordo com Messias, “a maioria não continuou”.

Além dele, “naquela época contratados profissionalmente foi a Elis” e “mais a Érica

Norimar”. Messias lembra que eles atuavam:

“na programação da Rádio Farroupilha, então tinha aqueles programasao meio-dia, tinha o Maurício [Sirotsky] Sobrinho e depois o SalimenJr., tinha os programas à noite também, e em alguns de noite,cantávamos ao vivo com orquestra, ou então com o grupo de AdãoPinheiro, que era o Flamboyant, e outras pessoas aí que não me lembromais.” 101

Ary Rego conta que, quando os participantes completavam 15 anos, eles

ganhavam prêmios especiais da fábrica Neugebauer, embora alguns também ganhassem

um contrato da Rádio Farroupilha, como Elis Regina, a Terezinha Silva, o Roberto

Gianoni e a Maria Helena Andrade. De acordo com o apresentador: “muitos foram os

99 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004, p. 127.100 Idem, p. 140.101 Idem, ibidem, p. 141.

53

cantores que saíram do Clube do Guri e dos programas de adolescentes que eu tinha

também, foi produtivo”. 102

Ao completar as entrevistas, Schmitt concluiu que não só a equipe do

programa fora fundamental para o aprendizado musical dos participantes; a importante

figura do apresentador, além de lhes dar a oportunidade de participação, auxiliava na

conquista de uma boa postura de palco, a se comunicarem melhor com a platéia, na

melhor utilização do microfone e também no aspecto visual. O pianista Ruy Silva, por

sua vez, indicava qual a tonalidade mais confortável para cada cantor, na escolha do

repertório e também ressaltava a característica vocal e expressiva de cada participante.

Daisy, por sua vez, ajudava na escolha do repertório, ensinava letras e melodias e

emprestava sua casa e vitrola para os que não a possuísse.

Em entrevista à Revista Veja, ao ser questionada sobre seu preparo artístico, Elis

responde:

“Bem, além do curso normal eu tive minhas leituras. Os meus JorgeAmado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Hemingway, ScottFitzgerald. De vida, vida, porém, não tinha experiência nenhuma. E eusaí da casca do ovo diretamente para o palco da TVRecord.”103[grifos meus]

Este trecho nos permite pensar nas omissões e nos silêncios da memória.

Como Elis saíra da casca do ovo diretamente para os palcos da Record, se desde os seus

onze anos se apresentava na Rádio Gaúcha, chegando a cantar para uma platéia de 3000

espectadores? Neste trecho de entrevista, percebo uma negação de Elis quanto ao início

de sua carreira, é como se sua vida artística tivesse se iniciado na televisão.

Numa outra fase de sua carreira, ao retornar ao Rio Grande do Sul para a

apresentação do show Trem azul, em 1981, em um programa de televisão local, ao ser

indagada sobre o esquecimento do programa Clube do Guri em sua carreira e sobre sua

mudança para o Rio de Janeiro, Elis responde:

“Eu só saí porque não tinha mais onde trabalhar, tá sabendo? Não tinhaonde trabalhar, não tinha conjunto de baile, orquestra, tinha dançado, aprogramação da TV Excelsior tinha invadido todos os lugares,agente não tinha o que fazer. Assim como eu, uma série de pessoassaíram, outras ficaram e morreram profissionalmente. Estão frustradas e

102 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004, p. 145.103 LANCELLOTTI, Silvio. (entrevistador). “Quero apenas cantar”. Revista Veja 01/05/1974.

54

desesperadas até hoje e sonhando com uma carreira que poderia ter sidoalguma coisa e que não foi. (...) O Falso brilhante ficou em cartaz umano e dois meses, com sua fotografia (Ary) e tudo, a Neugebauer...Como você não vai lembrar do seu nascedouro? Como esquecer oútero materno? Que absurdo!”104[grifos meus]

Estes relatos assumem, nesta análise, a condição de memória da própria Elis

referente ao início de sua carreira. A televisão, que na citação feita em 1974, fora a

responsável pela sua apresentação ao público, em 1981 se torna a grande responsável

pela falta de ambientes de trabalho em Porto Alegre.

Josemir Teixeira, ao analisar o modo como a memória sobre a infância de

Clara Nunes teria sido influenciada pela trajetória artística da cantora, afirma que:

“... A memória também pode ser entendida como um fluir, mas emsentido inverso. Nela, o passado vai sempre sendo revisitado pelascondições, as circunstâncias, os interesses e os conflitos da consciênciaindividual do entrevistado. ..”105

De acordo com Teixeira, em alguns casos:

“... a memória age como um espelho, numa espécie de jogo reflexo, àmedida que, a partir dos interesses, das circunstâncias e dos objetivos decada momento presente, revela as lembranças do passado, a partirdaquilo em que o personagem se constituiu.” 106

Esta citação nos é bastante elucidativa, pois acredito que Elis tenha “feito as

pazes” com esse passado, ligado ao Clube do Guri, a partir do momento em que o

interpretou no espetáculo Falso Brilhante, em 1975. Criar um retrospectivo de sua

carreira a fez perceber, sem “encantamentos” ou “traumas”, várias das questões por que

tinha passado até o período do espetáculo.107Neste momento, o que foi vivido por Elis

passou por um processo de seleção e reelaboração, até se constituir na imagem da

artista. De acordo com Teixeira, “a partir de algum momento, o passado começa a ser

olhado segundo as luzes do presente, ou melhor, segundo o que se tornou a expressão

104 www.youtube.com. Acessado em 21/01/2011.105 TEIXEIRA, Josemir Nogueira. In: O canto mestiço de Clara Nunes/ Organização: Silvia Maria JardimBrügger.- São João Del Rei, MG:UFSJ, 2008, p.18.106 Idem, p. 33.107 Para uma melhor compreensão sobre os espetáculos realizados por Elis ver: PACHECO, Mateus. Elisde todos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção. Dissertação (mestrado) – Universidade deBrasília. Departamento de História, 2009.

55

máxima da personagem.”.108Relembrando o seu passado, Elis lhe conferiu uma

explicação que, na época em que o vivenciou, não era possível efetivar.

Ao findar deste tópico, sabemos que Elis se apresentou pela primeira vez no

programa Clube do Guri aos 11 anos de idade e só saiu do mesmo ao completar 15 anos

de idade, quando já não era mais admitida pela idade. Como secretária do programa,

além de ganhar dinheiro, já treinava imperceptivelmente uma “naturalização” nos

palcos da vida. Recebia auxílio na escolha do repertório, bem como ajuda de Daisy na

execução das melodias e com as letras. Ao completar a idade limite para o programa,

passou a trabalhar no programa de Maurício Sobrinho e também a cantar na escola e em

alguns casamentos, juntamente com suas amigas.

Elis Regina não só ouvia muito o rádio, como também participou por anos de um

programa de auditório. Foi na Rádio Gaúcha que Elis teria aprendido com Ary Rego a

se portar no palco, a utilizar o microfone de maneira apropriada, a ensaiar antes das

apresentações, a pensar no figurino; na casa de Daisy, ela aprendeu melodias, a decorar

canções e a escolher seu repertório. O rádio não só influenciou Elis, como também a

iniciou no universo artístico. Percebo, também, que neste momento, a carreira de Elis

tinha um caráter ainda regional, o que se modificaria com sua mudança para o Rio de

Janeiro e com o seu vínculo com a televisão, principalmente.

Acredito que a influência deste programa foi fundamental para a escolha de uma

carreira artística na vida de Elis Regina. O fato de ter ouvido muito o rádio e, mais que

isso, de ter participado por tantos anos de um programa de auditório, fez com que a

cantora conhecesse e participasse ativamente do universo musical. Teria ela seguido

esta carreira, se tal programa infantil de tanta audiência não tivesse feito parte de sua

vida? No entanto, nem todos que participaram do Clube do Guri construíram a carreira

que ela construiu. Elis vivenciou na Rádio Gaúcha uma espécie de estudos

experimentais, que lhe prepararam de diversas maneiras, para sua trajetória artística.

Não consta que nenhum outro cantor(a) tenha conseguido realizar, no campo da música,

carreira parecida com a de Elis. Se a Rádio Gaúcha favoreceu as escolhas de Elis, não as

definiu.

108 TEIXEIRA, Josemir Nogueira. In: O canto mestiço de Clara Nunes/ Organização: Silvia Maria JardimBrügger.- São João Del Rei, MG:UFSJ, 2008, p. 36.

56

1.4 - Os primeiros LPs

Foi com dezesseis anos de idade que Elis deixou Porto Alegre pela primeira vez,

para ir ao Rio de Janeiro gravar seu primeiro disco: um compacto simples com as

músicas Dá sorte (Eleu Salvador) e Sonhando, uma versão de Juvenal Fernandes para

Dream (Vorzon - Elis). As duas músicas fariam parte do primeiro LP que Elis lançaria

naquele mesmo ano de 1961, Viva a Brotolândia, com produção do compositor e

produtor Nazareno de Brito.109

Sobre a gravação deste primeiro LP, Carlos Imperial conta que Elis chegara ao

Rio com seu pai, que não se metia em nada, e também que:

“Nazareno de Brito era diretor artístico da gravadora Continental eestava sendo pressionado pelo departamento de vendas do Rio Grandedo Sul para fazer um LP com uma gauchinha de apenas 15 anos quefazia algum sucesso em Porto Alegre. Nazareno me mostrou algumasmúsicas que Elis havia gravado numa fita como teste. Eu gostei muitoda cantora e aceitei o convite de produzir o seu LP. Mas, como aContinental não tinha verba o disco ficou para uns seis meses depois.Eu estava tão empolgado com a Ellis que resolvi intervir no negócio.Telefonei para a Continental Gaúcha e consegui que ela custeasse avinda da Ellis ao Rio, pagando as passagens e a estadia.” 110

Imperial afirma, ainda, que Elis queria muito gravar boleros e tinha um apreço

especial pelo disco de boleros de Edye Gourmé.111 Sobre o primeiro papo que teve com

Elis, Imperial prometeu gravar um futuro LP de boleros, o gênero preferido de Elis. De

acordo com ele:

“Depois de ouvir uma fita dada por Menescal, Elis disse que não gostoude nada, que a bossa nova não tinha vida, que preferia os boleros deEdye Gourmé.” 112

109 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, p. 29.110 Revista Amiga. Edição Especial. Edição Histórica (Janeiro de 1982). Carlos Imperial “Só eu sei averdade sobre seu primeiro LP”.111 Seu nome verdadeiro é Edith Gormezano, nasceu em 16 de Agosto de 1932(alguns dizem que foi em1931,não se sabe corretamente) no Bronx em Nova York. Embora a maior parte de sua carreira tenha sidorealizado durante a era do rock tradicional, a cantora Eydie Gormé esculpiu um lugar para si em váriasáreas de entretenimento. Por 20 anos, a partir de meados dos anos 50 até meados dos anos 70, ela sempreteve nas paradas pop, com um lugar paralelo no domínio do pop latino dos anos 19sessenta. Ela apareceuna televisão e nos palcos da Broadway. E ela foi uma anfitriã da grande discoteca, headlining nosshowrooms de Las Vegas e em torno dos Estados Unidos. Informações contidas no site:http://www.letras.com.br/biografia/eydie-gorme. Acessado em 03/01/2011.112 Revista Amiga. Edição Especial. Edição Histórica (Janeiro de 1982). Carlos Imperial “Só eu sei averdade sobre seu primeiro LP”.

57

O produtor também contou que Elis ficou muito tensa nas gravações e que

Vavá, o técnico, resolveu apagar todas as luzes do estúdio, e foi nesse clima que ela

gravou o seu primeiro LP, no escuro. É provável que no escuro a artista imaginasse que

estava na tranqüilidade do seu quarto, ou talvez o aparato técnico da gravação a

intimidasse.

Sobre sua primeira gravação Elis, em 1973, conta que:

“Minha primeira gravação eu morava em Porto Alegre e foi a conviteda Continental, produzido por Carlos Imperial. Queriam uma cantoraque fizesse frente a Celly Campelo113 mas eu de antemão acho essenegócio de lançar para combater alguém uma pobreza total completa eabsoluta, sempre achei. E eu não queria ser a sombra de quem quer quefosse. Eu queria ser eu, fazer minhas coisas. O repertório não era dosmais maravilhosos, não era de ouvir e rolar na sarjeta de paixãoentende? Aí ficou esquisito. Mas tinha contrato, tinha que fazer.”114

Um aspecto relevante a ser destacado neste depoimento é a intenção

mercadológica das gravadoras, que intencionavam associar novos artistas àqueles que já

haviam alcançado sucesso, com fórmulas que já haviam dado certo. O que demonstra,

desde então, a busca de lucro como alvo primordial. Outro importante aspecto a ser

destacado é a importância em torno do contrato e, respectivamente, a oportunidade que

ele representava. Temos, também neste depoimento, apontamentos sobre o repertório,

os quais indicam que, nesta fase, Elis não tinha muita autonomia quanto às suas

escolhas.

Ainda sobre as gravações de seu primeiro LP, Elis conta:

“Um dia eu tava em Porto Alegre e apareceu por lá um produtorde disco, diretor de uma gravadora ou diretor de produção deuma gravadora, eu não sei exatamente que cargo ele ocupava,chamado Nazareno de Brito que era da Continental. Meconvidou para fazer um LP, aí eu evidentemente consultando aJocasta que me cabia naquele momento, Dona Ercy, tive assim apermissão para vir para São Paulo gravar esse disco. Muitoimportante para minha mãe era que eu cantasse mas não deixassea escola de lado. ... Os arranjos foram feitos pelo Severino Filho,que era integrante dos Cariocas e já tava fazendo arranjo naquelaépoca. Com relação ao repertório eu não sei se é bom eu não seise é ruim, eu acho gostoso. Me lembro que naquela época fuiescalada para ser a Celly Campelo deles, já que ela era daOdeon. E é uma coisa que me deixava muito nervosa, pelo fato

113 Celly Campelo foi a primeira artista brasileira a obter sucesso mercadológico cantando rock no Brasil,tornando-se uma das mais populares estrelas da música pop do fim dos anos 1950, que culminou nacriação do movimento Jovem Guarda. In: http://www.dicionariompb.com.br. Acessado em 03/01/2011.114 Programa MPB Especial produzido por Fernando Faro em 1973 pela TV Cultura.

58

de ter que ser uma segunda pessoa. É mania diz que a perfeição éuma meta, eu tava a cata dela. Continuo a cata, eu não sei se vouchegar lá um dia mas, eu queria morrer sendo eu. Naquela épocaera muito importante para mim isso e eu não achava muita graçapintar no pedaço meio parasitando outra pessoa. Era umproblema de espinha dorsal, isso aí eu acho que é formaçãomesmo, é jeito que a gente é criado e desse jeito a gente vai paraa vida. Não achava muita graça nisso mas também não tinhamuita escolha, né?16 anos e meio subtendido que a gravadoraestava me fazendo um grande favor de me dar a chance de gravaraquele disco... Não foi muito engraçado na hora que eu fiz odisco porque eu queria fazer outras coisas, eu já tinha um ChetBacker na cabeça, já tinha o João Gilberto na cabeça, tinha muitacoisa que eu gostaria de ter feito. Mas de repente foi mais legalficar esperando, porque ficou tipo panela de pressão ... virouArrastão aí não deu mais pra segurar, foi melhor, explodiu com24 anos de banho maria, de repente até o pudim ficou maisgostoso.115[grifo meu]

A imposição do repertório pela gravadora fica mais uma vez evidente na fala

de Elis. Principalmente a imposição de lançá-la como cópia de Celly Campelo que

parece realmente ter incomodado Elis, uma vez que este mesmo episódio é citado na

entrevista de 1973 ao programa MPB Especial. Apesar de Elis dizer que achava tal

repertório gostoso, não há a presença de nenhuma das músicas, gravadas neste período,

regravadas posteriormente por ela.

É interessante notar que a memória e o gosto, tanto quanto as concepções

artísticas de Elis, foram se modificando ao longo de sua carreira. Imperial mais acima

nos disse que Elis não gostava de bossa nova116, mas no depoimento dado ao programa

MPB Especial, em 1973, feito mais de uma década depois, ela se afirma uma cantora

adepta pelo menos da figura de João Gilberto, considerado um grande nome do

movimento carioca.

O primeiro LP lançado por Elis em 1961, Viva a Brotolândia, tinha seis versões

de músicas internacionais dentre suas doze músicas, o que demonstra uma tentativa de

se lançar Elis como uma intérprete de sucessos já conhecidos do grande público e, quem

sabe, até mesmo internacionalizar sua carreira. Metade de seu repertório consiste em

rocks, as outras três músicas são samba-boleros, há também uma valsa e um calypso.

Todas as músicas tematizam o amor de alguma maneira, ou um amor perdido, à espera

de um amor, ou mesmo um pedido por um amor, mesmo que de mentira.

115 Programa produzido pela TV Cultura dirigido por Tito Lima, com apresentação de Salomão Ésper emjaneiro de 1982.116 Em 61 no período da gravação de seu primeiro LP.

59

Quadro 1 - Viva a Brotolândia117

Músicas Gênero118 Temática

Dá sorte Calypso Amorosa

Sonhando (versão) Rock Amorosa

Murmúrio Sambolero Amorosa

Tu serás Rock Amorosa

Samba feito pra mim Sambolero Amorosa

Fala-me de amor (versão) Rock Amorosa

Baby face (versão) Rock Amorosa

Dor de cotovelo Sambolero Amorosa

Garoto último tipo (versão) Rock Amorosa

As coisas que eu gosto

(versão)Valsa Amorosa

Mesmo de mentira Sambolero Amorosa

Amor, amor (versão) Rock Amorosa

Fonte: Viva a Brotolândia. Continental, 1961.

Trata-se de um disco voltado para os jovens, como salientou seu produtor,

Carlos Imperial, em entrevista realizada em 1982,119 já que ao invés de cantar a dor de

traições, Elis canta um amor pueril e idealizado. As letras falam de amores que se foram

ou pedem o retorno do ser amado, o que indica que tais músicas intencionavam agradar

a um público mais jovem. A orquestração soa à rádio, ao timbre e instrumental utilizado

117 Lado A: Dá sorte (Eleu salvador)/Sonhando (Dreamin’)(Barry de Vorzon, Ted Ellis/Versão: JuvenalFernandes)/ Murmúrio(Luiz Antônio, Djalma ferreira) Tu serás (Ângelo Martignani, Othon Russo)/Samba feito só pra mim (Paulo Tito)/ Fala-me de amor(Take me in your arms)(Fred Markussa, FritzRotter/Versão: Max Gold). Lado B: Baby face (Davis, Akst/Versão: Fred Jorge)/ Dore de cotovelo (JoãoRoberto Kelly)/ Garoto último tipo (Puppy love)(Paul Anka/Versão: Fred Jorge)/ As coisas que eugosto(My favourite things)(Richard Rogers, Oscar HammersteinII/Versão: Fernando Cesar)/ Mesmo dementira (Carlos Imperial)/ Amor,amor..(Love, Love)(Bill Caesar/Versão: Carlos Imperial).118 Analisei os gêneros através das células rítmicas que comumente os definem.119 Revista Amiga. Edição Especial. Edição Histórica (Janeiro de 1982). Carlos Imperial “Só eu sei averdade sobre seu primeiro LP”.

60

por este meio de comunicação. Bem afastado da sonoridade da bossa nova, lembra um

repertório de baile, de um salão de festas. A voz de Elis está bastante impostada e

utiliza-se muito dos vibratos.

Elis gravou outro disco pela Continental, Poema em 1962. Nessa fase de início

de carreira, praticamente regional, Elis gravou outros dois discos para uma nova

gravadora, a CBS: Ellis Regina (1963) e O Bem do Amor (1963). Esses primeiros LPs

de Elis seguiam a temática musical do período, ou seja, a impostação de voz, lembrando

a das cantoras do rádio, e são caracterizados por temáticas quase que exclusivamente de

cunho amoroso. Ter dois LPs lançados no mesmo ano é um dado relevante para uma

cantora em início de carreira, o que indica que Elis Regina era uma artista com fortes

chances de ter uma carreira promissora.

O segundo LP lançado um ano após o primeiro, em 1962, tem em seu repertório

o próprio título do disco, Poema de amor, uma vez que todas as músicas parecem ser

poemas amorosos. Ele reflete em seu repertório o que era tocado nas rádios, como

ritmos caribenhos, de orquestração americana (Fox e twist) e um samba com a

linguagem da bateria americana. Sua sonoridade lembra muito o que era tocado nas

rádios nos anos cinquenta. Das doze músicas, que se dividem em 4 sambas, 4 boleros, 3

rocks e 1 ritmo latino, 4 são versões, sugerindo que talvez intencionasse atingir a uma

parcela maior de ouvintes.

Quadro 1.1 - Poema de amor120

Músicas Gênero Temática

Poema Bolero Amorosa

Pororó-popó Samba Amorosa

Dá-me um beijo (versão) Fox Amorosa

Nos teus lábios Bolero Amorosa

120 Lado A:Poema de amor(Fernado Dias)/ Pororó-popó(João Roberto Kelly)/ Dá-me um beijo(É persempre)(C. Dannell, A. Trovajoli/Versão:Romeu Neves)/ Nos teus lábios (Haroldo Eiras, Ataliba Santos)/Vou comprar um coração (Paulo Tito, Romeu Neves)/ Meu pequeno mundo de ilusão (My little corner ofthe world)(Bob Hillard, Lee Pockriss/Versão:José Mauro Pires). Lado B: Las secretárias (PepeLuis/Versão: Martha de Almeida)/ Saudade é recordar(Renan França, Verinha Falcão)/ Pizzicatipizzicato(Emile Stern, Eddy Marnay/ Versão: Fred Jorge)/ Canção de enganar despedida(Waltel, Joluz)/Confissão (Umberto Silva, Paulo Aguiar, Luiz Mergulhão)/ Podes voltar(Othon Russo, Nazareno deBrito).

61

Vou comprar um coração Samba Amorosa

Meu pequeno mundo de

ilusão (versão)Rock Amorosa

Las secretárias (versão) Latino Secretárias

Saudade é recordar Samba Amorosa

Pizzicati pizzicato (versão) Fox Amorosa

Canção de enganar

despedidaBolero Amorosa

Confissão Samba Amorosa

Podes voltar Bolero Amorosa

Fonte: Poema de amor. Continental, 1962.

.

O bem do amor, lançado em 1963, é um disco dividido entre sambas e boleros.

Dentre as músicas, 8 são sambas, 3 são boleros e 1 é samba-bolero. Uma de suas

canções homenageia o Rio de Janeiro e nela, assim como na música O bem do amor,

percebemos uma tentativa de Elis em se aproximar do jazz, através das vocalizações.

Com exceção da canção de homenagem ao bairro de Copacabana, há somente canções

de temática amorosa. Sua maneira de cantar ainda é muito próxima às das cantoras do

rádio, que fazem uso de impostação e vibratos.

Quadro 1.2 - O bem do amor121

Músicas Gênero Temática

Alô saudade Samba Amorosa

Sem teu amor Bolero Amorosa

Saudade e carinho Samba Amorosa

121Lado A: Saudade (Umberto Silva, Paulo Aguiar)/ Sem teu amor(Luiz Mauro)/ Saudade e carinho(Renato França, Verinha Falcão)/ Mania de gostar(Luiz Mauro)/ Manhã de amor(Serginho Malta, Joluz)/Se você quiser(BAden Powell, Mario Telles). Lado B: Há uma história tyriste (Othon Russo, Niquinho)/Domingo em Copacabana(Roberto Faissal, Paulo Tito)/ Meus olhos(Sérgio Napp)/ Retorno(AecioKaufmann)/ Mundo de paz(Tulio Piva)/ O bem do amor (Rildo Hora, Clóvis Mello).

62

Mania de gostar Samba Amorosa

Manhã de amor Bolero Amorosa

Se você quiser Samba Amorosa

Há uma história triste Sambolero Amorosa

Domingo em Copacabana Samba Rio de Janeiro

Meus olhos Samba Amorosa

Retorno Bolero Amorosa

Mundo de paz Samba Esperança

O bem do amor Samba Amorosa

Fonte: O bem do amor. CBS, 1963.

Diferentemente dos LPs anteriores, que possuiam canções de temática

exclusivamente amorosa, neste aparecem duas canções que não tematizam o amor, são

elas Domingo em Copacabana, que fala de um passeio na praia, e Mundo de paz. A

letra Mundo de Paz fala de expectativas por um mundo melhor, no entanto, não aponta

problemas sociais e nem políticos:É pra frente que se andaCaminhando sem olhar pra trásÉ como a roda da históriaQue nunca pode de pararHá um turbilhão de anseiosdespertando a nossa vozHá um mundo de esperança esperando por nósE a gente vai seguindoolhando só pra frenteSem olhar pra trásProcurando nosso mundo de paz

Ellis traz 4 versões de músicas internacionais, esse LP mostra uma tentativa de

aproximação com o jazz, mas ainda não é o samba jazz interpretado por Elis num futuro

próximo. Seu timbre e interpretação se assemelham muito ao das cantoras do rádio.

Metade do repertório consiste em sambas, a outra metade se divide em 3 rocks, 1 bolero

e 2 com ritmos latinos.

63

Quadro 1.3 - Ellis Regina122

Músicas Gênero Temática

Silêncio Samba Samba

1,2,3 balançou Samba Samba

À noite (versão) Fox Amorosa

Ressureição Bolero Amorosa

Flertei Samba Amorosa

Adeus amor Samba Amorosa

A Virgem de Macarena

(versão)Latino Amorosa

Tango italiano (versão) Guahyra Amorosa

Dengosa Samba Amorosa

Formiguinha triste Samba Amorosa

Tristeza de carnaval Fox Amorosa

Outra vez (versão) Fox Amorosa

Fonte: Ellis Regina. CBS, 1963.

Percebemos neste LP duas canções que, de certa maneira, falam de uma

identidade brasileira, uma vez que tratam do samba em suas letras, gênero que neste

momento já possuía um caráter definidor de brasilidade. A música que abre o LP fala da

modificação do samba e do surgimento da bossa nova, porém o arranjo da música é

orquestrado e não traz nenhuma inovação quanto à interpretação do samba, dos demais

gravados por Elis nesta fase:

122 Lado A: Silêncio (Túlio Piva)/ 1,2,3 balançou (Alcyr Pires Vermelho, Nazareno de Brito)/ À Noite(Tonight)(Sondheim, Berstein/Versão: Roberto Côrte Real)/ Ressurreição (Pernambuco, Marino Pinto)/Flertei(Castro Perret)/ Adeus Amor (Newton Ramalho, Almeida Rêgo). Lado B: A Virgem de Macarena(La Virgen de MAcareña)(B.B. Monteverde, CAlero/Versão:A. Bourget)/ Tango italiano(Malgoni,Pallesi, Beretta/ Versão: Romeu Nunes)/ Dengosa (Castro Perret)/ Formiguinha triste (Joãozinho)/Tristeza de carnaval (Mutinho,Bidu)/ Outra vez (Again)(Cochran, Newman/Versão: Osvaldo Santiago).

64

Silêncio, Atenção,O Samba já tem outra marcaçãoO pandeiro já não faz o que fazia,Violão só é na base da harmônia.A roda do mundo sempre vai girando, vai girando semparar.Tudo nessa vida se renova,A Bossa Velha deu lugar a Bossa Nova

Os quatro primeiros LPs gravados por Elis eram discos que seguiam a temática

musical do período, ou seja, a impostação de voz, lembrando a das cantoras do rádio e o

tema romântico. As músicas eram caracterizadas pelos ritmos do samba, do bolero e de

samba-canções, dentre outros ritmos populares daquele momento.

Tabela 1 - Percentual de gêneros gravados nos LPs de 1961-1963:

Gênero Percentual N° absoluto

Samba 38,3%% 18 músicas

Rock 25,5% 12 músicas

Samba-bolero 10,7% 5 músicas

Ritmos latinos123 25,5% 12 músicas

Total 100% 47 músicas124

Fonte: Viva a Brotolândia, Poema de amor, O bem do amor e Ellis Regina.

A análise do repertório gravado por Elis nestes quatro LPs mostra que quase

90% das músicas são de temática amorosa. O amor retratado nestas canções é um amor

jovial e puro, um amor que canta para o ser amado voltar e trazer de volta a felicidade,

ou mesmo canções de louvação ao amor, um amor que faz sorrir e cantar. Dentre as

músicas analisadas125, 64,5%126 das canções foram gravadas primeiramente por Elis.

Este fato demonstra o investimento creditado a Elis pelos produtores destes discos.

123 Inclui-se neste gênero o bolero, que configura 16,6% destas canções.124 Das 48 músicas uma delas foi gravada em valsa e por isso não se insere na tabela.125 Soma-se ao todo 48 músicas.126 Análise realizada através do site: http://www.memoriamusical.com.br/ Acessado de 21/01/2010 até15/03/2011.

65

Percebo que a maior parte do repertório consiste em sambas, gênero que tinha já

nesta época um status de ritmo nacional. O rock e os ritmos latinos, os segundos

gêneros mais utilizado, seguido pelos samboleros mostram uma adequação destas

gravações com o que estava sendo tocado nas rádios naquele momento, demonstrando

assim que seria um critério de mercado que orientaria essas escolhas.

De acordo com Avancini, boleros e samba-canções se caracterizam, dentre

outros aspectos, por um conjunto de questões relacionadas ao amor, particularmente ao

amor frustrado, seja em virtude de uma separação, seja de nunca se ter tido a

oportunidade de experimentá-lo. No entanto, sua temática, exclusivamente, não basta

para defini-los . Até porque, a frustração amorosa pode ser cantada em outros ritmos.

Um gênero musical se demarca por um conjunto que abarca, além da temática e do

ritmo, uma estética de interpretação. Ambos têm, em geral, um narrador que conta, ou

melhor, canta seu sofrimento e dor, resgatando um estado de coisas que lhe deu origem.

Assim, as letras relatam histórias de rompimento e de amores não concretizados, ou de

pessoas que sequer chegaram a experimentar o amor. Às vezes o narrador se dirige

diretamente ao ser amado, estando ele presente ou não. Em outro, fala consigo mesmo e

o ouvinte se torna uma espécie de testemunha. São gêneros que visam expressar um

sentimento ou estado de espírito.127

O timbre vocal, bem como a performance de Elis nestes LPs, são bastante

distantes do universo da bossa nova carioca. Enquanto, no Rio de Janeiro, a bossa

rolava buscando uma proximidade com o jazz e na tentativa de sintetizar toda uma

orquestra no violão, Elis cantava no Rio Grande do Sul como suas divas do rádio e

gostava de boleros. O instrumental utilizado nestas gravações era composto, em sua

maioria, por piano, baixo e bateria, somados a uma orquestra ora de metais ora de

sopros, nada econômicos. Acredito que, assim como o repertório, a escolha do

instrumental também foi feita pela gravadora.

Ao findar deste capítulo, pode-se perceber a forte influência e presença do rádio

na formação artística de Elis Regina, bem como no repertório gravado na fase inicial de

sua carreira. Parece que, de fato, em início de carreira, poucos são os cantores(as) que

têm liberdade para escolher o repertório. O questionamento que faço é: por que

determinado tipo de repertório é, neste momento, proposto à Elis? Acredito que a

127 AVANCINI, Maria Marta Picarelli. Nas Tramas da Fama – As estrelas do rádio em sua época áurea,Brasil, anos 40 e 50. Dissertação (mestrado) – Universidade estadual de Campinas. Departamento deHistória. 1996, p. 121.

66

resposta a esta e a outras perguntas reside no fato de que a discografia produzida neste

momento, composta por esses 4 LPs, está mantendo um diálogo com a musicalidade do

período. Em uma época onde o bolero dominava a cena musical brasileira128e o samba

era utilizado enquanto caracterizador da musicalidade nacional, Elis gravou o que se

esperava que fosse vendável.

Percebe-se, na maneira de cantar de Elis Regina nesta fase, características

presentes nas vozes de cantoras e cantores com os quais ela se identificava, como

Francisco Alves ou mesmo Ângela Maria, como o alto nível de energia empregada na

impostação vocal, a larga utilização do vibrato, quando cantava com pouca flexibilidade

de articulação nas consoantes e largo prolongamento das vogais. É interessante notar

que a influência do bel canto também se faz presente no canto de Elis.

A utilização da voz desta maneira se deve principalmente à participação de Elis

em programas de rádio e por ela estar afinada com o gosto de então, no entanto, esta

técnica se transforma com sua chegada ao Rio de Janeiro, como analisarei nos próximos

capítulos. Elis, ao longo de sua carreira, aprende a utilizar melhor sua voz com técnicas

aprendidas e aprimoradas, principalmente através da própria prática de cantar.

128 Fato demonstrado em LENHARO, Alcir. Cantores do rádio – A trajetória de Nora Ney e JorgeGoulart e o meio artístico de seu tempo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995, e em CASTRO,Ruy Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa nova. SP, Cia. das Letras, 1990, em suasanálises sobre o período.

67

Capítulo 2 - O surgimento da temática nacional-popular no repertório

de Elis Regina

Depois de analisar a infância e a influência do rádio na vida e obra de Elis,

abordo neste capítulo a chegada de Elis ao Rio de Janeiro e a modificação de seu

repertório gravado a partir deste momento, tanto na temática quanto nos arranjos.

A partir dos aspectos da carreira de Elis Regina abordados nesta pesquisa, o

presente capítulo pretende investigar como se deu a relação da cantora com questões

referentes ao Brasil e como estas apareceram em sua obra. Levando em consideração

que o repertório analisado até o ano de 1963 consiste em canções de cunho quase que

exclusivamente amoroso129, abordarei principalmente a modificação desta temática.

Pretendo analisar, através das canções gravadas por Elis, de algumas de suas

entrevistas e vídeos e também de depoimentos de artistas envolvidos direta ou

indiretamente na sua carreira, como as tensões presentes nas relações sociais de meados

dos anos sessenta que se referem à problemática nacional aparecem na obra de Elis. As

canções gravadas por Elis tiveram um sucesso considerável e uma divulgação de longo

alcance, uma vez que eram veiculadas pelas emissoras de televisão e o rádio ainda era

um instrumento poderoso de difusão, maior que a própria televisão, em alguns lugares.

2.1 - O cenário musical brasileiro do início a meados dos anos sessenta

De acordo com Regina Echeverria, foi no final de março do ano de 1964,

momento político significativo de mudanças no pós golpe militar e dez dias depois de

Elis ter completado seus dezoito anos, que ela e seu pai Romeu embarcaram

definitivamente para o Rio de Janeiro. Elis Regina contava, naquela época, com a

promessa do produtor de discos Armando Pittigliani de contratá-la para a Philips, assim

que ela rompesse o acordo que tinha com a CBS. 130

Segundo Napolitano:

“Um dos primeiros programas com a MPB que a Record levou ao ar,em outubro de 1964, foi o Primeira audição no qual se apresentou aainda desconhecida do grande público Elis Regina, acompanhada pelo

129 Ver capítulo 1.130 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, p. 79.

68

Zimbo Trio, conjunto recém formado na época. A TV ia ao encontro docircuito universitário e lá encontrou a sua futura grande estrela”. 131

É interessante notar que grande parte dos sujeitos citados ao longo da análise,

bem como os locais destinados à execução musical, estão todos ligados ao eixo Rio-São

Paulo, fato este que fez com que Elis tivesse que se mudar para esta localidade para

encaminhar melhor sua carreira musical. A carreira da intérprete Elis Regina Carvalho

Costa se consolidou ao mesmo tempo em que se criava no Brasil o conceito de Música

Popular Brasileira – MPB. Essa denominação surgiu em meados dos anos sessenta,

reunindo o que então se considerava representativo da genuína cultura brasileira, no

âmbito da música. Nesse sentido, a MPB herdava o esforço de um grupo de artistas

originalmente ligados à bossa nova – como Carlos Lyra, por exemplo – de construir

uma arte musical mais comprometida com a realidade social. A questão que se coloca

aqui é: Como Elis cantava o Brasil? Qual Brasil?

No período de ascensão e consolidação da bossa nova, Elis era um sucesso

somente no Rio Grande do Sul e, ao chegar ao Rio de Janeiro, foi aos poucos

alcançando seu espaço. Primeiramente na TV Rio, depois nos pocket shows do Beco

das Garrafas132 e também nos auditórios universitários, o que mudaria depois de sua

participação no I Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, em 1965.

Pode-se dizer que Elis fazia sucesso com uma carreira de cunho regional, uma vez que o

grande centro irradiador de cultura, o eixo Rio/São Paulo, só seria conhecido por Elis

em meados dos anos sessenta, especificamente 64, quando a bossa nova já havia se

firmado como gênero musical de extrema importância.

A década de sessenta foi sentida pelos contemporâneos como uma época de

fervoroso entusiasmo cultural. Artistas conectados com as discussões acerca dos

problemas sociais e políticos brasileiros, engajados nos projetos culturais dos Centros

Populares de Cultura, como Carlos Lyra, Edu Lobo, Ruy Guerra, dentre outros, foram

os compositores que Elis Regina escolheu para gravar no repertório de seus discos, a

partir do LP Samba eu canto assim, de 1965. A temática de suas canções, bem como de

outros LPs lançados posteriormente por ela, não se restringiram somente ao nacional-

131 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, p. 79.132 Beco das Garrafas é o nome atribuído a uma travessa sem saída da rua Duvivier, na cidade do Rio deJaneiro, que abrigava um conjunto de casas noturnas(Ma Griffe, Bacará, Little Club e Bottle's), situado nobairro carioca de Copacabana, nas décadas de 50 e sessenta.

69

popular133defendido por estes compositores, apesar de representarem parte significativa

de seu repertório, como veremos adiante.

