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DECIS – Departamento de Ciências Sociais, Políticas e JurídicasPGHIS – Programa de Pós-Graduação em História
“O nacional-popular na obra de Elis Regina (1961-1974)”
Débora Dutra Fantini
São João del-Rei
2011
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DECIS – Departamento de Ciências Sociais, Políticas e JurídicasPGHIS – Programa de Pós-Graduação em História
“O nacional-popular na obra de Elis Regina (1961-1974)”
Dissertação de mestrado apresentada aocurso de Pós-Graduação em História daUniversidade Federal de São João del-Rei,como parte dos requisitos necessários àobtenção do grau de Mestre em História.Orientadora: Profª. Dra. Silvia MariaJardim Brügger.
Débora Dutra Fantini
São João del-Rei
2011
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“O nacional-popular na obra de Elis Regina (1961-1974)”
Débora Dutra Fantini
Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em História, doDepartamento de Ciências Sociais, Políticas e Jurídicas, da Universidade Federal de SãoJoão Del Rei, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre emHistória.
Aprovada em ____ de _________________________ de ________
Comissão Examinadora:
___________________________________________Profª. Drª. Silvia Maria Jardim Brügger (Orientadora)
__________________________________________Profª. Drª. Eleonora Zicari Costa de Brito
__________________________________________Prof. Dr. Danilo José Zioni Ferretti
__________________________________________Prof. Dr. Ivan Vellasco de Andrade (Suplente)
São João del-Rei2011
5
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, gostaria de agradecer ao meu irmão Lucas. Dentre as inúmeras
intrigas costumeiras que permearam nosso caminho, foi através de suas audições que o
Brasil de Elis me chegou fortemente.
Esta pesquisa surgiu na época em que eu estava terminando a graduação e, ao
conversar com meu orientador sobre o negro e o Brasil na obra da Elis, ainda sem saber
muito do que se tratava uma análise como esta, me recordo frequentemente de sua
resposta/pergunta: você não está buscando encontrar chifre na cabeça de cavalo? Adorei
a analogia e insisti no assunto, hoje vejo que minhas dúvidas eram pertinentes e as
apresento aqui na minha dissertação.
Gostaria de agradecer especialmente ao Danilo, orientador e mestre, que tanto
me apoiou em momentos de dúvidas e incertezas e me apontou, com muita sabedoria,
caminhos a seguir.
Silvia sempre esteve atrelada às minhas grandes paixões desde o início da
faculdade e divide comigo inúmeras destas. O Malungo1 me apresentou importantes
questões e deu uma boa guinada no projeto que coordeno juntamente com meu marido,
denominado Mucambo. O impulso de Silvia, assim como a aquisição de instrumentos
musicais, possibilitada por este projeto, nos ajudou bastante nos primeiros passos desta
longa caminhada em pesquisar e ensinar os elementos da cultura popular afro-brasileira.
Aos grandes amigos queridos, em especial ao César e a Mariana. A todos os
mucambeiros que estremeceram e estremecerão a terra comigo! Aos amigos de pesquisa
que sempre apoiaram e responderam prontamente às minhas dúvidas, especialmente
Mateus, Marlon e Ciro.
Ao Ailton que resolve todos os nossos problemas burocráticos. Por sua simpatia
e prontidão.
1 Núcleo Malungo – Pesquisa, Extensão e Ensino sobre Escravidão e Cultura Afro-brasileira.
6
A Myriam, não somente por ser minha mãe, mas por ser uma forte guerreira que
me ensinou, sem perceber, a nunca entregar os pontos. E claro, ao magnífico Dondom,
amigo de todas as horas.
Ao Genaro, que foi meu pai e me ensinou a sorrir e ter calma quando tudo
parecia ruir... Deixará saudades eternas.
Ao grande amor da minha vida, André Mendes, que não só leu e comentou
incansavelmente vários aspectos desta pesquisa, como realizou a análise musical.
Companheiro de inúmeras jornadas.
Agradeço à CAPES pelo apoio financeiro que muito ajudou neste duro
caminhar.
7
RESUMO
Esta dissertação objetiva analisar a contribuição da intérprete Elis Regina no processo
de formação da música popular brasileira em um período de intenso debate em torno do
papel da arte enquanto veículo de conscientização e difusão de identidades nacionais,
atentando para alguns aspectos como sua relação com o Brasil e com o popular. Há uma
valorização do conceito nacional-popular na obra da cantora, do período de 1965 até
1968, permeada por um movimento de “ida ao povo”. A partir de suas experiências
musicais e pessoais a cantora pode construir sua própria carreira baseada também na
valorização do Brasil.
Palavras-chave: Nacional-popular, popular, Elis Regina, Brasil
8
ABSTRACT
This dissertation aims to analyze the interpreter Elis Regina’s contribution to the
formation process of the Brazilian popular music in a period of intense argumentation
around art’s role as a vehicle of awareness and diffusion of national identities, paying
attention to some aspects such as its relation to Brazil and to what is popular. There is
an appreciation of the national-popular concept in the singer’s work from the year of
1965 until 1968, permeated by a so called “going to the people” movement. From her
musical and personal experiences, the singer was able to build her own career based,
also, in Brazil’s appreciation.
Keywords: National-popular, popular, Elis Regina, Brazil, Brasil
SUMÁRIO
Introdução _____________________________________________________________________12
Capítulo 1 – Formação musical e primeiros passos artísticos______________________________24
1.1 - A infância __________________________________________________________________27
1.2 - Nas ondas da Rádio Nacional __________________________________________________31
1.3 - O programa Clube do Guri ____________________________________________________44
1.4 - Os primeiros LPs ____________________________________________________________56
Capítulo 2 – O surgimento da temática nacional-popular no repertório de Elis ________________67
2.1 - O cenário musical brasileiro do início a meados dos anos sessenta _____________________67
2.2 - O nacional-popular enquanto ato de conscientização_________________________________78
2.3 - Elis e a televeisão____________________________________________________________85
2.4 - O Programa O Fino da Bossa __________________________________________________88
2.5 - Elis nos festivais _____________________________________________________________94
2.6 - Os LPs 2 na bossa____________________________________________________________98
2.7 - Os LPs lançados entre 1965-1968_______________________________________________111
Capítulo 3 – O Brasil em foco_____________________________________________________124
3.1 - O tropicalismo pede passagem _________________________________________________133
3.3 - Elis: mudanças e continuidades ________________________________________________145
3.4 - 1969 _____________________________________________________________________149
3.5 - 1970 _____________________________________________________________________152
3.6 - 1971 _____________________________________________________________________158
3.7 - 1972 _____________________________________________________________________161
3.8 - 1973______________________________________________________________________168
3.9 -1974______________________________________________________________________173
3.10 - Balanços e perspectivas______________________________________________________175
Conclusão ____________________________________________________________________178
Fontes discográficas _____________________________________________________________182
Revistas e jornais _______________________________________________________________183
10
DVDs e vídeos _________________________________________________________________184
Sites consultados________________________________________________________________185
Bibliografia ____________________________________________________________________185
Anexo ________________________________________________________________________191
Lista de quadros
Quadro 1 - Viva a Brotolândia _____________________________________________________59
Quadro 1.1 - Poema de amor_______________________________________________________60
Quadro 1.2 - O bem do amor________________________________________________________61
Quadro 1.3 - Ellis Regina__________________________________________________________63
Quadro 2 - Temáticas das músicas do LP Dois na Bossa_________________________________100
Quadro 2.1 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Dois na bossa________102
Quadro 2.2 - Temáticas das músicas do LP Dois na Bossa número 2_______________________103
Quadro 2.3 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Dois na bossa 2 ______105
Quadro 2.4 - Temáticas das músicas do LP Dois na Bossa número 3_______________________107
Quadro 2.5 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Dois na bossa 3______109
Quadro 2.6 - Temáticas das músicas do LP Samba eu canto assim_________________________111
Quadro 2.7 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Samba eu canto assim_113
Quadro 2.8 - Temáticas das músicas do LP O Fino do Fino- Elis Regina e Zimbo Trio_________113
Quadro 2.9 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP O fino do fino_______114
Quadro 2.10 - Temáticas das músicas do LP Elis_______________________________________115
Quadro 2.11 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Elis_______________117
Quadro 2.12 - Temáticas das músicas do LP Elis Especial_______________________________118
Quadro 2.13 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Elis Especial________119
Quadro 3 - Temáticas das músicas do LP Elis, como e por quê____________________________150
Quadro 3.1 - Temáticas das músicas do LP Elis no Teatro da Praia________________________153
11
Quadro 3.2 - Temáticas das músicas do LP Em pleno verão______________________________155
Quadro 3.3 - Temáticas das músicas do LP Ela________________________________________158
Quadro 3.4 - Temáticas das músicas do LP Elis________________________________________163
Quadro 3.5 - Temáticas das músicas do LP Elis________________________________________169
Quadro 3.6 - Temáticas das músicas do LP Elis e Tom__________________________________173
Quadro (Anexo) - Relação dos discos analisados, com o número de canções por temática,
demonstrando as mudanças no repertório de Elis ao longo do período analisado______________191
Lista de tabelas
Tabela 1 - Percentual de gêneros gravados nos LPs de 1961-1963__________________________64
Tabela 2 - Percentual dos aspectos nacional-populares em cada LP (1965-1968)______________123
Tabela 3 - Frequência com o nome das cantoras no título dos discos________________________180
Introdução
“Toda gravação que Elis Regina fazia era direta, sem playbacks, sem nenhuma
correção de voz. Ela preferia repetir a música quantas vezes fosse necessário até que
ficasse perfeita, mas não tolerava fazer emendas na gravação.” 2
Inicio este trabalho citando Marcos Mazzola, produtor musical que trabalhou
com Elis. Vários outros aspectos, além deste a que Mazzola faz menção, devem ser
levados em consideração quando nos debruçamos sobre a obra e vida de Elis Regina.
Sua busca pela perfeição fora uma constante em toda sua vida, a própria artista citou
este fato em momentos diferentes de sua carreira3. A personalidade difícil4, bem como
suas mudanças de opinião em curto espaço de tempo, foram citadas por inúmeros
personagens que conviveram com Elis.5
Esta pesquisa busca discutir as canções de Elis Regina, compreendidas pelos
seus conteúdos nacionais e políticos, mas também a partir de outras formas de
expressão presentes em sua obra. Nessa discussão, foram importantes tanto as intenções
da artista, expressas em entrevistas e diversas declarações, quanto a análise das canções.
Ao mesmo tempo em que não elegi um único referencial de análise, procurei ver em que
medida os conteúdos políticos, de crítica e denúncia social coexistiam com outras
temáticas. Não quis mostrar uma Elis engajada e nem tampouco mostrá-la unicamente
em sua faceta romântica, mas compreender sua obra a partir da complexidade existente
na articulação de conteúdos nacionais que expressaram os conflitos de Elis, em meio a
uma sociedade que sofria várias transformações políticas e culturais. Elis também sofreu
profundas transformações pessoais ao longo de sua trajetória artística, as quais estão, de
alguma maneira, expressas na escolha do repertório e no seu modo de interpretá-lo.
Refletindo acerca das possíveis leituras realizadas através de determinadas
músicas, suas interpretações e sentidos, Chico Buarque nos dá um bom exemplo, com a
música Jorge Maravilha, em 2005: “Queriam que a música fosse para a filha do Geisel.
2 MAZZOLA, Marcos. Ouvindo estrelas: a luta, a ousadia e a glória de um dos maiores produtoresmusicais do Brasil. – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007, p. 77.3 Dentre eles ao programa MPB Especial realizado pela TV Cultura em 1973.4 Expressas por Elis a LANCELLOTTI, Silvio. (entrevistador). “Quero apenas cantar”. Revista Veja01/05/1974.5 Fato citado em entrevista à Regina Echeverria por Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal e tambémNelson Motta. In: ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007.
13
Eu nunca pensei em fazer uma música pra filha do Geisel, eu nunca pensei nisso. Até
hoje falam isso.” 6
Questão primordial, que acredito ser pertinente citar nesta dissertação, é a visão
de um artista sobre as apropriações feitas de suas músicas e as possíveis distorções deste
diálogo realizado entre a obra produzida e sua respectiva abordagem por estudiosos, ou
mesmo críticos. Muitas vezes, o sentido que o artista intencionou alcançar com
determinadas canções ultrapassa seus desejos e essas canções acabam ganhando outros
significados. Não quero, com isso, me eximir de realizar uma análise que leve em
consideração a ambiguidade destas questões, somente enfatizo a pluralidade de sentidos
existentes em uma obra de arte.
A música produzida no contexto histórico das décadas de cinquenta, sessenta e
setenta do século XX, assim como outros fazeres artísticos, pode ser uma das formas de
se analisar a maneira pela qual a sociedade se expressava e refletia seus ideais acerca do
país no qual estava inserida. A carreira e a obra da intérprete Elis Regina constituem um
importante aspecto a ser analisado, uma vez que sua obra musical nos permite refletir
sobre a relação entre história e música: nela, estão presentes desde elementos políticos,
aspectos culturais, como a valorização do negro e dos desfavorecidos socialmente, até a
vivência amorosa. Outro fator relevante com relação a Elis, reside no fato de sua
carreira se iniciar em um período no qual a chamada moderna música popular brasileira
se encontrava em processo de formação e consolidação, como veremos adiante.
Todas as sociedades elaboram suas práticas musicais. De acordo com o
etnomusicólogo John Blacking, a música é uma habilidade humana que se desenvolve
em todos os grupos sociais de formas distintas, de acordo com seus rituais simbólicos e
seu conjunto de saberes e crenças. Participar de uma experiência musical significa
entrar em contato com esses códigos culturais, valores sociais e sentimentos
compartilhados, que fornecem elementos para a construção de identidades sociais e
laços afetivos. Isso significa que a música é uma forma de comunicação e que sua
circulação determina as condições sobre as quais essa comunicação irá ocorrer,
influenciando diretamente a construção de sentidos das práticas musicais.7
O sentido - ou os sentidos - que damos à música é construído culturalmente. A
proposta desta pesquisa é pensar nas relações que determinados grupos (dando ênfase ao
6 DVD Chico Buarque Vai passar. Produzido em 2005 pela Rede Bandeirante de Televisão e dirigido porRoberto de Oliveira.7 BLACKING, Jonh. How music is man? Seatttle: University of Washington Press, 1955.
14
artístico musical) elaboraram através de suas estratégias simbólicas, textuais e musicais,
criando uma determinada identidade. Neste projeto, a música é vista como um veículo
de conscientização e difusão de identidades nacionais. Poucas linguagens nesse período
tiveram um poder tão grande de difusão e inserção na casa de grande parte dos
brasileiros quanto a música popular.
A situação política brasileira pós-1964 provocou ainda mais confusões sobre o
papel da arte sob a sociedade urbana de consumo e foi, precisamente, a penetração
popular da canção que a teria revelado como veículo ideal para a divulgação de
determinados ideologias. Alguns artistas oriundos da bossa nova iniciaram um amplo
movimento que desembocou na chamada canção de protesto. Vinícius de Moraes,
Carlos Lyra, Edu Lobo, Nara Leão, dentre outros, começaram a abordar os problemas
sociais do país. Este novo olhar crítico sobre a canção popular enfatizou seu aspecto de
denúncia. Frente à ditadura instaurada no país, a música se converteu em um importante
vetor para se divulgarem os desejos por um país melhor.
O Brasil teve, na produção musical dos anos sessenta e início dos setenta, um
papel decisivo na construção de novas identidades nacionais, que a partir deste
momento passaram a ser marcadas pela articulação do “próprio” e do “alheio”. A
música se tornou um meio para discutir questões ideológicas e que representassem o
país. Os criadores da MPB, a partir dos anos sessenta, auxiliaram a criação de um novo
tipo de relação identitária, uma nova busca de identificação, com símbolos e elementos
nacionais, sobretudo quando a parcela mais jovem da população passou a ser sua maior
receptora, através dos auditórios e da televisão. Assim sendo, podemos pensar na
música enquanto uma das possíveis leituras da sociedade em questão.
Essa discussão estava presente nos jornais, nos filmes dos cinemas, nos
espetáculos musicais e inserida na própria tomada de consciência dos artistas, e também
de Elis, que não só gravou músicas compostas por membros dos CPCs, como de Ruy
Guerra, diretor do cinema novo; namorou Solano Ribeiro, idealizador dos festivais e
também ator do teatro de Arena; influenciou, com suas músicas e espetáculos, a
produção musical e artística do período. Sua carreira e obra são elementos fundamentais
para a compreensão dessa discussão acerca do nacional-popular e da música popular
brasileira neste momento de constantes debates.
O Brasil tem e teve inúmeros significados para diferentes pessoas em diversos
períodos de nossa história. Em busca do que viria a ser verdadeiramente brasileiro,
vários discursos surgiram na tentativa de solucionar tal questão. Discursos esses
15
presentes nos debates acadêmicos, nas obras literárias, nas canções, e levados aos meios
de comunicação, a ponto do Jornal do Brasil identificar Elis como defensora da música
brasileira. As diversas imagens que a nação brasileira teve variaram muito com o
decorrer do tempo. Em diferentes momentos de nossa história brasileira, pode-se
perceber a problemática da cultura popular se vincular à de identidade nacional.
Renato Ortiz chama a atenção para um ponto crucial desta questão:
“A procura de uma “identidade brasileira” ou de uma “memóriabrasileira” que seja em sua essência verdadeira é na realidade um falsoproblema. A questão que se coloca não é a de saber se a identidade ou amemória nacional apreendem ou não os “verdadeiros” valoresbrasileiros. A pergunta fundamental seria: quem é o artíficie destaidentidade e desta memória que se querem nacionais: A que grupossociais elas se vinculam e a que interesses elas servem”. 8
Nesta dissertação, a música, e mais especificamente a música produzida por Elis
Regina, é o artífice desta identidade e memória nacionais, já que temos inúmeras provas
de sua ampla participação via televisão, no rádio e também pela grande vendagem de
seus discos. Temos, no entanto, que analisar a que grupo se vincula? A que tipo de
interesses serve? E quanto aos locais de suas apresentações? Continuam os mesmos ou
se modificam? Tentaremos responder estas e outras questões ao longo desta dissertação.
Benedict Anderson, em Comunidades Imaginadas, dedica parte de seu livro à
história da Ásia e das Américas. Com sua abordagem cultural da política, ele analisa a
história do nacionalismo moderno e identifica as raízes da “cultura do nacionalismo”,
não na teoria política, mas em atitudes semiconscientes ou inconscientes a respeito do
tempo, da religião. Benedict cunhou a expressão “comunidades imaginadas”, dando
muita importância aos veículos das publicações, especialmente os jornais, na construção
das novas comunidades imaginadas, como a nação. O autor acredita no poder da
imaginação coletiva, das imagens partilhadas, e examina como o nacionalismo capta e
expressa anseios e esperanças reais, nascidos no calor de conflitos reais. 9 Relevante a
esta pesquisa, é a análise do repertório e carreira de uma artista que, através de suas
escolhas, cantou canções que, em um momento de fervorosos debates acerca de que
Brasil construir, contribuiu para a invenção de nossa nação.
8 ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e identidade nacional. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. SãoPaulo: FAPESP e Annablume, S/D.9ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão donacionalismo. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
16
Eric Hobsbawn trata como nação qualquer corpo de pessoas suficientemente
grande, cujos membros consideram-se como pertencentes de uma nação, e não
considera nação como uma entidade social originária ou imutável. Nação, segundo o
autor, pertence exclusivamente a um período particular e historicamente recente, e
enfatiza o elemento do artefato, da invenção e da engenharia social que entra na
formação das nações. A nação é um fenômeno construído e só pode ser compreendido,
se analisado em termos das suposições, esperanças, necessidades, aspirações e
interesses das pessoas comuns. 10
Levando em consideração o caráter de artificialidade de uma identidade que se
pretenda nacional e vendo a “realidade brasileira” como fruto de uma construção
ideológica, faz-se necessário que pensemos também nos agentes que mediam esta idéia.
Se pensarmos em identidade como algo artificial, estamos fatalmente nos referindo aos
agentes que a constroem. Se existem fenômenos nacionais, é necessário um elemento
exterior a essa dimensão que atue como agente intermediário e que a transforme em algo
compreensível. O processo de construção da identidade nacional se fundamenta sempre
em uma interpretação. As interpretações que caracterizam o Brasil são o resultado de
sentidos criados por mediadores. E quem seriam esses mediadores? Podem ser
intelectuais ou políticos, literatos ou outros agentes, mas, no caso desta dissertação, penso
na música brasileira enquanto definidora desta identidade, uma vez que a música pode
representar desejos, aspirações, anseios e sentimentos de inúmeros sujeitos sociais.
Segundo Néstor Canclini:
“Tanto o culto quanto o popular, o nacional como o estrangeiro sãoconstruções culturais. Não têm nenhuma consistência como estruturas“naturais”, inerentes à vida coletiva. Sua verossimilhança foi alcançadahistoricamente mediante operações de ritualização de patrimôniosessencializados. A dificuldade de definir o que é culto e o que é popularderiva da contradição de que ambas as modalidades são organizaçõesdo simbólico geradas pela modernidade, mas ao mesmo tempo amodernidade – por seu relativismo e anti-substancialismo – as desgastao tempo todo.” 11
Elis Regina construiu sua carreira mesclando influências nacionais (samba,
forma de cantar inspirada nas cantoras do rádio, etc) a aspectos claramente identificados
como estrangeiros, como o jazz utilizado em seus discos, além do instrumental para
executá-lo, dentre outros elementos, demonstrando que sua obra se configurou através
10 HOBSBOWN, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. RJ: Paz e Terra, 1990, p.1911 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade. - SãoPaulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997. – Ensaios Latino-Americanos, p.362.
17
de uma complexa construção cultural, diálogos, referências e influências. Na prática,
essas contradições se configuram enquanto organizações simbólicas viáveis e possíveis,
uma vez que fazem parte de comportamentos humanos e, por isso mesmo, nada
naturais. Elis foi uma das artistas, dentre inúmeros outros mediadores, que também
contribuiu para a construção de uma identidade brasileira, no caso dela, através da
música. 12 Podemos tratar seus shows e programas televisivos como rituais modernos,
que ajudaram na elaboração de símbolos e imagens nacionais para seus espectadores.
Analisando a obra da cantora, opto por trabalhar, nessa pesquisa, com os LPs
produzidos por ela no período compreendido entre 1961 e 1974.13 O recorte se justifica,
pois é nessa fase que se inicia e se consolida sua carreira. Suas primeiras gravações
datam de 1961. Os discos lançados por Elis estão inseridos em um período no qual a
música popular brasileira passa por um processo de institucionalização, em que o debate
estético-ideológico se voltava para a discussão em torno do nacional e do popular.14Assim, proponho a análise do repertório da cantora, mostrando a abordagem do Brasil,
tentando apontar como a mesma se relacionava com o discurso de valorização do
popular da época.
Tomando como objeto de análise a carreira da cantora, no período compreendido
entre 1961 e 1974, pretendo mostrar como se deu a relação de Elis com o que acontecia
naquele momento e também pensar em como a trajetória da artista atuou e contribuiu
para o processo de institucionalização da MPB. Discutirei, ainda, a maneira como o
Brasil aparece representado em sua obra. Lembremos que os anos sessenta foram
marcados por uma valorização do popular e também pelo surgimento de movimentos
culturais, dentre eles o cinema novo e o teatro de Arena que, assim como a música,
tinham como proposta questionar a situação do país.
De acordo com a análise do repertório dos discos gravados por Elis Regina no
referido período, pretendo fornecer novas compreensões para a percepção de como a
intérprete aborda questões referentes à temática nacional em sua carreira e como se dá a
12 Mateus Pacheco analisou os espetáculos produzidos por Elis a partir de 1975 e percebeu a abordagemdesses espetáculos incidirem sempre numa busca por compreensão do cotidiano no qual estavaminseridos. PACHECO, Mateus. Elis de todos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção.Dissertação (mestrado) – Universidade de Brasília. Departamento de História, 2009.13 Elis passa a ter autonomia na escolha de seu repertório somente após 1965. No entanto, como quem dizisso é a própria Elis, é necessário relativizar esta afirmação, uma vez que a autonomia ou a falta delafazem parte de uma complexa relação. Há que se considerar como os argumentos dos sujeitos sãoreconstruídos posteriormente.14 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp: 2001.
18
relação dessa abordagem com o discurso de valorização do popular, no contexto
ideológico, cultural e político dos anos de sessenta e setenta.
A partir dos aspectos da vida e obra de Elis Regina abordados por esta pesquisa,
a presente dissertação pretende indicar como se dá a relação da cantora com questões
referentes ao Brasil e como estas aparecem em sua obra. Levanto, então, algumas
perguntas: A partir de que momento as músicas com este tipo de referência começam a
aparecer em seu repertório? Elis gravou estas músicas antes ou depois de se mudar para
o Rio de Janeiro? De que forma estas canções se apresentam em seu repertório? São
canções que fazem referências ao Brasil e sua gente como tema central? Estas músicas
com tais temáticas fazem parte de um projeto de construção de um repertório popular?
De que Brasil fala/ canta Elis? É de um só Brasil ou de mais de um?
Para alcançar tais objetivos, a pesquisa toma por fontes documentais o repertório
musical de Elis Regina, a performance da intérprete, suas declarações às mídias da
época, assim como sua biografia, escrita por uma jornalista, biografias de outros artistas
e também reportagens e entrevistas com artistas ligados à sua carreira.
Em termos metodológicos, o livro História e música de Marcos Napolitano
norteou a pesquisa. A maneira com que a música deve ser abordada, no caso de uma
análise histórica, depende da forma como “fazemos perguntas” para a nossa análise.
Marcos Napolitano salienta a importância de se levar em consideração o fato de que,
por muito tempo, as letras das canções eram consideradas somente quando usadas como
fontes ou instrumentos de análise. Napolitano defende a análise das letras de maneira
integrada a outros elementos formadores das canções, como por exemplo, a harmonia, o
ritmo e a melodia, como também a interpretação dada à música. Para ele, as letras de
uma canção podem fornecer importantes dados, como “para quem” se dirige o discurso
da canção. O autor aponta também as dificuldades que se impõem àqueles que
pretendem uma abordagem interdisciplinar entre História e Música, já que o
“desenvolvimento de uma sociologia histórica ou de uma história cultural da música
brasileira ainda demanda uma ‘revolução das fontes’ e uma melhor organização de
arquivos e museus especializados em nossa história musical.” 15
Segundo Napolitano, para uma pesquisa não reduzida de uma obra musical,
devemos articular o “texto” ao “contexto”, para que não façamos uma análise
puramente descritiva da obra, ou mesmo a biografia dos autores de determinadas
15 NAPOLITANO, Marcos. História e Música: História Cultural da Música Popular. Belo Horizonte:Autêntica, 2002, p. 89.
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canções. O entrecruzamento das análises de diferentes elementos presentes em uma
obra musical pode nos fornecer informações capazes de criar reflexões mais complexas,
sendo esse o objetivo central desta pesquisa. O autor, ao tratar da problematização da
“escuta” musical, aborda a relação entre os aspectos estruturais e a performance, ou
seja, a interpretação dada pelos músicos a uma determinada obra. Em se tratando da
MPB, a liberdade do performer é ainda maior, se comparada às execuções de música
erudita. De acordo com o autor, a estrutura e a performance “realizam” socialmente a
canção, mas não devem ser reduzidas uma à outra. Nem a estrutura deve ser
superdimensionada, nem a performance vista como reino da absoluta liberdade de
(re)criação. Seria mais produtivo, sobretudo para a análise histórica, trabalhar com o
“entre-lugar” das duas instâncias. Esse “entre – lugar” é a própria canção, enquanto
obra e produto cultural concreto.” 16
Santuza Naves comenta o fenômeno da “canção crítica” da seguinte maneira:
“A partir da década de sessenta, os compositores passaram a comentartodos os aspectos da vida, do político ao cultural, tornando-se“formadores de opinião”. Na medida em que a canção popular, noBrasil, desenvolveu um estatuto peculiar, tornando-se um lócus paraonde passaram a confluir informações de diversas áreas, artísticas,culturais e políticas, o compositor criou a identidade de intelectual, numsentido mais amplo do termo. A canção popular tornou-se assim oveículo por excelência do debate intelectual, tanto com relação aquestões textuais quanto a problemas contextuais. Por um lado, ocompositor, como é comum ocorrer com o artista “moderno”, passou aatuar como crítico no próprio processo de composição da canção. Poroutro, a crítica também era dirigida aos fatos culturais e políticos dopaís, de maneira congruente com a proposta destes compositores dearticular arte e vida. O compositor popular, à maneira de Baudelaire,tornou-se um crítico. Ao operar criticamente no processo de composi-ção, o compositor popular fez uso da metalinguagem, daintertextualidade e de outros procedimentos que remetem a diversasformas de citação, como a paródia e o pastiche. E ao estender a atitudecrítica para além dos aspectos formais da canção, o compositor populartornou-se um pensador da cultura.” 17
Podemos pensar em Elis como uma jornalista de seu tempo, como a própria
artista chegou a afirmar, em entrevista ao Vox Populi, programa da TV Cultura,
realizado em 1978. A artista tomou para si a tarefa de refletir sobre a sociedade na qual
16 NAPOLITANO, Marcos. História e Música: História Cultural da Música Popular. Belo Horizonte:Autêntica, 2002, p.8517 NAVES, Santuza C. Palestra proferida na Semana do Patrimônio da Fiocruz, realizada de 21 a 25 demaio de 2007 na Fundação Oswaldo Cruz, em mesa-redonda intitulada “De Mário de Andrade a MPB eoutras viagens musicais”. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 25 de maio de 2007.
20
estava inserida, pela qual era influenciada e sobre a qual exercia influência, por sua vez.
Ao inserir em seu repertório músicas que mencionavam problemas nacionais, Elis passa
a ser considerada uma destas “compositoras” com identidade de um intelectual.
Mais do que somente interpretar, Elis ganhava um status de compositora ao
selecionar e interpretar à sua maneira determinadas canções. Acreditando que um
mesmo discurso pode ser transmitido de diferentes maneiras por diferentes intérpretes,
onde alguns podem dar mais dramaticidade ao ato de cantar do que outros, e também
que o ato de interpretar se soma ao ato de compor, acho pertinente citar Adalberto
Paranhos:
“... as interpretações, quaisquer que sejam elas, são sempre portadorasde sentido. Isso recoloca, a todo instante, problemas de ordemmetodológica. Do meu ponto de vista, interpretar implica tambémcompor. Inevitavelmente, quando alguém canta e/ou apresenta umamúsica sob essa ou aquela roupagem instrumental, atua igualmente,num determinado sentido, como compositor. O agente opera, em maiorou menor medida, na perspectiva de decompor e/ou recompor umacomposição.” 18
Acredito que mesmo não assinando a composição das canções de seu repertório,
Elis Regina deu novos sentidos aos discursos e às músicas que interpretou. Através de
técnicas próprias, adquiridas ao longo de sua vida, seu canto atribuía novos sentidos a
essas canções. Além de dar-lhes novo sentido, ela as escolhia dentre inúmeras outras
canções a serem interpretadas.
A música popular começou a despertar a atenção dos intelectuais, sobretudo, a
partir da bossa nova. O interesse da crítica estava ligado aos aspectos discursivos da
canção popular, motivando inúmeros debates sobre suas propostas políticas, sociais e
culturais. Dessa maneira, os artistas ocupariam posições engajadas ou alienadas diante
deste novo cenário. E, de fato, muitos compositores e cantores, dentre eles Elis Regina,
tomaram para si uma missão de cultura, transformando-se em intelectuais, ao intervir
sobre o terreno do político através de seus trabalhos artísticos.
Questionado em entrevista sobre qual teria sido seu posicionamento no momento
em que o campo musical estava muito dividido, cheio de polêmicas, no final dos anos
sessenta, em que o pessoal da tropicália polemizava com o pessoal da MPB tradicional e
vice-versa, Nelson Motta responde:
18 PARANHOS, Adalberto. A música popular e a dança dos sentidos: distintas faces do mesmo. RevistaArtCultura. Uberlândia: EDUFU, 2004, p.25.
21
“Isso era uma época muito efervescente, muito estimulante também,porque você tinha discussão noite e dia. Mas, é claro, esse espírito dediscussão foi exacerbado pela ausência de discussão política e de debatepolítico, porque estávamos sob a ditadura militar. Se o debate políticofosse livre como hoje, certamente o debate musical seria muito, muito,muito minimizado, provavelmente ia se manter mais circunscrito aocampo especificamente cultural. Por causa dessa falta de espaçopolítico, a música popular acaba se transformando numa coisa muitomaior que ela.” 19
De acordo com Caetano Veloso:
“Depois da bossa nova, passara-se a levar a música popular muito asério no Brasil. E isso em todos os sentidos: dos aspectos propriamentemusicais e literários aos políticos, havia uma atitude pretensiosa eresponsável em toda atividade ligada à canção.” 20
Caetano disse ainda:
“Num ambiente estudantil altamente politizado, a música popularfuncionava como arena de decisões importantes para a cultura brasileirae para a própria soberania nacional – e a imprensa cobriacondizentemente... Mas em todos os níveis tinha-se a ilusão, mais oumenos consciente, de que ali se decidiam os problemas de afirmaçãonacional, de justiça social e de avanço na modernização.” 21
Estes depoimentos têm em comum o aspecto de apontarem a importância que a
música popular teve no Brasil enquanto espaço de reflexão e representação dos
problemas nacionais. Ao analisarmos a música como um objeto histórico, devemos
refletir sobre o significado que ela tem enquanto documento. Quanto ao significado de
documento, recorro ao conceito de Le Goff, segundo o qual, todo documento é também
monumento. Uma obra musical, e neste caso, a de Elis Regina, é passível de
interpretação histórica, na medida em que carrega em si a intencionalidade de quem a
produziu, além das questões da época em que foi composta e gravada. É necessário
levar em consideração, a partir de uma leitura crítica, a complexa construção deste
nosso objeto de análise. Segundo Le Goff:
“O documento não é inócuo. É, antes de mais nada, o resultado de ummontagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, dasociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivasdurante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quaiscontinuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio.” 22
19 A MPB em discussão: entrevistas / Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho, Tatiana Bacal(Organizadores) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 44.20 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p. 122.21 Idem, p. 177.22 LE GOFF, Jacques. História e memória. 5°edição – Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003, p.538.
22
Assim sendo, acho necessário analisar não só a obra musical de Elis, como
também a complexa relação existente entre a sua biografia e seu diálogo com o
momento político e o tumultuado debate cultural que acompanhou o período. Tanto a
música, quanto outros documentos em geral captam apenas uma parcela do que seus
autores vivenciaram. Nesse sentido, resta ao historiador saber somar, à obra musical
analisada, outras fontes e compreender que sua reconstituição é parcial e construída
através da reunião de fragmentos de realidades descritas por indivíduos que, por sua
vez, selecionaram do passado, aquilo que lhes era importante.
Tentarei compreender o diálogo existente entre o texto e a música, levando em
consideração a melodia, os arranjos, os instrumentos utilizados, os timbres e os gêneros
musicais. Não realizo uma análise musicológica, já que não se trata de uma análise
puramente musical e sim, priorizo a análise textual, dando ênfase a questões históricas.
Os aspectos musicais, como, por exemplo, determinadas melodias ou dinâmicas
instrumentais, entram na análise para esclarecer sentidos que somente a letra não é
capaz de explicar. Tento ao máximo atrelar o sentido textual à sonoridade e timbres dos
arranjos que o acompanham.
O primeiro capítulo trará a análise da infância de Elis Regina e seus primeiros
contatos com o aprendizado musical, além de analisar a importância do rádio na sua
vida e profissionalização. Para tanto, utilizo bibliografia referente ao assunto e um
estudo realizado sobre o programa do qual Elis participou durante boa parte de sua
infância. Analiso, ainda, a primeira parte de sua obra, que constitui 4 LPs, gravados
enquanto Elis ainda morava em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
No segundo capítulo, o objetivo é analisar o surgimento da temática nacional-
popular na obra de Elis. Pretende-se compreender, através das canções gravadas por ela,
bem como algumas de suas entrevistas e vídeos, e também, através depoimentos de
artistas envolvidos direta ou indiretamente com sua carreira, as tensões presentes nas
relações sociais de meados dos anos sessenta que se referem à problemática nacional.
Analiso sua relação com a televisão, a proposta do programa O Fino da Bossa e
também sua participação em festivais. Analiso os LPs lançados de 1965 até 1968, nos
quais percebo a predominância da temática nacional-popular, o que se modifica a partir
de 1969.
No terceiro e último capítulo, abordarei a carreira de Elis Regina após o LP
lançado em 1968, Elis Especial, no qual é perceptível uma efetiva tentativa de mudança,
23
tanto no repertório quanto em sua sonoridade mais próxima da bossa nova, além de
influências musicais de outros gêneros, como, por exemplo, o rock progressivo.
Analisarei como o nacional-popular, tão presente no repertório de Elis desde 1965, se
modifica ao longo de sua carreira e, em especial, a partir de 1968, quando o conceito
passa a ser altamente combatido pelos tropicalistas. Tentarei esclarecer se, de fato,
houve uma influência do movimento tropicalista na carreira e obra de Elis e como se
deu essa interferência. Como fontes para a realização deste capítulo, serão utilizados
jornais, revistas, vídeos, além de bibliografia referente ao tema e análise da discografia
deste período.
Vamos ao trabalho!
24
Capítulo 1 - Formação musical e primeiros passos artísticos
Estudos recentes sobre a história da música popular brasileira23 dão ênfase aos
movimentos musicais em detrimento das trajetórias individuais, principalmente os
trabalhos relacionados com a música produzida após o surgimento da bossa nova e com
a conjuntura pós-golpe militar. Tais estudos vêem a história da música brasileira a partir
de uma sucessão de movimentos musicais ou a partir da relação de determinados
compositores com o regime ditatorial, dando destaque para as canções engajadas. O
aspecto frágil destas análises está na forma como as trajetórias individuais são pensadas,
uma vez que elas tendem a ser inseridas nos movimentos e não estes a serem pensados a
partir das trajetórias.
A escolha do individual, no caso, Elis Regina Carvalho Costa, não pode ser vista
como contraditória à do social, trata-se apenas de uma abordagem diferente, uma vez
que, ao acompanharmos o fio de um destino particular – de Elis, de um grupo de artistas
– e, com ele, a multiplicidade dos espaços e dos tempos, percebemos a meada das
relações nas quais ela se inscreve. Minha análise busca, portanto, a compreensão de
uma experiência coletiva a partir da individual. 24
E.P.Thompson explica que os procedimentos exigidos para observarmos o
comportamento de uma pessoa não são os mesmos exigidos para observarmos os
acontecimentos históricos. Não podemos construir nosso conhecimento histórico ou
econômico pressupondo primeiro indivíduos isolados. É legítimo ver uma pessoa como
portadora de estruturas, mas só podemos chegar a ela através da soma de muitos
ângulos; nem uma pessoa e nem mesmo uma sociedade podem ser vistas como uma
soma de determinações que se cruzam, mas sim, através da observação no tempo. 25
Escolher estudar uma artista, como qualquer outro sujeito, contribui para que se
compreenda melhor a relação que existe entre agentes históricos individuais e processos
históricos coletivos. Não existe um contexto que independa de sujeitos, e o estudo de
23 CASTRO, RUY Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa nova. SP, Cia. das Letras,1990, e NAPOLITANO, Marcos Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp: 2001, dentre outros.24 REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In: Jacques (org.). Jogos de escalas. Rio deJaneiro, FGV, 1998, pp. 21-22.25 THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. 1978, The Merlin Press, deLondres, Inglaterra, p. 169.
25
casos específicos são importantes, uma vez que pensamos em sua participação e,
conseqüentemente, na modificação da realidade na qual esse sujeito atua.
Analisarei, neste capítulo e nos demais, a capacidade da música popular (na
qualidade de campo cultural) em agenciar tensões advindas da invenção de um Brasil
“moderno”. Realizarei uma análise polifônica, tramada na trajetória de Elis Regina e
nos espaços que ela ocupou, perpassando por casos do cotidiano da produção musical,
pelas letras das músicas que interpretou, pelas tensões sociais das quais participou e
influenciou, na dinâmica política, bem como nas transformações culturais por que
passava a sociedade naquele momento.
O objeto desta pesquisa se enquadra na gama dos novos objetos abordados pela
História Cultural: a música, mais especificamente, a popular brasileira. A música é um
objeto que se constitui tanto de aspectos estéticos, sociológicos, lingüísticos, sonoros,
performáticos, quanto de históricos, pois através de uma produção musical é possível
analisarmos, dentre outros aspectos, a realidade de uma determinada época, uma vez
que a música não só está presente no cotidiano de milhares de pessoas, como também o
representa e nele interfere; bem como a maneira como determinada sociedade encarava
seus problemas e os musicava.
A tensão entre práticas e representações atravessa tanto a “nova história social”,
quanto a “nova história cultural” e constitui um dos eixos centrais do debate a respeito
dos limites do conhecimento histórico nessas duas áreas. Recentes trabalhos da história
social vêm demonstrando que os novos aspectos da experiência humana devem ser
levados em conta, mas que eles só podem ser explicados ou interpretados se atentarmos
para as complexas relações culturais que os informam. Diferentes vozes falam de
cultura com significados variados, referindo-se a pesquisas de natureza bastante diversa.
Por isso mesmo, faz-se necessária a realização de discussões sobre os sentidos e limites
deste campo de reflexão histórica, tanto quanto o questionamento sobre os diversos
modos de conceber a atividade histórica, de formular problemas e a abordagem de
diferentes documentos. 26
Minha intenção com esta pesquisa não é postular continuidades essenciais, ou
mesmo buscar fatores que independam da experiência, e sim, buscar a “historicização”
da relação de Elis com a sociedade que se faz presente em sua obra. Historicizar tem
26 LARA, Silvia Hunold. História cultural e história social. Revista Diálogos, UEM, 0:25 – 32, 1997.
26
aqui o sentido de acompanhar o processo de emergência desta relação, seus modos de
constituição e funcionamento, bem como suas possibilidades de existência.
Carlo Ginzburg nos chama atenção para o fato de que mesmo que as pretensões
de conhecimento sistemático mostrem-se como veleidades, nem por isso a idéia de
totalidade deve ser abandonada. Pelo contrário, a existência de uma profunda conexão
que explica os fenômenos superficiais é reforçada no próprio momento em que se
afirma que um conhecimento direto de tal conexão não é possível. Se a realidade é
opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la. O
paradigma indiciário ou semiótico aborda minúsculas particularidades e as emprega
como pistas que permitem reconstruir trocas e transformações culturais, mais do que
deduzir, o método reconhece que a força está na observação do pormenor revelador. 27
No caso desta pesquisa, uma trajetória individual trará muitos sinais que só farão
sentido se analisados à luz do período estudado.
Busco, neste capítulo, indícios do início da carreira de Elis Regina, através de
investigação cuidadosa, afastando o perigo de permanecer restrita ao ambiente do
discurso interno e do universo do gosto. Ao tentarmos compreender as relações internas
da música e a relação delas com a sociedade, é necessário evitarmos reducionismos
mecânicos, que constantemente tentam determinar as relações culturais como simples
reflexos das estruturas históricas mais gerais.
Considerando que a música, sobretudo a popular, pode ser compreendida como
parte constitutiva de uma trama repleta de contradições e tensões, em que os sujeitos
sociais, com suas relações e práticas coletivas e individuais e por meio dos sons e
textos, (re) constroem partes da realidade social e cultural, os signos ligados à obra de
Elis Regina, nunca serão analisados isoladamente nessa pesquisa. Tais signos não
podem ser analisados exclusivamente em uma única série documental, nem podem ser
entendidos enquanto um conteúdo pura e simplesmente, pois os mesmos estão inseridos
em processos e, mais do que isso, ganham vida e materialidade a partir do cruzamento
de discursos que, por sua vez, se cruzam com práticas, seja no plano dos discos
gravados, seja no plano da recepção desta obra, ou em ambos.
Neste capítulo, abordarei o cenário artístico da década de cinquenta,
especialmente o que interferiu e influenciou o início da carreira musical de Elis Regina
Carvalho Costa. São escassas as fontes referentes a esta fase da vida de Elis. Utilizarei
27GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. – São Paulo: Companhia dasLetras, 1989, p. 177.
27
as entrevistas, com a mãe de Elis, como a realizada por Regina Echeverria28 e citada em
sua biografia, porém não transcrita na íntegra29, e outra concedida à Rede Globo30, bem
como depoimentos de Elis em diferentes momentos de sua carreira, sobre esta fase de
sua vida, trabalhos referentes à temática do rádio e em especial ao programa Clube do
Guri31, no qual Elis ingressou aos 11 anos de idade, além da análise do repertório
gravado por ela no início de sua carreira.
1.1 - A infância
Elis Regina Carvalho Costa nasceu no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, em
1945. Segundo Dona Ercy, mãe de Elis, em entrevista cedida à jornalista Regina
Echeverria, em suas recordações mais remotas, a filha era uma criança obediente e que
gostava de brincar sozinha, costumava andar pelo quintal com uma bolsa de palha,
falando consigo mesma. Até perder o emprego de chefe do almoxarifado na Companhia
Sul brasileira de vidros, Romeu Costa, pai de Elis, era um homem sensível, que gostava
de ler Ernest Hemingway, ouvir Chico Alves e Carlos Gardel. Em 1952, os Carvalho
Costa deixaram o bairro de Navegantes. Industriário, seu Romeu teve direito de ocupar
um apartamento na vila IAPI32, na região norte da capital gaúcha. Foi morando neste
apartamento que Romeu perdeu o emprego, quando a Sul brasileira de vidros faliu. Seu
Romeu passou o resto da vida se aventurando em empregos variados: representante
comercial, caixeiro-viajante, dono de açougue, feirante. Na época em que Elis tinha 9
anos, ela recebeu lições de piano da professora Waleska, uma vizinha na vila do IAPI.
Estudou por dois anos. Aprendeu rápido demais, tão rápido que se viu diante do dilema:
ou comprava um piano ou parava de estudar. E Elis começou a cantar, porque sua
família não pôde comprar um piano. 33
28 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007.29 Entrei em contato com a jornalista para ter acesso a estas entrevistas, no entanto, ela alegou não aspossuir mais.30 Para o programa Por toda minha vida exibido pela Rede Globo em 28/12/2006.31 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical.2004.32 Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários.33 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, pp. 22 a 24.
28
Esta rememoração de Dona Ercy nos fornece várias informações sobre a infância
de Elis. Uma é que seus pais não tinham uma situação financeira tão favorável, afinal o
pai de Elis viveu trocando de empregos depois que saiu da Sul Brasileira e, depois que
ficou desempregado, provavelmente a situação financeira da família piorou ainda mais.
Indica também que o pai de Elis ouvia Chico Alves e Carlos Gardel, o que influenciaria
o gosto musical da filha. As aulas de piano atestam, por sua vez, o contato musical de
Elis ainda pequena com as notações musicais, fato rememorado por ela, no programa
MPB Especial, de 1973:
“A transa maior da minha vida tinha que ser com música. Eu era semprerequisitada em casa nas horas de arte. Eu queria era estudar piano, era onegócio maior da minha vida. Estudei mas tinha que ir para oconservatório e passei no teste. Até que um dia realmente me puserampara estudar no conservatório, mas não tinha instrumento. Entre comer eter um piano optaram por comer, o que achei ótimo. Tinha muito somna cabeça pra sair pra fora. Comecei a cantar e dei de presente deaniversário para minha avó cantar no Clube do Guri, quando gostei equis dar o presente pra mim quiseram cortar essa, afinal cantora derádio... Mas aí já não tinha mais jeito.” 34[grifos meus]
O depoimento de Elis, apesar de não detalhar a maneira como estudou (se com
uma professora particular ou de outro modo), confirma que ela estudara música e que
passara no teste do conservatório, mas, por não possuir instrumento em casa, não pode
frequentar a escola de música. Temos aqui o primeiro indício da ligação de Elis com o
ensino musical. Porém é difícil precisar o tipo de aprendizado que ela teve. Depende do
tipo de professora particular que era Waleska e do seu plano pedagógico e sua
metodologia. É provável que ela tivesse aulas de piano tradicionais, no sentido de
valorizar a leitura de partituras e decorar peças musicais do repertório elementar. Hoje
em dia, normalmente se busca, a partir da exploração do instrumento, descobrir aspectos
ligados tanto ao seu repertório mais simples e acessível (o bife, por exemplo), quanto
musicalizar a criança, nos aspectos mais abstratos da música, como melodia e ritmo.
A mãe de Elis35 diria ainda que:
“Ela era muito tímida. E era muito educada. Elis foi a primeira filha,primeira neta primeira sobrinha, foi tudo primeira. Quando pequena elacantava Adios pampa mia. A vida dela era cantar, ela tinha um ouvido,tudo que ela ouvia já saia cantando. Ela chegou pra mim e disse: mãe tume leva no Clube do Guri? Era inverno, ela tava de luva e furou a luva
34 Programa MPB Especial produzido por Fernando Faro em 1973 pela TV Cultura.35 Em entrevista ao programa Por toda minha vida exibido pela Rede Globo em 28/12/2006.