De acordo com Napolitano:

“A saída encontrada por grande parte dos intelectuais de esquerda eartistas era buscar uma via política mais direta entre artista e povo, ondeo artista pudesse ter um trabalho paralelo à sua condição de vendedor decanções. O Centro Popular de Cultura da UNE deveria ocupar esteespaço. Inúmeras experiências de teatro, cinema e música popularforam feitas por artistas engajados na tentativa de configurar uma artepopular e nacional. Obviamente, como o próprio “manifesto” do CPCassumia, o “povo” era mais a fonte de inspiração e o alvo final do artistaengajado. A arte popular em si era vista como ingênua e atrasada. Oartista deveria incorporar a linguagem desta arte para “chegar” ao povo,e “dar” a ele a consciência dos seus próprios valores.” 134

Sobre a formação do CPC Carlos Lyra descreve:

“Fui o fundador/diretor musical do CPC. O tempo todo, desde oprincípio, eu fui o chefe do Departamento Cultural de Música. Eraresponsável pelo setor musical, o Vianinha, pelo setor teatral, o FerreiraGullar, pelo de literatura, Leon Hirzsman, pelo setor de cinema. Foi aíque veio toda aquela leva de cinema novo que está aí até hoje: CácaDiegues, Arnaldo Jabor, uma porção de gente que foi se encontrando alino CPC. Mas o Centro estava pronto especialmente para essas quatroatividades: literatura, música, cinema e teatro. Fizemos teatro de rua,teatro volante, fizemos o Cinco vezes favela, o filme, que teve comobase Couro de gato, do Joaquim, e fizemos mais outros.135

Carlos Lyra está entre os compositores mais gravados por Elis na década de

sessenta. As suas palavras são muito relevantes, pois elucidam o diálogo existente entre

as artes naquele momento. A criação de um “centro” popular de cultura demonstra o

desejo dos artistas do período em se unir. Este diálogo e trânsito cultural existente entre

os diferentes meios artísticos ficam ainda mais perceptíveis quando Lyra é questionado

por Santuza Naves acerca de sua politização:

“O pessoal do teatro se juntava, por incrível que pareça nos barzinhosentre Copacabana e Ipanema. No Jangadeiros tinha o Vinícius, tinha oJoaquim Pedro de Andrade, tinha o Glauber Rocha, o Ferreira Gullar;era todo mundo do cinema novo, poesia, música, bossa nova. E isso foique gerou em mim a facilidade de me comunicar com as pessoas deteatro e cinema, de fazer músicas para os filmes do Joaquim.Aquelepessoal do cinema novo era um time com gente da pesada. E com esse

133 Conceito a ser amplamente analisado e discutido a seguir.134 NAPOLITANO, Marcos. A canção engajada no Brasil: entre a modernização capitalista e oautoritarismo militar (19sessenta/1968). Publicado na Revista Ciência Hoje, 24/241, ago./1998.135 A MPB em discussão: entrevistas / Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho, Tatiana Bacal(Organizadores) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p.79.

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clima todo, você tinha feedback de todo lado. Eu fui chamado peloChico Assis para fazer A Mais-valia , que era uma peça do Vianinha[Oduvaldo Viana Filho]. Nesse momento eu comecei a me ligar aopessoal do Arena de São Paulo, com o Vianinha, com o [Gianfrancesco]Guarnieri, o Augusto Boal, toda essa gente. Fui conhecendo essaspessoas e acabei diretor musical do Arena. Fui levado para São Paulo eali comecei a trabalhar com Guarnieri em canções, em teatro e outrascoisas que nós fizemos juntos. E com Vianinha eu fiz A Mais-valia euma porção de outras coisas: músicas e peças políticas populares.”136

Buscando abordar o cenário artístico da década de sessenta, através dos relatos

feitos por produtores musicais137 em seus livros de memórias, analisarei os livros de

Nelson Motta e Marcos Mazzola, dentre outros significativos sujeitos que escreveram

sobre esse período como Zuza Homem de Mello138. Rememorando e descrevendo o

período, esses relatos se convertem em fontes que elucidam a época na qual esses

artistas da produção musical estão inseridos. Elis é citada em todos eles.

Não podemos deixar de refletir acerca da complexidade em se trabalhar com

testemunhos. Lucília Delgado nos alerta para o fato de que o tempo, sem qualquer poder

de alteração do que passou, atua modificando ou reafirmando o significado do que foi

vivido e a representação individual ou coletiva sobre o passado. A autora afirma, ainda,

que o passado apresenta-se como vidro estilhaçado de um vitral, antes composto por

inúmeras cores e partes, buscar recompô-lo em sua integridade é tarefa impossível.

Buscar sua compreensão através da análise de fragmentos, resíduos, objetos biográficos

e diferentes tipos de documentação e fontes é um desafio possível de ser enfrentado. 139

E é este enfrentamento que busco neste capítulo, ao trabalhar com as memórias e relatos

biográficos e entrevistas, não só de Elis, mas também de outros agentes significativos

para esta pesquisa.

A fecundidade de se analisar memórias reside no fato de estudarmos as

representações de passado tomadas como dados, capazes de modificar nosso

entendimento deste passado. Segundo Maurice Halbwachs, recorremos a testemunhos

para reforçar, enfraquecer, ou mesmo para completar o que sabemos de algum evento,

embora muitas circunstâncias referentes aos testemunhos permaneçam obscuras para

136 A MPB em discussão: entrevistas / Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho, Tatiana Bacal(Organizadores) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p.78.137 No universo musical, um produtor musical ou produtor discográfico é o termo que designa uma pessoaresponsável por completar uma gravação para que esteja pronta para o lançamento. Eles controlam assessões de gravação. Guiam os músicos e cantores e fazem a supervisão do processo de mixagem.138 CASTRO, Rui com Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa nova, Ruy não foi produtormusical e sim vivenciou e entrevistou vários nomes dos artistas da bossa nova. , MAZZOLA, MarcosOuvindo estrelas uma autobiografia, RIBEIRO, Solano Prepare seu coração, dentre outros.139 DELGADO, Lucília de A. N. História oral: memória, tempo, identidades. BH: Autêntica, 2006.

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nós. De acordo com o autor, dificilmente encontraremos lembranças que nos levem a

um momento em que nossas sensações eram apenas reflexos dos objetos exteriores, em

que não misturássemos nenhuma das imagens, nenhum dos pensamentos que nos ligavam

a outras pessoas e aos grupos que nos rodeavam, ou seja, qualquer recordação de uma

série de lembranças que se refere ao mundo exterior é explicada pelas leis da percepção

coletiva. Halbwachs afirma, ainda, que cada memória individual é um ponto de vista

sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali

ocupamos e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantemos com outros

ambientes.140

Marcos Mazzola, produtor musical, descreve em sua autobiografia como se

lembra desta época:

“Naquele final da década de 1950, o Brasil vivia certa euforia. Era avitória da Seleção na Suécia, a construção de Brasília – e até certapropagação do consumo. As famílias de classe média deixavam de fazeras coisas em casa e passavam a comprar roupas, alimentosindustrializados, eletrodomésticos. Começavam a surgir produtos nasruas e casas que, até então, só eram vistos em filmes. A televisãochegou por aqui. No rádio, dominava a música americana, se bem quehouve toda uma onda do baião que sacudiu o País com um som trazidodo sertão e transformado em paixão urbana por Humberto Teixeira eLuiz Gonzaga. Nas boates de Ipanema, zona sul carioca, havia umaenfumaçada vida noturna, de amor, de fossa, belas músicas e musas,como Dolores Duran, Maísa e muitas outras – isso, esquentando aplatéia para a bossa nova, que logo surgiria.” 141

Em entrevista realizada por Naves, vemos outro relato referente a este período,

do cantor e compositor Chico Buarque:

“Pelo fato de também ter morado na Itália e pelo fato da culturafrancesa ser muito presente na formação da geração dos meus pais,ouvia bastante a música francesa, muito Edith Piaf e, mais tarde,Jacques Brel, Charles Aznavour. Eu ouvia muito isso. E depois aprimeira safra do rock, com Elvis Presley, Litlle Richard e aquela gentetoda. E eu cantava aquilo tudo, imitava The Platters. Até o surgimentoda bossa nova. Aquilo pra mim foi uma ruptura com tudo. Eu sou de1944 e, quando surgiu a bossa nova, quando ouvi o primeiro disco doJoão Gilberto, eu me lembro de ter pedido dinheiro ao meu pai paracomprar um disco, porque era um disco com a música do Vinícius. Aminha lábia era essa. A gente não sabia quem era o Tom [Jobim], nãosabia quem era João Gilberto, mas Vinícius era de casa. Então, a partirdaquele momento, eu esqueci, entre aspas, tudo o que tinha ouvido

140 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.141 MAZZOLA, Marcos. Ouvindo estrelas: a luta, a ousadia e a glória de um dos maiores produtoresmusicais do Brasil. – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007, p.16.

72

antes, passei a ser um bossa-novista. Foi aí que eu peguei em um violão,comecei a fazer música mesmo a partir desse momento.142

Em outra entrevista realizada por Naves, desta vez com Edu Lobo, percebemos a

maneira como o compositor “sentiu” a bossa nova:

“A bossa nova mexeu em tanta coisa, foi uma revolução que teve umaimportância tão grande do ponto de vista formal. Bossa nova é arevolução harmônica, melódica, poética e vocal. E mais ainda:instrumental. Você tem uma nova batida, com um novo cantor, comonunca teve no Brasil nada parecido, como foi o João Gilberto. Porque avoz dele é integrada ao violão, a voz vai por dentro do que ele tatocando, é como se fosse uma coisa só. Não tinha isso na época. Querdizer, você tinha o [Dorival] Caymmi, que cantava com o violão, masera completamente diferente. Só isso justificaria o movimento inteiro,porque é uma mudança. E cantando com a voz curta, só queabsolutamente afinada e superinteressante, nova. E depois, acordesnunca usados em música brasileira e melodias também, porque osacordes eram novos, as cadências eram originais. E aí as letrascomeçaram com Vinícius, depois outros autores. Quer dizer, era umamudança formal, uma revolução como nunca houve, eu acho.” 143

Também em entrevista realizada por Santuza, temos a visão de Carlos Lyra, ao

se referir a esta época incipiente da bossa nova:

“Havia um time de jornalistas, poetas, letristas, que foi anterior à nossageração, como Antônio Maria, que eu considero um dos precursoresmais importantes da bossa nova, que fez letras para o Dick Farney eoutros cantores. Então há uma turma ali de primeira linha, como OttoLara Resende, Vinicius de Moraes e Nelson Rodrigues. Toda essa genteescrevia para os jornais era a nossa informação. O clima dos anos 50para os anos sessenta é de grande surto cultural, porque toda aquelagente de uma geração anterior nos dava subsídios e informações para agente ter cada vez mais vontade de criar, de participar.” 144

Lyra conta, ainda, que:

“O primeiro contato que tive com a música brasileira que realmenteabriu meus olhos e os ouvidos, foi através do Antônio Maria. Eupensava na importância, já que ele trazia Shakespeare para dentro damúsica popular brasileira. Eu despertei para a música brasileira ouvindoo Dick Farney cantando aquelas coisas, que eram sambas-cançõeslindos. Então minhas primeiras composições eram sambas-canções.Aquelas músicas maravilhosas do México, como as de Agustin Lara,foram importantes influências para a gente. Influencia também doimpressionismo de Ravel, do Debussy, do jazz, entre outros. A gentetem uma mistura dessas influências estrangeiras e a raiz brasileira dosamba, xaxado, da valsa, todos os ritmos. Não é só o samba não; todos

142 A MPB em discussão: entrevistas / Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho, Tatiana Bacal(Organizadores) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 165.143 Idem, p. 230. Entrevista realizada em 24 de agosto de 1999.144 Idem, ibidem, p.76.

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os ritmos brasileiros fazem parte da educação da bossa nova. AntônioMaria, Dorival Caymmi, Ary Barroso, todos esses músicos foraminformações importantes para mim”. 145

Diante desses relatos, faz-se necessário pensarmos quem são estes sujeitos e de

qual grupo social fazem parte. Todos os depoentes citados acima faziam parte da classe

média. No entanto, nem todos tiveram a mesma audição musical antes da bossa nova,

que, causou grande impacto no universo de todos eles. O que fica evidente na fala deles

é que a bossa nova surge em suas vidas causando uma grande sensação, chegando até

mesmo a modificar suas ligações sentimentais com a música popular brasileira, a ponto

de Chico Buarque passar a querer aprender a tocar depois de conhecer a bossa nova.

Uma importante questão a ser apontada é a musicalidade ouvida e produzida no

país antes do advento da bossa nova, a mesma é fundamental para pensarmos em

continuidades e diálogos, e não somente em rupturas e novidades. O jazz, que

apareceria no violão dos bossanovistas, já era ouvido desde a infância por grande parte

desses compositores nas rádios. Não se pode negar que houve novas maneiras de

interpretar os acordes americanos, mas os músicos brasileiros inovaram de acordo com

aquilo que lhes chegava pelas rádios ou nas boates. Já que grande parte do que se ouvia

eram músicas americanizadas ou estrangeiras, podemos perceber a influência direta das

mesmas na produção musical nacional.

De acordo com Solano Ribeiro, a bossa nova se firmava cada vez mais. Em São

Paulo, o diretório acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie foi o

primeiro a apresentar um festival de bossa nova, organizado por Manoel Poladian. Foi o

Festival da Balança, que teve quatro outras apresentações com o nome de Show da

Balança. No Teatro Paramount, foi iniciada uma série de espetáculos organizados por

Horácio Berlynk, João Evangelista Leão e Eduardo Muylaert, a que deram o nome de O

Fino da Bossa. Os artistas cariocas que começavam a aparecer na cidade eram

solicitados com freqüência para shows em casas noturnas, sendo que o Cave, na rua da

Consolação, os apresentava com mais assiduidade. De acordo com o autor, embora

viesse do Rio quase tudo o que acontecia de importante na cidade, já dava para perceber

que estava sendo aberto um espaço para um elenco musical de bossa nova em São

Paulo. 146 Elis era uma dessas “artistas cariocas”, apesar de ser do Rio Grande do Sul,

145 A MPB em discussão: entrevistas / Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho, Tatiana Bacal(Organizadores) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 82.146 RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração – A História dos Grande festivais. São Paulo: GeraçãoEditorial, 2002, p. 45.

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era no Rio de Janeiro que Elis estava realizando alguns shows, e depois o faria em São

Paulo.

Segundo Ruy Castro, no final dos anos 50 nas primeiras semanas de agosto, a

turma do diretório acadêmico, presidido pelo estudante Cacá Diegues, cobriu os

corredores da PUC, na Gávea, com cartazes de cartolina escritos com pincel atômico,

anunciando a realização do 1° Festival de Samba-Session. Seria a primeira vez que os

meninos poderiam ouvir, em massa, e na voz dos próprios autores, aquelas canções

modernas que vinham penetrando na universidade e que pareciam sair da academia de

Lyra e Menescal. 147 Esta descrição é importante, pois já nos mostra a presença de

diálogos entre diferentes fazeres artísticos, uma vez que Cacá Diegues, além de

propagandear a bossa nova mais tarde, faria também parte do grupo dos diretores do

cinema novo e se casaria com a cantora Nara Leão.

Nelson Motta relata que, além dos colégios e faculdades, as festas em

apartamentos de Copacabana foram o principal veículo de divulgação no início da bossa

nova, quando o movimento ainda não tinha discos, não tocava em rádio, não aparecia na

televisão e não tinha espaço na imprensa. 148

Pode-se pensar, com tal declaração, juntamente com as demais supracitadas, nos

novos espaços de sociabilidade ocupados pela turma da bossa nova, os espaços musicais

que antes eram as boates e especialmente o rádio, após o advento da bossa nova, passam

a ocupar locais que antes não lhe eram reservados, como os campi universitários, os

apartamentos e também os teatros.

Motta conta que com a febre da bossa nova, as academias de violão se

multiplicavam pela Zona Sul do Rio e em uma delas, na Rua Dias da Rocha, no coração

de Copacabana, conheceu Wanda Sá, Maurício Tapajós, Edu Lobo, Marcos Valle e

outros, uma nova turma. Era uma casa de vila, de dois andares, onde Roberto Menescal,

Samuel Eliachar e outros davam aulas de violão e onde os alunos se encontravam para

conversar e tocar. 149

De acordo com Motta, Carlos Lyra e sua turma tinham preocupações sociais,

acreditavam na música como instrumento de ação política, denunciavam a jazzificação

da bossa nova, criticavam sua americanização e “elitização” e buscavam as raízes

147 CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. – São Paulo: Companhiadas Letras, 1990, p. 221.148 MOTTA, Nelson. Noites Tropicais solos, improvisos e memórias musicais. Editora Objetiva, 2000, p.22.149Idem, p. 26.

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populares na (re) descoberta de grandes sambistas cariocas, como Cartola e Nelson

Cavaquinho, e de artistas populares nordestinos, como Luiz Gonzaga, João do Vale e

Jackson do Pandeiro. A sua “linha musical” seguia, basicamente, as idéias do CPC

(Centro Popular de Cultura) da UNE, do qual Lyra fora um dos fundadores e que reunia

a fina flor da jovem esquerda carioca, de onde sairia boa parte do grupo Opinião de

teatro e do cinema novo. 150

Esta citação de Motta, somada a outras realizadas anteriormente, demonstram

como as artes se influenciavam mutuamente, uma vez que do CPC sairia grande parte

dos integrantes do grupo Opinião de teatro e do cinema novo, e também muitos dos

compositores gravados por Elis Regina após 1965. Vários dos músicos citados por

Motta, dentre eles Edu Lobo, Marcos Valle, e Carlos Lyra, mais tarde seriam

compositores gravados e interpretados por Elis Regina. De certa forma, mesmo que a

leitura dessas interpretações feitas por Elis não fossem introspectivas e “econômicas”,

como as da bossa nova, os compositores eram, surgiram e aprenderam música

influenciados pela bossa nova. Grande parte dos músicos que produziram a música dos

anos sessenta e setenta no país cresceu e formou seu gosto musical neste período.

Outro compositor amplamente gravado por Elis, Edu Lobo, ao ser questionado

quanto a fazer parte de uma geração politizada, responde:

“Para mim foi importantíssimo o convívio com o pessoal do teatro.Começou com o Guarnieri, com o pessoal do Teatro de Arena, de SãoPaulo. E aí minha música começou a tomar uma outra forma também.Quer dizer, eu comecei a gostar de trabalhar sob pressão. Nessa época,aprendi muito com essa experiência toda de teatro, como de cinema.Acabei também fazendo músicas para filmes e participando dosmovimentos todos e dos problemas todos, das censuras todas. Fui para oteatro de Arena um pouco por causa do Carlinhos Lyra; eu conheci oVianinha por seu intermédio. E aí sobrou pra mim. Fui chamado parafazer uma peça do Vianna, porque o Carlinhos, que trabalhava semprecom ele, estava nessa época envolvido com outros projetos. O Vianinhaentão me convidou para musicar a peça que estrearia o Teatro da UNE.”151

O produtor e idealizador dos futuros festivais musicais do período, Solano

Ribeiro, era ator do teatro de Arena que, já no final dos anos cinquenta, fazia montagens

150, MOTTA, Nelson. Noites Tropicais solos, improvisos e memórias musicais. Editora Objetiva, 2000, p.p.36.151 Entrevista realizada em 24 de agosto de 1999, com a participação de Santuza Naves, Kate Lyra,Heloísa Tapojós, Juliana Jabor, Micaela Moreira, Kay Lyra, Silvio Da-Rin e Daniel Carvalho. In: A MPBem discussão: entrevistas / Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho, Tatiana Bacal(Organizadores) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 239.

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de peças que traziam pela primeira vez ao palco temas da realidade brasileira, como por

exemplo, a peça Eles não usam Black Tie (de 1959). Em seu livro de memórias, Solano

relembra de seus tempos de teatro:

“Ao nosso elenco se juntara o ator Paulo José, cuja entrada no Arenasignificou sua saída do Rio Grande do Sul, e também o compositorCarlos Lyra, que veio do Rio para ensaiar com o elenco as músicas desua autoria que seriam cantadas na peça Revolução na América do Sul,de Augusto Boal, na qual acabei fazendo vários papéis.”152

Os depoimentos de Solano, assim como o de Carlos Lyra e Edu Lobo, nos

apontam uma característica marcante na área cultural desses primeiros anos sessenta,

presente no eixo Rio/São Paulo: a interação entre as diversas áreas artísticas (cinema,

teatro, música e literatura), empenhadas na idéia de uma arte revolucionária. Essas três

figuras estiveram presentes e foram marcantes na carreira artística de Elis Regina.

Retomaremos este assunto ao longo deste capítulo.

Através dos depoimentos citados, podemos identificar posturas políticas,

trânsitos artísticos e culturais e também o cenário musical e artístico da década de

sessenta.

De acordo com Marcos Napolitano, foi a partir do movimento bossa nova que os

estratos superiores das classes médias passaram a ver a música popular como um campo

respeitável de criação, expressão e comunicação. A bossa nova articulou essa forma de

inserção de um novo estrato social no panorama musical, sobretudo no plano da criação

e no consumo de música popular. Segundo o autor, a bossa nova foi a maneira com que

os segmentos médios da sociedade assumiram a tarefa de traduzir uma utopia

modernizante e reformista, que desejava atualizar o Brasil como Nação perante a cultura

ocidental. 153

Segundo Napolitano:“os anos de 1962 e 1963 demarcaram de fronteiras, muitas vezespostiças entre a bossa nova “jazzística” e a bossa nova “nacionalista”. Aquestão foi potencializada pela consagração da bossa nova no mercadointernacional ocorrida exatamente no mesmo período. No final de 1962,em 21 de novembro, a bossa nova foi atração principal de um eventoque acirrou ainda mais as polêmicas em torno do caráter nacional ou“entreguista” do novo gênero. Para João Gilberto e Tom Jobim, o showfeito no Carnegie Hall marcou a entrada triunfal dos dois no mercadonorte-americano, que acabou consagrando esses músicos no exterior,

152 RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração – A História dos Grandes festivais. São Paulo: GeraçãoEditorial, 2002, p.38.153 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP: 2001, p.24.

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onde desenvolveram boa parte de sua carreira. O que criou uma questãoparadoxal: os dois “fundadores” da bossa nova acabaram, em certamedida, entrando para o index dos artistas e intelectuais maisnacionalistas como exemplo de bossa nova “antipopular” e“entreguista”. Dos “pais fundadores” só Vinícius de Moraes conseguiumanter seu prestígio intacto junto aos nacionalistas de esquerda, sendoum dos arautos da “nacionalização” da bossa nova a partir de 1962”.154

De acordo com Renato Ortiz:

“Se os anos 40 e 50 podem ser considerados como momentos deincipiência de uma sociedade de consumo, as décadas de sessenta e 70se definem pela consolidação de um mercado de bens culturais. Existe,é claro, um desenvolvimento diferenciado dos diversos setores ao longodeste período. A televisão se concretiza como veículo de massa emmeados dos sessenta, enquanto o cinema nacional somente se estruturacomo indústria nos anos 70. O mesmo pode ser dito de outras esferas dacultura de massa: indústria do disco, editoria, publicidade, etc.” 155

Renato Ortiz observa que, para compreendermos a década de cinquenta e parte

da de sessenta, é necessário levarmos em consideração o sentimento de esperança e a

profunda convicção de seus participantes de estarem vivendo um momento particular da

história brasileira. A recorrente utilização do adjetivo “novo” traz todo o espírito de uma

época: bossa nova, cinema novo, teatro novo, arquitetura nova, música nova. O autor

considera significativo o fato de que várias das produções culturais do período se

fizeram em torno de movimentos, e não exclusivamente no âmbito da esfera privada do

artista. Bossa nova, teatro de arena, tropicalismo, CPC da UNE, eram tendências que

congregavam grupos de produtores culturais animados, se não por uma ideologia de

transformação do mundo, pelo menos de esperança por mudança. Nesse sentido,

podemos dizer que cultura e política caminhavam juntas, nas suas realizações e nos seus

equívocos. 156

Para Marcelo Ridenti, hoje podemos identificar com clareza uma estrutura de

sentimento que perpassou grande parte das obras de arte, especialmente a partir do fim

da década de cinquenta. Usando o termo de Benedict Anderson, Ridenti observa que

amadurecia um sentimento de pertença a uma comunidade imaginada, sobretudo nos

meios artísticos e intelectuais de esquerda, ligados a projetos revolucionários. Idéias e

sentimentos eram compartilhados, estava em curso a revolução brasileira, na qual

154 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP: 2001.155 ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira, Cultura Brasileira e Indústria Cultural. SP,Brasiliense, 1988, p.113.156 Idem, p.110.

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artistas e intelectuais deveriam engajar-se. 157Levanto, portanto, a seguinte questão:

Qual o papel exercido e ocupado por Elis no meio artístico deste momento? Essa e

outras questões serão respondidas ao longo desta dissertação.

Ridenti, ao refletir acerca de uma brasilidade revolucionária, afirma que essa

experiência foi a variante nacional de um fenômeno que se espalhou pelo mundo afora.

Além das especificidades locais – no caso brasileiro, as lutas pelas reformas de base no

pré-64 e contra a ditadura - o florescimento cultural e político na década de sessenta se

ligava a uma série de condições materiais comuns a diversas sociedades em todo o

mundo: o aumento quantitativo das classes médias; acesso crescente ao ensino superior;

peso significativo dos jovens na composição etária da população; um cenário crescente

de urbanização e consolidação de modos de vida cultural típicos das metrópoles e um

tempo de recusas às guerras coloniais e imperialistas. Isso, sem contar a capacidade do

poder instituído para representar sociedades que se renovavam e avançavam também em

termos tecnológicos, como por exemplo, o acesso crescente a um modo de vida que

incorporava ao cotidiano o uso de eletrodomésticos, especialmente a televisão. Somente

essas condições materiais não explicam por si só as ondas de rebeldia e revolução, nem

mesmo as estruturas de sentimento que as acompanham por toda parte. No entanto a

brasilidade revolucionária aconteceu frente às mudanças na organização social que se

constituíram certas estruturas de sentimento. 158

2.2 - O nacional-popular enquanto ato de conscientização

A arte engajada, após o golpe militar de 1964, tinha como meta modificar a

situação político-social do país e, em 1965, quando Elis estourou no cenário musical, a

situação ainda permitia que artistas de esquerda se manifestassem em movimentos

artísticos, o que se modificaria no ano de 1968 com a instauração do AI5. 159

De acordo com Marcos Napolitano, três importantes intérpretes - Nara Leão,

Elis Regina e Elisete Cardoso - em seus LPs lançados entre 1964 e 1965, procuraram

157 RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política. – São Paulo: EditoraUnesp, 2010.158. Idem, p. 95.159 AI5: Ato Institucional n 5, conhecido como “o golpe dentro do golpe”, onde os setores militares maisdireitistas lograram oficializar o terrorismo de Estado, que passaria a deixar de lado quaisquer pruridosliberais, até meados dos anos 1970. Ridenti In: O Brasil Republicano: o tempo da ditadura - regimemilitar e movimentos sociais em fins do século XX. RJ: Civilização Brasileira, 2003, p.152

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seguir uma nova orientação estético∕ideológica de “subida ao morro” e,

secundariamente, de “ida ao sertão”. Estes lugares eram considerados a essência da

brasilidade. 160Tanto o morro, como o sertão eram vistos como representativos da

nacionalidade brasileira, pois via-se neles o homem simples e, por isso mesmo, não

contaminado com aspectos de modernidade. Homem este que teve significativa

presença no repertório de Elis a partir de 1965.

Podemos pensar que a presença da temática romântica nos primeiros discos de

Elis está ligada a uma proposta de construção de uma carreira direcionada para os

ouvintes do rádio, no qual Elis trabalhava quando os lançou. A partir de 1965, percebo

uma clara modificação em seu repertório, onde sua construção passa a privilegiar

canções que falam do Brasil, do seu povo. Enquanto o repertório anterior a 1965

privilegiava quase que exclusivamente canções amorosas, este novo passa a abordar, em

sua maioria, canções de cunho social. Assim sendo, podemos afirmar que Elis passou a

buscar o popular desde então. Mas como se configurou essa busca? O que é esse

popular? Como Elis o canta? Ele se modificaria ao longo de sua carreira?

No seu livro “Em busca do povo brasileiro”, Marcelo Ridenti percorre os anos

sessenta e início dos setenta e percebe, nos meios artísticos e intelectualizados de

esquerda, o problema da identidade nacional e política do povo brasileiro como algo

central nestes meios. Essas raízes e a ruptura com o subdesenvolvimento já vinham

sendo buscadas há algum tempo. Adotando o conceito de romantismo revolucionário, o

autor percebe que este período foi marcado pela utopia da integração do intelectual com

o homem simples do povo brasileiro, supostamente não contaminado pela modernidade

capitalista, podendo dar vida a um projeto alternativo de sociedade desenvolvida. Esse

tipo de romantismo caracterizou as artes, as ciências sociais e a política do período. Esse

período também se caracterizou por procurar no passado uma cultura popular genuína,

para construir uma nova nação, antiimperialista, progressista, no limite, socialista.

Ridenti analisa os meios artísticos e intelectuais de esquerda, que se julgavam

populares, e não propriamente o povo. 161

Ridenti chama atenção para o fato de haver grupos mais românticos que outros,

mas todos respiravam e ajudavam a produzir a atmosfera cultural e política do período,

impregnada pelas idéias de povo, libertação e identidade nacional – idéias presentesde

160 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2001, p.107.161 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio deJaneiro: Record, 2000.

80

longe na cultura brasileira, mas, que a partir, especialmente dos anos cinquenta,

passaram a misturar-se com influências de esquerda, comunistas ou trabalhistas. O

romantismo das esquerdas não era somente uma volta ao passado, mas era também

modernizador. Buscava no passado elementos para a construção da utopia do futuro.

Visava-se resgatar um encantamento da vida, uma comunidade inspirada no homem do

povo, cuja essência estaria no espírito do camponês e do migrante favelado a trabalhar

nas cidades. A volta ao passado seria a inspiração para construir o homem novo,

propunha-se pensar a superação da modernidade capitalista cristalizada nas cidades e

não a mera condenação moral das cidades e a volta ao campo. 162

Segundo Ridenti, no início dos anos sessenta, a conjuntura nacional levou

muitos artistas a se aproximarem de propostas nacional-populares, a partir do final dos

anos cinquenta, militantes animados por ideais comunistas ajudaram a criar movimentos

artísticos e culturais importantes, autônomos e diversificados, como o Teatro Paulista do

Estudante, e o Teatro de Arena em São Paulo, os CPCs (Centros Populares de Cultura)

em todo Brasil, o cinema novo e as publicações da Editora Civilização Brasileira, do

comunista Ênio Silveira. 163

Entre sessenta e 62, um grupo de jovens cineastas, dentre eles Nelson Pereira

dos Santos, Ruy Guerra e Glauber Rocha, clamavam a necessidade de um cinema que

falasse do Brasil,não o Brasil moderno da bossa nova, mas o Brasil pobre, rural e

opressor. De acordo com Ridenti, falar do povo pelo povo, dar a palavra ao próprio

povo, as variantes e debates eram muitos, mas o centro continuava sendo a busca das

raízes do autêntico homem do povo, cuja identidade nacional seria completada

verdadeiramente no futuro, no processo da revolução brasileira. Essa busca do nacional

e popular marcou os filmes dos anos sessenta, particularmente do cinema novo, cujos

cineastas foram mudando ao longo do tempo, mas sempre conservando algum aspecto

de sua marca original: a vinculação, de algum modo, ao povo. A busca da brasilidade e

a estreita vinculação entre arte e política também marcaram as experiências do teatro a

partir do final dos anos cinquenta. 164

Nelson Motta, em sua biografia, nos relata suas memórias sobre Ruy Guerra:

162 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio deJaneiro: Record, 2000.p. 25.163Idem, p. 82.164 Idem, ibidem, p.102.

81

“Quando Edu (Lobo) conheceu Ruy Guerra, um cineasta moçambicanomuito politizado de temperamento polêmico, formado pelo Institute DesHautes Études Cinematographiques em Paris, que namorava Nara Leão,encontrou um amigo e um parceiro ideal. Juntos fizeram uma série demúsicas de inspiração nordestina, com melodias ricas sobre harmoniassofisticadas e letras sonoras e políticas, de denúncia social e dechamadas à transformação, como Réquiem e Canção da terra. Etambém canções líricas, mas com imagens fortes e carnais, opostas aosdiminutivos e romantismos da bossa de Copacabana, dos sucessos deMenescal e Bôscoli.” 165

Aleluia166e Reza167músicas frutos desta parceria (Ruy/Lobo), foram gravadas por

Elis. Este relato de Motta nos proporciona o indício da sociabilidade existente entre

músicos, cineastas, jornalistas e teatrólogos em encontros informais, dividindo entre si a

mesma proposta ideológica, descrita mais acima por Ridenti como romantismo

revolucionário. Ruy Guerra, aclamado membro do cinema novo, foi também um

compositor gravado por Elis Regina. Pode-se perceber neste fato o indício de um

diálogo existente entre a escolha musical coadunada com a temática do cinema novo. A

temática do cinema novo, assim como a música popular, almejava a vinculação, de

algum modo, com o povo. Os filmes buscavam retratar a realidade brasileira e seus

temas mais abordados estariam fortemente ligados ao subdesenvolvimento do país,

como se percebe em boa parte da música produzida neste período, afinal não eram todas

as músicas do período que tinham essa conotação.

De acordo com Echeverria, no final de 64, Elis arranjou um namorado. Solano

Ribeiro tinha 25 anos, e era um jovem politizado à procura de seu caminho. Trabalhava

na produção musical do programa Bibi Ferreira, na TV Excelsior, em São Paulo. Em

entrevista à autora, Solano relata:

“Existia um envolvimento político muito grande nessa época. Eu vinhado Teatro de Arena e era um radical aos 25 anos. Não admitia que Eliscantasse Tom Jobim, para se ver até onde chegava minha imbecilidade.Brigava muito com ela, e tenho a impressão que exercia uma grandeinfluência, porque ela se deixava mesmo influenciar. E ficou meiopolítica. Ela tinha uma cabeça aberta para cinema, literatura. Foi elaquem me levou para assistir Deus e o diabo na terra do sol, de GlauberRocha, no Cine Metrópole, em São Paulo.” 168

165 MOTTA, Nelson. Noites tropicais. Solos, improvisos e memórias musicais. Editora Objetiva, 2000, p.44.166 Parte do repertório do LP Samba eu canto assim (1965).167 Parte do repertório do LP Dois na Bossa (1965).168 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, p. 35.

82

Este relato nos informa sobre o interesse de Elis por cinema e pela literatura, e

como a politização se faria presente em sua vida, desde o início de sua carreira no Rio-

São Paulo, fosse através da influência exercida pelo namorado, ou mesmo pelos filmes e

peças que assistia. Aqui, vale lembrar que o filme Deus e o diabo na terra do sol169,

lançado em 1964, foi um filme muito significativo para o cinema brasileiro e que

certamente influenciou a vida artística de Elis, com seu conteúdo político/social

principalmente quanto à sua temática nacional-popular.

Outra citação de Motta nos faz refletir mais uma vez acerca do diálogo presente

no meio artístico, desta vez unindo música e teatro, tendo sempre como pano de fundo o

ideal de conscientização do povo brasileiro:

“Dori foi contratado para ser o diretor musical do show Opinião, criadopor Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Armando Costa e FerreiraGullar e dirigido por Augusto Boal, com Nara Leão dividindo a cenacom o sambista carioca Zé Keti e o compositor nordestino João doVale. Numa tarde de verão, olhando o mar de Copacabana, assistifascinado a uma reunião no apartamento de Nara, com Boal falandosobre a necessidade de fazer oposição ao governo militar, deconscientizar o povo, de denunciar as injustiças, prisões e perseguiçõese de integrar a música com os movimentos populares.” 170

No ano de 1965, além de frequentar o cinema, acompanhada pelo namorado

Solano171, Elis também frequentava peças de teatro. Nos mapeamentos musicais

realizados por Severiano e Mello, pode-se perceber não só a presença de Elis, como o

seu desejo em gravar parte do que ouvira inserido no espetáculo Arena Conta Zumbi:

“O ouvido apurado de Elis Regina para detectar o potencial de umacanção relativamente pobre e transformá-la em sucesso seria posto àprova pela primeira vez em Upa neguinho. A princípio grafada comoUpa negrinho, a composição era cantada por Gianfrancesco Guarnierina peça Arena Conta Zumbi, estreada no Teatro de Arena de São Pauloem 1.5.65. Refere-se sua letra a um personagem, menino cafuzo, aquem se pede pra crescer depressa, na expectativa talvez, de que um diapossa ajudar a melhorar um mundo onde a liberdade é apenas umaesperança. Em sua simplicidade, Upa neguinho era quase uma vinheta,que servia de ligação entre algumas cenas. Mas, ao ouvi-la, Elis bateupé e só sossegou quando obteve a permissão para gravá-la, quebrando a

169 Seu enredo conta a história de um sertanejo nordestino chamado Manoel e sua mulher Rosa e a sofridavida no interior do país, uma terra marcada pela seca. Manoel sentindo-se injustiçado por um coronel poruma questão de partilha acaba matando-o. Depois do assassinato decide juntar-se a um grupo religiosoliderado por um santo que lutava contra os grandes latifundiários e buscava o paraíso após a morte.170 MOTTA, Nelson. Noites tropicais. Solos, improvisos e memórias musicais. Editora Objetiva, 2000,p.70.171 Fato citado por Solano em seu livro RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração – A História dos Grandefestivais. São Paulo: Geração Editorial, 2002, e em depoimento à Regina Echeverria em ECHEVERRIA,Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007.