29
mordendo a luva. Por causa desta timidez ela tinha hemorragias nasaisincríveis, não sei se era conseqüência disso, eu sei que ela tinha. Teveum dia que ela tava com um vestido muito rodado e ficou lavada desangue. Ela se fechava no quarto dela, no quarto tinha uma vitrola e láela ficava ela estudava ouvindo música.(...)E o que você vai fazer lá noClube do Guri? Já te levei lá tu não quis cantar. Daí ela : me levaporque agora eu vou cantar.”
A fala de Dona Ercy enfatiza a forte ligação de Elis com o universo musical:
desde pequena, ela gostava de cantar e repetir o que ouvia, o que já demonstra uma
forma de aprendizado através da imitação. O depoimento materno salienta a grande
timidez de Elis, através de fatos como comer a luva, ou mesmo pôr sangue pelo nariz.
Essa timidez e insegurança da artista seriam relembradas pela própria em futuros
depoimentos.
Elis, ao falar sobre sua trajetória, afirma ter uma forte ligação com o universo
musical desde criança. A música se fez presente desde quando se tem recordação:
“Eu ouvia a Rádio Nacional da hora que eu acordava até a hora dedormir. Eu ouvia Francisco Alves, Marlene, Emilinha, César deAlencar. Me marcou muito, minha casa parava domingo ao meio-diapara ouvir Francisco Alves, quando ele morreu meu pai ficou de lutouma semana, minha mãe chorava que parecia que alguém da famíliahavia morrido.”36
Este trecho é bastante significativo, pois percebe-se a forte influência que os
cantores de rádio tiveram na formação e gosto musical de Elis, que anos depois faria uso
do gestual e dos timbres vocais semelhantes aos daqueles cantores. Segundo
Napolitano, o retorno de alguns parâmetros “tradicionais” da música popular, como a
intensidade vocal, o gestual expressivo e os timbres mais metálicos, ao mesmo tempo
em que foram ao encontro de um público mais massivo, pouco adaptado à bossa nova
“original”, causaram algum mal-estar entre aqueles que defendiam a “linha evolutiva”
da música brasileira. 37
Marcos Filho, em sua pesquisa sobre da cultura da gravação no Brasil e suas
práticas de estúdio, nos fornece informações sobre os modos de cantar de alguns dos
cantores do rádio. Segundo Filho, na era mecânica, são identificados dois paradigmas de
canto na musica popular brasileira: de um lado o paradigma do canto falado, tendo o
cantor Bahiano como seu maior expoente e, de outro lado, o paradigma do bel canto,
36 Programa MPB Especial produzido por Fernando Faro em 1973 pela TV Cultura.37 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2001, p. 150.
30
inspirado nos discos de ópera que aqui chegavam, tendo como representantes, dentre
outros, Vicente Celestino e, mais tarde, Francisco Alves.38
De acordo com o autor:
“O paradigma do bel canto, muito utilizado por cantores de ópera(sobretudo a italiana), de teatros de revista e pela música erudita de umamaneira geral, sempre esteve associado à necessidade de projeçãosonora. De fato, as gravações de música erudita feitas no exteriorapresentavam um bom equilíbrio entre a voz e grandes gruposinstrumentais. No entanto, o entendimento do texto não era um objetivoa ser alcançado, mesmo porque o repertório erudito europeu já eraamplamente conhecido no mundo ocidental. As principaiscaracterísticas do paradigma do bel canto usado nas canções popularesbrasileiras - além do alto nível de energia empregada na impostaçãovocal - são o vibrato, pouca flexibilidade de articulação nas consoantese largo prolongamento das vogais.” 39
Segundo Filho, a grande expansão no processo de registro sonoro se deu a
partir da gravação elétrica iniciada em1925 e, no Brasil, em 1927. O interlocutor desse
novo processo foi o microfone elétrico, desenvolvido pela Western Electric, através de
estudos voltados para as transmissões radiofônicas. De acordo com o autor, a partir de
então, os sons puderam ser captados a uma distância maior da fonte e não era mais
necessário aos instrumentistas forçarem sua interpretação ou tocarem muito agrupados,
direcionando seu som para um único cone de metal. O microfone trouxe, também, a
possibilidade de uma maior captação e definição no timbre das vozes femininas, o que
ocasionou um acréscimo efetivo na participação das cantoras ao longo da era elétrica.40
Marcos Filho descreve que:
“Francisco Alves era um cantor atento às novas tendências e seadaptava muito facilmente. Na era mecânica ele possuía um canto maisimpostado e próximo da estética do bel canto utilizada nos teatros derevista. Nos anos 1930 o cantor fez dupla com Mario Reis e se adaptoufacilmente à estética do canto falado. Nos anos 1940, o cantor,influenciado pela música romântica, retomaria o canto impostado.” 41
Esta afirmação é importante, pois demonstra que a maneira de cantar impostada
e com a utilização de vibratos, como no bel canto, fora utilizada por Francisco Alves,
que a abandonara e depois a reutilizaria para estar afinado com as canções românticas.
Francisco Alves, bem como outros cantores e cantoras ouvidos por Elis e ela própria, na
38 FILHO, Marcos Edson Cardoso. Pelo gramofone: a cultura da gravação e a sonoridade do samba(1917–1971). Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Música. 2008,p.82.39 Idem, p. 83.40 Idem, ibidem, p. 90.41 Idem, ibidem, p.116.
31
fase inicial de sua carreira, se utilizavam dessa técnica. No entanto, isso variaria ao
longo de sua carreira, assim como variou na de Francisco Alves, como veremos nos
capítulos seguintes.
A forte ligação de Elis e de sua família com a Rádio Nacional demonstrada no
fato de a “ouvir da hora que acordava até a hora de dormir” é um indício de como este
meio de comunicação fez parte da vida da cantora de maneira significativa.
No tópico apresentado a seguir, analisarei o surgimento do rádio no Brasil. O
eixo central, Elis, retornará logo após com sua efetiva participação na Rádio Gaúcha.
Acredito que uma análise pormenorizada da rádio é pertinente para que se compreenda
melhor sua influência na vida e obra da cantora.
1.2 - Nas ondas da Rádio Nacional
De acordo com Eric Hobsbawm, na década de 1930, na Europa, e
principalmente nos EUA, o rádio já trazia o mundo para dentro de casa, “sua capacidade
de falar simultaneamente a incontáveis milhões, cada um deles sentindo-se abordados
como indivíduos, transformava-o numa ferramenta inconcebivelmente poderosa de
informação.”42Especificamente no campo da produção cultural, Hobsbawm aponta a
dificuldade de reconhecimento das inovações trazidas pelo rádio, já que “muito daquilo
que ele iniciou tornou-se parte da vida diária”.43
Néstor Canclini, fugindo de uma visão unidirecional da comunicação, na qual
existe uma manipulação absoluta dos meios de comunicação sobre a recepção das
mensagens, questiona o alcance desses efeitos. De acordo com Canclini:
“A noção de indústrias culturais, útil aos frankfurtianos para produzirestudos tão renovadores quanto apocalípticos, continua servindo quandoqueremos nos referir ao fato de que cada vez mais bens não são geradosartesanal ou individualmente, mas através de procedimentos técnicos,máquinas e relações de trabalho equivalentes aos que outros produtos daindústria geram; entretanto, esse enfoque costuma dizer pouco sobre oque é produzido e o que acontece com os receptores.” 44
42 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX. 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras,1995, p. 194.43 Idem, p. 195.44 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. SP,EDUSP, 1998, p. 257.
32
Canclini avança os limites da idéia de submissão absoluta do receptor à
mensagem. E assim, nos possibilita pensar na maneira como o rádio passa a fazer parte
da vida de Elis Regina, não só como ouvinte, mas também como alguém que faria parte
da produção/elenco da Rádio Gaúcha, como veremos a seguir. Esta dissertação busca,
então, contribuir para uma melhor compreensão sobre a produção dos bens culturais
(musicais/profissionais) deste período.
De acordo com Canclini:
“As tecnologias comunicativas e a reorganização da indústria da culturanão substituem as tradições nem massificam homogeneamente, mastransformam as condições de obtenção e renovação do saber e dasensibilidade. Propõe outro tipo de vínculo da cultura com o território,do local com o internacional, outros códigos de identificação dasexperiências, de decifração de seus significados e modos decompartilhá-los. Reorganizam as relações de dramatização ecredibilidade com o real. Tudo isso se enlaça, como sabemos, com umaremodelação da cultura em termos de investimento comercial, ainda queas transformações simbólicas citadas não se deixem explicar apenaspelo peso que o econômico adquire.” 45
A partir das condições de obtenção e renovação do saber e da sensibilidade
possibilitadas pelas tecnologias comunicativas (neste caso especificamente, o rádio),
penso na identificação de Elis com as cantoras do rádio e no modo como aprendera com
elas. Elis tentava decifrar suas técnicas de cantar, ouvindo-as e repetindo-as, e,
posteriormente, passou a ser uma cantora de rádio. Inicialmente seu desejo em se tornar
uma cantora não se baseava somente no fator econômico, mas principalmente no status
que tinham as divas do rádio, com inúmeros fãs e seus extensos “paparicos”,
amplamente divulgados em revistas especializadas no assunto. Pode-se pensar também
no vínculo de Elis com cantores internacionais (foi a rádio que possibilitou esse
“encontro”), com os quais ela compartilhava modos de cantar, além de tentar decifrar as
técnicas por eles utilizadas.
De acordo com Lia Calabre:
“O rádio foi o primeiro meio de comunicação a falar individualmentecom as pessoas, cada ouvinte era tocado de forma particular pormensagens que eram recebidas simultaneamente por milhões depessoas. O novo meio de comunicação revolucionou a relação cotidianado indivíduo com a notícia, imprimindo uma nova velocidade esignificação aos acontecimentos. Ao partilharem das mesmas fontes de
45 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. SP,EDUSP, 1998, p. 263.
33
notícias, os indivíduos se sentiam mais integrados, possuíam umrepertório de questões comuns a serem discutidas. No campo específicoda produção cultural, o rádio inovou ao mesmo tempo em que absorveue adaptou outras formas de arte já existentes.” 46
Segundo Calabre, o rádio foi lançado no Brasil por um grupo de intelectuais que
via no veículo a possibilidade de elevar o nível cultural do país. Quem se empenhou na
empreitada da Rádio Sociedade foi o médico e antropólogo Edgar Roquete Pinto,
membro da Academia Brasileira de Ciências, da Academia Nacional de Medicina e do
Instituto nacional de Cinema Educativo e Henrique Morize, presidente da Academia
Brasileira de Ciência. Ambos viam no rádio a saída para o que denominavam “os males
culturais do país”. Os dois eram acompanhados por alguns intelectuais que iam à
emissora proferir palestras, conceder entrevistas, sempre em prol da causa do
aprimoramento do nível cultural do país. Esse rádio da década de 1920, com uma
programação intelectualizada e de preços altos, terminava sendo ouvido pelo mesmo
grupo que o produzia, ou seja, era um veículo de comunicação ligado às camadas altas
da população.47
De acordo com Calabre, o rádio no Brasil de 1920 até o início dos anos sessenta
se destacou pelas radionovelas, programas de auditório, pelas cantoras sendo eleitas
como “rainhas do rádio”, programas humorísticos e de variedade. A autora conta, ainda,
que foi ao longo dos anos cinquenta que o rádio se tornou acessível à grande maioria da
população:
“O rádio brasileiro estabeleceu-se a partir de uma dupla determinação:um veículo de comunicação privado, portanto subordinado às regras domercado econômico, mas, ao mesmo tempo, controlado pelo Estado,que é responsável tanto pela liberação da concessão para ofuncionamento das emissoras quanto pela cassação das mesmas, casohaja desrespeito às leis do código de comunicação em vigência.” 48
A autora afirma que, apesar do desenvolvimento do rádio se efetuar em
diversas regiões do país ao mesmo tempo, as emissoras cariocas e paulistas tiveram uma
posição de destaque no cenário radiofônico nacional. Ela salienta que ao longo das
décadas de quarenta e cinqüenta a Rádio Nacional do Rio de Janeiro configurou-se
como uma espécie de modelo de programação a ser seguido pelo restante do país.49
46 CALABRE, Lia. A era do rádio. 2. Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p. 9.47 Idem, p. 22.48 Idem, ibidem, p. 12.49 Idem, ibidem, p. 11.
34
Calabre conta ainda que a Rádio Nacional estrearia sua primeira transmissão oficial em
12 de setembro de 1936. Ou seja, anos antes de nascer Elis, a rádio já dava seus
primeiros passos na configuração de status de difusora da cultura nacional.
A intenção de transformar a rádio em uma espécie de integradora das regiões
brasileiras se fez presente no discurso de inauguração dos novos estúdios da Rádio
Nacional, em 19 de abril de 1942, proferida pelo diretor geral do Departamento de
Imprensa e Propaganda- DIP, Lourival Fontes:
“As distâncias foram sempre um dos inimigos eficientes do nossoprogresso. Durante longos anos os brasileiros, espalhados por todas aslatitudes, que trabalhavam pala grandeza nacional, viveram um poucoesquecidos, à míngua de contatos. Com o rádio pôde o Brasildesvanecer essas dificuldade, vencendo seu pior inimigo.” 50
Anos antes, Lourival expressaria sua crença no rádio, também como um
instrumento de ação político-social:
“Dos países de grande extensão territorial, o Brasil é o único que nãotem uma estação de rádio “oficial”. Todos os demais têm estações quecobrem todo o seu território. Essas estações atuam como elemento deunidade nacional. Uma estação de grande potência torna o receptorbarato e, portanto, o generaliza. (...) Não podemos desestimar a obra depropaganda e de cultura realizada pelo rádio e, principalmente, a suaação extra-escolar; basta dizer que o rádio chega até onde não chegam aescola e a imprensa, isto é, aos pontos mais longínquos do país e, até, àcompreensão do analfabeto.” (Lourival Fontes, Voz do Rádio, 20 fev1936)51
Tais colocações feitas por Lourival com uma distância de seis anos entre
si,dimensionam bem a intenção integradora a ser realizada pela Rádio Nacional,
demonstrando que a emissora neste período se configurou, nesse período, como um
elemento de construção de uma determinada identidade nacional, expressa no próprio
nome da emissora. As pretensões de integração nacional se somavam também ao fato da
rádio se configurar em um poderoso instrumento político, além de sua potencialidade
educativa e civilizatória, como queriam seus idealizadores.
Outro depoimento sobre os primeiros tempos da emissora que revela a pouca
utilização da música brasileira em seu repertório, é o do maestro, pianista e arranjador
Radamés Gnattali:“A Nacional tinha orquestra de jazz dirigida por Gaó, Patené dirigia ade tangos, onde eu era pianista. Naquele tempo não se tocava música
50 SAROLDI, Luiz Carlos e Sônia Virgínia MOREIRA. Rádio Nacional: o Brasil em sintonia.3.ed.[ampl. E atualizada]. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 10.51 Idem, p. 27.
35
brasileira com orquestra, só com regional. As orquestras de salãotocavam música ligeira, operetas, valsas, por aí.”.52
Já no que diz respeito à larga utilização da música estrangeira na programação
da Rádio Nacional e sobre a tentativa de se inserir a música brasileira em maior medida
nessa programação, Paulo Tapajós afirma:
“Anos atrás, a nossa música popular recebia um tratamento que nãocondizia com a sua riqueza, enquanto a música estrangeira merecia umainstrumentação luxuosa. A Rádio nacional rompeu com essa tendência etomou outro caminho. Não somente forçamos a melhor programação damúsica brasileira, isto sem qualquer sentido de xenofobia, comopassamos a dar um tratamento digno ao nosso patrimônio musicalpopular. Desde quando eu era diretor artístico da emissora que esteinstrumento se fez sentir seriamente. Foi aliás Radamés Gnattali quemprimeiro instrumentou dignamente a nossa música popular. Chegamosaté a fundar o Departamento de música brasileira para tratarespecialmente desta questão....Outra iniciativa a lembrar são os dezFestivais da Música Brasileira que realizamos há anos, sendo que o 11°será efetuado agora em setembro, mês das comemorações doaniversário da Rádio nacional, no Teatro Municipal. É com orgulho,portanto, que situamos a decisiva atuação da Rádio Nacional na obra devalorização da nossa música popular.”53
No entanto, há que se relativizar este tipo de rememoração, uma vez que a
inserção da música brasileira na programação foi se inserindo gradualmente e,
certamente, se fez com a intenção não só de Tapajós ou mesmo de outros importantes
membros da rádio. Há que se focar nos inúmeros fatores e práticas que fizeram com que
o repertório nacional fosse ocupando aos poucos o repertório das rádios. Não houve,
contudo, nenhum trabalho que analisasse detalhadamente esta questão, dentre os citados
neste capítulo.
De acordo com Ruy Castro, nos anos pós-guerra, a concorrência era feroz e, em
certo momento, havia mais conjuntos vocais no Rio do que rádios, gravadoras e boates
capazes de absorvê-los. Eram quase todos do Norte. Mesmo com os Anjos do Inferno e
o Bando da Lua fora do Brasil, os microfones não conseguiam acomodar os Quatro
Ases e um Coringa, os Titulares do Ritmo, os Vocalistas Tropicais, o Trio Nagô, o
Grupo “X”, o Quarteto de Bronze, Os Trovadores, Os Tocantins, Os Vagalumes do
Luar, os Quitandinha Serenaders e Os Cariocas. De acordo com Castro, todos queriam
52 (Radamés Gnattali, Especial JB, 11 out 1977) Apud SAROLDI, Luiz Carlos e Sônia VirgíniaMOREIRA. Rádio Nacional: o Brasil em sintonia. 3.ed.[ampl. E atualizada]. – Rio de Janeiro: JorgeZahar Ed., 2005, p. 41.53 (Paulo Tapajós, dpm., PN – Anuário do Rádio, set 1956, p.55.) Apud SAROLDI, Luiz Carlos e SôniaVirgínia MOREIRA. Rádio Nacional: o Brasil em sintonia. 3.ed.[ampl. E atualizada]. – Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 2005, p.135.
36
ser modernos e, para isso, mantinham-se afinadíssimos com o que de melhor se fazia
em conjuntos vocais nos Estados Unidos. 54
Castro descreve ainda que, em 1950, a Rádio Nacional pertencia ao Estado e era
tão lucrativa, que podia permitir-se todas as extravagâncias. Seu departamento musical,
no 21° andar do edifício A noite, na praça Mauá, era um cenário de primeiro mundo.
Nele cabiam nada menos que sete estúdios e um auditório, famoso por ter o palco sobre
molas. O elenco fixo contava com 1sessenta instrumentistas, noventa cantores e quinze
maestros, dentre os quais estavam Radamés Gnatalli, Leo Peracchi e Lyrio Panicalli.
Segundo Castro, a música internacional batia o samba por 3 a 1, sendo que as
versões dos sucessos americanos entravam na conta da música brasileira. Com todos os
seus músicos e cantores especialistas em foxes, mambos, rumbas, tangos, valsas e
boleros, é provável que a Rádio Nacional fosse, segundo o autor, a maior democracia
rítmica do mundo. 55
Essa descrição de Castro mostra como a música internacional era admirada e
reinterpretada por músicos brasileiros e também que o grande espaço de produção e
reprodução musical dos anos cinquenta se concentrava nas rádios. Sobre esse assunto,
contamos ainda com o depoimento de Nelson Motta:
“... com 13 anos... 1957... a música, pelo menos a que se ouvia no rádioe nos discos, era insuportável para um adolescente de Copacabana nofinal dos anos 50. Boleros e samba-canções falavam de encontros edesencontros amorosos infinitamente distantes de nossas vidas de praiae cinema, de livros e quadrinhos, de início da televisão e da ânsia demodernização.” 56
Sobre a música tocada nas rádios dos anos cinquenta, Alcir Lenharo afirma que,
além do carnaval, a música brasileira vinha apertada nas paradas de sucesso por uma
onda avassaladora de boleros mexicanos que tomaram conta do país no final da década
anterior. Lenharo afirma, ainda, que:
“Na verdade, desde que o mercado fonográfico se expandiu no país, aquestão das versões sempre esteve presente. Em face da riqueza daprodução musical e da popularização do cinema falado, a música norte-americana acentuava sua presença no cenário musical brasileiro.Enquanto lutavam para se impor no mercado, os artistas brasileirosdefendiam-se da penetração das músicas estrangeiras, vertendo-as.Dessa forma, ficava amenizado o impacto da invasão estrangeira, de um
54 CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. – São Paulo: Companhiadas Letras, 1990, p. 57.55 Idem, p. sessenta.56 MOTTA, Nelson. Noites Tropicais solos, improvisos e memórias musicais. Editora Objetiva, 2000, p. 9
37
lado, e de outro o artista brasileiro beneficiava-se em participar de umproduto que já chegava pronto. Artistas como Chico Alves e OrlandoSilva gravaram muita música estrangeira, e com ótimos resultadosartísticos. Também a música portenha firmou-se no cenário musical dasgrandes cidades, principalmente na vida noturna. Mas os bolereirostambém foram chegando, assim como os ritmos do Caribe, queHollywood difundia pelo mundo todo. Carmen Miranda que o diga, poismais de uma vez teve que passar por rumbeira. No início dos anos 50 acanção francesa também penetrou forte no Rio, assim como dez anosdepois a canção italiana marcaria presença. Mas então chegara a era dorock e o tema das versões ganharia uma outra amplitude.” 57
Os depoimentos e as análises realizadas pelos autores citados acima, descrevem
como era o cenário musical brasileiro dos anos cinquenta, ocupado principalmente por
repertório internacional, muitos boleros, tangos, músicas caribenhas, dentre outras. As
citações dos maestros da Nacional demonstram que a música estrangeira ocupava
grande parte da produção musical da época. E este é um fato bastante significativo para
a nossa análise, uma vez que grande parte do repertório de Elis gravado em seus
primeiros discos teria sido inspirado no que estava sendo tocado nas rádios de então.
A reflexão e compreensão acerca de um fenômeno de comunicação de massa
específico, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro nos anos 50, carrega uma carga
significativa fundamental para a compreensão do comportamento e mesmo das relações
sociais dominantes da nossa sociedade, afirma Goldfeder. Para a realização de sua
pesquisa, Goldfeder recorreu a entrevistas de inúmeras personalidades ligadas ao mundo
radiofônico, musical e jornalístico, pertencentes ou não à época. Ela utilizou-se também
de artigos, entrevistas e colunas contidas em revistas. Segundo a autora, a Rádio
Nacional, no período analisado, se constituiu em um dos mais eficazes instrumentos de
propagação cultural da época, através de uma ação hegemônica, a nível nacional. A
Rádio Nacional chegou a atingir 50,2% de audiência média no Rio de Janeiro, em
1952.58
Goldfeder afirma que a emissora, com departamentos de funções definidas e
administração altamente centralizada, não recebia financiamento oficial. Sustentava-se
por verbas publicitárias, o que nas épocas áureas lhe permitia manter uma equipe
enorme, com salários excelentes e ainda reinvestir os lucros na própria organização. De
acordo com a autora, a partir dos anos 50, a Rádio Nacional teria conseguido atingir a
57 LENHARO, Alcir. Cantores do rádio – A trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart e o meio artístico deseu tempo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995, p. 73.58GOLDFEDER, Miriam. Manipulação e participação – a Rádio Nacional em debate. Dissertação(mestrado) – Universidade de Campinas. Departamento de Ciências Sociais. 1977.
38
perfeita coordenação de seus propósitos, enquanto empresa disposta a ampliar suas
bases e como órgão cultural destinado a elaborar um projeto eficaz pela sua penetração
e atendimento às expectativas psico-sociais dos setores populares.59De acordo com a
autora, a programação da Rádio Nacional consistia em programas de grande auditório,
programas humorísticos e nas radionovelas.
Marta Avancini, em seu trabalho sobre os cantores do rádio, enfatiza o processo
de popularização destes, que chegou aos anos cinquenta como um dos focos principais
de atenção do público radiofônico. Os auditórios dos programas de rádio ficavam
lotados por pessoas ávidas por encontrar seus artistas preferidos, juntamente com os fãs-
clubes organizados por estes como eixos de sustentação e promoção dos artistas.
Avancini afirma ainda que, para se analisar o papel desempenhado pelos ídolos do rádio
nesta época, é preciso observar a complexidade existente ao nível da constituição destes
ídolos, não se tratando de apreendê-los somente como modelos e elementos ideológicos
exteriores ao contexto social, mas sim, compreender que tipo de relação se articula a
partir de sua presença no social, ou seja, perceber formas de subjetividade, de
identificação dos fãs frente aos seus ídolos dentro de um quadro mais complexo da
sociedade daquele momento, como fazendo parte de uma generalização de formas de
sensibilidades em jogo naquela época.
A autora diz que, quando falamos sobre rádio no Brasil, ou mais precisamente
em suas estrelas, nos vem à mente um amontoado de imagens e referências que nos
remetem práticas, modos de sociabilidade, percepção e estética que caracterizam a
radiofusão brasileira entre os anos 40 e 50: os auditórios lotados das grandes emissoras,
as disputadas eleições de Rainha do Rádio, o engajamento dos fãs-clubes, as tardes de
sábado embaladas pelo programa de César Alencar, a rivalidade Marlene-Emilinha, as
marchinhas de carnaval, os boleros e samba-canções, os agudos de Dalva de Oliveira, o
romantismo de Ângela Maria, o exotismo de Marlene. A autora salienta, ainda, que
tanto as estrelas quanto o engajamento em torno delas são centrais para se pensar no
rádio dos anos 40 e 50 e é também neste momento que ocorre o rompimento com o
modelo educativo predominante nos primeiros anos de rádio no Brasil, quando este
ainda era encarado como um potencial instrumento de elevação cultural e intelectual de
massa. Fundada por Roquete Pinto e Henrique Moritze em 1923, a rádio Sociedade do
59 GOLDFEDER, Miriam. Manipulação e participação – a Rádio Nacional em debate. Dissertação(mestrado) – Universidade de Campinas. Departamento de Ciências Sociais. 1977, p. 31.
39
Rio de Janeiro, tinha como slogan: Trabalhar pela cultura dos que vivem em nossa
terra e pelo progresso do Brasil.60
As duas abordagens clássicas acerca do debate sobre a radiofonia brasileira
podem ser, segundo Avancini, sintetizadas nos trabalhos de José Ramos Tinhorão e
Maria Elvira Frederico. O primeiro vê a priorização da dependência do rádio às
estruturas de poder econômico e político, e, consequentemente, a ênfase no sentido de
dominação inerente a ele, o segundo, percebe a possibilidade de o rádio funcionar como
um autêntico canal de expressão popular, embora a determinação econômica não seja
completamente descartada. Avancini percebe a impossibilidade de se fixar nestas
leituras clássicas, uma vez que, a radiofonia deste período fica reduzida a uma
modalidade de funcionamento e expressão de cultura de massa, implicando na
impossibilidade de perceber a singularidade de funcionamento dos diferentes meios de
comunicação.61
O processo de constituição das estrelas radiofônicas, analisado por Avancini,
ocorre por meio da combinação de informações sobre as carreiras e as vidas pessoais
das cantoras, onde a veracidade do que é publicado (transformando-as em alvo de
interesse) não é essencial. As revistas especializadas constroem uma intimidade que não
está necessariamente vinculada à realidade de vida destas cantoras. Segundo a autora, o
investimento na intimidade é intrínseco ao processo de construção da estrela – seja ela
do cinema, do rádio ou da televisão – não é novidade. Este tipo de investimento foi
intensificado e generalizado com a difusão dos meios de massa durante o século 20. 62
Segundo Avancini, as estrelas do rádio se constituem a partir de signos e
referências que ultrapassam o âmbito artístico propriamente dito e abarcam regiões do
comportamento, gosto, valores e da estética. Elas são uma espécie de condensação de
diversas séries discursivas e modeladas a partir de falas referentes à psicologia
feminina, à educação da mulher, a modos de ser e viver, materializados em “revelações”
sobre a personalidade e o cotidiano das cantoras, em suas declarações e até nas canções
que interpretam. 63
60 AVANCINI, Maria Marta Picarelli. Nas Tramas da Fama – As estrelas do rádio em sua época áurea,Brasil, anos 40 e 50. Dissertação (mestrado) – Universidade estadual de Campinas. Departamento deHistória, 1996.61 Idem, p. 7.62Idem, ibidem, p. 30.63 Idem, ibidem, p. 38.
40
A autora relata que ficaram famosas as histórias de que o assoalho do auditório
da Rádio Nacional teria se abalado pelas batidas dos pés dos espectadores, e também as
lutas corporais entre as fãs de cantoras rivais.64
De acordo com Avancini, o que parece não ter sentido, ser absurdo e irracional,
se olhado de fora, ganha inteligibilidade e materialidade em práticas, modos de
sociabilidade, em uma estética e até em uma linguagem radiofônica cultural e
temporalmente demarcada. Incorporados às transmissões de rádio entre o final dos anos
30 e início dos 40, os programas de auditório passaram a representar a diversão e o lazer
da programação. Nesse período, também surgiram outros gêneros, como os programas
de calouros, os humorísticos, as radionovelas, garantindo uma dinâmica inédita,
facilitando a expansão do veículo, a qual geralmente é entendida como aproximação
com o universo cultural e estético do público.65
Problematizando as leituras acerca da cultura de massa pelo viés estritamente
econômico, ou mesmo quando a mesma é compreendida como um meio de expressão
de conteúdos ou identidades, a autora prioriza uma análise que leve em consideração a
cultura de massa como um território onde efetivamente se produzem práticas, modos de
sociabilidade e estética. Ela chama nossa atenção para que pensemos na cultura de
massa e nos seus modos específicos de funcionamento, para evitarmos uma
caracterização unívoca de tipos distintos de manifestação, práticas e linguagens. É
preciso não uniformizar e homogeneizar fenômenos diversos, onde diferenças são
tratadas como mero efeito de superfície.66
Quanto ao fato de ter havido um rompimento com o modelo educativo
prevalecente no Brasil durante os anos 20, Avancini afirma que os anúncios
publicitários seriam os responsáveis pela modificação do perfil da programação do
rádio, forçando assim sua adaptação à lógica comercial. No entanto, a autora sugere que
há forças que ultrapassam essa simplificação e nos convida a perceber que, na verdade,
se trata de processos paralelos, que se imbricam e se potencializam mutuamente. O que
realmente é significativo nesse processo de constituição da radiofonia comercial é o fato
de que o rádio deixou de ser eminentemente um transmissor de informação cultural e
64, AVANCINI, Maria Marta Picarelli. Nas Tramas da Fama – As estrelas do rádio em sua época áurea,Brasil, anos 40 e 50. Dissertação (mestrado) – Universidade estadual de Campinas. Departamento deHistória, 1996, p. 61.65 Idem, p. 63.66Idem, ibidem, p. 68.
41
educativo e passou a constituir gêneros de programas e modos de comunicação
próprios.67
Enquanto nos programas de calouros o público se integrava à dinâmica do
programa, subindo ao palco, nos auditórios, eles apenas participavam enquanto público,
na platéia. Os dois gêneros se sustentavam sobre a competição, fosse com o objetivo de
ascender ao Olimpo radiofônico ou o de ganhar prêmios. A autora chama ainda a
atenção para o fato de existir uma forte presença de jogos, concursos, competições e
brincadeiras durante este período por ela estudado, os quais funcionavam como
delineadores de práticas e dinâmicas que se tornaram características destes gêneros.
Além do caráter lúdico, a dinâmica se define pelo modo de estruturação da
programação: intercalação de quadros curtos e diversificados ao longo de três ou quatro
horas. Dinâmica que transforma também uma audição de rádio em espetáculo.68
Segundo Avancini, desde meados dos anos trinta, a rádio se configurava como
uma espécie de vitrine dos cantores, divulgando seus nomes e, em alguns casos,
garantindo-lhes projeção nacional. O que se assiste, no entanto, a partir da segunda
metade dos anos quarenta, principalmente, não é uma mera continuação do que vinha
acontecendo: As estrelas que emergem nessa época surgem no próprio rádio, através de
programas de calouros, diferentemente daquelas que já haviam gravado discos e tinham
na rádio um meio de divulgação. Práticas de adoração às estrelas, que até então não
existiam, também são criadas nesse período, baseadas na competição e na lógica do
espetáculo, em especial, nos programas de auditório e de calouros.69
A importância das estrelas do rádio não se efetua somente enquanto chamariz de
público, mas sim como peça fundamental dentro da organização e funcionamento desses
programas, como forte fator de mobilização e organização do público e também na
criação de uma atmosfera de euforia, afirma Avancini. Era comum que cada programa
contasse com sua estrela, o que transformava cada programa em uma espécie de ponto
de encontro e contato do público com sua favorita e, consequentemente, um lugar de
reiteração de seu status de estrela por meio de homenagens, da participação e vibração
do público. Juntamente com as revistas especializadas, os auditórios consistiam em
espaços de fabricação das estrelas radiofônicas. De acordo com a autora, é possível
67 AVANCINI, Maria Marta Picarelli. Nas Tramas da Fama – As estrelas do rádio em sua época áurea,Brasil, anos 40 e 50. Dissertação (mestrado) – Universidade estadual de Campinas. Departamento deHistória. 1996, p. 70.68 Idem, p. 71.69Idem, ibidem, p. 79.
42
reconhecer a existência de uma espécie de divisão territorial dentro do rádio brasileiro
dos anos cinquenta, já que cada cantora vinculava-se a um programa, como ocorria com
Emilinha e Marlene, com Ângela Maria e Dalva de Oliveira.70
A versatilidade musical de Ângela Maria foi descrita por Lenharo:
“... à medida que as mudanças se aceleram no final dos 50, Ângelasurgia inclusive como a cantora mais preparada para navegar sobre asondas turbulentas da crise. Cantava do melhor da música popular aomais cafona bolero, vertido para o português, passando pelo tango, pelofado, palas guarânias, rumbas, canções francesas, rocks-baladas. Só abossa nova ficou de lado.” 71
Além disso, Lenharo também descreve o início da carreira da intérprete:
“Dancings e gafieiras constituíam os espaços populares de dança nacidade. Os dancings abrigavam boas orquestras e cantores de prestígiocomo Jamelão, Nelson Gonçalves, Elizeth Cardoso, Jorge Goulart, RuyRey, com suas famosas maracas. O dancing virou mania nos anos 40 –um espaço de sociabilidade e refúgio para os solitários e tristes. Seusucesso assegurava bons rendimentos para músicos, cantores ebailarinos, abria possibilidades para a carreira artística: Elizeth Cardosoe Ângela Maria foram bailarinas de dancings antes de crooners.”72
Os espaços musicais foram se transformando ao longo dos anos quarenta e
cinquenta, no entanto, as cantoras do rádio faziam sua performance para um auditório
ao vivo, o que significa que estas se utilizavam de todo um gestual para cativar o
público. Antes do rádio, as apresentações em boates e dancings também significavam
um contato direto com o público.
Elis demonstra, em diferentes entrevistas e em diversos momentos de sua
carreira, uma grande admiração pela cantora Ângela Maria.73 Em um desses
depoimentos Elis, além de se intitular fã de Ângela, cita também gostar muito de utilizar
o vibrato:74
“(...) O vibrato era uma coisa que me fascinava muito (...). Mas na horade cantar mesmo, eu me ligava mais na mulherada, no jeito que a
70AVANCINI, Maria Marta Picarelli. Nas Tramas da Fama – As estrelas do rádio em sua época áurea,Brasil, anos 40 e 50. Dissertação (mestrado) – Universidade estadual de Campinas. Departamento deHistória. 1996, p. 85.71 LENHARO, Alcir. Cantores do rádio – A trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart e o meio artístico deseu tempo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995, p. 185.72 Idem, p. 23.73 Por exemplo, a citação feita por Elis ao programa MPB Especial de 1973, dentre outros.74 Assim o dicionário Aurélio define vibrato: Na técnica vocal, repetição rápida de uma nota sem produziroscilações em sua altura. [Cf. vibrato.].
43
mulher cantava. Quando eu pintava cantando, pintava de EllaFitzgerald, essas coisas. No Brasil, Ângela Maria nota 10.”75
Jairo Severiano conta, ainda, que Ângela Maria imitava Dalva, que muito
provavelmente também deveria imitar alguém:
“Admiradora inveterada de Dalva, a quem começou imitando, ÂngelaMaria (Abelim da Cunha, Macaé, RJ, 13 de maio de 1928) foi sua maiorrival artística, igualando-a em atributos, como o timbre raro e acapacidade de interpretação, e até superando-a em vigor, com sua vozsuperpotente. Ex-tecelã, com passagens por coros evangélicos,programas de calouros e orquestras de dancings a desconhecida Abelimtransformou-se na estrela Ângela Maria ao ser descoberta e levada àMayrink Veiga e à RCA Victor em 1951 pelo compositor ErasmoSilva...Constante freqüentadora das paradas de sucesso pelo resto dadécada principalmente com sambas-canção...”76
Podemos analisar a admiração de Elis por Ângela e de Ângela por Dalva como
uma maneira dessas artistas aprenderem modos de agir e de cantar. É claro que tais
cantoras não intencionavam ensinar suas fãs através de suas apresentações. No entanto,
a ação de imitar representou para elas uma forma de aprendizagem. Foi, então, no
próprio ato de ouvir rádio, que Elis começou a seguir seus primeiros passos artísticos e
aprender a utilizar a voz pelo processo de imitação e repetição.
Este processo é muito comum aos músicos populares, Lucy Green em seu
trabalho77 nos informa sobre as diferenças de aprendizado musical em contextos formais
e informais, onde a imitação é fundamental na aprendizagem de determinados modos de
fazer música. Green, pesquisadora da sociologia da educação, destaca que a prática de
aprendizagem informal envolve, principalmente, a atividade de “tirar de ouvido”
diretamente de uma gravação, diferentemente de instruções verbais e exercícios
presentes na educação formal; e também que o estudante informal geralmente não está
sozinho, utiliza seus aprendizados em grupo, em que, de maneira consciente ou
inconsciente, troca informações e aprendizados específicos, em um processo de escuta e
imitação mútua. No caso da educação formal, geralmente existe a figura de um adulto
responsável com habilidades superiores que orienta a atividade. Green afirma ainda que
ao longo do processo de aprendizagem informal há uma integração entre escutar,
75 Texto do encarte do cd Elis no Fino da Bossa ao vivo volume 2.76 SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. SãoPaulo: Ed. 34, 2008, p. 293.77 GREEN, Lucy. Popular music education in and for itself, and for ‘other’ music: current research inthe classroom. The Institute of Education, University of London, 2006, UK.
44
executar, enquanto se improvisa e se compõe, dando ênfase à criatividade. Dentro do
reino formal há mais de uma separação de habilidades e se dá ênfase à reprodução.
Depois de analisar o surgimento do rádio no Brasil, saliento a importância da
prática radiofônica enquanto espaço de sociabilização, além de fornecedora de modos
de aprendizado (que iam sendo elaborados frente às demandas que surgiam) para seus
produtores/artistas, bem como para seus ouvintes. Percebo que o rádio possibilitou o
encontro de cantores, arranjadores e atores, se configurando em um espaço de
aprendizagem coletiva para a maioria desses artistas, ainda em fase de
profissionalização, além disso, exerceu forte influencia nos artistas que cresciam
naquele momento, embalados pelas ondas do rádio, como Elis Regina.
1.3 - O programa Clube do Guri
Segundo Echeverria, cantar no Clube do Guri virou hábito para a menina Elis.
Dos onze aos treze anos e meio, Elis frequentou o programa quase todos os domingos.
Virou secretária do apresentador Ary Rego, apresentando candidatos, lendo recados dos
ouvintes e dando parabéns aos aniversariantes do dia. Elis deixou a Rádio Farroupilha,
para assinar seu primeiro contrato profissional com a Rádio Gaúcha, em 1959. Passou a
cantar por um cachê de cinqüenta cruzeiros por mês, equivalente hoje a cerca de 24
dólares, no Programa Maurício Sobrinho. Maurício Sirotsky contou à Veja que, como
animador de auditório, costumava anunciar a entrada de Elis com frases retumbantes,
que levavam os três mil expectadores, que lotavam o cinema Castelo, ao delírio. No
início de 1964, Elis cantava na noite como crooner do conjunto Flamboyant. 78
Estes dados muito dizem sobre o início da carreira de Elis. Foi no rádio que Elis
começou a dar seus primeiros passos artísticos, cantou como crooner de um conjunto e
também para uma platéia lotada com mais de três mil expectadores. Podemos supor que,
ao cantar para grandes platéias, Elis ganhava cancha de palco, de comunicação com os
espectadores.
O trabalho realizado por Marta Schmitt denominado O Rádio na formação
musical: um estudo sobre as idéias e funções pedagógico-musicais do programa de
rádio Clube do Guri (1950-1966) nos é bastante elucidativo, pois através das entrevistas
78 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, pp.24-29.
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e análises realizadas pela pesquisadora podemos perceber a história do programa muitas
vezes se entrelaçar com a carreira de Elis. Através de grande parte das entrevistas
transcritas no corpo da pesquisa, percebe-se a própria história de Elis. Vários dados
surgem no decorrer da dissertação desvelando acontecimentos e dados sobre esta fase
inicial de sua carreira.
De acordo com Schmitt, o programa Clube do Guri foi um dos maiores sucessos
da Rádio Gaúcha das décadas de cinquenta e sessenta. O programa ficou no ar durante
dezesseis anos, de agosto de 1950 a julho de 1966, na emissora Rádio Farroupilha, de
Porto Alegre, a PRH-2. O mesmo era destinado a crianças e jovens de cinco a quinze
anos de idade, que também participavam do programa, cantando, declamando,
dançando, fazendo locução ou interpretando algum instrumento. Ao mesmo tempo em
que o Clube do Guri permitia aos participantes mostrar seus conhecimentos e vivências
musicais, também lhes estimulava a buscarem novas canções, propiciando novos
aprendizados, como a seleção de músicas, aprendizagem de novas canções, trabalho da
expressividade, posicionamento em palco, uso de microfone e canto, em grupos.
Segundo Schmitt, o programa ficou nacionalmente conhecido por ter sido o local no
qual a cantora Elis Regina iniciou sua trajetória musical.
Tema de sua dissertação de mestrado, o Clube do Guri foi analisado por Marta
Schmitt, através da investigação da contribuição do programa na formação musical de
crianças e jovens que dele participavam. Ela buscou compreender qual era sua
importância para essas pessoas, como se dava a participação musical, qual era o
formato, o conteúdo e a concepção do programa, quais suas funções pedagógico-
musicais, bem como a relação do programa com a escola.
Como percebeu escassa a documentação, e que as diversas publicações em
jornais da época geralmente relacionavam-se a aspectos restritos às apresentações e aos
concursos, além de não terem sido localizadas gravações de áudio, pois no período do
Clube do Guri não havia o hábito de se realizar registros sonoros de programas
veiculados no rádio, e os equipamentos técnicos disponíveis para este fim eram bastante
precários, Schmitt teve que recuperar a história do programa para, então, poder refletir
sobre as questões que norteariam sua pesquisa, com base em entrevistas.79
79 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) -Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004.
46
De acordo com Schmitt, Elis Regina tinha muitos fãs e recebia muitos
“pedidos de fotografias” 80. Quando Elis completou quinze anos de idade e saiu do
Clube do Guri, Ary Rego, além de conseguir que ela fosse incluída na programação da
Rádio Farroupilha, no Programa Rádio Seqüência, também conseguiu, na tipografia da
Neugebauer, uma impressão de uma foto com uma mensagem no verso assinada pela
empresa patrocinadora. Fora o próprio Ary Rego que redigira o texto que ia impresso na
fotografia. O texto consistia em:
Ernesto Neubbauer S/A. Há oito anos consecutivos, os patrocinadoresdo programa Clube do Guri, ao microfone da rádio Farroupilha, tem oprazer de prestar esta homenagem a Elis Regina Costa, valor precoce epositivo entre os mais promissores que surgiram até hoje na radiofoniasul-riograndense. Como autêntica revelação do Clube do Guri, que é oprograma preferido da garotada gaúcha, a jovem Elis Regina é bem umsímbolo da mocidade futurosa da nossa terra. A quem se dirige estamensagem de admiração e confiança, enviada pelos patrocinadoresdeste já tradicional programa infantil.81
A freqüência das citações de Elis Regina nos depoimentos recolhidos é tanta,
que Schmitt dedicou um tópico da dissertação à “presença de Elis Regina nos
depoimentos”. Nesse item, a autora descreve a forte lembrança de Elis presente nos
depoimentos recolhidos, demonstrando o orgulho dos entrevistados em terem convivido
com Elis Regina no Clube do Guri. De acordo com Schmitt, o nome de Elis, além de
cantora reconhecida nacional e internacionalmente, serve também como uma
demarcação temporal, como um referencial para registrar períodos, épocas e
acontecimentos para os participantes.82
Importante fonte de análise para a pesquisa é a citação da entrevista dada por
Maria Helena Andrade, que trabalhou três ou quatro anos ao lado de Elis e a tem como
um marco em sua trajetória na rádio; quando questionada sobre o programa, Maria
Helena falou:“Todas as crianças da época, tinha a secretária do programa, quem era asecretária? Era a Elis Regina (rindo), era a secretária do programa,então dava os prêmios, ela sabia tudo, o que se desenrolava noprograma, já pelo tempo que ela estava aqui em Porto Alegre, então elaera a secretária do Ary Rego, diretor do programa, ela anunciava, ela
80 Dado fornecido pelas entrevistas.81SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004, p.133.82 Idem, p. 110.
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sabia as entradas, quem entra agora, quem não entra, sabia as músicasque iam ser cantadas, participava ativamente, além de cantar também,porque ela começou também como caloura, depois começou aquelahistória, tava ganhando muito, tava ganhando todos os concursos, entãoo que que eles deram, uma atividade para ela de secretária do programa,até que ela chegou aos quinze anos de idade, e passou a cantarprofissionalmente, o que eu já estava fazendo antes dela, que eu deviater o quê, uns três anos a mais que ela, entendeu, então eu tive um bomrelacionamento com ela, aquele tempo de rádio, de praticamentedaquela fase menina- moça, como se diz... é isso mesmo, tivemos unstrês, quatro anos assim na mesma rádio.”83
Este depoimento nos fornece importantes dados, o primeiro é que Elis era
funcionária do programa, começara como caloura e por ganhar todas as competições
fora transformada em parte integrante da programação. Desde os seus 12 ou 13 anos
Elis já era recompensada financeiramente pelo seu envolvimento profissional com o
universo musical, através do programa Clube do Guri. Outro importante dado
informado por Maria Helena é a profissionalização da cantora a partir dos seus quinze
anos de idade, quando não se aceitava mais a participação no programa. A partir de
então, Elis passou a receber uma remuneração, pois as secretárias eram parte integrante
do quadro de funcionários, e também tornou-se cantora “profissional”. A fala indica
também que ela não era a única habitué do programa, a própria Maria Helena o era.
Portanto, é a trajetória posterior das duas que define a diferença das memórias sobre
elas.
De acordo com Schmitt, o Clube do Guri derivou-se de um programa já
existente em São Paulo. A idéia foi apresentada pelo agente de anúncios Júlio
Rosemberg à Rádio Farroupilha, a qual designou o então locutor da emissora, Ary
Rego, para comandá-lo. O nome era derivado de um produto que a empresa Neugebauer
iria lançar no mercado. O programa permaneceu no ar sempre na Rádio Farroupilha,
conhecida como a mais potente emissora do Rio Grande do Sul, tendo alcance inclusive
em outros estados como Santa Catarina, Paraná e São Paulo. A repercussão de sua
programação era mais expressiva do que de outras emissoras da época.84
83(Maria Helena, E1, p2-3) Apud SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudosobre as idéias e funções pedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966).Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área deconcentração Educação Musical, 2004, p. 110.84 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004, p.62.
48
Rego contou à Schmitt que, entre as décadas de trinta e sessenta, havia uma
programação infantil bastante significativa nas emissoras de Porto Alegre,
principalmente programas que contavam histórias. A realização do programa era feita
quase sempre no auditório da Rádio Farroupilha. Nas datas festivas, aniversários e
concursos, o programa se transferia para teatros e cinemas de Porto Alegre que
comportavam um número maior de espectadores.85
O Clube do Guri era um programa patrocinado pela fábrica de chocolates e
derivados Neugebauer. A empresa fornecia prêmios que eram distribuídos para os
participantes, brindes para o público que comparecia no auditório, diplomas para os
sócios do programa, cachês para as secretárias, além de infraestrutura para as viagens
ao interior do estado, realizadas pelo elenco do Clube do Guri. 86 [grifo meu]
Ary Rego conta que não havia prêmios em dinheiro, mas sempre em produtos,
com uma farta distribuição de balas, chocolates e um prêmio especial para quem
encerrasse a sua participação no Clube do Guri quando atingisse a idade de 15 anos. Ele
lembra com detalhes:
A Neugebauer mandava para lá caixas e caixas de bombom. Prêmio emdinheiro não tinha. Tinha o prêmio em dinheiro, um pagamento emdinheiro, para as secretárias do programa que eu consegui com a firmafinanciadora, uma coisa modesta, na época, primeiro em 50 [sic] reais,depois passou para 100[sic] reais ou 80, uma coisa assim. E eles nãomandavam no sábado, na véspera, sexta feira até porque sábado afábrica não trabalhava, aquele montão de caixa e tinha um produto, GuriVitaminado, que eles botavam numa embalagenzinha celofane paraamostra. Mandavam tudo aquilo, caixas de bombom, balas e tal emandavam o dinheiro para o cachê. Entregavam tudo lá no auditório, oencarregado do auditório recebia tudo, guardava, e domingo de manhãme entregava e distribuía lá [ ] e cada menino que cantava ganhava umacaixa de bombom, e quando completava os quinze anos, ganhava umacaixa bem maior, ganhava um ramalhete de flores, se era menina, e umdiploma especial, ta e tchau, vai que terminou, menos alguns quepassaram a ser profissionais, que foi o caso de Elis Regina.87
De acordo com Schmitt, o programa iniciava-se com as crianças todas no palco
cantando a vinheta. A cortina ia se abrindo devagarzinho, o apresentador fazia as
saudações iniciais e seguia com a apresentação dos calouros. Ary Rego, da sua
85 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004, pp. 63-64.86 Idem, p. 66.87 Idem, ibidem, p. 68.