83

resistência de Edu Lobo, que tudo fez pra que ela desistisse. Aoapresentá-la em cena, Guarnieri era acompanhado por um trio de flauta,violão e percussão, já tendo a canção na ocasião a famosa introdução,com o acorde de quinta diminuta sob a quarta nota, que funcionavacomo um chamamento para o refrão: “Upa neguinho na estrada/upa pralá e pra cá/virge que coisa mais linda/upa negrinho começando aandar...”Mas, não existiam os breques com percussão, que seriamcriados por Elis nos versos “capoeira/posso ensinar/ziquizira/possotirar/valentia/posso emprestar/mas liberdade só posso esperar...” Elistambém acentuou com palmas e sem vocal a quarta repetição da fraseda introdução, que entoava “PA-ta-ta-trii-trii-triipa-ta-ta...”, fechandosua interpretação com um adorso final, que não existia na peça. Pode-seassim dizer que a cantora reinventou a música, ao adaptá-la ao seupróprio estilo. Isso ocorreu com mais duas canções da peça, tambémincorporadas ao seu repertório: A mão livre do negro, que virouEstatuinha, e Zambi no Açoite, transformada em Zambi...172

Considerando as citações analisadas como uma aproximação da realidade e a

ênfase na utilização de variadas memórias, tenho como objetivo elucidar como se

pensava a realidade brasileira, em uma tentativa de traduzir as sensações presentes

naquele momento. Através da análise dos depoimentos, percebe-se que os compositores

gravados por Elis, inseridos neste universo artístico dos anos sessenta, como Carlos

Lyra, Ruy Guerra, Edu Lobo, dentre outros, faziam parte de mais de um movimento

artístico, mostrando que as barreiras que as separavam não eram rigorosas, sequer

existiam.

Alguns artistas deste período, pelo menos os citados neste capítulo, tinham o

desejo de construir uma arte mais comprometida com a realidade social. Podemos

perceber um trânsito e fortes influências de idéias e concepções circulando entre os

cineastas, músicos, atores e também jornalistas; além da presença de Elis em teatros e

cinemas, levando para suas músicas conteúdos destas artes, como é o caso de Upa

neguinho, supracitado.

Espetáculos musicais, dentre eles o Opinião, que estreou no dia 11 de Dezembro

de 1964, traduziram um grande debate no cerne da cultura popular-nacional, que

passava por um momento de autoquestionamento. Depois do golpe militar, a ênfase se

voltou para os elementos populares, fazendo com que estes dessem sentido ao nacional,

antes do golpe era mais comum que o nacional configurasse o popular, e a canção

engajada era caracterizada por uma tentativa de adequação entre sofisticação estética e

pedagogia política, na busca de um produto cultural nacional de alto nível. A forma

assumida pela arte engajada para resolver o impasse entre “ser popular” ou

172 SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicasbrasileiras, vol. 2: 1958-1985. São Paulo: Ed. 34, 1998, pp.102-103.

84

“popularizar-se”, acabou conduzindo a novos impasses na medida em que, entre o

artista e o povo, se impunha cada vez mais a mídia e a indústria cultural, sobretudo na

música popular. 173

De acordo com Napolitano, a discussão se acirrava ainda mais quando entrava

em jogo a crescente indústria cultural e a questão do engajamento musical. Duas

posições se tornaram cada vez mais nítidas nessa discussão: os “nacionalistas”, que

desejavam fortalecer os “gêneros convencionais de raiz” e o conteúdo nacional-popular

da música brasileira, dentro da indústria cultural; e os “vanguardistas”, no sentido de

questionar o código cultural vigente na MPB, recuperando alguns parâmetros formais

da bossa nova. 174

Em um momento em que se discutia a questão da tradição e da modernidade, do

nacional e do estrangeiro, Elis Regina caminhava unindo essas duas vertentes e não

descartando e sim unindo essas duas vertentes; não abandonava o samba, considerado

“tradição”, apesar de sua interpretação lembrar muito a das divas do rádio; no entanto, a

modernidade pode ser percebida pela influência do jazz norte-americano em suas

músicas, visto como o que havia de mais “moderno” até então.

Na carreira de Elis, a partir de 1965, após sua mudança para o Rio e a com a

gravação do LP Samba eu canto assim, percebo que não havia uma barreira fixa entre os

conceitos “modernidade” e “tradição”, assuntos debatidos naquele momento, e sim que

Elis transitava entre os dois, se aproveitando e misturando ambos à sua maneira. Elis

buscava mesclar diversas influências, sem se atrelar fixamente a nenhuma delas. Elis

utilizou-se também do samba-jazz, no entanto bem diferente daquele adotado pela bossa

nova, com a utilização de pouco instrumental e foco no violão. A influência do jazz

aparece principalmente na execução dos instrumentos, bem como em sua escolha:

piano, bateria e baixo. Esses elementos se manifestam simultaneamente e, em especial,

nesta fase da carreira de Elis, que vai de 1965 até 1968, o que acontece depois deste

período será analisado no capítulo seguinte.

Privilegiou-se essa análise do nacional-popular em um trabalho sobre Elis, para

melhor entendermos o período no qual ela está inserida e de que maneira ela dialogou

com ele. A relação de uma artista com o denso movimento cultural dos anos sessenta

nos mostra como as outras artes influenciaram seu trabalho, já que Elis assistia a filmes

173 NAPOLITANO Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). 3 ed. – São Paulo:Contexto, 2006. – (Repensando a História), p.52.174 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2001, p. 107.

85

e também a peças teatrais que tratavam de um assunto comum, a realidade brasileira

com seus problemas e possíveis soluções. A maneira como se configurou o nacional-

popular em sua obra será abordado mais adiante, de acordo com cada LP lançado por

Elis a partir de 1965, quando a temática passa a fazer parte de seu repertório.

O povo brasileiro se configurou em tema presente nos diferentes meios artísticos

daquele momento. Reflexões sobre o cenário social e político se fizeram presentes nas

canções, peças175 e filmes176 do período. No entanto, minha análise tem como enfoque a

maneira como Elis Regina cantou este povo brasileiro, demonstrando seu papel

enquanto uma “cantora conscientizadora” através de seu trabalho artístico, afinada com

as propostas dos artistas de sua época.

2.3 – Elis e a televisão

De acordo com Sonia Wanderley:

“Após o golpe militar, por exemplo, artistas e escritores assimiladospela tevê, passam a vê-la como um espaço cultural que permitiria oresgate dos ideais do nacionalismo-popular, devidamente recicladospara fazer parte da indústria do entretenimento. A concepção de arteengajada, que marcou tão intensamente o debate político e cultural napassagem da década de 1950 para 19sessenta, adaptava-se à culturapopular de massa e aí encontrava um espaço.” 177

Segundo Renato Ortiz, pode-se perceber a década de 1950 como um período

marcado por uma série de improvisações e de experimentação na área da programação

televisiva, que ainda buscava sua estrutura definitiva. Segundo o autor, os

empreendimentos culturais de cunho mais empresarial se multiplicaram nos anos

cinquenta. Primeiro a introdução da televisão na cidade de São Paulo (1950), seguida de

sua expansão para outros locais: Rio de Janeiro (1950), Belo Horizonte (1955), Porto

Alegre (1959). Neste período, são formadas as primeiras entidades profissionais, como

175 Arena conta Zumbi, Opinião e outros.176 Os do cinema novo como Deus e o diabo na terra do sol, por exemplo.177 WANDERLEY, Sonia Maria de Almeida Ignatiuk. Eu vi o Brasil na tevê: Estado e televisão nos anos1950/sessenta. Artigo realizado para o XIII Encontro de História Anpuh-Rio, Identidades, 2008.

86

a Associação Brasileira de Agência e Propaganda (1958), e lançadas revistas

especializadas como Propaganda (1956). 178

Em 1952, o Brasil possuía dois milhões e quinhentos mil aparelhos de televisão,

número que sobe para quatro milhões e setecentos mil receptores dez anos depois. Em

1962, tinha-se, considerando a população total do país, uma razão de 6,6 aparelhos para

cada 100 habitantes, o que colocava o Brasil no 13° lugar dos países da América Latina.

Devido ao baixo poder aquisitivo de grande parte da população, havia uma dificuldade

real em se comercializar os aparelhos de televisão, que no início eram importados, e

somente a partir de 1959 começam a ser fabricados em maior número no Brasil.

Resumido no eixo Rio-São Paulo existiam somente alguns canais. Não havia sistema de

redes e os problemas técnicos eram consideráveis.179

Ortiz mostra, através do investimento publicitário nos diferentes meios de

comunicação e do limite do sistema televisivo como elemento de promoção comercial

em 1958, que as verbas aplicadas na TV atingiram 8%, contra 22% no rádio e 44% nos

jornais. Fato que mostra como as agências de publicidade preferiam os meios mais

“tradicionais” para anunciarem seus produtos. 180

A música popular brasileira triunfara na TV somente em meados dos anos

sessenta, quando o humor já se repetia e as telenovelas ainda não haviam encontrado um

formato ideal, como gêneros centrais da grade de programação das principais emissoras.181

Segundo Echeverria, chegando ao Rio, Elis procurou Armando Pittigliani na

Philips, que cumpriu sua promessa de contratá-la para gravar um disco. Elis abandonou

a CBS. Dois meses depois, em maio, assinou contrato com a TV Rio e foi escalada para

o Noites de Gala, programa célebre da época, um dos carros-chefe da emissora, onde se

apresentou ao lado de Marly Tavares, Trio Iraquitan, Jorge Bem e Wilson Simonal. No

programa, conheceu Dom Um Romão182, que a levou para o Beco das Garrafas, uma rua

apertada, a Rodolfo Dantas, em Copacabana. Desde a década de cinquenta, a lateral do

178 ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira, Cultura Brasileira e Indústria Cultural. SP,Brasiliense, 1988, p.44.179 Idem, p. 47.180 Idem, ibidem, p. 48.181 NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias: a questão da tradição na música popular brasileira.São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1º edição, 2007. (Coleção História do Povo Brasileiro), p.87.182 Instrumentista (baterista e percussionista). Compositor. Para maiores informações consultar:http://www.dicionariompb.com.br/dom-um-romao/biografia. Acessado em 21/02/2011.

87

37 abrigava, no térreo, uma sucessão de boates. No Little Club e Bottle’s, os pocket

shows eram produzidos e dirigidos pela dupla Miele e Bôscoli. 183

Assim Elis descreve seu início de carreira no Rio de Janeiro:

“Eu cheguei nos lugares pelas mãos que menos tinham a ver comigo.Fui trabalhar na TV Rio indicada por Paulo Gracindo. Eu faziaescolinha: Jorge, Marly Tavares, Simonal, Trio Irakitan e eu. OEdinho era professor e a gente aluno. Dom Um me ouviu cantar e meconvidou para cantar junto com ele, Salvador e Gusmão no Beco dasGarrafas. Eu era uma espécie de crooner do conjunto. Depois as coisasforam se aprumando, saí do Beco e fui para o Paramount e Festival,acabei no Fino da Bossa, acabei na televisão.”184[grifos meus]

Este depoimento de Elis nos oferece informações de que logo cedo, em sua

carreira carioca, a cantora faria parte da programação veiculada pela televisão. No

entanto, a televisão não era tão presente na vida dos brasileiros neste momento e sabe-se

que Elis foi uma importante peça nesta institucionalização da TV como um forte meio

de comunicação. 185

Sobre o período inicial de sua carreira carioca/paulista, Elis conta que:

“No fim de 64 fui chamada pelo Dom Um Romão para o Beco das Garrafaspara cantar com um conjunto dele. Não era bem uma crooner, mas uma cantoranova que eles estavam precisando para fazer o show. Aí começou o negócio queeu estava esperando a um tempo: fazer uma música que eu achava coerente comtodas as coisas que eu gostava. Uma música que harmonicamente fosse rica, quetivessem coisas a serem ditas, que tivesse um certo sentimento de duração, queperdurasse um pouco mais que um programa de televisão. Depois o WalterSilva me chamou para os Festivais de Música, aqui, no Teatro Paramount –eram aqueles famosos festivais contratados pelos Diretórios Acadêmicos devárias faculdades. Eu vim e fui ficando por São Paulo. Em seguida houve o1°Festival de Música, em 1965, eu ganhei,então veio o Fino da Bossa e aquelascoisas que todo mundo sabe.”186

Analisando as informações de Zuza Homem de Mello e outros autores187,

percebo que os primeiros formatos de programas musicais televisivos, já no final da

década de cinquenta, eram mesclados com humor, entrevistas e presença de pessoas

ilustres. Ainda incipiente, a programação apostava em várias frentes, como comédia,

números musicais e entrevistas, para agradar a uma larga faixa de espectadores.

183 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, p. 32.179 Programa MPB Especial produzido por Fernando Faro em 1973 pela TV Cultura.185 Ver em A síncope das idéias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: EditoraFundação Perseu Abramo, 1º edição, 2007. (Coleção História do Povo Brasileiro).186 “Elis: da necessidade de se manter viva.” Última Hora (21/07/74) Apud PACHECO, Mateus. Elis detodos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção. Dissertação (mestrado) – Universidade deBrasília. Departamento de História, 2009.187 Dentre eles CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. – São Paulo:Companhia das Letras, 1990.

88

No próximo tópico, analisarei a participação de Elis no programa musical O

Fino da Bossa. Este programa que, juntamente com outros programas musicais e os

festivais de música popular brasileira, modificaria o cenário televisivo brasileiro.

2.4 - O Programa O Fino da Bossa

Napolitano afirma que, o processo cultural que definitivamente ampliou o

público da MPB engajada e nacionalista, foi a aliança deste gênero com a televisão.

Como exemplo máximo desse processo, temos o programa O Fino da Bossa,

apresentado por Elis e Jair Rodrigues. Ao longo dos anos cinquenta, a televisão era uma

novidade acessível somente às faixas mais ricas da população das grandes cidades

brasileiras. Com a introdução do vídeotape (que permitia gravar, editar e reproduzir

programas, que até então eram feitos ao vivo), a televisão ganhou novos recursos e

aprimorou seu aparato tecnológico de produção e transmissão de programas. A partir de

1965 os programas musicais, sobretudo os festivais da canção, trouxeram novos

públicos para o veículo. 188

Considerando que grande parte do acervo da emissora TV Record foi destruído,

devido a um incêndio, na década de sessenta189, e perdido por causa de constantes

regravações de programas sobre materiais antigos, faremos uso de depoimentos e de

jornais referentes a esta época, além da análise dos LPs 2 na Bossa, que de certa forma,

podem ser caracterizados como uma extensão do programa O Fino da Bossa.

Segundo Solano, depois da vitória com Arrastão, no I Festival de Música

Brasileira, realizado pela Tv Excelsior, em 1965, em um momento de tênue

reconciliação entre os dois, causado pelo fim do relacionamento amoroso dos dois,

perguntou a Elis se gostaria de assinar um contrato com a TV Excelsior. Ela disse sim,

desde que pagassem seiscentos mil cruzeiros por mês. Na época, ela ganhava oitenta mil

na TV Rio. Kalil Filho levou a proposta a Edson Leite, o então diretor-geral, que deu a

resposta: “Não temos o que fazer com ela”. Poucos dias depois, em negociação

intermediada por Marcos Lázaro, Elis Regina assinava com a TV Record um contrato

de seis milhões de cruzeiros, para apresentar O Fino da Bossa, programa que deu início

188 NAPOLITANO Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). 3 ed. – São Paulo:Contexto, 2006. – (Repensando a História), p.55.189 Informações contidas no site: http://antecedentestelevisivos.blogspot.com/2007/10/incndios.html.Acessado em 03/01/2011.

89

à impressionante ascensão da Record. Com uma apresentação toda baseada em

musicais, desbancou a Excelsior e a Tupi, e depois, no festival de 1965, conquistou o

primeiro lugar nas pesquisas, onde permaneceu por alguns anos, e muitos milhões de

dólares. 190

O programa foi ao ar de 1965 a 1967 e, como apostou a TV Record, teve altos

índices de audiência em todo o seu período de existência; foi produzido pelo núcleo da

chamada equipe A, constituída por Manoel Carlos, Nilton Travesso, A. de Carvalho,

João Evangelista e Horácio Berlinck. Sua proposta era mesclar qualidade, popularidade,

tradição e modernidade da música popular brasileira, com um repertório claramente de

linha nacional-popular, o programa era comandado pela animação dos apresentadores

Elis e Jair, que cantavam, dançavam e recebiam convidados especiais no programa,

entrevistando-os ou realizando números musicais com eles. As músicas eram tocadas

pelo Zimbo Trio, e dentre os convidados figuravam nomes como Dorival Caymmi, Nara

Leão, Edu Lobo, Chico Buarque, Adoniran Barbosa, Ciro Monteiro.

O próprio título do programa, o Fino da Bossa, se encarrega de associar seu

nome às conquistas sonoras e consideradas modernas da bossa nova. No entanto, este

fato não impediria Elis e Jair de conciliarem a este outros gostos musicais; Elis tinha em

João Gilberto uma referência, mas também a tinha em Ângela Maria e Cauby Peixoto.

Nesta época, Elis juntava a sua adoração pelas grandes vozes do rádio, além da tradição

dos sambistas do morro.

Assim era definido o programa, em 1967, pelo Jornal do Brasil:“Com um excelente repertório, cantando músicas de Vinícius, CarlosLira, Baden Powell, Ataulfo Alves, Cartola e dos velhos compositoresdo samba, Elis Regina enquanto ampliava seu público, obrigava-o adiscutir e defender a música brasileira. (...) Houve uma época, emmeados de 1965 e começo de 1966, em que se formou, naturalmente, e– depois com uma linha de ação – um movimento Nacional de MúsicaPopular Brasileira. Elis Regina, em São Paulo, e Nara Leão no Rio deJaneiro, trabalharam sem cessar para divulgação da nossa música,enfrentando um grande adversário, que aqui chegou munido de todas asarmas, com uma engrenagem publicitária colossal: o iê-iê-iê.” 191

Um jornal de amplo alcance e reconhecimento dava à Elis o status de defensora

e divulgadora da música nacional brasileira, juntamente com Nara. É interessante

190SOLANO, Ribeiro. Prepare seu coração – São Paulo: Geração Editorial, 2002, p. 74.191 “Dois anos de Bossa com sucesso”. Jornal do Brasil (28/05/1967) Apud PACHECO, Mateus. Elis detodos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção. Dissertação (mestrado) – Universidade deBrasília. Departamento de História, 2009.

90

notarmos o caráter de guerra que o jornal visualiza em uma situação de embate com a

Jovem Guarda.

Em 1974, Elis responde à Revista Veja:

“... aparecia muita gente nova (ou muito antiga) para fazer o Fino. Contudo, pormais extenso que fosse, não havia espaço para todos. E, em vez de assumirem aresponsabilidade pelos cortes, os responsáveis pelo programa jogavam-na paracima de mim, dizendo que eu não gostava deste ou daquele, que preferia umterceiro. Ora, meu temperamento, de fato, sempre foi explosivo, difícil.Juntavam-se as duas coisas, o boato e a minha personalidade irritadiça, e pronto– nascia a fama.”192

De acordo com Napolitano, o Teatro Paramount unia, em seus shows

universitários, o samba “autêntico” à música moderna, aprofundando a busca da síntese

entre a bossa nova “nacionalista” e a tradição do samba. Espetáculos esses que,

posteriormente, se transformariam no programa O Fino da Bossa. Essas apresentações

passaram a representar uma cultura de oposição jovem, nacionalista e de esquerda, mas,

ao mesmo tempo, sofisticada e moderna. 193

É interessante pensarmos nos agentes que criaram estes rótulos e também o que

eles significam, pois muitas vezes o povo que se buscava representar não estava de fato

representado nestes espaços e músicas ditas “nacionalistas”. Estes rótulos, muitos deles

criados por intelectuais, jornalistas e artistas engajados, ao tentarem descrever a música

deste período, acabavam por reproduzir determinados jargões, como samba “autêntico”

ou de “oposição” sem, no entanto, dar voz a esse povo idealizado e em pouco contato

com os criadores de certas ideologias.

De acordo com Napolitano:

“Os musicais de televisão eram antigos, mas até o início dos anossessenta disputavam o público com o rádio. Com os musicais semanais,(O Fino da Bossa, Bossaudade, Ensaio Geral, entre outros) consolidou-se uma nova linguagem musical e televisiva. Elis Regina, que, ao ladode Jair Rodrigues, comandava o programa, agradava ao gosto musicaldos ouvintes do rádio, introduzindo as novidades e estilos musicais dabossa nova. O sorriso e o gestual de Elis, considerados por muitosexagerados, eram perfeitos para o novo veículo, criando uma empatiacom a sensibilidade do público mais amplo, que permanecia ao largodas sutilezas de João Gilberto, Tom Jobim e outros.” 194

Elis declarou a importância do programa em sua vida:

192 LANCELLOTTI, Silvio. (entrevistador). “Quero apenas cantar”. Revista Veja 01/05/1974.193 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2001, p.sessenta.194 NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). 3 ed. – São Paulo:Contexto, 2006. – (Repensando a História), p.55.

91

“O Fino da Bossa pra mim foi tudo. Foi tudo de bom e tudo de ruimque podia acontecer na vida de uma pessoa. Evidentemente depois depassado o tempo eu tenho saldo positivo maior que o negativo. Muitosequívocos foram criados e foram gerados por causa do Fino da Bossa.Ao mesmo tempo que muita gente ficou satisfeita porque apareceu noFino da Bossa houve muita gente que não pôde aparecer no Fino daBossa. O Fino da Bossa tinha como líder uma pessoa geniosa,temperamental e que tem o péssimo defeito de dizer tudo o que pensaou seja, uma pessoa que não nasceu para viver em sociedade, Em cimadessa sinceridade muita coisa de verdade e de mentira foram ditas...”195

Em outra entrevista Elis conta que:

“Acho que a minha prática de baile é que segurou a barra do Fino daBossa. O negócio de crooner de orquestra, de conjunto instrumental foio que segurou. Tinham dois cantores brasileiros que eu gostava. Um erao Cauby Peixoto (...). Agora, eu cantava muita coisa do Chet Backer, doNat King Cole. Tenho a impressão de que me liguei mais nessa do JoãoGilberto porque já tinha ouvido o Chet Backet num disco que ele tocapiston e canta. Quando pintou o João Gilberto houve uma espécie desimbiose, uma ligação muito forte. Eu não procurava cantar como eles,observava muito a técnica de emissão, sustentação de nota, essas coisas.O vibrato era uma coisa que me fascinava muito, e neles, quaseinexistia. É a marca dos dois. Mas na hora de cantar mesmo, eu meligava mais na mulherada, no jeito que a mulher cantava.Quando eupintava cantando, pintava de Ella Fitzgerald, essas coisas.No Brasil,Ângela Maria nota 10.”196

Esta citação além de nos informar sobre a formação musical de Elis, que reunia

cantores de rádio brasileiros, como Cauby, cita também importantes nomes do jazz.

Evidencia, ainda, o fato de que Elis observava as técnicas utilizadas por estes cantores,

como a emissão e sustentação de notas, mais uma vez nos indicando que sua

aprendizagem muitas vezes se processou pela escuta. Sua predileção por Ângela Maria

também se reafirma aqui. Elis cita as apresentações como crooner como as responsáveis

por sua desenvoltura e versatilidade, no entanto, não esclarece se estas apresentações

foram aquelas feitas ainda em sua adolescência no Rio Grande do Sul, ou se foram as

realizadas já no Rio de Janeiro, ou ambas.

Jair Rodrigues, em 1991, no programa Ensaio, além de contar fatos de sua

infância, sobre o início de sua carreira e suas influências musicais, fala sobre o

programa O Fino da Bossa:

195 Programa MPB Especial produzido por Fernando Faro em 1973 pela TV Cultura.196 Texto do encarte do cd Elis no Fino da Bossa ao vivo volume 2.

92

“1965 é uma fase que ninguém pode esquecer, foi áurea para a músicapopular brasileira, muito boa, espetacular para quem tava começando,quem queria começar. Me lembro que fui chamado por Corumba (seuempresário) quando estava jogando futebol. Ele mandou trocar deroupa, tomar um banho que teria um ensaio, que eu iria fazer um show.Fui para o Teatro Paramount, me lembro que era dia 8 de abril de 1965.Cheguei, dei de cara com Walter Silva que disse que eu iria apresentar oespetáculo com Elis Regina. Cido era o pianista, Sabá irmão do LuizChaves do Zimbo Trio e o baterista Toninho. Nada menos que osimplesmente fabuloso Jongo Trio. Eu já tinha um certo nome, já tinhagravado Deixa que digam e também Feio não é bonito e O Morro nãotem vez em 63, 64. O Walter Silva pediu algo para o final e com umcaderninho eu e Elis escolhemos aqueles pot-pourris de samba.”197

Walter Silva, em seu livro de memórias, nos conta que o sucesso do show O

Fino da Bossa, produzido pelos meninos da Faculdade de Direito do Largo de São

Francisco, tendo à frente Horácio Berlinck, tinha animado as outras faculdades, que,

visando angariar fundos para suas instituições, geralmente beneficentes, viam na nova

maneira um caminho útil para realizarem seus anseios. Silva conta, ainda, que passou a

ser procurado por estudantes de várias faculdades, que solicitavam a produção de

shows. Esse show sem nome teria que ficar três dias em cartaz e apresentava uma

cantora que já havia sido testada pelo público e começava a aparecer, Elis Regina, e Jair

Rodrigues. Ao contrário do que afirma Motta, Silva diz que não produziu o show, mas

que colaborou na divulgação, através de seu programa e na produção do disco, lançado

posteriormente pela RGE. O autor salienta ainda que, tempos depois, a TV Record

contratou todos os artistas lançados por ele no Paramount e estreou um programa com o

título O Fino da Bossa, utilizando-se do título que Horácio Berlinck havia produzido

para o Centro acadêmico XI de Agosto. A Record foi processada e obrigada a retirar o

nome do programa, que passou a chamar-se apenas O Fino.198

De acordo com Mello, havia também outros programas musicais como o

Bossaudade, apresentado por Cyro Monteiro e Elizete Cardoso, estreando na TV

Record, com o Regional do Caçulinha, em 1966. Os três programas Bossaudade, O

Fino da Bossa e Jovem Guarda atendiam praticamente a todas as tendências da música

popular brasileira, genericamente rotuladas como bossa nova, velha guarda e jovem

guarda respectivamente.199

197 Jair Rodrigues. Programa Ensaio – 1991. Produzido pela TV Cultura. Programa dirigido por FernandoFaro.198 SILVA, Walter. Vou te contar – Histórias de música popular brasileira. – São Paulo: Códex, 2002.199 MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo: Ed. 34, 2003. (Coleçãotodos os Cantos), p.114.

93

Segundo Mello, no verão de 1966, enquanto Elis viajava pela Europa, a

audiência do Jovem Guarda crescia assustadoramente, alavancada pelo sucesso de

Roberto Carlos, Quero que vá tudo pro inferno. Quando Elis retornou, no dia 5 de

março, encontrou um ambiente completamente diferente do que deixara em dezembro.

O Fino perdia feio para o Jovem Guarda, em termos de audiência, a juventude da bossa

era dominada pela galera do iê-iê-iê. 200

Ao tratarmos deste período, é imprescindível levarmos em conta o debate

estético que se travou nesta época acerca das verdadeiras raízes da Moderna Música

Popular Brasileira, que se confundia com questões político-ideológicas. Em 1967, no

dia 18 de Julho, sairia do Largo São Francisco, no centro de São Paulo, seguindo até o

templo da bossa nova, o Teatro Paramount, uma passeata pela MPB contra as guitarras

elétricas. O evento tinha à frente Elis Regina, Gilberto Gil, Jair Rodrigues, Edu Lobo,

dentre outros. A passeata era, na verdade, um evento de lançamento do novo programa

da Record, Noite da MPB, que deveria suceder O Fino da Bossa, porém acabou sendo

vista como uma manifestação ideológica contra a turma do iê-iê-iê. Em relação a esa

passeata, Caetano Veloso declarou que: “... Ficou claro para nós que todo aquele

folclore nacionalista era um misto de solução conciliatória para o problema de Elis

dentro da emissora e saída comercial para os seus donos...”. 201 Este episódio é um fato

relevante a ser analisado nesta dissertação, uma vez que demarca uma forte adesão de

Elis ao problema ideológico nacionalista, tão debatido naquele momento, a ponto de

estar à frente de tal passeata.

De acordo com Mello, a Record tentaria solucionar a crise do Fino substituindo-

o e se aproveitando do chavão político da Frente Ampla entre Carlos Lacerda, Juscelino

Kubitschek e Jango – Frente Única – Noite da Música Popular Brasileira, com os

principais contratados da emissora, Elis, Jair, Vandré, Simonal, Chico, Nara e Gil, que

levou Caetano a tiracolo, em uma clara tentativa de reconduzir Elis aos índices de

audiência que tivera. No entanto, o programa não emplacou e não chegou a completar

três meses de existência sequer. Foi uma fase de “maré baixa” para Elis.202

200 MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo: Ed. 34, 2003. (Coleçãotodos os Cantos), p. 119.201 Caetano Veloso Apud COUNTIER, Arnaldo. Edu Lobo e Carlos Lyra: a nacional e o popular nacanção de protesto. Revista Brasileira e História, v.18, n. 35, ANPUH, 1998. p. 13-52.202 MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo: Ed. 34, 2003. (Coleçãotodos os Cantos), p. 178.

94

2.5 – Elis nos festivais

Mello afirma que, a partir do I Festival da Excelsior, do qual Elis sairia campeã,

programas musicais na televisão seriam outra coisa, uma coisa única no mundo. Ele diz,

ainda, que pela primeira vez na história da televisão brasileira, quem estava em casa

teria um contato direto com o que acabava de sair do forno, a nova usina de produção da

música popular, a privilegiada geração dos anos sessenta. Na sua opinião, esse público

tinha liberdade de avaliar de imediato a nova canção, influenciado ou não pelas platéias.203

Solano Ribeiro criou, na TV Excelsior, o I Festival de Música Popular Brasileira

e depois foi para a Record, onde criou os Festivais da Record.204 A intenção de Solano

em sua autobiografia é contar sua trajetória profissional, avaliando a importância que

teve o período chamado por ele de “o ciclo dos festivais”, que vai de 1965 a 1972, e

para ele a importância deste ciclo se deve ao fato de peculiaridades políticas, sociais e,

por que não dizer, musicais.205De acordo com Solano:

“Os festivais romperam o ritual das gravadoras e do rádio, tendo setransformado na grande porta para o novo. Também passou a ser nova apostura da televisão em relação à música popular, tendo sido, ao mesmotempo, sua maior divulgadora e beneficiária (... ) A repercussão e osucesso dos festivais não teriam acontecido não fosse a escolha datelevisão como seu veículo, que então começava a ter coberturanacional e dava os primeiros passos no conceito de rede, na época jáconsagrado como sistema (network) nos Estados Unidos.” 206

Solano descreve que, no Brasil, as gravadoras eram, em geral, ligadas às suas

matrizes internacionais que, por sua vez, direcionavam a política e a filosofia do que

deveria ser gravado e tocado nas rádios. O autor afirma, ainda, que não conseguiria

fazer um trabalho isento, se dependesse da indústria do disco, embora soubesse que, no

caso do sucesso do festival, ela seria sua maior beneficiada e esse sucesso, mais pra

frente, dependeria do interesse dessa mesma indústria pelos artistas e músicas que ele

iria lançar. Solano resolveu que, para sua independência e lisura do festival, não

permitiria a participação de qualquer editora ou gravadora. Sua estratégia era colocar no

203 MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo: Ed. 34, 2003. (Coleçãotodos os Cantos), p. 74.204 RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração. São Paulo: Geração Editorial, 2002, p.10.205 Idem, p.14.206 Idem, ibidem, p.16.

95

mercado uma porção de músicas, cantores, cantoras e conjuntos musicais, e as

gravadoras que se servissem, de acordo com a sua agilidade e competência.207

Outro importante relato informativo dos festivais é o de Mello:

“Carlos Lyra, Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo, este por suas ligaçõescom o cinema, foram os três compositores que se envolveram de corpoe alma nesse processo em que Chico de Assis, Ruy Guerra e GlauberRocha exerceram influência decisiva. Eles perceberam que a canção,além de expressar seus sentimentos pessoais, também poderia abordar arealidade concreta. A partir desse momento, suas obras dão um saltoimenso e inesperado. A inocência de Lobo bobo, de Lyra e RonaldoBôscoli, parece brincadeira diante de Maria do Maranhão, de Lyra eNelson Lins de Barros. As novas letras atualizam a emoção musical,com diferenças palpáveis tanto em relação às da chamada Época deouro, dos anos 30 e 40, da qual não fazem parte, quanto às do seu berçomusical, a Bossa Nova. As letras desse período, que podiam sercantadas para as namoradas, como entoava Dick Farney, representavamo indivíduo classe média, aquele que podia possuir um barquinho,enquanto as da fase de ouro abordavam sobretudo a ingratidão e amalandragem, temas renegados pela bossa nova. Já o conteúdo dasnovas letras não era nem uma coisa nem outra: abordava o homembrasileiro comum, o que nada possuía, retratando a situação do povobrasileiro naquele momento e o que era preciso fazer para que eletivesse um destino mais feliz. Era essa a realidade tematizada pelo quese conheceria, nos anos seguintes, como música de festival.” 208

Este relato de Mello nos indica que o tema das injustiças nacionais imperar

nestas letras, chegando mesmo a se configurar como militância, pela resistência

democrática e a serviço da luta política, demonstrando que a música do período era uma

espécie de demanda, uma força de resistência contra o regime.

Analisando a presença de Elis nos festivais, 209percebo que poucas foram as suas

participações. Na verdade, ela participou com constância, até meados de 1968, quando

ela parou de participar. Os festivais serviram para impulsionar sua carreira, mas uma

vez consagrada, ela parecia não precisar mais desses espaços. A sua participação e

vitória no primeiro dos festivais veiculado pela televisão foram de grande importância

para sua carreira, pois foi depois disso que Elis passa a apresentar um programa de

televisão juntamente com Jair Rodrigues; é como se o festival a apresentasse e

mostrasse seu potencial para o grande público.

207 RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração. São Paulo: Geração Editorial, 2002, p.68.208 MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo: Ed. 34, 2003. (Coleçãotodos os Cantos), p. 51.209 Informações contidas em A Era dos Festivais: uma parábola, pp. 438-489.

96

De acordo com Napolitano:

“A letra de Vinícius dava seqüência à temática “popular” apontando aunião dos pescadores para vencer as dificuldades de sobrevivência, comcitação ao sincretismo religioso submetido a um uso “consciente” echeio de vitalidade... Através de contornos melódicos que valorizavamos contrastes entre tensão e repouso, sobrevalorizados pela quebra deandamento, a melodia de Arrastão ganhou na voz de Elis um poder decomunicação inusitado para o campo da moderna MPB, demonstradoum novo estilo de “bossa”, na qual a intensidade da voz volta a ser umdos parâmetros principais de interpretação... o retorno de algunsparâmetros “tradicionais” da música popular, como a intensidade vocal,o gestual expressivo e os timbres mais metálicos, ao mesmo tempo emque foram ao encontro de um público mais massivo, pouco adaptado àbossa nova “original”, causaram algum mal-estar entre aqueles quedefendiam a “linha evolutiva” 210 da música brasileira. 211

Sobre o segundo festival, em que Elis ganharia o primeiro lugar, temos o relato

de Solano Ribeiro, que afirma que o protesto dos sambistas, endossado por jornalistas e

críticos de música, principalmente os do Rio de Janeiro, reclamando que o samba não

tinha tido uma presença marcante nos festivais, fez com que fosse criada a Bienal do

Samba em 1968. O sucesso do programa Bossaudade, apresentado por Ciro Monteiro e

Elizete Cardoso, com um elenco basicamente “velha guarda”, justificava ainda mais

essa experiência. Tratou-se de um evento competitivo, cujos participantes foram

escolhidos por uma comissão especial. O resultado final foi: Lapinha, composição de

Paulo César Pinheiro com Baden Powell, cantada por Elis Regina. Com o apoio dos

Originais do Samba, esse número dominou a Bienal desde a sua primeira apresentação e

se tornou imbatível. Além de levar Lapinha ao primeiro lugar, Elis foi, também, a

melhor intérprete. Em segundo lugar ficou Bom Tempo, de Chico Buarque, em terceiro

Pressentimento, de Élton Medeiros e Hermínio Belo de Carvalho.212 Esse fato é de

extrema relevância para nossa análise, uma vez que, em um evento criado com o intuito

de revalorização do samba, Elis Regina não só foi escolhida para representar uma

canção, como saiu vitoriosa, levando o título de melhor intérprete também.