49
banqueta, anunciava as crianças e conversava com elas, auxiliado por uma secretária e
tendo o acompanhamento do professor Ruy Silva, ao piano, e do regional da Rádio
Farroupilha. Entre um número e outro, havia as intervenções dos locutores com os
anúncios publicitários e a leitura realizada pelas secretárias dos nomes dos sócios-
ouvintes que estavam aniversariando naquela semana. 88
O Clube do Guri ia ao ar aos domingos, das 10 às 11 da manhã.89Após o Clube
do Guri a programação da rádio seguia com o Domingo Alegre, também apresentado
pelo animador Ary Rego, mas já com os remanescentes do Clube, aqueles que saiam,
por terem ultrapassado a idade limite de quinze anos. Schmitt conta, ainda, que as
secretárias funcionavam como apoio ao apresentador, desempenhando tarefas como
conduzir os participantes no palco, ajustar os microfones, ler a nominata dos sócios que
escreviam para o programa, dar recados, distribuir brindes para os participantes,
anunciar e apresentar alguns cantores, acompanhar excursões no interior do estado,
enfim, prestar uma acessoria ao apresentador. 90
Segundo o entrevistado Darcílio Messias, os ensaios iniciavam com a seleção
dos novatos, com aqueles que iriam participar pela primeira vez do programa. Depois, o
professor Ruy Silva seguia com os convidados, os quais “eram os cantores mesmo do
Clube do Guri, que ele sabia que já tinham qualidade”, então ele mesclava com aqueles
novos, para fazer programas; assim que era feito, entende, para manter um nível bom do
programa.91
Este relato nos mostra como a ênfase dada aos ensaios se fez presente na vida
de Elis Regina, desde a época em que ela era parte integrante do programa Clube do
Guri. Os inúmeros ensaios, já conhecidos da cantora, ainda em sua infância, viriam a se
tornar uma marca apontada por músicos que trabalharam com ela ao longo de sua
carreira.92
Segundo Schmitt, os concursos do Clube do Guri marcaram a trajetória do
programa. Além de lotarem o auditório da Rádio Farroupilha e também cinemas e
88 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004, p. 69.89 De acordo com Schmidtt, durante os 16 anos que permaneceu no ar, o programa, provavelmente,passou por alguns ajustes de horário. Conforme o jornal Diário de Notícias, do dia 28 de junho de 1950,p.8, o horário, chamando a estréia do programa era das 9:30 às 10:30 da manhã.90. Idem, pp. 71-72.91 Idem, ibidem, p. 80.92 Jair Rodrigues em entrevista à Echeverria fala sobre a grande quantidade de ensaios exigidos por Elis,por exemplo.
50
teatros com quase dois mil lugares, os concursos ganhavam as páginas de jornais e
revistas de Porto Alegre, como demonstraram os arquivos pessoais de Darcílio Messias.
De acordo com Messias, houve apenas cinco anos de concurso. Já Ary Rego, ora se
lembra que as edições foram até o término do programa, em 1966, ora recorda que
houve apenas três anos de concurso. A escolha dos melhores cantores era feita sempre
através do voto escrito da platéia. A escolha não era por aplauso. O público quando
comprava o ingresso, recebia um bilhete, um talãozinho para votar. O concurso
consistia de várias etapas classificatórias.93
Schmitt conta que, além dos concursos, das viagens e “shows” pelo interior do
estado, das participações das crianças em programas em diferentes estados brasileiros,
de se corresponderem com fãs e de serem reconhecidos como “pequenos artistas”, outro
elemento que caracterizava o programa era a farta distribuição de brindes e prêmios
para os participantes e espectadores do programa. A empresa patrocinadora distribuía
chocolates, fazia sorteios de eletrodomésticos, como liquidificadores e batedeiras, e, em
determinados períodos, distribuía rádios. Havia um certo glamour em participar do
programa Clube do Guri. Para Maria Helena Andrade, se apresentar e conquistar os
prêmios do programa era como ganhar um “troféu”. Outro importante elemento
apresentado pelos participantes, era o fato de os mesmos serem acompanhados por
músicos profissionais, instrumentistas reconhecidos, que integravam a programação da
rádio Farroupilha.94
De acordo com Schmitt, Daisy Rego, mulher de Ary, teve um papel
fundamental na formação musical dos participantes do programa Clube do Guri,
auxiliando a escolha do repertório, bem com na aprendizagem das canções. Daisy narra:
“Eu tinha uma facilidade muito grande e gostava muito de lidar comcriança...então era isso aí. E às vezes ensinava uma que ia declamar,dava as inflexões. A Elis mesmo, muitas vezes ela ia aprender asmúsicas na vitrola lá em casa. E perguntava: “...Faço assim, nãofaço...canto essa, não canto”. Ela tinha, a Elis era um pouco tímida nocomeço. Ela tinha medo de mostrar a voz. Tinha um alcance de vozmuito bom, e às vezes escolhia umas músicas...e... as mais arrojadas elaficava com medo.” 95
93 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004, p. 82.94 Idem, p. 96.95 Idem, ibidem, p.117.
51
Em entrevista à Echeverria, Dona Ercy, mãe de Elis, conta que, com o
primeiro salário, Elis comprou um sofá-cama para seu quarto, um tapete e uma vitrola
hi-fi. Adquiriu tudo de uma tia rica, Aida, madrinha de seu filho Rogério. 96 Este fato
juntamente com a citação feita acima, por Daisy, mostra que a formação musical dos
participantes do programa se fazia pela audição da vitrola, ou seja, a audição dos discos
era o auxílio para o aprendizado musical.
Segundo Schmitt, Daisy Rego diz ter auxiliado bastante Elis Regina durante
sua participação no programa, porque ela era muito amiga da sua filha mais velha, e
estava sempre na sua casa. Daisy sugeria repertório e a incentivava a interpretar
algumas canções. Ela lembra que dizia: “Elis porque tu não canta essa música, ‘Ah
mas...’ , Não é difícil, tu vais alcançar, consegue”. Muitas vezes Daisy cantava junto, e
diz que Elis tinha uma facilidade muito grande, “tu cantava duas vezes uma música
nova para ela, e ela já sabia cantar... era um ouvido fantástico... afinação, tudo.” 97
Schmitt conta que o repertório do Clube do Guri era bem variado. Da ópera ao
samba, passando pelo tango, bolero, temas de carnaval, música italiana, espanhola,
francesa, enfim, música nacional e internacional. De acordo com o apresentador do
programa, as músicas que eram interpretadas eram variadas, “música popular da época,
canções, muita música estrangeira, italiana, boleros mexicanos, música norte-
americana”. Darcílio Messias salientou que o repertório do Clube do Guri era bem
variado, que “se cantava de tudo”, que não havia um tipo de música mais executado,
embora destacasse que eram “músicas da moda, tanto nacionais, quanto internacionais.”98
A escolha do repertório se realizava de várias maneiras. Ary não intervinha
constantemente. Daisy e Ary comentaram, sobre as escolhas musicais de Elis Regina,
que se tratava de músicas difíceis e que não era o que mais agradava ao público que
freqüentava o auditório do programa:
Daisy: A Elis (vibrante) cantava muita música espanhola, músicas maisdifíceis Malagueña, não esta Malagueña, do ...Ary: Malagueña ela cantava muito bem.Daisy: ...ela cantava muita música da Ângela Maria...Ary: já cantava muito bem.
96 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, p. 27.97 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004, p. 118.98 Idem, pp. 124-126.
52
Daisy:...e dava um banho com as músicas da Ângela Maria. Mas eu nãosei...não era, aquele público que ia lá, era um público assim, maispopular, não era um...botou um samba no palco (palma), tirava de letra.Esse tipo de coisa. ”99
Daisy Rego, ao mostrar um álbum de fotografia da Escola Dom Diogo de
Souza, onde foi professora, e também onde Elis Regina estudou, contou que a cantora
fazia parte do “orfeão” e que cantava num “conjunto musical que elas mesmas fizeram”.
Neste grupo atuava uma das filhas de Ary e Daisy Rego, que “tocava violão” e “também
outras meninas tocavam violão, e elas iam nas festinhas quando convidavam, os
casamentos de professores”. Daisy registra que Elis Regina “ia junto e cantava assim na
maior simplicidade, como se fosse uma...”. 100
Este depoimento de Daisy nos informa novamente sobre a predileção de Elis
por Ângela Maria, além de registrar a participação da cantora no orfeão, ou seja, canto
coral também de um conjunto musical na escola, o qual realizava algumas
apresentações. A atuação musical de Elis não se limitava, portanto, às participações nos
programas de rádio.
Não foram todos os participantes do programa que seguiram a carreira como
cantores profissionais na rádio. De acordo com Messias, “a maioria não continuou”.
Além dele, “naquela época contratados profissionalmente foi a Elis” e “mais a Érica
Norimar”. Messias lembra que eles atuavam:
“na programação da Rádio Farroupilha, então tinha aqueles programasao meio-dia, tinha o Maurício [Sirotsky] Sobrinho e depois o SalimenJr., tinha os programas à noite também, e em alguns de noite,cantávamos ao vivo com orquestra, ou então com o grupo de AdãoPinheiro, que era o Flamboyant, e outras pessoas aí que não me lembromais.” 101
Ary Rego conta que, quando os participantes completavam 15 anos, eles
ganhavam prêmios especiais da fábrica Neugebauer, embora alguns também ganhassem
um contrato da Rádio Farroupilha, como Elis Regina, a Terezinha Silva, o Roberto
Gianoni e a Maria Helena Andrade. De acordo com o apresentador: “muitos foram os
99 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004, p. 127.100 Idem, p. 140.101 Idem, ibidem, p. 141.
53
cantores que saíram do Clube do Guri e dos programas de adolescentes que eu tinha
também, foi produtivo”. 102
Ao completar as entrevistas, Schmitt concluiu que não só a equipe do
programa fora fundamental para o aprendizado musical dos participantes; a importante
figura do apresentador, além de lhes dar a oportunidade de participação, auxiliava na
conquista de uma boa postura de palco, a se comunicarem melhor com a platéia, na
melhor utilização do microfone e também no aspecto visual. O pianista Ruy Silva, por
sua vez, indicava qual a tonalidade mais confortável para cada cantor, na escolha do
repertório e também ressaltava a característica vocal e expressiva de cada participante.
Daisy, por sua vez, ajudava na escolha do repertório, ensinava letras e melodias e
emprestava sua casa e vitrola para os que não a possuísse.
Em entrevista à Revista Veja, ao ser questionada sobre seu preparo artístico, Elis
responde:
“Bem, além do curso normal eu tive minhas leituras. Os meus JorgeAmado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Hemingway, ScottFitzgerald. De vida, vida, porém, não tinha experiência nenhuma. E eusaí da casca do ovo diretamente para o palco da TVRecord.”103[grifos meus]
Este trecho nos permite pensar nas omissões e nos silêncios da memória.
Como Elis saíra da casca do ovo diretamente para os palcos da Record, se desde os seus
onze anos se apresentava na Rádio Gaúcha, chegando a cantar para uma platéia de 3000
espectadores? Neste trecho de entrevista, percebo uma negação de Elis quanto ao início
de sua carreira, é como se sua vida artística tivesse se iniciado na televisão.
Numa outra fase de sua carreira, ao retornar ao Rio Grande do Sul para a
apresentação do show Trem azul, em 1981, em um programa de televisão local, ao ser
indagada sobre o esquecimento do programa Clube do Guri em sua carreira e sobre sua
mudança para o Rio de Janeiro, Elis responde:
“Eu só saí porque não tinha mais onde trabalhar, tá sabendo? Não tinhaonde trabalhar, não tinha conjunto de baile, orquestra, tinha dançado, aprogramação da TV Excelsior tinha invadido todos os lugares,agente não tinha o que fazer. Assim como eu, uma série de pessoassaíram, outras ficaram e morreram profissionalmente. Estão frustradas e
102 SCHMITT, Marta Adriana. O Rádio na formação musical: um estudo sobre as idéias e funçõespedagógico-musicais do programa de rádio Clube do Guri (1950-1966). Dissertação (mestrado) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes. Área de concentração Educação Musical,2004, p. 145.103 LANCELLOTTI, Silvio. (entrevistador). “Quero apenas cantar”. Revista Veja 01/05/1974.
54
desesperadas até hoje e sonhando com uma carreira que poderia ter sidoalguma coisa e que não foi. (...) O Falso brilhante ficou em cartaz umano e dois meses, com sua fotografia (Ary) e tudo, a Neugebauer...Como você não vai lembrar do seu nascedouro? Como esquecer oútero materno? Que absurdo!”104[grifos meus]
Estes relatos assumem, nesta análise, a condição de memória da própria Elis
referente ao início de sua carreira. A televisão, que na citação feita em 1974, fora a
responsável pela sua apresentação ao público, em 1981 se torna a grande responsável
pela falta de ambientes de trabalho em Porto Alegre.
Josemir Teixeira, ao analisar o modo como a memória sobre a infância de
Clara Nunes teria sido influenciada pela trajetória artística da cantora, afirma que:
“... A memória também pode ser entendida como um fluir, mas emsentido inverso. Nela, o passado vai sempre sendo revisitado pelascondições, as circunstâncias, os interesses e os conflitos da consciênciaindividual do entrevistado. ..”105
De acordo com Teixeira, em alguns casos:
“... a memória age como um espelho, numa espécie de jogo reflexo, àmedida que, a partir dos interesses, das circunstâncias e dos objetivos decada momento presente, revela as lembranças do passado, a partirdaquilo em que o personagem se constituiu.” 106
Esta citação nos é bastante elucidativa, pois acredito que Elis tenha “feito as
pazes” com esse passado, ligado ao Clube do Guri, a partir do momento em que o
interpretou no espetáculo Falso Brilhante, em 1975. Criar um retrospectivo de sua
carreira a fez perceber, sem “encantamentos” ou “traumas”, várias das questões por que
tinha passado até o período do espetáculo.107Neste momento, o que foi vivido por Elis
passou por um processo de seleção e reelaboração, até se constituir na imagem da
artista. De acordo com Teixeira, “a partir de algum momento, o passado começa a ser
olhado segundo as luzes do presente, ou melhor, segundo o que se tornou a expressão
104 www.youtube.com. Acessado em 21/01/2011.105 TEIXEIRA, Josemir Nogueira. In: O canto mestiço de Clara Nunes/ Organização: Silvia Maria JardimBrügger.- São João Del Rei, MG:UFSJ, 2008, p.18.106 Idem, p. 33.107 Para uma melhor compreensão sobre os espetáculos realizados por Elis ver: PACHECO, Mateus. Elisde todos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção. Dissertação (mestrado) – Universidade deBrasília. Departamento de História, 2009.
55
máxima da personagem.”.108Relembrando o seu passado, Elis lhe conferiu uma
explicação que, na época em que o vivenciou, não era possível efetivar.
Ao findar deste tópico, sabemos que Elis se apresentou pela primeira vez no
programa Clube do Guri aos 11 anos de idade e só saiu do mesmo ao completar 15 anos
de idade, quando já não era mais admitida pela idade. Como secretária do programa,
além de ganhar dinheiro, já treinava imperceptivelmente uma “naturalização” nos
palcos da vida. Recebia auxílio na escolha do repertório, bem como ajuda de Daisy na
execução das melodias e com as letras. Ao completar a idade limite para o programa,
passou a trabalhar no programa de Maurício Sobrinho e também a cantar na escola e em
alguns casamentos, juntamente com suas amigas.
Elis Regina não só ouvia muito o rádio, como também participou por anos de um
programa de auditório. Foi na Rádio Gaúcha que Elis teria aprendido com Ary Rego a
se portar no palco, a utilizar o microfone de maneira apropriada, a ensaiar antes das
apresentações, a pensar no figurino; na casa de Daisy, ela aprendeu melodias, a decorar
canções e a escolher seu repertório. O rádio não só influenciou Elis, como também a
iniciou no universo artístico. Percebo, também, que neste momento, a carreira de Elis
tinha um caráter ainda regional, o que se modificaria com sua mudança para o Rio de
Janeiro e com o seu vínculo com a televisão, principalmente.
Acredito que a influência deste programa foi fundamental para a escolha de uma
carreira artística na vida de Elis Regina. O fato de ter ouvido muito o rádio e, mais que
isso, de ter participado por tantos anos de um programa de auditório, fez com que a
cantora conhecesse e participasse ativamente do universo musical. Teria ela seguido
esta carreira, se tal programa infantil de tanta audiência não tivesse feito parte de sua
vida? No entanto, nem todos que participaram do Clube do Guri construíram a carreira
que ela construiu. Elis vivenciou na Rádio Gaúcha uma espécie de estudos
experimentais, que lhe prepararam de diversas maneiras, para sua trajetória artística.
Não consta que nenhum outro cantor(a) tenha conseguido realizar, no campo da música,
carreira parecida com a de Elis. Se a Rádio Gaúcha favoreceu as escolhas de Elis, não as
definiu.
108 TEIXEIRA, Josemir Nogueira. In: O canto mestiço de Clara Nunes/ Organização: Silvia Maria JardimBrügger.- São João Del Rei, MG:UFSJ, 2008, p. 36.
56
1.4 - Os primeiros LPs
Foi com dezesseis anos de idade que Elis deixou Porto Alegre pela primeira vez,
para ir ao Rio de Janeiro gravar seu primeiro disco: um compacto simples com as
músicas Dá sorte (Eleu Salvador) e Sonhando, uma versão de Juvenal Fernandes para
Dream (Vorzon - Elis). As duas músicas fariam parte do primeiro LP que Elis lançaria
naquele mesmo ano de 1961, Viva a Brotolândia, com produção do compositor e
produtor Nazareno de Brito.109
Sobre a gravação deste primeiro LP, Carlos Imperial conta que Elis chegara ao
Rio com seu pai, que não se metia em nada, e também que:
“Nazareno de Brito era diretor artístico da gravadora Continental eestava sendo pressionado pelo departamento de vendas do Rio Grandedo Sul para fazer um LP com uma gauchinha de apenas 15 anos quefazia algum sucesso em Porto Alegre. Nazareno me mostrou algumasmúsicas que Elis havia gravado numa fita como teste. Eu gostei muitoda cantora e aceitei o convite de produzir o seu LP. Mas, como aContinental não tinha verba o disco ficou para uns seis meses depois.Eu estava tão empolgado com a Ellis que resolvi intervir no negócio.Telefonei para a Continental Gaúcha e consegui que ela custeasse avinda da Ellis ao Rio, pagando as passagens e a estadia.” 110
Imperial afirma, ainda, que Elis queria muito gravar boleros e tinha um apreço
especial pelo disco de boleros de Edye Gourmé.111 Sobre o primeiro papo que teve com
Elis, Imperial prometeu gravar um futuro LP de boleros, o gênero preferido de Elis. De
acordo com ele:
“Depois de ouvir uma fita dada por Menescal, Elis disse que não gostoude nada, que a bossa nova não tinha vida, que preferia os boleros deEdye Gourmé.” 112
109 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, p. 29.110 Revista Amiga. Edição Especial. Edição Histórica (Janeiro de 1982). Carlos Imperial “Só eu sei averdade sobre seu primeiro LP”.111 Seu nome verdadeiro é Edith Gormezano, nasceu em 16 de Agosto de 1932(alguns dizem que foi em1931,não se sabe corretamente) no Bronx em Nova York. Embora a maior parte de sua carreira tenha sidorealizado durante a era do rock tradicional, a cantora Eydie Gormé esculpiu um lugar para si em váriasáreas de entretenimento. Por 20 anos, a partir de meados dos anos 50 até meados dos anos 70, ela sempreteve nas paradas pop, com um lugar paralelo no domínio do pop latino dos anos 19sessenta. Ela apareceuna televisão e nos palcos da Broadway. E ela foi uma anfitriã da grande discoteca, headlining nosshowrooms de Las Vegas e em torno dos Estados Unidos. Informações contidas no site:http://www.letras.com.br/biografia/eydie-gorme. Acessado em 03/01/2011.112 Revista Amiga. Edição Especial. Edição Histórica (Janeiro de 1982). Carlos Imperial “Só eu sei averdade sobre seu primeiro LP”.
57
O produtor também contou que Elis ficou muito tensa nas gravações e que
Vavá, o técnico, resolveu apagar todas as luzes do estúdio, e foi nesse clima que ela
gravou o seu primeiro LP, no escuro. É provável que no escuro a artista imaginasse que
estava na tranqüilidade do seu quarto, ou talvez o aparato técnico da gravação a
intimidasse.
Sobre sua primeira gravação Elis, em 1973, conta que:
“Minha primeira gravação eu morava em Porto Alegre e foi a conviteda Continental, produzido por Carlos Imperial. Queriam uma cantoraque fizesse frente a Celly Campelo113 mas eu de antemão acho essenegócio de lançar para combater alguém uma pobreza total completa eabsoluta, sempre achei. E eu não queria ser a sombra de quem quer quefosse. Eu queria ser eu, fazer minhas coisas. O repertório não era dosmais maravilhosos, não era de ouvir e rolar na sarjeta de paixãoentende? Aí ficou esquisito. Mas tinha contrato, tinha que fazer.”114
Um aspecto relevante a ser destacado neste depoimento é a intenção
mercadológica das gravadoras, que intencionavam associar novos artistas àqueles que já
haviam alcançado sucesso, com fórmulas que já haviam dado certo. O que demonstra,
desde então, a busca de lucro como alvo primordial. Outro importante aspecto a ser
destacado é a importância em torno do contrato e, respectivamente, a oportunidade que
ele representava. Temos, também neste depoimento, apontamentos sobre o repertório,
os quais indicam que, nesta fase, Elis não tinha muita autonomia quanto às suas
escolhas.
Ainda sobre as gravações de seu primeiro LP, Elis conta:
“Um dia eu tava em Porto Alegre e apareceu por lá um produtorde disco, diretor de uma gravadora ou diretor de produção deuma gravadora, eu não sei exatamente que cargo ele ocupava,chamado Nazareno de Brito que era da Continental. Meconvidou para fazer um LP, aí eu evidentemente consultando aJocasta que me cabia naquele momento, Dona Ercy, tive assim apermissão para vir para São Paulo gravar esse disco. Muitoimportante para minha mãe era que eu cantasse mas não deixassea escola de lado. ... Os arranjos foram feitos pelo Severino Filho,que era integrante dos Cariocas e já tava fazendo arranjo naquelaépoca. Com relação ao repertório eu não sei se é bom eu não seise é ruim, eu acho gostoso. Me lembro que naquela época fuiescalada para ser a Celly Campelo deles, já que ela era daOdeon. E é uma coisa que me deixava muito nervosa, pelo fato
113 Celly Campelo foi a primeira artista brasileira a obter sucesso mercadológico cantando rock no Brasil,tornando-se uma das mais populares estrelas da música pop do fim dos anos 1950, que culminou nacriação do movimento Jovem Guarda. In: http://www.dicionariompb.com.br. Acessado em 03/01/2011.114 Programa MPB Especial produzido por Fernando Faro em 1973 pela TV Cultura.
58
de ter que ser uma segunda pessoa. É mania diz que a perfeição éuma meta, eu tava a cata dela. Continuo a cata, eu não sei se vouchegar lá um dia mas, eu queria morrer sendo eu. Naquela épocaera muito importante para mim isso e eu não achava muita graçapintar no pedaço meio parasitando outra pessoa. Era umproblema de espinha dorsal, isso aí eu acho que é formaçãomesmo, é jeito que a gente é criado e desse jeito a gente vai paraa vida. Não achava muita graça nisso mas também não tinhamuita escolha, né?16 anos e meio subtendido que a gravadoraestava me fazendo um grande favor de me dar a chance de gravaraquele disco... Não foi muito engraçado na hora que eu fiz odisco porque eu queria fazer outras coisas, eu já tinha um ChetBacker na cabeça, já tinha o João Gilberto na cabeça, tinha muitacoisa que eu gostaria de ter feito. Mas de repente foi mais legalficar esperando, porque ficou tipo panela de pressão ... virouArrastão aí não deu mais pra segurar, foi melhor, explodiu com24 anos de banho maria, de repente até o pudim ficou maisgostoso.115[grifo meu]
A imposição do repertório pela gravadora fica mais uma vez evidente na fala
de Elis. Principalmente a imposição de lançá-la como cópia de Celly Campelo que
parece realmente ter incomodado Elis, uma vez que este mesmo episódio é citado na
entrevista de 1973 ao programa MPB Especial. Apesar de Elis dizer que achava tal
repertório gostoso, não há a presença de nenhuma das músicas, gravadas neste período,
regravadas posteriormente por ela.
É interessante notar que a memória e o gosto, tanto quanto as concepções
artísticas de Elis, foram se modificando ao longo de sua carreira. Imperial mais acima
nos disse que Elis não gostava de bossa nova116, mas no depoimento dado ao programa
MPB Especial, em 1973, feito mais de uma década depois, ela se afirma uma cantora
adepta pelo menos da figura de João Gilberto, considerado um grande nome do
movimento carioca.
O primeiro LP lançado por Elis em 1961, Viva a Brotolândia, tinha seis versões
de músicas internacionais dentre suas doze músicas, o que demonstra uma tentativa de
se lançar Elis como uma intérprete de sucessos já conhecidos do grande público e, quem
sabe, até mesmo internacionalizar sua carreira. Metade de seu repertório consiste em
rocks, as outras três músicas são samba-boleros, há também uma valsa e um calypso.
Todas as músicas tematizam o amor de alguma maneira, ou um amor perdido, à espera
de um amor, ou mesmo um pedido por um amor, mesmo que de mentira.
115 Programa produzido pela TV Cultura dirigido por Tito Lima, com apresentação de Salomão Ésper emjaneiro de 1982.116 Em 61 no período da gravação de seu primeiro LP.
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Quadro 1 - Viva a Brotolândia117
Músicas Gênero118 Temática
Dá sorte Calypso Amorosa
Sonhando (versão) Rock Amorosa
Murmúrio Sambolero Amorosa
Tu serás Rock Amorosa
Samba feito pra mim Sambolero Amorosa
Fala-me de amor (versão) Rock Amorosa
Baby face (versão) Rock Amorosa
Dor de cotovelo Sambolero Amorosa
Garoto último tipo (versão) Rock Amorosa
As coisas que eu gosto
(versão)Valsa Amorosa
Mesmo de mentira Sambolero Amorosa
Amor, amor (versão) Rock Amorosa
Fonte: Viva a Brotolândia. Continental, 1961.
Trata-se de um disco voltado para os jovens, como salientou seu produtor,
Carlos Imperial, em entrevista realizada em 1982,119 já que ao invés de cantar a dor de
traições, Elis canta um amor pueril e idealizado. As letras falam de amores que se foram
ou pedem o retorno do ser amado, o que indica que tais músicas intencionavam agradar
a um público mais jovem. A orquestração soa à rádio, ao timbre e instrumental utilizado
117 Lado A: Dá sorte (Eleu salvador)/Sonhando (Dreamin’)(Barry de Vorzon, Ted Ellis/Versão: JuvenalFernandes)/ Murmúrio(Luiz Antônio, Djalma ferreira) Tu serás (Ângelo Martignani, Othon Russo)/Samba feito só pra mim (Paulo Tito)/ Fala-me de amor(Take me in your arms)(Fred Markussa, FritzRotter/Versão: Max Gold). Lado B: Baby face (Davis, Akst/Versão: Fred Jorge)/ Dore de cotovelo (JoãoRoberto Kelly)/ Garoto último tipo (Puppy love)(Paul Anka/Versão: Fred Jorge)/ As coisas que eugosto(My favourite things)(Richard Rogers, Oscar HammersteinII/Versão: Fernando Cesar)/ Mesmo dementira (Carlos Imperial)/ Amor,amor..(Love, Love)(Bill Caesar/Versão: Carlos Imperial).118 Analisei os gêneros através das células rítmicas que comumente os definem.119 Revista Amiga. Edição Especial. Edição Histórica (Janeiro de 1982). Carlos Imperial “Só eu sei averdade sobre seu primeiro LP”.
60
por este meio de comunicação. Bem afastado da sonoridade da bossa nova, lembra um
repertório de baile, de um salão de festas. A voz de Elis está bastante impostada e
utiliza-se muito dos vibratos.
Elis gravou outro disco pela Continental, Poema em 1962. Nessa fase de início
de carreira, praticamente regional, Elis gravou outros dois discos para uma nova
gravadora, a CBS: Ellis Regina (1963) e O Bem do Amor (1963). Esses primeiros LPs
de Elis seguiam a temática musical do período, ou seja, a impostação de voz, lembrando
a das cantoras do rádio, e são caracterizados por temáticas quase que exclusivamente de
cunho amoroso. Ter dois LPs lançados no mesmo ano é um dado relevante para uma
cantora em início de carreira, o que indica que Elis Regina era uma artista com fortes
chances de ter uma carreira promissora.
O segundo LP lançado um ano após o primeiro, em 1962, tem em seu repertório
o próprio título do disco, Poema de amor, uma vez que todas as músicas parecem ser
poemas amorosos. Ele reflete em seu repertório o que era tocado nas rádios, como
ritmos caribenhos, de orquestração americana (Fox e twist) e um samba com a
linguagem da bateria americana. Sua sonoridade lembra muito o que era tocado nas
rádios nos anos cinquenta. Das doze músicas, que se dividem em 4 sambas, 4 boleros, 3
rocks e 1 ritmo latino, 4 são versões, sugerindo que talvez intencionasse atingir a uma
parcela maior de ouvintes.
Quadro 1.1 - Poema de amor120
Músicas Gênero Temática
Poema Bolero Amorosa
Pororó-popó Samba Amorosa
Dá-me um beijo (versão) Fox Amorosa
Nos teus lábios Bolero Amorosa
120 Lado A:Poema de amor(Fernado Dias)/ Pororó-popó(João Roberto Kelly)/ Dá-me um beijo(É persempre)(C. Dannell, A. Trovajoli/Versão:Romeu Neves)/ Nos teus lábios (Haroldo Eiras, Ataliba Santos)/Vou comprar um coração (Paulo Tito, Romeu Neves)/ Meu pequeno mundo de ilusão (My little corner ofthe world)(Bob Hillard, Lee Pockriss/Versão:José Mauro Pires). Lado B: Las secretárias (PepeLuis/Versão: Martha de Almeida)/ Saudade é recordar(Renan França, Verinha Falcão)/ Pizzicatipizzicato(Emile Stern, Eddy Marnay/ Versão: Fred Jorge)/ Canção de enganar despedida(Waltel, Joluz)/Confissão (Umberto Silva, Paulo Aguiar, Luiz Mergulhão)/ Podes voltar(Othon Russo, Nazareno deBrito).
61
Vou comprar um coração Samba Amorosa
Meu pequeno mundo de
ilusão (versão)Rock Amorosa
Las secretárias (versão) Latino Secretárias
Saudade é recordar Samba Amorosa
Pizzicati pizzicato (versão) Fox Amorosa
Canção de enganar
despedidaBolero Amorosa
Confissão Samba Amorosa
Podes voltar Bolero Amorosa
Fonte: Poema de amor. Continental, 1962.
.
O bem do amor, lançado em 1963, é um disco dividido entre sambas e boleros.
Dentre as músicas, 8 são sambas, 3 são boleros e 1 é samba-bolero. Uma de suas
canções homenageia o Rio de Janeiro e nela, assim como na música O bem do amor,
percebemos uma tentativa de Elis em se aproximar do jazz, através das vocalizações.
Com exceção da canção de homenagem ao bairro de Copacabana, há somente canções
de temática amorosa. Sua maneira de cantar ainda é muito próxima às das cantoras do
rádio, que fazem uso de impostação e vibratos.
Quadro 1.2 - O bem do amor121
Músicas Gênero Temática
Alô saudade Samba Amorosa
Sem teu amor Bolero Amorosa
Saudade e carinho Samba Amorosa
121Lado A: Saudade (Umberto Silva, Paulo Aguiar)/ Sem teu amor(Luiz Mauro)/ Saudade e carinho(Renato França, Verinha Falcão)/ Mania de gostar(Luiz Mauro)/ Manhã de amor(Serginho Malta, Joluz)/Se você quiser(BAden Powell, Mario Telles). Lado B: Há uma história tyriste (Othon Russo, Niquinho)/Domingo em Copacabana(Roberto Faissal, Paulo Tito)/ Meus olhos(Sérgio Napp)/ Retorno(AecioKaufmann)/ Mundo de paz(Tulio Piva)/ O bem do amor (Rildo Hora, Clóvis Mello).
62
Mania de gostar Samba Amorosa
Manhã de amor Bolero Amorosa
Se você quiser Samba Amorosa
Há uma história triste Sambolero Amorosa
Domingo em Copacabana Samba Rio de Janeiro
Meus olhos Samba Amorosa
Retorno Bolero Amorosa
Mundo de paz Samba Esperança
O bem do amor Samba Amorosa
Fonte: O bem do amor. CBS, 1963.
Diferentemente dos LPs anteriores, que possuiam canções de temática
exclusivamente amorosa, neste aparecem duas canções que não tematizam o amor, são
elas Domingo em Copacabana, que fala de um passeio na praia, e Mundo de paz. A
letra Mundo de Paz fala de expectativas por um mundo melhor, no entanto, não aponta
problemas sociais e nem políticos:É pra frente que se andaCaminhando sem olhar pra trásÉ como a roda da históriaQue nunca pode de pararHá um turbilhão de anseiosdespertando a nossa vozHá um mundo de esperança esperando por nósE a gente vai seguindoolhando só pra frenteSem olhar pra trásProcurando nosso mundo de paz
Ellis traz 4 versões de músicas internacionais, esse LP mostra uma tentativa de
aproximação com o jazz, mas ainda não é o samba jazz interpretado por Elis num futuro
próximo. Seu timbre e interpretação se assemelham muito ao das cantoras do rádio.
Metade do repertório consiste em sambas, a outra metade se divide em 3 rocks, 1 bolero
e 2 com ritmos latinos.
63
Quadro 1.3 - Ellis Regina122
Músicas Gênero Temática
Silêncio Samba Samba
1,2,3 balançou Samba Samba
À noite (versão) Fox Amorosa
Ressureição Bolero Amorosa
Flertei Samba Amorosa
Adeus amor Samba Amorosa
A Virgem de Macarena
(versão)Latino Amorosa
Tango italiano (versão) Guahyra Amorosa
Dengosa Samba Amorosa
Formiguinha triste Samba Amorosa
Tristeza de carnaval Fox Amorosa
Outra vez (versão) Fox Amorosa
Fonte: Ellis Regina. CBS, 1963.
Percebemos neste LP duas canções que, de certa maneira, falam de uma
identidade brasileira, uma vez que tratam do samba em suas letras, gênero que neste
momento já possuía um caráter definidor de brasilidade. A música que abre o LP fala da
modificação do samba e do surgimento da bossa nova, porém o arranjo da música é
orquestrado e não traz nenhuma inovação quanto à interpretação do samba, dos demais
gravados por Elis nesta fase:
122 Lado A: Silêncio (Túlio Piva)/ 1,2,3 balançou (Alcyr Pires Vermelho, Nazareno de Brito)/ À Noite(Tonight)(Sondheim, Berstein/Versão: Roberto Côrte Real)/ Ressurreição (Pernambuco, Marino Pinto)/Flertei(Castro Perret)/ Adeus Amor (Newton Ramalho, Almeida Rêgo). Lado B: A Virgem de Macarena(La Virgen de MAcareña)(B.B. Monteverde, CAlero/Versão:A. Bourget)/ Tango italiano(Malgoni,Pallesi, Beretta/ Versão: Romeu Nunes)/ Dengosa (Castro Perret)/ Formiguinha triste (Joãozinho)/Tristeza de carnaval (Mutinho,Bidu)/ Outra vez (Again)(Cochran, Newman/Versão: Osvaldo Santiago).
64
Silêncio, Atenção,O Samba já tem outra marcaçãoO pandeiro já não faz o que fazia,Violão só é na base da harmônia.A roda do mundo sempre vai girando, vai girando semparar.Tudo nessa vida se renova,A Bossa Velha deu lugar a Bossa Nova
Os quatro primeiros LPs gravados por Elis eram discos que seguiam a temática
musical do período, ou seja, a impostação de voz, lembrando a das cantoras do rádio e o
tema romântico. As músicas eram caracterizadas pelos ritmos do samba, do bolero e de
samba-canções, dentre outros ritmos populares daquele momento.
Tabela 1 - Percentual de gêneros gravados nos LPs de 1961-1963:
Gênero Percentual N° absoluto
Samba 38,3%% 18 músicas
Rock 25,5% 12 músicas
Samba-bolero 10,7% 5 músicas
Ritmos latinos123 25,5% 12 músicas
Total 100% 47 músicas124
Fonte: Viva a Brotolândia, Poema de amor, O bem do amor e Ellis Regina.
A análise do repertório gravado por Elis nestes quatro LPs mostra que quase
90% das músicas são de temática amorosa. O amor retratado nestas canções é um amor
jovial e puro, um amor que canta para o ser amado voltar e trazer de volta a felicidade,
ou mesmo canções de louvação ao amor, um amor que faz sorrir e cantar. Dentre as
músicas analisadas125, 64,5%126 das canções foram gravadas primeiramente por Elis.
Este fato demonstra o investimento creditado a Elis pelos produtores destes discos.
123 Inclui-se neste gênero o bolero, que configura 16,6% destas canções.124 Das 48 músicas uma delas foi gravada em valsa e por isso não se insere na tabela.125 Soma-se ao todo 48 músicas.126 Análise realizada através do site: http://www.memoriamusical.com.br/ Acessado de 21/01/2010 até15/03/2011.
65
Percebo que a maior parte do repertório consiste em sambas, gênero que tinha já
nesta época um status de ritmo nacional. O rock e os ritmos latinos, os segundos
gêneros mais utilizado, seguido pelos samboleros mostram uma adequação destas
gravações com o que estava sendo tocado nas rádios naquele momento, demonstrando
assim que seria um critério de mercado que orientaria essas escolhas.
De acordo com Avancini, boleros e samba-canções se caracterizam, dentre
outros aspectos, por um conjunto de questões relacionadas ao amor, particularmente ao
amor frustrado, seja em virtude de uma separação, seja de nunca se ter tido a
oportunidade de experimentá-lo. No entanto, sua temática, exclusivamente, não basta
para defini-los . Até porque, a frustração amorosa pode ser cantada em outros ritmos.
Um gênero musical se demarca por um conjunto que abarca, além da temática e do
ritmo, uma estética de interpretação. Ambos têm, em geral, um narrador que conta, ou
melhor, canta seu sofrimento e dor, resgatando um estado de coisas que lhe deu origem.
Assim, as letras relatam histórias de rompimento e de amores não concretizados, ou de
pessoas que sequer chegaram a experimentar o amor. Às vezes o narrador se dirige
diretamente ao ser amado, estando ele presente ou não. Em outro, fala consigo mesmo e
o ouvinte se torna uma espécie de testemunha. São gêneros que visam expressar um
sentimento ou estado de espírito.127
O timbre vocal, bem como a performance de Elis nestes LPs, são bastante
distantes do universo da bossa nova carioca. Enquanto, no Rio de Janeiro, a bossa
rolava buscando uma proximidade com o jazz e na tentativa de sintetizar toda uma
orquestra no violão, Elis cantava no Rio Grande do Sul como suas divas do rádio e
gostava de boleros. O instrumental utilizado nestas gravações era composto, em sua
maioria, por piano, baixo e bateria, somados a uma orquestra ora de metais ora de
sopros, nada econômicos. Acredito que, assim como o repertório, a escolha do
instrumental também foi feita pela gravadora.
Ao findar deste capítulo, pode-se perceber a forte influência e presença do rádio
na formação artística de Elis Regina, bem como no repertório gravado na fase inicial de
sua carreira. Parece que, de fato, em início de carreira, poucos são os cantores(as) que
têm liberdade para escolher o repertório. O questionamento que faço é: por que
determinado tipo de repertório é, neste momento, proposto à Elis? Acredito que a
127 AVANCINI, Maria Marta Picarelli. Nas Tramas da Fama – As estrelas do rádio em sua época áurea,Brasil, anos 40 e 50. Dissertação (mestrado) – Universidade estadual de Campinas. Departamento deHistória. 1996, p. 121.
66
resposta a esta e a outras perguntas reside no fato de que a discografia produzida neste
momento, composta por esses 4 LPs, está mantendo um diálogo com a musicalidade do
período. Em uma época onde o bolero dominava a cena musical brasileira128e o samba
era utilizado enquanto caracterizador da musicalidade nacional, Elis gravou o que se
esperava que fosse vendável.
Percebe-se, na maneira de cantar de Elis Regina nesta fase, características
presentes nas vozes de cantoras e cantores com os quais ela se identificava, como
Francisco Alves ou mesmo Ângela Maria, como o alto nível de energia empregada na
impostação vocal, a larga utilização do vibrato, quando cantava com pouca flexibilidade
de articulação nas consoantes e largo prolongamento das vogais. É interessante notar
que a influência do bel canto também se faz presente no canto de Elis.
A utilização da voz desta maneira se deve principalmente à participação de Elis
em programas de rádio e por ela estar afinada com o gosto de então, no entanto, esta
técnica se transforma com sua chegada ao Rio de Janeiro, como analisarei nos próximos
capítulos. Elis, ao longo de sua carreira, aprende a utilizar melhor sua voz com técnicas
aprendidas e aprimoradas, principalmente através da própria prática de cantar.
128 Fato demonstrado em LENHARO, Alcir. Cantores do rádio – A trajetória de Nora Ney e JorgeGoulart e o meio artístico de seu tempo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995, e em CASTRO,Ruy Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa nova. SP, Cia. das Letras, 1990, em suasanálises sobre o período.
67
Capítulo 2 - O surgimento da temática nacional-popular no repertório
de Elis Regina
Depois de analisar a infância e a influência do rádio na vida e obra de Elis,
abordo neste capítulo a chegada de Elis ao Rio de Janeiro e a modificação de seu
repertório gravado a partir deste momento, tanto na temática quanto nos arranjos.
A partir dos aspectos da carreira de Elis Regina abordados nesta pesquisa, o
presente capítulo pretende investigar como se deu a relação da cantora com questões
referentes ao Brasil e como estas apareceram em sua obra. Levando em consideração
que o repertório analisado até o ano de 1963 consiste em canções de cunho quase que
exclusivamente amoroso129, abordarei principalmente a modificação desta temática.
Pretendo analisar, através das canções gravadas por Elis, de algumas de suas
entrevistas e vídeos e também de depoimentos de artistas envolvidos direta ou
indiretamente na sua carreira, como as tensões presentes nas relações sociais de meados
dos anos sessenta que se referem à problemática nacional aparecem na obra de Elis. As
canções gravadas por Elis tiveram um sucesso considerável e uma divulgação de longo
alcance, uma vez que eram veiculadas pelas emissoras de televisão e o rádio ainda era
um instrumento poderoso de difusão, maior que a própria televisão, em alguns lugares.
2.1 - O cenário musical brasileiro do início a meados dos anos sessenta
De acordo com Regina Echeverria, foi no final de março do ano de 1964,
momento político significativo de mudanças no pós golpe militar e dez dias depois de
Elis ter completado seus dezoito anos, que ela e seu pai Romeu embarcaram
definitivamente para o Rio de Janeiro. Elis Regina contava, naquela época, com a
promessa do produtor de discos Armando Pittigliani de contratá-la para a Philips, assim
que ela rompesse o acordo que tinha com a CBS. 130
Segundo Napolitano:
“Um dos primeiros programas com a MPB que a Record levou ao ar,em outubro de 1964, foi o Primeira audição no qual se apresentou aainda desconhecida do grande público Elis Regina, acompanhada pelo
129 Ver capítulo 1.130 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, p. 79.
68
Zimbo Trio, conjunto recém formado na época. A TV ia ao encontro docircuito universitário e lá encontrou a sua futura grande estrela”. 131
É interessante notar que grande parte dos sujeitos citados ao longo da análise,
bem como os locais destinados à execução musical, estão todos ligados ao eixo Rio-São
Paulo, fato este que fez com que Elis tivesse que se mudar para esta localidade para
encaminhar melhor sua carreira musical. A carreira da intérprete Elis Regina Carvalho
Costa se consolidou ao mesmo tempo em que se criava no Brasil o conceito de Música
Popular Brasileira – MPB. Essa denominação surgiu em meados dos anos sessenta,
reunindo o que então se considerava representativo da genuína cultura brasileira, no
âmbito da música. Nesse sentido, a MPB herdava o esforço de um grupo de artistas
originalmente ligados à bossa nova – como Carlos Lyra, por exemplo – de construir
uma arte musical mais comprometida com a realidade social. A questão que se coloca
aqui é: Como Elis cantava o Brasil? Qual Brasil?
No período de ascensão e consolidação da bossa nova, Elis era um sucesso
somente no Rio Grande do Sul e, ao chegar ao Rio de Janeiro, foi aos poucos
alcançando seu espaço. Primeiramente na TV Rio, depois nos pocket shows do Beco
das Garrafas132 e também nos auditórios universitários, o que mudaria depois de sua
participação no I Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, em 1965.
Pode-se dizer que Elis fazia sucesso com uma carreira de cunho regional, uma vez que o
grande centro irradiador de cultura, o eixo Rio/São Paulo, só seria conhecido por Elis
em meados dos anos sessenta, especificamente 64, quando a bossa nova já havia se
firmado como gênero musical de extrema importância.
A década de sessenta foi sentida pelos contemporâneos como uma época de
fervoroso entusiasmo cultural. Artistas conectados com as discussões acerca dos
problemas sociais e políticos brasileiros, engajados nos projetos culturais dos Centros
Populares de Cultura, como Carlos Lyra, Edu Lobo, Ruy Guerra, dentre outros, foram
os compositores que Elis Regina escolheu para gravar no repertório de seus discos, a
partir do LP Samba eu canto assim, de 1965. A temática de suas canções, bem como de
outros LPs lançados posteriormente por ela, não se restringiram somente ao nacional-
131 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, p. 79.132 Beco das Garrafas é o nome atribuído a uma travessa sem saída da rua Duvivier, na cidade do Rio deJaneiro, que abrigava um conjunto de casas noturnas(Ma Griffe, Bacará, Little Club e Bottle's), situado nobairro carioca de Copacabana, nas décadas de 50 e sessenta.
69
popular133defendido por estes compositores, apesar de representarem parte significativa
de seu repertório, como veremos adiante.
De acordo com Napolitano:
“A saída encontrada por grande parte dos intelectuais de esquerda eartistas era buscar uma via política mais direta entre artista e povo, ondeo artista pudesse ter um trabalho paralelo à sua condição de vendedor decanções. O Centro Popular de Cultura da UNE deveria ocupar esteespaço. Inúmeras experiências de teatro, cinema e música popularforam feitas por artistas engajados na tentativa de configurar uma artepopular e nacional. Obviamente, como o próprio “manifesto” do CPCassumia, o “povo” era mais a fonte de inspiração e o alvo final do artistaengajado. A arte popular em si era vista como ingênua e atrasada. Oartista deveria incorporar a linguagem desta arte para “chegar” ao povo,e “dar” a ele a consciência dos seus próprios valores.” 134
Sobre a formação do CPC Carlos Lyra descreve:
“Fui o fundador/diretor musical do CPC. O tempo todo, desde oprincípio, eu fui o chefe do Departamento Cultural de Música. Eraresponsável pelo setor musical, o Vianinha, pelo setor teatral, o FerreiraGullar, pelo de literatura, Leon Hirzsman, pelo setor de cinema. Foi aíque veio toda aquela leva de cinema novo que está aí até hoje: CácaDiegues, Arnaldo Jabor, uma porção de gente que foi se encontrando alino CPC. Mas o Centro estava pronto especialmente para essas quatroatividades: literatura, música, cinema e teatro. Fizemos teatro de rua,teatro volante, fizemos o Cinco vezes favela, o filme, que teve comobase Couro de gato, do Joaquim, e fizemos mais outros.135
Carlos Lyra está entre os compositores mais gravados por Elis na década de
sessenta. As suas palavras são muito relevantes, pois elucidam o diálogo existente entre
as artes naquele momento. A criação de um “centro” popular de cultura demonstra o
desejo dos artistas do período em se unir. Este diálogo e trânsito cultural existente entre
os diferentes meios artísticos ficam ainda mais perceptíveis quando Lyra é questionado
por Santuza Naves acerca de sua politização:
“O pessoal do teatro se juntava, por incrível que pareça nos barzinhosentre Copacabana e Ipanema. No Jangadeiros tinha o Vinícius, tinha oJoaquim Pedro de Andrade, tinha o Glauber Rocha, o Ferreira Gullar;era todo mundo do cinema novo, poesia, música, bossa nova. E isso foique gerou em mim a facilidade de me comunicar com as pessoas deteatro e cinema, de fazer músicas para os filmes do Joaquim.Aquelepessoal do cinema novo era um time com gente da pesada. E com esse
133 Conceito a ser amplamente analisado e discutido a seguir.134 NAPOLITANO, Marcos. A canção engajada no Brasil: entre a modernização capitalista e oautoritarismo militar (19sessenta/1968). Publicado na Revista Ciência Hoje, 24/241, ago./1998.135 A MPB em discussão: entrevistas / Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho, Tatiana Bacal(Organizadores) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p.79.
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clima todo, você tinha feedback de todo lado. Eu fui chamado peloChico Assis para fazer A Mais-valia , que era uma peça do Vianinha[Oduvaldo Viana Filho]. Nesse momento eu comecei a me ligar aopessoal do Arena de São Paulo, com o Vianinha, com o [Gianfrancesco]Guarnieri, o Augusto Boal, toda essa gente. Fui conhecendo essaspessoas e acabei diretor musical do Arena. Fui levado para São Paulo eali comecei a trabalhar com Guarnieri em canções, em teatro e outrascoisas que nós fizemos juntos. E com Vianinha eu fiz A Mais-valia euma porção de outras coisas: músicas e peças políticas populares.”136
Buscando abordar o cenário artístico da década de sessenta, através dos relatos
feitos por produtores musicais137 em seus livros de memórias, analisarei os livros de
Nelson Motta e Marcos Mazzola, dentre outros significativos sujeitos que escreveram
sobre esse período como Zuza Homem de Mello138. Rememorando e descrevendo o
período, esses relatos se convertem em fontes que elucidam a época na qual esses
artistas da produção musical estão inseridos. Elis é citada em todos eles.
Não podemos deixar de refletir acerca da complexidade em se trabalhar com
testemunhos. Lucília Delgado nos alerta para o fato de que o tempo, sem qualquer poder
de alteração do que passou, atua modificando ou reafirmando o significado do que foi
vivido e a representação individual ou coletiva sobre o passado. A autora afirma, ainda,
que o passado apresenta-se como vidro estilhaçado de um vitral, antes composto por
inúmeras cores e partes, buscar recompô-lo em sua integridade é tarefa impossível.
Buscar sua compreensão através da análise de fragmentos, resíduos, objetos biográficos
e diferentes tipos de documentação e fontes é um desafio possível de ser enfrentado. 139
E é este enfrentamento que busco neste capítulo, ao trabalhar com as memórias e relatos
biográficos e entrevistas, não só de Elis, mas também de outros agentes significativos
para esta pesquisa.
A fecundidade de se analisar memórias reside no fato de estudarmos as
representações de passado tomadas como dados, capazes de modificar nosso
entendimento deste passado. Segundo Maurice Halbwachs, recorremos a testemunhos
para reforçar, enfraquecer, ou mesmo para completar o que sabemos de algum evento,
embora muitas circunstâncias referentes aos testemunhos permaneçam obscuras para
136 A MPB em discussão: entrevistas / Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho, Tatiana Bacal(Organizadores) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p.78.137 No universo musical, um produtor musical ou produtor discográfico é o termo que designa uma pessoaresponsável por completar uma gravação para que esteja pronta para o lançamento. Eles controlam assessões de gravação. Guiam os músicos e cantores e fazem a supervisão do processo de mixagem.138 CASTRO, Rui com Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa nova, Ruy não foi produtormusical e sim vivenciou e entrevistou vários nomes dos artistas da bossa nova. , MAZZOLA, MarcosOuvindo estrelas uma autobiografia, RIBEIRO, Solano Prepare seu coração, dentre outros.139 DELGADO, Lucília de A. N. História oral: memória, tempo, identidades. BH: Autêntica, 2006.
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nós. De acordo com o autor, dificilmente encontraremos lembranças que nos levem a
um momento em que nossas sensações eram apenas reflexos dos objetos exteriores, em
que não misturássemos nenhuma das imagens, nenhum dos pensamentos que nos ligavam
a outras pessoas e aos grupos que nos rodeavam, ou seja, qualquer recordação de uma
série de lembranças que se refere ao mundo exterior é explicada pelas leis da percepção
coletiva. Halbwachs afirma, ainda, que cada memória individual é um ponto de vista
sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali
ocupamos e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantemos com outros
ambientes.140
Marcos Mazzola, produtor musical, descreve em sua autobiografia como se
lembra desta época:
“Naquele final da década de 1950, o Brasil vivia certa euforia. Era avitória da Seleção na Suécia, a construção de Brasília – e até certapropagação do consumo. As famílias de classe média deixavam de fazeras coisas em casa e passavam a comprar roupas, alimentosindustrializados, eletrodomésticos. Começavam a surgir produtos nasruas e casas que, até então, só eram vistos em filmes. A televisãochegou por aqui. No rádio, dominava a música americana, se bem quehouve toda uma onda do baião que sacudiu o País com um som trazidodo sertão e transformado em paixão urbana por Humberto Teixeira eLuiz Gonzaga. Nas boates de Ipanema, zona sul carioca, havia umaenfumaçada vida noturna, de amor, de fossa, belas músicas e musas,como Dolores Duran, Maísa e muitas outras – isso, esquentando aplatéia para a bossa nova, que logo surgiria.” 141
Em entrevista realizada por Naves, vemos outro relato referente a este período,
do cantor e compositor Chico Buarque:
“Pelo fato de também ter morado na Itália e pelo fato da culturafrancesa ser muito presente na formação da geração dos meus pais,ouvia bastante a música francesa, muito Edith Piaf e, mais tarde,Jacques Brel, Charles Aznavour. Eu ouvia muito isso. E depois aprimeira safra do rock, com Elvis Presley, Litlle Richard e aquela gentetoda. E eu cantava aquilo tudo, imitava The Platters. Até o surgimentoda bossa nova. Aquilo pra mim foi uma ruptura com tudo. Eu sou de1944 e, quando surgiu a bossa nova, quando ouvi o primeiro disco doJoão Gilberto, eu me lembro de ter pedido dinheiro ao meu pai paracomprar um disco, porque era um disco com a música do Vinícius. Aminha lábia era essa. A gente não sabia quem era o Tom [Jobim], nãosabia quem era João Gilberto, mas Vinícius era de casa. Então, a partirdaquele momento, eu esqueci, entre aspas, tudo o que tinha ouvido
140 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.141 MAZZOLA, Marcos. Ouvindo estrelas: a luta, a ousadia e a glória de um dos maiores produtoresmusicais do Brasil. – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007, p.16.
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antes, passei a ser um bossa-novista. Foi aí que eu peguei em um violão,comecei a fazer música mesmo a partir desse momento.142
Em outra entrevista realizada por Naves, desta vez com Edu Lobo, percebemos a
maneira como o compositor “sentiu” a bossa nova:
“A bossa nova mexeu em tanta coisa, foi uma revolução que teve umaimportância tão grande do ponto de vista formal. Bossa nova é arevolução harmônica, melódica, poética e vocal. E mais ainda:instrumental. Você tem uma nova batida, com um novo cantor, comonunca teve no Brasil nada parecido, como foi o João Gilberto. Porque avoz dele é integrada ao violão, a voz vai por dentro do que ele tatocando, é como se fosse uma coisa só. Não tinha isso na época. Querdizer, você tinha o [Dorival] Caymmi, que cantava com o violão, masera completamente diferente. Só isso justificaria o movimento inteiro,porque é uma mudança. E cantando com a voz curta, só queabsolutamente afinada e superinteressante, nova. E depois, acordesnunca usados em música brasileira e melodias também, porque osacordes eram novos, as cadências eram originais. E aí as letrascomeçaram com Vinícius, depois outros autores. Quer dizer, era umamudança formal, uma revolução como nunca houve, eu acho.” 143
Também em entrevista realizada por Santuza, temos a visão de Carlos Lyra, ao
se referir a esta época incipiente da bossa nova:
“Havia um time de jornalistas, poetas, letristas, que foi anterior à nossageração, como Antônio Maria, que eu considero um dos precursoresmais importantes da bossa nova, que fez letras para o Dick Farney eoutros cantores. Então há uma turma ali de primeira linha, como OttoLara Resende, Vinicius de Moraes e Nelson Rodrigues. Toda essa genteescrevia para os jornais era a nossa informação. O clima dos anos 50para os anos sessenta é de grande surto cultural, porque toda aquelagente de uma geração anterior nos dava subsídios e informações para agente ter cada vez mais vontade de criar, de participar.” 144
Lyra conta, ainda, que:
“O primeiro contato que tive com a música brasileira que realmenteabriu meus olhos e os ouvidos, foi através do Antônio Maria. Eupensava na importância, já que ele trazia Shakespeare para dentro damúsica popular brasileira. Eu despertei para a música brasileira ouvindoo Dick Farney cantando aquelas coisas, que eram sambas-cançõeslindos. Então minhas primeiras composições eram sambas-canções.Aquelas músicas maravilhosas do México, como as de Agustin Lara,foram importantes influências para a gente. Influencia também doimpressionismo de Ravel, do Debussy, do jazz, entre outros. A gentetem uma mistura dessas influências estrangeiras e a raiz brasileira dosamba, xaxado, da valsa, todos os ritmos. Não é só o samba não; todos
142 A MPB em discussão: entrevistas / Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho, Tatiana Bacal(Organizadores) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 165.143 Idem, p. 230. Entrevista realizada em 24 de agosto de 1999.144 Idem, ibidem, p.76.
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os ritmos brasileiros fazem parte da educação da bossa nova. AntônioMaria, Dorival Caymmi, Ary Barroso, todos esses músicos foraminformações importantes para mim”. 145
Diante desses relatos, faz-se necessário pensarmos quem são estes sujeitos e de
qual grupo social fazem parte. Todos os depoentes citados acima faziam parte da classe
média. No entanto, nem todos tiveram a mesma audição musical antes da bossa nova,
que, causou grande impacto no universo de todos eles. O que fica evidente na fala deles
é que a bossa nova surge em suas vidas causando uma grande sensação, chegando até
mesmo a modificar suas ligações sentimentais com a música popular brasileira, a ponto
de Chico Buarque passar a querer aprender a tocar depois de conhecer a bossa nova.
Uma importante questão a ser apontada é a musicalidade ouvida e produzida no
país antes do advento da bossa nova, a mesma é fundamental para pensarmos em
continuidades e diálogos, e não somente em rupturas e novidades. O jazz, que
apareceria no violão dos bossanovistas, já era ouvido desde a infância por grande parte
desses compositores nas rádios. Não se pode negar que houve novas maneiras de
interpretar os acordes americanos, mas os músicos brasileiros inovaram de acordo com
aquilo que lhes chegava pelas rádios ou nas boates. Já que grande parte do que se ouvia
eram músicas americanizadas ou estrangeiras, podemos perceber a influência direta das
mesmas na produção musical nacional.
De acordo com Solano Ribeiro, a bossa nova se firmava cada vez mais. Em São
Paulo, o diretório acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie foi o
primeiro a apresentar um festival de bossa nova, organizado por Manoel Poladian. Foi o
Festival da Balança, que teve quatro outras apresentações com o nome de Show da
Balança. No Teatro Paramount, foi iniciada uma série de espetáculos organizados por
Horácio Berlynk, João Evangelista Leão e Eduardo Muylaert, a que deram o nome de O
Fino da Bossa. Os artistas cariocas que começavam a aparecer na cidade eram
solicitados com freqüência para shows em casas noturnas, sendo que o Cave, na rua da
Consolação, os apresentava com mais assiduidade. De acordo com o autor, embora
viesse do Rio quase tudo o que acontecia de importante na cidade, já dava para perceber
que estava sendo aberto um espaço para um elenco musical de bossa nova em São
Paulo. 146 Elis era uma dessas “artistas cariocas”, apesar de ser do Rio Grande do Sul,
145 A MPB em discussão: entrevistas / Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho, Tatiana Bacal(Organizadores) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 82.146 RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração – A História dos Grande festivais. São Paulo: GeraçãoEditorial, 2002, p. 45.
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era no Rio de Janeiro que Elis estava realizando alguns shows, e depois o faria em São
Paulo.
Segundo Ruy Castro, no final dos anos 50 nas primeiras semanas de agosto, a
turma do diretório acadêmico, presidido pelo estudante Cacá Diegues, cobriu os
corredores da PUC, na Gávea, com cartazes de cartolina escritos com pincel atômico,
anunciando a realização do 1° Festival de Samba-Session. Seria a primeira vez que os
meninos poderiam ouvir, em massa, e na voz dos próprios autores, aquelas canções
modernas que vinham penetrando na universidade e que pareciam sair da academia de
Lyra e Menescal. 147 Esta descrição é importante, pois já nos mostra a presença de
diálogos entre diferentes fazeres artísticos, uma vez que Cacá Diegues, além de
propagandear a bossa nova mais tarde, faria também parte do grupo dos diretores do
cinema novo e se casaria com a cantora Nara Leão.
Nelson Motta relata que, além dos colégios e faculdades, as festas em
apartamentos de Copacabana foram o principal veículo de divulgação no início da bossa
nova, quando o movimento ainda não tinha discos, não tocava em rádio, não aparecia na
televisão e não tinha espaço na imprensa. 148
Pode-se pensar, com tal declaração, juntamente com as demais supracitadas, nos
novos espaços de sociabilidade ocupados pela turma da bossa nova, os espaços musicais
que antes eram as boates e especialmente o rádio, após o advento da bossa nova, passam
a ocupar locais que antes não lhe eram reservados, como os campi universitários, os
apartamentos e também os teatros.
Motta conta que com a febre da bossa nova, as academias de violão se
multiplicavam pela Zona Sul do Rio e em uma delas, na Rua Dias da Rocha, no coração
de Copacabana, conheceu Wanda Sá, Maurício Tapajós, Edu Lobo, Marcos Valle e
outros, uma nova turma. Era uma casa de vila, de dois andares, onde Roberto Menescal,
Samuel Eliachar e outros davam aulas de violão e onde os alunos se encontravam para
conversar e tocar. 149
De acordo com Motta, Carlos Lyra e sua turma tinham preocupações sociais,
acreditavam na música como instrumento de ação política, denunciavam a jazzificação
da bossa nova, criticavam sua americanização e “elitização” e buscavam as raízes
147 CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. – São Paulo: Companhiadas Letras, 1990, p. 221.148 MOTTA, Nelson. Noites Tropicais solos, improvisos e memórias musicais. Editora Objetiva, 2000, p.22.149Idem, p. 26.
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populares na (re) descoberta de grandes sambistas cariocas, como Cartola e Nelson
Cavaquinho, e de artistas populares nordestinos, como Luiz Gonzaga, João do Vale e
Jackson do Pandeiro. A sua “linha musical” seguia, basicamente, as idéias do CPC
(Centro Popular de Cultura) da UNE, do qual Lyra fora um dos fundadores e que reunia
a fina flor da jovem esquerda carioca, de onde sairia boa parte do grupo Opinião de
teatro e do cinema novo. 150
Esta citação de Motta, somada a outras realizadas anteriormente, demonstram
como as artes se influenciavam mutuamente, uma vez que do CPC sairia grande parte
dos integrantes do grupo Opinião de teatro e do cinema novo, e também muitos dos
compositores gravados por Elis Regina após 1965. Vários dos músicos citados por
Motta, dentre eles Edu Lobo, Marcos Valle, e Carlos Lyra, mais tarde seriam
compositores gravados e interpretados por Elis Regina. De certa forma, mesmo que a
leitura dessas interpretações feitas por Elis não fossem introspectivas e “econômicas”,
como as da bossa nova, os compositores eram, surgiram e aprenderam música
influenciados pela bossa nova. Grande parte dos músicos que produziram a música dos
anos sessenta e setenta no país cresceu e formou seu gosto musical neste período.
Outro compositor amplamente gravado por Elis, Edu Lobo, ao ser questionado
quanto a fazer parte de uma geração politizada, responde:
“Para mim foi importantíssimo o convívio com o pessoal do teatro.Começou com o Guarnieri, com o pessoal do Teatro de Arena, de SãoPaulo. E aí minha música começou a tomar uma outra forma também.Quer dizer, eu comecei a gostar de trabalhar sob pressão. Nessa época,aprendi muito com essa experiência toda de teatro, como de cinema.Acabei também fazendo músicas para filmes e participando dosmovimentos todos e dos problemas todos, das censuras todas. Fui para oteatro de Arena um pouco por causa do Carlinhos Lyra; eu conheci oVianinha por seu intermédio. E aí sobrou pra mim. Fui chamado parafazer uma peça do Vianna, porque o Carlinhos, que trabalhava semprecom ele, estava nessa época envolvido com outros projetos. O Vianinhaentão me convidou para musicar a peça que estrearia o Teatro da UNE.”151
O produtor e idealizador dos futuros festivais musicais do período, Solano
Ribeiro, era ator do teatro de Arena que, já no final dos anos cinquenta, fazia montagens
150, MOTTA, Nelson. Noites Tropicais solos, improvisos e memórias musicais. Editora Objetiva, 2000, p.p.36.151 Entrevista realizada em 24 de agosto de 1999, com a participação de Santuza Naves, Kate Lyra,Heloísa Tapojós, Juliana Jabor, Micaela Moreira, Kay Lyra, Silvio Da-Rin e Daniel Carvalho. In: A MPBem discussão: entrevistas / Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho, Tatiana Bacal(Organizadores) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 239.
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de peças que traziam pela primeira vez ao palco temas da realidade brasileira, como por
exemplo, a peça Eles não usam Black Tie (de 1959). Em seu livro de memórias, Solano
relembra de seus tempos de teatro:
“Ao nosso elenco se juntara o ator Paulo José, cuja entrada no Arenasignificou sua saída do Rio Grande do Sul, e também o compositorCarlos Lyra, que veio do Rio para ensaiar com o elenco as músicas desua autoria que seriam cantadas na peça Revolução na América do Sul,de Augusto Boal, na qual acabei fazendo vários papéis.”152
Os depoimentos de Solano, assim como o de Carlos Lyra e Edu Lobo, nos
apontam uma característica marcante na área cultural desses primeiros anos sessenta,
presente no eixo Rio/São Paulo: a interação entre as diversas áreas artísticas (cinema,
teatro, música e literatura), empenhadas na idéia de uma arte revolucionária. Essas três
figuras estiveram presentes e foram marcantes na carreira artística de Elis Regina.
Retomaremos este assunto ao longo deste capítulo.
Através dos depoimentos citados, podemos identificar posturas políticas,
trânsitos artísticos e culturais e também o cenário musical e artístico da década de
sessenta.
De acordo com Marcos Napolitano, foi a partir do movimento bossa nova que os
estratos superiores das classes médias passaram a ver a música popular como um campo
respeitável de criação, expressão e comunicação. A bossa nova articulou essa forma de
inserção de um novo estrato social no panorama musical, sobretudo no plano da criação
e no consumo de música popular. Segundo o autor, a bossa nova foi a maneira com que
os segmentos médios da sociedade assumiram a tarefa de traduzir uma utopia
modernizante e reformista, que desejava atualizar o Brasil como Nação perante a cultura
ocidental. 153
Segundo Napolitano:“os anos de 1962 e 1963 demarcaram de fronteiras, muitas vezespostiças entre a bossa nova “jazzística” e a bossa nova “nacionalista”. Aquestão foi potencializada pela consagração da bossa nova no mercadointernacional ocorrida exatamente no mesmo período. No final de 1962,em 21 de novembro, a bossa nova foi atração principal de um eventoque acirrou ainda mais as polêmicas em torno do caráter nacional ou“entreguista” do novo gênero. Para João Gilberto e Tom Jobim, o showfeito no Carnegie Hall marcou a entrada triunfal dos dois no mercadonorte-americano, que acabou consagrando esses músicos no exterior,
152 RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração – A História dos Grandes festivais. São Paulo: GeraçãoEditorial, 2002, p.38.153 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP: 2001, p.24.
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onde desenvolveram boa parte de sua carreira. O que criou uma questãoparadoxal: os dois “fundadores” da bossa nova acabaram, em certamedida, entrando para o index dos artistas e intelectuais maisnacionalistas como exemplo de bossa nova “antipopular” e“entreguista”. Dos “pais fundadores” só Vinícius de Moraes conseguiumanter seu prestígio intacto junto aos nacionalistas de esquerda, sendoum dos arautos da “nacionalização” da bossa nova a partir de 1962”.154
De acordo com Renato Ortiz:
“Se os anos 40 e 50 podem ser considerados como momentos deincipiência de uma sociedade de consumo, as décadas de sessenta e 70se definem pela consolidação de um mercado de bens culturais. Existe,é claro, um desenvolvimento diferenciado dos diversos setores ao longodeste período. A televisão se concretiza como veículo de massa emmeados dos sessenta, enquanto o cinema nacional somente se estruturacomo indústria nos anos 70. O mesmo pode ser dito de outras esferas dacultura de massa: indústria do disco, editoria, publicidade, etc.” 155
Renato Ortiz observa que, para compreendermos a década de cinquenta e parte
da de sessenta, é necessário levarmos em consideração o sentimento de esperança e a
profunda convicção de seus participantes de estarem vivendo um momento particular da
história brasileira. A recorrente utilização do adjetivo “novo” traz todo o espírito de uma
época: bossa nova, cinema novo, teatro novo, arquitetura nova, música nova. O autor
considera significativo o fato de que várias das produções culturais do período se
fizeram em torno de movimentos, e não exclusivamente no âmbito da esfera privada do
artista. Bossa nova, teatro de arena, tropicalismo, CPC da UNE, eram tendências que
congregavam grupos de produtores culturais animados, se não por uma ideologia de
transformação do mundo, pelo menos de esperança por mudança. Nesse sentido,
podemos dizer que cultura e política caminhavam juntas, nas suas realizações e nos seus
equívocos. 156
Para Marcelo Ridenti, hoje podemos identificar com clareza uma estrutura de
sentimento que perpassou grande parte das obras de arte, especialmente a partir do fim
da década de cinquenta. Usando o termo de Benedict Anderson, Ridenti observa que
amadurecia um sentimento de pertença a uma comunidade imaginada, sobretudo nos
meios artísticos e intelectuais de esquerda, ligados a projetos revolucionários. Idéias e
sentimentos eram compartilhados, estava em curso a revolução brasileira, na qual
154 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP: 2001.155 ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira, Cultura Brasileira e Indústria Cultural. SP,Brasiliense, 1988, p.113.156 Idem, p.110.
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artistas e intelectuais deveriam engajar-se. 157Levanto, portanto, a seguinte questão:
Qual o papel exercido e ocupado por Elis no meio artístico deste momento? Essa e
outras questões serão respondidas ao longo desta dissertação.
Ridenti, ao refletir acerca de uma brasilidade revolucionária, afirma que essa
experiência foi a variante nacional de um fenômeno que se espalhou pelo mundo afora.
Além das especificidades locais – no caso brasileiro, as lutas pelas reformas de base no
pré-64 e contra a ditadura - o florescimento cultural e político na década de sessenta se
ligava a uma série de condições materiais comuns a diversas sociedades em todo o
mundo: o aumento quantitativo das classes médias; acesso crescente ao ensino superior;
peso significativo dos jovens na composição etária da população; um cenário crescente
de urbanização e consolidação de modos de vida cultural típicos das metrópoles e um
tempo de recusas às guerras coloniais e imperialistas. Isso, sem contar a capacidade do
poder instituído para representar sociedades que se renovavam e avançavam também em
termos tecnológicos, como por exemplo, o acesso crescente a um modo de vida que
incorporava ao cotidiano o uso de eletrodomésticos, especialmente a televisão. Somente
essas condições materiais não explicam por si só as ondas de rebeldia e revolução, nem
mesmo as estruturas de sentimento que as acompanham por toda parte. No entanto a
brasilidade revolucionária aconteceu frente às mudanças na organização social que se
constituíram certas estruturas de sentimento. 158
2.2 - O nacional-popular enquanto ato de conscientização
A arte engajada, após o golpe militar de 1964, tinha como meta modificar a
situação político-social do país e, em 1965, quando Elis estourou no cenário musical, a
situação ainda permitia que artistas de esquerda se manifestassem em movimentos
artísticos, o que se modificaria no ano de 1968 com a instauração do AI5. 159
De acordo com Marcos Napolitano, três importantes intérpretes - Nara Leão,
Elis Regina e Elisete Cardoso - em seus LPs lançados entre 1964 e 1965, procuraram
157 RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política. – São Paulo: EditoraUnesp, 2010.158. Idem, p. 95.159 AI5: Ato Institucional n 5, conhecido como “o golpe dentro do golpe”, onde os setores militares maisdireitistas lograram oficializar o terrorismo de Estado, que passaria a deixar de lado quaisquer pruridosliberais, até meados dos anos 1970. Ridenti In: O Brasil Republicano: o tempo da ditadura - regimemilitar e movimentos sociais em fins do século XX. RJ: Civilização Brasileira, 2003, p.152
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seguir uma nova orientação estético∕ideológica de “subida ao morro” e,
secundariamente, de “ida ao sertão”. Estes lugares eram considerados a essência da
brasilidade. 160Tanto o morro, como o sertão eram vistos como representativos da
nacionalidade brasileira, pois via-se neles o homem simples e, por isso mesmo, não
contaminado com aspectos de modernidade. Homem este que teve significativa
presença no repertório de Elis a partir de 1965.
Podemos pensar que a presença da temática romântica nos primeiros discos de
Elis está ligada a uma proposta de construção de uma carreira direcionada para os
ouvintes do rádio, no qual Elis trabalhava quando os lançou. A partir de 1965, percebo
uma clara modificação em seu repertório, onde sua construção passa a privilegiar
canções que falam do Brasil, do seu povo. Enquanto o repertório anterior a 1965
privilegiava quase que exclusivamente canções amorosas, este novo passa a abordar, em
sua maioria, canções de cunho social. Assim sendo, podemos afirmar que Elis passou a
buscar o popular desde então. Mas como se configurou essa busca? O que é esse
popular? Como Elis o canta? Ele se modificaria ao longo de sua carreira?
No seu livro “Em busca do povo brasileiro”, Marcelo Ridenti percorre os anos
sessenta e início dos setenta e percebe, nos meios artísticos e intelectualizados de
esquerda, o problema da identidade nacional e política do povo brasileiro como algo
central nestes meios. Essas raízes e a ruptura com o subdesenvolvimento já vinham
sendo buscadas há algum tempo. Adotando o conceito de romantismo revolucionário, o
autor percebe que este período foi marcado pela utopia da integração do intelectual com
o homem simples do povo brasileiro, supostamente não contaminado pela modernidade
capitalista, podendo dar vida a um projeto alternativo de sociedade desenvolvida. Esse
tipo de romantismo caracterizou as artes, as ciências sociais e a política do período. Esse
período também se caracterizou por procurar no passado uma cultura popular genuína,
para construir uma nova nação, antiimperialista, progressista, no limite, socialista.
Ridenti analisa os meios artísticos e intelectuais de esquerda, que se julgavam
populares, e não propriamente o povo. 161
Ridenti chama atenção para o fato de haver grupos mais românticos que outros,
mas todos respiravam e ajudavam a produzir a atmosfera cultural e política do período,
impregnada pelas idéias de povo, libertação e identidade nacional – idéias presentesde
160 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2001, p.107.161 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio deJaneiro: Record, 2000.
80
longe na cultura brasileira, mas, que a partir, especialmente dos anos cinquenta,
passaram a misturar-se com influências de esquerda, comunistas ou trabalhistas. O
romantismo das esquerdas não era somente uma volta ao passado, mas era também
modernizador. Buscava no passado elementos para a construção da utopia do futuro.
Visava-se resgatar um encantamento da vida, uma comunidade inspirada no homem do
povo, cuja essência estaria no espírito do camponês e do migrante favelado a trabalhar
nas cidades. A volta ao passado seria a inspiração para construir o homem novo,
propunha-se pensar a superação da modernidade capitalista cristalizada nas cidades e
não a mera condenação moral das cidades e a volta ao campo. 162
Segundo Ridenti, no início dos anos sessenta, a conjuntura nacional levou
muitos artistas a se aproximarem de propostas nacional-populares, a partir do final dos
anos cinquenta, militantes animados por ideais comunistas ajudaram a criar movimentos
artísticos e culturais importantes, autônomos e diversificados, como o Teatro Paulista do
Estudante, e o Teatro de Arena em São Paulo, os CPCs (Centros Populares de Cultura)
em todo Brasil, o cinema novo e as publicações da Editora Civilização Brasileira, do
comunista Ênio Silveira. 163
Entre sessenta e 62, um grupo de jovens cineastas, dentre eles Nelson Pereira
dos Santos, Ruy Guerra e Glauber Rocha, clamavam a necessidade de um cinema que
falasse do Brasil,não o Brasil moderno da bossa nova, mas o Brasil pobre, rural e
opressor. De acordo com Ridenti, falar do povo pelo povo, dar a palavra ao próprio
povo, as variantes e debates eram muitos, mas o centro continuava sendo a busca das
raízes do autêntico homem do povo, cuja identidade nacional seria completada
verdadeiramente no futuro, no processo da revolução brasileira. Essa busca do nacional
e popular marcou os filmes dos anos sessenta, particularmente do cinema novo, cujos
cineastas foram mudando ao longo do tempo, mas sempre conservando algum aspecto
de sua marca original: a vinculação, de algum modo, ao povo. A busca da brasilidade e
a estreita vinculação entre arte e política também marcaram as experiências do teatro a
partir do final dos anos cinquenta. 164
Nelson Motta, em sua biografia, nos relata suas memórias sobre Ruy Guerra:
162 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio deJaneiro: Record, 2000.p. 25.163Idem, p. 82.164 Idem, ibidem, p.102.
81
“Quando Edu (Lobo) conheceu Ruy Guerra, um cineasta moçambicanomuito politizado de temperamento polêmico, formado pelo Institute DesHautes Études Cinematographiques em Paris, que namorava Nara Leão,encontrou um amigo e um parceiro ideal. Juntos fizeram uma série demúsicas de inspiração nordestina, com melodias ricas sobre harmoniassofisticadas e letras sonoras e políticas, de denúncia social e dechamadas à transformação, como Réquiem e Canção da terra. Etambém canções líricas, mas com imagens fortes e carnais, opostas aosdiminutivos e romantismos da bossa de Copacabana, dos sucessos deMenescal e Bôscoli.” 165
Aleluia166e Reza167músicas frutos desta parceria (Ruy/Lobo), foram gravadas por
Elis. Este relato de Motta nos proporciona o indício da sociabilidade existente entre
músicos, cineastas, jornalistas e teatrólogos em encontros informais, dividindo entre si a
mesma proposta ideológica, descrita mais acima por Ridenti como romantismo
revolucionário. Ruy Guerra, aclamado membro do cinema novo, foi também um
compositor gravado por Elis Regina. Pode-se perceber neste fato o indício de um
diálogo existente entre a escolha musical coadunada com a temática do cinema novo. A
temática do cinema novo, assim como a música popular, almejava a vinculação, de
algum modo, com o povo. Os filmes buscavam retratar a realidade brasileira e seus
temas mais abordados estariam fortemente ligados ao subdesenvolvimento do país,
como se percebe em boa parte da música produzida neste período, afinal não eram todas
as músicas do período que tinham essa conotação.
De acordo com Echeverria, no final de 64, Elis arranjou um namorado. Solano
Ribeiro tinha 25 anos, e era um jovem politizado à procura de seu caminho. Trabalhava
na produção musical do programa Bibi Ferreira, na TV Excelsior, em São Paulo. Em
entrevista à autora, Solano relata:
“Existia um envolvimento político muito grande nessa época. Eu vinhado Teatro de Arena e era um radical aos 25 anos. Não admitia que Eliscantasse Tom Jobim, para se ver até onde chegava minha imbecilidade.Brigava muito com ela, e tenho a impressão que exercia uma grandeinfluência, porque ela se deixava mesmo influenciar. E ficou meiopolítica. Ela tinha uma cabeça aberta para cinema, literatura. Foi elaquem me levou para assistir Deus e o diabo na terra do sol, de GlauberRocha, no Cine Metrópole, em São Paulo.” 168
165 MOTTA, Nelson. Noites tropicais. Solos, improvisos e memórias musicais. Editora Objetiva, 2000, p.44.166 Parte do repertório do LP Samba eu canto assim (1965).167 Parte do repertório do LP Dois na Bossa (1965).168 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, p. 35.
82
Este relato nos informa sobre o interesse de Elis por cinema e pela literatura, e
como a politização se faria presente em sua vida, desde o início de sua carreira no Rio-
São Paulo, fosse através da influência exercida pelo namorado, ou mesmo pelos filmes e
peças que assistia. Aqui, vale lembrar que o filme Deus e o diabo na terra do sol169,
lançado em 1964, foi um filme muito significativo para o cinema brasileiro e que
certamente influenciou a vida artística de Elis, com seu conteúdo político/social
principalmente quanto à sua temática nacional-popular.
Outra citação de Motta nos faz refletir mais uma vez acerca do diálogo presente
no meio artístico, desta vez unindo música e teatro, tendo sempre como pano de fundo o
ideal de conscientização do povo brasileiro:
“Dori foi contratado para ser o diretor musical do show Opinião, criadopor Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Armando Costa e FerreiraGullar e dirigido por Augusto Boal, com Nara Leão dividindo a cenacom o sambista carioca Zé Keti e o compositor nordestino João doVale. Numa tarde de verão, olhando o mar de Copacabana, assistifascinado a uma reunião no apartamento de Nara, com Boal falandosobre a necessidade de fazer oposição ao governo militar, deconscientizar o povo, de denunciar as injustiças, prisões e perseguiçõese de integrar a música com os movimentos populares.” 170
No ano de 1965, além de frequentar o cinema, acompanhada pelo namorado
Solano171, Elis também frequentava peças de teatro. Nos mapeamentos musicais
realizados por Severiano e Mello, pode-se perceber não só a presença de Elis, como o
seu desejo em gravar parte do que ouvira inserido no espetáculo Arena Conta Zumbi:
“O ouvido apurado de Elis Regina para detectar o potencial de umacanção relativamente pobre e transformá-la em sucesso seria posto àprova pela primeira vez em Upa neguinho. A princípio grafada comoUpa negrinho, a composição era cantada por Gianfrancesco Guarnierina peça Arena Conta Zumbi, estreada no Teatro de Arena de São Pauloem 1.5.65. Refere-se sua letra a um personagem, menino cafuzo, aquem se pede pra crescer depressa, na expectativa talvez, de que um diapossa ajudar a melhorar um mundo onde a liberdade é apenas umaesperança. Em sua simplicidade, Upa neguinho era quase uma vinheta,que servia de ligação entre algumas cenas. Mas, ao ouvi-la, Elis bateupé e só sossegou quando obteve a permissão para gravá-la, quebrando a
169 Seu enredo conta a história de um sertanejo nordestino chamado Manoel e sua mulher Rosa e a sofridavida no interior do país, uma terra marcada pela seca. Manoel sentindo-se injustiçado por um coronel poruma questão de partilha acaba matando-o. Depois do assassinato decide juntar-se a um grupo religiosoliderado por um santo que lutava contra os grandes latifundiários e buscava o paraíso após a morte.170 MOTTA, Nelson. Noites tropicais. Solos, improvisos e memórias musicais. Editora Objetiva, 2000,p.70.171 Fato citado por Solano em seu livro RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração – A História dos Grandefestivais. São Paulo: Geração Editorial, 2002, e em depoimento à Regina Echeverria em ECHEVERRIA,Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007.
83
resistência de Edu Lobo, que tudo fez pra que ela desistisse. Aoapresentá-la em cena, Guarnieri era acompanhado por um trio de flauta,violão e percussão, já tendo a canção na ocasião a famosa introdução,com o acorde de quinta diminuta sob a quarta nota, que funcionavacomo um chamamento para o refrão: “Upa neguinho na estrada/upa pralá e pra cá/virge que coisa mais linda/upa negrinho começando aandar...”Mas, não existiam os breques com percussão, que seriamcriados por Elis nos versos “capoeira/posso ensinar/ziquizira/possotirar/valentia/posso emprestar/mas liberdade só posso esperar...” Elistambém acentuou com palmas e sem vocal a quarta repetição da fraseda introdução, que entoava “PA-ta-ta-trii-trii-triipa-ta-ta...”, fechandosua interpretação com um adorso final, que não existia na peça. Pode-seassim dizer que a cantora reinventou a música, ao adaptá-la ao seupróprio estilo. Isso ocorreu com mais duas canções da peça, tambémincorporadas ao seu repertório: A mão livre do negro, que virouEstatuinha, e Zambi no Açoite, transformada em Zambi...172
Considerando as citações analisadas como uma aproximação da realidade e a
ênfase na utilização de variadas memórias, tenho como objetivo elucidar como se
pensava a realidade brasileira, em uma tentativa de traduzir as sensações presentes
naquele momento. Através da análise dos depoimentos, percebe-se que os compositores
gravados por Elis, inseridos neste universo artístico dos anos sessenta, como Carlos
Lyra, Ruy Guerra, Edu Lobo, dentre outros, faziam parte de mais de um movimento
artístico, mostrando que as barreiras que as separavam não eram rigorosas, sequer
existiam.
Alguns artistas deste período, pelo menos os citados neste capítulo, tinham o
desejo de construir uma arte mais comprometida com a realidade social. Podemos
perceber um trânsito e fortes influências de idéias e concepções circulando entre os
cineastas, músicos, atores e também jornalistas; além da presença de Elis em teatros e
cinemas, levando para suas músicas conteúdos destas artes, como é o caso de Upa
neguinho, supracitado.
Espetáculos musicais, dentre eles o Opinião, que estreou no dia 11 de Dezembro
de 1964, traduziram um grande debate no cerne da cultura popular-nacional, que
passava por um momento de autoquestionamento. Depois do golpe militar, a ênfase se
voltou para os elementos populares, fazendo com que estes dessem sentido ao nacional,
antes do golpe era mais comum que o nacional configurasse o popular, e a canção
engajada era caracterizada por uma tentativa de adequação entre sofisticação estética e
pedagogia política, na busca de um produto cultural nacional de alto nível. A forma
assumida pela arte engajada para resolver o impasse entre “ser popular” ou
172 SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicasbrasileiras, vol. 2: 1958-1985. São Paulo: Ed. 34, 1998, pp.102-103.
84
“popularizar-se”, acabou conduzindo a novos impasses na medida em que, entre o
artista e o povo, se impunha cada vez mais a mídia e a indústria cultural, sobretudo na
música popular. 173
De acordo com Napolitano, a discussão se acirrava ainda mais quando entrava
em jogo a crescente indústria cultural e a questão do engajamento musical. Duas
posições se tornaram cada vez mais nítidas nessa discussão: os “nacionalistas”, que
desejavam fortalecer os “gêneros convencionais de raiz” e o conteúdo nacional-popular
da música brasileira, dentro da indústria cultural; e os “vanguardistas”, no sentido de
questionar o código cultural vigente na MPB, recuperando alguns parâmetros formais
da bossa nova. 174
Em um momento em que se discutia a questão da tradição e da modernidade, do
nacional e do estrangeiro, Elis Regina caminhava unindo essas duas vertentes e não
descartando e sim unindo essas duas vertentes; não abandonava o samba, considerado
“tradição”, apesar de sua interpretação lembrar muito a das divas do rádio; no entanto, a
modernidade pode ser percebida pela influência do jazz norte-americano em suas
músicas, visto como o que havia de mais “moderno” até então.
Na carreira de Elis, a partir de 1965, após sua mudança para o Rio e a com a
gravação do LP Samba eu canto assim, percebo que não havia uma barreira fixa entre os
conceitos “modernidade” e “tradição”, assuntos debatidos naquele momento, e sim que
Elis transitava entre os dois, se aproveitando e misturando ambos à sua maneira. Elis
buscava mesclar diversas influências, sem se atrelar fixamente a nenhuma delas. Elis
utilizou-se também do samba-jazz, no entanto bem diferente daquele adotado pela bossa
nova, com a utilização de pouco instrumental e foco no violão. A influência do jazz
aparece principalmente na execução dos instrumentos, bem como em sua escolha:
piano, bateria e baixo. Esses elementos se manifestam simultaneamente e, em especial,
nesta fase da carreira de Elis, que vai de 1965 até 1968, o que acontece depois deste
período será analisado no capítulo seguinte.
Privilegiou-se essa análise do nacional-popular em um trabalho sobre Elis, para
melhor entendermos o período no qual ela está inserida e de que maneira ela dialogou
com ele. A relação de uma artista com o denso movimento cultural dos anos sessenta
nos mostra como as outras artes influenciaram seu trabalho, já que Elis assistia a filmes
173 NAPOLITANO Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). 3 ed. – São Paulo:Contexto, 2006. – (Repensando a História), p.52.174 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2001, p. 107.
85
e também a peças teatrais que tratavam de um assunto comum, a realidade brasileira
com seus problemas e possíveis soluções. A maneira como se configurou o nacional-
popular em sua obra será abordado mais adiante, de acordo com cada LP lançado por
Elis a partir de 1965, quando a temática passa a fazer parte de seu repertório.
O povo brasileiro se configurou em tema presente nos diferentes meios artísticos
daquele momento. Reflexões sobre o cenário social e político se fizeram presentes nas
canções, peças175 e filmes176 do período. No entanto, minha análise tem como enfoque a
maneira como Elis Regina cantou este povo brasileiro, demonstrando seu papel
enquanto uma “cantora conscientizadora” através de seu trabalho artístico, afinada com
as propostas dos artistas de sua época.
2.3 – Elis e a televisão
De acordo com Sonia Wanderley:
“Após o golpe militar, por exemplo, artistas e escritores assimiladospela tevê, passam a vê-la como um espaço cultural que permitiria oresgate dos ideais do nacionalismo-popular, devidamente recicladospara fazer parte da indústria do entretenimento. A concepção de arteengajada, que marcou tão intensamente o debate político e cultural napassagem da década de 1950 para 19sessenta, adaptava-se à culturapopular de massa e aí encontrava um espaço.” 177
Segundo Renato Ortiz, pode-se perceber a década de 1950 como um período
marcado por uma série de improvisações e de experimentação na área da programação
televisiva, que ainda buscava sua estrutura definitiva. Segundo o autor, os
empreendimentos culturais de cunho mais empresarial se multiplicaram nos anos
cinquenta. Primeiro a introdução da televisão na cidade de São Paulo (1950), seguida de
sua expansão para outros locais: Rio de Janeiro (1950), Belo Horizonte (1955), Porto
Alegre (1959). Neste período, são formadas as primeiras entidades profissionais, como
175 Arena conta Zumbi, Opinião e outros.176 Os do cinema novo como Deus e o diabo na terra do sol, por exemplo.177 WANDERLEY, Sonia Maria de Almeida Ignatiuk. Eu vi o Brasil na tevê: Estado e televisão nos anos1950/sessenta. Artigo realizado para o XIII Encontro de História Anpuh-Rio, Identidades, 2008.
86
a Associação Brasileira de Agência e Propaganda (1958), e lançadas revistas
especializadas como Propaganda (1956). 178
Em 1952, o Brasil possuía dois milhões e quinhentos mil aparelhos de televisão,
número que sobe para quatro milhões e setecentos mil receptores dez anos depois. Em
1962, tinha-se, considerando a população total do país, uma razão de 6,6 aparelhos para
cada 100 habitantes, o que colocava o Brasil no 13° lugar dos países da América Latina.
Devido ao baixo poder aquisitivo de grande parte da população, havia uma dificuldade
real em se comercializar os aparelhos de televisão, que no início eram importados, e
somente a partir de 1959 começam a ser fabricados em maior número no Brasil.
Resumido no eixo Rio-São Paulo existiam somente alguns canais. Não havia sistema de
redes e os problemas técnicos eram consideráveis.179
Ortiz mostra, através do investimento publicitário nos diferentes meios de
comunicação e do limite do sistema televisivo como elemento de promoção comercial
em 1958, que as verbas aplicadas na TV atingiram 8%, contra 22% no rádio e 44% nos
jornais. Fato que mostra como as agências de publicidade preferiam os meios mais
“tradicionais” para anunciarem seus produtos. 180
A música popular brasileira triunfara na TV somente em meados dos anos
sessenta, quando o humor já se repetia e as telenovelas ainda não haviam encontrado um
formato ideal, como gêneros centrais da grade de programação das principais emissoras.181
Segundo Echeverria, chegando ao Rio, Elis procurou Armando Pittigliani na
Philips, que cumpriu sua promessa de contratá-la para gravar um disco. Elis abandonou
a CBS. Dois meses depois, em maio, assinou contrato com a TV Rio e foi escalada para
o Noites de Gala, programa célebre da época, um dos carros-chefe da emissora, onde se
apresentou ao lado de Marly Tavares, Trio Iraquitan, Jorge Bem e Wilson Simonal. No
programa, conheceu Dom Um Romão182, que a levou para o Beco das Garrafas, uma rua
apertada, a Rodolfo Dantas, em Copacabana. Desde a década de cinquenta, a lateral do
178 ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira, Cultura Brasileira e Indústria Cultural. SP,Brasiliense, 1988, p.44.179 Idem, p. 47.180 Idem, ibidem, p. 48.181 NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias: a questão da tradição na música popular brasileira.São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1º edição, 2007. (Coleção História do Povo Brasileiro), p.87.182 Instrumentista (baterista e percussionista). Compositor. Para maiores informações consultar:http://www.dicionariompb.com.br/dom-um-romao/biografia. Acessado em 21/02/2011.
87
37 abrigava, no térreo, uma sucessão de boates. No Little Club e Bottle’s, os pocket
shows eram produzidos e dirigidos pela dupla Miele e Bôscoli. 183
Assim Elis descreve seu início de carreira no Rio de Janeiro:
“Eu cheguei nos lugares pelas mãos que menos tinham a ver comigo.Fui trabalhar na TV Rio indicada por Paulo Gracindo. Eu faziaescolinha: Jorge, Marly Tavares, Simonal, Trio Irakitan e eu. OEdinho era professor e a gente aluno. Dom Um me ouviu cantar e meconvidou para cantar junto com ele, Salvador e Gusmão no Beco dasGarrafas. Eu era uma espécie de crooner do conjunto. Depois as coisasforam se aprumando, saí do Beco e fui para o Paramount e Festival,acabei no Fino da Bossa, acabei na televisão.”184[grifos meus]
Este depoimento de Elis nos oferece informações de que logo cedo, em sua
carreira carioca, a cantora faria parte da programação veiculada pela televisão. No
entanto, a televisão não era tão presente na vida dos brasileiros neste momento e sabe-se
que Elis foi uma importante peça nesta institucionalização da TV como um forte meio
de comunicação. 185
Sobre o período inicial de sua carreira carioca/paulista, Elis conta que:
“No fim de 64 fui chamada pelo Dom Um Romão para o Beco das Garrafaspara cantar com um conjunto dele. Não era bem uma crooner, mas uma cantoranova que eles estavam precisando para fazer o show. Aí começou o negócio queeu estava esperando a um tempo: fazer uma música que eu achava coerente comtodas as coisas que eu gostava. Uma música que harmonicamente fosse rica, quetivessem coisas a serem ditas, que tivesse um certo sentimento de duração, queperdurasse um pouco mais que um programa de televisão. Depois o WalterSilva me chamou para os Festivais de Música, aqui, no Teatro Paramount –eram aqueles famosos festivais contratados pelos Diretórios Acadêmicos devárias faculdades. Eu vim e fui ficando por São Paulo. Em seguida houve o1°Festival de Música, em 1965, eu ganhei,então veio o Fino da Bossa e aquelascoisas que todo mundo sabe.”186
Analisando as informações de Zuza Homem de Mello e outros autores187,
percebo que os primeiros formatos de programas musicais televisivos, já no final da
década de cinquenta, eram mesclados com humor, entrevistas e presença de pessoas
ilustres. Ainda incipiente, a programação apostava em várias frentes, como comédia,
números musicais e entrevistas, para agradar a uma larga faixa de espectadores.
183 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, p. 32.179 Programa MPB Especial produzido por Fernando Faro em 1973 pela TV Cultura.185 Ver em A síncope das idéias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: EditoraFundação Perseu Abramo, 1º edição, 2007. (Coleção História do Povo Brasileiro).186 “Elis: da necessidade de se manter viva.” Última Hora (21/07/74) Apud PACHECO, Mateus. Elis detodos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção. Dissertação (mestrado) – Universidade deBrasília. Departamento de História, 2009.187 Dentre eles CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. – São Paulo:Companhia das Letras, 1990.
88
No próximo tópico, analisarei a participação de Elis no programa musical O
Fino da Bossa. Este programa que, juntamente com outros programas musicais e os
festivais de música popular brasileira, modificaria o cenário televisivo brasileiro.
2.4 - O Programa O Fino da Bossa
Napolitano afirma que, o processo cultural que definitivamente ampliou o
público da MPB engajada e nacionalista, foi a aliança deste gênero com a televisão.