As duas músicas que levaram Elis a ganhar o primeiro lugar nos festivais dos

quais participou, Arrastão e Lapinha213 são músicas que se assemelham em sua

210 Este termo foi criado por Caetano Veloso em meado dos anos sessenta e colocava a bossa nova comomarco zero da música popular brasileira.211 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2001, p. 150.212 RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração. São Paulo: Geração Editorial, 2002, p.93.213 Arrastão: Eh! Eh! Eh! Hoje tem arrastão/ Eh! Todo mundo pescar/ Chega de sombra e João jô vi/Olha o arrastão entrando no mar sem fim/ É meu irmão me traz Iemanjá prá mim/ Olha o arrastãoentrando no mar sem fim/ É meu irmão me traz Iemanjá prá mim/ Minha santa Bárbara me abençoai/Quero me casar com Janaína/ Eh! puxa bem devagar/ Eh! Eh! Eh! Já vem vindo o arrastão/ Eh! É a rainha

97

temática, ambas falam do homem simples, do trabalhador brasileiro, que precisa

trabalhar para sobreviver e que nunca desiste de lutar. Arrastão conta a história de um

pescador que pede auxílio a seus irmãos e a diversos deuses, misturando a religiosidade

afro-brasileira, representada na figura de Iemanjá, com santos católicos, como Santa

Bárbara e Senhor do Bonfim. No entanto, não há nenhuma presença de instrumentos ou

ritmos tocados nos rituais religiosos afro-brasileiros no arranjo. A segunda música trata

da história de um capoeirista, que como último desejo, pede para ser enterrado na

Lapinha com seus pertences, indignado com os erros que viu, lutou, sofreu e por tudo o

que perdeu. .

O trabalho constitui o tema central e também a luta, seja por sobrevivência ou

para se modificar a realidade instaurada. Mesmo tendo suas diferenças – o pescador

como uma figura do trabalhador, o capoeirista, normalmente associado à imagem de

malandro – os personagens destas duas canções se comunicam a partir da constatação

de um cotidiano marcado por dificuldades impostas pela desigualdade social.

Podemos pensar, através destas músicas, na maneira como os artistas deste

período percebiam a realidade brasileira. O homem simples, do povo, o sertanejo de

Glauber Rocha, o capoeirista de Baden e Paulo César Pinheiro, o pescador de Edu

Lobo, são a representação do próprio povo brasileiro e há neles uma marcante força de

luta e de indignação com o sistema vigente.

No entanto, o conhecimento popular, que poderia ser representado através dos

instrumentos ou dos modos de tocar e cantar dos capoeiristas ou de puxadas de rede,

não são sequer mencionados. Deve-se, no entanto levar em consideração as diferentes

formas de se manifestar e construir esse conhecimento do popular, seja através das

letras, ou mesmo a partir de parâmetros musicais, como os arranjos, por exemplo. Os

sujeitos que criam e colocam esses parâmetros em diálogo nem sempre são os mesmos,

aliás, normalmente não são.

do mar/Vem, vem na rede João prá mim/ Valha-me nosso senhor do Bonfim/ Nunca, jamais se viu tantopeixe assim/ Valha-me senhor do Bonfim/ Nunca, jamais se viu tanto peixe assim.Lapinha: Quando eu morrer me enterre na lapinha/ Calça, culote, palitó almofadinha/ Vai meu lamentovai contar/Toda tristeza de viver / Ai a verdade sempre trai / E às vezes traz um mal a mais/ Ai só me fezdilacerar/ Ver tanta gente se entregar / Mas não me conformei / Indo contra lei/ Sei que não me arrependi/ Tenho um pedido só/ Último talvez, antes de partir / Sai minha mágoa/ sai de mim /Há tanto coraçãoruim /Ai é tão desesperador/ O amor perder do desamor / Ah tanto erro eu vi, lutei/ E como perdedorgritei / Que eu sou um homem só / Sem saber mudar / Nunca mais vou lastimar/Tenho um pedido só /último talvez, antes de partir/Adeus Bahia, zum-zum-zum

cordão de ouro/ eu vou partir porque mataram meu besouro

98

A música Arrastão manifesta esse conhecimento do popular somente através da

letra. Já Lapinha, mescla instrumentos do samba, como cuíca, tamborim, pandeiro e

cavaquinho, no entanto, os instrumentos da capoeira, assim como suas divisões rítmicas

características, atabaques, caxixis e berimbaus, não estão presentes no arranjo, ou seja,

está presente a idéia do nacional-popular na letra e o popular é representado através do

samba.

Elis participou, ainda, do II Festival da Música Popular Brasileira da TV Record,

em 1966, ficando com a quinta colocação, com uma música de Gilberto Gil intitulada

Ensaio Geral. Ficou entre os finalistas no I Festival Internacional da Canção Popular

em 1966, realizado pela Secretaria de Turismo da Guanabara e TV Rio, mas não ficou

entre os vencedores. No III Festival da Música Popular Brasileira de 1967, realizado

pela TV Record, ficou entre os finalistas e ganhou como melhor intérprete, com a

música O cantador de Dori Caymmi e Nelson Motta.

Ensaio Geral fala das fantasias e da beleza do carnaval e O cantador, do ofício

de cantar. Nenhuma das canções traz algum tipo de analogia com questões referentes à

política ou que denunciem algum tipo de problema social, indicando, portanto, que a

escolha da temática nacional-popular, pelo menos no que tange a obra de Elis, foi

importante para que Elis conquistasse a vitória nos festivais dos quais participou.

2.6 - Os LPs 2 na bossa

Acredito ser necessário priorizar a análise dos LPs Dois na Bossa em separado,

por eles poderem ser compreendidos como uma extensão do programa O Fino da

Bossa.

Refletindo acerca dos critérios utilizados nesta análise, saliento que é grande a

complexidade em dividir a temática nacional da política neste momento no qual o Brasil

estava inserido, em meados dos anos sessenta. Ambas as temáticas, nacionais e

políticas, se referem a denúncias ligadas e referentes à cultura brasileira de alguma

forma. Também estão, de certa maneira, caracterizando-se enquanto atos simbólicos de

percepção e denúncia da realidade social brasileira. As músicas enquadradas na temática

nacional também podem ser consideradas neste momento enquanto políticas, uma vez

que neste período a busca por compreensão das “verdadeiras” questões nacionais se

configurava também em um ato político. No entanto, classifiquei como políticas as

99

músicas que falam da situação social brasileira sem elogiá-la, ou romanceá-la, como

fazem as canções de temática nacional.

As menções ao negro e às favelas, apesar de denunciarem uma questão

problemática da sociedade brasileira, a má distribuição de renda, são descritos nestas

canções, consideradas aqui enquanto nacionais, como representantes de autenticidade da

nação brasileira. Aponto como temática política as canções que não utilizam estas

questões enquanto caracterizadoras de positividades, mas como denúncia das mazelas

da sociedade, estas canções políticas não dizem em tom de elogio e sim de denúncia,

mesmo que às vezes as façam metaforicamente, como veremos em algumas canções a

seguir.

Diferentemente da análise realizada no capítulo anterior, onde os gêneros

executados eram inúmeros e a temática praticamente quase não variava, não realizarei

aqui a análise dos gêneros, pois a maior parte das canções se configura enquanto samba-

jazz, assim sendo, não demarcarei esta questão. Enfatizarei a modificação da temática

que deixa de se configurar como amorosa em quase sua totalidade.

Em 1965, Elis lança o LP Dois Na Bossa, junto com Jair Rodrigues, e O Fino do

Fino com o Zimbo Trio, conjunto que a acompanhava na apresentação do programa.

Em 1966, lança Dois na Bossa número 2 e Elis. Em 1967, Dois na Bossa Número 3.

O primeiro LP Dois na Bossa214 se inicia com um pot-pourri de sambas, nos

quais os temas relacionados à situação do negro/favela são quase unanimidade nas

letras. O samba é ovacionado, e o morro cantado como um local que precisa ser

descoberto, pois é visto como um local de alegria e pureza. São feitas duas citações a

orixás do candomblé, Xangô e Ogum, no entanto, não há nenhuma menção aos ritmos

tocados para eles nos terreiros. São sambas divididos meio a meio entre “compositores

nacionalistas” como Lyra, Tom, Vinícius e Ruy Guerra e os da “tradição” como Cartola,

Elton Medeiros, Zé Keti e outros.

214 Lançado pela Companhia Brasileira de Discos/Philips em 1965. Gravado ao vivo no Teatro Paramountem São Paulo. Foi produzido por Walter Silva. Direção artística de Mário Duarte e técnicos de gravaçãoManoel Barenbein e Rogério Gauss e o layout de Rodrigo Octavio.

100

Quadro 2 - Temáticas das músicas do LP Dois na Bossa215

Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Temática política:

Pot-pourri

A felicidade/ O sol

nascerá/Vou andar por

O morro não tem

vez/Feio não é

bonito/Samba do

carioca/ Samba de

negro/Diz que fui por aí

/A voz do morro

Acender as velas/Esse

mundo é meu

Preciso aprender a ser

sóX

Ziguezague X

Terra de ninguém X

Arrastão X

Reza X

Tá engrossando X

Deus com a família X

Ué X

Menino das laranjas X

Fonte: Dois na Bossa- Elis Regina e Jair Rodrigues. CBD/Philips, 1965.

A maior parte do LP se constitui de temática nacional e tem o trabalhador

negro/nordestino como peças centrais da denúncia da exclusão social. As letras falam

sobre estes personagens, e não são escritas por eles. Carlos Lyra e Edu Lobo são

compositores pertencentes à classe média, são compositores que falam do povo, mas

215 Lado A: Pot-pourri: O morro não tem vez(Tom Jobim, Vinícius de Moraes), Feio não é bonito(CarlosLyra, Gianfrancesco Guarnieri),Samba do carioca(Carlos Lyra, Vinícius de Moraes),Esse mundo émeu(Sérgio Ricardo,Ruy Guerra)A felicidade(Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Samba de negro(RobertoCôrrea e Sylvio Son)Vou andar por aí(Newton Chaves),O sol nascerá(a sorrir)(Cartola, EltonMedeiros),Diz que fui por aí(Zé Kétti, H. Rocha), Acender as velas(Zé Keti),A voz do morro(Zé Keti), Omorro não tem vez(Tom Jobim, Vinícius de Moraes) / Preciso aprender a ser só(Marcos Valle, PauloSérgio Valle) / Ziquezague(Alberto Paz, Edson Menezes) / Terra de ninguém(Marcos Valle, PauloSérgio Valle) / Lado B: Arrastão(Edu Lobo, Vinícius De Moraes) / Reza(Edu Lobo, Ruy Guerra) / Táengrossando(Alberto Paz, Edson Menezes) / Deus com a família(César Roldão) / Ué(Osmar Navarro,Alcina Maria) / Menino das laranjas(Théo).

101

não diretamente para eles, uma vez que a classe ouvinte destas canções engajadas era

um público de classe média, intelectualizado.216

A escolha de repertório é bastante significativa e se coaduna com o que vem

sendo apresentado nesta dissertação, como a busca do que vem a ser o Brasil. São

gravados tanto grandes nomes do samba, como de intelectuais de esquerda que viam na

favela um lugar de pureza e autenticidade nacional.

Dentre as dez músicas, duas são cantadas pela dupla, três apenas por Jair e

cinco só por Elis, destacando uma presença maior de Elis Regina nestas gravações. Os

instrumentos musicais presentes neste LP são piano, baixo e bateria, além dos cantores

Elis e Jair, que ora cantam sozinhos, ora fazem duetos e há também a presença de um

coro. O instrumental é característico do jazz e não do samba brasileiro, que costuma ser

executado com violão, pandeiro, surdo e tamborim, basicamente. O arranjo das músicas

fez com que elas ganhassem uma outra intenção, sendo chamadas de samba-jazz. O

samba não é tocado como na bossa nova, com violões, ou mesmo em rodas de samba,

com percussões, violão e cavaco, e sim com fraseados jazzísticos.

Há claramente um tom de denúncia representado pelas injustiças sociais

brasileiras contidas nas canções Terra de ninguém e em Deus com a família, ambas

falam da pobreza gerada pelas injustiças da distribuição de terras. Terra de ninguém

conta a história de um nordestino sem oportunidades que sai em busca de terras para

tentar melhorar a vida, tem a primeira parte da música cantada por um coro e Elis entra

cantando fortemente que quem trabalha é quem tem direito de viver, pois a terra é de

ninguém. Deus com a família é uma história contada por um negro consciente das

desigualdades sociais: “A terra do dono é só dele/ ali ninguém pode mandar/ mas se eu

não pegar na enxada/ não tem ninguém para plantar/ eu semeio e trato o milho/ e a

colheita é do senhor/ mas o dia da igualdade tá chegando seu doutor.”

Ziguezague é cantada por Jair e fala da malandragem de quem apanha da vida,

Arrastão conta a história de um pescador que luta para vencer, Tá engrossando é

cantada por Jair e fala da malandragem como maneira de sair de confusões, Menino das

laranjas denuncia uma realidade de exclusão e trabalho infantil, um menino morador do

morro tem que trabalhar vendendo laranjas na feira para ajudar a mãe que é lavadeira

dos ricos.

216 Para compreensão detalhada deste aspecto ler NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção:engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2001.

102

Trata-se de uma obra muito permeada por dinâmicas musicais, onde o

instrumental dialoga o tempo todo com as melodias, ora abaixando o volume para

privilegiar partes da canção, ora explodindo junto, acompanhando a todo momento a

tensão das músicas. Além de se utilizarem muitas dinâmicas, as músicas modificam o

andamento várias vezes para enfatizar determinados trechos das canções. Um bom

exemplo caracterizador deste aspecto, presente em todo o LP, é a música Terra de

ninguém. A primeira parte da música se configura em um samba-jazz, com um coro

cantando em uma dinâmica piano; há também o destaque da melodia, onde o

instrumental diminui o volume da execução para enfatizar o que está sendo cantado.

Quando Elis entra cantando, a dinâmica toda sobe para forte, na voz e no instrumental,

que é o momento onde a denúncia é mais forte na letra.

Quadro 2.1 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Dois na bossa

Aspectos do Nac.Pop.

Músicas

Samba Negro Favela Malandragem ReligiãoAfro-Bras.

Pescador

Samba do carioca X

Samba de Negro X X X

O morro não tem vez X

Ziguezague X

Arrastão X X

Feio não é bonito X

Ta engrossando X

Diz que fui por aí X X

A Voz do Morro X

Fonte: Dois na Bossa- Elis Regina e Jair Rodrigues. CBD/Philips, 1965.

Dentre todos os LPs com a temática nacional-popular este é o único que aborda

a questão da malandragem, sendo que as duas músicas foram interpretadas por Jair e

103

não por Elis, fato este que pode demonstrar a malandragem atrelada de alguma maneira

ao negro, representado pelo cantor Jair Rodrigues. O morro carioca, assim como sua

exaltação, é peça central na temática nacional-popular presente neste LP, seguido pelo

samba.

O segundo LP da dupla Dois na bossa número 2 217 foi lançado em 1966. Assim

como o primeiro LP, este também se inicia com um pot-pourri, das dez canções

escolhidas, metade tematiza o amor e a outra metade, a favela, o negro e osamba. Assim

como no primeiro LP da dupla, este pot-pourri mistura músicas de compositores da

velha guarda do samba (Ataulfo Alves, Paquito) com músicas dos ditos politizados de

esquerda (Vandré, Sérgio Ricardo).

Quadro 2.2 – Temática das músicas do LP Dois na Bossa número 2218

Músicas: Temática amorosa:Temática

nacional:Temática política:

Pout-pourri

Não me diga

adeus/Volta por cima/E

daí

O neguinho e a

senhorinha /Enquanto a

tristeza não

vem/Carnaval/Na ginga

do samba/Guarda a

sandália dela

Samba de mudar

Canto de Ossanha X

Tristeza X

Tristeza que se foi X

São Salvador, Bahia X

Louvação X

217 Lançado pela Companhia Brasileira de Discos/Philips em 1966. Gravado ao vivo no Teatro da Record,em São Paulo. Foi produzido por Mário Duarte, Direção musical de Adylson Godoy; acompanhamentos:Luiz Loy Quinteto e Bossa Jazz Trio. Técnicos de som: J. E. Homem de Mello e Célio Martins.218 Lado A: Pot-pourri: Introdução(Elis Regina, Jair Rodrigues),Samba de mudar(Geraldo Vandré, BadenPowell),Não me diga adeus(Paquito, Luiz Soberano, João da Silva),Volta por cima(Paulo Vanzolini),Oneguinho e a senhorita(N. Rosa Oliveira, A. da Silva),E daí(Miguel Gustavo),Samba de mudar(GeraldoVandré, Badenn Powell),Enquanto a tristeza não vem(Sérgio Ricardo),Carnaval(Djalma Ferreira, A.Alves),Na ginga do samba(Ataulfo Alves),Guarda a sandália dela(sereno,G.Mathias), Samba demudar(Geraldo Vandré, Baden Powell) / Canto de Ossanha(Baden Powell, Vinícius de Moraes) /Tristeza(Haroldo Lobo, Niltinho) / Tristeza que se foi(Adylson Godoy) / São Salvador, Bahia(Paulo daCunha) / Lado B: Louvação(Gil, Torquato Neto) / Upa, neguinho(Edu Lobo, Gianfrancesco Guarnieri) /Mascarada(Zé Keti, Elton Medeiros) / Amor até o fim(Gil) / Santuário do morro(Adylson Godoy).

104

Upa, neguinho X

Mascarada X

Amor até o fim X

Santuário do morro X

Fonte: Dois na Bossa número 2- Elis Regina e Jair Rodrigues. CBD/Philips, 1966.

O ritmo base de todo LP é o samba-jazz. Diferentemente do outro LP, este conta

com a presença de um trio de metais (trombone, trompete e saxofone), flauta transversa

e instrumentos de percussão (congas, agogô e berimbau). Além do já conhecido trio

piano, batera e baixo, característicos instrumentos de jazz. Percebemos muitos

ornamentos na voz de Elis, muito próximo das suas divas do rádio.

A percussão219 aparece somente em duas canções. No final do pot-pourri das

Carnaval, Na ginga do samba e Guarda a sandália, com as congas e o agogô fazendo

um samba e onde a letra está também a descrever o universo do samba e em São

Salvador, Bahia quando se toca São Bento pequeno, ritmo característico da capoeira, no

berimbau acompanhado pelas congas remetendo a um jogo de capoeira. Tanto a roda de

samba quanto a capoeira são manifestações afro-brasileiras e nota-se aqui a

preocupação em retratar o Brasil como algo que tem suas raízes em manifestações

culturais negras.

A última música deste LP Santuário do morro, de Adylson Godoy, é bastante

emblemática, não somente pelo seu título que remete ao morro como um local quase

que sagrado, onde nada de ruim pode acontecer, já que lá estão os trabalhadores

humildes do país. A letra diz “Tempo fechou, vai chover no morro vai... minha nega vai

chorar.../ não chora minha nega, não chora não/ que a chuva não leva o barraco não...

barraco é santuário/ Deus não vai jogar no chão...”.

O repertório se divide equilibradamente entre a temática amorosa e a temática

nacional, com duas músicas se enquadrando na temática política. Nas de temática

nacional temos como assuntos o morro, o negro, a capoeira e Ossanha, orixá dos cultos

afro-brasileiros. Duas faixas são cantadas pela dupla, o pot-pourri e Louvação, cinco

interpretadas por Elis e cinco por Jair, demonstrando desta vez, diferentemente do LP

anterior, uma divisão mais igualitária entre os cantores. Demonstrando assim que não

219 Considero aqui como instrumentos de percussão (lembrando que a bateria também se enquadra aqui)aqueles cujo som é obtido através da percussão (impacto), raspagem ou agitação, com ou sem o auxílio debaquetas, como reco-recos, bongôs, congas, meia luas, dentre outros.

105

era Elis a figura central da dupla, pelo menos no que se refere a divisão do repertório

dos discos gravados. Louvação convida o povo a prestar atenção nos versos como

Louvo a paz pra haver na terra/ louvo a vida repetida/ da vida pra não morrer. Samba

de mudar faz o alarde da mudança através dos versos: Só na tristeza e na dor/ Alguém

pode entender/ Que a dor tem que acabar.

Quadro 2.3 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Dois na

bossa2

Aspectos do Nac. Pop.

Músicas

Samba Negro Favela Capoeira ReligiãoAfro-Bras.

O neguinho e a senhorinha X

Enquanto a tristeza não vem X

Carnaval X X

Na ginga do samba X

Guarda a sandália dela X

Canto de Ossanha X

São Salvador, Bahia X

Upa, neguinho X X X

Santuário do morro X

Fonte: Dois na Bossa número 2- Elis Regina e Jair Rodrigues. CBD/Philips, 1966.

Diferentemente do LP anterior, no qual a favela era o tema central, aqui as

temáticas são mais relacionadas às questões do negro e à sua cultura. Além das músicas

que falam especificamente do negro aparecem elementos culturais da realidade afro-

brasileira como a capoeira e as religiões afro.

O último LP gravado pela dupla, Dois na bossa número3 220, foi gravado em

1967. Diferentemente dos LPs anteriores, que se iniciam com pot-pourris, neste Elis

220 Gravado ao vivo no Teatro Paramount (Record-Centro) de São Paulo. Direção da produção ArmandoPittigliani e técnico de som: Homem de Mello.

106

abre com a música de Luiz Eça e Ronaldo Bôscoli, seu marido na época, intitulada

Imagem. A letra da canção faz menção ao ofício do cantor “... se a vida passa, melhor

cantar... é de vocês o meu cantar, é só pra vocês nosso cantar...” e, bem no meio da

canção, os instrumentos continuam a tocar, Elis já não canta mais e sim pronuncia, em

tom de denúncia:

“Enquanto a nossa meta não for atingida continuamos gritando nosso

canto, enquanto a nossa música não voltar ao que é nós lutamos. Faz

escuro, mas nós cantamos. O amanhã está breve. Vamos cantar logo,

logo o que é nosso. Por que mais do que nunca é preciso cantar o que

é nosso!”

É como se o ofício de cantar fosse também um ato político e conscientizador,

uma vez que se faz necessário cantar o que é nosso e também lutar por isso. Mesmo

com a escuridão, menção que remete claramente à ditadura, o canto não pode silenciar.

E o que é nosso está representado pelo samba, o negro e sua cultura, de acordo com os

compositores engajados de esquerda. Por que cantar o que é nosso? Nosso, de quem?

Que identidade é essa, proposta pela cantora?

Vários são os sentidos construídos por esta fala de Elis, afinal, mais do que

apresentar o “É preciso cantar o que é nosso”, o que está presente em seu discurso é a

construção, ou mesmo reafirmação da importância ocupada pela música popular

brasileira, bem como a necessidade de saber o que é brasileiro, naquele momento de

tantas disputas. A identidade proposta pelas músicas está presente nos subúrbios

cariocas, é representada pelo samba, pela capoeira e pelas religiões afro-brasileiras.

107

Quadro 2.4 - Temáticas das músicas do LP Dois na Bossa número 3221

Músicas: Temática amorosa: Temática nacional:Temática

política:

Outros

Imagem X

Pot-pourri de

Mangueira

Pra machucar meu

coração

Mangueira/Fala,

Mandueira/Exaltação à

Mangueira/Mundo de

zinco/Levanta,

Mangueira/Despedida

de Mangueira/

O ser humano X

Cruz de cinza,

cruz de sal

X

Serenata em

teleco-tecoX

Manifesto X

Pot-pourri

romântico

Minha namorada/Eu

sei que vou te

amar/A

volta/Primavera

Amor de carnaval X

Marcha da quarta-

feira de cinzasX

Capoeira camará X

Fonte: Dois na Bossa número 3- Elis Regina e Jair Rodrigues. CBD/Philips, 1967.

221 Lado A: Imagem(Luiz Eça, Ronaldo Bôscoli) / Pot-pourri de Mangueira:Mangueira(Assis Valente,Zequinha Reis),Fala, Mangueira(Mirabeau, Milton de Oliveira),Exaltação à Mangueira(Enéas Brites daSilva, Aloísio Augusto da Costa),Mundo de zinco(Nássara, Wilson Batista),Levanta, Mangueira(luizAntonio),Despedida de Mangueira(Aldo Cabral, Benedito Lacerda),Pra machucar meu coração(AryBarroso) / O ser humano(Osmar Navarro) / Cruz de cinza, cruz de sal(Walter Santos, Tereza Souza) /Serenata em teleco-teco(Gil) / Lado B: Manifesto(Guto, Mariozinho Rocha) / Pot-pourriromântico:Minha namorada(Vinícius de Moraes, Carlos Lyra),Eu sei que vou te amar(Tom Jobim,Vinícius de Moraes),A volta(Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli),Primavera(Vinícius de Moraes, CarlosLyra) / Amor de carnaval(Zé Keti) / Marcha da quarta feira de cinzas / Capoeira camará(Paulo da Cunha).

108

Logo após esta introdução, faz-se um pot-pourri sobre a Mangueira, com sambas

de Ary Barroso, Assis Valente, Wilson Batista dentre outros. São músicas apenas dos

grandes sambistas considerados da “tradição”. O samba é interpretado através de uma

leitura moderna e jazzística, dando mais ênfase ao instrumental mais utilizado no jazz,

do que o do samba da escola de samba da Mangueira. Ouve-se um reco-reco,

instrumento percussivo, em Amor de carnaval, o bongô, instrumento utilizado em

boleros, em Cruz de cinza, cruz de sal e berimbau e caxixis na última canção, Capoeira,

camará. Os instrumentos presentes são piano, baixo, bateria, metais e cordas.

A sonoridade é muito parecida com a dos discos anteriores e a voz de Elis está

muito próxima da das cantoras de rádio, com utilização de vibratos, próximos ao bel

canto. Das dez faixas, duas são cantadas pela dupla e os dois pot-pourris e o restante se

dividem igualmente entre os intérpretes. A música Cruz de cinza, cruz de sal não se

enquadra em nenhum destes temas, pois nela há a citação de brincadeiras de criança, no

entanto, não há menção a nenhuma brincadeira que se faça especialmente no Brasil e

não em outros lugares.

A música Quarta feira de cinzas, de autoria de Carlos Lyra e Vinícius de

Morais, pode ser facilmente caracterizada enquanto uma música de protesto, ao atacar a

ditadura através dos versos: Acabou nosso carnaval/ninguém passa mais brincando

feliz/saudades e cinzas foi o que restou. Elis ao cantar a frase mais que nunca é preciso

cantar, é aplaudida no meio da canção, fato que não se percebe em nenhuma das

canções de nenhum dos outros dois LPs, apesar de todos eles terem sido gravados ao

vivo. Qual seria o sentido desses aplausos? Minha hipótese é que este fato demonstra a

força da canção, a maneira como o público se sentia com o desejo de que as músicas

falassem dos problemas brasileiros, que também eram seus. O ato de cantar carrega

aqui, a força de denunciar e de citar coisas que eram comuns a todos naquele momento.

Toca-se samba-jazz na maioria das músicas, mas também bossa-nova, valsa e marcha-

rancho. Há um aumento significativo da temática política, em comparação com os LPs

anteriores. Na música Manifesto, há uma clara alusão ao golpe, ao importante papel da

música enquanto ato de conscientização. A negação presente na letra da música

demonstra justamente o seu contrário: “a minha música não traz mensagem/ não traz

mensagem/ não faz chantagem ou guerra fria e nem faz ideologia/ eu vim apenas para

lhes falar/ de uma grande perda/ que não sei se é da direita ou da esquerda.”

109

Quadro 2.5 – Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Dois na

bossa 3

Aspectos do Nac.Pop.

Músicas

Samba Favela Capoeira

Mangueira X

Fala, Mangueira X X

Exaltação à Mangueira X

Mundo de zinco X

Levanta, Mangueira X

Despedida deMangueira

X

Serenata em teleco-teco

X X

Capoeira camará X

Fonte: Dois na Bossa número 3- Elis Regina e Jair Rodrigues. CBD/Philips, 1967.

Grande parte das canções de temática nacional-popular presentes neste LP faz

exaltação a escola de samba Mangueira e em especial ao samba. Fala-se menos da

favela e mais de um produto produzido na favela, neste caso o samba.

Depois de concluída a análise destes LPs produzidos por Elis Regina e Jair

Rodrigues fica clara a escolha da temática nacional como a principal cantada pelos

artistas. No primeiro LP de 1965 percebe-se a seguinte configuração: músicas com a

temática política 25%, temática amorosa 30 % e temática nacional 45%. No segundo

LP, lançado em 1966, percebe-se a seguinte configuração: 5,56% a temática política,

temática amorosa 44,44% e temática nacional 50%. No terceiro e último LP lançado

pela dupla em 1967, percebe-se um grande aumento da temática política, superando até

mesmo com a temática nacional: temática amorosa 33,33%, temática política 22,22% e

temática nacional 44,44%. Lembrando que caracterizei a temática nacional, a maior

110

presente em todos os LPs, como aquela em que vejo presente a preocupação em falar

positivamente de sujeitos, manifestações ou locais que remetem ao Brasil.

A presença significativa da temática política nestes LPs está intimamente

relacionada à discussão política do contexto no qual os mesmos estavam inseridos. O

aumento, bem com a diminuição da temática política, podem ser interpretados se virmos

o cenário musical como um termômetro, em que situações sociais e conflitos, no campo

político, faziam parte dos ideais cantados nas canções brasileiras do período,

evidenciando o papel da música nesses embates políticos.

A temática nacional, apresentada nas canções gravadas nestes três LPs, consiste,

principalmente, na situação do favelado e do negro e suas manifestações, dentre elas, o

samba e a capoeira. A favela é o tema que mais se repete nas canções, representando a

temática nacional-popular. Nenhuma manifestação cultural afro-brasileira além do

samba, da capoeira e do universo religioso afro-brasileiro são mencionados nestes

discos. O povo brasileiro e sua cultura são encarados como manifestações autênticas da

nacionalidade, capazes de livrar o país de seus problemas sociais, principalmente

através da luta e pelo trabalho. No entanto, as músicas são interpretadas com os

instrumentos tradicionais do jazz, com exceção de uma música, em que é utilizado um

berimbau. Os instrumentos utilizados para a execução das músicas do universo da

cultura popular, como tambores, chocalhos e ferros, não estão presentes nesses arranjos,

bem como seus ritmos característicos.

Esse repertório de temática nacional é composto de músicas feitas por

compositores que, descontentes com a situação política do país, queriam, através das

suas músicas, conscientizar e mostrar ao povo brasileiro os problemas do Brasil, ou

seja, queriam mostrar a situação do Brasil para o Brasil. O Brasil cantado por Elis e Jair

é um país descontente com o golpe militar, descontente com a permanência da

desigualdade social, representada pela situação dos favelados, dos negros e nordestinos

e elegeu o samba como o ritmo para embasar essas canções, o samba-jazz, o samba

bossa nova, a marcha rancho. O samba, enquanto manifestação brasileira, foi também

cantado e elogiado em grande parte do repertório, classificado como de temática

nacional.

111

2.7 - Os LPs lançados entre 1965-1968

Depois de analisarmos em separado os três LPs lançados juntamente com Jair,

analisaremos os LPs lançados por Elis a partir de 1965. O LP Samba eu canto assim,

lançado em 1965, foi um divisor na carreira de Elis. É perceptível uma modificação

significativa entre esse LP em relação aos outros quatro222, lançados anteriormente pela

cantora. Há a mudança não só temática das canções, que antes estavam ligadas quase

que exclusivamente ao universo amoroso, como também na base rítmica. Antes o

repertório se configurava basicamente por boleros, rock e samba-canções e, a partir

desse LP, Elis passa a aderir ao samba jazzístico incorporado pela bossa nova e visto

como algo “moderno” a ser utilizado, enquanto parâmetro musical.

Quadro 2.6 - Temáticas das músicas do LP Samba eu canto assim223

Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Temática política:

Reza X

Menino das laranjas X

Por um amor maior X

João Valentão X

Maria do Maranhão X

Resolução X

Sou sem paz X X

Consolação/Berimbau/Tem

dóConsolação/Tem dó Berimbau

Aleluia X X

Eternidade X

Preciso aprender a ser só X

Último canto X

222 Viva a brotolândia. Continental, 1961. Poema de amor. Continental, 1962. Elis Regina. CBS, 1963.O bem do amor. CBS, 1963.223 Lado A: Reza (Edu Lobo, Ruy Guerra) / Menino das laranjas (Théo) / Por um amor maior(Ruy Guerra,Francis Hime) / João Valentão(Dorival Caymmi) / Maria do Maranhão(Carlos Lyra, Nelson Lins deBarros) / Resolução(Edu Lobo, Fernando freire) / Lado B: Sou sem paz (Adylson Godoy)/ Pot-pourri:Consolação-Berimbau-Tem dó(Baden Powell, Vinícius de Moraes) / Aleluia(Edu Lobo, RuyGuerra) / Eternidade(Luiz Chaves, Adylson Godoy) / Preciso aprender a ser só(Marcos Valle, PauloSérgio Valle) / Último canto(Francis Hime, Ruy Guerra).

112

Fonte: Samba - eu canto assim. CBD/Philips, 1965.

A maior parte do repertório é de canções de temática amorosa, no entanto é a

partir desse LP, juntamente com o LP 2 na bossa, lançado também em 1965, que

aparecem músicas mencionando o povo brasileiro no repertório de Elis. A partir de

Samba eu canto assim, acontece uma mudança não só nos ritmos utilizados nas

gravações, nos arranjos, como também na temática. Elis Regina gravou nesse disco

muitas músicas de jovens compositores da bossa nova nacionalista, como Edu Lobo,

Marcos Valle ∕ Paulo S. Valle, Vinícius de Moraes, Carlos Lyra. Todos esses

compositores tinham como objetivo aproveitar as bases melódico-harmônicas da bossa

nova e, com isso, criar uma nova música, mais ligada à tradição popular, indo de

encontro ao povo. No entanto, há que se perceber que esse povo era idealizado por estes

artistas, e que a maneira como era retratado muitas vezes não condizia com a realidade

vivida por este, em suas comunidades. O Brasil cantado por Elis, ou seja, as músicas

escolhidas por Elis, de compositores com os quais partilhava as idéias, já que os

selecionara para cantar, falavam de um país descontente com o golpe militar,

descontente com a permanência da desigualdade social, representada pela situação dos

favelados, dos negros e dos migrantes nordestinos.

O título do LP evidencia a clara intenção de Elis em explicitar ao público a

maneira como ela cantaria o samba. Não era o samba tradicional de morro, tocado com

pandeiro, cuíca, tamborim, surdo e cavaquinho, seria a sua leitura do samba, onde o

ritmo passou a ser tocado com bateria, baixo e piano, formação característica de bandas

de jazz.

113

Quadro 2.7 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Samba eu

canto assim

Aspectos do Nac. Pop.

Músicas

Capoeira Migrante Pescador Trabalhador

João Valentão X

Maria do Maranhão X

Berimbau X

Aleluia X

Fonte: Samba - eu canto assim. CBD/Philips, 1965.

A temática nacional-popular deste LP é diversificada e não há o destaque de

nenhum aspecto em especial. O negro não é tematizado diretamente, mas sim o

migrante nordestino, pescador e o trabalhador.

Quadro 2.8.- Temáticas das músicas do LP O Fino do Fino- Elis Regina e Zimbo Trio

Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Outros:

Zambi X

Aruanda X

Canção do amanhecer X

Só eu sei o nome X

Esse mundo é meu X

Samba meu X

Expresso 7 X

Té o sol raiar X

Chuva X

Amor demais X

Samba novo X

Chegança X

onte: O Fino do Fino- Elis Regina e Zimbo Trio. CBD/Philips, 1965.

114

O fino do fino224foi gravado em 1965, por Elis e Zimbo Trio, o conjunto musical

que a acompanhava no programa o Fino da Bossa. A metade do disco é composta por

músicas instrumentais, por isso o mesmo não se encaixa em nenhuma das temáticas.

Penso que os motivos que levaram Elis Regina a apresentar um LP com metade

das faixas de músicas apenas instrumentais devam-se ao seu desejo de se aproximar das

interpretações de suas musas jazzísticas que gravavam assim. Muitos jazzistas

americanos tem parte do repertório de seus discos composta somente por músicas

instrumentais, um exemplo desse fenômeno é Ella Fitzgerald, de quem Elis se dizia

admiradora. Os instrumentos presentes nesse disco, assim como os de jazz, são piano,

baixo e bateria e toca-se samba-jazz predominantemente.

A primeira música do disco, Zambi, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, fazia

parte da peça Arena conta Zumbi e fala da necessidade da luta e diz que é chegada a

hora de acabar com a escravidão, através da luta de Ganga Zumba e Zumbi.

Esse mundo é meu e Resolução compõem um pot-pourri que tematiza a luta, a

primeira, do negro que reclama das dificuldades da vida e pede ajuda a Ogum, e a

segunda, da necessidade de luta, de não se cansar,. Chegança, de Edu Lobo e Oduvaldo

Viana Filho, fala da esperança por uma vida melhor através da migração.

A temática nacional-popular continua a privilegiar nestas canções os

desfavorecidos socialmente e a incentivar a luta como estratégia por uma vida melhor.

Os brasileiros neste disco são os negros e o migrante, muito parecido com o que vem

sendo apresentado até então.

Quadro 2.9 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP O fino do fino

Aspectos do Nac.Pop.

Músicas

Negro ReligiãoAfro-Bras.

Migrante

Zambi X

Esse mundo é meu X

Chegança X

Fonte: O Fino do Fino- Elis Regina e Zimbo Trio. CBD/Philips, 1965.

224 Elis Regina e Zimbo Trio. CBD/Philips. Direção musical: Zimbo Trio; direção artística: Mário Duarte;produção: Manoel Carlos; técnicos de gravação: Homem de Mello, Célio Martins e Júlio C. Anidez;layout: Prosperi.

115

O negro é destaque neste LP, lembrando que boa parte deste repertório é

composto por músicas instrumentais. Há a presença também do migrante.