Como exemplo máximo desse processo, temos o programa O Fino da Bossa,
apresentado por Elis e Jair Rodrigues. Ao longo dos anos cinquenta, a televisão era uma
novidade acessível somente às faixas mais ricas da população das grandes cidades
brasileiras. Com a introdução do vídeotape (que permitia gravar, editar e reproduzir
programas, que até então eram feitos ao vivo), a televisão ganhou novos recursos e
aprimorou seu aparato tecnológico de produção e transmissão de programas. A partir de
1965 os programas musicais, sobretudo os festivais da canção, trouxeram novos
públicos para o veículo. 188
Considerando que grande parte do acervo da emissora TV Record foi destruído,
devido a um incêndio, na década de sessenta189, e perdido por causa de constantes
regravações de programas sobre materiais antigos, faremos uso de depoimentos e de
jornais referentes a esta época, além da análise dos LPs 2 na Bossa, que de certa forma,
podem ser caracterizados como uma extensão do programa O Fino da Bossa.
Segundo Solano, depois da vitória com Arrastão, no I Festival de Música
Brasileira, realizado pela Tv Excelsior, em 1965, em um momento de tênue
reconciliação entre os dois, causado pelo fim do relacionamento amoroso dos dois,
perguntou a Elis se gostaria de assinar um contrato com a TV Excelsior. Ela disse sim,
desde que pagassem seiscentos mil cruzeiros por mês. Na época, ela ganhava oitenta mil
na TV Rio. Kalil Filho levou a proposta a Edson Leite, o então diretor-geral, que deu a
resposta: “Não temos o que fazer com ela”. Poucos dias depois, em negociação
intermediada por Marcos Lázaro, Elis Regina assinava com a TV Record um contrato
de seis milhões de cruzeiros, para apresentar O Fino da Bossa, programa que deu início
188 NAPOLITANO Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). 3 ed. – São Paulo:Contexto, 2006. – (Repensando a História), p.55.189 Informações contidas no site: http://antecedentestelevisivos.blogspot.com/2007/10/incndios.html.Acessado em 03/01/2011.
89
à impressionante ascensão da Record. Com uma apresentação toda baseada em
musicais, desbancou a Excelsior e a Tupi, e depois, no festival de 1965, conquistou o
primeiro lugar nas pesquisas, onde permaneceu por alguns anos, e muitos milhões de
dólares. 190
O programa foi ao ar de 1965 a 1967 e, como apostou a TV Record, teve altos
índices de audiência em todo o seu período de existência; foi produzido pelo núcleo da
chamada equipe A, constituída por Manoel Carlos, Nilton Travesso, A. de Carvalho,
João Evangelista e Horácio Berlinck. Sua proposta era mesclar qualidade, popularidade,
tradição e modernidade da música popular brasileira, com um repertório claramente de
linha nacional-popular, o programa era comandado pela animação dos apresentadores
Elis e Jair, que cantavam, dançavam e recebiam convidados especiais no programa,
entrevistando-os ou realizando números musicais com eles. As músicas eram tocadas
pelo Zimbo Trio, e dentre os convidados figuravam nomes como Dorival Caymmi, Nara
Leão, Edu Lobo, Chico Buarque, Adoniran Barbosa, Ciro Monteiro.
O próprio título do programa, o Fino da Bossa, se encarrega de associar seu
nome às conquistas sonoras e consideradas modernas da bossa nova. No entanto, este
fato não impediria Elis e Jair de conciliarem a este outros gostos musicais; Elis tinha em
João Gilberto uma referência, mas também a tinha em Ângela Maria e Cauby Peixoto.
Nesta época, Elis juntava a sua adoração pelas grandes vozes do rádio, além da tradição
dos sambistas do morro.
Assim era definido o programa, em 1967, pelo Jornal do Brasil:“Com um excelente repertório, cantando músicas de Vinícius, CarlosLira, Baden Powell, Ataulfo Alves, Cartola e dos velhos compositoresdo samba, Elis Regina enquanto ampliava seu público, obrigava-o adiscutir e defender a música brasileira. (...) Houve uma época, emmeados de 1965 e começo de 1966, em que se formou, naturalmente, e– depois com uma linha de ação – um movimento Nacional de MúsicaPopular Brasileira. Elis Regina, em São Paulo, e Nara Leão no Rio deJaneiro, trabalharam sem cessar para divulgação da nossa música,enfrentando um grande adversário, que aqui chegou munido de todas asarmas, com uma engrenagem publicitária colossal: o iê-iê-iê.” 191
Um jornal de amplo alcance e reconhecimento dava à Elis o status de defensora
e divulgadora da música nacional brasileira, juntamente com Nara. É interessante
190SOLANO, Ribeiro. Prepare seu coração – São Paulo: Geração Editorial, 2002, p. 74.191 “Dois anos de Bossa com sucesso”. Jornal do Brasil (28/05/1967) Apud PACHECO, Mateus. Elis detodos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção. Dissertação (mestrado) – Universidade deBrasília. Departamento de História, 2009.
90
notarmos o caráter de guerra que o jornal visualiza em uma situação de embate com a
Jovem Guarda.
Em 1974, Elis responde à Revista Veja:
“... aparecia muita gente nova (ou muito antiga) para fazer o Fino. Contudo, pormais extenso que fosse, não havia espaço para todos. E, em vez de assumirem aresponsabilidade pelos cortes, os responsáveis pelo programa jogavam-na paracima de mim, dizendo que eu não gostava deste ou daquele, que preferia umterceiro. Ora, meu temperamento, de fato, sempre foi explosivo, difícil.Juntavam-se as duas coisas, o boato e a minha personalidade irritadiça, e pronto– nascia a fama.”192
De acordo com Napolitano, o Teatro Paramount unia, em seus shows
universitários, o samba “autêntico” à música moderna, aprofundando a busca da síntese
entre a bossa nova “nacionalista” e a tradição do samba. Espetáculos esses que,
posteriormente, se transformariam no programa O Fino da Bossa. Essas apresentações
passaram a representar uma cultura de oposição jovem, nacionalista e de esquerda, mas,
ao mesmo tempo, sofisticada e moderna. 193
É interessante pensarmos nos agentes que criaram estes rótulos e também o que
eles significam, pois muitas vezes o povo que se buscava representar não estava de fato
representado nestes espaços e músicas ditas “nacionalistas”. Estes rótulos, muitos deles
criados por intelectuais, jornalistas e artistas engajados, ao tentarem descrever a música
deste período, acabavam por reproduzir determinados jargões, como samba “autêntico”
ou de “oposição” sem, no entanto, dar voz a esse povo idealizado e em pouco contato
com os criadores de certas ideologias.
De acordo com Napolitano:
“Os musicais de televisão eram antigos, mas até o início dos anossessenta disputavam o público com o rádio. Com os musicais semanais,(O Fino da Bossa, Bossaudade, Ensaio Geral, entre outros) consolidou-se uma nova linguagem musical e televisiva. Elis Regina, que, ao ladode Jair Rodrigues, comandava o programa, agradava ao gosto musicaldos ouvintes do rádio, introduzindo as novidades e estilos musicais dabossa nova. O sorriso e o gestual de Elis, considerados por muitosexagerados, eram perfeitos para o novo veículo, criando uma empatiacom a sensibilidade do público mais amplo, que permanecia ao largodas sutilezas de João Gilberto, Tom Jobim e outros.” 194
Elis declarou a importância do programa em sua vida:
192 LANCELLOTTI, Silvio. (entrevistador). “Quero apenas cantar”. Revista Veja 01/05/1974.193 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2001, p.sessenta.194 NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). 3 ed. – São Paulo:Contexto, 2006. – (Repensando a História), p.55.
91
“O Fino da Bossa pra mim foi tudo. Foi tudo de bom e tudo de ruimque podia acontecer na vida de uma pessoa. Evidentemente depois depassado o tempo eu tenho saldo positivo maior que o negativo. Muitosequívocos foram criados e foram gerados por causa do Fino da Bossa.Ao mesmo tempo que muita gente ficou satisfeita porque apareceu noFino da Bossa houve muita gente que não pôde aparecer no Fino daBossa. O Fino da Bossa tinha como líder uma pessoa geniosa,temperamental e que tem o péssimo defeito de dizer tudo o que pensaou seja, uma pessoa que não nasceu para viver em sociedade, Em cimadessa sinceridade muita coisa de verdade e de mentira foram ditas...”195
Em outra entrevista Elis conta que:
“Acho que a minha prática de baile é que segurou a barra do Fino daBossa. O negócio de crooner de orquestra, de conjunto instrumental foio que segurou. Tinham dois cantores brasileiros que eu gostava. Um erao Cauby Peixoto (...). Agora, eu cantava muita coisa do Chet Backer, doNat King Cole. Tenho a impressão de que me liguei mais nessa do JoãoGilberto porque já tinha ouvido o Chet Backet num disco que ele tocapiston e canta. Quando pintou o João Gilberto houve uma espécie desimbiose, uma ligação muito forte. Eu não procurava cantar como eles,observava muito a técnica de emissão, sustentação de nota, essas coisas.O vibrato era uma coisa que me fascinava muito, e neles, quaseinexistia. É a marca dos dois. Mas na hora de cantar mesmo, eu meligava mais na mulherada, no jeito que a mulher cantava.Quando eupintava cantando, pintava de Ella Fitzgerald, essas coisas.No Brasil,Ângela Maria nota 10.”196
Esta citação além de nos informar sobre a formação musical de Elis, que reunia
cantores de rádio brasileiros, como Cauby, cita também importantes nomes do jazz.
Evidencia, ainda, o fato de que Elis observava as técnicas utilizadas por estes cantores,
como a emissão e sustentação de notas, mais uma vez nos indicando que sua
aprendizagem muitas vezes se processou pela escuta. Sua predileção por Ângela Maria
também se reafirma aqui. Elis cita as apresentações como crooner como as responsáveis
por sua desenvoltura e versatilidade, no entanto, não esclarece se estas apresentações
foram aquelas feitas ainda em sua adolescência no Rio Grande do Sul, ou se foram as
realizadas já no Rio de Janeiro, ou ambas.
Jair Rodrigues, em 1991, no programa Ensaio, além de contar fatos de sua
infância, sobre o início de sua carreira e suas influências musicais, fala sobre o
programa O Fino da Bossa:
195 Programa MPB Especial produzido por Fernando Faro em 1973 pela TV Cultura.196 Texto do encarte do cd Elis no Fino da Bossa ao vivo volume 2.
92
“1965 é uma fase que ninguém pode esquecer, foi áurea para a músicapopular brasileira, muito boa, espetacular para quem tava começando,quem queria começar. Me lembro que fui chamado por Corumba (seuempresário) quando estava jogando futebol. Ele mandou trocar deroupa, tomar um banho que teria um ensaio, que eu iria fazer um show.Fui para o Teatro Paramount, me lembro que era dia 8 de abril de 1965.Cheguei, dei de cara com Walter Silva que disse que eu iria apresentar oespetáculo com Elis Regina. Cido era o pianista, Sabá irmão do LuizChaves do Zimbo Trio e o baterista Toninho. Nada menos que osimplesmente fabuloso Jongo Trio. Eu já tinha um certo nome, já tinhagravado Deixa que digam e também Feio não é bonito e O Morro nãotem vez em 63, 64. O Walter Silva pediu algo para o final e com umcaderninho eu e Elis escolhemos aqueles pot-pourris de samba.”197
Walter Silva, em seu livro de memórias, nos conta que o sucesso do show O
Fino da Bossa, produzido pelos meninos da Faculdade de Direito do Largo de São
Francisco, tendo à frente Horácio Berlinck, tinha animado as outras faculdades, que,
visando angariar fundos para suas instituições, geralmente beneficentes, viam na nova
maneira um caminho útil para realizarem seus anseios. Silva conta, ainda, que passou a
ser procurado por estudantes de várias faculdades, que solicitavam a produção de
shows. Esse show sem nome teria que ficar três dias em cartaz e apresentava uma
cantora que já havia sido testada pelo público e começava a aparecer, Elis Regina, e Jair
Rodrigues. Ao contrário do que afirma Motta, Silva diz que não produziu o show, mas
que colaborou na divulgação, através de seu programa e na produção do disco, lançado
posteriormente pela RGE. O autor salienta ainda que, tempos depois, a TV Record
contratou todos os artistas lançados por ele no Paramount e estreou um programa com o
título O Fino da Bossa, utilizando-se do título que Horácio Berlinck havia produzido
para o Centro acadêmico XI de Agosto. A Record foi processada e obrigada a retirar o
nome do programa, que passou a chamar-se apenas O Fino.198
De acordo com Mello, havia também outros programas musicais como o
Bossaudade, apresentado por Cyro Monteiro e Elizete Cardoso, estreando na TV
Record, com o Regional do Caçulinha, em 1966. Os três programas Bossaudade, O
Fino da Bossa e Jovem Guarda atendiam praticamente a todas as tendências da música
popular brasileira, genericamente rotuladas como bossa nova, velha guarda e jovem
guarda respectivamente.199
197 Jair Rodrigues. Programa Ensaio – 1991. Produzido pela TV Cultura. Programa dirigido por FernandoFaro.198 SILVA, Walter. Vou te contar – Histórias de música popular brasileira. – São Paulo: Códex, 2002.199 MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo: Ed. 34, 2003. (Coleçãotodos os Cantos), p.114.
93
Segundo Mello, no verão de 1966, enquanto Elis viajava pela Europa, a
audiência do Jovem Guarda crescia assustadoramente, alavancada pelo sucesso de
Roberto Carlos, Quero que vá tudo pro inferno. Quando Elis retornou, no dia 5 de
março, encontrou um ambiente completamente diferente do que deixara em dezembro.
O Fino perdia feio para o Jovem Guarda, em termos de audiência, a juventude da bossa
era dominada pela galera do iê-iê-iê. 200
Ao tratarmos deste período, é imprescindível levarmos em conta o debate
estético que se travou nesta época acerca das verdadeiras raízes da Moderna Música
Popular Brasileira, que se confundia com questões político-ideológicas. Em 1967, no
dia 18 de Julho, sairia do Largo São Francisco, no centro de São Paulo, seguindo até o
templo da bossa nova, o Teatro Paramount, uma passeata pela MPB contra as guitarras
elétricas. O evento tinha à frente Elis Regina, Gilberto Gil, Jair Rodrigues, Edu Lobo,
dentre outros. A passeata era, na verdade, um evento de lançamento do novo programa
da Record, Noite da MPB, que deveria suceder O Fino da Bossa, porém acabou sendo
vista como uma manifestação ideológica contra a turma do iê-iê-iê. Em relação a esa
passeata, Caetano Veloso declarou que: “... Ficou claro para nós que todo aquele
folclore nacionalista era um misto de solução conciliatória para o problema de Elis
dentro da emissora e saída comercial para os seus donos...”. 201 Este episódio é um fato
relevante a ser analisado nesta dissertação, uma vez que demarca uma forte adesão de
Elis ao problema ideológico nacionalista, tão debatido naquele momento, a ponto de
estar à frente de tal passeata.
De acordo com Mello, a Record tentaria solucionar a crise do Fino substituindo-
o e se aproveitando do chavão político da Frente Ampla entre Carlos Lacerda, Juscelino
Kubitschek e Jango – Frente Única – Noite da Música Popular Brasileira, com os
principais contratados da emissora, Elis, Jair, Vandré, Simonal, Chico, Nara e Gil, que
levou Caetano a tiracolo, em uma clara tentativa de reconduzir Elis aos índices de
audiência que tivera. No entanto, o programa não emplacou e não chegou a completar
três meses de existência sequer. Foi uma fase de “maré baixa” para Elis.202
200 MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo: Ed. 34, 2003. (Coleçãotodos os Cantos), p. 119.201 Caetano Veloso Apud COUNTIER, Arnaldo. Edu Lobo e Carlos Lyra: a nacional e o popular nacanção de protesto. Revista Brasileira e História, v.18, n. 35, ANPUH, 1998. p. 13-52.202 MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo: Ed. 34, 2003. (Coleçãotodos os Cantos), p. 178.
94
2.5 – Elis nos festivais
Mello afirma que, a partir do I Festival da Excelsior, do qual Elis sairia campeã,
programas musicais na televisão seriam outra coisa, uma coisa única no mundo. Ele diz,
ainda, que pela primeira vez na história da televisão brasileira, quem estava em casa
teria um contato direto com o que acabava de sair do forno, a nova usina de produção da
música popular, a privilegiada geração dos anos sessenta. Na sua opinião, esse público
tinha liberdade de avaliar de imediato a nova canção, influenciado ou não pelas platéias.203
Solano Ribeiro criou, na TV Excelsior, o I Festival de Música Popular Brasileira
e depois foi para a Record, onde criou os Festivais da Record.204 A intenção de Solano
em sua autobiografia é contar sua trajetória profissional, avaliando a importância que
teve o período chamado por ele de “o ciclo dos festivais”, que vai de 1965 a 1972, e
para ele a importância deste ciclo se deve ao fato de peculiaridades políticas, sociais e,
por que não dizer, musicais.205De acordo com Solano:
“Os festivais romperam o ritual das gravadoras e do rádio, tendo setransformado na grande porta para o novo. Também passou a ser nova apostura da televisão em relação à música popular, tendo sido, ao mesmotempo, sua maior divulgadora e beneficiária (... ) A repercussão e osucesso dos festivais não teriam acontecido não fosse a escolha datelevisão como seu veículo, que então começava a ter coberturanacional e dava os primeiros passos no conceito de rede, na época jáconsagrado como sistema (network) nos Estados Unidos.” 206
Solano descreve que, no Brasil, as gravadoras eram, em geral, ligadas às suas
matrizes internacionais que, por sua vez, direcionavam a política e a filosofia do que
deveria ser gravado e tocado nas rádios. O autor afirma, ainda, que não conseguiria
fazer um trabalho isento, se dependesse da indústria do disco, embora soubesse que, no
caso do sucesso do festival, ela seria sua maior beneficiada e esse sucesso, mais pra
frente, dependeria do interesse dessa mesma indústria pelos artistas e músicas que ele
iria lançar. Solano resolveu que, para sua independência e lisura do festival, não
permitiria a participação de qualquer editora ou gravadora. Sua estratégia era colocar no
203 MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo: Ed. 34, 2003. (Coleçãotodos os Cantos), p. 74.204 RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração. São Paulo: Geração Editorial, 2002, p.10.205 Idem, p.14.206 Idem, ibidem, p.16.
95
mercado uma porção de músicas, cantores, cantoras e conjuntos musicais, e as
gravadoras que se servissem, de acordo com a sua agilidade e competência.207
Outro importante relato informativo dos festivais é o de Mello:
“Carlos Lyra, Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo, este por suas ligaçõescom o cinema, foram os três compositores que se envolveram de corpoe alma nesse processo em que Chico de Assis, Ruy Guerra e GlauberRocha exerceram influência decisiva. Eles perceberam que a canção,além de expressar seus sentimentos pessoais, também poderia abordar arealidade concreta. A partir desse momento, suas obras dão um saltoimenso e inesperado. A inocência de Lobo bobo, de Lyra e RonaldoBôscoli, parece brincadeira diante de Maria do Maranhão, de Lyra eNelson Lins de Barros. As novas letras atualizam a emoção musical,com diferenças palpáveis tanto em relação às da chamada Época deouro, dos anos 30 e 40, da qual não fazem parte, quanto às do seu berçomusical, a Bossa Nova. As letras desse período, que podiam sercantadas para as namoradas, como entoava Dick Farney, representavamo indivíduo classe média, aquele que podia possuir um barquinho,enquanto as da fase de ouro abordavam sobretudo a ingratidão e amalandragem, temas renegados pela bossa nova. Já o conteúdo dasnovas letras não era nem uma coisa nem outra: abordava o homembrasileiro comum, o que nada possuía, retratando a situação do povobrasileiro naquele momento e o que era preciso fazer para que eletivesse um destino mais feliz. Era essa a realidade tematizada pelo quese conheceria, nos anos seguintes, como música de festival.” 208
Este relato de Mello nos indica que o tema das injustiças nacionais imperar
nestas letras, chegando mesmo a se configurar como militância, pela resistência
democrática e a serviço da luta política, demonstrando que a música do período era uma
espécie de demanda, uma força de resistência contra o regime.
Analisando a presença de Elis nos festivais, 209percebo que poucas foram as suas
participações. Na verdade, ela participou com constância, até meados de 1968, quando
ela parou de participar. Os festivais serviram para impulsionar sua carreira, mas uma
vez consagrada, ela parecia não precisar mais desses espaços. A sua participação e
vitória no primeiro dos festivais veiculado pela televisão foram de grande importância
para sua carreira, pois foi depois disso que Elis passa a apresentar um programa de
televisão juntamente com Jair Rodrigues; é como se o festival a apresentasse e
mostrasse seu potencial para o grande público.
207 RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração. São Paulo: Geração Editorial, 2002, p.68.208 MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo: Ed. 34, 2003. (Coleçãotodos os Cantos), p. 51.209 Informações contidas em A Era dos Festivais: uma parábola, pp. 438-489.
96
De acordo com Napolitano:
“A letra de Vinícius dava seqüência à temática “popular” apontando aunião dos pescadores para vencer as dificuldades de sobrevivência, comcitação ao sincretismo religioso submetido a um uso “consciente” echeio de vitalidade... Através de contornos melódicos que valorizavamos contrastes entre tensão e repouso, sobrevalorizados pela quebra deandamento, a melodia de Arrastão ganhou na voz de Elis um poder decomunicação inusitado para o campo da moderna MPB, demonstradoum novo estilo de “bossa”, na qual a intensidade da voz volta a ser umdos parâmetros principais de interpretação... o retorno de algunsparâmetros “tradicionais” da música popular, como a intensidade vocal,o gestual expressivo e os timbres mais metálicos, ao mesmo tempo emque foram ao encontro de um público mais massivo, pouco adaptado àbossa nova “original”, causaram algum mal-estar entre aqueles quedefendiam a “linha evolutiva” 210 da música brasileira. 211
Sobre o segundo festival, em que Elis ganharia o primeiro lugar, temos o relato
de Solano Ribeiro, que afirma que o protesto dos sambistas, endossado por jornalistas e
críticos de música, principalmente os do Rio de Janeiro, reclamando que o samba não
tinha tido uma presença marcante nos festivais, fez com que fosse criada a Bienal do
Samba em 1968. O sucesso do programa Bossaudade, apresentado por Ciro Monteiro e
Elizete Cardoso, com um elenco basicamente “velha guarda”, justificava ainda mais
essa experiência. Tratou-se de um evento competitivo, cujos participantes foram
escolhidos por uma comissão especial. O resultado final foi: Lapinha, composição de
Paulo César Pinheiro com Baden Powell, cantada por Elis Regina. Com o apoio dos
Originais do Samba, esse número dominou a Bienal desde a sua primeira apresentação e
se tornou imbatível. Além de levar Lapinha ao primeiro lugar, Elis foi, também, a
melhor intérprete. Em segundo lugar ficou Bom Tempo, de Chico Buarque, em terceiro
Pressentimento, de Élton Medeiros e Hermínio Belo de Carvalho.212 Esse fato é de
extrema relevância para nossa análise, uma vez que, em um evento criado com o intuito
de revalorização do samba, Elis Regina não só foi escolhida para representar uma
canção, como saiu vitoriosa, levando o título de melhor intérprete também.
As duas músicas que levaram Elis a ganhar o primeiro lugar nos festivais dos
quais participou, Arrastão e Lapinha213 são músicas que se assemelham em sua
210 Este termo foi criado por Caetano Veloso em meado dos anos sessenta e colocava a bossa nova comomarco zero da música popular brasileira.211 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2001, p. 150.212 RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração. São Paulo: Geração Editorial, 2002, p.93.213 Arrastão: Eh! Eh! Eh! Hoje tem arrastão/ Eh! Todo mundo pescar/ Chega de sombra e João jô vi/Olha o arrastão entrando no mar sem fim/ É meu irmão me traz Iemanjá prá mim/ Olha o arrastãoentrando no mar sem fim/ É meu irmão me traz Iemanjá prá mim/ Minha santa Bárbara me abençoai/Quero me casar com Janaína/ Eh! puxa bem devagar/ Eh! Eh! Eh! Já vem vindo o arrastão/ Eh! É a rainha
97
temática, ambas falam do homem simples, do trabalhador brasileiro, que precisa
trabalhar para sobreviver e que nunca desiste de lutar. Arrastão conta a história de um
pescador que pede auxílio a seus irmãos e a diversos deuses, misturando a religiosidade
afro-brasileira, representada na figura de Iemanjá, com santos católicos, como Santa
Bárbara e Senhor do Bonfim. No entanto, não há nenhuma presença de instrumentos ou
ritmos tocados nos rituais religiosos afro-brasileiros no arranjo. A segunda música trata
da história de um capoeirista, que como último desejo, pede para ser enterrado na
Lapinha com seus pertences, indignado com os erros que viu, lutou, sofreu e por tudo o
que perdeu. .
O trabalho constitui o tema central e também a luta, seja por sobrevivência ou
para se modificar a realidade instaurada. Mesmo tendo suas diferenças – o pescador
como uma figura do trabalhador, o capoeirista, normalmente associado à imagem de
malandro – os personagens destas duas canções se comunicam a partir da constatação
de um cotidiano marcado por dificuldades impostas pela desigualdade social.
Podemos pensar, através destas músicas, na maneira como os artistas deste
período percebiam a realidade brasileira. O homem simples, do povo, o sertanejo de
Glauber Rocha, o capoeirista de Baden e Paulo César Pinheiro, o pescador de Edu
Lobo, são a representação do próprio povo brasileiro e há neles uma marcante força de
luta e de indignação com o sistema vigente.
No entanto, o conhecimento popular, que poderia ser representado através dos
instrumentos ou dos modos de tocar e cantar dos capoeiristas ou de puxadas de rede,
não são sequer mencionados. Deve-se, no entanto levar em consideração as diferentes
formas de se manifestar e construir esse conhecimento do popular, seja através das
letras, ou mesmo a partir de parâmetros musicais, como os arranjos, por exemplo. Os
sujeitos que criam e colocam esses parâmetros em diálogo nem sempre são os mesmos,
aliás, normalmente não são.
do mar/Vem, vem na rede João prá mim/ Valha-me nosso senhor do Bonfim/ Nunca, jamais se viu tantopeixe assim/ Valha-me senhor do Bonfim/ Nunca, jamais se viu tanto peixe assim.Lapinha: Quando eu morrer me enterre na lapinha/ Calça, culote, palitó almofadinha/ Vai meu lamentovai contar/Toda tristeza de viver / Ai a verdade sempre trai / E às vezes traz um mal a mais/ Ai só me fezdilacerar/ Ver tanta gente se entregar / Mas não me conformei / Indo contra lei/ Sei que não me arrependi/ Tenho um pedido só/ Último talvez, antes de partir / Sai minha mágoa/ sai de mim /Há tanto coraçãoruim /Ai é tão desesperador/ O amor perder do desamor / Ah tanto erro eu vi, lutei/ E como perdedorgritei / Que eu sou um homem só / Sem saber mudar / Nunca mais vou lastimar/Tenho um pedido só /último talvez, antes de partir/Adeus Bahia, zum-zum-zum
cordão de ouro/ eu vou partir porque mataram meu besouro
98
A música Arrastão manifesta esse conhecimento do popular somente através da
letra. Já Lapinha, mescla instrumentos do samba, como cuíca, tamborim, pandeiro e
cavaquinho, no entanto, os instrumentos da capoeira, assim como suas divisões rítmicas
características, atabaques, caxixis e berimbaus, não estão presentes no arranjo, ou seja,
está presente a idéia do nacional-popular na letra e o popular é representado através do
samba.
Elis participou, ainda, do II Festival da Música Popular Brasileira da TV Record,
em 1966, ficando com a quinta colocação, com uma música de Gilberto Gil intitulada
Ensaio Geral. Ficou entre os finalistas no I Festival Internacional da Canção Popular
em 1966, realizado pela Secretaria de Turismo da Guanabara e TV Rio, mas não ficou
entre os vencedores. No III Festival da Música Popular Brasileira de 1967, realizado
pela TV Record, ficou entre os finalistas e ganhou como melhor intérprete, com a
música O cantador de Dori Caymmi e Nelson Motta.
Ensaio Geral fala das fantasias e da beleza do carnaval e O cantador, do ofício
de cantar. Nenhuma das canções traz algum tipo de analogia com questões referentes à
política ou que denunciem algum tipo de problema social, indicando, portanto, que a
escolha da temática nacional-popular, pelo menos no que tange a obra de Elis, foi
importante para que Elis conquistasse a vitória nos festivais dos quais participou.
2.6 - Os LPs 2 na bossa
Acredito ser necessário priorizar a análise dos LPs Dois na Bossa em separado,
por eles poderem ser compreendidos como uma extensão do programa O Fino da
Bossa.
Refletindo acerca dos critérios utilizados nesta análise, saliento que é grande a
complexidade em dividir a temática nacional da política neste momento no qual o Brasil
estava inserido, em meados dos anos sessenta. Ambas as temáticas, nacionais e
políticas, se referem a denúncias ligadas e referentes à cultura brasileira de alguma
forma. Também estão, de certa maneira, caracterizando-se enquanto atos simbólicos de
percepção e denúncia da realidade social brasileira. As músicas enquadradas na temática
nacional também podem ser consideradas neste momento enquanto políticas, uma vez
que neste período a busca por compreensão das “verdadeiras” questões nacionais se
configurava também em um ato político. No entanto, classifiquei como políticas as
99
músicas que falam da situação social brasileira sem elogiá-la, ou romanceá-la, como
fazem as canções de temática nacional.
As menções ao negro e às favelas, apesar de denunciarem uma questão
problemática da sociedade brasileira, a má distribuição de renda, são descritos nestas
canções, consideradas aqui enquanto nacionais, como representantes de autenticidade da
nação brasileira. Aponto como temática política as canções que não utilizam estas
questões enquanto caracterizadoras de positividades, mas como denúncia das mazelas
da sociedade, estas canções políticas não dizem em tom de elogio e sim de denúncia,
mesmo que às vezes as façam metaforicamente, como veremos em algumas canções a
seguir.
Diferentemente da análise realizada no capítulo anterior, onde os gêneros
executados eram inúmeros e a temática praticamente quase não variava, não realizarei
aqui a análise dos gêneros, pois a maior parte das canções se configura enquanto samba-
jazz, assim sendo, não demarcarei esta questão. Enfatizarei a modificação da temática
que deixa de se configurar como amorosa em quase sua totalidade.
Em 1965, Elis lança o LP Dois Na Bossa, junto com Jair Rodrigues, e O Fino do
Fino com o Zimbo Trio, conjunto que a acompanhava na apresentação do programa.
Em 1966, lança Dois na Bossa número 2 e Elis. Em 1967, Dois na Bossa Número 3.
O primeiro LP Dois na Bossa214 se inicia com um pot-pourri de sambas, nos
quais os temas relacionados à situação do negro/favela são quase unanimidade nas
letras. O samba é ovacionado, e o morro cantado como um local que precisa ser
descoberto, pois é visto como um local de alegria e pureza. São feitas duas citações a
orixás do candomblé, Xangô e Ogum, no entanto, não há nenhuma menção aos ritmos
tocados para eles nos terreiros. São sambas divididos meio a meio entre “compositores
nacionalistas” como Lyra, Tom, Vinícius e Ruy Guerra e os da “tradição” como Cartola,
Elton Medeiros, Zé Keti e outros.
214 Lançado pela Companhia Brasileira de Discos/Philips em 1965. Gravado ao vivo no Teatro Paramountem São Paulo. Foi produzido por Walter Silva. Direção artística de Mário Duarte e técnicos de gravaçãoManoel Barenbein e Rogério Gauss e o layout de Rodrigo Octavio.
100
Quadro 2 - Temáticas das músicas do LP Dois na Bossa215
Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Temática política:
Pot-pourri
A felicidade/ O sol
nascerá/Vou andar por
aí
O morro não tem
vez/Feio não é
bonito/Samba do
carioca/ Samba de
negro/Diz que fui por aí
/A voz do morro
Acender as velas/Esse
mundo é meu
Preciso aprender a ser
sóX
Ziguezague X
Terra de ninguém X
Arrastão X
Reza X
Tá engrossando X
Deus com a família X
Ué X
Menino das laranjas X
Fonte: Dois na Bossa- Elis Regina e Jair Rodrigues. CBD/Philips, 1965.
A maior parte do LP se constitui de temática nacional e tem o trabalhador
negro/nordestino como peças centrais da denúncia da exclusão social. As letras falam
sobre estes personagens, e não são escritas por eles. Carlos Lyra e Edu Lobo são
compositores pertencentes à classe média, são compositores que falam do povo, mas
215 Lado A: Pot-pourri: O morro não tem vez(Tom Jobim, Vinícius de Moraes), Feio não é bonito(CarlosLyra, Gianfrancesco Guarnieri),Samba do carioca(Carlos Lyra, Vinícius de Moraes),Esse mundo émeu(Sérgio Ricardo,Ruy Guerra)A felicidade(Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Samba de negro(RobertoCôrrea e Sylvio Son)Vou andar por aí(Newton Chaves),O sol nascerá(a sorrir)(Cartola, EltonMedeiros),Diz que fui por aí(Zé Kétti, H. Rocha), Acender as velas(Zé Keti),A voz do morro(Zé Keti), Omorro não tem vez(Tom Jobim, Vinícius de Moraes) / Preciso aprender a ser só(Marcos Valle, PauloSérgio Valle) / Ziquezague(Alberto Paz, Edson Menezes) / Terra de ninguém(Marcos Valle, PauloSérgio Valle) / Lado B: Arrastão(Edu Lobo, Vinícius De Moraes) / Reza(Edu Lobo, Ruy Guerra) / Táengrossando(Alberto Paz, Edson Menezes) / Deus com a família(César Roldão) / Ué(Osmar Navarro,Alcina Maria) / Menino das laranjas(Théo).
101
não diretamente para eles, uma vez que a classe ouvinte destas canções engajadas era
um público de classe média, intelectualizado.216
A escolha de repertório é bastante significativa e se coaduna com o que vem
sendo apresentado nesta dissertação, como a busca do que vem a ser o Brasil. São
gravados tanto grandes nomes do samba, como de intelectuais de esquerda que viam na
favela um lugar de pureza e autenticidade nacional.
Dentre as dez músicas, duas são cantadas pela dupla, três apenas por Jair e
cinco só por Elis, destacando uma presença maior de Elis Regina nestas gravações. Os
instrumentos musicais presentes neste LP são piano, baixo e bateria, além dos cantores
Elis e Jair, que ora cantam sozinhos, ora fazem duetos e há também a presença de um
coro. O instrumental é característico do jazz e não do samba brasileiro, que costuma ser
executado com violão, pandeiro, surdo e tamborim, basicamente. O arranjo das músicas
fez com que elas ganhassem uma outra intenção, sendo chamadas de samba-jazz. O
samba não é tocado como na bossa nova, com violões, ou mesmo em rodas de samba,
com percussões, violão e cavaco, e sim com fraseados jazzísticos.
Há claramente um tom de denúncia representado pelas injustiças sociais
brasileiras contidas nas canções Terra de ninguém e em Deus com a família, ambas
falam da pobreza gerada pelas injustiças da distribuição de terras. Terra de ninguém
conta a história de um nordestino sem oportunidades que sai em busca de terras para
tentar melhorar a vida, tem a primeira parte da música cantada por um coro e Elis entra
cantando fortemente que quem trabalha é quem tem direito de viver, pois a terra é de
ninguém. Deus com a família é uma história contada por um negro consciente das
desigualdades sociais: “A terra do dono é só dele/ ali ninguém pode mandar/ mas se eu
não pegar na enxada/ não tem ninguém para plantar/ eu semeio e trato o milho/ e a
colheita é do senhor/ mas o dia da igualdade tá chegando seu doutor.”
Ziguezague é cantada por Jair e fala da malandragem de quem apanha da vida,
Arrastão conta a história de um pescador que luta para vencer, Tá engrossando é
cantada por Jair e fala da malandragem como maneira de sair de confusões, Menino das
laranjas denuncia uma realidade de exclusão e trabalho infantil, um menino morador do
morro tem que trabalhar vendendo laranjas na feira para ajudar a mãe que é lavadeira
dos ricos.
216 Para compreensão detalhada deste aspecto ler NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção:engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2001.
102
Trata-se de uma obra muito permeada por dinâmicas musicais, onde o
instrumental dialoga o tempo todo com as melodias, ora abaixando o volume para
privilegiar partes da canção, ora explodindo junto, acompanhando a todo momento a
tensão das músicas. Além de se utilizarem muitas dinâmicas, as músicas modificam o
andamento várias vezes para enfatizar determinados trechos das canções. Um bom
exemplo caracterizador deste aspecto, presente em todo o LP, é a música Terra de
ninguém. A primeira parte da música se configura em um samba-jazz, com um coro
cantando em uma dinâmica piano; há também o destaque da melodia, onde o
instrumental diminui o volume da execução para enfatizar o que está sendo cantado.
Quando Elis entra cantando, a dinâmica toda sobe para forte, na voz e no instrumental,
que é o momento onde a denúncia é mais forte na letra.
Quadro 2.1 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Dois na bossa
Aspectos do Nac.Pop.
Músicas
Samba Negro Favela Malandragem ReligiãoAfro-Bras.
Pescador
Samba do carioca X
Samba de Negro X X X
O morro não tem vez X
Ziguezague X
Arrastão X X
Feio não é bonito X
Ta engrossando X
Diz que fui por aí X X
A Voz do Morro X
Fonte: Dois na Bossa- Elis Regina e Jair Rodrigues. CBD/Philips, 1965.
Dentre todos os LPs com a temática nacional-popular este é o único que aborda
a questão da malandragem, sendo que as duas músicas foram interpretadas por Jair e
103
não por Elis, fato este que pode demonstrar a malandragem atrelada de alguma maneira
ao negro, representado pelo cantor Jair Rodrigues. O morro carioca, assim como sua
exaltação, é peça central na temática nacional-popular presente neste LP, seguido pelo
samba.
O segundo LP da dupla Dois na bossa número 2 217 foi lançado em 1966. Assim
como o primeiro LP, este também se inicia com um pot-pourri, das dez canções
escolhidas, metade tematiza o amor e a outra metade, a favela, o negro e osamba. Assim
como no primeiro LP da dupla, este pot-pourri mistura músicas de compositores da
velha guarda do samba (Ataulfo Alves, Paquito) com músicas dos ditos politizados de
esquerda (Vandré, Sérgio Ricardo).
Quadro 2.2 – Temática das músicas do LP Dois na Bossa número 2218
Músicas: Temática amorosa:Temática
nacional:Temática política:
Pout-pourri
Não me diga
adeus/Volta por cima/E
daí
O neguinho e a
senhorinha /Enquanto a
tristeza não
vem/Carnaval/Na ginga
do samba/Guarda a
sandália dela
Samba de mudar
Canto de Ossanha X
Tristeza X
Tristeza que se foi X
São Salvador, Bahia X
Louvação X
217 Lançado pela Companhia Brasileira de Discos/Philips em 1966. Gravado ao vivo no Teatro da Record,em São Paulo. Foi produzido por Mário Duarte, Direção musical de Adylson Godoy; acompanhamentos:Luiz Loy Quinteto e Bossa Jazz Trio. Técnicos de som: J. E. Homem de Mello e Célio Martins.218 Lado A: Pot-pourri: Introdução(Elis Regina, Jair Rodrigues),Samba de mudar(Geraldo Vandré, BadenPowell),Não me diga adeus(Paquito, Luiz Soberano, João da Silva),Volta por cima(Paulo Vanzolini),Oneguinho e a senhorita(N. Rosa Oliveira, A. da Silva),E daí(Miguel Gustavo),Samba de mudar(GeraldoVandré, Badenn Powell),Enquanto a tristeza não vem(Sérgio Ricardo),Carnaval(Djalma Ferreira, A.Alves),Na ginga do samba(Ataulfo Alves),Guarda a sandália dela(sereno,G.Mathias), Samba demudar(Geraldo Vandré, Baden Powell) / Canto de Ossanha(Baden Powell, Vinícius de Moraes) /Tristeza(Haroldo Lobo, Niltinho) / Tristeza que se foi(Adylson Godoy) / São Salvador, Bahia(Paulo daCunha) / Lado B: Louvação(Gil, Torquato Neto) / Upa, neguinho(Edu Lobo, Gianfrancesco Guarnieri) /Mascarada(Zé Keti, Elton Medeiros) / Amor até o fim(Gil) / Santuário do morro(Adylson Godoy).
104
Upa, neguinho X
Mascarada X
Amor até o fim X
Santuário do morro X
Fonte: Dois na Bossa número 2- Elis Regina e Jair Rodrigues. CBD/Philips, 1966.
O ritmo base de todo LP é o samba-jazz. Diferentemente do outro LP, este conta
com a presença de um trio de metais (trombone, trompete e saxofone), flauta transversa
e instrumentos de percussão (congas, agogô e berimbau). Além do já conhecido trio
piano, batera e baixo, característicos instrumentos de jazz. Percebemos muitos
ornamentos na voz de Elis, muito próximo das suas divas do rádio.
A percussão219 aparece somente em duas canções. No final do pot-pourri das
Carnaval, Na ginga do samba e Guarda a sandália, com as congas e o agogô fazendo
um samba e onde a letra está também a descrever o universo do samba e em São
Salvador, Bahia quando se toca São Bento pequeno, ritmo característico da capoeira, no
berimbau acompanhado pelas congas remetendo a um jogo de capoeira. Tanto a roda de
samba quanto a capoeira são manifestações afro-brasileiras e nota-se aqui a
preocupação em retratar o Brasil como algo que tem suas raízes em manifestações
culturais negras.
A última música deste LP Santuário do morro, de Adylson Godoy, é bastante
emblemática, não somente pelo seu título que remete ao morro como um local quase
que sagrado, onde nada de ruim pode acontecer, já que lá estão os trabalhadores
humildes do país. A letra diz “Tempo fechou, vai chover no morro vai... minha nega vai
chorar.../ não chora minha nega, não chora não/ que a chuva não leva o barraco não...
barraco é santuário/ Deus não vai jogar no chão...”.
O repertório se divide equilibradamente entre a temática amorosa e a temática
nacional, com duas músicas se enquadrando na temática política. Nas de temática
nacional temos como assuntos o morro, o negro, a capoeira e Ossanha, orixá dos cultos
afro-brasileiros. Duas faixas são cantadas pela dupla, o pot-pourri e Louvação, cinco
interpretadas por Elis e cinco por Jair, demonstrando desta vez, diferentemente do LP
anterior, uma divisão mais igualitária entre os cantores. Demonstrando assim que não
219 Considero aqui como instrumentos de percussão (lembrando que a bateria também se enquadra aqui)aqueles cujo som é obtido através da percussão (impacto), raspagem ou agitação, com ou sem o auxílio debaquetas, como reco-recos, bongôs, congas, meia luas, dentre outros.
105
era Elis a figura central da dupla, pelo menos no que se refere a divisão do repertório
dos discos gravados. Louvação convida o povo a prestar atenção nos versos como
Louvo a paz pra haver na terra/ louvo a vida repetida/ da vida pra não morrer. Samba
de mudar faz o alarde da mudança através dos versos: Só na tristeza e na dor/ Alguém
pode entender/ Que a dor tem que acabar.
Quadro 2.3 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Dois na
bossa2
Aspectos do Nac. Pop.
Músicas
Samba Negro Favela Capoeira ReligiãoAfro-Bras.
O neguinho e a senhorinha X
Enquanto a tristeza não vem X
Carnaval X X
Na ginga do samba X
Guarda a sandália dela X
Canto de Ossanha X
São Salvador, Bahia X
Upa, neguinho X X X
Santuário do morro X
Fonte: Dois na Bossa número 2- Elis Regina e Jair Rodrigues. CBD/Philips, 1966.
Diferentemente do LP anterior, no qual a favela era o tema central, aqui as
temáticas são mais relacionadas às questões do negro e à sua cultura. Além das músicas
que falam especificamente do negro aparecem elementos culturais da realidade afro-
brasileira como a capoeira e as religiões afro.
O último LP gravado pela dupla, Dois na bossa número3 220, foi gravado em
1967. Diferentemente dos LPs anteriores, que se iniciam com pot-pourris, neste Elis
220 Gravado ao vivo no Teatro Paramount (Record-Centro) de São Paulo. Direção da produção ArmandoPittigliani e técnico de som: Homem de Mello.
106
abre com a música de Luiz Eça e Ronaldo Bôscoli, seu marido na época, intitulada
Imagem. A letra da canção faz menção ao ofício do cantor “... se a vida passa, melhor
cantar... é de vocês o meu cantar, é só pra vocês nosso cantar...” e, bem no meio da
canção, os instrumentos continuam a tocar, Elis já não canta mais e sim pronuncia, em
tom de denúncia:
“Enquanto a nossa meta não for atingida continuamos gritando nosso
canto, enquanto a nossa música não voltar ao que é nós lutamos. Faz
escuro, mas nós cantamos. O amanhã está breve. Vamos cantar logo,
logo o que é nosso. Por que mais do que nunca é preciso cantar o que
é nosso!”
É como se o ofício de cantar fosse também um ato político e conscientizador,
uma vez que se faz necessário cantar o que é nosso e também lutar por isso. Mesmo
com a escuridão, menção que remete claramente à ditadura, o canto não pode silenciar.
E o que é nosso está representado pelo samba, o negro e sua cultura, de acordo com os
compositores engajados de esquerda. Por que cantar o que é nosso? Nosso, de quem?
Que identidade é essa, proposta pela cantora?
Vários são os sentidos construídos por esta fala de Elis, afinal, mais do que
apresentar o “É preciso cantar o que é nosso”, o que está presente em seu discurso é a
construção, ou mesmo reafirmação da importância ocupada pela música popular
brasileira, bem como a necessidade de saber o que é brasileiro, naquele momento de
tantas disputas. A identidade proposta pelas músicas está presente nos subúrbios
cariocas, é representada pelo samba, pela capoeira e pelas religiões afro-brasileiras.
107
Quadro 2.4 - Temáticas das músicas do LP Dois na Bossa número 3221
Músicas: Temática amorosa: Temática nacional:Temática
política:
Outros
Imagem X
Pot-pourri de
Mangueira
Pra machucar meu
coração
Mangueira/Fala,
Mandueira/Exaltação à
Mangueira/Mundo de
zinco/Levanta,
Mangueira/Despedida
de Mangueira/
O ser humano X
Cruz de cinza,
cruz de sal
X
Serenata em
teleco-tecoX
Manifesto X
Pot-pourri
romântico
Minha namorada/Eu
sei que vou te
amar/A
volta/Primavera
Amor de carnaval X
Marcha da quarta-
feira de cinzasX
Capoeira camará X
Fonte: Dois na Bossa número 3- Elis Regina e Jair Rodrigues. CBD/Philips, 1967.
221 Lado A: Imagem(Luiz Eça, Ronaldo Bôscoli) / Pot-pourri de Mangueira:Mangueira(Assis Valente,Zequinha Reis),Fala, Mangueira(Mirabeau, Milton de Oliveira),Exaltação à Mangueira(Enéas Brites daSilva, Aloísio Augusto da Costa),Mundo de zinco(Nássara, Wilson Batista),Levanta, Mangueira(luizAntonio),Despedida de Mangueira(Aldo Cabral, Benedito Lacerda),Pra machucar meu coração(AryBarroso) / O ser humano(Osmar Navarro) / Cruz de cinza, cruz de sal(Walter Santos, Tereza Souza) /Serenata em teleco-teco(Gil) / Lado B: Manifesto(Guto, Mariozinho Rocha) / Pot-pourriromântico:Minha namorada(Vinícius de Moraes, Carlos Lyra),Eu sei que vou te amar(Tom Jobim,Vinícius de Moraes),A volta(Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli),Primavera(Vinícius de Moraes, CarlosLyra) / Amor de carnaval(Zé Keti) / Marcha da quarta feira de cinzas / Capoeira camará(Paulo da Cunha).
108
Logo após esta introdução, faz-se um pot-pourri sobre a Mangueira, com sambas
de Ary Barroso, Assis Valente, Wilson Batista dentre outros. São músicas apenas dos
grandes sambistas considerados da “tradição”. O samba é interpretado através de uma
leitura moderna e jazzística, dando mais ênfase ao instrumental mais utilizado no jazz,
do que o do samba da escola de samba da Mangueira. Ouve-se um reco-reco,
instrumento percussivo, em Amor de carnaval, o bongô, instrumento utilizado em
boleros, em Cruz de cinza, cruz de sal e berimbau e caxixis na última canção, Capoeira,
camará. Os instrumentos presentes são piano, baixo, bateria, metais e cordas.
A sonoridade é muito parecida com a dos discos anteriores e a voz de Elis está
muito próxima da das cantoras de rádio, com utilização de vibratos, próximos ao bel
canto. Das dez faixas, duas são cantadas pela dupla e os dois pot-pourris e o restante se
dividem igualmente entre os intérpretes. A música Cruz de cinza, cruz de sal não se
enquadra em nenhum destes temas, pois nela há a citação de brincadeiras de criança, no
entanto, não há menção a nenhuma brincadeira que se faça especialmente no Brasil e
não em outros lugares.