Em 1966, Elis lançou seu segundo LP solo, de nome Elis225, no qual apresentou

pela primeira vez os compositores Milton Nascimento (Canção do sal) e Gilberto Gil

(Lunik 9). Tratava-se de um disco com canções de temáticas amorosas e também

nacional-populares, em que Elis, através de um texto de sua autoria na contracapa do

LP, demonstrava estar planejando mudanças para sua carreira e dizia que estas

aconteceriam a partir desse disco que, de acordo com suas próprias palavras, tinha sido

feito a seu gosto, sem as amarras típicas de uma artista de televisão. Segue o texto:

“Faz um tempão que eu queria gravar assim. Não que não tenha gostadodo que fiz até agora. Sempre, com muito carinho, dedicação, dei omelhor de mim dentro do que cantei. Mas, confesso, sempre meapavorou, também, a idéia de me transformar numa cantora detelevisão, que somente funcionasse dentro de um programa de televisão.De tanto ouvir falar a este respeito, eu passei a ser uma cantora detelevisão. Meus compromissos com a música duravam cinqüenta ecinco minutos apenas. Havia de minha parte sinceridade, dedicação,carinho, vontade de acertar, mas faltava seriedade. Aquela seriedadeque faz as coisas durarem muito tempo. E, quando parei, e pude pensar,vi que tudo era muito falso. E que eu era falsa comigo mesma, pois nãosoubera ser leal ao que sempre, ambiciosa, sonhei fazer com música.”226

Quadro 2.10 - Temáticas das músicas do LP Elis227

Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Temática política: Outros

Roda X

Samba em paz X

Pra dizer adeus X

Estatuinha X

Veleiro X

Boa palavra X

225 CBD/Philips, 1966. Produtor: Luiz Moscarel; arranjos e regência: Francisco Moraes; técnico de som:Rogério Gauss; layout e fotografia: Prosper.226 Texto presente na contracapa do LP.227 Lado A: Roda(Gil, João Augusto) / Samba em paz(Caetano Veloso) / Pra dizer adeus(Edu Lobo,Torquato Neto) / Estatuinha(Edu Lobo, Gianfrancesco Guarnieri) / Veleiro(Edu Lobo, GianfrancescoGuarnieri) / Boa palavra(Caetano Veloso) / Lado B: Lunik 9(Gil)/ Tem mais samba(Chico Buarque) /Sonho de Maria(Marcos Valle, Pauli Sérgio Valle) / Tereza sabe sambar(Francis Hime, Vinícius deMoraes) / Carinhoso(Pixinguinha, João de Barro) / Canção do sal (Milton Nascimento).

116

Lunik 9 X

Tem mais samba X

Sonho de Maria X

Tereza sabe sambar X

Carinhoso X

Canção do sal X

Fonte: Elis. CBD/Philips, 1966.

O LP se inicia com uma música de Gil. As palmas e o próprio título da canção,

Roda, fazem alusão à cultura popular, que tem várias de suas manifestações realizadas

em roda228e ditadas pelo ritmo de palmas. O ouvinte é chamado para participar da roda,

onde o povo diz a verdade sobre as desigualdades sociais: “Posso falar. Pois eu sei/ eu

tiro os outros por mim/ quando almoço não janto/ e quando canto é assim”. A segunda

música, de Caetano Veloso, Samba em paz, conta que: “O samba vai vencer quando o

povo perceber que é o dono da jogada”. Nota-se uma tentativa de conscientização sobre a

força e o poder do povo que, se articulado, melhoraria sua situação.

Estatuinha fala da situação do negro no Brasil que, mesmo com o fim da

escravidão, continuaram a servir os brancos: “Se a mão livre do negro tocar na onça,

o que é que vai nascer?/vai nascer pele pra cobrir nossas vergonhas/ nasce caminha

pra se ter nossa ialê e atabaque pra se ter onde bater.”.

Veleiro e Boa palavra não se inserem em nenhuma das temáticas. Veleiro fala

sobre partir para o mar, mas não tem uma denotação de fuga de algo e nem mesmo trata

de um lugar especial. Boa palavra trata da solidão de um menino que aprendeu a brincar

sozinho.

Tem mais samba e Tereza sabe sambar tematizam o samba e sua inserção nos

diferentes meios da sociedade, não só no morro. Sonho de Maria é sobre a morte de

uma lavadeira e sua dura vida no morro. Carinhoso é uma música de Pixinguinha e João

de Barro compositores da “velha guarda” do samba. O disco se encerra com uma

música de Milton Nascimento, Canção do sal, que conta a história de um trabalhador

que espera uma vida melhor para o filho, através de seus estudos. Neste disco, as

músicas em quase sua totalidade são samba-jazz. Os instrumentos são baixo, piano e

228 Capoeira, candomblé, jongo, ciranda, côco, samba e outros.

117

bateria. Algumas das músicas têm cordas e metais em seu arranjo. A temática nacional

constitui 50% do repertório.

Apesar da intenção manifestada por Elis na contracapa do LP, não é perceptível

uma mudança significativa neste disco. Sua interpretação vocal é carregada, com muita

utilização de vibratos, e o instrumental, assim como os arranjos, é bastante parecido

com o dos LPs lançados anteriormente.

Quadro 2.11 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Elis

Aspectos do Nac.Pop.

Músicas

Samba Negro Favela Trabalhador

Samba em paz X

Estatuinha X

Tem mais samba X

Sonho de Maria X

Tereza sabe sambar X

Canção do sal X

Fonte: Elis. CBD/Philips, 1966

A temática nacional-popular neste LP é representada principalmente através do

universo do samba, tematizado aqui enquanto um possível aspecto libertador do povo

brasileiro.

Lançado em 1968, pela CBS/Philips, o disco Elis Especial229 é um disco que

contém duas músicas como tributo, uma a Tom Jobim, a segunda canção, e outra à

Escola de samba Mangueira, a última canção. Tais tributos representam não só uma

229 Direção musical: Erlon Chaves. Direção de produção: Armando Píttigliani. Foto de capa: Elio Santos,de Manchete. Samba do perdão(Baden Powell, Paulo César Pinheiro), Tributo a Tom Jobim(Tom Jobim),De onde vens(Dori Caymmi, Nelson Motta), Bom tempo(Chico Buarque), Da cor do pecado(Bororó),Carta ao mar(Roberto Mescal, Ronaldo Bôscoli), Viramundo(Gilberto Gil), Upa, neguinho(Edu Lobo,Gianfrancesco Guarnieri), Tributo a Mangueira: Mangueira (Assis Valente, Zequinha Reis)/Fala,Mangueira(Mirabeau, Milton de Oliveira)/Exaltação à Mangueira(Enéas Briters da Silva, AloísioAugusto da Costa)/Levanta, Mangueira(Luiz Antonio)/Despedida de Mangueira(Aldo Cabral, BeneditoLacerda)Pra machucar meu coração(Ary Barroso).

118

homenagem, como também uma “prestação de contas” ao samba e à bossa nova, na

figura de Tom Jobim, além de emonstrarem a grande influência de ambos na carreira de

Elis.

Quadro 2.12 - Temáticas das músicas do LP Elis Especial230

Músicas: Temática amorosa: Temática nacional:

Samba do perdão X

Tributo a Tom Jobim X

De onde vens X

Bom tempo X

Da cor do pecado X

Corrida de jangada X

Carta ao mar X

Viramundo X

Upa, neguinho X

Tributo a Mangueira

Pra machucar meu

coração

Mangueira/Fala,

Mangueira/Exaltação à

Mangueira/Levanta,

Mangueira/Despedida

de mangueira/

Fonte: Elis Especial. CBD/Philips, 1968.

Das canções que tematizam o nacional, Bom tempo conta a história de um

trabalhador que aguarda ansioso pelo descanso do fim de semana. Viramundo conta a

história de um sertanejo que, apesar das imposições da vida, luta para conquistar seu

trabalho, festa e pão. Upa neguinho fala de um negro que mal começa a andar e já

230 Lado A: Samba do perdão (Baden Powell, Paulo César Pinheiro) / Tributo a Tom Jobim: Vou tecontar-Fotografia-Outra vez-Vou te contar / De onde vens(Dori Caymmi, Nelson Motta) / Bomtempo(Chico Buarque) / da cor do pecado(Bororó) / Lado B: Corrida de jangada(Edu Lobo, Capinan) /Carta ao mar(Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli) / Viramundo(Gil, Capinan) / Upa, neguinho(EduLobo, Gianfrancesco Guarnieri) / Tributo a Mangueira:Mangueira(Assis Valente, Zequinha Reis),Fala,Mangueira(Mirebeau, Milton de Oliveira),Exaltação à Mangueira(Enéas Brites da Silva, Aloísio Augustoda Costa),Levanta, Mangueira(Luiz Antonio),Despedida de Mangueira(Aldo Cabral, BeneditoLacerda),Pra machacar meu coração(Ary Barroso).

119

apanha, mas, apesar dos infortúnios da vida, sabe ensinar através das mandingas e da

capoeira. Tributo à Mangueira faz um elogio e reverência à tradicional escola de samba

carioca.

A temática amorosa prevalece na maior parte das canções. Das músicas que

estão entre as de temática nacional, duas falam do trabalhador brasileiro e as outras

sobre o negro e sobre o samba, representado pela Mangueira. Os instrumentos são

piano, baixo e bateria, sendo que em algumas músicas há a presença de instrumentos de

cordas e metais.

A estreita relação com a bossa nova ficou claramente explícita nas faixas Tributo a

Tom Jobim e Carta ao mar de Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal. Apesar da sua

intenção em modificar a carreira, expressa na contracapa do LP de 1966, a voz de Elis

ainda é, empostada como a das cantoras do rádio e o repertório conta com inúmeras

canções de cunho nacional-popular nesse disco de 1968.

Quadro 2.13 – Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Elis

Especial

Aspectos do Nac.Pop.

Músicas

Samba Negro Favela Trabalhador ReligiãoAfro-Bras.

Bom tempo X

Viramundo X

Upa, neguinho X X

Mangueira X

Fala, Mangueira X X

Exaltação à Mangueira X X

Levanta, mangueira X X

Despedida deMangueira

X

Fonte: Elis Especial. CBD/Philips, 1968.

120

A escola de samba da Mangueira é mais uma vez exaltada por Elis, assim como

no LP Dois na bossa 3. O negro é tematizado e também a religião afro-brasileira. O

trabalhador brasileiro é mencionado em duas canções. Houve um aumento com as

temáticas nacional-populares em relação ao LP lançado anteriormente.

Percebe-se através da Tabela 2, apresentada na página 119, que o samba tem

destaque na temática nacional-popular interpretada por Elis, representando quase

sempre uma maior quantidade em relação aos outros temas. Apesar de não ser

tematizado nos LPs O fino do fino e Samba eu canto assim volta a aparecer com força e

em significativo destaque nos próximos lançamentos. A favela é um tema bastante

recorrente em quase todos os LPs, assim como o negro que é uma constante em quase

todos os LPs. Quando não é diretamente citado, como no caso do LP Samba eu canto

assim, é representado por manifestações culturais relacionadas ao universo afro, como a

capoeira. A tabela demonstra que os temas negro, samba e favela são os mais constantes

na fase que vai de 1965 até 1968.

No caminho que até aqui percorri, percebi que nestes LPs, a denúncia em relação

às limitações impostas pela estrutura social brasileira é tema central. Tenho a sensação,

ao ouvir este repertório, de que estou diante da situação social do país. Percebo as

participações de Elis nos festivais, bem como o repertório presente no seu programa O

Fino da Bossa, como um comprometimento político/social. Estou diante de um projeto

de Brasil popular, onde o povo e suas expressões são apresentados como a riqueza do

país.

Os elementos presentes no nacional-popular cantado por Elis tematizam sempre

questões relativas à desigualdade social, miséria, questões raciais e culturais, assim

como a luta como fator de reestruturação deste sistema. No entanto, o povo brasileiro e

suas representações se restringem ao pescador/trabalhador e às manifestações culturais

brasileiras do samba, Orixás das religiões afro-brasileira e a capoeira. Não percebo, no

repertório analisado até aqui, gravações de grandes nomes do rádio, não há gravações de

músicas interpretadas por Ângela Maria ou Cauby Peixoto e regravadas por Elis, e sim

de sambistas conhecidos, representantes da “velha guarda”.

Sua banda dando contornos jazzísticos à interpretação e sua maneira de cantar

com o vozeirão das cantoras do rádio, mesclam elementos considerados tradicionais

com aqueles considerados modernos sem chocá-los entre si, indicando que Elis não era

adepta exclusiva de determinadas “correntes” musicais e sim, que transitava sem se

prender fixamente a nenhuma delas.

121

Como já demonstrado ao longo desta pesquisa, Elis era filha de uma família

operária, formou-se até o curso normal e não freqüentou uma universidade. Posso

concluir, com isso, que Elis não tinha uma ampla formação intelectual e nem mesmo

política, como percebemos nos primeiros discos lançados pela cantora. No entanto, a

cantora foi aprendendo a se posicionar ideologicamente após sua chegada ao Rio de

Janeiro, através dos contatos com pessoas do círculo artístico, um bom exemplo disto é

Solano Ribeiro, seu ex-namorado. Em suma, os meios de sociabilidade foram

possibilitando a Elis tornar-se mais consciente dos problemas sociais e políticos

brasileiros, assim como dos filmes e peças aos quais assistia, já citados neste capítulo.

Há, nesta fase da carreira de Elis, uma compreensão do Brasil se desenvolvendo

juntamente com a ideologia nacionalista defendida pelos artistas e compositores deste

período, os quais estavam ligados, de certa maneira, ao CPC. Estou me referindo à

estratégia cultural representada pela intérprete Elis Regina, segundo a qual o Brasil é

compreendido como forma de expressão de uma comunidade subalterna, representada,

em sua obra, pelos negros e nordestinos. Em Elis, nesta fase que vai de 1965 até 1968, a

questão nacional está presente e se mostra primordial. Pode-se dizer que há um diálogo

entre a questão da identidade nacional e da identidade cultural específica de uma classe

social: a população dos morros e subúrbios do Rio de Janeiro.

Há a ausência do sertão, com exceção dos pescadores, Elis concentra-se

principalmente no universo urbano do samba de morro. Assim sendo, pode-se pensar

em um menor romantismo, uma menor apego ao mundo pré-moderno em sua visão do

nacional-popular.

Apesar de cantar o nacional-popular, Elis, por não estar organicamente ligada à

vida das camadas baixas da população, não teve condições de perceber diferentes

sentidos do popular, até então ausente no debate sobre a música do povo, uma vez que

os debates existentes naquele momento faziam menção a dicotomias como nacional X

estrangeiro, autêntico X alienado ou MPB X iê-iê-iê.

Nesta fase há, no repertório de Elis Regina, a afirmação da cultura de um grupo

social subalterno - a comunidade negra dos morros cariocas - em contraposição ao

processo de expansão do modo de produção capitalista. No entanto, Elis Regina não foi

uma dessas artistas que se impuseram a missão de conservar a memória e a sabedoria

popular231; ela cantou o que achou significativo explorar, como questões referentes à

231 Assim como Clara Nunes. Sobre esse assunto ver O canto mestiço de Clara Nunes / Organização:Silvia Maria Jardim Brügger. -São João Del Rei, MG: UFSJ, 2008.

122

compreensão do que era o Brasil naquele momento e, posteriormente, o Brasil

explorado por ela se modificaria, como perceberemos no capítulo seguinte.

Tabela 2 - Percentual dos aspectos nacional-populares em cada LP232

232 Onde contei cada trecho dos pot-pourris como sendo uma música. Algumas músicas apresentam mais de um aspecto, por isso o total de aspectos excede o de faixas dosdiscos dentro da temática nacional-popular.

Aspectosnac. pop.

Lps

Samba Negro Favela Migrante Pescador Malandragem

Religiãoafro-

brasileiraCapoeira Trabalha

dorTotal

Dois nabossa (1965) (3)

23,08%(1)

7,69%

(5)38,46% (1)

7,69%

(2)15,39 (1)

7,69%

(9)100%

O fino dofino (1965) (1,5)

50,00%(1)

25,00%(0,5)

25,00%

(3)100%

Samba eucanto assim

(1965)(1)

25,00%(1)

25,00%(1)

25,00%(1)

25,00%

(4)100%

Dois nabossa 2(1966)

(2,5)25,00%

(1,8)25,00%

(2)16,67%

(1,3)16,67%

(1,3)16,67%

(9)100%

Elis (1966) (3)50,00%

(1)16,67%

(1)16,67%

(1)16,67%

(6)100%

Dois nabossa 3(1967)

(5,5)66,67%

(1,5)22,22%

(1)11,11%

(8)100%

Elis Especial(1968) (4)

45,45%(0,5)

9,09%(1)

18,18%(0,5)

9,09%(2)

18,18%

(8)100%

124

Capítulo 3 - Brasil em foco

Neste capítulo, abordarei a carreira de Elis Regina após o LP lançado em 1968,

Elis Especial, no qual é perceptível uma efetiva tentativa de mudança, tanto no

repertório, quanto em sua sonoridade, mais próxima à bossa nova e menos jazzística

como a dos seus discos lançados entre 1965 e 1968. Analisarei como o nacional-

popular, tão presente no repertório de Elis a partir de 1965, se modifica ao longo de sua

carreira e, em especial, a partir de 1969, quando tal conceito passa a ser altamente

combatido pelos tropicalistas. Tentarei entender de que maneira e se de fato houve uma

influência do movimento tropicalista na carreira e obra de Elis, e como se deu essa

interferência. Utilizarei como fontes para a realização deste capítulo jornais, revistas,

vídeos, além de bibliografia referente ao tema e análise da discografia deste período.

Tendo em vista as diversas variáveis das críticas ao nacional-popular, algumas

questões devem ser colocadas. A modificação na sonoridade, bem como na

interpretação de Elis a partir de 1969, seria acompanhada por uma modificação na

temática nacional-popular também? Política e oposição ao regime militar se fazem

presentes neste repertório? Podemos falar em nacional-popular a partir deste momento?

Quais foram suas respostas às experiências dos exílios, censuras e repressões, em

relação às quais se construiu esse “novo” repertório, a partir de 1969? Como os diversos

projetos e práticas de resistência cultural deste período estão representados na obra de

Elis Regina?

De acordo com Roger Chartier, saber se devemos chamar de popular o que é

criado pelo povo, ou então o que lhe é destinado é, pois, um falso problema. Importa,

antes de tudo, a identificação da maneira como cruzam-se e imbricam-se diferentes

figuras culturais, nas práticas, nas representações ou nas produções. Uma vez que “todas

as formas culturais, em que os historiadores reconheciam a cultura do povo, se revelam

atualmente, sempre como conjuntos mistos, que reúnem em uma imbricação difícil de

desatar, elementos de origens muito diversas.” 233

Segundo Chartier:

“ao renunciar à descrição da totalidade social e ao modelo braudeliano,que se tornou intimidante, os historiadores tentaram pensar osfuncionamentos sociais fora de uma divisão rigidamente hierarquizada

233CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre a incerteza e inquietude. Ed. Universidade.UFRGS, 2002, p.49.

125

das práticas e das temporalidades (econômicas, sociais, culturais,políticas) e sem que primado fosse dado a um conjunto particular dedeterminações (quer fossem técnicas, econômicas ou demográficas).Daí, as tentativas feitas para decifrar diferentemente as sociedades,penetrando o dédalo das relações e das tensões que as constituem apartir de um ponto de entrada particular (um acontecimento, obscuro oumaior, o relato de uma vida, uma rede de práticas específicas) econsiderando que não há prática ou estrutura que não seja produzidapelas representações, contraditórias e afrontadas, pelas quais osindivíduos e os grupos dão sentido a seu mundo”. 234

Comentando esta citação em função do meu objeto, entendo a carreira de Elis,

bem como suas escolhas, como uma rede de práticas culturais específicas inseridas em

um conturbado momento de edificações identitárias brasileiras. E, ao me guiar pelo fio

condutor da carreira artística de Elis, busco compreender suas relações pessoais e

profissionais, e de que maneiras estas dialogaram entre si. Além de Elis estar inserida

nessa teia complexa de relações sociais, pessoais e profissionais, e havendo no país a

instauração e desenvolvimento de um forte mercado industrial (musical, jornalístico),

influenciando e sendo influenciado por este tipo de situações artísticas particulares, qual

teria sido o seu papel nessa consolidação?

De acordo com Canclini:

“O discurso político continua associando, preferencialmente, a unidadee a continuidade da nação com o patrimônio tradicional, com espaços ebens antigos, que serviriam para tornar coesa a população. Sabe-se, noentanto, que desde o surgimento do rádio e do cinema, esses meiosdesempenharam um papel decisivo na formação de símbolos deidentificação coletiva. Mas o mercado cultural de massas ocupa pouco ointeresse estatal e, em grande medida, é deixado nas mãos de empresasprivadas.” 235

Segundo Canclini, a incorporação dos múltiplos usos do termo “popular” nas

ciências sociais teve efeitos positivos: ampliou a noção para além dos grupos indígenas

e tradicionais, dando reconhecimento a outros agentes e formas culturais que

compartilham a condição de subalternos, além de libertar o popular do rumo

economicista que lhe impuseram aqueles que o reduziam ao conceito de classe. Mesmo

que a teoria das classes continue sendo necessária para caracterizar o lugar dos grupos

populares e de suas lutas políticas, a ampliação conceitual permite abranger formas de

234 CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre a incerteza e inquietude. Ed. Universidade.UFRGS, 2002, p. 66.235 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade. - SãoPaulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997. – Ensaios Latino-Americanos, p.197.

126

elaboração simbólica e movimentos sociais não deriváveis de seu lugar nas relações de

produção. A denominação popular facilitou estudar os setores subalternos, não apenas

como trabalhadores e militantes, mas como “invasores” de terras e consumidores. É

necessário delimitar melhor se o popular é uma construção ideológica, ou corresponde a

sujeitos e situações sociais nitidamente identificáveis. Os estudos sobre reprodução

social tornam evidente que as culturas populares não são simples manifestações da

necessidade criadora dos povos, nem acúmulo autônomo das tradições anteriores à

industrialização, nem resultado do poder de nomeação de partidos ou movimentos

políticos. 236

De acordo com o que analisei até aqui, nota-se que o conceito popular ainda

estava tomando forma neste momento de institucionalização da música popular

brasileira, do final dos anos sessenta. O povo cantado nas canções de Elis até 1969 são

homens trabalhadores e as suas manifestações culturais, apesar de as mesmas só se

referirem à capoeira, à religiosidade afro-brasileira e ao samba, de uma forma indireta,

uma vez que há pouca utilização do instrumental utilizado por estes, bem como a

presença de outros elementos que identificariam esse povo e suas manifestações.

Percebo mais um romantismo em relação ao povo inserido nestas canções, do que uma

efetiva preocupação em trazer para as músicas o que este povo realmente queria dizer,

além do mais, a perspectiva do que estes artistas/compositores achavam que era o povo

fez-se mais presente do que a própria voz e desejos deste povo, expressos nessas

canções.

Este é um tema bastante problemático e causa muitos equívocos, quando

mencionado. Ao analisar o congado e seus estudos ao longo do século XX, Glaura

Lucas percebe uma forte tendência destes estudos se configurarem por uma natureza

essencialmente descritiva. Podemos pensar que tais estudos abarquem também outros

tipos de conhecimento, referentes a outras manifestações musicais de nossa cultura

popular. Glaura cita, ainda, Suzel Ana Reily, que percebeu que a finalidade destes

estudos era o aproveitamento do material coletado e documentado para uma futura

reelaboração por artistas eruditos. Reily percebe que esta abordagem se estende ainda a

pesquisas recentes. De acordo com ela:

236 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade. - SãoPaulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997. – Ensaios Latino-Americanos, p.273.

127

“na medida em que o que motivou alguns desses primeiros estudos erauma busca pela construção de uma identidade nacional, brasileira, oobjeto folclórico tornava-se o foco principal de atenção, em detrimentode seus produtores e toda a diversidade sociocultural que o conforma eo determina” 237

Se este tipo de análise, que não leva em consideração a diversidade sociocultural

e os produtores de determinadas culturas, acontecia no universo intelectual, e ainda

ocorre em determinados estudos, imagino que não seja absurdo pensarmos também que

fosse recorrente no universo artístico dos anos sessenta. Não acredito que muitos destes

artistas convivessem e se interessassem por capoeira, candomblés ou escolas de samba.

Não que todos fossem desinteressados, como é o caso de Chico Buarque, que era

freqüentador de rodas de samba nos morros cariocas. Ou mesmo Edu Lobo, que conta

de suas férias, na época de adolescência, em Recife e como a musicalidade

pernambucana influenciou sua criação238. No entanto, quanto à Elis, não temos

nenhuma referência a buscas populares fazerem parte de suas inquietações criativas e

artísticas. Não estou realizando qualquer tipo de julgamento com esta análise, apenas

estou refletindo acerca da maneira como esse popular foi abordado pela classe artística

brasileira dos anos sessenta.

Importante elemento definidor de nacionalidade, a música, especificamente o

samba, passou a ser considerada, na década de 1930, como o que existia no Brasil de

mais brasileiro. Hermano Vianna trabalha em sua obra O Mistério do samba a

transformação do samba em um ritmo nacional brasileiro, em elemento central para a

definição da identidade nacional, da “brasilidade”. O autor destaca o fato de o samba

não ter nascido autêntico e sim, ter sido autenticado ao longo dos anos vinte e trinta.

Dentre os objetivos centrais dessa obra, está o de diagnosticar o processo de “invenção

de uma tradição” do samba enquanto expressão social de raiz. Vianna também

demonstra como o samba mudou o parâmetro pelo qual se pensava a nacionalidade,

uma vez que a mestiçagem, nos anos vinte e trinta, passou de mazela à definidora do

caráter nacional.239

237 REILY, Ana Suzel Apud LUCAS, Glaura. OS sons do Rosário: o congado mineiro dos Arturos eJatobá. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p.39.238 DVD Vento Bravo. Direção de Regina Zappa e Beatriz Thielmann, realizado pela Biscoito Fino em2007.239 VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ-Jorge Zahar Ed., 1994.

128

Esse tema de busca da expressão de uma identidade cultural da nação se fez

perceber também tempos depois nos movimentos musicais dos anos sessenta. De acordo

com Marcos Napolitano:

“a bossa nova foi a linha divisória de um debate entre aqueles que aviam como um “entreguismo” musical e cultural (Lúcio Rangel, JoséRamos Tinhorão) e reafirmavam um “neofolclorismo” que preservassea música dos “negros e pobres”, e um outro tipo de nacionalismo,geralmente defendido pelos mais jovens, que propunham a fusão deelementos da tradição com elementos da modernidade (Nelson Lins eBarros, Sérgio Ricardo e Carlos Lyra, dentre outros).”240

É também Napolitano quem chama a atenção para a ênfase nos dois momentos

históricos fundantes da moderna canção brasileira: os anos trinta e sessenta.241

Segundo Napolitano, compositores como:

“Vinícius de Moraes, Carlos Lyra, Nelson Lins e Barros, SérgioRicardo, dentre outros, destacavam a música popular como meio paraproblematizar a consciência dos brasileiros sobre sua própria nação eelevar o nível musical popular. Na perspectiva deles, a ideologianacionalista era um projeto de um setor da elite que, a médio prazo,poderia beneficiar a sociedade como um todo e a “subida aomorro”(expressão que sintetizava o contato com as classes populares)visava muito mais ampliar as possibilidades de expressão ecomunicação da música popular renovada do que imitar a música dasclasses populares. Perspectiva mais determinante até 1964, quando aconjuntura mudou e levou alguns artistas de esquerda a se aproximardas matrizes mais populares da cultura brasileira (como as praticadasnas comunidades do morro e do sertão) como uma reação ideológica aofracasso da “frente única” (a política de aliança de classes sociais etendências políticas diferentes em nome da defesa da nação) idealizadapelo PCB.242

Era comum, nos anos sessenta e também nos setenta, a identificação do artista

brasileiro com a causa do povo, às vezes vistos como indivíduos a serem

conscientizados e outras, como agentes de uma transformação social, já que eram

portadores dos valores que deveriam dar sentido à identidade nacional. A carreira de

Elis, assim como a de outros artistas, sofreu influência desse contexto, e certamente o

influenciou também. Suas primeiras gravações, no início dos anos sessenta, não a

aproximavam desse tipo de postura. Elis cantava, sobretudo, boleros e sambas-canção

240 NAPOLITANO, Marcos. A historiografia da música popular brasileira (1970-1990): síntesebibliográfica e desafios atuais da pesquisa histórica. In: Revista de Cultura e arte. V.8. n. 13. JUL-DEZ.2006, p.137.241 Idem, p.141.242 NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). 3 ed. – São Paulo:Contexto, 2006. – (Repensando a História), p.41.

129

de temática amorosa, o entanto, em meados dos anos sessenta, ela passou a interpretar

canções que tematizavam o povo brasileiro morador das favelas, o migrante, os

pescadores, capoeiristas e também o samba. A partir dos anos setenta, a temática

amorosa volta a ocupar o primeiro plano nas canções interpretadas por Elis, esse fato se

deve especialmente ao impacto do autoritarismo do governo militar e seu enrijecimento

com o AI-5 na cena musical brasileira, a partir de 1968.243

Elis Regina iniciou sua carreira artística no início da década de sessenta. As suas

canções possuem, desde então, temáticas variadas e diferentes formas de se relacionar

com o momento político do país, que passava por um período de crescimento do

mercado fonográfico nessa fase. Além disso, outras pressões eram freqüentes na

sociedade, como as cobranças por posicionamentos políticos bem definidos. Nesse

cenário, Elis interpretou canções de denúncia social e de resistência ao regime militar,

mas, também, canções românticas e que expressavam os seus sentimentos e os de seus

ouvintes. O objeto de estudo deste capítulo é a produção musical desta artista entre 1969

e 1974, momento de significativa modificação, e a postura adotada em sua carreira antes

de 1969, procurando, assim, ampliar a discussão sobre a obra da mesma, que não está

relacionada apenas ao conceito de engajamento.

O recorte vai até o ano de 1974, quando há uma nova guinada na carreira de

Elis, com a inserção de espetáculos temáticos em sua trajetória. Inicia-se uma nova fase

na carreira da cantora. No disco gravado em 1975, Falso brilhante, estão presentes as

músicas do espetáculo que leva o mesmo nome.

A inserção da música popular brasileira no mundo do consumo, principalmente

via festivais e programas televisivos, além de inúmeros espetáculos cênico-musicais,

provocou questionamentos e debates a respeito dos sentidos da arte/mercadoria sob um

contexto de desenvolvimento e massificação cultural. Diante desse fato, neste capítulo,

apresento algumas considerações sobre esses debates, em especial, o despertado pelo

movimento Tropicalista, e tento descobrir como tais questionamentos influenciaram, de

modo significativo, a carreira e repertório de Elis Regina.

Nos anos sessenta e setenta, a canção estava, de certa maneira, atrelada ao

campo político, ao representar os interesses e dilemas dos desfavorecidos socialmente

no país. Após 1964, a mesma transforma-se em um veículo de combate à ditadura, além

de conter em suas letras características de brasilidade. No entanto, em 1967, o

243 Segue em anexo um quadro com os discos gravados por Elis, com o número de canções por temáticaao longo do período analisado.

130

tropicalismo na música, juntamente com outras áreas como o teatro e as artes plásticas,

propõem uma revisão crítica do paradigma nacional-popular. Neste capítulo, mostrarei a

relevância da discussão dos estudos da canção popular no âmbito da cultura brasileira e

abordarei características da representação da nação em um movimento musical, político

e cultural, como foi o tropicalismo, e de que maneira isso se contrapôs ao que Elis

defendia naquele momento.

A perda de prestígio do programa O Fino da Bossa continuava, somada à

batalha entre a MPB e a jovem guarda, e foi ao extremo em meados de 1967, quando

Elis liderou, ao lado de Gilberto Gil, Edu Lobo, MPB-4, entre outros, a “Passeata contra

as guitarras elétricas”, no movimento “Frente Única da Música Popular Brasileira” que,

além dos interesses promocionais do novo programa musical da Record, Noite da MPB,

propunha combater a música estrangeira, caracterizando uma disputa por mercado e

demarcando uma identidade político-cultural.244

Sobre os problemas de audiência do programa O Fino, Caetano conta que estava

presente em uma reunião em que Elis era o centro das atenções, acompanhada do

marido Bôscoli, a quem Caetano chama de grande letrista e agitador da bossa nova,

produtor de TV. Neste encontro, todos falaram com grande entusiasmo em defender

nossas características culturais. Caetano conta, ainda, que Paulinho Machado de

Carvalho, diretor da emissora, depois de ouvir a todos, concordar com as indignações e

alistar-se no exército de salvação da identidade nacional, propôs, no lugar da

revitalização do programa, que se criasse outro, democratizando lideranças. Foram

criados quatro núcleos, comandados por Elis, Simonal, Vandré e Gil. Cada um

apresentaria um programa por mês e o mesmo se chamaria Frente Ampla de Música

Popular Brasileira.245

Sabe-se que é a partir deste momento que a indústria fonográfica passa a

perceber que o consumo era potencializado pelas disputas de movimentos, e a estimular

os embates, através de estratégias promocionais, pois os “movimentos musicais

deveriam ser bem configurados a partir de rótulos reconhecíveis e direcionados a faixas

de públicos específicas.” 246

244 NAPOLITANO, Marco. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, pp. 184-85.245 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p.159.246 NAPOLITANO, Marco. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, p.277.

131

Podemos pensar neste acirramento como uma tática de venda de produtos, sejam

eles musicais, jornais ou revistas. Aliás, muito da atração que os festivais de música

exerciam sobre o público advinha dessa espécie de partidarismo, formavam-se

verdadeiras torcidas: mpb versus jovem guarda, tropicália versus mpb. Caetano Veloso,

apesar de demonstrar revolta diante da caricatural disputa que se criou entre ele e Chico

Buarque, também admitiu que, na época “havia uma agressividade necessária contra o

culto unânime a Chico em suas atitudes.” 247

Analisando estudos referentes à indústria cultural, e tendo realizado entrevistas

com produtores musicais, Napolitano afirma que “somente em meados da década de

setenta, a indústria já possuía autonomia suficiente para racionalizar seus produtos

musicais de acordo com uma tendência de consumo mais estabilizada, cujo processo foi

facilitado pela institucionalização da MPB.” 248

Rita de Cássia Morelli também afirma que somente na década de setenta houve

um vertiginoso crescimento do mercado de discos no Brasil e que este crescimento não

ocorreu de modo a consolidá-lo imediatamente como um mercado moderno, nos

padrões internacionais. Morelli afirma, ainda, que a massificação do consumo de LPs

entre os jovens brasileiros só aconteceu de fato nos anos oitenta, com o rock urbano.249

É interessante notarmos como esta análise dos autores citados acima é próxima

da observação feita por Mazzola em sua autobiografia. O autor/produtor, que era um

dos mais respeitados produtores de discos no início da década desetenta, relata sua

busca por uma melhor técnica, através de viagens internacionais. Mazzola trabalharia na

produção dos discos de Elis a partir de 1971, ele conta que a escolha de microfones nos

anos sessenta, diferentemente de hoje, em que os computadores resolvem grandes

problemas, era fundamental para captar a melhor acústica da sala de gravação. 250As

melhorias técnicas dos estúdios se depararam com um ambiente ainda marcado pelo

experimentalismo, na visão de Mazzola.

Segundo Morelli, foi a existência de um projeto político de integração

econômica e cultural no país que proporcionou, de fato, a unificação do mercado

simbólico ocorrida entre as décadas de sessenta e setenta. De acordo com a autora, o

247 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p.233.248 NAPOLITANO, Marco. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, p.312.249 MORELLI, Rida de Cássia Lahoz. O campo da MPB e o mercado moderno de música no Brasil: donacional-popular à segmentação contemporânea. Publicado em: ArtCultura: Revista de História, Culturae Arte, v.10, n.16, jan-jun 2008 – Uberlândia, p.90.250MAZZOLA, Marcos. Ouvindo estrelas: a luta, a ousadia e a glória de um dos maiores produtoresmusicais do Brasil. – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007, p.34.

132

caráter nacional ou estrangeiro das expressões musicais populares serviu como critério

de sua hierarquização, bem como seu engajamento ou não no processo político de

construção nacional. 251

Outro autor que demonstra a importância que os anos sessenta e setenta tiveram

para a cristalização dos padrões de consumo e para a organização de toda a indústria

fonográfica no país é Eduardo Vicente. Vicente afirma que tivemos não somente um

extraordinário crescimento do mercado, como também sua aproximação de alguns dos

padrões internacionalmente dominantes, como o da preponderância da empresa

transnacional sobre a nacional e do conglomerado sobre a de orientação única. Ele

salienta, ainda, que uma das conseqüências desse processo foi a intensificação do uso

das estratégias integradas de promoção, envolvendo redes de rádio e TVs, situação que

acabou dando à produção e distribuição das trilhas de novelas uma grande relevância no

contexto da indústria.252

De acordo com Vicente, mesmo antes da chegada das gravadoras internacionais,

os catálogos de várias delas já eram impressos e/ou distribuídos entre nós por empresas

brasileiras. A norte-americana Colúmbia (CBS), por exemplo, era representada no país,

desde 1929, pela Biyngton & Cia, através do selo Colúmbia do Brasil. Após sua

instalação no país, em 1953, a empresa de Biyngton adotou o selo Continental e o nome

de Gravações Elétricas S.A, tornando-se a maior empresa brasileira do setor.253 É

interessante apontarmos aqui o fato de que as primeiras gravações de Elis foram

realizadas pela Continental, demonstrando que ela sempre manteve ligação com as

maiores distribuidoras do país.