A música Quarta feira de cinzas, de autoria de Carlos Lyra e Vinícius de
Morais, pode ser facilmente caracterizada enquanto uma música de protesto, ao atacar a
ditadura através dos versos: Acabou nosso carnaval/ninguém passa mais brincando
feliz/saudades e cinzas foi o que restou. Elis ao cantar a frase mais que nunca é preciso
cantar, é aplaudida no meio da canção, fato que não se percebe em nenhuma das
canções de nenhum dos outros dois LPs, apesar de todos eles terem sido gravados ao
vivo. Qual seria o sentido desses aplausos? Minha hipótese é que este fato demonstra a
força da canção, a maneira como o público se sentia com o desejo de que as músicas
falassem dos problemas brasileiros, que também eram seus. O ato de cantar carrega
aqui, a força de denunciar e de citar coisas que eram comuns a todos naquele momento.
Toca-se samba-jazz na maioria das músicas, mas também bossa-nova, valsa e marcha-
rancho. Há um aumento significativo da temática política, em comparação com os LPs
anteriores. Na música Manifesto, há uma clara alusão ao golpe, ao importante papel da
música enquanto ato de conscientização. A negação presente na letra da música
demonstra justamente o seu contrário: “a minha música não traz mensagem/ não traz
mensagem/ não faz chantagem ou guerra fria e nem faz ideologia/ eu vim apenas para
lhes falar/ de uma grande perda/ que não sei se é da direita ou da esquerda.”
109
Quadro 2.5 – Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Dois na
bossa 3
Aspectos do Nac.Pop.
Músicas
Samba Favela Capoeira
Mangueira X
Fala, Mangueira X X
Exaltação à Mangueira X
Mundo de zinco X
Levanta, Mangueira X
Despedida deMangueira
X
Serenata em teleco-teco
X X
Capoeira camará X
Fonte: Dois na Bossa número 3- Elis Regina e Jair Rodrigues. CBD/Philips, 1967.
Grande parte das canções de temática nacional-popular presentes neste LP faz
exaltação a escola de samba Mangueira e em especial ao samba. Fala-se menos da
favela e mais de um produto produzido na favela, neste caso o samba.
Depois de concluída a análise destes LPs produzidos por Elis Regina e Jair
Rodrigues fica clara a escolha da temática nacional como a principal cantada pelos
artistas. No primeiro LP de 1965 percebe-se a seguinte configuração: músicas com a
temática política 25%, temática amorosa 30 % e temática nacional 45%. No segundo
LP, lançado em 1966, percebe-se a seguinte configuração: 5,56% a temática política,
temática amorosa 44,44% e temática nacional 50%. No terceiro e último LP lançado
pela dupla em 1967, percebe-se um grande aumento da temática política, superando até
mesmo com a temática nacional: temática amorosa 33,33%, temática política 22,22% e
temática nacional 44,44%. Lembrando que caracterizei a temática nacional, a maior
110
presente em todos os LPs, como aquela em que vejo presente a preocupação em falar
positivamente de sujeitos, manifestações ou locais que remetem ao Brasil.
A presença significativa da temática política nestes LPs está intimamente
relacionada à discussão política do contexto no qual os mesmos estavam inseridos. O
aumento, bem com a diminuição da temática política, podem ser interpretados se virmos
o cenário musical como um termômetro, em que situações sociais e conflitos, no campo
político, faziam parte dos ideais cantados nas canções brasileiras do período,
evidenciando o papel da música nesses embates políticos.
A temática nacional, apresentada nas canções gravadas nestes três LPs, consiste,
principalmente, na situação do favelado e do negro e suas manifestações, dentre elas, o
samba e a capoeira. A favela é o tema que mais se repete nas canções, representando a
temática nacional-popular. Nenhuma manifestação cultural afro-brasileira além do
samba, da capoeira e do universo religioso afro-brasileiro são mencionados nestes
discos. O povo brasileiro e sua cultura são encarados como manifestações autênticas da
nacionalidade, capazes de livrar o país de seus problemas sociais, principalmente
através da luta e pelo trabalho. No entanto, as músicas são interpretadas com os
instrumentos tradicionais do jazz, com exceção de uma música, em que é utilizado um
berimbau. Os instrumentos utilizados para a execução das músicas do universo da
cultura popular, como tambores, chocalhos e ferros, não estão presentes nesses arranjos,
bem como seus ritmos característicos.
Esse repertório de temática nacional é composto de músicas feitas por
compositores que, descontentes com a situação política do país, queriam, através das
suas músicas, conscientizar e mostrar ao povo brasileiro os problemas do Brasil, ou
seja, queriam mostrar a situação do Brasil para o Brasil. O Brasil cantado por Elis e Jair
é um país descontente com o golpe militar, descontente com a permanência da
desigualdade social, representada pela situação dos favelados, dos negros e nordestinos
e elegeu o samba como o ritmo para embasar essas canções, o samba-jazz, o samba
bossa nova, a marcha rancho. O samba, enquanto manifestação brasileira, foi também
cantado e elogiado em grande parte do repertório, classificado como de temática
nacional.
111
2.7 - Os LPs lançados entre 1965-1968
Depois de analisarmos em separado os três LPs lançados juntamente com Jair,
analisaremos os LPs lançados por Elis a partir de 1965. O LP Samba eu canto assim,
lançado em 1965, foi um divisor na carreira de Elis. É perceptível uma modificação
significativa entre esse LP em relação aos outros quatro222, lançados anteriormente pela
cantora. Há a mudança não só temática das canções, que antes estavam ligadas quase
que exclusivamente ao universo amoroso, como também na base rítmica. Antes o
repertório se configurava basicamente por boleros, rock e samba-canções e, a partir
desse LP, Elis passa a aderir ao samba jazzístico incorporado pela bossa nova e visto
como algo “moderno” a ser utilizado, enquanto parâmetro musical.
Quadro 2.6 - Temáticas das músicas do LP Samba eu canto assim223
Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Temática política:
Reza X
Menino das laranjas X
Por um amor maior X
João Valentão X
Maria do Maranhão X
Resolução X
Sou sem paz X X
Consolação/Berimbau/Tem
dóConsolação/Tem dó Berimbau
Aleluia X X
Eternidade X
Preciso aprender a ser só X
Último canto X
222 Viva a brotolândia. Continental, 1961. Poema de amor. Continental, 1962. Elis Regina. CBS, 1963.O bem do amor. CBS, 1963.223 Lado A: Reza (Edu Lobo, Ruy Guerra) / Menino das laranjas (Théo) / Por um amor maior(Ruy Guerra,Francis Hime) / João Valentão(Dorival Caymmi) / Maria do Maranhão(Carlos Lyra, Nelson Lins deBarros) / Resolução(Edu Lobo, Fernando freire) / Lado B: Sou sem paz (Adylson Godoy)/ Pot-pourri:Consolação-Berimbau-Tem dó(Baden Powell, Vinícius de Moraes) / Aleluia(Edu Lobo, RuyGuerra) / Eternidade(Luiz Chaves, Adylson Godoy) / Preciso aprender a ser só(Marcos Valle, PauloSérgio Valle) / Último canto(Francis Hime, Ruy Guerra).
112
Fonte: Samba - eu canto assim. CBD/Philips, 1965.
A maior parte do repertório é de canções de temática amorosa, no entanto é a
partir desse LP, juntamente com o LP 2 na bossa, lançado também em 1965, que
aparecem músicas mencionando o povo brasileiro no repertório de Elis. A partir de
Samba eu canto assim, acontece uma mudança não só nos ritmos utilizados nas
gravações, nos arranjos, como também na temática. Elis Regina gravou nesse disco
muitas músicas de jovens compositores da bossa nova nacionalista, como Edu Lobo,
Marcos Valle ∕ Paulo S. Valle, Vinícius de Moraes, Carlos Lyra. Todos esses
compositores tinham como objetivo aproveitar as bases melódico-harmônicas da bossa
nova e, com isso, criar uma nova música, mais ligada à tradição popular, indo de
encontro ao povo. No entanto, há que se perceber que esse povo era idealizado por estes
artistas, e que a maneira como era retratado muitas vezes não condizia com a realidade
vivida por este, em suas comunidades. O Brasil cantado por Elis, ou seja, as músicas
escolhidas por Elis, de compositores com os quais partilhava as idéias, já que os
selecionara para cantar, falavam de um país descontente com o golpe militar,
descontente com a permanência da desigualdade social, representada pela situação dos
favelados, dos negros e dos migrantes nordestinos.
O título do LP evidencia a clara intenção de Elis em explicitar ao público a
maneira como ela cantaria o samba. Não era o samba tradicional de morro, tocado com
pandeiro, cuíca, tamborim, surdo e cavaquinho, seria a sua leitura do samba, onde o
ritmo passou a ser tocado com bateria, baixo e piano, formação característica de bandas
de jazz.
113
Quadro 2.7 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Samba eu
canto assim
Aspectos do Nac. Pop.
Músicas
Capoeira Migrante Pescador Trabalhador
João Valentão X
Maria do Maranhão X
Berimbau X
Aleluia X
Fonte: Samba - eu canto assim. CBD/Philips, 1965.
A temática nacional-popular deste LP é diversificada e não há o destaque de
nenhum aspecto em especial. O negro não é tematizado diretamente, mas sim o
migrante nordestino, pescador e o trabalhador.
Quadro 2.8.- Temáticas das músicas do LP O Fino do Fino- Elis Regina e Zimbo Trio
Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Outros:
Zambi X
Aruanda X
Canção do amanhecer X
Só eu sei o nome X
Esse mundo é meu X
Samba meu X
Expresso 7 X
Té o sol raiar X
Chuva X
Amor demais X
Samba novo X
Chegança X
onte: O Fino do Fino- Elis Regina e Zimbo Trio. CBD/Philips, 1965.
114
O fino do fino224foi gravado em 1965, por Elis e Zimbo Trio, o conjunto musical
que a acompanhava no programa o Fino da Bossa. A metade do disco é composta por
músicas instrumentais, por isso o mesmo não se encaixa em nenhuma das temáticas.
Penso que os motivos que levaram Elis Regina a apresentar um LP com metade
das faixas de músicas apenas instrumentais devam-se ao seu desejo de se aproximar das
interpretações de suas musas jazzísticas que gravavam assim. Muitos jazzistas
americanos tem parte do repertório de seus discos composta somente por músicas
instrumentais, um exemplo desse fenômeno é Ella Fitzgerald, de quem Elis se dizia
admiradora. Os instrumentos presentes nesse disco, assim como os de jazz, são piano,
baixo e bateria e toca-se samba-jazz predominantemente.
A primeira música do disco, Zambi, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, fazia
parte da peça Arena conta Zumbi e fala da necessidade da luta e diz que é chegada a
hora de acabar com a escravidão, através da luta de Ganga Zumba e Zumbi.
Esse mundo é meu e Resolução compõem um pot-pourri que tematiza a luta, a
primeira, do negro que reclama das dificuldades da vida e pede ajuda a Ogum, e a
segunda, da necessidade de luta, de não se cansar,. Chegança, de Edu Lobo e Oduvaldo
Viana Filho, fala da esperança por uma vida melhor através da migração.
A temática nacional-popular continua a privilegiar nestas canções os
desfavorecidos socialmente e a incentivar a luta como estratégia por uma vida melhor.
Os brasileiros neste disco são os negros e o migrante, muito parecido com o que vem
sendo apresentado até então.
Quadro 2.9 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP O fino do fino
Aspectos do Nac.Pop.
Músicas
Negro ReligiãoAfro-Bras.
Migrante
Zambi X
Esse mundo é meu X
Chegança X
Fonte: O Fino do Fino- Elis Regina e Zimbo Trio. CBD/Philips, 1965.
224 Elis Regina e Zimbo Trio. CBD/Philips. Direção musical: Zimbo Trio; direção artística: Mário Duarte;produção: Manoel Carlos; técnicos de gravação: Homem de Mello, Célio Martins e Júlio C. Anidez;layout: Prosperi.
115
O negro é destaque neste LP, lembrando que boa parte deste repertório é
composto por músicas instrumentais. Há a presença também do migrante.
Em 1966, Elis lançou seu segundo LP solo, de nome Elis225, no qual apresentou
pela primeira vez os compositores Milton Nascimento (Canção do sal) e Gilberto Gil
(Lunik 9). Tratava-se de um disco com canções de temáticas amorosas e também
nacional-populares, em que Elis, através de um texto de sua autoria na contracapa do
LP, demonstrava estar planejando mudanças para sua carreira e dizia que estas
aconteceriam a partir desse disco que, de acordo com suas próprias palavras, tinha sido
feito a seu gosto, sem as amarras típicas de uma artista de televisão. Segue o texto:
“Faz um tempão que eu queria gravar assim. Não que não tenha gostadodo que fiz até agora. Sempre, com muito carinho, dedicação, dei omelhor de mim dentro do que cantei. Mas, confesso, sempre meapavorou, também, a idéia de me transformar numa cantora detelevisão, que somente funcionasse dentro de um programa de televisão.De tanto ouvir falar a este respeito, eu passei a ser uma cantora detelevisão. Meus compromissos com a música duravam cinqüenta ecinco minutos apenas. Havia de minha parte sinceridade, dedicação,carinho, vontade de acertar, mas faltava seriedade. Aquela seriedadeque faz as coisas durarem muito tempo. E, quando parei, e pude pensar,vi que tudo era muito falso. E que eu era falsa comigo mesma, pois nãosoubera ser leal ao que sempre, ambiciosa, sonhei fazer com música.”226
Quadro 2.10 - Temáticas das músicas do LP Elis227
Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Temática política: Outros
Roda X
Samba em paz X
Pra dizer adeus X
Estatuinha X
Veleiro X
Boa palavra X
225 CBD/Philips, 1966. Produtor: Luiz Moscarel; arranjos e regência: Francisco Moraes; técnico de som:Rogério Gauss; layout e fotografia: Prosper.226 Texto presente na contracapa do LP.227 Lado A: Roda(Gil, João Augusto) / Samba em paz(Caetano Veloso) / Pra dizer adeus(Edu Lobo,Torquato Neto) / Estatuinha(Edu Lobo, Gianfrancesco Guarnieri) / Veleiro(Edu Lobo, GianfrancescoGuarnieri) / Boa palavra(Caetano Veloso) / Lado B: Lunik 9(Gil)/ Tem mais samba(Chico Buarque) /Sonho de Maria(Marcos Valle, Pauli Sérgio Valle) / Tereza sabe sambar(Francis Hime, Vinícius deMoraes) / Carinhoso(Pixinguinha, João de Barro) / Canção do sal (Milton Nascimento).
116
Lunik 9 X
Tem mais samba X
Sonho de Maria X
Tereza sabe sambar X
Carinhoso X
Canção do sal X
Fonte: Elis. CBD/Philips, 1966.
O LP se inicia com uma música de Gil. As palmas e o próprio título da canção,
Roda, fazem alusão à cultura popular, que tem várias de suas manifestações realizadas
em roda228e ditadas pelo ritmo de palmas. O ouvinte é chamado para participar da roda,
onde o povo diz a verdade sobre as desigualdades sociais: “Posso falar. Pois eu sei/ eu
tiro os outros por mim/ quando almoço não janto/ e quando canto é assim”. A segunda
música, de Caetano Veloso, Samba em paz, conta que: “O samba vai vencer quando o
povo perceber que é o dono da jogada”. Nota-se uma tentativa de conscientização sobre a
força e o poder do povo que, se articulado, melhoraria sua situação.
Estatuinha fala da situação do negro no Brasil que, mesmo com o fim da
escravidão, continuaram a servir os brancos: “Se a mão livre do negro tocar na onça,
o que é que vai nascer?/vai nascer pele pra cobrir nossas vergonhas/ nasce caminha
pra se ter nossa ialê e atabaque pra se ter onde bater.”.
Veleiro e Boa palavra não se inserem em nenhuma das temáticas. Veleiro fala
sobre partir para o mar, mas não tem uma denotação de fuga de algo e nem mesmo trata
de um lugar especial. Boa palavra trata da solidão de um menino que aprendeu a brincar
sozinho.
Tem mais samba e Tereza sabe sambar tematizam o samba e sua inserção nos
diferentes meios da sociedade, não só no morro. Sonho de Maria é sobre a morte de
uma lavadeira e sua dura vida no morro. Carinhoso é uma música de Pixinguinha e João
de Barro compositores da “velha guarda” do samba. O disco se encerra com uma
música de Milton Nascimento, Canção do sal, que conta a história de um trabalhador
que espera uma vida melhor para o filho, através de seus estudos. Neste disco, as
músicas em quase sua totalidade são samba-jazz. Os instrumentos são baixo, piano e
228 Capoeira, candomblé, jongo, ciranda, côco, samba e outros.
117
bateria. Algumas das músicas têm cordas e metais em seu arranjo. A temática nacional
constitui 50% do repertório.
Apesar da intenção manifestada por Elis na contracapa do LP, não é perceptível
uma mudança significativa neste disco. Sua interpretação vocal é carregada, com muita
utilização de vibratos, e o instrumental, assim como os arranjos, é bastante parecido
com o dos LPs lançados anteriormente.
Quadro 2.11 - Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Elis
Aspectos do Nac.Pop.
Músicas
Samba Negro Favela Trabalhador
Samba em paz X
Estatuinha X
Tem mais samba X
Sonho de Maria X
Tereza sabe sambar X
Canção do sal X
Fonte: Elis. CBD/Philips, 1966
A temática nacional-popular neste LP é representada principalmente através do
universo do samba, tematizado aqui enquanto um possível aspecto libertador do povo
brasileiro.
Lançado em 1968, pela CBS/Philips, o disco Elis Especial229 é um disco que
contém duas músicas como tributo, uma a Tom Jobim, a segunda canção, e outra à
Escola de samba Mangueira, a última canção. Tais tributos representam não só uma
229 Direção musical: Erlon Chaves. Direção de produção: Armando Píttigliani. Foto de capa: Elio Santos,de Manchete. Samba do perdão(Baden Powell, Paulo César Pinheiro), Tributo a Tom Jobim(Tom Jobim),De onde vens(Dori Caymmi, Nelson Motta), Bom tempo(Chico Buarque), Da cor do pecado(Bororó),Carta ao mar(Roberto Mescal, Ronaldo Bôscoli), Viramundo(Gilberto Gil), Upa, neguinho(Edu Lobo,Gianfrancesco Guarnieri), Tributo a Mangueira: Mangueira (Assis Valente, Zequinha Reis)/Fala,Mangueira(Mirabeau, Milton de Oliveira)/Exaltação à Mangueira(Enéas Briters da Silva, AloísioAugusto da Costa)/Levanta, Mangueira(Luiz Antonio)/Despedida de Mangueira(Aldo Cabral, BeneditoLacerda)Pra machucar meu coração(Ary Barroso).
118
homenagem, como também uma “prestação de contas” ao samba e à bossa nova, na
figura de Tom Jobim, além de emonstrarem a grande influência de ambos na carreira de
Elis.
Quadro 2.12 - Temáticas das músicas do LP Elis Especial230
Músicas: Temática amorosa: Temática nacional:
Samba do perdão X
Tributo a Tom Jobim X
De onde vens X
Bom tempo X
Da cor do pecado X
Corrida de jangada X
Carta ao mar X
Viramundo X
Upa, neguinho X
Tributo a Mangueira
Pra machucar meu
coração
Mangueira/Fala,
Mangueira/Exaltação à
Mangueira/Levanta,
Mangueira/Despedida
de mangueira/
Fonte: Elis Especial. CBD/Philips, 1968.
Das canções que tematizam o nacional, Bom tempo conta a história de um
trabalhador que aguarda ansioso pelo descanso do fim de semana. Viramundo conta a
história de um sertanejo que, apesar das imposições da vida, luta para conquistar seu
trabalho, festa e pão. Upa neguinho fala de um negro que mal começa a andar e já
230 Lado A: Samba do perdão (Baden Powell, Paulo César Pinheiro) / Tributo a Tom Jobim: Vou tecontar-Fotografia-Outra vez-Vou te contar / De onde vens(Dori Caymmi, Nelson Motta) / Bomtempo(Chico Buarque) / da cor do pecado(Bororó) / Lado B: Corrida de jangada(Edu Lobo, Capinan) /Carta ao mar(Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli) / Viramundo(Gil, Capinan) / Upa, neguinho(EduLobo, Gianfrancesco Guarnieri) / Tributo a Mangueira:Mangueira(Assis Valente, Zequinha Reis),Fala,Mangueira(Mirebeau, Milton de Oliveira),Exaltação à Mangueira(Enéas Brites da Silva, Aloísio Augustoda Costa),Levanta, Mangueira(Luiz Antonio),Despedida de Mangueira(Aldo Cabral, BeneditoLacerda),Pra machacar meu coração(Ary Barroso).
119
apanha, mas, apesar dos infortúnios da vida, sabe ensinar através das mandingas e da
capoeira. Tributo à Mangueira faz um elogio e reverência à tradicional escola de samba
carioca.
A temática amorosa prevalece na maior parte das canções. Das músicas que
estão entre as de temática nacional, duas falam do trabalhador brasileiro e as outras
sobre o negro e sobre o samba, representado pela Mangueira. Os instrumentos são
piano, baixo e bateria, sendo que em algumas músicas há a presença de instrumentos de
cordas e metais.
A estreita relação com a bossa nova ficou claramente explícita nas faixas Tributo a
Tom Jobim e Carta ao mar de Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal. Apesar da sua
intenção em modificar a carreira, expressa na contracapa do LP de 1966, a voz de Elis
ainda é, empostada como a das cantoras do rádio e o repertório conta com inúmeras
canções de cunho nacional-popular nesse disco de 1968.
Quadro 2.13 – Aspectos da temática nacional presentes nas músicas do LP Elis
Especial
Aspectos do Nac.Pop.
Músicas
Samba Negro Favela Trabalhador ReligiãoAfro-Bras.
Bom tempo X
Viramundo X
Upa, neguinho X X
Mangueira X
Fala, Mangueira X X
Exaltação à Mangueira X X
Levanta, mangueira X X
Despedida deMangueira
X
Fonte: Elis Especial. CBD/Philips, 1968.
120
A escola de samba da Mangueira é mais uma vez exaltada por Elis, assim como
no LP Dois na bossa 3. O negro é tematizado e também a religião afro-brasileira. O
trabalhador brasileiro é mencionado em duas canções. Houve um aumento com as
temáticas nacional-populares em relação ao LP lançado anteriormente.
Percebe-se através da Tabela 2, apresentada na página 119, que o samba tem
destaque na temática nacional-popular interpretada por Elis, representando quase
sempre uma maior quantidade em relação aos outros temas. Apesar de não ser
tematizado nos LPs O fino do fino e Samba eu canto assim volta a aparecer com força e
em significativo destaque nos próximos lançamentos. A favela é um tema bastante
recorrente em quase todos os LPs, assim como o negro que é uma constante em quase
todos os LPs. Quando não é diretamente citado, como no caso do LP Samba eu canto
assim, é representado por manifestações culturais relacionadas ao universo afro, como a
capoeira. A tabela demonstra que os temas negro, samba e favela são os mais constantes
na fase que vai de 1965 até 1968.
No caminho que até aqui percorri, percebi que nestes LPs, a denúncia em relação
às limitações impostas pela estrutura social brasileira é tema central. Tenho a sensação,
ao ouvir este repertório, de que estou diante da situação social do país. Percebo as
participações de Elis nos festivais, bem como o repertório presente no seu programa O
Fino da Bossa, como um comprometimento político/social. Estou diante de um projeto
de Brasil popular, onde o povo e suas expressões são apresentados como a riqueza do
país.
Os elementos presentes no nacional-popular cantado por Elis tematizam sempre
questões relativas à desigualdade social, miséria, questões raciais e culturais, assim
como a luta como fator de reestruturação deste sistema. No entanto, o povo brasileiro e
suas representações se restringem ao pescador/trabalhador e às manifestações culturais
brasileiras do samba, Orixás das religiões afro-brasileira e a capoeira. Não percebo, no
repertório analisado até aqui, gravações de grandes nomes do rádio, não há gravações de
músicas interpretadas por Ângela Maria ou Cauby Peixoto e regravadas por Elis, e sim
de sambistas conhecidos, representantes da “velha guarda”.
Sua banda dando contornos jazzísticos à interpretação e sua maneira de cantar
com o vozeirão das cantoras do rádio, mesclam elementos considerados tradicionais
com aqueles considerados modernos sem chocá-los entre si, indicando que Elis não era
adepta exclusiva de determinadas “correntes” musicais e sim, que transitava sem se
prender fixamente a nenhuma delas.
121
Como já demonstrado ao longo desta pesquisa, Elis era filha de uma família
operária, formou-se até o curso normal e não freqüentou uma universidade. Posso
concluir, com isso, que Elis não tinha uma ampla formação intelectual e nem mesmo
política, como percebemos nos primeiros discos lançados pela cantora. No entanto, a
cantora foi aprendendo a se posicionar ideologicamente após sua chegada ao Rio de
Janeiro, através dos contatos com pessoas do círculo artístico, um bom exemplo disto é
Solano Ribeiro, seu ex-namorado. Em suma, os meios de sociabilidade foram
possibilitando a Elis tornar-se mais consciente dos problemas sociais e políticos
brasileiros, assim como dos filmes e peças aos quais assistia, já citados neste capítulo.
Há, nesta fase da carreira de Elis, uma compreensão do Brasil se desenvolvendo
juntamente com a ideologia nacionalista defendida pelos artistas e compositores deste
período, os quais estavam ligados, de certa maneira, ao CPC. Estou me referindo à
estratégia cultural representada pela intérprete Elis Regina, segundo a qual o Brasil é
compreendido como forma de expressão de uma comunidade subalterna, representada,
em sua obra, pelos negros e nordestinos. Em Elis, nesta fase que vai de 1965 até 1968, a
questão nacional está presente e se mostra primordial. Pode-se dizer que há um diálogo
entre a questão da identidade nacional e da identidade cultural específica de uma classe
social: a população dos morros e subúrbios do Rio de Janeiro.
Há a ausência do sertão, com exceção dos pescadores, Elis concentra-se
principalmente no universo urbano do samba de morro. Assim sendo, pode-se pensar
em um menor romantismo, uma menor apego ao mundo pré-moderno em sua visão do
nacional-popular.
Apesar de cantar o nacional-popular, Elis, por não estar organicamente ligada à
vida das camadas baixas da população, não teve condições de perceber diferentes
sentidos do popular, até então ausente no debate sobre a música do povo, uma vez que
os debates existentes naquele momento faziam menção a dicotomias como nacional X
estrangeiro, autêntico X alienado ou MPB X iê-iê-iê.
Nesta fase há, no repertório de Elis Regina, a afirmação da cultura de um grupo
social subalterno - a comunidade negra dos morros cariocas - em contraposição ao
processo de expansão do modo de produção capitalista. No entanto, Elis Regina não foi
uma dessas artistas que se impuseram a missão de conservar a memória e a sabedoria
popular231; ela cantou o que achou significativo explorar, como questões referentes à
231 Assim como Clara Nunes. Sobre esse assunto ver O canto mestiço de Clara Nunes / Organização:Silvia Maria Jardim Brügger. -São João Del Rei, MG: UFSJ, 2008.
122
compreensão do que era o Brasil naquele momento e, posteriormente, o Brasil
explorado por ela se modificaria, como perceberemos no capítulo seguinte.
Tabela 2 - Percentual dos aspectos nacional-populares em cada LP232
232 Onde contei cada trecho dos pot-pourris como sendo uma música. Algumas músicas apresentam mais de um aspecto, por isso o total de aspectos excede o de faixas dosdiscos dentro da temática nacional-popular.
Aspectosnac. pop.
Lps
Samba Negro Favela Migrante Pescador Malandragem
Religiãoafro-
brasileiraCapoeira Trabalha
dorTotal
Dois nabossa (1965) (3)
23,08%(1)
7,69%
(5)38,46% (1)
7,69%
(2)15,39 (1)
7,69%
(9)100%
O fino dofino (1965) (1,5)
50,00%(1)
25,00%(0,5)
25,00%
(3)100%
Samba eucanto assim
(1965)(1)
25,00%(1)
25,00%(1)
25,00%(1)
25,00%
(4)100%
Dois nabossa 2(1966)
(2,5)25,00%
(1,8)25,00%
(2)16,67%
(1,3)16,67%
(1,3)16,67%
(9)100%
Elis (1966) (3)50,00%
(1)16,67%
(1)16,67%
(1)16,67%
(6)100%
Dois nabossa 3(1967)
(5,5)66,67%
(1,5)22,22%
(1)11,11%
(8)100%
Elis Especial(1968) (4)
45,45%(0,5)
9,09%(1)
18,18%(0,5)
9,09%(2)
18,18%
(8)100%
124
Capítulo 3 - Brasil em foco
Neste capítulo, abordarei a carreira de Elis Regina após o LP lançado em 1968,
Elis Especial, no qual é perceptível uma efetiva tentativa de mudança, tanto no
repertório, quanto em sua sonoridade, mais próxima à bossa nova e menos jazzística
como a dos seus discos lançados entre 1965 e 1968. Analisarei como o nacional-
popular, tão presente no repertório de Elis a partir de 1965, se modifica ao longo de sua
carreira e, em especial, a partir de 1969, quando tal conceito passa a ser altamente
combatido pelos tropicalistas. Tentarei entender de que maneira e se de fato houve uma
influência do movimento tropicalista na carreira e obra de Elis, e como se deu essa
interferência. Utilizarei como fontes para a realização deste capítulo jornais, revistas,
vídeos, além de bibliografia referente ao tema e análise da discografia deste período.
Tendo em vista as diversas variáveis das críticas ao nacional-popular, algumas
questões devem ser colocadas. A modificação na sonoridade, bem como na
interpretação de Elis a partir de 1969, seria acompanhada por uma modificação na
temática nacional-popular também? Política e oposição ao regime militar se fazem
presentes neste repertório? Podemos falar em nacional-popular a partir deste momento?
Quais foram suas respostas às experiências dos exílios, censuras e repressões, em
relação às quais se construiu esse “novo” repertório, a partir de 1969? Como os diversos
projetos e práticas de resistência cultural deste período estão representados na obra de
Elis Regina?
De acordo com Roger Chartier, saber se devemos chamar de popular o que é
criado pelo povo, ou então o que lhe é destinado é, pois, um falso problema. Importa,
antes de tudo, a identificação da maneira como cruzam-se e imbricam-se diferentes
figuras culturais, nas práticas, nas representações ou nas produções. Uma vez que “todas
as formas culturais, em que os historiadores reconheciam a cultura do povo, se revelam
atualmente, sempre como conjuntos mistos, que reúnem em uma imbricação difícil de
desatar, elementos de origens muito diversas.” 233
Segundo Chartier:
“ao renunciar à descrição da totalidade social e ao modelo braudeliano,que se tornou intimidante, os historiadores tentaram pensar osfuncionamentos sociais fora de uma divisão rigidamente hierarquizada
233CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre a incerteza e inquietude. Ed. Universidade.UFRGS, 2002, p.49.
125
das práticas e das temporalidades (econômicas, sociais, culturais,políticas) e sem que primado fosse dado a um conjunto particular dedeterminações (quer fossem técnicas, econômicas ou demográficas).Daí, as tentativas feitas para decifrar diferentemente as sociedades,penetrando o dédalo das relações e das tensões que as constituem apartir de um ponto de entrada particular (um acontecimento, obscuro oumaior, o relato de uma vida, uma rede de práticas específicas) econsiderando que não há prática ou estrutura que não seja produzidapelas representações, contraditórias e afrontadas, pelas quais osindivíduos e os grupos dão sentido a seu mundo”. 234
Comentando esta citação em função do meu objeto, entendo a carreira de Elis,
bem como suas escolhas, como uma rede de práticas culturais específicas inseridas em
um conturbado momento de edificações identitárias brasileiras. E, ao me guiar pelo fio
condutor da carreira artística de Elis, busco compreender suas relações pessoais e
profissionais, e de que maneiras estas dialogaram entre si. Além de Elis estar inserida
nessa teia complexa de relações sociais, pessoais e profissionais, e havendo no país a
instauração e desenvolvimento de um forte mercado industrial (musical, jornalístico),
influenciando e sendo influenciado por este tipo de situações artísticas particulares, qual
teria sido o seu papel nessa consolidação?
De acordo com Canclini:
“O discurso político continua associando, preferencialmente, a unidadee a continuidade da nação com o patrimônio tradicional, com espaços ebens antigos, que serviriam para tornar coesa a população. Sabe-se, noentanto, que desde o surgimento do rádio e do cinema, esses meiosdesempenharam um papel decisivo na formação de símbolos deidentificação coletiva. Mas o mercado cultural de massas ocupa pouco ointeresse estatal e, em grande medida, é deixado nas mãos de empresasprivadas.” 235
Segundo Canclini, a incorporação dos múltiplos usos do termo “popular” nas
ciências sociais teve efeitos positivos: ampliou a noção para além dos grupos indígenas
e tradicionais, dando reconhecimento a outros agentes e formas culturais que
compartilham a condição de subalternos, além de libertar o popular do rumo
economicista que lhe impuseram aqueles que o reduziam ao conceito de classe. Mesmo
que a teoria das classes continue sendo necessária para caracterizar o lugar dos grupos
populares e de suas lutas políticas, a ampliação conceitual permite abranger formas de
234 CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre a incerteza e inquietude. Ed. Universidade.UFRGS, 2002, p. 66.235 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade. - SãoPaulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997. – Ensaios Latino-Americanos, p.197.
126
elaboração simbólica e movimentos sociais não deriváveis de seu lugar nas relações de
produção. A denominação popular facilitou estudar os setores subalternos, não apenas
como trabalhadores e militantes, mas como “invasores” de terras e consumidores. É
necessário delimitar melhor se o popular é uma construção ideológica, ou corresponde a
sujeitos e situações sociais nitidamente identificáveis. Os estudos sobre reprodução
social tornam evidente que as culturas populares não são simples manifestações da
necessidade criadora dos povos, nem acúmulo autônomo das tradições anteriores à
industrialização, nem resultado do poder de nomeação de partidos ou movimentos
políticos. 236
De acordo com o que analisei até aqui, nota-se que o conceito popular ainda
estava tomando forma neste momento de institucionalização da música popular
brasileira, do final dos anos sessenta. O povo cantado nas canções de Elis até 1969 são
homens trabalhadores e as suas manifestações culturais, apesar de as mesmas só se
referirem à capoeira, à religiosidade afro-brasileira e ao samba, de uma forma indireta,
uma vez que há pouca utilização do instrumental utilizado por estes, bem como a
presença de outros elementos que identificariam esse povo e suas manifestações.
Percebo mais um romantismo em relação ao povo inserido nestas canções, do que uma
efetiva preocupação em trazer para as músicas o que este povo realmente queria dizer,
além do mais, a perspectiva do que estes artistas/compositores achavam que era o povo
fez-se mais presente do que a própria voz e desejos deste povo, expressos nessas
canções.
Este é um tema bastante problemático e causa muitos equívocos, quando
mencionado. Ao analisar o congado e seus estudos ao longo do século XX, Glaura
Lucas percebe uma forte tendência destes estudos se configurarem por uma natureza
essencialmente descritiva. Podemos pensar que tais estudos abarquem também outros
tipos de conhecimento, referentes a outras manifestações musicais de nossa cultura
popular. Glaura cita, ainda, Suzel Ana Reily, que percebeu que a finalidade destes
estudos era o aproveitamento do material coletado e documentado para uma futura
reelaboração por artistas eruditos. Reily percebe que esta abordagem se estende ainda a
pesquisas recentes. De acordo com ela:
236 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade. - SãoPaulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997. – Ensaios Latino-Americanos, p.273.
127
“na medida em que o que motivou alguns desses primeiros estudos erauma busca pela construção de uma identidade nacional, brasileira, oobjeto folclórico tornava-se o foco principal de atenção, em detrimentode seus produtores e toda a diversidade sociocultural que o conforma eo determina” 237
Se este tipo de análise, que não leva em consideração a diversidade sociocultural
e os produtores de determinadas culturas, acontecia no universo intelectual, e ainda
ocorre em determinados estudos, imagino que não seja absurdo pensarmos também que
fosse recorrente no universo artístico dos anos sessenta. Não acredito que muitos destes
artistas convivessem e se interessassem por capoeira, candomblés ou escolas de samba.
Não que todos fossem desinteressados, como é o caso de Chico Buarque, que era
freqüentador de rodas de samba nos morros cariocas. Ou mesmo Edu Lobo, que conta
de suas férias, na época de adolescência, em Recife e como a musicalidade
pernambucana influenciou sua criação238. No entanto, quanto à Elis, não temos
nenhuma referência a buscas populares fazerem parte de suas inquietações criativas e
artísticas. Não estou realizando qualquer tipo de julgamento com esta análise, apenas
estou refletindo acerca da maneira como esse popular foi abordado pela classe artística
brasileira dos anos sessenta.
Importante elemento definidor de nacionalidade, a música, especificamente o
samba, passou a ser considerada, na década de 1930, como o que existia no Brasil de
mais brasileiro. Hermano Vianna trabalha em sua obra O Mistério do samba a
transformação do samba em um ritmo nacional brasileiro, em elemento central para a
definição da identidade nacional, da “brasilidade”. O autor destaca o fato de o samba
não ter nascido autêntico e sim, ter sido autenticado ao longo dos anos vinte e trinta.
Dentre os objetivos centrais dessa obra, está o de diagnosticar o processo de “invenção
de uma tradição” do samba enquanto expressão social de raiz. Vianna também
demonstra como o samba mudou o parâmetro pelo qual se pensava a nacionalidade,
uma vez que a mestiçagem, nos anos vinte e trinta, passou de mazela à definidora do
caráter nacional.239
237 REILY, Ana Suzel Apud LUCAS, Glaura. OS sons do Rosário: o congado mineiro dos Arturos eJatobá. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p.39.238 DVD Vento Bravo. Direção de Regina Zappa e Beatriz Thielmann, realizado pela Biscoito Fino em2007.239 VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ-Jorge Zahar Ed., 1994.
128
Esse tema de busca da expressão de uma identidade cultural da nação se fez
perceber também tempos depois nos movimentos musicais dos anos sessenta. De acordo
com Marcos Napolitano:
“a bossa nova foi a linha divisória de um debate entre aqueles que aviam como um “entreguismo” musical e cultural (Lúcio Rangel, JoséRamos Tinhorão) e reafirmavam um “neofolclorismo” que preservassea música dos “negros e pobres”, e um outro tipo de nacionalismo,geralmente defendido pelos mais jovens, que propunham a fusão deelementos da tradição com elementos da modernidade (Nelson Lins eBarros, Sérgio Ricardo e Carlos Lyra, dentre outros).”240
É também Napolitano quem chama a atenção para a ênfase nos dois momentos
históricos fundantes da moderna canção brasileira: os anos trinta e sessenta.241
Segundo Napolitano, compositores como:
“Vinícius de Moraes, Carlos Lyra, Nelson Lins e Barros, SérgioRicardo, dentre outros, destacavam a música popular como meio paraproblematizar a consciência dos brasileiros sobre sua própria nação eelevar o nível musical popular. Na perspectiva deles, a ideologianacionalista era um projeto de um setor da elite que, a médio prazo,poderia beneficiar a sociedade como um todo e a “subida aomorro”(expressão que sintetizava o contato com as classes populares)visava muito mais ampliar as possibilidades de expressão ecomunicação da música popular renovada do que imitar a música dasclasses populares. Perspectiva mais determinante até 1964, quando aconjuntura mudou e levou alguns artistas de esquerda a se aproximardas matrizes mais populares da cultura brasileira (como as praticadasnas comunidades do morro e do sertão) como uma reação ideológica aofracasso da “frente única” (a política de aliança de classes sociais etendências políticas diferentes em nome da defesa da nação) idealizadapelo PCB.242
Era comum, nos anos sessenta e também nos setenta, a identificação do artista
brasileiro com a causa do povo, às vezes vistos como indivíduos a serem
conscientizados e outras, como agentes de uma transformação social, já que eram
portadores dos valores que deveriam dar sentido à identidade nacional. A carreira de
Elis, assim como a de outros artistas, sofreu influência desse contexto, e certamente o
influenciou também. Suas primeiras gravações, no início dos anos sessenta, não a
aproximavam desse tipo de postura. Elis cantava, sobretudo, boleros e sambas-canção
240 NAPOLITANO, Marcos. A historiografia da música popular brasileira (1970-1990): síntesebibliográfica e desafios atuais da pesquisa histórica. In: Revista de Cultura e arte. V.8. n. 13. JUL-DEZ.2006, p.137.241 Idem, p.141.242 NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). 3 ed. – São Paulo:Contexto, 2006. – (Repensando a História), p.41.
129
de temática amorosa, o entanto, em meados dos anos sessenta, ela passou a interpretar
canções que tematizavam o povo brasileiro morador das favelas, o migrante, os
pescadores, capoeiristas e também o samba. A partir dos anos setenta, a temática
amorosa volta a ocupar o primeiro plano nas canções interpretadas por Elis, esse fato se
deve especialmente ao impacto do autoritarismo do governo militar e seu enrijecimento
com o AI-5 na cena musical brasileira, a partir de 1968.243
Elis Regina iniciou sua carreira artística no início da década de sessenta. As suas
canções possuem, desde então, temáticas variadas e diferentes formas de se relacionar
com o momento político do país, que passava por um período de crescimento do
mercado fonográfico nessa fase. Além disso, outras pressões eram freqüentes na
sociedade, como as cobranças por posicionamentos políticos bem definidos. Nesse
cenário, Elis interpretou canções de denúncia social e de resistência ao regime militar,
mas, também, canções românticas e que expressavam os seus sentimentos e os de seus
ouvintes. O objeto de estudo deste capítulo é a produção musical desta artista entre 1969
e 1974, momento de significativa modificação, e a postura adotada em sua carreira antes
de 1969, procurando, assim, ampliar a discussão sobre a obra da mesma, que não está
relacionada apenas ao conceito de engajamento.
O recorte vai até o ano de 1974, quando há uma nova guinada na carreira de
Elis, com a inserção de espetáculos temáticos em sua trajetória. Inicia-se uma nova fase
na carreira da cantora. No disco gravado em 1975, Falso brilhante, estão presentes as
músicas do espetáculo que leva o mesmo nome.
A inserção da música popular brasileira no mundo do consumo, principalmente
via festivais e programas televisivos, além de inúmeros espetáculos cênico-musicais,
provocou questionamentos e debates a respeito dos sentidos da arte/mercadoria sob um
contexto de desenvolvimento e massificação cultural. Diante desse fato, neste capítulo,
apresento algumas considerações sobre esses debates, em especial, o despertado pelo
movimento Tropicalista, e tento descobrir como tais questionamentos influenciaram, de
modo significativo, a carreira e repertório de Elis Regina.
Nos anos sessenta e setenta, a canção estava, de certa maneira, atrelada ao
campo político, ao representar os interesses e dilemas dos desfavorecidos socialmente
no país. Após 1964, a mesma transforma-se em um veículo de combate à ditadura, além
de conter em suas letras características de brasilidade. No entanto, em 1967, o
243 Segue em anexo um quadro com os discos gravados por Elis, com o número de canções por temáticaao longo do período analisado.
130
tropicalismo na música, juntamente com outras áreas como o teatro e as artes plásticas,
propõem uma revisão crítica do paradigma nacional-popular. Neste capítulo, mostrarei a
relevância da discussão dos estudos da canção popular no âmbito da cultura brasileira e
abordarei características da representação da nação em um movimento musical, político
e cultural, como foi o tropicalismo, e de que maneira isso se contrapôs ao que Elis
defendia naquele momento.
A perda de prestígio do programa O Fino da Bossa continuava, somada à
batalha entre a MPB e a jovem guarda, e foi ao extremo em meados de 1967, quando
Elis liderou, ao lado de Gilberto Gil, Edu Lobo, MPB-4, entre outros, a “Passeata contra
as guitarras elétricas”, no movimento “Frente Única da Música Popular Brasileira” que,
além dos interesses promocionais do novo programa musical da Record, Noite da MPB,
propunha combater a música estrangeira, caracterizando uma disputa por mercado e
demarcando uma identidade político-cultural.244
Sobre os problemas de audiência do programa O Fino, Caetano conta que estava
presente em uma reunião em que Elis era o centro das atenções, acompanhada do
marido Bôscoli, a quem Caetano chama de grande letrista e agitador da bossa nova,
produtor de TV. Neste encontro, todos falaram com grande entusiasmo em defender
nossas características culturais. Caetano conta, ainda, que Paulinho Machado de
Carvalho, diretor da emissora, depois de ouvir a todos, concordar com as indignações e
alistar-se no exército de salvação da identidade nacional, propôs, no lugar da
revitalização do programa, que se criasse outro, democratizando lideranças. Foram
criados quatro núcleos, comandados por Elis, Simonal, Vandré e Gil. Cada um
apresentaria um programa por mês e o mesmo se chamaria Frente Ampla de Música
Popular Brasileira.245
Sabe-se que é a partir deste momento que a indústria fonográfica passa a
perceber que o consumo era potencializado pelas disputas de movimentos, e a estimular
os embates, através de estratégias promocionais, pois os “movimentos musicais
deveriam ser bem configurados a partir de rótulos reconhecíveis e direcionados a faixas
de públicos específicas.” 246
244 NAPOLITANO, Marco. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, pp. 184-85.245 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p.159.246 NAPOLITANO, Marco. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, p.277.
131
Podemos pensar neste acirramento como uma tática de venda de produtos, sejam
eles musicais, jornais ou revistas. Aliás, muito da atração que os festivais de música
exerciam sobre o público advinha dessa espécie de partidarismo, formavam-se
verdadeiras torcidas: mpb versus jovem guarda, tropicália versus mpb. Caetano Veloso,
apesar de demonstrar revolta diante da caricatural disputa que se criou entre ele e Chico
Buarque, também admitiu que, na época “havia uma agressividade necessária contra o
culto unânime a Chico em suas atitudes.” 247
Analisando estudos referentes à indústria cultural, e tendo realizado entrevistas
com produtores musicais, Napolitano afirma que “somente em meados da década de
setenta, a indústria já possuía autonomia suficiente para racionalizar seus produtos
musicais de acordo com uma tendência de consumo mais estabilizada, cujo processo foi
facilitado pela institucionalização da MPB.” 248
Rita de Cássia Morelli também afirma que somente na década de setenta houve
um vertiginoso crescimento do mercado de discos no Brasil e que este crescimento não
ocorreu de modo a consolidá-lo imediatamente como um mercado moderno, nos
padrões internacionais. Morelli afirma, ainda, que a massificação do consumo de LPs
entre os jovens brasileiros só aconteceu de fato nos anos oitenta, com o rock urbano.249
É interessante notarmos como esta análise dos autores citados acima é próxima
da observação feita por Mazzola em sua autobiografia. O autor/produtor, que era um
dos mais respeitados produtores de discos no início da década desetenta, relata sua
busca por uma melhor técnica, através de viagens internacionais. Mazzola trabalharia na
produção dos discos de Elis a partir de 1971, ele conta que a escolha de microfones nos
anos sessenta, diferentemente de hoje, em que os computadores resolvem grandes
problemas, era fundamental para captar a melhor acústica da sala de gravação. 250As
melhorias técnicas dos estúdios se depararam com um ambiente ainda marcado pelo
experimentalismo, na visão de Mazzola.
Segundo Morelli, foi a existência de um projeto político de integração
econômica e cultural no país que proporcionou, de fato, a unificação do mercado
simbólico ocorrida entre as décadas de sessenta e setenta. De acordo com a autora, o
247 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p.233.248 NAPOLITANO, Marco. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, p.312.249 MORELLI, Rida de Cássia Lahoz. O campo da MPB e o mercado moderno de música no Brasil: donacional-popular à segmentação contemporânea. Publicado em: ArtCultura: Revista de História, Culturae Arte, v.10, n.16, jan-jun 2008 – Uberlândia, p.90.250MAZZOLA, Marcos. Ouvindo estrelas: a luta, a ousadia e a glória de um dos maiores produtoresmusicais do Brasil. – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007, p.34.
132
caráter nacional ou estrangeiro das expressões musicais populares serviu como critério
de sua hierarquização, bem como seu engajamento ou não no processo político de
construção nacional. 251
Outro autor que demonstra a importância que os anos sessenta e setenta tiveram
para a cristalização dos padrões de consumo e para a organização de toda a indústria
fonográfica no país é Eduardo Vicente. Vicente afirma que tivemos não somente um
extraordinário crescimento do mercado, como também sua aproximação de alguns dos
padrões internacionalmente dominantes, como o da preponderância da empresa
transnacional sobre a nacional e do conglomerado sobre a de orientação única. Ele
salienta, ainda, que uma das conseqüências desse processo foi a intensificação do uso
das estratégias integradas de promoção, envolvendo redes de rádio e TVs, situação que
acabou dando à produção e distribuição das trilhas de novelas uma grande relevância no
contexto da indústria.252
De acordo com Vicente, mesmo antes da chegada das gravadoras internacionais,
os catálogos de várias delas já eram impressos e/ou distribuídos entre nós por empresas
brasileiras. A norte-americana Colúmbia (CBS), por exemplo, era representada no país,
desde 1929, pela Biyngton & Cia, através do selo Colúmbia do Brasil. Após sua
instalação no país, em 1953, a empresa de Biyngton adotou o selo Continental e o nome
de Gravações Elétricas S.A, tornando-se a maior empresa brasileira do setor.253 É
interessante apontarmos aqui o fato de que as primeiras gravações de Elis foram
realizadas pela Continental, demonstrando que ela sempre manteve ligação com as
maiores distribuidoras do país.
Segundo Vicente, em relação à MPB tradicional, todos os artistas de maior
projeção concentravam-se efetivamente em gravadoras multinacionais, principalmente
na Phillips (em 1965, Elis se torna contratada da Philips) que, durante os anos setenta,
chegou a congregar praticamente todos os nomes expressivos do segmento, como
251 MORELLI, Rida de Cássia Lahoz. O campo da MPB e o mercado moderno de música no Brasil: donacional-popular à segmentação contemporânea. Publicado em: ArtCultura: Revista de História, Culturae Arte, v.10, n.16, jan-jun 2008 – Uberlândia, p.100.252 VICENTE, Eduardo. Organização, crescimento e crise: a indústria fonográfica brasileira nasdécadas de sessenta e 70. Artigo publicado em: Revista de Economía Política de las Tecnologías de laInformación y Comunicación www.eptic.com.br, Vol. VIII, n. 3, sep – dic. 2006, p.126.253 Idem, p.116.
133
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Gal Costa, Maria Bethânia, Jorge Ben e
Elis Regina, entre outros.254
Percebe-se, então, que a consolidação da carreira artística de Elis coincide com a
própria organização de toda a indústria fonográfica no Brasil. Desde suas primeiras
gravações, percebemos o nome de Elis atrelado ao das maiores empresas do ramo de
produção e distribuição de música, e também às maiores redes de televisão do país. A
partir da análise de reportagens realizadas sobre Elis ao longo de sua carreira, e de
vídeos de entrevistas, percebo uma artista com relativa liberdade de atuação, visto os
inúmeros programas de TV apresentados, bem como shows em teatros e em circuitos.
No entanto, os limites destas pesquisas impossibilitam um maior detalhamento da
relação de Elis com suas gravadoras. Levanto, então, algumas questões para futuras
abordagens: Qual o grau de autonomia que Elis realmente tinha? Por que a escolha de
determinadas gravadoras em detrimento de outras? Havia imposição de escolha de
repertório e público a ser atingido?
No tópico apresentado a seguir, analisarei o surgimento do movimento
tropicalista e seus desdobramentos. Perceberemos que Elis desaparecerá por alguns
momentos da análise, para retornar mais adiante. Acredito ser pertinente uma análise
pormenorizada das intenções tropicalistas para melhor refletir e inserir esta discussão
frente às novas escolhas realizadas por Elis após este fenômeno.
3.1 - O tropicalismo pede passagem
Napolitano aponta o tropicalismo como a ponte entre uma cultura política
nacional-popular, que organizava o consumo cultural, e uma cultura de consumo que
negava o nacional-popular, mas ao mesmo tempo incorporava seus fragmentos, diluídos
em outros materiais artísticos. Segundo o autor, “a decifração de uma situação ambígua,
a MPB como mercadoria exposta e os bens culturais elevados à condição de arte, davam
o tom de enigma histórico ao tropicalismo musical.” 255
De acordo com Caetano Veloso:
254 VICENTE, Eduardo. Organização, crescimento e crise: a indústria fonográfica brasileira nasdécadas de sessenta e 70. Artigo publicado em: Revista de Economía Política de las Tecnologías de laInformación y Comunicación www.eptic.com.br, Vol. VIII, n. 3, sep – dic. 2006, p.125.255 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp: 2001,pp.284- 285.
134
“... o nacionalismo dos intelectuais de esquerda, sendo uma mera reaçãoao imperialismo norte-americano, pouco ou nada tinham a ver comgostar das coisas do Brasil ou – o que eu mais me interessava – compropor, a partir do nosso jeito próprio, soluções originais para assoluções do homem e do mundo...” 256
Em 1967, Gilberto Gil declara ao Jornal da Tarde sobre uma possível vaia, ao
apresentar Domingo no parque acompanhado de guitarras elétricas:
“Mas estou tranqüilo. Seria muito mais cômodo se eu estivesseconcorrendo ao Festival com músicas como Roda ou Louvação,composições minhas já aceitas pelo público. Mas isso seria umadesonestidade para comigo mesmo e para com o público, porque nãorepresentariam a minha maneira de pensar atual. E não faço isso emtermos de desafio, acho apenas que todas as experiências são válidas namúsica, vista de maneira universal.”
Gil conta, ainda:
“Sinto-me hoje como num tribunal, onde sou acusado de trair averdadeira música popular brasileira. E não tenho muitas respostas paradar, porque eu mesmo não sei se estou agindo certo ou errado, comoninguém no mundo pode ter a certeza de alguma coisa antes de searriscar a fazê-la. Também não posso me arvorar e dizer que eu estoucerto, os outros é que estão errados.” 257
Esses depoimentos de Gil, além de demonstrarem uma consciência quanto ao ato
de fazer canções, expressos tanto no fato de ter que se sentir atualizado com as questões
que canta, quanto a atingir o público, mostram-nos também como era pesado o clima da
música popular nesta época, expressadas nas palavras tribunal, traição e verdadeira
música. A busca por uma universalidade musical também fazia parte dos desejos de Gil.
Anos após o que fora considerado uma revolução estética, e também com
maturidade e distanciamento para uma análise menos emotiva e mais racional do
evento, Gil declara:
“Nós fazíamos uma tentativa de adaptação de elementos brasileiros,elementos da música baiana e nordestina, elementos da tradição urbanado Rio e de São Paulo, da bossa nova, de Jobim. Juntávamos tudo issopara produzir uma música pop brasileira; que ainda que se utilizasse decoisas que vinham de fora e se baseassem nelas acabavamtransformando em coisas completamente diferentes. Foi uma coisa de sejogar, uma coisa de paixão absoluta de expressão pela coisa da música.
256 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p. 87.257 Publicado no Jornal da Tarde, em 4 de outubro de 1967 (sem crédito).
135
Eu não tinha projeto intelectual, isso ficava mais a cargo de CaetanoVeloso.” 258
Muito se falou deste movimento, tanto na época em que acontecia, quanto
depois. Seus principais mentores, Caetano Veloso e Gilberto Gil, foram presos e depois
exilados, de dezembro de 1968 até janeiro de 1972, portanto fora curta e breve a vida
deste movimento, diferentemente dos seus desdobramentos.
Marcelo Ridenti considera o movimento tropicalista como a mais expressiva das
transformações por que passava a sociedade no final da década de sessenta. Para o
autor, o tropicalismo é constituinte da brasilidade revolucionária, ao mesmo tempo em
que anuncia seu esgotamento e sua superação. Misturava-se a sintonia internacional
com a recuperação de tradições populares, o que levava os tropicalistas a brigarem com
o nacional-popular no campo da canção. 259
A estética e a prática tropicalista propunham, baseadas na leitura do “Manifesto
Antropofágico” do poeta Oswald de Andrade, uma experiência de contaminação com as
culturas que nos cercam. Uma mistura de Jimi Hendrix com Beatles, de berimbau com
sanfona. Em uma arte onde colaborou tanto o erudito quanto o popular, o carnavalesco,
a alquimia tropicalista reunia o primitivo nacional e o moderno. Ambíguo, o movimento
juntava o jeito clean de João Gilberto ao modo de cantar carregado de Vicente
Celestino, o fino da poesia concreta ao brega dos boleros e o purismo nacionalista dos
sons regionais nordestinos às informações trazidas de fora, pelo rock. Os baianos
redescobriram Oswald e um país rico de contrastes, virando pelo avesso o que se
entendia por cultura popular brasileira. 260
Segundo Celso Favaretto:
“A mistura tropicalista notabilizou-se como uma forma sui generis deinserção histórica no processo de revisão cultural que se desenvolvedesde o início dos anos sessenta. Os temas básicos dessa revisãoconsistiam na redescoberta do Brasil, volta às origens nacionais,internacionalização da cultura, dependência econômica, consumo econscientização.” 261
258 Gilberto Gil La passion sereine. Produzido no Brasil em 1987 pela TF1 em associação com o “Centrede la Cinematographie Et Du Ministeire Des Affaires etrangeres”, dirigido pelo diretor francês HubertNiogret.259 RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política – São Paulo: EditoraUNESP, 2010, p.101260 COELHO, Frederico Oliveira. & NAVES, Santuza Cambraia. A Revista de História da BibliotecaNacional. Ano 1- n.1- Julho 2005, p.30261 FAVARETTO, Celso F. Tropicália: alegoria, alegria. São Paulo, Kairós, 1979, p.13.
136
Envolvendo diversos artistas, como Caetano, Gil, Mutantes, Tom Zé, Gal Costa,
Rogério Duprat e, por associação, Zé Celso, Hélio Oiticica, Augusto de Campos,
Nelson Motta, dentre outros, o movimento tropicalista realizou uma espécie de revisão
crítica da cultura brasileira no âmbito da linguagem, da informação e do consumo,
despertando, como se esperava, reações de oposição. Através dessa revisão, esse grupo
legitimou sua atuação, pois estabeleceu antagonismos com outro movimento ou
ideologia considerado dominante, realizando releituras de suas problemáticas e
mostrando suas inconsistências.
Além dos laços com os poetas concretos, a participação de músicos vinculados
às correntes de vanguarda da música erudita, como Júlio Medaglia e Rogério Duprat,
que fizeram o arranjo de várias canções tropicalistas foi fundamental dentro do
tropicalismo.
A primeira aparição pública da proposta tropicalista no cenário nacional,
segundo Celso Favaretto, ocorreu no III Festival da Canção da TV Record, em Outubro
de 1967, com as músicas Domingo no Parque, de Gilberto Gil, e Alegria, alegria, de
Caetano Veloso. Apesar do impacto causado, as músicas de Caetano e Gil não foram as
vencedoras do festival, ficando, respectivamente, em quarto e segundo lugar. Mas o
festival foi o ponto de partida de uma apresentação que logo seria denominada de
tropicalismo e transformaria ambos em astros. Nessa época, os festivais, promovidos
pelas redes de televisão, eram um espaço de movimentação e manifestação de idéias
revolucionárias. Mais tarde, ambos teriam seu próprio programa de TV na Record, além
de se apresentarem em boates com esta proposta.
De acordo com Napolitano:
“O termo Tropicalismo, tal qual foi entendido nos anos sessenta,apareceu num manifesto-blague intitulado Cruzada Tropicalista,redigido por Nelson Motta. A intenção do manifesto-blague não eradifundir novos procedimentos de criação, mas apenas ridicularizar atendência ao “mau gosto” que eles, identificavam como a principalmatriz da cultura e da sociedade brasileira, que havia perdido o “trem dahistória” em 1964.” 262
Em entrevista, Motta conta que:
“Fora porta-voz do Tropicalismo e do Cinema Novo. Todo mundo eraamigo do Glauber [Rocha], do [Luiz Carlos] Barreto, do Cacá Diegues.Essa turma me dava as melhores notícias, porque eram meus amigostambém. Nunca tive esse espírito de repórter – que não condeno -, mas
262 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP: 2001, p.247.
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não tenho essa coisa de notícia a qualquer preço, essa ambição dequerer saber da coisa antes dos outros, de informar, nunca liguei praisso. Gostava mais de fazer comentários, de analisar uma coisa, dejuntar com outra, não tenho essa alma de repórter. Então por essacaracterística, nessa coluna chamada “Roda Viva”263,eu usei para jogarluz em cima de coisas novas que estavam aparecendo e que não tinhamespaço em jornais mais caretas. Não havia em jornais o que estavafervilhando de cinema, de música, de literatura”.264
De acordo com Motta, O rei da vela e Terra em transe representaram, para Gil e
Caetano, uma poderosa inspiração e base estética para a sua revolução musical, tanto
quanto os Beatles, Janis Joplin e Jimi Hendrix. Segundo o autor, a montagem de Zé
Celso se opunha radicalmente ao formalismo político do Teatro de Arena, o filme de
Glauber Rocha explodia os folclorismos e paternalismos, a música de Gil e Caetano
rompia com a estética populista de esquerda musical. Eram oposição à oposição, e
contra a situação, mais do que nunca. 265O tropicalismo assumiu uma postura de
ruptura, contra o nacional-popular, em busca de uma nova forma de expressão artística e
inclusão no mercado. O movimento foi pólo ativo de uma nova inserção de artistas e
intelectuais na sociedade, da passagem de uma cultura política de matriz romântica
(popular-nacional) para uma cultura de consumo. Diferentemente da proposta da
esquerda nacionalista, que pretendia valorizar os elementos “arcaicos” da nação, o
tropicalismo se afirmava no contexto cultural, expondo esses elementos de forma
ritualizada. 266
Segundo Favaretto, o movimento tropicalista dava importância a
reinterpretações de compositores da tradição musical brasileira, esquecidos, tidos como
comerciais pela crítica, e estrangeiros que marcaram o gosto do púbico. Os tropicalistas
se utilizavam de colagens, livres associações e procedimentos pop eletrônicos,
objetivando fazer a crítica dos gêneros, estilos e, mais radicalmente, do próprio veículo
e da pequena burguesia, que vivia o mito da arte. No que diz respeito à situação da
canção no Brasil, o movimento tropicalista se propôs reinventá-la e tematizá-la
criticamente.
263 Em 1967 Motta escrevia essa coluna a convite de Samuel Wainer no Última Hora, sobre música,cinema novo, música popular, sobre Hélio Oiticica, sobre a geração 65 de artistas plásticos, era umacoluna do público jovem. In: A MPB em discussão: entrevistas / Santuza Cambraia Naves, FredericoOliveira Coelho, Tatiana Bacal (Organizadores) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p.46264 A MPB em discussão: entrevistas / Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho, Tatiana Bacal(Organizadores) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p.46.265 Idem, p.168.266 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(1959-1969). São Paulo: Annablume: FAPESP: 2001, p.247.
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O disco Tropicália ou Panis et Circencis, manifesto do movimento, foi lançado
em 1968, com colagens de sons e citações poéticas. Composto por Gil, Caetano,
Torquato Netto, Capinam e Tom Zé, tinha Nara Leão como convidada e arranjos de
Rogério Duprat. Considero interessante citar a análise feita por Favaretto sobre a capa
do disco:
“Veja-se a capa: ela compõe a alegoria do Brasil que as músicasapresentarão fragmentariamente... Sobressai a foto do grupo, à maneirados retratos patriarcais; cada integrante representa um tipo: Gal eTorquato representam um casal recatado; Nara, em retrato, é a moçabrejeira; Tom Zé é o nordestino, com sua mala de couro; Gil sentadosegurando o retrato de formatura de Capinam, vestido com toga decores tropicais, está à frente de todos, ostensivo; Caetano, cabeleiradespontando, olha atrevido; os Mutantes, muito jovens, empunhamguitarras e Rogério Duprat, com a chávena-urinol, significa Duchamp.As poses são convencionais, assim como o décor: jardim interno de casaburguesa, com vitral ao fundo, vasos, plantas tropicais e banco depracinha interiorana. O retrato é emoldurado por faixas compondo coresnacionais, que produzem o efeito de profundidade... na capa representa-se o Brasil arcaico e provinciano; emoldurados pelo antigo, ostropicalistas representam a representação”. 267
Acredito que a análise da sétima faixa do álbum, Baby, sintetize bem a idéia do
movimento. A música de Caetano foi construída com base no ritmo da marcha
rancho, mas os arranjos de corda, baixo e violão complementando a melodia,
transformam a canção em algo novo, representando a busca tropicalista por uma
sonoridade pop brasileira:
Você precisa saber da piscina,da margarina, da Carolina, da gasolinavocê, precisa saber de mimbaby, babyeu sei que é assim
Você precisa tomar um sorvetena lanchoneteandar com a gente, me ver de pertoouvir, aquela canção do Robertobaby, babyhá quanto tempo
Você precisa aprender inglêsprecisa aprender o que eu seie o que eu não sei mais e o que eu não sei maisnão sei, comigo vai tudo azulcontigo vai tudo em pazvivemos na melhor cidade
267 FAVARETTO, Celso F. Tropicália: alegoria, alegria. São Paulo, Kairós, 1979, p.55.
139
da américa do sulda américa do sulvocê precisa, você precisa, você precisanão sei, leia na minha camisababy, baby, I love youbaby, baby, I love you268
A letra de Caetano convida o ouvinte a gostar de coisas banais, como tomar
sorvete e comer margarina, ato totalmente contrário ao que era pregado pelas músicas
de protesto. Ouvir aquela canção do Roberto é claramente uma referência à Jovem
Guarda. Caetano alerta sobre o consumismo e o fato da música se constituir enquanto
mercadoria. No início de cada estrofe, a frase Você precisa saber, parece alertar o
ouvinte quanto ao aspecto de não ser alienado. Trata-se de idéias fragmentadas, da
moderna realidade brasileira em contato com inúmeros aspectos internacionais, vistos
na necessidade de se aprender inglês.
Em Verdade Tropical, livro escrito 20 anos após o movimento, Caetano afirma
que, se o tropicalismo se deveu em alguma medida a seus atos e às suas idéias, tem que
se considerar o impacto que teve Terra em transe de Glauber Rocha, em sua temporada
carioca de 1966-1967, como deflagrador do movimento .269 Além disso, Caetano atribui
a João Gilberto uma postura de inovador, ao valorizar a contenção, ressaltando mais de
uma vez a ruptura joãogilbertiana com as tradições musicais brasileiras anteriores à
bossa nova, contrárias ao emocionalismo excessivo da música popular das décadas de
quarenta e cinquenta, também presente no programa O Fino da Bossa, apresentado por
Elis.
Várias são as passagens do livro em que Caetano se mostra incomodado com o
estilo de música tocado no Beco das Garrafas, que o autor caracteriza como samba-jazz
cheio de tiques. Ao refletir acerca do espetáculo que ajudara a produzir, juntamente com
seus amigos baianos e Augusto Boal, Arena canta Bahia, Caetano fala do desejo desse
diretor em não inserir canções de Dorival Caymmi, e sim os arranjos “cheios de tiques –
nitidamente inspirados nos números de Elis Regina no programa de TV O Fino da
Bossa”, de fácil acolhida, não só para Boal, mas também para os músicos. O diretor
sugeriu que além de uma pureza regional, queria atingir a juventude urbana que
entendia essa linguagem.270 Caetano identifica Boal como um defensor das opções
268 Baby. Composição Caetano Veloso. Gravação de Gal Costa e Caetano Veloso. Tropicália ou Panis etcircensis, LP, Philip, 1968. Faixa 7 (Segue em anexo os discos analisados na página 190).269 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p. 99.270 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p. 85.
140
estéticas da esquerda e explica seu incômodo pelo fato de as músicas de Dorival não
fazerem parte do repertório desse espetáculo, já que se tratava de falar da Bahia.
Caetano ressalta que foi uma viagem para uma temporada de apresentações em
Recife, em 1966, que teria feito com que Gil retornasse querendo realizar reuniões com
todos os colegas bem intencionados, para engajá-los em um movimento que
desencadearia as verdadeiras forças revolucionárias da música brasileira, para além dos
slogans ideológicos das canções de protesto, dos encadeamentos elegantes de acordes
alterados, e do nacionalismo estreito.
Segundo Caetano, este ânimo e transformação de Gil se deveram à sua
percepção da violência da miséria e da força da inventividade artística, esta dupla lição
pernambucana serviria para eles como um roteiro de conduta. Gil voltou sabendo que
seria necessário eles penetrarem nestas questões para, só assim, compreenderem os
mecanismos e características da cultura de massa. O retorno dessa viagem, para
Caetano, teria unido os pontos dispersos e as tendências difusas em um projeto de
movimento consciente e intencional, que requeria uma espécie de militância. 271
Caetano conta que:“na altura das reuniões de catequese organizadas por Gil, Torquato játinha aderido ao ideário transformador: os Beatles, Roberto Carlos, oprograma do Chacrinha, o contato direto com formas cruas de expressãorural do nordeste – tudo isso Torquato já tinha digerido e metabolizadocom espontaneidade suficiente para deixar entrever sua apreensão datotalidade do corpo de idéias que defendíamos.” 272
Sobre esta viagem à Recife, Gil conta que:
“Foi uma grande porrada. Eu cheguei no Recife, fui fazer um show noteatro popular do Nordeste. Fiquei lá um mês e o pessoal em Recifetinha muito aquela coisa de cultura popular, naquela época era umacoisa bem viva pro pessoal universitário, tudo o mais eles tinham essapreocupação com folclore. Então como eles achavam que eu era umcompositor, um dos compositores, um dos artistas brasileirosinteressados naquela coisa, então eles faziam questão de levar, degravar ciranda pra mim, me levar para ver a banda de Pífaros, emCaruaru. Eu chorei, fiquei emocionado, de ver aquela coisa tremenda.Então eu voltei do Recife pro Rio com certeza de que alguma coisatinha que ser feita em termos de movimento, em termo de integraçãodaquelas necessidades que eu achava que já existiam no universitáriobrasileiro, ali...Onde Recife é bem um exemplo, Cê tá entendendo?Nessa época Sérgio Ricardo era Sérgio Ricardo, Caetano Veloso eraCaetano Veloso, Vandré era Vandré, e eu era eu, tudo o mais. Eu tavamuito, sei lá...foi uma porrada que eu tomei lá e que me fez tomar outra
271VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p.131.272 Idem, p.141.
141
no Rio, ta entendendo? Quando eu comecei a reunir o pessoal, pra ver oque a gente fazia...isso foi em 1967, pouco antes do festival deDomingo no parque, de Alegria, alegria. Então aí nessa tentativa dereunir o pessoal, nada deu certo. Chico inclusive fala, sem citar a época,mas ele fala na entrevista a vocês, onde se tentava reunir o pessoal,então chegava um bêbado, outro chegava tarde, outro tinha que sair...osoutros não concordavam com nada daquilo. E eu com aquela ilusão dereunir o pessoal. Na verdade era uma atitude minha , era reflexo de umamá consciência política, tentando misturar tudo com aquela confusão nacabeça de música de protesto, aquela coisa toda de música participante,não sei quê. Foi uma época em que eu estava realmente muito confuso.Muito por fora, cê ta entendendo? Mas também me desencantei logo,tudo ficou muito claro que não dava certo.”273
É pertinente esta longa citação, por se tratar de um importante depoimento dado
alguns anos após a eclosão do movimento. Nele, ficam claras as posturas de Gil e seus
medos e incertezas. Gil diz ter percebido, nesta viagem, que as coisas e o povo do Brasil
de que a esquerda tanto falava e idealizava não era de fato levada em consideração ou
mesmo conhecida por grande parte desses artistas, ele fala, ainda, do sentimento de
confusão em relação às coisas que representavam as canções de protesto. Nota-se que
ele tentou, em vão, reunir os músicos e pessoas engajadas, mas ninguém levou isso
muito a sério.
Caetano conta que várias foram as manifestações de repúdio ao que faziam. Eles
almejavam, com o Tropicalismo, demonstrar o comercialismo das canções assumindo
sua inserção no mercado, sem culpas ou traumas, e principalmente, o desrespeito aos
princípios do projeto estético das esquerdas, dito nacional-popular. O cantor conta,
ainda, que foi em uma entrevista dada à Manchete, ainda nos anos sessenta, que ele
ouviu João Gilberto pela primeira vez, e teve vontade de fazer música. Segundo ele,
depois disso, industrializou-se (mas não muito) um samba classe A com aparatos
jazzísticos e clichês políticos, o qual à medida que ia perdendo o espaço, deixava de ser
um bom produto, para se tornar apenas uma idéia de defesa da pureza de nossas
tradições contra todo o lixo vendável, dentre eles boleros, versões e até mesmo o rock.
Caetano disse se sentir perdido frente a essas declarações e que jamais havia pensado
em música como um produto, além de não considerar o Fino da bossa como a salvação
de nossas tradições.274
De acordo com ele:
273ALMEIDA, Hamilton. (entrevistador) “O sonho acabou, Gil está sabendo de tudo”. O Bondinho,16/02/1972.274 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p. 207.
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“O tropicalismo começou em mim dolorosamente. O desenvolvimentode uma consciência social, depois política e econômica, combinada comexigências existenciais, estéticas e morais que tendiam a pôr tudo emquestão, me levou a pensar em canções que eu ouvia e fazia. Tudo o queveio a se chamar de tropicalismo se nutriu de violentações de um gostoamadurecido com firmeza e defendido com lucidez...” 275
Sobre a defesa articulada do ideário nacional-popular que, de acordo com
Caetano, permeava todos os julgamentos dos esquerdistas brasileiros, ele recorda as
primeiras vezes em que escreveu um artigo combatendo as idéias de Tinhorão; sentia a
falta de discussões sobre, por exemplo, sexo e raça, elegância e gosto, amor ou forma e
não somente de discussões como proletariado e ditadura, palavras que rejeitava.276
De acordo com o cantor, todas as discussões, fossem dentro ou fora do Teatro
Jovem, eram permeadas pelas idéias da arte nacional-popular, cultivadas desde antes do
golpe de Estado, no Centro Popular de cultura da UNE, e pelas exigências estéticas dos
harmonicamente sofisticados filhos da bossa nova. Ele comenta, ainda, que Bethânia,
por não se filiar a nada, gostava e lhe chamava a atenção para a vitalidade dos
programas de Roberto Carlos, que era o contrário do que se via no ambiente defensivo
da MPB respeitável. Explica o quão escandaloso seria contar a este público uma
possível adesão à jovem guarda, demonstrando a forte rivalidade presente no meio
artístico que dividia e segmentava opiniões.277
Das questões centrais apresentadas em seu livro, além de reflexões e auto-
questionamentos, são discutidos aspectos como o nacional e o estrangeiro, os debates
estéticos musicais que permearam um ideário de pureza e representações de brasilidade.
O emblema deste movimento seria Carmem Miranda, uma vez que tal personagem era
um signo sobrecarregado de afetos contraditórios, para Caetano. Escrevendo as
memórias do tropicalismo, Caetano diz que o livro foi “um esforço no sentido de
entender como passei pela Tropicália, ou como ela passou por mim, porque fomos, eu e
ela, temporariamente úteis e talvez necessários um ao outro...” 278. Ao narrar sua história
e, consequentemente, a história da música brasileira, o músico se esforça também por
construir sua própria identidade.
O nacional-popular estava presente, não só na obra de Elis, mas em boa parte da
música que se fazia nos anos sessenta. O popular, para os tropicalistas, era o homem
urbano e antenado com as coisas do mundo, um homem que gostava de assistir
275 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998.255.276 Idem, pp.115-6.277 Idem, ibidem, p.121.278 Idem, ibidem, p. 18.
143
Chacrinha e de ouvir Vicente Celestino e Beatles. No entanto, podemos perceber, que,
até então, o popular não era tão conhecido e explorado pelos meios artísticos, através da
viagem realizada por Gil a Recife, e seus respectivos desdobramentos, quando Gil ouve
determinadas manifestações ditas da “cultura popular” e tenta entender seus
significados. Sua tentativa em criar um movimento para discutir esses aspectos, assim
como a falha em alcançar tal objetivo, indicam como o movimento tropicalista não
segue essa busca do popular, assim como a almejada por Gil, já no final dos anos
sessenta.
Os locais tidos como de pureza e autenticidade brasileira, como o sertão e o
morro, como percebemos no capítulo anterior, dão o sentido ao nacional-popular
cantado por Elis. Caetano caracteriza o que seria nacional, ou mesmo popular, como
algo ingênuo e “cru”. Caetano utiliza palavras como “tosco” para representar a música
pertencente às culturas populares. Exemplificando esta questão, ao citar a Banda de
Pífanos de Caruaru, ele a descreve como “um grupo musical de flautistas toscos do
interior de Pernambuco, cuja força expressiva e funda marca regional aliavam-se a uma
inventividade que não temia se autoproclamar moderna” 279. De acordo com o
dicionário Aurélio, tosco significa não lapidado, não polido, bronco, grosseiro ou rude,
malfeito. Em outra passagem em que podemos perceber este tipo de caracterização, é
quando Caetano se refere a um convite feito por Vandré a Clementina de Jesus
“conhecedora de lundus e sambas arcaicos... o público não estava preparado para ouvir
o samba tão cru e tão autêntico...” 280
Em 1972, a percepção do grupo, frente aos conhecimentos musicais das culturas
populares, foi descrita por Gilberto Gil, em entrevista à Veja, pelo motivo de seu retorno
ao Brasil:“... por exemplo, o samba em si, o samba como forma. O fato de eu me
sentir aqui, digamos, culturalmente irresponsável, engajado numamúsica pop que não sofre a força da gravidade, me faz sentir falta dacoisa brasileira. Quero ir ao morro falar com os sambistas. No meu casopessoal, o importante é que eu comecei o meu contato com a músicanum nível já mais estratificado, numa camada de elite. Meu contatocom a música foi na base da bossa nova. Agora, quero um contato coma ‘real thing’. Eu era um músico da elite. Minha forma de tocar violãosó hoje se aproxima da que os músicos naturais conseguem. A minhavolta também está ligada a isto. Quero me expor a toda essaexperiência, conversar com músicos brasileiros, com o Paulinho da
279 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p.131.280 Idem, p. 164.
144
Viola, ir a algumas cidades do Nordeste encontrar violeiros repentistas.E por aí afora.” 281
Em 2007, entrevistado por Ana Paula de Oliveira282e questionado sobre as
poucas referências em relação à questão étnica no Tropicalismo, Gil responde:
“Eu nunca tinha ido ao candomblé. Só fui depois do exílio. Aí é queme aproximei dos blocos, do significado profundo do carnaval daBahia. Salvador é uma cidade já muito misturada. Vivi a infância e aadolescência no bairro de Santo Antônio, que é médio por excelência.Quer dizer, um bairro onde convivem árabes, negros, espanhóis,brancos, mestiços, mulatos, cafuzos, gente do sertão... E todos de classemédia, com casa e profissão liberal. E a média é a média. Vivi ali, namédia das coisas, sem perceber os pólos. Só fui sentir o racismoquando comecei a ir ao Colégio Marista, de pequenos burgueses, namaioria brancos. [...] Por isso, eu não tinha noção dessa profundadivisão racial e muito menos da cultural. Os blocos eram afros, masincluíam todo mundo! Era a própria cidade de Salvador, como nós,mulatos. Durante o exílio, vi que na Inglaterra a questão racial tinhamais peso. Então conheci a consciência negra como um trabalhoapoiado no mundo inteiro pelos ativistas americanos, e a informaçãoexaustiva sobre os movimentos de libertação na África... Isso culminouem mim quando saí nos Filhos de Gandhi. Depois fui ao Festival deArtes Negras na África. E aí vem Refavela, que é o primeiro manifestonegro, não é?” [grifos meus]
Estas citações de Gil, bem como a análise de Caetano referente ao universo da
musicalidade popular, demonstram que a busca por elementos brasileiros para se
inserirem em suas músicas se configurou mais por um popular no sentido de massivo.
Eles inseriram em suas músicas o Brasil popular do Chacrinha e das músicas tocadas
nas rádios e não das manifestações nacionais, que eram marcantes nos carnavais e festas
populares.
O que percebo no tropicalismo é uma a retomada radical de uma questão
estrutural, ligada à identidade nacional: de tempos em tempos, perguntar-se sobre a sua
natureza. A ambição tropicalista era “reler” o país entendendo-o, buscando o
espelhamento, não somente em um único Brasil, mas em inúmeros Brasis, e também em
influências que vinham de fora. A música brasileira se revelou com importância de
primeira grandeza para explicar o Brasil.
Assim sendo, a retomada da discussão da brasilidade pelos artistas tropicalistas
desestruturou a visão mítica da MPB, isto é, o entendimento da nação com a
possibilidade de ser próspera e poderosa, desde que se combatesse o imperialismo e a
281 KUCINSKI, Bernardo. (entrevistador). “As experiências e a volta de Gilberto Gil”. Revista Veja19/01/1972.282 Para o site: www.tropicalismo.com.br. Acessado em 03/05/2011.
145
ditadura militar e se contrapusesse esse homem do povo à modernidade, que provocava
tantos problemas sociais. O tropicalismo apresentou as inconsistências ideológicas deste
projeto, que visava eleger somente algumas características como representantes da
brasilidade. Para os tropicalistas, tudo era deglutível e necessário para realizar arte.
Entendo que os tropicalistas compartilhavam a visão da esquerda de que a produção
artística devia estar associada a transformações revolucionárias, mas discordavam no
entendimento do que seriam estas transformações e de que forma se realizariam.
3.2 - Elis: mudanças e continuidades
O lugar ocupado por Elis Regina, em meio ao cenário artístico nas décadas de
sessenta e setenta, foram os teatros, os festivais, a televisão e, posteriormente, inúmeras
cidades do interior do Brasil, em um circuito universitário, realizado em 1972. Pode-se
perceber, na carreira de Elis, uma constante busca sua e de sua produção por novos
locais de apresentação. A perda de prestígio do Fino da Bossa e o ataque tropicalista ao
nacional-popular, dentre outros inúmeros fatores analisados a seguir, modificariam sua
postura e obra, no final dos anos sessenta e início dos setenta.
Elis trazia, desde o Clube do Guri, a tradição do samba-canção e dos boleros e a
voz cheia de ornamentos. É a partir do LP lançado em 1969 que fica perceptível a
mudança, alardeada por Elis na contracapa de seu LP, em 1966. No início de sua
carreira, quando se apresentou nos festivais e também no seu programa televisivo, ela
era conhecida como Eliscóptero283, por suas danças e movimentações, que
demonstravam uma ruptura com a bossa nova, através de uma performance sem
contenções.
Podemos dizer que Elis, juntamente com outros artistas, foi responsável pelo
momento inicial da ampliação do público da MPB. Extrapolando os limites dos shows
patrocinados por entidades estudantis, como aqueles ocorridos em São Paulo, no Teatro
Paramount, Elis se tornou uma forte estrela do meio televisivo e, após sua saída da TV,
continuou realizando shows em teatros produzidos pela dupla Miele e Bôscoli.
Os anos de surgimento e consolidação do movimento tropicalista, 1967-68,
foram significativos na vida e obra de Elis. Com o fim do seu programa na Record, e na
283 Elis cita este fato no LP Elis no Teatro da Praia gravado em 1970.
146
tentativa de um redirecionamento em sua carreira desde 1966, percebemos uma
tentativa de aproximação mais direta da cantora com a bossa nova. Ocorrem mudanças
em sua voz, e também na execução instrumental que a acompanha, que passou a se
utilizar menos de desdobramentos rítmicos e das dinâmicas que exploravam desde o
pianíssimo ao fortíssimo, muito característico de seus discos gravados a partir de 1965.
Fiz uma pesquisa nas revistas Manchete, de 1965 até 1982, ano de morte de Elis.
Por ser uma revista de ampla circulação e com forte presença de artistas nacionais e
internacionais, pude ter acesso a vários depoimentos de Elis ao longo deste período. No
entanto, outras fontes e revistas foram analisadas e levadas em consideração. É
interessante citar que a figura mais recorrente nas reportagens deste longo período
analisado foi, imbativelmente, Roberto Carlos, sendo que Chico Buarque apareceu com
certa frequência e Elis, de tempos em tempos, aparecia como manchete.
Em 1968, Ronaldo Bôscoli284 escreveria, por ocasião de seu casamento com
Elis, que quando a conhecera, três anos antes, ela era “excessivamente deslumbrada
com tudo que fosse novidade”, disse também que ela odiava coisas marítmas e ditas no
diminutivo. Conta, ainda, que “naquele tempo, muito criança e mal orientada, tinha
iniciado sua carreira com a marca de péssima profissional”.
A revista anuncia a viagem de Elis, acompanhada sempre pelo Jazz Bossa Trio,
a Paris285, em 1968, para uma temporada de 15 dias no Olympia, além de uma viajem a
Londres, para o cumprimento de um contrato com a BBC. Muito aclamada no Midem,
Elis participou de inúmeras entrevistas e programas de tv franceses e há relatos de que
ela teria recusado alguns contratos internacionais, por possuir outros no Brasil. A
pressa de Elis em voltar ao Brasil se devia ao show intitulado Elis Especial, produzido
pela dupla Miele e Boscoli, em que além de cantar e dançar, Elis interpretava textos.
Sem precisar a data e em qual meio de comunicação isso se dá, Echeverria conta
que, em 1968, Elis atacou publicamente os tropicalistas, dizendo que “de artístico
mesmo, não tem nada, nada!”. 286
Caetano Veloso, em entrevista a Echeverria, comenta que:
“Elis foi a primeira artista sofisticada da música popular a se tornarconhecida através da televisão. Isso tem valor histórico, que, mesmoque Elis fosse uma péssima cantora, já seria uma coisa de grande porte.O problema de Elis era sem dúvida um problema de insegurança
284 BÔSCOLI, Ronaldo. “Meu casamento com Elis Regina”. Revista Manchete: n°818. 23/12/1967.285 “Cannes – Palmas para Elis”. Revista Manchete: n°825.10/02/1968.286 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, pp. 82- 83.
147
intelectual e de prestígio, no sentido de saber se o que estava fazendoera uma coisa séria. E o Tropicalismo mexeu com tudo isso, o que erasério ou não, o que era respeitável ou não, o que era kitsch, o que erachique. Tenho a impressão que o tropicalismo não deve ter parecido aela uma coisa ameaçadora ou má. Acho que ela ficou balançada, é isso– aquilo ia para todos os lados e ela ficou sem saber.” 287
Acredito que o motivo de Elis se sentir “balançada”, se devesse ao fato de que o
que ela cantava em seus discos e em seu programa O Fino da Bossa fosse justamente o
que os tropicalistas criticavam naquele momento, o nacional-popular. As canções
gravadas por Elis no período que antecede o tropicalismo falam principalmente da
situação do favelado e do negro e suas manifestações, dentre elas o samba e a
capoeira.288
Sobre essa fase de sua carreira, quando questionada sobre a escolha de seu
repertório em entrevista à Revista Veja, em 1978, Elis responde:
“Teve uma fase infantil, ou juvenil, eminentemente romântica. Foiquando cheguei ao Rio de Janeiro e comecei a cantar músicas que separeciam muito com o que eu ouvia na aula do professor Jorge, o zorrovingador dos meus 18 anos. E, como toda pessoa que está saindo daescola, não participando de nada efetivamente, não lançandoprofundidade em nada, acaba se tornado superficial. Eu achava que eracorreto porque assim eu tinha ouvido e batia com meu conceito dejustiça. Mas era muito romântico.” 289
Esta declaração parece ser um “esclarecimento” de Elis por ter gravado um
repertório repleto de temática nacional-popular, amplamente atacado pelos tropicalistas
no final da década de sessenta, já que se refere à época em que chegou ao Rio de
Janeiro. A entrevista feita praticamente dez anos após o movimento tropicalista mostra
uma fala que se desculpa, que fala da justiça, mas que ao mesmo tempo se justifica. A
partir dos apontamentos feitos pelos tropicalistas, podemos estabelecer uma semelhança
entre eles e Elis Regina, já que ambos desenvolveram suas carreiras nos anos sessenta e
também buscaram compreender os problemas do Brasil e suas soluções. Tanto o
tropicalismo, como Elis, foram herdeiros do romantismo revolucionário da década de
sessenta, mas cada um o desenvolveu à sua maneira, com características peculiares.
Em uma espécie de balanço de carreira, no início dos anos setenta, Elis fala
sobre os movimentos musicais:
287 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Editoro, 2007, p. 175.288 O povo brasileiro e sua cultura são encarados como manifestações autênticas da nacionalidade,capazes de livrar o país de seus problemas sociais.289 ECHEVERRIA, R. (entrevistadora) – O sinal está vermelho. Revista Veja 25/10/1978.
148
“A bossa nova foi uma das coisas mais completas em termos de música,harmonia e melodia. O principio da jovem guarda foi muito pobre. Osmúsicos eram muito amadores. Evidentemente havia pessoas de valor,como Roderto, Erasmo e Wanderléa, que foram os que ficaram. Mas amalta que havia ao redor tumultuou e deu um certo empobrecimento. Aípintou a tropicália que me pegou desprevinida e me derrubou. Nocomeço eu não entendia nada. Tem coisas que mexem na texta (sic) dagente e a tropicália mexeu na minha nuca. Foi aí que comecei a sacaruma série de conceitos. Precisei de um ano para assentar a poeira esentir o que representava aquilo tudo. Não se pode negar o trabalho deletra, de orquestração, o tipo de inovação que Rogério Duprat, Gil eCaetano trouxeram – a abertura para que a gente pudesse cantarqualquer tipo de coisa. A partir da tropicália, as pessoas perderam avergonha de dizer que um dia tinham gostado de Adelaide Chiozzo, daEmilinha Borba, da Marlene.” 290
Esse depoimento de Elis nos mostra como o movimento da tropicália mexeu
com seus conceitos e com sua própria maneira de encarar a música popular brasileira,
isto ainda no início dos anos setenta. As palavras utilizadas por Elis para demonstrar o
impacto do movimento tropicalista foram desprevenida, me derrubou e mexeu na
nuca. Afirmando que no começo não entendia nada, Elis diz que foi a partir do
movimento que ela começou a compreender melhor uma série de conceitos e destaca o
fato de sentir menos vergonha ao assumir gostar de cantores da era do rádio.
No ano de 1968, acontece a instauração do AI5, e os setores culturais e críticos
de esquerda passaram a ser duramente reprimidos. De acordo com Napolitano, o
período que vai de 1969 até 1974 não foi bom para a MPB, principalmente por motivos
políticos. A repressão policial e o cerceamento da censura dificultaram a criação, ainda
mais quando se tratava de platéias estudantis, houve “um corte abrupto de uma grande
festa revolucionária, que estava em pleno auge”.291 Dez anos após, Elis relembra esse
momento:
a partir de 68 a gente passou por um período de vazio, inclusive vaziofísico porque muita gente tava fora e não se contava de imediato com apresença de Gil, Edu, Caetano, Chico uma série de pessoas quenormalmente a gente costumava encontrar... havia um misto de saudadee de ansiedade, de não saber o que estava acontecendo... na épocabastante ingênua e com certo medo. 292
290 PINHEIRO, Narciso (entrevistador). Os ídolos dez anos depois. Revista Manchete n°1113.18/08/1973.291 NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980) 3. Ed. – São Paulo:Contexto, 2006. – (Repensando a História), p. 85.292 Entrevista ao Vox Populi, realizada em 1978, programa da TV Cultura.
149
3.3 - 1969
Em 1969, Elis grava com Toots Thielmans, pela Phonogram International B. V./
Fontana Especial, na Suécia. No entanto, esse LP foi lançado no Brasil apenas em 1978.
O mesmo acontece com Elis Regina in London, gravado pela Phonogram Ltd. UK/
Philips e lançado no Brasil em 1982.293O repertório desses discos não serão analisados,
visto que os mesmos não foram lançados no Brasil no período abordado por essa
pesquisa, mas vale dizer que eles demonstram uma tentativa de internacionalização da
carreira de Elis, e uma forte aproximação com a bossa nova. Essa aproximação se deve,
principalmente, ao repertório gravado, com um considerável número de músicas de
Tom Jobim e Roberto Menescal, algumas interpretações em inglês e interpretações
bastante jazzísticas.
O LP Elis. Como & porque294, lançado no Brasil, em 1969, produzido por
Nelson Motta, trata-se, na nossa análise, de um disco de ruptura com os que vinham
sendo lançados pela cantora desde 1965. Pode-se ouvir Elis Regina abusando de
vocalizes, o que já fazia anteriormente, no entanto com volume vocal menos intenso em
todas as canções, demonstrando, por este aspecto, uma forte modificação em sua
performance e um distanciamento da maneira de cantar adotada desde o início de sua
carreira, que consistiu em cantar com uma forte entonação e vibratos, lembrando as
cantoras do rádio. Há, também, a modificação no seu repertório, no qual já não percebo
mais músicas com a temática nacional-popular dos discos anteriores, apresentando-nos
a partir de então outros aspectos nacionais.
293 Discografia in: ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, p.206.294 O arranjador de orquestras deste LP, Erlon Chaves, acompanhou Elis em 1968 em sua excursão aParis. Ingressou na carreira artística nos anos 50, como pianista em casas noturnas, desenvolvendo umatécnica jazzística desde então. Já o arranjador do conjunto, Roberto Menescal participou, em 1962, dohistórico Festival de Bossa Nova, realizado no Carnegie Hall de Nova York (EUA), ao lado de váriosartistas como Tom Jobim, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo, Chico Feitosa e outros.Informações contidas em:http://www.dicionariompb.com.br. Acessado em 15/02/2011.
150
Quadro 3 - Temáticas das músicas do LP Elis como e por que295:
Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Outros
Aquarela do
Brasil/Nega do cabelo
duro
X
O sonho X
Vera cruz X
Casa forte X
Canto de Ossanha X X
Giro X
O barquinho X
Andança X
Récit de Cassard X
Samba da pergunta X
Memórias de Marta
Saré
X
Fonte: Elis, como e por quê. CBD/Philips, 1969.
Menções às divisões rítmicas do baião, em Casa forte, ao samba, em Samba da
pergunta e ao rock, em Andança, ganham a cara do próprio disco. Trata-se de uma
sonoridade que se utiliza de violões, congas e cordas, no entanto não se faz menção
direta a gênero nenhum. Há a intenção das divisões de determinados gêneros, mas esses
não estão claramente definidos. Diferentemente dos discos lançado anteriormente, este
295 As faixas do LP Elis Como & Porque são as seguintes: Aquarela do Brasil(Ary Barroso)/Nega docabelo duro (Rubens Soares, David Nasser), O sonho (Egberto Gismonti), Vera Cruz (MiltonNascimento, Márcio Borges), Casa forte (Edu Lobo), Canto de Ossanha (Baden Powell, Vinícius deMoraes, Giro (Antonio Adolfo, Tibério Gaspar), O barquinho (Roberto Mensecal, Ronaldo Bôscoli),Andança (Danilo Caymmi,, Edmundo Souto, Paulinho Tapajós), Récit de Cassard (do filme Lesparapluies de Cherbourg) (J. Demy, Michel Legrand), Samba da pergunta (Pingarilho, MarcosVasconcellos), Memórias de Marta Saré (Edu Lobo, Gianfranceso Guarnieri)
151
traz uma sonoridade menos intensa, com dinâmicas mais comportadas, tanto na voz
quanto na instrumentação.
As músicas que remetem ao Brasil, neste LP, são quatro. A primeira canção do
LP é um pot-pourri, Aquarela do Brasil é um samba de exaltação, acompanhado por
piano e com intervenção de cordas, a segunda parte da canção é Nega do cabelo duro. A
maneira de cantar de Elis está mais contida e o acompanhamento musical também. Se o
samba de Ary Barroso revela um país lindo e trigueiro, a segunda canção enfatiza os
aspectos referentes à negritude na formação da sociedade brasileira, além de evidenciar
a exclusão social deste grupo em versos como qual é o pente que te penteia?A segunda
música somada à primeira procura apontar as contribuições africanas na formação do
país.
Ouvindo a gravação da música cantada por Elis, é possível observar que a
relevância dada à cultura negra no conteúdo da letra não tem o seu correspondente na
escolha dos instrumentos que constroem a base rítmica da canção. A voz da cantora é
sustentada pelo piano. Instrumentos como pandeiro, surdos e tamborim, os quais
normalmente estão presentes na produção de sambas, não se fazem presentes neste
arranjo.
Música gravada anteriormente por Elis, Canto de Ossanha, ganha nova tessitura
neste LP, acompanhada por piano, baixo e bateria, com algumas intervenções de cordas.
Elis, ao deslocar a posição da melodia, se aproxima de um modo de interpretação
característico da obra de João Gilberto.
Tanto Giro quanto Memórias de Marta Saré são canções que tematizam a vida
no interior do país. A primeira tem em seu arranjo congas, metais, baixo e bateria e há
nesta canção menção às divisões do rock, com final de blues. Ambas tratam da
ingenuidade da vida interiorana: a primeira fala de cancioneiros, bandas e das saias de
algodão e a segunda afirma que a moça da fazenda deve entrar pra dentro de casa e
rezar seu rosário.
Duas músicas não se inserem em nenhuma das temáticas. Em Casa forte, não há
letra, e sim vocalizes de Elis, acompanhada por um jazz brasileiro no instrumental. O
sonho, de Egberto Gismonti, narra um sonho de alguém que foi parar no espaço e neste
lugar sentiu a liberdade. Não acredito ser possível compreender essa música enquanto
uma metáfora para falar dos exilados, que deixaram o país pela falta de liberdade, pois a
interpretação melódica de Elis é alegre e não parece denunciar esse tipo dramático de
situação. No entanto, a música instrumental não acompanha com ruídos ou psicodelias a
152
letra, diferentemente do que estava sendo feito neste momento na música brasileira,
como, por exemplo, pelos Mutantes. No arranjo há piano, baixo e bateria com
intervenções de cordas, não há exploração de timbres e os instrumentos não
acompanham a idéia de um sonho espacial. Apesar de não ter um gênero definido, a
música se organiza em torno de elementos do rock, como a marcação a tempo da bateria
e um final de blues.
O barquinho, música composta por Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, muito
interpretada por bossanovistas, é reinventada pela banda, neste LP, e soa completamente
diferente de sua antiga leitura. Tocada com congas utilizando ritmos latinos. A voz de
Elis, diferentemente da bossa nova, se sobrepõe aos instrumentos, em uma apropriação
claramente diferente da utilizada pela bossa nova.