Segundo Vicente, em relação à MPB tradicional, todos os artistas de maior

projeção concentravam-se efetivamente em gravadoras multinacionais, principalmente

na Phillips (em 1965, Elis se torna contratada da Philips) que, durante os anos setenta,

chegou a congregar praticamente todos os nomes expressivos do segmento, como

251 MORELLI, Rida de Cássia Lahoz. O campo da MPB e o mercado moderno de música no Brasil: donacional-popular à segmentação contemporânea. Publicado em: ArtCultura: Revista de História, Culturae Arte, v.10, n.16, jan-jun 2008 – Uberlândia, p.100.252 VICENTE, Eduardo. Organização, crescimento e crise: a indústria fonográfica brasileira nasdécadas de sessenta e 70. Artigo publicado em: Revista de Economía Política de las Tecnologías de laInformación y Comunicación www.eptic.com.br, Vol. VIII, n. 3, sep – dic. 2006, p.126.253 Idem, p.116.

133

Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Gal Costa, Maria Bethânia, Jorge Ben e

Elis Regina, entre outros.254

Percebe-se, então, que a consolidação da carreira artística de Elis coincide com a

própria organização de toda a indústria fonográfica no Brasil. Desde suas primeiras

gravações, percebemos o nome de Elis atrelado ao das maiores empresas do ramo de

produção e distribuição de música, e também às maiores redes de televisão do país. A

partir da análise de reportagens realizadas sobre Elis ao longo de sua carreira, e de

vídeos de entrevistas, percebo uma artista com relativa liberdade de atuação, visto os

inúmeros programas de TV apresentados, bem como shows em teatros e em circuitos.

No entanto, os limites destas pesquisas impossibilitam um maior detalhamento da

relação de Elis com suas gravadoras. Levanto, então, algumas questões para futuras

abordagens: Qual o grau de autonomia que Elis realmente tinha? Por que a escolha de

determinadas gravadoras em detrimento de outras? Havia imposição de escolha de

repertório e público a ser atingido?

No tópico apresentado a seguir, analisarei o surgimento do movimento

tropicalista e seus desdobramentos. Perceberemos que Elis desaparecerá por alguns

momentos da análise, para retornar mais adiante. Acredito ser pertinente uma análise

pormenorizada das intenções tropicalistas para melhor refletir e inserir esta discussão

frente às novas escolhas realizadas por Elis após este fenômeno.

3.1 - O tropicalismo pede passagem

Napolitano aponta o tropicalismo como a ponte entre uma cultura política

nacional-popular, que organizava o consumo cultural, e uma cultura de consumo que

negava o nacional-popular, mas ao mesmo tempo incorporava seus fragmentos, diluídos

em outros materiais artísticos. Segundo o autor, “a decifração de uma situação ambígua,

a MPB como mercadoria exposta e os bens culturais elevados à condição de arte, davam

o tom de enigma histórico ao tropicalismo musical.” 255

De acordo com Caetano Veloso:

254 VICENTE, Eduardo. Organização, crescimento e crise: a indústria fonográfica brasileira nasdécadas de sessenta e 70. Artigo publicado em: Revista de Economía Política de las Tecnologías de laInformación y Comunicación www.eptic.com.br, Vol. VIII, n. 3, sep – dic. 2006, p.125.255 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp: 2001,pp.284- 285.

134

“... o nacionalismo dos intelectuais de esquerda, sendo uma mera reaçãoao imperialismo norte-americano, pouco ou nada tinham a ver comgostar das coisas do Brasil ou – o que eu mais me interessava – compropor, a partir do nosso jeito próprio, soluções originais para assoluções do homem e do mundo...” 256

Em 1967, Gilberto Gil declara ao Jornal da Tarde sobre uma possível vaia, ao

apresentar Domingo no parque acompanhado de guitarras elétricas:

“Mas estou tranqüilo. Seria muito mais cômodo se eu estivesseconcorrendo ao Festival com músicas como Roda ou Louvação,composições minhas já aceitas pelo público. Mas isso seria umadesonestidade para comigo mesmo e para com o público, porque nãorepresentariam a minha maneira de pensar atual. E não faço isso emtermos de desafio, acho apenas que todas as experiências são válidas namúsica, vista de maneira universal.”

Gil conta, ainda:

“Sinto-me hoje como num tribunal, onde sou acusado de trair averdadeira música popular brasileira. E não tenho muitas respostas paradar, porque eu mesmo não sei se estou agindo certo ou errado, comoninguém no mundo pode ter a certeza de alguma coisa antes de searriscar a fazê-la. Também não posso me arvorar e dizer que eu estoucerto, os outros é que estão errados.” 257

Esses depoimentos de Gil, além de demonstrarem uma consciência quanto ao ato

de fazer canções, expressos tanto no fato de ter que se sentir atualizado com as questões

que canta, quanto a atingir o público, mostram-nos também como era pesado o clima da

música popular nesta época, expressadas nas palavras tribunal, traição e verdadeira

música. A busca por uma universalidade musical também fazia parte dos desejos de Gil.

Anos após o que fora considerado uma revolução estética, e também com

maturidade e distanciamento para uma análise menos emotiva e mais racional do

evento, Gil declara:

“Nós fazíamos uma tentativa de adaptação de elementos brasileiros,elementos da música baiana e nordestina, elementos da tradição urbanado Rio e de São Paulo, da bossa nova, de Jobim. Juntávamos tudo issopara produzir uma música pop brasileira; que ainda que se utilizasse decoisas que vinham de fora e se baseassem nelas acabavamtransformando em coisas completamente diferentes. Foi uma coisa de sejogar, uma coisa de paixão absoluta de expressão pela coisa da música.

256 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p. 87.257 Publicado no Jornal da Tarde, em 4 de outubro de 1967 (sem crédito).

135

Eu não tinha projeto intelectual, isso ficava mais a cargo de CaetanoVeloso.” 258

Muito se falou deste movimento, tanto na época em que acontecia, quanto

depois. Seus principais mentores, Caetano Veloso e Gilberto Gil, foram presos e depois

exilados, de dezembro de 1968 até janeiro de 1972, portanto fora curta e breve a vida

deste movimento, diferentemente dos seus desdobramentos.

Marcelo Ridenti considera o movimento tropicalista como a mais expressiva das

transformações por que passava a sociedade no final da década de sessenta. Para o

autor, o tropicalismo é constituinte da brasilidade revolucionária, ao mesmo tempo em

que anuncia seu esgotamento e sua superação. Misturava-se a sintonia internacional

com a recuperação de tradições populares, o que levava os tropicalistas a brigarem com

o nacional-popular no campo da canção. 259

A estética e a prática tropicalista propunham, baseadas na leitura do “Manifesto

Antropofágico” do poeta Oswald de Andrade, uma experiência de contaminação com as

culturas que nos cercam. Uma mistura de Jimi Hendrix com Beatles, de berimbau com

sanfona. Em uma arte onde colaborou tanto o erudito quanto o popular, o carnavalesco,

a alquimia tropicalista reunia o primitivo nacional e o moderno. Ambíguo, o movimento

juntava o jeito clean de João Gilberto ao modo de cantar carregado de Vicente

Celestino, o fino da poesia concreta ao brega dos boleros e o purismo nacionalista dos

sons regionais nordestinos às informações trazidas de fora, pelo rock. Os baianos

redescobriram Oswald e um país rico de contrastes, virando pelo avesso o que se

entendia por cultura popular brasileira. 260

Segundo Celso Favaretto:

“A mistura tropicalista notabilizou-se como uma forma sui generis deinserção histórica no processo de revisão cultural que se desenvolvedesde o início dos anos sessenta. Os temas básicos dessa revisãoconsistiam na redescoberta do Brasil, volta às origens nacionais,internacionalização da cultura, dependência econômica, consumo econscientização.” 261

258 Gilberto Gil La passion sereine. Produzido no Brasil em 1987 pela TF1 em associação com o “Centrede la Cinematographie Et Du Ministeire Des Affaires etrangeres”, dirigido pelo diretor francês HubertNiogret.259 RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política – São Paulo: EditoraUNESP, 2010, p.101260 COELHO, Frederico Oliveira. & NAVES, Santuza Cambraia. A Revista de História da BibliotecaNacional. Ano 1- n.1- Julho 2005, p.30261 FAVARETTO, Celso F. Tropicália: alegoria, alegria. São Paulo, Kairós, 1979, p.13.

136

Envolvendo diversos artistas, como Caetano, Gil, Mutantes, Tom Zé, Gal Costa,

Rogério Duprat e, por associação, Zé Celso, Hélio Oiticica, Augusto de Campos,

Nelson Motta, dentre outros, o movimento tropicalista realizou uma espécie de revisão

crítica da cultura brasileira no âmbito da linguagem, da informação e do consumo,

despertando, como se esperava, reações de oposição. Através dessa revisão, esse grupo

legitimou sua atuação, pois estabeleceu antagonismos com outro movimento ou

ideologia considerado dominante, realizando releituras de suas problemáticas e

mostrando suas inconsistências.

Além dos laços com os poetas concretos, a participação de músicos vinculados

às correntes de vanguarda da música erudita, como Júlio Medaglia e Rogério Duprat,

que fizeram o arranjo de várias canções tropicalistas foi fundamental dentro do

tropicalismo.

A primeira aparição pública da proposta tropicalista no cenário nacional,

segundo Celso Favaretto, ocorreu no III Festival da Canção da TV Record, em Outubro

de 1967, com as músicas Domingo no Parque, de Gilberto Gil, e Alegria, alegria, de

Caetano Veloso. Apesar do impacto causado, as músicas de Caetano e Gil não foram as

vencedoras do festival, ficando, respectivamente, em quarto e segundo lugar. Mas o

festival foi o ponto de partida de uma apresentação que logo seria denominada de

tropicalismo e transformaria ambos em astros. Nessa época, os festivais, promovidos

pelas redes de televisão, eram um espaço de movimentação e manifestação de idéias

revolucionárias. Mais tarde, ambos teriam seu próprio programa de TV na Record, além

de se apresentarem em boates com esta proposta.

De acordo com Napolitano:

“O termo Tropicalismo, tal qual foi entendido nos anos sessenta,apareceu num manifesto-blague intitulado Cruzada Tropicalista,redigido por Nelson Motta. A intenção do manifesto-blague não eradifundir novos procedimentos de criação, mas apenas ridicularizar atendência ao “mau gosto” que eles, identificavam como a principalmatriz da cultura e da sociedade brasileira, que havia perdido o “trem dahistória” em 1964.” 262

Em entrevista, Motta conta que:

“Fora porta-voz do Tropicalismo e do Cinema Novo. Todo mundo eraamigo do Glauber [Rocha], do [Luiz Carlos] Barreto, do Cacá Diegues.Essa turma me dava as melhores notícias, porque eram meus amigostambém. Nunca tive esse espírito de repórter – que não condeno -, mas

262 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP: 2001, p.247.

137

não tenho essa coisa de notícia a qualquer preço, essa ambição dequerer saber da coisa antes dos outros, de informar, nunca liguei praisso. Gostava mais de fazer comentários, de analisar uma coisa, dejuntar com outra, não tenho essa alma de repórter. Então por essacaracterística, nessa coluna chamada “Roda Viva”263,eu usei para jogarluz em cima de coisas novas que estavam aparecendo e que não tinhamespaço em jornais mais caretas. Não havia em jornais o que estavafervilhando de cinema, de música, de literatura”.264

De acordo com Motta, O rei da vela e Terra em transe representaram, para Gil e

Caetano, uma poderosa inspiração e base estética para a sua revolução musical, tanto

quanto os Beatles, Janis Joplin e Jimi Hendrix. Segundo o autor, a montagem de Zé

Celso se opunha radicalmente ao formalismo político do Teatro de Arena, o filme de

Glauber Rocha explodia os folclorismos e paternalismos, a música de Gil e Caetano

rompia com a estética populista de esquerda musical. Eram oposição à oposição, e

contra a situação, mais do que nunca. 265O tropicalismo assumiu uma postura de

ruptura, contra o nacional-popular, em busca de uma nova forma de expressão artística e

inclusão no mercado. O movimento foi pólo ativo de uma nova inserção de artistas e

intelectuais na sociedade, da passagem de uma cultura política de matriz romântica

(popular-nacional) para uma cultura de consumo. Diferentemente da proposta da

esquerda nacionalista, que pretendia valorizar os elementos “arcaicos” da nação, o

tropicalismo se afirmava no contexto cultural, expondo esses elementos de forma

ritualizada. 266

Segundo Favaretto, o movimento tropicalista dava importância a

reinterpretações de compositores da tradição musical brasileira, esquecidos, tidos como

comerciais pela crítica, e estrangeiros que marcaram o gosto do púbico. Os tropicalistas

se utilizavam de colagens, livres associações e procedimentos pop eletrônicos,

objetivando fazer a crítica dos gêneros, estilos e, mais radicalmente, do próprio veículo

e da pequena burguesia, que vivia o mito da arte. No que diz respeito à situação da

canção no Brasil, o movimento tropicalista se propôs reinventá-la e tematizá-la

criticamente.

263 Em 1967 Motta escrevia essa coluna a convite de Samuel Wainer no Última Hora, sobre música,cinema novo, música popular, sobre Hélio Oiticica, sobre a geração 65 de artistas plásticos, era umacoluna do público jovem. In: A MPB em discussão: entrevistas / Santuza Cambraia Naves, FredericoOliveira Coelho, Tatiana Bacal (Organizadores) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p.46264 A MPB em discussão: entrevistas / Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho, Tatiana Bacal(Organizadores) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p.46.265 Idem, p.168.266 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP: 2001, p.247.

138

O disco Tropicália ou Panis et Circencis, manifesto do movimento, foi lançado

em 1968, com colagens de sons e citações poéticas. Composto por Gil, Caetano,

Torquato Netto, Capinam e Tom Zé, tinha Nara Leão como convidada e arranjos de

Rogério Duprat. Considero interessante citar a análise feita por Favaretto sobre a capa

do disco:

“Veja-se a capa: ela compõe a alegoria do Brasil que as músicasapresentarão fragmentariamente... Sobressai a foto do grupo, à maneirados retratos patriarcais; cada integrante representa um tipo: Gal eTorquato representam um casal recatado; Nara, em retrato, é a moçabrejeira; Tom Zé é o nordestino, com sua mala de couro; Gil sentadosegurando o retrato de formatura de Capinam, vestido com toga decores tropicais, está à frente de todos, ostensivo; Caetano, cabeleiradespontando, olha atrevido; os Mutantes, muito jovens, empunhamguitarras e Rogério Duprat, com a chávena-urinol, significa Duchamp.As poses são convencionais, assim como o décor: jardim interno de casaburguesa, com vitral ao fundo, vasos, plantas tropicais e banco depracinha interiorana. O retrato é emoldurado por faixas compondo coresnacionais, que produzem o efeito de profundidade... na capa representa-se o Brasil arcaico e provinciano; emoldurados pelo antigo, ostropicalistas representam a representação”. 267

Acredito que a análise da sétima faixa do álbum, Baby, sintetize bem a idéia do

movimento. A música de Caetano foi construída com base no ritmo da marcha

rancho, mas os arranjos de corda, baixo e violão complementando a melodia,

transformam a canção em algo novo, representando a busca tropicalista por uma

sonoridade pop brasileira:

Você precisa saber da piscina,da margarina, da Carolina, da gasolinavocê, precisa saber de mimbaby, babyeu sei que é assim

Você precisa tomar um sorvetena lanchoneteandar com a gente, me ver de pertoouvir, aquela canção do Robertobaby, babyhá quanto tempo

Você precisa aprender inglêsprecisa aprender o que eu seie o que eu não sei mais e o que eu não sei maisnão sei, comigo vai tudo azulcontigo vai tudo em pazvivemos na melhor cidade

267 FAVARETTO, Celso F. Tropicália: alegoria, alegria. São Paulo, Kairós, 1979, p.55.

139

da américa do sulda américa do sulvocê precisa, você precisa, você precisanão sei, leia na minha camisababy, baby, I love youbaby, baby, I love you268

A letra de Caetano convida o ouvinte a gostar de coisas banais, como tomar

sorvete e comer margarina, ato totalmente contrário ao que era pregado pelas músicas

de protesto. Ouvir aquela canção do Roberto é claramente uma referência à Jovem

Guarda. Caetano alerta sobre o consumismo e o fato da música se constituir enquanto

mercadoria. No início de cada estrofe, a frase Você precisa saber, parece alertar o

ouvinte quanto ao aspecto de não ser alienado. Trata-se de idéias fragmentadas, da

moderna realidade brasileira em contato com inúmeros aspectos internacionais, vistos

na necessidade de se aprender inglês.

Em Verdade Tropical, livro escrito 20 anos após o movimento, Caetano afirma

que, se o tropicalismo se deveu em alguma medida a seus atos e às suas idéias, tem que

se considerar o impacto que teve Terra em transe de Glauber Rocha, em sua temporada

carioca de 1966-1967, como deflagrador do movimento .269 Além disso, Caetano atribui

a João Gilberto uma postura de inovador, ao valorizar a contenção, ressaltando mais de

uma vez a ruptura joãogilbertiana com as tradições musicais brasileiras anteriores à

bossa nova, contrárias ao emocionalismo excessivo da música popular das décadas de

quarenta e cinquenta, também presente no programa O Fino da Bossa, apresentado por

Elis.

Várias são as passagens do livro em que Caetano se mostra incomodado com o

estilo de música tocado no Beco das Garrafas, que o autor caracteriza como samba-jazz

cheio de tiques. Ao refletir acerca do espetáculo que ajudara a produzir, juntamente com

seus amigos baianos e Augusto Boal, Arena canta Bahia, Caetano fala do desejo desse

diretor em não inserir canções de Dorival Caymmi, e sim os arranjos “cheios de tiques –

nitidamente inspirados nos números de Elis Regina no programa de TV O Fino da

Bossa”, de fácil acolhida, não só para Boal, mas também para os músicos. O diretor

sugeriu que além de uma pureza regional, queria atingir a juventude urbana que

entendia essa linguagem.270 Caetano identifica Boal como um defensor das opções

268 Baby. Composição Caetano Veloso. Gravação de Gal Costa e Caetano Veloso. Tropicália ou Panis etcircensis, LP, Philip, 1968. Faixa 7 (Segue em anexo os discos analisados na página 190).269 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p. 99.270 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p. 85.

140

estéticas da esquerda e explica seu incômodo pelo fato de as músicas de Dorival não

fazerem parte do repertório desse espetáculo, já que se tratava de falar da Bahia.

Caetano ressalta que foi uma viagem para uma temporada de apresentações em

Recife, em 1966, que teria feito com que Gil retornasse querendo realizar reuniões com

todos os colegas bem intencionados, para engajá-los em um movimento que

desencadearia as verdadeiras forças revolucionárias da música brasileira, para além dos

slogans ideológicos das canções de protesto, dos encadeamentos elegantes de acordes

alterados, e do nacionalismo estreito.

Segundo Caetano, este ânimo e transformação de Gil se deveram à sua

percepção da violência da miséria e da força da inventividade artística, esta dupla lição

pernambucana serviria para eles como um roteiro de conduta. Gil voltou sabendo que

seria necessário eles penetrarem nestas questões para, só assim, compreenderem os

mecanismos e características da cultura de massa. O retorno dessa viagem, para

Caetano, teria unido os pontos dispersos e as tendências difusas em um projeto de

movimento consciente e intencional, que requeria uma espécie de militância. 271

Caetano conta que:“na altura das reuniões de catequese organizadas por Gil, Torquato játinha aderido ao ideário transformador: os Beatles, Roberto Carlos, oprograma do Chacrinha, o contato direto com formas cruas de expressãorural do nordeste – tudo isso Torquato já tinha digerido e metabolizadocom espontaneidade suficiente para deixar entrever sua apreensão datotalidade do corpo de idéias que defendíamos.” 272

Sobre esta viagem à Recife, Gil conta que:

“Foi uma grande porrada. Eu cheguei no Recife, fui fazer um show noteatro popular do Nordeste. Fiquei lá um mês e o pessoal em Recifetinha muito aquela coisa de cultura popular, naquela época era umacoisa bem viva pro pessoal universitário, tudo o mais eles tinham essapreocupação com folclore. Então como eles achavam que eu era umcompositor, um dos compositores, um dos artistas brasileirosinteressados naquela coisa, então eles faziam questão de levar, degravar ciranda pra mim, me levar para ver a banda de Pífaros, emCaruaru. Eu chorei, fiquei emocionado, de ver aquela coisa tremenda.Então eu voltei do Recife pro Rio com certeza de que alguma coisatinha que ser feita em termos de movimento, em termo de integraçãodaquelas necessidades que eu achava que já existiam no universitáriobrasileiro, ali...Onde Recife é bem um exemplo, Cê tá entendendo?Nessa época Sérgio Ricardo era Sérgio Ricardo, Caetano Veloso eraCaetano Veloso, Vandré era Vandré, e eu era eu, tudo o mais. Eu tavamuito, sei lá...foi uma porrada que eu tomei lá e que me fez tomar outra

271VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p.131.272 Idem, p.141.

141

no Rio, ta entendendo? Quando eu comecei a reunir o pessoal, pra ver oque a gente fazia...isso foi em 1967, pouco antes do festival deDomingo no parque, de Alegria, alegria. Então aí nessa tentativa dereunir o pessoal, nada deu certo. Chico inclusive fala, sem citar a época,mas ele fala na entrevista a vocês, onde se tentava reunir o pessoal,então chegava um bêbado, outro chegava tarde, outro tinha que sair...osoutros não concordavam com nada daquilo. E eu com aquela ilusão dereunir o pessoal. Na verdade era uma atitude minha , era reflexo de umamá consciência política, tentando misturar tudo com aquela confusão nacabeça de música de protesto, aquela coisa toda de música participante,não sei quê. Foi uma época em que eu estava realmente muito confuso.Muito por fora, cê ta entendendo? Mas também me desencantei logo,tudo ficou muito claro que não dava certo.”273

É pertinente esta longa citação, por se tratar de um importante depoimento dado

alguns anos após a eclosão do movimento. Nele, ficam claras as posturas de Gil e seus

medos e incertezas. Gil diz ter percebido, nesta viagem, que as coisas e o povo do Brasil

de que a esquerda tanto falava e idealizava não era de fato levada em consideração ou

mesmo conhecida por grande parte desses artistas, ele fala, ainda, do sentimento de

confusão em relação às coisas que representavam as canções de protesto. Nota-se que

ele tentou, em vão, reunir os músicos e pessoas engajadas, mas ninguém levou isso

muito a sério.

Caetano conta que várias foram as manifestações de repúdio ao que faziam. Eles

almejavam, com o Tropicalismo, demonstrar o comercialismo das canções assumindo

sua inserção no mercado, sem culpas ou traumas, e principalmente, o desrespeito aos

princípios do projeto estético das esquerdas, dito nacional-popular. O cantor conta,

ainda, que foi em uma entrevista dada à Manchete, ainda nos anos sessenta, que ele

ouviu João Gilberto pela primeira vez, e teve vontade de fazer música. Segundo ele,

depois disso, industrializou-se (mas não muito) um samba classe A com aparatos

jazzísticos e clichês políticos, o qual à medida que ia perdendo o espaço, deixava de ser

um bom produto, para se tornar apenas uma idéia de defesa da pureza de nossas

tradições contra todo o lixo vendável, dentre eles boleros, versões e até mesmo o rock.

Caetano disse se sentir perdido frente a essas declarações e que jamais havia pensado

em música como um produto, além de não considerar o Fino da bossa como a salvação

de nossas tradições.274

De acordo com ele:

273ALMEIDA, Hamilton. (entrevistador) “O sonho acabou, Gil está sabendo de tudo”. O Bondinho,16/02/1972.274 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p. 207.

142

“O tropicalismo começou em mim dolorosamente. O desenvolvimentode uma consciência social, depois política e econômica, combinada comexigências existenciais, estéticas e morais que tendiam a pôr tudo emquestão, me levou a pensar em canções que eu ouvia e fazia. Tudo o queveio a se chamar de tropicalismo se nutriu de violentações de um gostoamadurecido com firmeza e defendido com lucidez...” 275

Sobre a defesa articulada do ideário nacional-popular que, de acordo com

Caetano, permeava todos os julgamentos dos esquerdistas brasileiros, ele recorda as

primeiras vezes em que escreveu um artigo combatendo as idéias de Tinhorão; sentia a

falta de discussões sobre, por exemplo, sexo e raça, elegância e gosto, amor ou forma e

não somente de discussões como proletariado e ditadura, palavras que rejeitava.276

De acordo com o cantor, todas as discussões, fossem dentro ou fora do Teatro

Jovem, eram permeadas pelas idéias da arte nacional-popular, cultivadas desde antes do

golpe de Estado, no Centro Popular de cultura da UNE, e pelas exigências estéticas dos

harmonicamente sofisticados filhos da bossa nova. Ele comenta, ainda, que Bethânia,

por não se filiar a nada, gostava e lhe chamava a atenção para a vitalidade dos

programas de Roberto Carlos, que era o contrário do que se via no ambiente defensivo

da MPB respeitável. Explica o quão escandaloso seria contar a este público uma

possível adesão à jovem guarda, demonstrando a forte rivalidade presente no meio

artístico que dividia e segmentava opiniões.277

Das questões centrais apresentadas em seu livro, além de reflexões e auto-

questionamentos, são discutidos aspectos como o nacional e o estrangeiro, os debates

estéticos musicais que permearam um ideário de pureza e representações de brasilidade.

O emblema deste movimento seria Carmem Miranda, uma vez que tal personagem era

um signo sobrecarregado de afetos contraditórios, para Caetano. Escrevendo as

memórias do tropicalismo, Caetano diz que o livro foi “um esforço no sentido de

entender como passei pela Tropicália, ou como ela passou por mim, porque fomos, eu e

ela, temporariamente úteis e talvez necessários um ao outro...” 278. Ao narrar sua história

e, consequentemente, a história da música brasileira, o músico se esforça também por

construir sua própria identidade.

O nacional-popular estava presente, não só na obra de Elis, mas em boa parte da

música que se fazia nos anos sessenta. O popular, para os tropicalistas, era o homem

urbano e antenado com as coisas do mundo, um homem que gostava de assistir

275 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998.255.276 Idem, pp.115-6.277 Idem, ibidem, p.121.278 Idem, ibidem, p. 18.

143

Chacrinha e de ouvir Vicente Celestino e Beatles. No entanto, podemos perceber, que,

até então, o popular não era tão conhecido e explorado pelos meios artísticos, através da

viagem realizada por Gil a Recife, e seus respectivos desdobramentos, quando Gil ouve

determinadas manifestações ditas da “cultura popular” e tenta entender seus

significados. Sua tentativa em criar um movimento para discutir esses aspectos, assim

como a falha em alcançar tal objetivo, indicam como o movimento tropicalista não

segue essa busca do popular, assim como a almejada por Gil, já no final dos anos

sessenta.

Os locais tidos como de pureza e autenticidade brasileira, como o sertão e o

morro, como percebemos no capítulo anterior, dão o sentido ao nacional-popular

cantado por Elis. Caetano caracteriza o que seria nacional, ou mesmo popular, como

algo ingênuo e “cru”. Caetano utiliza palavras como “tosco” para representar a música

pertencente às culturas populares. Exemplificando esta questão, ao citar a Banda de

Pífanos de Caruaru, ele a descreve como “um grupo musical de flautistas toscos do

interior de Pernambuco, cuja força expressiva e funda marca regional aliavam-se a uma

inventividade que não temia se autoproclamar moderna” 279. De acordo com o

dicionário Aurélio, tosco significa não lapidado, não polido, bronco, grosseiro ou rude,

malfeito. Em outra passagem em que podemos perceber este tipo de caracterização, é

quando Caetano se refere a um convite feito por Vandré a Clementina de Jesus

“conhecedora de lundus e sambas arcaicos... o público não estava preparado para ouvir

o samba tão cru e tão autêntico...” 280

Em 1972, a percepção do grupo, frente aos conhecimentos musicais das culturas

populares, foi descrita por Gilberto Gil, em entrevista à Veja, pelo motivo de seu retorno

ao Brasil:“... por exemplo, o samba em si, o samba como forma. O fato de eu me

sentir aqui, digamos, culturalmente irresponsável, engajado numamúsica pop que não sofre a força da gravidade, me faz sentir falta dacoisa brasileira. Quero ir ao morro falar com os sambistas. No meu casopessoal, o importante é que eu comecei o meu contato com a músicanum nível já mais estratificado, numa camada de elite. Meu contatocom a música foi na base da bossa nova. Agora, quero um contato coma ‘real thing’. Eu era um músico da elite. Minha forma de tocar violãosó hoje se aproxima da que os músicos naturais conseguem. A minhavolta também está ligada a isto. Quero me expor a toda essaexperiência, conversar com músicos brasileiros, com o Paulinho da

279 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p.131.280 Idem, p. 164.

144

Viola, ir a algumas cidades do Nordeste encontrar violeiros repentistas.E por aí afora.” 281

Em 2007, entrevistado por Ana Paula de Oliveira282e questionado sobre as

poucas referências em relação à questão étnica no Tropicalismo, Gil responde:

“Eu nunca tinha ido ao candomblé. Só fui depois do exílio. Aí é queme aproximei dos blocos, do significado profundo do carnaval daBahia. Salvador é uma cidade já muito misturada. Vivi a infância e aadolescência no bairro de Santo Antônio, que é médio por excelência.Quer dizer, um bairro onde convivem árabes, negros, espanhóis,brancos, mestiços, mulatos, cafuzos, gente do sertão... E todos de classemédia, com casa e profissão liberal. E a média é a média. Vivi ali, namédia das coisas, sem perceber os pólos. Só fui sentir o racismoquando comecei a ir ao Colégio Marista, de pequenos burgueses, namaioria brancos. [...] Por isso, eu não tinha noção dessa profundadivisão racial e muito menos da cultural. Os blocos eram afros, masincluíam todo mundo! Era a própria cidade de Salvador, como nós,mulatos. Durante o exílio, vi que na Inglaterra a questão racial tinhamais peso. Então conheci a consciência negra como um trabalhoapoiado no mundo inteiro pelos ativistas americanos, e a informaçãoexaustiva sobre os movimentos de libertação na África... Isso culminouem mim quando saí nos Filhos de Gandhi. Depois fui ao Festival deArtes Negras na África. E aí vem Refavela, que é o primeiro manifestonegro, não é?” [grifos meus]

Estas citações de Gil, bem como a análise de Caetano referente ao universo da

musicalidade popular, demonstram que a busca por elementos brasileiros para se

inserirem em suas músicas se configurou mais por um popular no sentido de massivo.

Eles inseriram em suas músicas o Brasil popular do Chacrinha e das músicas tocadas

nas rádios e não das manifestações nacionais, que eram marcantes nos carnavais e festas

populares.

O que percebo no tropicalismo é uma a retomada radical de uma questão

estrutural, ligada à identidade nacional: de tempos em tempos, perguntar-se sobre a sua

natureza. A ambição tropicalista era “reler” o país entendendo-o, buscando o

espelhamento, não somente em um único Brasil, mas em inúmeros Brasis, e também em

influências que vinham de fora. A música brasileira se revelou com importância de

primeira grandeza para explicar o Brasil.

Assim sendo, a retomada da discussão da brasilidade pelos artistas tropicalistas

desestruturou a visão mítica da MPB, isto é, o entendimento da nação com a

possibilidade de ser próspera e poderosa, desde que se combatesse o imperialismo e a

281 KUCINSKI, Bernardo. (entrevistador). “As experiências e a volta de Gilberto Gil”. Revista Veja19/01/1972.282 Para o site: www.tropicalismo.com.br. Acessado em 03/05/2011.

145

ditadura militar e se contrapusesse esse homem do povo à modernidade, que provocava

tantos problemas sociais. O tropicalismo apresentou as inconsistências ideológicas deste

projeto, que visava eleger somente algumas características como representantes da

brasilidade. Para os tropicalistas, tudo era deglutível e necessário para realizar arte.

Entendo que os tropicalistas compartilhavam a visão da esquerda de que a produção

artística devia estar associada a transformações revolucionárias, mas discordavam no

entendimento do que seriam estas transformações e de que forma se realizariam.

3.2 - Elis: mudanças e continuidades

O lugar ocupado por Elis Regina, em meio ao cenário artístico nas décadas de

sessenta e setenta, foram os teatros, os festivais, a televisão e, posteriormente, inúmeras

cidades do interior do Brasil, em um circuito universitário, realizado em 1972. Pode-se

perceber, na carreira de Elis, uma constante busca sua e de sua produção por novos

locais de apresentação. A perda de prestígio do Fino da Bossa e o ataque tropicalista ao

nacional-popular, dentre outros inúmeros fatores analisados a seguir, modificariam sua

postura e obra, no final dos anos sessenta e início dos setenta.

Elis trazia, desde o Clube do Guri, a tradição do samba-canção e dos boleros e a

voz cheia de ornamentos. É a partir do LP lançado em 1969 que fica perceptível a

mudança, alardeada por Elis na contracapa de seu LP, em 1966. No início de sua

carreira, quando se apresentou nos festivais e também no seu programa televisivo, ela

era conhecida como Eliscóptero283, por suas danças e movimentações, que

demonstravam uma ruptura com a bossa nova, através de uma performance sem

contenções.

Podemos dizer que Elis, juntamente com outros artistas, foi responsável pelo

momento inicial da ampliação do público da MPB. Extrapolando os limites dos shows

patrocinados por entidades estudantis, como aqueles ocorridos em São Paulo, no Teatro

Paramount, Elis se tornou uma forte estrela do meio televisivo e, após sua saída da TV,

continuou realizando shows em teatros produzidos pela dupla Miele e Bôscoli.

Os anos de surgimento e consolidação do movimento tropicalista, 1967-68,

foram significativos na vida e obra de Elis. Com o fim do seu programa na Record, e na

283 Elis cita este fato no LP Elis no Teatro da Praia gravado em 1970.

146

tentativa de um redirecionamento em sua carreira desde 1966, percebemos uma

tentativa de aproximação mais direta da cantora com a bossa nova. Ocorrem mudanças

em sua voz, e também na execução instrumental que a acompanha, que passou a se

utilizar menos de desdobramentos rítmicos e das dinâmicas que exploravam desde o

pianíssimo ao fortíssimo, muito característico de seus discos gravados a partir de 1965.

Fiz uma pesquisa nas revistas Manchete, de 1965 até 1982, ano de morte de Elis.

Por ser uma revista de ampla circulação e com forte presença de artistas nacionais e

internacionais, pude ter acesso a vários depoimentos de Elis ao longo deste período. No

entanto, outras fontes e revistas foram analisadas e levadas em consideração. É

interessante citar que a figura mais recorrente nas reportagens deste longo período

analisado foi, imbativelmente, Roberto Carlos, sendo que Chico Buarque apareceu com

certa frequência e Elis, de tempos em tempos, aparecia como manchete.

Em 1968, Ronaldo Bôscoli284 escreveria, por ocasião de seu casamento com

Elis, que quando a conhecera, três anos antes, ela era “excessivamente deslumbrada

com tudo que fosse novidade”, disse também que ela odiava coisas marítmas e ditas no

diminutivo. Conta, ainda, que “naquele tempo, muito criança e mal orientada, tinha

iniciado sua carreira com a marca de péssima profissional”.

A revista anuncia a viagem de Elis, acompanhada sempre pelo Jazz Bossa Trio,

a Paris285, em 1968, para uma temporada de 15 dias no Olympia, além de uma viajem a

Londres, para o cumprimento de um contrato com a BBC. Muito aclamada no Midem,

Elis participou de inúmeras entrevistas e programas de tv franceses e há relatos de que

ela teria recusado alguns contratos internacionais, por possuir outros no Brasil. A

pressa de Elis em voltar ao Brasil se devia ao show intitulado Elis Especial, produzido

pela dupla Miele e Boscoli, em que além de cantar e dançar, Elis interpretava textos.

Sem precisar a data e em qual meio de comunicação isso se dá, Echeverria conta

que, em 1968, Elis atacou publicamente os tropicalistas, dizendo que “de artístico

mesmo, não tem nada, nada!”. 286

Caetano Veloso, em entrevista a Echeverria, comenta que:

“Elis foi a primeira artista sofisticada da música popular a se tornarconhecida através da televisão. Isso tem valor histórico, que, mesmoque Elis fosse uma péssima cantora, já seria uma coisa de grande porte.O problema de Elis era sem dúvida um problema de insegurança

284 BÔSCOLI, Ronaldo. “Meu casamento com Elis Regina”. Revista Manchete: n°818. 23/12/1967.285 “Cannes – Palmas para Elis”. Revista Manchete: n°825.10/02/1968.286 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, pp. 82- 83.

147

intelectual e de prestígio, no sentido de saber se o que estava fazendoera uma coisa séria. E o Tropicalismo mexeu com tudo isso, o que erasério ou não, o que era respeitável ou não, o que era kitsch, o que erachique. Tenho a impressão que o tropicalismo não deve ter parecido aela uma coisa ameaçadora ou má. Acho que ela ficou balançada, é isso– aquilo ia para todos os lados e ela ficou sem saber.” 287

Acredito que o motivo de Elis se sentir “balançada”, se devesse ao fato de que o

que ela cantava em seus discos e em seu programa O Fino da Bossa fosse justamente o

que os tropicalistas criticavam naquele momento, o nacional-popular. As canções

gravadas por Elis no período que antecede o tropicalismo falam principalmente da

situação do favelado e do negro e suas manifestações, dentre elas o samba e a

capoeira.288

Sobre essa fase de sua carreira, quando questionada sobre a escolha de seu

repertório em entrevista à Revista Veja, em 1978, Elis responde:

“Teve uma fase infantil, ou juvenil, eminentemente romântica. Foiquando cheguei ao Rio de Janeiro e comecei a cantar músicas que separeciam muito com o que eu ouvia na aula do professor Jorge, o zorrovingador dos meus 18 anos. E, como toda pessoa que está saindo daescola, não participando de nada efetivamente, não lançandoprofundidade em nada, acaba se tornado superficial. Eu achava que eracorreto porque assim eu tinha ouvido e batia com meu conceito dejustiça. Mas era muito romântico.” 289

Esta declaração parece ser um “esclarecimento” de Elis por ter gravado um

repertório repleto de temática nacional-popular, amplamente atacado pelos tropicalistas

no final da década de sessenta, já que se refere à época em que chegou ao Rio de

Janeiro. A entrevista feita praticamente dez anos após o movimento tropicalista mostra

uma fala que se desculpa, que fala da justiça, mas que ao mesmo tempo se justifica. A

partir dos apontamentos feitos pelos tropicalistas, podemos estabelecer uma semelhança

entre eles e Elis Regina, já que ambos desenvolveram suas carreiras nos anos sessenta e

também buscaram compreender os problemas do Brasil e suas soluções. Tanto o

tropicalismo, como Elis, foram herdeiros do romantismo revolucionário da década de

sessenta, mas cada um o desenvolveu à sua maneira, com características peculiares.

Em uma espécie de balanço de carreira, no início dos anos setenta, Elis fala

sobre os movimentos musicais:

287 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Editoro, 2007, p. 175.288 O povo brasileiro e sua cultura são encarados como manifestações autênticas da nacionalidade,capazes de livrar o país de seus problemas sociais.289 ECHEVERRIA, R. (entrevistadora) – O sinal está vermelho. Revista Veja 25/10/1978.

148

“A bossa nova foi uma das coisas mais completas em termos de música,harmonia e melodia. O principio da jovem guarda foi muito pobre. Osmúsicos eram muito amadores. Evidentemente havia pessoas de valor,como Roderto, Erasmo e Wanderléa, que foram os que ficaram. Mas amalta que havia ao redor tumultuou e deu um certo empobrecimento. Aípintou a tropicália que me pegou desprevinida e me derrubou. Nocomeço eu não entendia nada. Tem coisas que mexem na texta (sic) dagente e a tropicália mexeu na minha nuca. Foi aí que comecei a sacaruma série de conceitos. Precisei de um ano para assentar a poeira esentir o que representava aquilo tudo. Não se pode negar o trabalho deletra, de orquestração, o tipo de inovação que Rogério Duprat, Gil eCaetano trouxeram – a abertura para que a gente pudesse cantarqualquer tipo de coisa. A partir da tropicália, as pessoas perderam avergonha de dizer que um dia tinham gostado de Adelaide Chiozzo, daEmilinha Borba, da Marlene.” 290

Esse depoimento de Elis nos mostra como o movimento da tropicália mexeu

com seus conceitos e com sua própria maneira de encarar a música popular brasileira,

isto ainda no início dos anos setenta. As palavras utilizadas por Elis para demonstrar o

impacto do movimento tropicalista foram desprevenida, me derrubou e mexeu na

nuca. Afirmando que no começo não entendia nada, Elis diz que foi a partir do

movimento que ela começou a compreender melhor uma série de conceitos e destaca o

fato de sentir menos vergonha ao assumir gostar de cantores da era do rádio.

No ano de 1968, acontece a instauração do AI5, e os setores culturais e críticos

de esquerda passaram a ser duramente reprimidos. De acordo com Napolitano, o

período que vai de 1969 até 1974 não foi bom para a MPB, principalmente por motivos

políticos. A repressão policial e o cerceamento da censura dificultaram a criação, ainda

mais quando se tratava de platéias estudantis, houve “um corte abrupto de uma grande

festa revolucionária, que estava em pleno auge”.291 Dez anos após, Elis relembra esse

momento:

a partir de 68 a gente passou por um período de vazio, inclusive vaziofísico porque muita gente tava fora e não se contava de imediato com apresença de Gil, Edu, Caetano, Chico uma série de pessoas quenormalmente a gente costumava encontrar... havia um misto de saudadee de ansiedade, de não saber o que estava acontecendo... na épocabastante ingênua e com certo medo. 292

290 PINHEIRO, Narciso (entrevistador). Os ídolos dez anos depois. Revista Manchete n°1113.18/08/1973.291 NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980) 3. Ed. – São Paulo:Contexto, 2006. – (Repensando a História), p. 85.292 Entrevista ao Vox Populi, realizada em 1978, programa da TV Cultura.

149

3.3 - 1969

Em 1969, Elis grava com Toots Thielmans, pela Phonogram International B. V./

Fontana Especial, na Suécia. No entanto, esse LP foi lançado no Brasil apenas em 1978.

O mesmo acontece com Elis Regina in London, gravado pela Phonogram Ltd. UK/

Philips e lançado no Brasil em 1982.293O repertório desses discos não serão analisados,

visto que os mesmos não foram lançados no Brasil no período abordado por essa

pesquisa, mas vale dizer que eles demonstram uma tentativa de internacionalização da

carreira de Elis, e uma forte aproximação com a bossa nova. Essa aproximação se deve,

principalmente, ao repertório gravado, com um considerável número de músicas de

Tom Jobim e Roberto Menescal, algumas interpretações em inglês e interpretações

bastante jazzísticas.

O LP Elis. Como & porque294, lançado no Brasil, em 1969, produzido por

Nelson Motta, trata-se, na nossa análise, de um disco de ruptura com os que vinham

sendo lançados pela cantora desde 1965. Pode-se ouvir Elis Regina abusando de

vocalizes, o que já fazia anteriormente, no entanto com volume vocal menos intenso em

todas as canções, demonstrando, por este aspecto, uma forte modificação em sua

performance e um distanciamento da maneira de cantar adotada desde o início de sua

carreira, que consistiu em cantar com uma forte entonação e vibratos, lembrando as

cantoras do rádio. Há, também, a modificação no seu repertório, no qual já não percebo

mais músicas com a temática nacional-popular dos discos anteriores, apresentando-nos

a partir de então outros aspectos nacionais.

293 Discografia in: ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, p.206.294 O arranjador de orquestras deste LP, Erlon Chaves, acompanhou Elis em 1968 em sua excursão aParis. Ingressou na carreira artística nos anos 50, como pianista em casas noturnas, desenvolvendo umatécnica jazzística desde então. Já o arranjador do conjunto, Roberto Menescal participou, em 1962, dohistórico Festival de Bossa Nova, realizado no Carnegie Hall de Nova York (EUA), ao lado de váriosartistas como Tom Jobim, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo, Chico Feitosa e outros.Informações contidas em:http://www.dicionariompb.com.br. Acessado em 15/02/2011.

150

Quadro 3 - Temáticas das músicas do LP Elis como e por que295:

Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Outros

Aquarela do

Brasil/Nega do cabelo

duro

X

O sonho X

Vera cruz X

Casa forte X

Canto de Ossanha X X

Giro X

O barquinho X

Andança X

Récit de Cassard X

Samba da pergunta X

Memórias de Marta

Saré

X

Fonte: Elis, como e por quê. CBD/Philips, 1969.

Menções às divisões rítmicas do baião, em Casa forte, ao samba, em Samba da

pergunta e ao rock, em Andança, ganham a cara do próprio disco. Trata-se de uma

sonoridade que se utiliza de violões, congas e cordas, no entanto não se faz menção

direta a gênero nenhum. Há a intenção das divisões de determinados gêneros, mas esses

não estão claramente definidos. Diferentemente dos discos lançado anteriormente, este

295 As faixas do LP Elis Como & Porque são as seguintes: Aquarela do Brasil(Ary Barroso)/Nega docabelo duro (Rubens Soares, David Nasser), O sonho (Egberto Gismonti), Vera Cruz (MiltonNascimento, Márcio Borges), Casa forte (Edu Lobo), Canto de Ossanha (Baden Powell, Vinícius deMoraes, Giro (Antonio Adolfo, Tibério Gaspar), O barquinho (Roberto Mensecal, Ronaldo Bôscoli),Andança (Danilo Caymmi,, Edmundo Souto, Paulinho Tapajós), Récit de Cassard (do filme Lesparapluies de Cherbourg) (J. Demy, Michel Legrand), Samba da pergunta (Pingarilho, MarcosVasconcellos), Memórias de Marta Saré (Edu Lobo, Gianfranceso Guarnieri)

151

traz uma sonoridade menos intensa, com dinâmicas mais comportadas, tanto na voz

quanto na instrumentação.

As músicas que remetem ao Brasil, neste LP, são quatro. A primeira canção do

LP é um pot-pourri, Aquarela do Brasil é um samba de exaltação, acompanhado por

piano e com intervenção de cordas, a segunda parte da canção é Nega do cabelo duro. A

maneira de cantar de Elis está mais contida e o acompanhamento musical também. Se o

samba de Ary Barroso revela um país lindo e trigueiro, a segunda canção enfatiza os

aspectos referentes à negritude na formação da sociedade brasileira, além de evidenciar

a exclusão social deste grupo em versos como qual é o pente que te penteia?A segunda

música somada à primeira procura apontar as contribuições africanas na formação do

país.

Ouvindo a gravação da música cantada por Elis, é possível observar que a

relevância dada à cultura negra no conteúdo da letra não tem o seu correspondente na

escolha dos instrumentos que constroem a base rítmica da canção. A voz da cantora é

sustentada pelo piano. Instrumentos como pandeiro, surdos e tamborim, os quais

normalmente estão presentes na produção de sambas, não se fazem presentes neste

arranjo.

Música gravada anteriormente por Elis, Canto de Ossanha, ganha nova tessitura

neste LP, acompanhada por piano, baixo e bateria, com algumas intervenções de cordas.

Elis, ao deslocar a posição da melodia, se aproxima de um modo de interpretação

característico da obra de João Gilberto.

Tanto Giro quanto Memórias de Marta Saré são canções que tematizam a vida

no interior do país. A primeira tem em seu arranjo congas, metais, baixo e bateria e há

nesta canção menção às divisões do rock, com final de blues. Ambas tratam da

ingenuidade da vida interiorana: a primeira fala de cancioneiros, bandas e das saias de

algodão e a segunda afirma que a moça da fazenda deve entrar pra dentro de casa e

rezar seu rosário.

Duas músicas não se inserem em nenhuma das temáticas. Em Casa forte, não há

letra, e sim vocalizes de Elis, acompanhada por um jazz brasileiro no instrumental. O

sonho, de Egberto Gismonti, narra um sonho de alguém que foi parar no espaço e neste

lugar sentiu a liberdade. Não acredito ser possível compreender essa música enquanto

uma metáfora para falar dos exilados, que deixaram o país pela falta de liberdade, pois a

interpretação melódica de Elis é alegre e não parece denunciar esse tipo dramático de

situação. No entanto, a música instrumental não acompanha com ruídos ou psicodelias a

152

letra, diferentemente do que estava sendo feito neste momento na música brasileira,

como, por exemplo, pelos Mutantes. No arranjo há piano, baixo e bateria com

intervenções de cordas, não há exploração de timbres e os instrumentos não

acompanham a idéia de um sonho espacial. Apesar de não ter um gênero definido, a

música se organiza em torno de elementos do rock, como a marcação a tempo da bateria

e um final de blues.

O barquinho, música composta por Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, muito

interpretada por bossanovistas, é reinventada pela banda, neste LP, e soa completamente

diferente de sua antiga leitura. Tocada com congas utilizando ritmos latinos. A voz de

Elis, diferentemente da bossa nova, se sobrepõe aos instrumentos, em uma apropriação

claramente diferente da utilizada pela bossa nova.

3.4 - 1970

Nos anos 70, grávida de Ronaldo, Elis lançaria 2 LPs, um chamado Em pleno

verão e Elis no teatro da praia. Nesses discos, Elis interpretou canções de temáticas

variadas, buscando novos compositores e fazendo as pazes com o iê-iê-iê, ao gravar

músicas de Roberto e Erasmo Carlos, como Se você pensa e Nas curvas da estrada de

Santos, e também com a Tropicália, gravando Irene, de Caetano Veloso, e Aquele

abraço, de Gilberto Gil, ambos exilados políticos.

153

Quadro 3.1 - Temáticas das músicas do LP Elis no Teatro da Praia296

Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Temática política:

Introdução: Casa

forte/Reza/Noite dos

Mascarados/Samba da

Benção/Making

whoopee

Reza/Noite dos

Mascarados/Samba da

benção/ Making

whoopee

Samba da benção

Zazueira X

Minha X

Irene X

Musical de gala: Eu e

a brisa/Preciso aprender

a ser só/Carolina/Nunca

mais/Franqueza/Se

todos fossem iguais a

você

Eu e a brisa/Preciso

aprender a ser

só/Carolina/Nunca

mais/Franqueza/Se

todos fossem iguais a

você

Aquele abraço X

Can’t take my eyes off

you

X

Se você pensa X

Fonte: Elis no Teatro da Praia.CBD/Philips, 1970.

Com a direção da produção fonográfica de Roberto Menescal, dirigido por Miele

e Bôscoli, Elis no Teatro da Praia é um disco gravado ao vivo, que mistura textos e

músicas.

Luiz Carlos Miele, diretor e atuante, descreve assim o espetáculo transformado

em LP:

296 As faixas do LP Elis no Teatro da Praia são as seguintes: Introdução: Casa forte (Edu Lobo) /Reza(Edu Lobo, Ruy Guerra) /Noite dos mascarados (Chico Buarque) /Samba da benção (Baden Powell,Vinícius de Moraes) /Making whoopee(W.Donaldson,G. Kahn), Zazueira (Jorge Ben), Minha (FrancisHime, Ruy Guerra), Irene (Caetano Veloso), Musica de gala: Eu e a brisa ( Johnny Alf)/ Preciso aprendera ser só (Marcos Valle, Paulo Sérgio Valle)/ Carolina (Chico Buarque)/ Nunca mais (Dorival Caymmi)/Franqueza (Denis Brean, O. Guilherme)/ Se todos fossem iguais a você (Tom Jobim, Vinícius deMoraes), Aquele abraço (Gilberto Gil), Can’t take my eyes off you (B. Crewe, B. Gaudio), Se você pensa(Roberto Carlos, Erasmo Carlos).

154

“Com esse show, segundo a crítica, Elis deu o salto. Ela dançava,sapateava, fazia humor, e principalmente, é claro, cantava (...) Mas eratudo uma grande festa, entre mim, Elis, Ronaldo, Menescal e oconjunto, e acredito que isso tenha sido passado para o público, poisficamos em cartaz durante nove meses, cinco no Rio, quatro em SãoPaulo, no teatro Maria Della Costa. Durante esse período, fomos asegunda bilheteria da cidade, perdendo apenas pára a peça Hair, que erauma super produção.” 297

Este LP foi gravado ao vivo, no Rio de Janeiro, no Teatro da Praia, por Elis

Regina e Luiz Carlos Miele, mesclando textos, piadas e músicas. O clima do número de

abertura é leve e de brincadeira, Elis fala do início de sua carreira e a influência

exercida pelo dançarino Lennie Dalle sobre ela, é tocado um samba jazz por piano,

baixo, bateria e um triângulo e as músicas não têm conexão entre si, mas estão ligadas

ao encadeamento das piadas, que são contadas por Miele. Ambos fazem um pequeno

sapateado nesse número, demonstrando uma ligação maior com os EUA do que com as

maneiras de se dançar no Brasil. Não percebo uma intenção neste espetáculo/disco em

se remeter a coisas ou danças do Brasil.

As falas de Miele sobre a televisão e seus comerciais, na terceira faixa, não

demonstram uma consciência política ou mesmo uma postura crítica em relação aos

meios de comunicação. A música cantada por Elis depois das piadas de Miele é

acompanhada por teclado, com algumas intervenções do baixo e cordas em uma triste

interpretação, bem dramática. No entanto, não há conexão entre o texto e a música

interpretada, nem gênero definido.

Antes de cantar Irene, Elis declama:

“Eu considero o Caetano como um irmão e tenho por ele umaadmiração e um respeito que quase todos você têm, de um gênio, apessoa mais importante de minha geração, música recentíssima, nascidacomo ele em Santo Amaro da Purificação, Bahia.”

Irene foi escrita por Caetano Veloso em seu exílio. Sentindo-se deslocado, o

compositor demonstra, com essa canção, que gostaria de retornar para sua terra e sua

gente, convertendo-a em uma denúncia política e fazendo referências à imposição do

governo em mantê-lo afastado do Brasil. A música é interpretada com inspiração no

tropicalismo, com guitarras distorcidas e efeitos de teclado, algo utilizado pelos

tropicalistas e ligados ao universo do rock.

297 MIELE, Luiz Carlos. Poeira de estrelas. - Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p.52.

155

Os textos têm em comum as piadas despretensiosas, sem conteúdos subliminares

ou intencionalmente indiretos. Miele brinca muito com a língua inglesa e as músicas

interpretadas não têm, em sua maioria, ligação com as piadas contadas em sua

introdução.

De acordo com Motta, produtor do LP Em pleno verão, Elis com 24 anos e

grávida de seu primeiro filho “queria mudar, precisava mudar mas não sabia ainda como

nem o quê.” A primeira coisa que fizeram juntos, ele e Elis, foi encomendar a Gil e

Caetano, em exílio londrino, músicas especiais. Segundo Motta, Elis, ex-opositora do

tropicalismo, assim como outros artistas, se sentia solidarizada com os artistas em

exílio. Também, segundo Motta, arqui-inimiga da jovem guarda, em conversas e

reavaliações, Elis passou a ser uma grande intérprete da dupla Erasmo e Roberto. De

acordo com Motta, num momento em que a música brasileira se dividia entre MPB

nacionalista, tropicalismo e rock internacional, apareceu uma novidade chamada Tim

Maia com uma música negra americana e Elis ficou “besta com que ouviu”.298

Quadro 3.2 - Temática das músicas do LP Em pleno verão 299:

Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Temática política: Outros

Vou deitar e rolar X

Bicho do mato X

Verão vermelho X

Até aí morreu Neves X

Frevo X

As curvas da estrada de

Santos

X

298 MOTTA, Nelson. Noites Tropicais solos, improvisos e memórias musicais. Editora Objetiva, 2000, pp.202-206.299 As faixas do LP Em peno verão são as seguintes: Vou deitar e rolar (Baden poqell, Paulo CésarPinheiro), Bicho do mato (Jorge Ben), Verão vermelho (Nonato Buzar), Até aí morreu Neves (Jorge Ben),Frevo (Tom Jobim, Vinícius de Moraes), As curvas da estrada de Santos (Roberto Carlos, ErasmoCarlos), Fechado pra balanço (Gilberto Gil), Não tenha medo (Caetano Veloso), These are the songs (TimMaia), Comunicação (Edson Alencar, Hélio Matheus), Copacabana velha de guerra (Joyce, SérgioFlaksman).

156

Fechado pra balanço X X

Não tenha medo X

These are the songs X

Comunicação X

Copacabana velha de

guerra

X

Fonte: Em pleno verão. CBD/Philips, 1970.

Em pleno verão foi um LP orquestrado por Erlon Chaves. Os temas das músicas

passam, principalmente, por questões amorosas, malandragens do cotidiano, e por

aspectos que podem ser interpretados como políticos, por refletirem o estado de exílio

de Caetano e Gil. A palavra medo aparece na música de Caetano e também na última

canção Copacabana Velha de Guerra, no entanto, com conotações diferentes. Na

primeira, é um medo frente a tudo, em enfrentar uma situação que pode sempre piorar.

Na segunda, a falta de medo é acompanhada por uma busca de inserção na sociedade.

Ao mesmo tempo em que a música de Gil, Fechado pra balanço, demonstra um

tempo transitório de reflexão representado pelo próprio título da canção, também fala de

sua saudade de coisas brasileiras. Apesar da imposição de estar fora do Brasil, Gil vê

com positividade a situação300 em que se encontrava naquele momento, representada

pelos versos tou fechado pra balanço/ meu saldo deve ser bom, e também esperançoso,

como percebemos em viver não me custa nada/ viver só me custa a vida. A música de

Gil, além de falar de uma situação que sabemos ser a sua naquele momento, fala da

saudade da Bahia e de coisas do Brasil, como o xaxado e o côco. Já Caetano, em Não

tenha medo, mostra sua amargura e sofrimento, onde nada é pior do que tudo/ que você

já tem no seu coração mudo. Caetano fala de como está mudo e sem expectativas,

retratando sua situação de angústia. Em nenhuma das músicas o arranjo e a sonoridade

acompanham esta idéia de sofrimento; a música de Caetano é interpretada como um

alerta, um chamado a se pensar que a situação poderia ser pior, é quase um “anime-se”.

A sonoridade e a voz de Elis são alegres e animadas, o contrário do sentimento contido

300 A diferença de aceitação perante o exílio, aceito com menos amargura por Gil em comparação comCaetano é indicada em VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

157

na letra de Caetano, demonstrando que a interpretação musical é desconectada do

sentido da letra.

Verão vermelho é instrumental e acompanhada por vocalizes de Elis.

Comunicação, por exercer uma crítica aos meios de comunicação, não se caracteriza

como um problema de caráter unicamente nacional, mas representa uma questão

política. Esse questionamento sobre os meios de comunicação, abordado por Elis na

capa de seu LP de 1966301, também aparece em seu espetáculo realizado em 1975, em

que Elis encena a sua concepção sobre a manipulação televisiva em sua carreira.

De acordo com Mateus Pacheco, no espetáculo Falso Brilhante, os tempos de

festivais e também do programa O Fino da Bossa formavam um fio condutor que

levavam Elis à glória. No final do primeiro ato, surge um questionamento sobre o papel

das mídias na carreira do artista brasileiro. Em um primeiro momento, a relação com a

TV é vista com fascínio através de reconhecimento na rua, pelas capas de revista e o

interesse do público pelos seus posicionamentos, formando assim, uma imagem

gloriosa. Em meio a essas glórias, surgem duas mãos enormes, que pegam Elis e

levando-a para o fundo do palco, onde ela fica dependurada por um gancho. De acordo

com o autor, essas mãos funcionam como um despertar de uma consciência de quem

vivia a falsa ilusão de um sonho, o de ser uma estrela. Elis, assim como tantos outros,

foi envolvida e amarrada à mídia, mais propriamente à televisão e ao esquema de

empresariamento da época.302

Percebo, com esta questão, não somente uma tomada de consciência de Elis

Regina sobre a forte influência da televisão e dos demais meios de comunicação em sua

carreira, como também que este problema seria revisitado por Elis em diferentes

momentos de sua carreira, como é o caso da canção Comunicação, cujo tema é o

fanatismo pela televisão.

Neste LP, diferentemente do lançado no ano anterior, os instrumentos aparecem

com uma sonoridade mais marcante, as dinâmicas voltam a ser mais fortes. A

sonoridade é menos econômica, assim como a voz de Elis. Os metais aparecem bem

mais nos arranjos. É a primeira vez que percebemos a utilização de efeitos no teclado,

na música These are the songs, além da guitarra, tão combatida por Elis anos antes. Há

a presença do funk, marcada pelo encontro de Elis com Tim Maia nas músicas These

301 Texto citado no capítulo anterior na página 115.302 PACHECO, Mateus. Elis de todos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção. Dissertação(mestrado) – Universidade de Brasília. Departamento de História, 2009, pp.42- 43.

158

are the songs e em As curvas da estrada de Santos; além de músicas com sonoridade

latina, sem nenhum gênero definido, como Até aí morreu Neves e Bicho do mato.

Nenhuma das músicas está ligada ao nacional-popular. Das canções de temática

nacional, há a canção de Gil, que sente falta da Bahia e dos ritmos brasileiros e Frevo,

música de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, onde o Brasil é exaltado em versos como

verde mar, céu de anil/ nunca se viu tanta beleza, ah, meu deus/ que lindo o meu brasil.

3.5 - 1971

Em 1971 Elis lança o LP Ela, também produzido por Motta, e assina um

contrato com a Rede Globo para apresentar um programa ao lado de Ivan Lins,

chamado Som livre tipo exportação. A Revista Manchete anunciaria Elis assim: “... Em

grande forma e bem mais alegre e jovial do que nos seus últimos tempos aqui, quando

tinha um programa de televisão só seu, estava feliz com tantos aplausos.” 303

Quadro 3.3 - Temáticas das músicas do LP Ela 304

303 Soares, Dirceu (entrevistador). Eles exportam o som. Revista Manchete n°997. JUN/1971.304 As faixas do LP Em peno verão são as seguintes:Ih!Meu Deus do céu (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro deSouza), Black is beautiful (Marcos Valle, Paulo Sérgio Valle), Cinema Olympia (Caetano Veloso),Golden Slumbers (Jonh Lennon, Paul MacCartney), Falei e disse (Baden Powell, Paulo Sérgio Pinheiro),Aviso aos navegantes (Baden Powell, Paulo César Pinheiro), Mundo deserto (Roberto Carlos, ErasmoCarlos), Ela (César Costa Filho, Aldir Blanc), Madalena (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro de Souza), Osargonautas (Caetano Veloso), Estrada do sol (Tom Jobim, Dolores Duran).

Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Temática política: Outros

Ih! Meu Deus do céu X

Black is beautiful X

Cinema Olympia X

Golden slumbers X

159

Fonte: Ela. CBD/Philips, 1971.

Black is beautiful é uma espécie de chamado anti racista:

Hoje cedo, na rua do ouvidorQuantos brancos horríveis eu viEu quero um homem de corUm deus negro do congo ou daquiQue se integre no meu sangue europeuBlack is beautiful, black is beautifulBlack beauty so peacefulI wanna a black i wanna a beautifulHoje a noite amante negro eu vouEnfeitar o meu corpo no seuEu quero esse homem de corUm deus negro do congo ou daquiQue se integre no meu sangue europeu

Mesclando-se, na interpretação, trechos cantados em inglês e ritmo americano

(soul), problematiza-se a aceitabilidade da negritude no país. Apresenta ligação com a

visão do movimento negro em plena expansão, sob o influxo do movimento pantera

negra, de onde tiraram o próprio título da música.

Aviso aos navegantes fala da malandragem da vida cotidiana. Em Mundo

deserto, de Erasmo e Roberto, há a esperança por dias melhores:

Tenho fé que o meu paísAinda vai dar amor pro mundoUm amor tão profundo, tão grandeQue vai reviver quem morreu

Falei e disse X

Aviso aos navegantes X

Mundo deserto X

Ela X

Madalena X

Os argonautas X

Estrada do sol X

160

Das canções que não se encaixam em temáticas, encontra-se Ela e Cinema

Olympia. A música Ela, que também é o título do LP, conta a história de alguém

solitário em um edifício. A letra de Cinema Olympia faz referências ao universo das

matinês e o instrumental tem uma interpretação tropicalista, por utilizar-se de guitarras

com efeitos e linguagem de rock.

Em Os argonautas, a repetição do aspecto marítimo é acrescentada a toda uma

idéia significativa de luta e combate:

O barco, meu coração não aguentaTanta tormenta, alegriaMeu coração não contentaO dia, o marco, meu coração, o porto, nãoNavegar é preciso, viver não é precisoNavegar é preciso, viver não é precisoO barco, noite no céu tão bonitoSorriso solto perdidoHorizonte, madrugadaO riso, o arco, da madrugadaO porto, nadaNavegar é preciso, viver não é precisoNavegar é preciso, viver não é precisoO barco, o automóvel brilhanteO trilho solto, o barulhoDo meu dente em tua veiaO sangue, o charco, barulho lentoO portoSilêncioNavegar é preciso, viver não é precisoNavegar é preciso, viver não é preciso

Neste LP, Elis grava Beatles e Ivan Lins pela primeira vez. A inserção de

Beatles no repertório pode tanto ser analisada enquanto uma tentativa de

internacionalização de sua carreira, como uma influencia do tropicalismo. Ivan Lins,

assim como Milton Nascimento, foi gravado e “descoberto” por Elis, mas teve sua

carreira solo, vendo em Elis alguém que o lançou no mercado, tornando seu nome

conhecido pelo grande público.

161

3.6 - 1972Atentativa de Elis por mudanças, acompanhadas por uma crise, se fariam notar

também em uma reportagem feita em 1973. Sobre o último espetáculo realizado em

1972, no Teatro na praia, ela disse:

“ sou uma profissional, mas sou uma pessoa como outra qualquer.Estava em crise. Minha vida vinha se desfazendo há muito tempo. Eunão devia ter feito o show. Mas, do ponto de vista humano, se eu nãofizesse ia ficar louca ou matar alguém. Eu precisava de uma válvula deescape. Além disso, o show que levava meu nome não tinha nada a vercomigo...Atravessava um baixo astral total e, quando estou arrebentada,fico em frangalhos na frente de todo mundo. ” 305

O ano de 1972 marcou um novo período em sua trajetória musical, devido ao

encontro com o pianista e, mais tarde marido, César Camargo Mariano. Segundo

Echeverria, em março de 1972, Elis estreou no teatro da Praia, no Rio, o show É Elis,

dirigido pela dupla Miele e Bôscoli (alvo da autocrítica feita acima). No piano, César

Camargo Mariano. Dois meses depois, Elis e Bôscoli assinariam o desquite. Em Junho,

saiu do ar o programa Elis especial, depois de quase um ano em cartaz. Elis encerrou o

contrato com a Rede Globo e alegou não ter mais condições de trabalhar com o ex-

marido. Ainda neste ano, o irmão de Elis, Rogério, largou o Quinteto Violado para

acompanhar Elis e o grupo formado por César Mariano, Paulinho Braga, Luisão,

Alemão, Chiquinho Batera. Foram 39 shows em 45 dias, um show em cada cidade. Era

o primeiro circuito universitário de Elis, de ônibus, pelo interior de São Paulo, Paraná e

Santa Catarina. Os shows eram organizados pelos centros acadêmicos das faculdades.306

Elis em entrevista à Manchete, disse que iria fazer um circuito universitário em

São Paulo, norte do Paraná, Curitiba, Ponta Grossa, Paranaguá, Joinville e Santa

Catarina,depois, no Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia. E

completou:“nas cidades onde não puder cobrar dez cruzeiros, cobro cinco. Vousair mambembando. É a única forma de me apresentar com um poucode dignidade. Não se pode ficar na mão de duas emissoras de TV e estarsujeita a contar uma piada para cantar Águas de março. A piada tira aforma da música. A gracinha e o balezinho tira a força de Oriente, deCanto de Ossanha, de Nada será como antes. E o meu negócio não étirar força, é acrescentar, calcar, botar o dedo na nuca das pessoas. Euainda vou ter dinheiro para chegar, uma vez por ano, e comprar uma

305 PINHEIRO, Narciso (entrevistador). Os ídolos dez anos depois. Revista Manchete n°1113.18/08/1973.306 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, pp. 96-100.

162

hora na tv e fazer o que eu gosto. Com Fernando Faro e Juca deOliveira, gente que pensa como eu...” 307

A realização deste circuito pode ser compreendida tanto como uma tentativa de

expansão do seu mercado consumidor, como também uma preocupação social de Elis.

Como uma espécie de desculpa por participar dos eventos militares, já no início de

1972, Elis cantaria o Hino Nacional nas Olimpíadas do Exército. Apesar das inúmeras

controvérsias que envolveram essa questão, a esquerda brasileira se enfureceu com o

ato. Bôscoli explicou à Echeverria que Elis fora obrigada pelos militares a participar do

evento. Esta ligação de Elis com o Regime Militar teve reações tanto na imprensa, como

do seu público de esquerda. O cartunista de O Pasquim, Henfil, irmão de Betinho, um

exilado político, enterrou Elis no cartun Cemitério dos mortos vivos, do Caboco

Mamadô. Henfil realizava, nos seus quadrinhos, o enterro de pessoas que, na realidade,

estavam vivas, para demonstrar o seu descontentamento com relação aos

posicionamentos desses indivíduos. Elis Regina permaneceu enterrada por algum

tempo, até que Henfil resolveu desenterrá-la, após conversas pessoais. 308

Sobre a reação do público à atitude de Elis, Motta conta que, em 1973, no

Festival Phono 73, realizado pela Philips:

“mesmo sendo um festival sem prêmios, na platéia do Phono 73 osânimos estavam exaltados. O público e a imprensa ansiavam pornovidades, surpresas, intervenções políticas, rebeldia e resistência (...)Quando entrou no palco, tensa e de cara fechada, Elis foi recebida comfrieza pelo público passional e politizado. Entre os aplausos poucoentusiasmados, alguns assobios e uma voz raivosa que grita ‘vai cantarnas Olimpíadas do exército’, provocando uma pororoca de vaias eaplausos e a réplica ‘respeitem a maior cantora do Brasil’, atribuída aCaetano”309

No ano de 1972, explodiria no Brasil um fenômeno musical, reunindo um

conjunto de compositores, instrumentistas e intérpretes de Minas Gerais, fundindo o

rock com gêneros e estilos locais. De acordo com Napolitano, o disco Clube da esquina

retratava a busca por liberdade individual e coletiva, utilizando imagens poéticas sutis e

músicas sofisticadas, diferentes das fórmulas conhecidas até então.310

307 PINHEIRO, Narciso (entrevistador). Os ídolos dez anos depois. Revista Manchete n°1113.18/08/1973.308 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, pp.136-9.309 MOTTA, Nelson. Noites Tropicais solos, improvisos e memórias musicais. Editora Objetiva, 2000,p.263.310 NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980) 3. Ed. – São Paulo:Contexto, 2006. – (Repensando a História), p.87.

163

Elis inclui em seu repertório do disco de 1972 duas músicas de Milton

Nascimento gravadas por ela em 1966: Cais e Nada será como antes. Essas músicas

ganham uma interpretação parecida com a adotada pelo Clube da esquina, utilizando

exploração de timbres, modificações de compasso, além da latinidade e elementos do

rock e do jazz. Sobre a sonoridade específica do Clube da Esquina, Thais Nunes afirma

que:“Centralizando a análise sobre o LP de 1972 é possível demarcar, dentreoutros aspectos, a presença dos seguintes procedimentos recorrentes nasua produção: utilização de música incidental; repetição de materialmelódico; variedade na utilização da fórmula de compasso, em músicasdiferentes e em uma mesma música; quadraturas assimétricas; músicainstrumental; regionalismo; latinidade; religiosidade; rock; jazz; vocais;arranjos com seções bem definidas; tratamento timbrístico e a músicabrasileira de décadas anteriores.” 311

O LP Elis foi produzido por Menescal e teve arranjos de César Camargo, e

demonstra claramente as transformações de Elis, apostando no dialogo com novas

sonoridades, pouco presentes nos seus discos anteriores.

Quadro 3.4 - Temáticas das músicas do LP Elis312

Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Temática política: Outros

20 anos blue X

Bala com bala X

Nada será como antes X

Mucuripe X

Olhos abertos X

311 NUNES, Thais dos Guimarães Alvim. A sonoridade específica do Clube da esquina. Artigo publicadonos Anais do V Congresso Latinoamericano da Associação Internacional para o Estudo da MúsicaPopular.312 As faixas do LP Elis são as seguintes: 20 anos blue (Sueli costa, Vitor Martins), Bala com bala (JoãoBosco, Aldir Blanc), Nada será como antes (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos), Mucuripe (Fagner,Belchior), Olhos abertos (Zé Rodrix, Guttemberg Guarabira), Vida de bailarina (Américo seixas, DorivalSilva), Aguas de março (Tom Jobim), Atrás da porta (Francis Hime, Chico Buarque), Cais (MiltonNascimento, Ronaldo bastos), Me deixa em paz (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro de Souza), Casa no campo(Zé Rodrix, Tavito), Boa noite amor (José Maria de Abreu, Francisco Matoso).

164

Vida de bailarina X

Águas de março X

Atrás da porta X

Cais X

Me deixa em paz X

Casa no campo X

Boa noite amor X

Fonte: Elis. CBD/Philips, 1972.

Elis é um disco que parece ser uma busca pessoal da cantora por novos

caminhos, uma vez que várias das músicas falam desse desejo. Dentre as canções,

incluem-se 20 anos blue, Olhos abertos, Cais e Casa no campo. Muitas músicas não

têm nenhum gênero definido em sua composição, demonstrando a busca de Elis por

novas sonoridades, embora, desde 1965, sua banda fosse sempre composta por piano,

baixo e, principalmente, bateria, acompanhada por arranjos de cordas e sopros. Este

disco possui em sua composição sambas, rocks, bossa nova e jazz. A sonoridade é

bastante próxima dos LPs lançados após 1969.

A música que abre o LP, 20 anos blue, trata da descoberta da experiência já

vivida nos primeiros versos, que dizem olhei a vida e me espantei/eu tenho mais de 20

anos. Nota-se nessa música, também, o peso das responsabilidades cotidianas, a dureza

da vida, no trecho: eu tenho mais de mil perguntas sem respostas/eu tenho mais de vinte

muros.

Olhos abertos também é uma canção que tematiza buscas. Aqui, essa busca se

configura por encontrar verdadeiras amizades que independam de status social,

claramente identificada nos versos finais:

E eu quero encontrar as pessoasDe mãos e de olhos abertosSem me preocupar com dinheiro e posiçãoEu preciso encontrar as pessoasFicar de mãos dadas com elasConversar com a boca e os olhos do coração

165

Em Cais, não existem barreiras contra quem está disposto a se lançar em

qualquer direção ou destino, desde que isso represente a recusa a uma vida insuficiente.

Somente a fantasia poderia dar sentido a uma viagem que visava alcançar uma realidade

ainda não experimentada: para quem quer se soltar invento o cais invento mais que a

solidão me dá.

Nesse processo resignificador, a invenção seria a arma que ameaça o

estabelecido. Em uma sociedade de padrões sociais previamente estabelecidos e

relações políticas restritivas, como era a brasileira durante a década de setenta, inventar

é um verbo que liberta. Em entrevista realizada em 1973, pouco tempo após o

lançamento deste disco, e comentando sobre ele, Elis se define como uma pessoa que

cresceu e que tem novos desejos, que necessita de coisas novas, Cais313 é uma música

com a qual ela se identificava. Ela fala desse desejo de se lançar:

“Pra mim não foi susto nenhum esse disco, porque venho meacompanhando a um ano da hora que acordo até a hora que durmo,acompanho todas as minhas apresentações estou sabendo das minhasansiedades, etc. Eu não estranhei a minha modificação me perguntarampor que um disco tão diferente se a fórmula era tão boa e estavavendendo tanto. Fiz um disco diferente e as pessoas se assustaram...Reclamaram que o César de repente ficou mais intelectual... o queacham que é o mais simples na verdade é o mais difícil, que haviamúsicas que não me mereciam. Eu sabia que ia ter um bode. Mas eutinha que me satisfazer, já que eu vivi muito tempo satisfazendo aspessoas... Eu mudei, não foi o disco que mudou o que mudou foi aminha cabeça a minha vida. Foram meus nervos que descansaram omeu travesseiro que é muito mais aconchegante, a minha casa que émuito mais gostosa, a minha vida que é muito melhor...”314

Neste depoimento de Elis, a temática da modificação dá o tom de sua resposta.

A insatisfação pessoal e o fato de ter que satisfazer os outros, dentre os quais é bem

provável que estejam seus produtores, passa a ser algo assustador para a artista. A

mudança de vida, de acordo com Elis, modificou também sua maneira de fazer música,

o que explica o fato de a escolha do seu repertório estar diretamente relacionada aos

seus sentimentos pessoais, ao longo de sua carreira, e de, muitas vezes, essa escolha ter

acontecido e dialogado com imposições externas.

313 Cais (Milton Nascimento – Ronaldo Bastos): Para quem quer se soltar. Invento o cais. Invento maisque a solidão me dá/ Invento lua nova a clarear. Invento o amor. E sei a dor de me lançar/ Eu queria serfeliz. Invento o mar. Invento em mim, o sonhador/ Para quem que me seguir. Eu quero mais. Tenho ocaminho do que sempre quis/ E um saveiro pronto pra partir. Invento o cais. E sei a vez de me lançar.314 Programa MPB Especial produzido por Fernando Faro em 1973 pela TV Cultura.

166

Em Casa no campo, a busca se configura por tranquilidade e paz, onde o

afastamento da grande cidade e da impessoalidade se faria em uma casa de campo, com

cabras e hortas, em um espaço “onde eu possa plantar meus amigos meus discos e

livros e nada mais”, demonstrando um desejo de vida alternativa.

Segundo Echeverria, em 1977, Elis se mudaria para Cantareira, um pequeno

terreno, com três mil metros quadrados, onde Elis gostava de plantar, nadar e brincar

com os cachorros.315 Este fato evidencia como a intérprete se apropriava daquilo que

cantava. Parece que a letra fora composta por Elis, ou mesmo demonstra que aquilo que

Elis cantava realmente era importante e significativo em sua vida.

Bala com bala aponta a passividade do consumidor perante os meios de

comunicação de massa, além da subjetividade em que o telespectador é lançado. Apesar

da passividade (a sala cala), o espectador se vê no herói, canalizando, assim, suas

amarguras e revoltas do dia-a-dia, a velha fuga em todo impasse.

Nada será como antes é a única música que trata de questões políticas no LP.

Versos que deixam para traz a sensação pessimista e o peso da derrota frente às forças

do autoritarismo político. Versos que devolvem à juventude a certeza de que ainda era

hora de lutar, mesmo sabendo que “nada será como antes”. Os autores dialogam com o

momento da contracultura, além de fazerem alusão ao regime militar e aos exilados por

ele:

Sei que nada será como antes amanhãQue notícias me dão dos amigos?Que notícias me dão de você?Sei que nada será como está,Amanhã ou depois de amanhãResistindo na boca da noite um gosto de sal

Apenas duas canções tematizam o Brasil neste disco, são elas Mucuripe e Águas

de março. Nenhuma das duas fala de problemas sociais brasileiros. Mucuripe conta a

história de um pescador, elemento muito presente na obra de Elis do ano de 1965 a

1968, claramente identificado com o nacional-popular, no entanto, aqui o pescador é

aquele que não quer criar laços com mulheres e nem realizar nada que o prenda àquele

local. O clima da melodia é de muita tristeza.

Em Águas de março, música de Tom Jobim, há a qualificação e exaltação da

natureza brasileira, exposta em nomes de árvores e coisas nacionais:

315 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, p. 134.

167

É peroba do campoÉ o nó da madeiraCaingá, candeiaÉ o matita-pereira...

Esta música de Jobim integra elementos como a vida e a morte, o ser e o não ser,

a marcha estradeira e o fim da canseira, na construção de uma realidade mais plena. A

vida é compreendida como um mistério profundo, onde se quer e não se quer. Frente a

este mistério, as águas de março, juntamente com suas chuvas, dissolvem esta tensão

dos opostos e faz emergir a esperança da vida no coração. Esta temática é bem parecida

com as demais músicas interpretadas por Elis neste LP, a busca por uma vida melhor

perpassa todo o disco.

Vida de bailarina aparece no disco como uma homenagem a Ângela Maria, uma

vez que esta música fora gravada somente por ela nos anos de 1953 e 1955316, antes de

Elis gravá-la. Boa noite amor317 também fora uma homenagem de Elis às suas

referências musicais de formação, já que se trata de uma música romântica muito tocada

na Rádio Nacional.

A sonoridade e o instrumental presentes neste LP são bastante parecidos com os

do disco lançado em 1971. No entanto, neste LP aparecem mais músicas que falam de

modificação, descontentamento, esperança por algo melhor. Não são músicas que estão

diretamente ligadas ao contexto político, porém, ao demonstrarem insatisfação com a

vida em certos aspectos, estão indiretamente tocando no tema da política repressiva

daquele momento, mesmo que não explicitamente.

A temática deste LP gira em torno dos efeitos de transformação social do país e

também pessoais da artista. Muitas das canções interpretadas por Elis afirmam esse

sentido, produzindo uma obra repleta de questionamentos. Quando esse questionamento

atinge a figura da própria artista, as reflexões se tornam ainda mais incisivas. A idéia

central que perpassa o disco é a busca por liberdade, idéia entendida como um dos

pontos centrais que rondam a relação da artista com a sociedade que ela julga

representar.

316 Verificado no site: http://www.memoriamusical.com.br/discografia.asp. Acessado em 24/05/2011.317 Em 1933 José Maria de Abreu foi contratado como pianista da Rádio Mayrink Veiga, onde ficou até1938, quando foi para a Rádio Clube. A partir de 1934, começou a parceria com Francisco Matoso, querenderia grandes clássicos da música romântica da década de 1930, como "Boa-noite, amor", valsagravada por Francisco Alves e que durante anos foi prefixo da Rádio Nacional. Informações contidas nosite: www.dicionariompb.com.br.Acessado em 26/05/2011.

168

3.7 - 1973

Em 1973, no final da excursão do circuito universitário, Elis rompeu o contrato

com o empresário Marcos Lázaro e passou a ser empresariada por Roberto de Oliveira.

Echeverria conta que a contratação de Roberto de Oliveira foi fundamental na

modificação da trajetória musical de Elis, pois a adequou aos padrões modernos de

MPB, além de trabalhar sua performance e sua exposição, tanto na mídia, como no

palco. Em entrevista a Echeverria, Roberto de Oliveira relata:

“A Elis vinha de um esquema comercial com Marcos Lázaro, como elemantinha com outros cantores. Mas ela era muito inteligente, emboranão tivesse muita cultura. Seus contemporâneos começavam a exigiroutro tipo de tratamento em esquemas empresariais, e ela sentiu isso.Elis era um pouco discriminada por outros artistas. Bethânia tinha umstatus por si só, Gal porque o Caetano Veloso e o grupo baianopassavam para ela. Além disso, Elis tinha sido casada com Bôscoli, quea levou para um mundo global, apolítico e reacionário. De repente, oscantores e os compositores da sua geração estavam em franca oposiçãoà situação política na época. Elis tinha cantado nas Olimpíadas doExército. E ela sabia que seu talento era maior do que o mundo em queestava vivendo. Encontrei Elis no momento em que ela estava tomandoconsciência disto. Eu só tinha visto uma vez naquela Phono-73, quandocortaram o microfone do Chico Buarque. Ela tinha talento, sucesso, masnão tinha prestígio. Pensei: ela precisa ter os três. Comecei a fazer suacabeça, porque achava que ela falava demais e se contradizia muito.Elis se envolvia com quem estava próximo e no dia seguinte essapessoa fora e ela mudava de opinião. Não sei se ela tinha um distúrbioneurológico ou tinha pique, mas me disse que sua cabeça girava muitomais depressa que a dos outros. E girava mesmo. Aconselhei-lhe quecantasse mais e falasse menos.” 318

Este relato nos mostra que a postura do novo empresário de Elis era a tentativa

de construir uma nova imagem para a artista. De acordo com Roberto, Elis era uma

grande artista, que deveria se abrir menos para os tablóides e parar de atacar outros

artistas, além de aprender a lidar melhor com seu talento. A partir deste momento,

criava-se para ela uma postura mais política. Roberto demonstra na entrevista uma

tentativa em dar a Elis uma nova imagem, mais inatingível, mais longe das fofocas da

imprensa sobre sua vida particular, mais preocupada com a política do Brasil.

Em 1973, Elis lançaria outro LP intitulado Elis. É um disco onde percebemos a

escolha do repertório incidir em três compositores em especial, uma vez que das dez

músicas gravadas, quatro músicas são de Gil, quatro de Aldir Blanc/João Bosco e as

318 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, p.104.

169

outras duas são de Nelson Cavaquinho e Pedro Caetano, compositores ligados à

“tradição” do samba e do rádio.319As músicas deste disco, diferentemente das dos LPs

anteriores, têm uma forte conotação política. Mesmo que não falem diretamente da

situação, falam metaforicamente.

Quadro 3.5 - Temáticas das músicas do LP Elis320

Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Temática política: Outros

Oriente

X

O caçador de esmeralda X

Doente morena X

Agnus sei X

Meio de campo X

Cabaré X

Ladeira da preguiça X

Folhas secas X

Comadre X

É com esse que eu vou X

Fonte: Elis. CBD-Phonogram/Philips, 1973.

Oriente, a música que abre o disco, vem alardeando palavras de atitude, como

considere e determine, convidando o ouvinte a uma não passividade, servindo de

referência do caminho a se tomar:

319 http://www.dicionariompb.com.br .Acessado em 22/05/2011.320 As faixas do LP Elis são as seguintes:Oriente (Gilberto Gil), O caçador de esmeralda (João Bosco,Aldir Blanc, Claudio Tolomei), Doente morena (Gilberto Gil, Duda), Agnus sei (João Bosco, AldirBlanc), Meio de campo (Gilberto Gil), Cabaré (João Bosco, Aldir Blanc), Ladeira da preguiça (GilbertoGil), Folhas secas (Nelson cavaquinho, Guilherme de Brito), Comadre (João Bosco, Aldir Blanc), É comesse que eu vou (Pedro Caetano).

170

Se oriente, rapazPela constelação do cruzeiro do sulConsidere, rapaz...A possibilidade de ir pro japãoNum cargueiro do loyd lavando o porão...Determine, rapazOnde vai ser seu curso de pós-graduação

Gil adota, nesta canção, certo misticismo. A orientação pelo cruzeiro do sul está

atrelada a uma tentativa de se descobrir o Brasil. A música é uma reflexão de alguém

exilado em uma aventura forçada. Viajar em um cargueiro, lavando o porão, faz uma

alusão aos porões dos navios negreiros nos quais, quem era passageiro, não estava ali

por escolha própria. É uma música que reflete as angústias de seu compositor, no

momento em que foi construída. Gil fala da pós-graduação que poderia ter feito,

relatando seu período de exílio, além de analisá-lo. Seu arranjo é todo construído em

torno da melodia, com ênfase nas passagens de conscientização.

Doente morena fala de um homem que não tem mais liberdade. Ele se lembra de

como era bom o passado, onde tudo era rodeado de magia e simplicidade.

A mulher da canção é a esperança de liberdade e promete que, quando tudo passar,

quando eles saírem da escuridão (que é estar censurado), eles irão à praia,

esperançosamente acreditando em um fim deste período de escuridão e medo:

De manhã cedo ela saiLeva a chave, me deixa trancado o dia inteiroNão ligo, deito sobre os trilhosVejo o trem passarEntre brinquedos, cigarrosO tesouro da juventude, não sei quantos volumesE quando cantoDeixo a imaginação voarMas ontem à noite, a mão sobre meus cabelosEla disse: meu bem não tenha medoNo verão que vemNós vamos à praia

Em Agnus sei, a letra é bastante complexa e cheia de significados, há uma

constante alusão à Igreja. A ironia é corrente: os heróis do bem prosseguem na brisa da

manhã... Vão levar ao reino dos minaretes/ a paz na ponta dos arietes... Ah, como é

difícil tornar-se herói. Outro efeito utilizado nessa canção é o trocadilho: dominus,

lembrando o domínio, ou juros além, ao invés de Jerusalém, aludindo também ao fator

econômico. Apesar de remeter a séculos, a metáfora em relação à ditadura é marcante.

171

Meio de campo, de Gil, é uma metáfora para a situação política pensada através

do futebol, sobre dar um tempo da situação, não se desesperar em resolver questões que

superam, até mesmo, o seu entendimento da situação atual do país:

Prezado amigo afonsinhoEu continuo aqui mesmoAperfeiçoando o imperfeitoDando tempo, dando um jeitoDesprezando a perfeiçãoQue a perfeição é uma metaDefendida pelo goleiroQue joga na seleçãoE eu não sou pelé, nem nadaSe muito for eu sou um tostãoFazer um gol nesta partida não é fácil, meu irmãoEntrou de bola, e tudo!

Por meio da canção Cabaré, é construída toda uma ambientação da vida boêmia,

em especial, a trajetória de uma cantora, vinda do norte do país, enfrentando, além do

desdém da platéia, a mesma solidão que toma conta dos que freqüentam estes

ambientes. Talvez a escolha por inserir esta canção em seu repertório se deva ao fato de

Elis se sentir solitária nos escuros bares da vida, uma vez que muitos de seus

companheiros estavam exilados neste período.

Ladeira da preguiça faz menção à Salvador. Sobre essa música, Gil conta que

“uma música que fiz em Londres em 1971 e mandei uma fita pra ela com músicas,

sambas, ela gostava de sambas, esses sambas mais jazzísticos, com muito balanço,

muito meneio de frases.” 321

Essa informação demonstra a predileção musical de Elis configurada entre o

samba e o jazz.

Comadre refere-se a questões do cotidiano. Essa comadre pode ser representada

como uma relação amorosa:Em tudo que me acontecerO dedo da comadre táNa corda quando escurecerAnágua da comadre lá...A ginga da comadre táEm tudo que me acontecer...A ginga que a comadre táNo samba que eu me excederNo doce que eu me lambuzarNa hora que eu endoidecer...

321 Para o programa Por toda minha vida exibido pela Rede Globo em 28/12/2006.

172

É com esse que eu vou é uma música que fala do samba e do desejo de se

esbaldar na multidão, bem parecida com a temática abordada em Folhas secas, que

homenageia a Mangueira, onde as folhas secas fazem relembrar os poetas e a escola,

além do saudosismo de sambar.

Há a presença do rock progressivo na sonoridade deste LP, percebido na

utilização dos timbres dos teclados e ocasionais guitarras. Este fato provavelmente se

deve à influencia do disco lançado no ano anterior, pelo Clube da Esquina, além do fato

de o guitarrista ser Toninho Horta, o mesmo que ajudou na concepção do LP Clube da

Esquina. A voz de Elis está contida, sem muitos ornamentos.

Sobre seu contato com a dupla Aldir e Bosco, Elis diria em 76:

“A minha primeira gravação com músicas de Aldir e João aconteceu emmarço de 1972 Eu já conhecia o trabalho de Aldir com César CostaFilho e Silvio da Silva Júnior, e queria gravar alguma coisa dele.Quando vi o que ele tinha feito com João Bosco, me apaixonei logo decara. Sempre achei que a função de um artista fosse a de relatar suaépoca com a maior sinceridade possível. E é exatamente esse o trabalhoque os dois vêm fazendo. Uma obra dura, pensada, sem nada decircunstancial. Como deve ser todo e qualquer trabalho maduro. JoãoBosco e Aldir Blanc são da minha tribo. Aldir é um gênio. Há poucotempo atrás, eu estava cansada, pensando em parar. Aí pintou o Aldir,começou a conversar, contar o que tinha feito, discutir comigo. Dessespapos acabou nascendo um dos trabalhos mais importantes da minhacarreira, o show Falso Brilhante.”322

Este depoimento, além de demonstrar a forte ligação de Elis com estes artistas,

aponta novamente para o fato da crise por que ela passava no início dos anos setenta, e

credita a salvação de sua carreira ao encontro com a dupla. Além de corroborar com o

aspecto que venho apontando ao longo desta pesquisa sobre a artista Elis, que é relatar

sua época através de suas músicas, tarefa que Elis assumiu ao longo dos anos em que

cantou o Brasil.

322 Depoimento in: João Bosco e Aldir Blanc. São Paulo: Abril Cultural, 1976. 33 rpm, nº HMPB-04,stereo, (Nova História da MPB), p.6.

173

3.8 - 1974

Em 1974, Elis ganhou um disco comemorativo323 da Philips, sua gravadora, e

escolheu gravar um disco com Tom Jobim. Sobre esta escolha, ela disse:

“... não achei que devesse fazer, simplesmente, produzir umaretrospectiva de minha carreira. Dez anos, afinal, é um espaço de tempomuito curto. Além disso, meu repertório, obviamente, mudou. E nãocanto mais como fazia na época de Arrastão, ou do Menino das laranjas.O público que me acompanhava em 1964, 1965, certamente se frustrariacom minha maneira atual de interpretar velhos sucessos. Roberto deOliveira, então, sugeriu-me que pensasse num LP com Tom. Achei aidéia incrível. Em primeiro lugar, porque Tom é capaz de resumir, nasua obra, praticamente toda a história da música brasileira dos últimostempos. E eu poderia me apoiar nessa obra para contar a história dosmeus últimos dez anos de carreira.” 324

Quadro 3.6 - Temáticas das músicas do LP Elis e Tom

Músicas: Temática amorosa: Temática nacional:

Águas de março X

Pois é X

Só tinha de ser com

você

X

Modinha X

Triste X

Corcovado X

O que tinha de ser X

Retrato em branco e

preto

X

Brigas, nunca mais X

Por toda minha vida X

Fotografia X

323 Pelos 10 anos de Elis na gravadora.324 LANCELLOTTI, Silvio. (entrevistador). “Quero apenas cantar”. Revista Veja 01/05/1974.

174

Soneto da separação X

Chovendo na roseira X

Inútil paisagem X

Fonte: Elis e Tom. CBD-Phonogram/Philips, 1974.

De todas as canções, apenas duas são cantadas por Elis e Tom, Águas de março

e Soneto da separação, as restantes são interpretadas somente por Elis.

Muito diferente dos discos anteriores da cantora, Elis & Tom foi um trabalho

pontual, em que Elis estabeleceu contato direto com o estilo bossanovista de Tom e

César Camargo Mariano, também arranjador do disco, ao lado de Jobim.

As músicas escolhidas por Elis são todas de Tom Jobim, ora em parceria com

Vinícius ou Chico, mas nenhuma música da bossa nova nacionalista de Vinícius e

Carlos Lyra estão inseridas neste LP, apenas temáticas amorosas.

Acredito que este disco de comemoração, que demarcou o ápice do encontro de

Elis com a bossa nova, representado por um de seus maiores compositores, teria

provocado uma nova ruptura na carreira de Elis, em que não percebemos mais nenhum

vestígio do nacional-popular. Como consequencia dessa guinada em sua carreira, Elis

buscaria o Centro Macunaíma325 em uma tentativa de trabalhar mais livremente a sua

criatividade. Assim Elis analisa o momento que vivia, em meados dos anos setenta:

“Freqüentar o Macunaíma foi a mais importante descoberta da minhavida. Eu estava e de certa forma ainda estou, pois nada é imediato,vivendo um impasse. Estava cansada de ser usada, enganada porempresários sem escrúpulos, que viviam botando limitações na minhacabeça. Não posso estacionar só porque esses caras estão faturando altoàs minhas custas. Pra mim chega, rodar a bolsa por rodar prefiro rodarpro meu marido, ou por coisas que eu acredite, por ideais, por meusfilhos. Sinto necessidade de mudar, de evoluir, de colocar pra foraminhas opiniões, e não ficar bloqueando meus sentidos. Chega ummomento que a gente tem mesmo que estourar, e se as pessoas nãotomarem consciência das coisas que a destroem, das imposições erepressões, um dia elas explodem. Eu sempre soube disso mas eraencostada na parede:”Você tem que se preocupar com sua imagem, aimagem que convém a seu público’. Quer dizer a imagem que enriqueceos intermediários. Ora bolas! Quem faz minha imagem sou eu mesma, e

325 O Centro de estudos Macunaíma, foi fundado em 1974 por Myriam Muniz, Silvio Zilber e o cenógrafoe figurinista Flávio Império, surgiu como um centro experimental de formação teatral com diversoscursos de interpretação, leituras dramáticas e psicodramas com o terapeuta, escritor e dramaturgo RobertoFreire, que tendo retornado ao Brasil, começara a desenvolver trabalhos no local, sendo fundamental parao desenvolvimento da Somaterapia.. Informações contidas em: http://pt.wikipedia.org/Acessado em31/05/2011.

175

eu não posso ficar fingindo o tempo todo, sendo o que não sou. Jáconsegui desvencilhar-me dos empresários, e de agora em diante quemquer decidir as coisas sou eu, com as pessoas que de fato vivem o quevivo, com quem de fato estiver com as mesmas intenções que eu. ”326

A constatação de inúmeros problemas está clara nesta fala de Elis, em que ela

critica o aproveitamento de seus dotes artísticos pelos empresários e a limitação quanto

à sua autonomia. Demonstra uma artista que se percebia vazia e sem saber qual

direcionamento dar a sua carreira. Esta busca por uma independência criativa, a

tentativa em exercer uma postura diferente perante a indústria cultural, apresentam uma

artista sempre em busca de novos caminhos e direções.

3.9 - Balanço e perspectivas

Não somente o ataque tropicalista aos códigos defendidos pela esquerda

nacional-popular, no final dos anos sessenta, fez com que Elis redirecionasse sua

carreira. As inúmeras viagens internacionais realizadas por ela nesta fase de sua

carreira, seu casamento com Ronaldo Bôscoli, compositor e membro da bossa nova, a

maternidade, o divórcio, a troca de empresário, a realização de shows em um circuito

universitário, mexeram significativamente com os seus ideais e crenças.

Ao longo deste capítulo, podemos perceber a modificação na carreira de Elis e

como ela se aproximou da bossa nova e do rock progressivo. Nota-se, com isso, que a

cantora se apropriava de inúmeros elementos musicais a seu modo, com sua banda, e

interpretação. Esta aproximação se faz notar tanto através da sonoridade, dos timbres

dos instrumentos e canto mais contidos, quanto na escolha de gravar compositores da

bossa nova e também novos nomes do cenário musical, como João Bosco, Aldir Blanc e

Ivan Lins.

Acredito ter sido pertinente a análise até o disco produzido juntamente com Tom

Jobim, ícone da bossa nova, pois o mesmo representou o encerramento de uma fase de

sua carreira. Ao longo de nossa análise, a constante abertura e encerramento de ciclos na

carreira da intérprete é perceptível. Não houve mais nenhum vestígio do nacional-

326 “Elis Regina vira a mesa, mas salva as papoulas”. Diário do abc, 17/08/75. Apud PACHECO,Mateus. Elis de todos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção. Dissertação (mestrado) –Universidade de Brasília. Departamento de História, 2009.

176

popular no repertório lançado a partir de 1969, e a partir de 1975, Elis passou a inserir

espetáculos temáticos em sua carreira musical, dando um novo sentido a sua trajetória.

Quanto ao diálogo realizado entre a obra de Elis Regina e o contexto brasileiro

que a cercou, posso afirmar, através da análise dos discos lançados neste período, de

1969 até 1974, que Elis “dialogou” com o contexto daquele período e com a censura

exercida pelo governo. Nesta fase, temos a temática amorosa predominando em quase

todos os LPs, além de vermos sumir o nacional-popular do seu conteúdo. O país

retratado é maravilhoso e exaltado, como em Aquarela do Brasil, o romantismo da

bossa nova aparece com grande força, assim como o interior do país e seus costumes,

indícios de que Elis soube esperar passar o momento de pior cerceamento dos militares,

não inserindo em seu repertório muitas canções com temáticas diretamente políticas,

neste período. Não que a política estivesse completamente excluída do repertório de

Elis, o ato de gravar canções de Gil e Caetano em exílio era, de certa forma, um ato

político, mesmo que os conteúdos destas canções não fizessem referência direta ao

governo.

Muitas vezes, o próprio ato de não inserir canções com temática política em seu

repertório já significava em si uma relação com a política, visto a problemática da

censura e dos inúmeros exílios ocorridos naquela época. Para entender que Elis assume

uma postura mais crítica em suas obras, considero fundamental perceber a sua trajetória

musical e os conflitos por que passou e que certamente influenciaram na redefinição de

sua carreira. Não só o contexto da ditadura militar foi importante para a transformação

da sua obra, mas também as tensões que experimentou, através do diálogo com diversos

setores da sociedade, como a crítica musical, sobretudo aquela ligada ao tropicalismo,

como foi demonstrado, tanto em suas declarações, como na musicalidade produzida

após o seu surgimento.

Elis utilizou a vitória simbólica do samba no cenário musical brasileiro, em

todos os seus LPs, como uma forma de legitimar a valorização da identidade nacional.

No entanto, ela não demonstrou identificação com os segmentos populares. Apesar de

ser oriunda deste segmento, a artista não construiu uma imagem de si mesma

identificada com os grupos populares.

Ao lado de nomes como Gilberto Gil, João Bosco, Caetano Veloso, Milton

Nascimento, entre outros, Elis Regina associou-se à própria definição de MPB. Essa

associação contribuiu para a nossa análise em um aspecto fundamental: as reflexões que

177

sua obra apresentou em torno dos conceitos de música, de povo e de Brasil e que são

exatamente as palavras cujas iniciais formam a sigla MPB.

Os interesses de Elis, neste momento, se configuraram em modificar sua carreira

e encontrar novos públicos, em um diálogo nem sempre tranqüilo com as redes de

televisão e com as gravadoras. Uma análise pormenorizada, que tratou desses temas,

mostra uma artista em constante questionamento, opondo-se a verdades estabelecidas e

a conceitos tomados como absolutos. Assim, a imagem de povo que sobressai da obra

de Elis, a partir de 1969, é marcada pela pluralidade. Da mesma maneira, o Brasil que

emerge de sua música está longe de ser uma entidade plenamente definida, uma vez que

sintetiza sonoridades e instrumentos estrangeiros com composições e questões

nacionais. Nos LPs lançados de 1969 até 1974, o Brasil presente no repertório,

interpretado por Elis, não é mais o dos negros e dos morros, mas sim, o do vazio

causado pelos problemas das grandes cidades e gerado pela televisão e seus comerciais.

178

Conclusão

Na mesma época em que Elis se mudou de Porto Alegre para o Rio de Janeiro e,

posteriormente, para São Paulo, houve o desenvolvimento da indústria televisiva

brasileira, que se popularizou em meados dos anos sessenta. Parte da atração televisiva

dos anos sessenta se configurou nos Festivais de Música Popular Brasileira e nos

programas de auditório, dos quais Elis foi protagonista, quando venceu o I Festival com

Arrastão (1965), na TV Excelsior, e quando comandou de 1965 a 1967, ao lado de Jair

Rodrigues, O Fino da Bossa, na TV Record. Estes aspectos, somados a inúmeros outros

abordados nesta pesquisa, demonstram como muitas vezes a trajetória artística de Elis

se entrelaçou com a própria história da música popular brasileira e de seus meios de

divulgação e institucionalização.

Verificou-se, nesta análise, que as preocupações de Elis se voltaram para os

modos de se interpretar o Brasil, seus dilemas e soluções, a partir de 1965. No entanto, a

imagem do país se modificaria ao longo de sua carreira. A análise das canções

interpretadas por Elis Regina, ao longo desta pesquisa, mostra que são tantas as suas

influências - a bossa nova, peças teatrais e filmes do cinema novo, das cantoras de rádio

ao tropicalismo - que a adoção de um modelo explicativo restritivo não conseguiria

apreender. Embora existam muitos elementos que constatem o engajamento político de

Elis ao longo de sua carreira, principalmente nos discos lançados entre 1965 e 1974, há,

também, evidências da diversidade de temas, interesses, e mesmo os conflitos da artista

ao se posicionar perante os dilemas que se impunham aos seus processos criativos e que

obrigavam-na a se situar na discussão sobre a função social da arte.

Elis circulava em um contexto histórico de grande exaltação das identidades

nacionais. Além de se definir como brasileira, não se lançou em uma carreira

exclusivamente internacional, como fizeram outros artistas naquela época. A carreira de

Elis, no Brasil, desenvolveu-se em meio a um período de mudança na percepção da

questão social. Junto à explosão de estrelato de Elis, aconteceu a tomada de poder pelos

militares e iniciou-se no país um longo período de ditadura. Estes fatos marcaram

momentos de modificação na organização política, econômica e social nacionais,

havendo transformações também culturais, as quais foram enfocadas nesta pesquisa.

O popular, apresentado por Elis Regina em seu canto, é ligado principalmente ao

universo afro-brasileiro de 1965 até 1968. No entanto, não foi encontrada nenhuma

179

fonte que demonstrasse a ligação de Elis com este universo. Na fase analisada em que

percorremos os anos de 1961 até 1974, o Brasil presente no repertório interpretado por

Elis se modifica. Na primeira fase de sua carreira quase não há representações de Brasil,

há algumas letras que mencionam o samba327. Na fase em que a cantora se muda para o

Rio de Janeiro e inicia apresentações musicais em teatros e, posteriormente na televisão,

o Brasil em sua obra passa a ser representado pelos pescadores, negros e migrantes; na

terceira fase de sua carreira, e última analisada aqui, o Brasil é representado pelo vazio

causado pela solidão dos grandes centros urbanos e pela televisão e seus comerciais.

Não percebo, a partir da análise dos vídeos e entrevistas realizados ao longo da

carreira de Elis, uma iniciativa da artista por conhecer determinadas manifestações das

culturas brasileiras, aumentando, dessa forma, sua percepção em relação ao universo

popular brasileiro. Suas gravações e performances não faziam menção direta a este

aspecto, fosse através da vestimenta ou mesmo no instrumental.

Um interessante aspecto a ser observado, é que Elis Regina foi uma grande

intérprete dela mesma. Diferentemente de Gal Costa, que tinha nome para os discos

como Fatal, ou Bethânia, com Pássaro proibido, dentre muitas outras artistas, Elis

nomeou grande parte dos seus trabalhos com o próprio nome, o que demonstra que a

intérprete centrava em sua figura o repertório de dentro do disco, enfatizando que não só

sua arte, seus discos eram significativos, mas também a sua pessoa, a sua imagem.

Para uma demonstração mais sólida, listo328 os títulos de LPs de algumas das

mais importantes intérpretes do período e comparo a freqüência dos nomes de LPs

coincidir com os das intérpretes, desde o início de suas carreiras até o ano de 1982, ano

de falecimento de Elis:

327 1 canção sobre o Rio de Janeiro no repertório do Bem do amor (1963) e 2 canções sobre o sambapresentes no LP Ellis Regina (1963).328 Informações contidas no site: http://www.dicionariompb.com.br.

180

Tabela 3 - Frequência com o nome das cantoras no título dos discos

Artista Discos

LP com o nome

da artista %

Elis Regina 26 14 53,8

Clara Nunes 19 8 42,10

Nara Leão 18 6 33,33

Maria Bethânia 21 6 28,57

Gal Costa 18 5 27,77

Fonte: http://www.dicionariompb.com.br. Acessado em 28/05/2011.

A proposta ao longo desta pesquisa foi analisar qual a imagem de Brasil que se

cantou nos long plays da intérprete desde o lançamento de seu primeiro LP, Viva a

brotolândia, até 1974, quando percebemos uma outra clara modificação quanto aos

rumos de sua carreira. O cenário musical da década de sessenta estava inserido em uma

discussão acerca da arte enquanto veículo de engajamento político-social, e a

compreensão das músicas interpretadas por Elis, enquanto definidoras de uma

identidade nacional forjada ao longo da década de sessenta no país, nos demonstrou que

são diferentes os Brasis visitados por Elis, mas que houve sempre uma tentativa de

analisar e compreender as coisas nacionais, seus problemas e soluções, em sua obra.

Elis Regina não é vista, neste trabalho, somente como uma grande intérprete e

artista, mas como um produto e também produtora de seu próprio tempo e representante

de diversas questões que permearam seu trajeto artístico. Dentre os vários shows, discos

lançados e programas feitos para a televisão, Elis teve uma carreira musical marcada por

inúmeras situações que demandavam diversas escolhas e caminhos. Suas escolhas, bem

como o percurso que seguiu, foram, de certa maneira, reelaboradas e ressignificadas

pela artista ao longo de toda sua carreira.

181

A trajetória artística de Elis Regina comprova que a intérprete foi significativa

no momento de abertura para a MPB nacionalista e engajada. Antigos paradigmas,

como a voz empostada das cantoras de rádio, por exemplo, foram assimilados pelo

mercado musical dos anos sessenta se juntando a novas tendências e públicos, surgidos

nos auditórios dos programas televisivos e nos teatros. Elis desempenhou um papel

fundamental na criação de uma imagem de Brasil que vingaria, que tinha solução, neste

período pós-golpe e de institucionalização da televisão. A sua esperança era que se

criasse um Brasil socialmente justo. Podemos dizer, também, que ela não esteve à

margem, mas inserida no protesto político daquele momento; por questões estéticas ou

ideológicas, Elis passou a cantar o Brasil.

A trajetória artística de Elis Regina em muito se confunde com a trajetória das

construções imaginárias sobre o Brasil, feitas em seu tempo. Mais do que isso, Elis

expressou as expectativas de amplos segmentos da população do país que representou,

fosse através de seus programas televisivos ou através das mudanças percebidas em sua

carreira. Elis aceitou, ainda, se colocar como receptáculo destas expectativas,

incorporando às suas canções, à sua imagem, à sua performance, representações que

estes segmentos da população buscavam ver nela. Neste sentido, Elis estava

precisamente desenvolvendo sua carreira no momento da consolidação da televisão e da

indústria fonográfica no Brasil. Esse foi um elemento fundamental para que ela se

apresentasse como representante e defensora da música popular brasileira e ter sido

percebida desta forma por grande parte de seu público e crítica.

182

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Dois na bossa. CBD/Philips,1965.

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Dois na bossa número 2. CBD/Philips, 1966.

Elis. CBD/Philips, 1966.

Dois na bossa número 3. CBD/Philips, 1967.

Elis Especial. CBD/Philips, 1968.

Elis – Como & Por quê. CBD/Philips, 1969.

...Em pleno verão. CBD/Philips, 1970.

Elis no teatro da praia. CBD/Philips, 1970.

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“Só eu sei a verdade sobre seu primeiro LP”.

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Gilberto Gil La passion sereine. Produzido no Brasil em 1987 pela TF1 em associação

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dirigido pelo diretor francês Hubert Niogret.

Jair Rodrigues. Programa Ensaio – 1991. Produzido pela TV Cultura. Programa

dirigido por Fernando Faro.

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Phono 73, o canto de um povo. (Universal,2005)

DVD Chico Buarque Vai passar. Produzido em 2005 pela Rede Bandeirante de

Televisão. Dirigido por Roberto de Oliveira.

Entrevista ao Jogo da verdade, 1982. Produzido pela TV Cultura. Lançado em 2006

pela Trama.

Box lançado pela EMI em 2006 com os dvds: Na batucada da vida, Doce de pimenta e

Falso brilhante.

Programa Por toda minha vida exibido pela Rede Globo em 28/12/2006.

DVD Vento Bravo. Direção de Regina Zappa e Beatriz Thielmann, realizado pela

Biscoito Fino em 2007.

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Anexo

Relação dos discos analisados, com o número de canções por temática,

demonstrando as mudanças no repertório de Elis ao longo do período analisado.

Destaco que considerei as canções dos pot-pourris como sendo 1 em cada trecho e

algumas se enquadram em mais de uma temática.

Disco/ano Total demúsicas

Temáticaamorosa

Temáticanacional

Temáticapolítica

Outros

Viva abrotolândia

(1961)12 12

Poema de amor(1962) 12 11

1

O bem do amor(1963) 12 10 1 2

Ellis(1963) 12 10 2

Dois na bossa(1965) 20 6 9 5

O fino do fino(1965) 12 3 3

Samba eu cantoassim (1965) 14 7 4 5

Dois na bossa 2(1966) 18 8 9 2

Elis(1966) 12 3 6 1 2

Dois na bossa 3(1967) 18 6 8 4 1

ElisEspecial(1968) 15 7 8

Elis como &porque (1969) 11 6 4 2

No teatro dapraia (1970) 17 14 2 1

Em pleno verão(1970) 11 5 2 3 1

Ela(1971) 11 5 3 1 2

Elis(1971) 12 4 2 1 5

Elis(1973) 10 1 3 4 2

Elis e Tom(1974) 14 13 1