3.4 - 1970
Nos anos 70, grávida de Ronaldo, Elis lançaria 2 LPs, um chamado Em pleno
verão e Elis no teatro da praia. Nesses discos, Elis interpretou canções de temáticas
variadas, buscando novos compositores e fazendo as pazes com o iê-iê-iê, ao gravar
músicas de Roberto e Erasmo Carlos, como Se você pensa e Nas curvas da estrada de
Santos, e também com a Tropicália, gravando Irene, de Caetano Veloso, e Aquele
abraço, de Gilberto Gil, ambos exilados políticos.
153
Quadro 3.1 - Temáticas das músicas do LP Elis no Teatro da Praia296
Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Temática política:
Introdução: Casa
forte/Reza/Noite dos
Mascarados/Samba da
Benção/Making
whoopee
Reza/Noite dos
Mascarados/Samba da
benção/ Making
whoopee
Samba da benção
Zazueira X
Minha X
Irene X
Musical de gala: Eu e
a brisa/Preciso aprender
a ser só/Carolina/Nunca
mais/Franqueza/Se
todos fossem iguais a
você
Eu e a brisa/Preciso
aprender a ser
só/Carolina/Nunca
mais/Franqueza/Se
todos fossem iguais a
você
Aquele abraço X
Can’t take my eyes off
you
X
Se você pensa X
Fonte: Elis no Teatro da Praia.CBD/Philips, 1970.
Com a direção da produção fonográfica de Roberto Menescal, dirigido por Miele
e Bôscoli, Elis no Teatro da Praia é um disco gravado ao vivo, que mistura textos e
músicas.
Luiz Carlos Miele, diretor e atuante, descreve assim o espetáculo transformado
em LP:
296 As faixas do LP Elis no Teatro da Praia são as seguintes: Introdução: Casa forte (Edu Lobo) /Reza(Edu Lobo, Ruy Guerra) /Noite dos mascarados (Chico Buarque) /Samba da benção (Baden Powell,Vinícius de Moraes) /Making whoopee(W.Donaldson,G. Kahn), Zazueira (Jorge Ben), Minha (FrancisHime, Ruy Guerra), Irene (Caetano Veloso), Musica de gala: Eu e a brisa ( Johnny Alf)/ Preciso aprendera ser só (Marcos Valle, Paulo Sérgio Valle)/ Carolina (Chico Buarque)/ Nunca mais (Dorival Caymmi)/Franqueza (Denis Brean, O. Guilherme)/ Se todos fossem iguais a você (Tom Jobim, Vinícius deMoraes), Aquele abraço (Gilberto Gil), Can’t take my eyes off you (B. Crewe, B. Gaudio), Se você pensa(Roberto Carlos, Erasmo Carlos).
154
“Com esse show, segundo a crítica, Elis deu o salto. Ela dançava,sapateava, fazia humor, e principalmente, é claro, cantava (...) Mas eratudo uma grande festa, entre mim, Elis, Ronaldo, Menescal e oconjunto, e acredito que isso tenha sido passado para o público, poisficamos em cartaz durante nove meses, cinco no Rio, quatro em SãoPaulo, no teatro Maria Della Costa. Durante esse período, fomos asegunda bilheteria da cidade, perdendo apenas pára a peça Hair, que erauma super produção.” 297
Este LP foi gravado ao vivo, no Rio de Janeiro, no Teatro da Praia, por Elis
Regina e Luiz Carlos Miele, mesclando textos, piadas e músicas. O clima do número de
abertura é leve e de brincadeira, Elis fala do início de sua carreira e a influência
exercida pelo dançarino Lennie Dalle sobre ela, é tocado um samba jazz por piano,
baixo, bateria e um triângulo e as músicas não têm conexão entre si, mas estão ligadas
ao encadeamento das piadas, que são contadas por Miele. Ambos fazem um pequeno
sapateado nesse número, demonstrando uma ligação maior com os EUA do que com as
maneiras de se dançar no Brasil. Não percebo uma intenção neste espetáculo/disco em
se remeter a coisas ou danças do Brasil.
As falas de Miele sobre a televisão e seus comerciais, na terceira faixa, não
demonstram uma consciência política ou mesmo uma postura crítica em relação aos
meios de comunicação. A música cantada por Elis depois das piadas de Miele é
acompanhada por teclado, com algumas intervenções do baixo e cordas em uma triste
interpretação, bem dramática. No entanto, não há conexão entre o texto e a música
interpretada, nem gênero definido.
Antes de cantar Irene, Elis declama:
“Eu considero o Caetano como um irmão e tenho por ele umaadmiração e um respeito que quase todos você têm, de um gênio, apessoa mais importante de minha geração, música recentíssima, nascidacomo ele em Santo Amaro da Purificação, Bahia.”
Irene foi escrita por Caetano Veloso em seu exílio. Sentindo-se deslocado, o
compositor demonstra, com essa canção, que gostaria de retornar para sua terra e sua
gente, convertendo-a em uma denúncia política e fazendo referências à imposição do
governo em mantê-lo afastado do Brasil. A música é interpretada com inspiração no
tropicalismo, com guitarras distorcidas e efeitos de teclado, algo utilizado pelos
tropicalistas e ligados ao universo do rock.
297 MIELE, Luiz Carlos. Poeira de estrelas. - Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p.52.
155
Os textos têm em comum as piadas despretensiosas, sem conteúdos subliminares
ou intencionalmente indiretos. Miele brinca muito com a língua inglesa e as músicas
interpretadas não têm, em sua maioria, ligação com as piadas contadas em sua
introdução.
De acordo com Motta, produtor do LP Em pleno verão, Elis com 24 anos e
grávida de seu primeiro filho “queria mudar, precisava mudar mas não sabia ainda como
nem o quê.” A primeira coisa que fizeram juntos, ele e Elis, foi encomendar a Gil e
Caetano, em exílio londrino, músicas especiais. Segundo Motta, Elis, ex-opositora do
tropicalismo, assim como outros artistas, se sentia solidarizada com os artistas em
exílio. Também, segundo Motta, arqui-inimiga da jovem guarda, em conversas e
reavaliações, Elis passou a ser uma grande intérprete da dupla Erasmo e Roberto. De
acordo com Motta, num momento em que a música brasileira se dividia entre MPB
nacionalista, tropicalismo e rock internacional, apareceu uma novidade chamada Tim
Maia com uma música negra americana e Elis ficou “besta com que ouviu”.298
Quadro 3.2 - Temática das músicas do LP Em pleno verão 299:
Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Temática política: Outros
Vou deitar e rolar X
Bicho do mato X
Verão vermelho X
Até aí morreu Neves X
Frevo X
As curvas da estrada de
Santos
X
298 MOTTA, Nelson. Noites Tropicais solos, improvisos e memórias musicais. Editora Objetiva, 2000, pp.202-206.299 As faixas do LP Em peno verão são as seguintes: Vou deitar e rolar (Baden poqell, Paulo CésarPinheiro), Bicho do mato (Jorge Ben), Verão vermelho (Nonato Buzar), Até aí morreu Neves (Jorge Ben),Frevo (Tom Jobim, Vinícius de Moraes), As curvas da estrada de Santos (Roberto Carlos, ErasmoCarlos), Fechado pra balanço (Gilberto Gil), Não tenha medo (Caetano Veloso), These are the songs (TimMaia), Comunicação (Edson Alencar, Hélio Matheus), Copacabana velha de guerra (Joyce, SérgioFlaksman).
156
Fechado pra balanço X X
Não tenha medo X
These are the songs X
Comunicação X
Copacabana velha de
guerra
X
Fonte: Em pleno verão. CBD/Philips, 1970.
Em pleno verão foi um LP orquestrado por Erlon Chaves. Os temas das músicas
passam, principalmente, por questões amorosas, malandragens do cotidiano, e por
aspectos que podem ser interpretados como políticos, por refletirem o estado de exílio
de Caetano e Gil. A palavra medo aparece na música de Caetano e também na última
canção Copacabana Velha de Guerra, no entanto, com conotações diferentes. Na
primeira, é um medo frente a tudo, em enfrentar uma situação que pode sempre piorar.
Na segunda, a falta de medo é acompanhada por uma busca de inserção na sociedade.
Ao mesmo tempo em que a música de Gil, Fechado pra balanço, demonstra um
tempo transitório de reflexão representado pelo próprio título da canção, também fala de
sua saudade de coisas brasileiras. Apesar da imposição de estar fora do Brasil, Gil vê
com positividade a situação300 em que se encontrava naquele momento, representada
pelos versos tou fechado pra balanço/ meu saldo deve ser bom, e também esperançoso,
como percebemos em viver não me custa nada/ viver só me custa a vida. A música de
Gil, além de falar de uma situação que sabemos ser a sua naquele momento, fala da
saudade da Bahia e de coisas do Brasil, como o xaxado e o côco. Já Caetano, em Não
tenha medo, mostra sua amargura e sofrimento, onde nada é pior do que tudo/ que você
já tem no seu coração mudo. Caetano fala de como está mudo e sem expectativas,
retratando sua situação de angústia. Em nenhuma das músicas o arranjo e a sonoridade
acompanham esta idéia de sofrimento; a música de Caetano é interpretada como um
alerta, um chamado a se pensar que a situação poderia ser pior, é quase um “anime-se”.
A sonoridade e a voz de Elis são alegres e animadas, o contrário do sentimento contido
300 A diferença de aceitação perante o exílio, aceito com menos amargura por Gil em comparação comCaetano é indicada em VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
157
na letra de Caetano, demonstrando que a interpretação musical é desconectada do
sentido da letra.
Verão vermelho é instrumental e acompanhada por vocalizes de Elis.
Comunicação, por exercer uma crítica aos meios de comunicação, não se caracteriza
como um problema de caráter unicamente nacional, mas representa uma questão
política. Esse questionamento sobre os meios de comunicação, abordado por Elis na
capa de seu LP de 1966301, também aparece em seu espetáculo realizado em 1975, em
que Elis encena a sua concepção sobre a manipulação televisiva em sua carreira.
De acordo com Mateus Pacheco, no espetáculo Falso Brilhante, os tempos de
festivais e também do programa O Fino da Bossa formavam um fio condutor que
levavam Elis à glória. No final do primeiro ato, surge um questionamento sobre o papel
das mídias na carreira do artista brasileiro. Em um primeiro momento, a relação com a
TV é vista com fascínio através de reconhecimento na rua, pelas capas de revista e o
interesse do público pelos seus posicionamentos, formando assim, uma imagem
gloriosa. Em meio a essas glórias, surgem duas mãos enormes, que pegam Elis e
levando-a para o fundo do palco, onde ela fica dependurada por um gancho. De acordo
com o autor, essas mãos funcionam como um despertar de uma consciência de quem
vivia a falsa ilusão de um sonho, o de ser uma estrela. Elis, assim como tantos outros,
foi envolvida e amarrada à mídia, mais propriamente à televisão e ao esquema de
empresariamento da época.302
Percebo, com esta questão, não somente uma tomada de consciência de Elis
Regina sobre a forte influência da televisão e dos demais meios de comunicação em sua
carreira, como também que este problema seria revisitado por Elis em diferentes
momentos de sua carreira, como é o caso da canção Comunicação, cujo tema é o
fanatismo pela televisão.
Neste LP, diferentemente do lançado no ano anterior, os instrumentos aparecem
com uma sonoridade mais marcante, as dinâmicas voltam a ser mais fortes. A
sonoridade é menos econômica, assim como a voz de Elis. Os metais aparecem bem
mais nos arranjos. É a primeira vez que percebemos a utilização de efeitos no teclado,
na música These are the songs, além da guitarra, tão combatida por Elis anos antes. Há
a presença do funk, marcada pelo encontro de Elis com Tim Maia nas músicas These
301 Texto citado no capítulo anterior na página 115.302 PACHECO, Mateus. Elis de todos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção. Dissertação(mestrado) – Universidade de Brasília. Departamento de História, 2009, pp.42- 43.
158
are the songs e em As curvas da estrada de Santos; além de músicas com sonoridade
latina, sem nenhum gênero definido, como Até aí morreu Neves e Bicho do mato.
Nenhuma das músicas está ligada ao nacional-popular. Das canções de temática
nacional, há a canção de Gil, que sente falta da Bahia e dos ritmos brasileiros e Frevo,
música de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, onde o Brasil é exaltado em versos como
verde mar, céu de anil/ nunca se viu tanta beleza, ah, meu deus/ que lindo o meu brasil.
3.5 - 1971
Em 1971 Elis lança o LP Ela, também produzido por Motta, e assina um
contrato com a Rede Globo para apresentar um programa ao lado de Ivan Lins,
chamado Som livre tipo exportação. A Revista Manchete anunciaria Elis assim: “... Em
grande forma e bem mais alegre e jovial do que nos seus últimos tempos aqui, quando
tinha um programa de televisão só seu, estava feliz com tantos aplausos.” 303
Quadro 3.3 - Temáticas das músicas do LP Ela 304
303 Soares, Dirceu (entrevistador). Eles exportam o som. Revista Manchete n°997. JUN/1971.304 As faixas do LP Em peno verão são as seguintes:Ih!Meu Deus do céu (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro deSouza), Black is beautiful (Marcos Valle, Paulo Sérgio Valle), Cinema Olympia (Caetano Veloso),Golden Slumbers (Jonh Lennon, Paul MacCartney), Falei e disse (Baden Powell, Paulo Sérgio Pinheiro),Aviso aos navegantes (Baden Powell, Paulo César Pinheiro), Mundo deserto (Roberto Carlos, ErasmoCarlos), Ela (César Costa Filho, Aldir Blanc), Madalena (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro de Souza), Osargonautas (Caetano Veloso), Estrada do sol (Tom Jobim, Dolores Duran).
Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Temática política: Outros
Ih! Meu Deus do céu X
Black is beautiful X
Cinema Olympia X
Golden slumbers X
159
Fonte: Ela. CBD/Philips, 1971.
Black is beautiful é uma espécie de chamado anti racista:
Hoje cedo, na rua do ouvidorQuantos brancos horríveis eu viEu quero um homem de corUm deus negro do congo ou daquiQue se integre no meu sangue europeuBlack is beautiful, black is beautifulBlack beauty so peacefulI wanna a black i wanna a beautifulHoje a noite amante negro eu vouEnfeitar o meu corpo no seuEu quero esse homem de corUm deus negro do congo ou daquiQue se integre no meu sangue europeu
Mesclando-se, na interpretação, trechos cantados em inglês e ritmo americano
(soul), problematiza-se a aceitabilidade da negritude no país. Apresenta ligação com a
visão do movimento negro em plena expansão, sob o influxo do movimento pantera
negra, de onde tiraram o próprio título da música.
Aviso aos navegantes fala da malandragem da vida cotidiana. Em Mundo
deserto, de Erasmo e Roberto, há a esperança por dias melhores:
Tenho fé que o meu paísAinda vai dar amor pro mundoUm amor tão profundo, tão grandeQue vai reviver quem morreu
Falei e disse X
Aviso aos navegantes X
Mundo deserto X
Ela X
Madalena X
Os argonautas X
Estrada do sol X
160
Das canções que não se encaixam em temáticas, encontra-se Ela e Cinema
Olympia. A música Ela, que também é o título do LP, conta a história de alguém
solitário em um edifício. A letra de Cinema Olympia faz referências ao universo das
matinês e o instrumental tem uma interpretação tropicalista, por utilizar-se de guitarras
com efeitos e linguagem de rock.
Em Os argonautas, a repetição do aspecto marítimo é acrescentada a toda uma
idéia significativa de luta e combate:
O barco, meu coração não aguentaTanta tormenta, alegriaMeu coração não contentaO dia, o marco, meu coração, o porto, nãoNavegar é preciso, viver não é precisoNavegar é preciso, viver não é precisoO barco, noite no céu tão bonitoSorriso solto perdidoHorizonte, madrugadaO riso, o arco, da madrugadaO porto, nadaNavegar é preciso, viver não é precisoNavegar é preciso, viver não é precisoO barco, o automóvel brilhanteO trilho solto, o barulhoDo meu dente em tua veiaO sangue, o charco, barulho lentoO portoSilêncioNavegar é preciso, viver não é precisoNavegar é preciso, viver não é preciso
Neste LP, Elis grava Beatles e Ivan Lins pela primeira vez. A inserção de
Beatles no repertório pode tanto ser analisada enquanto uma tentativa de
internacionalização de sua carreira, como uma influencia do tropicalismo. Ivan Lins,
assim como Milton Nascimento, foi gravado e “descoberto” por Elis, mas teve sua
carreira solo, vendo em Elis alguém que o lançou no mercado, tornando seu nome
conhecido pelo grande público.
161
3.6 - 1972Atentativa de Elis por mudanças, acompanhadas por uma crise, se fariam notar
também em uma reportagem feita em 1973. Sobre o último espetáculo realizado em
1972, no Teatro na praia, ela disse:
“ sou uma profissional, mas sou uma pessoa como outra qualquer.Estava em crise. Minha vida vinha se desfazendo há muito tempo. Eunão devia ter feito o show. Mas, do ponto de vista humano, se eu nãofizesse ia ficar louca ou matar alguém. Eu precisava de uma válvula deescape. Além disso, o show que levava meu nome não tinha nada a vercomigo...Atravessava um baixo astral total e, quando estou arrebentada,fico em frangalhos na frente de todo mundo. ” 305
O ano de 1972 marcou um novo período em sua trajetória musical, devido ao
encontro com o pianista e, mais tarde marido, César Camargo Mariano. Segundo
Echeverria, em março de 1972, Elis estreou no teatro da Praia, no Rio, o show É Elis,
dirigido pela dupla Miele e Bôscoli (alvo da autocrítica feita acima). No piano, César
Camargo Mariano. Dois meses depois, Elis e Bôscoli assinariam o desquite. Em Junho,
saiu do ar o programa Elis especial, depois de quase um ano em cartaz. Elis encerrou o
contrato com a Rede Globo e alegou não ter mais condições de trabalhar com o ex-
marido. Ainda neste ano, o irmão de Elis, Rogério, largou o Quinteto Violado para
acompanhar Elis e o grupo formado por César Mariano, Paulinho Braga, Luisão,
Alemão, Chiquinho Batera. Foram 39 shows em 45 dias, um show em cada cidade. Era
o primeiro circuito universitário de Elis, de ônibus, pelo interior de São Paulo, Paraná e
Santa Catarina. Os shows eram organizados pelos centros acadêmicos das faculdades.306
Elis em entrevista à Manchete, disse que iria fazer um circuito universitário em
São Paulo, norte do Paraná, Curitiba, Ponta Grossa, Paranaguá, Joinville e Santa
Catarina,depois, no Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia. E
completou:“nas cidades onde não puder cobrar dez cruzeiros, cobro cinco. Vousair mambembando. É a única forma de me apresentar com um poucode dignidade. Não se pode ficar na mão de duas emissoras de TV e estarsujeita a contar uma piada para cantar Águas de março. A piada tira aforma da música. A gracinha e o balezinho tira a força de Oriente, deCanto de Ossanha, de Nada será como antes. E o meu negócio não étirar força, é acrescentar, calcar, botar o dedo na nuca das pessoas. Euainda vou ter dinheiro para chegar, uma vez por ano, e comprar uma
305 PINHEIRO, Narciso (entrevistador). Os ídolos dez anos depois. Revista Manchete n°1113.18/08/1973.306 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, pp. 96-100.
162
hora na tv e fazer o que eu gosto. Com Fernando Faro e Juca deOliveira, gente que pensa como eu...” 307
A realização deste circuito pode ser compreendida tanto como uma tentativa de
expansão do seu mercado consumidor, como também uma preocupação social de Elis.
Como uma espécie de desculpa por participar dos eventos militares, já no início de
1972, Elis cantaria o Hino Nacional nas Olimpíadas do Exército. Apesar das inúmeras
controvérsias que envolveram essa questão, a esquerda brasileira se enfureceu com o
ato. Bôscoli explicou à Echeverria que Elis fora obrigada pelos militares a participar do
evento. Esta ligação de Elis com o Regime Militar teve reações tanto na imprensa, como
do seu público de esquerda. O cartunista de O Pasquim, Henfil, irmão de Betinho, um
exilado político, enterrou Elis no cartun Cemitério dos mortos vivos, do Caboco
Mamadô. Henfil realizava, nos seus quadrinhos, o enterro de pessoas que, na realidade,
estavam vivas, para demonstrar o seu descontentamento com relação aos
posicionamentos desses indivíduos. Elis Regina permaneceu enterrada por algum
tempo, até que Henfil resolveu desenterrá-la, após conversas pessoais. 308
Sobre a reação do público à atitude de Elis, Motta conta que, em 1973, no
Festival Phono 73, realizado pela Philips:
“mesmo sendo um festival sem prêmios, na platéia do Phono 73 osânimos estavam exaltados. O público e a imprensa ansiavam pornovidades, surpresas, intervenções políticas, rebeldia e resistência (...)Quando entrou no palco, tensa e de cara fechada, Elis foi recebida comfrieza pelo público passional e politizado. Entre os aplausos poucoentusiasmados, alguns assobios e uma voz raivosa que grita ‘vai cantarnas Olimpíadas do exército’, provocando uma pororoca de vaias eaplausos e a réplica ‘respeitem a maior cantora do Brasil’, atribuída aCaetano”309
No ano de 1972, explodiria no Brasil um fenômeno musical, reunindo um
conjunto de compositores, instrumentistas e intérpretes de Minas Gerais, fundindo o
rock com gêneros e estilos locais. De acordo com Napolitano, o disco Clube da esquina
retratava a busca por liberdade individual e coletiva, utilizando imagens poéticas sutis e
músicas sofisticadas, diferentes das fórmulas conhecidas até então.310
307 PINHEIRO, Narciso (entrevistador). Os ídolos dez anos depois. Revista Manchete n°1113.18/08/1973.308 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, pp.136-9.309 MOTTA, Nelson. Noites Tropicais solos, improvisos e memórias musicais. Editora Objetiva, 2000,p.263.310 NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980) 3. Ed. – São Paulo:Contexto, 2006. – (Repensando a História), p.87.
163
Elis inclui em seu repertório do disco de 1972 duas músicas de Milton
Nascimento gravadas por ela em 1966: Cais e Nada será como antes. Essas músicas
ganham uma interpretação parecida com a adotada pelo Clube da esquina, utilizando
exploração de timbres, modificações de compasso, além da latinidade e elementos do
rock e do jazz. Sobre a sonoridade específica do Clube da Esquina, Thais Nunes afirma
que:“Centralizando a análise sobre o LP de 1972 é possível demarcar, dentreoutros aspectos, a presença dos seguintes procedimentos recorrentes nasua produção: utilização de música incidental; repetição de materialmelódico; variedade na utilização da fórmula de compasso, em músicasdiferentes e em uma mesma música; quadraturas assimétricas; músicainstrumental; regionalismo; latinidade; religiosidade; rock; jazz; vocais;arranjos com seções bem definidas; tratamento timbrístico e a músicabrasileira de décadas anteriores.” 311
O LP Elis foi produzido por Menescal e teve arranjos de César Camargo, e
demonstra claramente as transformações de Elis, apostando no dialogo com novas
sonoridades, pouco presentes nos seus discos anteriores.
Quadro 3.4 - Temáticas das músicas do LP Elis312
Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Temática política: Outros
20 anos blue X
Bala com bala X
Nada será como antes X
Mucuripe X
Olhos abertos X
311 NUNES, Thais dos Guimarães Alvim. A sonoridade específica do Clube da esquina. Artigo publicadonos Anais do V Congresso Latinoamericano da Associação Internacional para o Estudo da MúsicaPopular.312 As faixas do LP Elis são as seguintes: 20 anos blue (Sueli costa, Vitor Martins), Bala com bala (JoãoBosco, Aldir Blanc), Nada será como antes (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos), Mucuripe (Fagner,Belchior), Olhos abertos (Zé Rodrix, Guttemberg Guarabira), Vida de bailarina (Américo seixas, DorivalSilva), Aguas de março (Tom Jobim), Atrás da porta (Francis Hime, Chico Buarque), Cais (MiltonNascimento, Ronaldo bastos), Me deixa em paz (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro de Souza), Casa no campo(Zé Rodrix, Tavito), Boa noite amor (José Maria de Abreu, Francisco Matoso).
164
Vida de bailarina X
Águas de março X
Atrás da porta X
Cais X
Me deixa em paz X
Casa no campo X
Boa noite amor X
Fonte: Elis. CBD/Philips, 1972.
Elis é um disco que parece ser uma busca pessoal da cantora por novos
caminhos, uma vez que várias das músicas falam desse desejo. Dentre as canções,
incluem-se 20 anos blue, Olhos abertos, Cais e Casa no campo. Muitas músicas não
têm nenhum gênero definido em sua composição, demonstrando a busca de Elis por
novas sonoridades, embora, desde 1965, sua banda fosse sempre composta por piano,
baixo e, principalmente, bateria, acompanhada por arranjos de cordas e sopros. Este
disco possui em sua composição sambas, rocks, bossa nova e jazz. A sonoridade é
bastante próxima dos LPs lançados após 1969.
A música que abre o LP, 20 anos blue, trata da descoberta da experiência já
vivida nos primeiros versos, que dizem olhei a vida e me espantei/eu tenho mais de 20
anos. Nota-se nessa música, também, o peso das responsabilidades cotidianas, a dureza
da vida, no trecho: eu tenho mais de mil perguntas sem respostas/eu tenho mais de vinte
muros.
Olhos abertos também é uma canção que tematiza buscas. Aqui, essa busca se
configura por encontrar verdadeiras amizades que independam de status social,
claramente identificada nos versos finais:
E eu quero encontrar as pessoasDe mãos e de olhos abertosSem me preocupar com dinheiro e posiçãoEu preciso encontrar as pessoasFicar de mãos dadas com elasConversar com a boca e os olhos do coração
165
Em Cais, não existem barreiras contra quem está disposto a se lançar em
qualquer direção ou destino, desde que isso represente a recusa a uma vida insuficiente.
Somente a fantasia poderia dar sentido a uma viagem que visava alcançar uma realidade
ainda não experimentada: para quem quer se soltar invento o cais invento mais que a
solidão me dá.
Nesse processo resignificador, a invenção seria a arma que ameaça o
estabelecido. Em uma sociedade de padrões sociais previamente estabelecidos e
relações políticas restritivas, como era a brasileira durante a década de setenta, inventar
é um verbo que liberta. Em entrevista realizada em 1973, pouco tempo após o
lançamento deste disco, e comentando sobre ele, Elis se define como uma pessoa que
cresceu e que tem novos desejos, que necessita de coisas novas, Cais313 é uma música
com a qual ela se identificava. Ela fala desse desejo de se lançar:
“Pra mim não foi susto nenhum esse disco, porque venho meacompanhando a um ano da hora que acordo até a hora que durmo,acompanho todas as minhas apresentações estou sabendo das minhasansiedades, etc. Eu não estranhei a minha modificação me perguntarampor que um disco tão diferente se a fórmula era tão boa e estavavendendo tanto. Fiz um disco diferente e as pessoas se assustaram...Reclamaram que o César de repente ficou mais intelectual... o queacham que é o mais simples na verdade é o mais difícil, que haviamúsicas que não me mereciam. Eu sabia que ia ter um bode. Mas eutinha que me satisfazer, já que eu vivi muito tempo satisfazendo aspessoas... Eu mudei, não foi o disco que mudou o que mudou foi aminha cabeça a minha vida. Foram meus nervos que descansaram omeu travesseiro que é muito mais aconchegante, a minha casa que émuito mais gostosa, a minha vida que é muito melhor...”314
Neste depoimento de Elis, a temática da modificação dá o tom de sua resposta.
A insatisfação pessoal e o fato de ter que satisfazer os outros, dentre os quais é bem
provável que estejam seus produtores, passa a ser algo assustador para a artista. A
mudança de vida, de acordo com Elis, modificou também sua maneira de fazer música,
o que explica o fato de a escolha do seu repertório estar diretamente relacionada aos
seus sentimentos pessoais, ao longo de sua carreira, e de, muitas vezes, essa escolha ter
acontecido e dialogado com imposições externas.
313 Cais (Milton Nascimento – Ronaldo Bastos): Para quem quer se soltar. Invento o cais. Invento maisque a solidão me dá/ Invento lua nova a clarear. Invento o amor. E sei a dor de me lançar/ Eu queria serfeliz. Invento o mar. Invento em mim, o sonhador/ Para quem que me seguir. Eu quero mais. Tenho ocaminho do que sempre quis/ E um saveiro pronto pra partir. Invento o cais. E sei a vez de me lançar.314 Programa MPB Especial produzido por Fernando Faro em 1973 pela TV Cultura.
166
Em Casa no campo, a busca se configura por tranquilidade e paz, onde o
afastamento da grande cidade e da impessoalidade se faria em uma casa de campo, com
cabras e hortas, em um espaço “onde eu possa plantar meus amigos meus discos e
livros e nada mais”, demonstrando um desejo de vida alternativa.
Segundo Echeverria, em 1977, Elis se mudaria para Cantareira, um pequeno
terreno, com três mil metros quadrados, onde Elis gostava de plantar, nadar e brincar
com os cachorros.315 Este fato evidencia como a intérprete se apropriava daquilo que
cantava. Parece que a letra fora composta por Elis, ou mesmo demonstra que aquilo que
Elis cantava realmente era importante e significativo em sua vida.
Bala com bala aponta a passividade do consumidor perante os meios de
comunicação de massa, além da subjetividade em que o telespectador é lançado. Apesar
da passividade (a sala cala), o espectador se vê no herói, canalizando, assim, suas
amarguras e revoltas do dia-a-dia, a velha fuga em todo impasse.
Nada será como antes é a única música que trata de questões políticas no LP.
Versos que deixam para traz a sensação pessimista e o peso da derrota frente às forças
do autoritarismo político. Versos que devolvem à juventude a certeza de que ainda era
hora de lutar, mesmo sabendo que “nada será como antes”. Os autores dialogam com o
momento da contracultura, além de fazerem alusão ao regime militar e aos exilados por
ele:
Sei que nada será como antes amanhãQue notícias me dão dos amigos?Que notícias me dão de você?Sei que nada será como está,Amanhã ou depois de amanhãResistindo na boca da noite um gosto de sal
Apenas duas canções tematizam o Brasil neste disco, são elas Mucuripe e Águas
de março. Nenhuma das duas fala de problemas sociais brasileiros. Mucuripe conta a
história de um pescador, elemento muito presente na obra de Elis do ano de 1965 a
1968, claramente identificado com o nacional-popular, no entanto, aqui o pescador é
aquele que não quer criar laços com mulheres e nem realizar nada que o prenda àquele
local. O clima da melodia é de muita tristeza.
Em Águas de março, música de Tom Jobim, há a qualificação e exaltação da
natureza brasileira, exposta em nomes de árvores e coisas nacionais:
315 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, p. 134.
167
É peroba do campoÉ o nó da madeiraCaingá, candeiaÉ o matita-pereira...
Esta música de Jobim integra elementos como a vida e a morte, o ser e o não ser,
a marcha estradeira e o fim da canseira, na construção de uma realidade mais plena. A
vida é compreendida como um mistério profundo, onde se quer e não se quer. Frente a
este mistério, as águas de março, juntamente com suas chuvas, dissolvem esta tensão
dos opostos e faz emergir a esperança da vida no coração. Esta temática é bem parecida
com as demais músicas interpretadas por Elis neste LP, a busca por uma vida melhor
perpassa todo o disco.
Vida de bailarina aparece no disco como uma homenagem a Ângela Maria, uma
vez que esta música fora gravada somente por ela nos anos de 1953 e 1955316, antes de
Elis gravá-la. Boa noite amor317 também fora uma homenagem de Elis às suas
referências musicais de formação, já que se trata de uma música romântica muito tocada
na Rádio Nacional.
A sonoridade e o instrumental presentes neste LP são bastante parecidos com os
do disco lançado em 1971. No entanto, neste LP aparecem mais músicas que falam de
modificação, descontentamento, esperança por algo melhor. Não são músicas que estão
diretamente ligadas ao contexto político, porém, ao demonstrarem insatisfação com a
vida em certos aspectos, estão indiretamente tocando no tema da política repressiva
daquele momento, mesmo que não explicitamente.
A temática deste LP gira em torno dos efeitos de transformação social do país e
também pessoais da artista. Muitas das canções interpretadas por Elis afirmam esse
sentido, produzindo uma obra repleta de questionamentos. Quando esse questionamento
atinge a figura da própria artista, as reflexões se tornam ainda mais incisivas. A idéia
central que perpassa o disco é a busca por liberdade, idéia entendida como um dos
pontos centrais que rondam a relação da artista com a sociedade que ela julga
representar.
316 Verificado no site: http://www.memoriamusical.com.br/discografia.asp. Acessado em 24/05/2011.317 Em 1933 José Maria de Abreu foi contratado como pianista da Rádio Mayrink Veiga, onde ficou até1938, quando foi para a Rádio Clube. A partir de 1934, começou a parceria com Francisco Matoso, querenderia grandes clássicos da música romântica da década de 1930, como "Boa-noite, amor", valsagravada por Francisco Alves e que durante anos foi prefixo da Rádio Nacional. Informações contidas nosite: www.dicionariompb.com.br.Acessado em 26/05/2011.
168
3.7 - 1973
Em 1973, no final da excursão do circuito universitário, Elis rompeu o contrato
com o empresário Marcos Lázaro e passou a ser empresariada por Roberto de Oliveira.
Echeverria conta que a contratação de Roberto de Oliveira foi fundamental na
modificação da trajetória musical de Elis, pois a adequou aos padrões modernos de
MPB, além de trabalhar sua performance e sua exposição, tanto na mídia, como no
palco. Em entrevista a Echeverria, Roberto de Oliveira relata:
“A Elis vinha de um esquema comercial com Marcos Lázaro, como elemantinha com outros cantores. Mas ela era muito inteligente, emboranão tivesse muita cultura. Seus contemporâneos começavam a exigiroutro tipo de tratamento em esquemas empresariais, e ela sentiu isso.Elis era um pouco discriminada por outros artistas. Bethânia tinha umstatus por si só, Gal porque o Caetano Veloso e o grupo baianopassavam para ela. Além disso, Elis tinha sido casada com Bôscoli, quea levou para um mundo global, apolítico e reacionário. De repente, oscantores e os compositores da sua geração estavam em franca oposiçãoà situação política na época. Elis tinha cantado nas Olimpíadas doExército. E ela sabia que seu talento era maior do que o mundo em queestava vivendo. Encontrei Elis no momento em que ela estava tomandoconsciência disto. Eu só tinha visto uma vez naquela Phono-73, quandocortaram o microfone do Chico Buarque. Ela tinha talento, sucesso, masnão tinha prestígio. Pensei: ela precisa ter os três. Comecei a fazer suacabeça, porque achava que ela falava demais e se contradizia muito.Elis se envolvia com quem estava próximo e no dia seguinte essapessoa fora e ela mudava de opinião. Não sei se ela tinha um distúrbioneurológico ou tinha pique, mas me disse que sua cabeça girava muitomais depressa que a dos outros. E girava mesmo. Aconselhei-lhe quecantasse mais e falasse menos.” 318
Este relato nos mostra que a postura do novo empresário de Elis era a tentativa
de construir uma nova imagem para a artista. De acordo com Roberto, Elis era uma
grande artista, que deveria se abrir menos para os tablóides e parar de atacar outros
artistas, além de aprender a lidar melhor com seu talento. A partir deste momento,
criava-se para ela uma postura mais política. Roberto demonstra na entrevista uma
tentativa em dar a Elis uma nova imagem, mais inatingível, mais longe das fofocas da
imprensa sobre sua vida particular, mais preocupada com a política do Brasil.
Em 1973, Elis lançaria outro LP intitulado Elis. É um disco onde percebemos a
escolha do repertório incidir em três compositores em especial, uma vez que das dez
músicas gravadas, quatro músicas são de Gil, quatro de Aldir Blanc/João Bosco e as
318 ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. São Paulo: Ediouro, 2007, p.104.
169
outras duas são de Nelson Cavaquinho e Pedro Caetano, compositores ligados à
“tradição” do samba e do rádio.319As músicas deste disco, diferentemente das dos LPs
anteriores, têm uma forte conotação política. Mesmo que não falem diretamente da
situação, falam metaforicamente.
Quadro 3.5 - Temáticas das músicas do LP Elis320
Músicas: Temática amorosa: Temática nacional: Temática política: Outros
Oriente
X
O caçador de esmeralda X
Doente morena X
Agnus sei X
Meio de campo X
Cabaré X
Ladeira da preguiça X
Folhas secas X
Comadre X
É com esse que eu vou X
Fonte: Elis. CBD-Phonogram/Philips, 1973.
Oriente, a música que abre o disco, vem alardeando palavras de atitude, como
considere e determine, convidando o ouvinte a uma não passividade, servindo de
referência do caminho a se tomar:
319 http://www.dicionariompb.com.br .Acessado em 22/05/2011.320 As faixas do LP Elis são as seguintes:Oriente (Gilberto Gil), O caçador de esmeralda (João Bosco,Aldir Blanc, Claudio Tolomei), Doente morena (Gilberto Gil, Duda), Agnus sei (João Bosco, AldirBlanc), Meio de campo (Gilberto Gil), Cabaré (João Bosco, Aldir Blanc), Ladeira da preguiça (GilbertoGil), Folhas secas (Nelson cavaquinho, Guilherme de Brito), Comadre (João Bosco, Aldir Blanc), É comesse que eu vou (Pedro Caetano).
170
Se oriente, rapazPela constelação do cruzeiro do sulConsidere, rapaz...A possibilidade de ir pro japãoNum cargueiro do loyd lavando o porão...Determine, rapazOnde vai ser seu curso de pós-graduação
Gil adota, nesta canção, certo misticismo. A orientação pelo cruzeiro do sul está
atrelada a uma tentativa de se descobrir o Brasil. A música é uma reflexão de alguém
exilado em uma aventura forçada. Viajar em um cargueiro, lavando o porão, faz uma
alusão aos porões dos navios negreiros nos quais, quem era passageiro, não estava ali
por escolha própria. É uma música que reflete as angústias de seu compositor, no
momento em que foi construída. Gil fala da pós-graduação que poderia ter feito,
relatando seu período de exílio, além de analisá-lo. Seu arranjo é todo construído em
torno da melodia, com ênfase nas passagens de conscientização.
Doente morena fala de um homem que não tem mais liberdade. Ele se lembra de
como era bom o passado, onde tudo era rodeado de magia e simplicidade.
A mulher da canção é a esperança de liberdade e promete que, quando tudo passar,
quando eles saírem da escuridão (que é estar censurado), eles irão à praia,
esperançosamente acreditando em um fim deste período de escuridão e medo:
De manhã cedo ela saiLeva a chave, me deixa trancado o dia inteiroNão ligo, deito sobre os trilhosVejo o trem passarEntre brinquedos, cigarrosO tesouro da juventude, não sei quantos volumesE quando cantoDeixo a imaginação voarMas ontem à noite, a mão sobre meus cabelosEla disse: meu bem não tenha medoNo verão que vemNós vamos à praia
Em Agnus sei, a letra é bastante complexa e cheia de significados, há uma
constante alusão à Igreja. A ironia é corrente: os heróis do bem prosseguem na brisa da
manhã... Vão levar ao reino dos minaretes/ a paz na ponta dos arietes... Ah, como é
difícil tornar-se herói. Outro efeito utilizado nessa canção é o trocadilho: dominus,
lembrando o domínio, ou juros além, ao invés de Jerusalém, aludindo também ao fator
econômico. Apesar de remeter a séculos, a metáfora em relação à ditadura é marcante.
171
Meio de campo, de Gil, é uma metáfora para a situação política pensada através
do futebol, sobre dar um tempo da situação, não se desesperar em resolver questões que
superam, até mesmo, o seu entendimento da situação atual do país:
Prezado amigo afonsinhoEu continuo aqui mesmoAperfeiçoando o imperfeitoDando tempo, dando um jeitoDesprezando a perfeiçãoQue a perfeição é uma metaDefendida pelo goleiroQue joga na seleçãoE eu não sou pelé, nem nadaSe muito for eu sou um tostãoFazer um gol nesta partida não é fácil, meu irmãoEntrou de bola, e tudo!
Por meio da canção Cabaré, é construída toda uma ambientação da vida boêmia,
em especial, a trajetória de uma cantora, vinda do norte do país, enfrentando, além do
desdém da platéia, a mesma solidão que toma conta dos que freqüentam estes
ambientes. Talvez a escolha por inserir esta canção em seu repertório se deva ao fato de
Elis se sentir solitária nos escuros bares da vida, uma vez que muitos de seus
companheiros estavam exilados neste período.
Ladeira da preguiça faz menção à Salvador. Sobre essa música, Gil conta que
“uma música que fiz em Londres em 1971 e mandei uma fita pra ela com músicas,
sambas, ela gostava de sambas, esses sambas mais jazzísticos, com muito balanço,
muito meneio de frases.” 321
Essa informação demonstra a predileção musical de Elis configurada entre o
samba e o jazz.
Comadre refere-se a questões do cotidiano. Essa comadre pode ser representada
como uma relação amorosa:Em tudo que me acontecerO dedo da comadre táNa corda quando escurecerAnágua da comadre lá...A ginga da comadre táEm tudo que me acontecer...A ginga que a comadre táNo samba que eu me excederNo doce que eu me lambuzarNa hora que eu endoidecer...
321 Para o programa Por toda minha vida exibido pela Rede Globo em 28/12/2006.
172
É com esse que eu vou é uma música que fala do samba e do desejo de se
esbaldar na multidão, bem parecida com a temática abordada em Folhas secas, que
homenageia a Mangueira, onde as folhas secas fazem relembrar os poetas e a escola,
além do saudosismo de sambar.
Há a presença do rock progressivo na sonoridade deste LP, percebido na
utilização dos timbres dos teclados e ocasionais guitarras. Este fato provavelmente se
deve à influencia do disco lançado no ano anterior, pelo Clube da Esquina, além do fato
de o guitarrista ser Toninho Horta, o mesmo que ajudou na concepção do LP Clube da
Esquina. A voz de Elis está contida, sem muitos ornamentos.
Sobre seu contato com a dupla Aldir e Bosco, Elis diria em 76:
“A minha primeira gravação com músicas de Aldir e João aconteceu emmarço de 1972 Eu já conhecia o trabalho de Aldir com César CostaFilho e Silvio da Silva Júnior, e queria gravar alguma coisa dele.Quando vi o que ele tinha feito com João Bosco, me apaixonei logo decara. Sempre achei que a função de um artista fosse a de relatar suaépoca com a maior sinceridade possível. E é exatamente esse o trabalhoque os dois vêm fazendo. Uma obra dura, pensada, sem nada decircunstancial. Como deve ser todo e qualquer trabalho maduro. JoãoBosco e Aldir Blanc são da minha tribo. Aldir é um gênio. Há poucotempo atrás, eu estava cansada, pensando em parar. Aí pintou o Aldir,começou a conversar, contar o que tinha feito, discutir comigo. Dessespapos acabou nascendo um dos trabalhos mais importantes da minhacarreira, o show Falso Brilhante.”322
Este depoimento, além de demonstrar a forte ligação de Elis com estes artistas,
aponta novamente para o fato da crise por que ela passava no início dos anos setenta, e
credita a salvação de sua carreira ao encontro com a dupla. Além de corroborar com o
aspecto que venho apontando ao longo desta pesquisa sobre a artista Elis, que é relatar
sua época através de suas músicas, tarefa que Elis assumiu ao longo dos anos em que
cantou o Brasil.
322 Depoimento in: João Bosco e Aldir Blanc. São Paulo: Abril Cultural, 1976. 33 rpm, nº HMPB-04,stereo, (Nova História da MPB), p.6.
173
3.8 - 1974
Em 1974, Elis ganhou um disco comemorativo323 da Philips, sua gravadora, e
escolheu gravar um disco com Tom Jobim. Sobre esta escolha, ela disse:
“... não achei que devesse fazer, simplesmente, produzir umaretrospectiva de minha carreira. Dez anos, afinal, é um espaço de tempomuito curto. Além disso, meu repertório, obviamente, mudou. E nãocanto mais como fazia na época de Arrastão, ou do Menino das laranjas.O público que me acompanhava em 1964, 1965, certamente se frustrariacom minha maneira atual de interpretar velhos sucessos. Roberto deOliveira, então, sugeriu-me que pensasse num LP com Tom. Achei aidéia incrível. Em primeiro lugar, porque Tom é capaz de resumir, nasua obra, praticamente toda a história da música brasileira dos últimostempos. E eu poderia me apoiar nessa obra para contar a história dosmeus últimos dez anos de carreira.” 324
Quadro 3.6 - Temáticas das músicas do LP Elis e Tom
Músicas: Temática amorosa: Temática nacional:
Águas de março X
Pois é X
Só tinha de ser com
você
X
Modinha X
Triste X
Corcovado X
O que tinha de ser X
Retrato em branco e
preto
X
Brigas, nunca mais X
Por toda minha vida X
Fotografia X
323 Pelos 10 anos de Elis na gravadora.324 LANCELLOTTI, Silvio. (entrevistador). “Quero apenas cantar”. Revista Veja 01/05/1974.
174
Soneto da separação X
Chovendo na roseira X
Inútil paisagem X
Fonte: Elis e Tom. CBD-Phonogram/Philips, 1974.
De todas as canções, apenas duas são cantadas por Elis e Tom, Águas de março
e Soneto da separação, as restantes são interpretadas somente por Elis.
Muito diferente dos discos anteriores da cantora, Elis & Tom foi um trabalho
pontual, em que Elis estabeleceu contato direto com o estilo bossanovista de Tom e
César Camargo Mariano, também arranjador do disco, ao lado de Jobim.
As músicas escolhidas por Elis são todas de Tom Jobim, ora em parceria com
Vinícius ou Chico, mas nenhuma música da bossa nova nacionalista de Vinícius e
Carlos Lyra estão inseridas neste LP, apenas temáticas amorosas.
Acredito que este disco de comemoração, que demarcou o ápice do encontro de
Elis com a bossa nova, representado por um de seus maiores compositores, teria
provocado uma nova ruptura na carreira de Elis, em que não percebemos mais nenhum
vestígio do nacional-popular. Como consequencia dessa guinada em sua carreira, Elis
buscaria o Centro Macunaíma325 em uma tentativa de trabalhar mais livremente a sua
criatividade. Assim Elis analisa o momento que vivia, em meados dos anos setenta:
“Freqüentar o Macunaíma foi a mais importante descoberta da minhavida. Eu estava e de certa forma ainda estou, pois nada é imediato,vivendo um impasse. Estava cansada de ser usada, enganada porempresários sem escrúpulos, que viviam botando limitações na minhacabeça. Não posso estacionar só porque esses caras estão faturando altoàs minhas custas. Pra mim chega, rodar a bolsa por rodar prefiro rodarpro meu marido, ou por coisas que eu acredite, por ideais, por meusfilhos. Sinto necessidade de mudar, de evoluir, de colocar pra foraminhas opiniões, e não ficar bloqueando meus sentidos. Chega ummomento que a gente tem mesmo que estourar, e se as pessoas nãotomarem consciência das coisas que a destroem, das imposições erepressões, um dia elas explodem. Eu sempre soube disso mas eraencostada na parede:”Você tem que se preocupar com sua imagem, aimagem que convém a seu público’. Quer dizer a imagem que enriqueceos intermediários. Ora bolas! Quem faz minha imagem sou eu mesma, e
325 O Centro de estudos Macunaíma, foi fundado em 1974 por Myriam Muniz, Silvio Zilber e o cenógrafoe figurinista Flávio Império, surgiu como um centro experimental de formação teatral com diversoscursos de interpretação, leituras dramáticas e psicodramas com o terapeuta, escritor e dramaturgo RobertoFreire, que tendo retornado ao Brasil, começara a desenvolver trabalhos no local, sendo fundamental parao desenvolvimento da Somaterapia.. Informações contidas em: http://pt.wikipedia.org/Acessado em31/05/2011.
175
eu não posso ficar fingindo o tempo todo, sendo o que não sou. Jáconsegui desvencilhar-me dos empresários, e de agora em diante quemquer decidir as coisas sou eu, com as pessoas que de fato vivem o quevivo, com quem de fato estiver com as mesmas intenções que eu. ”326
A constatação de inúmeros problemas está clara nesta fala de Elis, em que ela
critica o aproveitamento de seus dotes artísticos pelos empresários e a limitação quanto
à sua autonomia. Demonstra uma artista que se percebia vazia e sem saber qual
direcionamento dar a sua carreira. Esta busca por uma independência criativa, a
tentativa em exercer uma postura diferente perante a indústria cultural, apresentam uma
artista sempre em busca de novos caminhos e direções.
3.9 - Balanço e perspectivas
Não somente o ataque tropicalista aos códigos defendidos pela esquerda
nacional-popular, no final dos anos sessenta, fez com que Elis redirecionasse sua
carreira. As inúmeras viagens internacionais realizadas por ela nesta fase de sua
carreira, seu casamento com Ronaldo Bôscoli, compositor e membro da bossa nova, a
maternidade, o divórcio, a troca de empresário, a realização de shows em um circuito
universitário, mexeram significativamente com os seus ideais e crenças.
Ao longo deste capítulo, podemos perceber a modificação na carreira de Elis e
como ela se aproximou da bossa nova e do rock progressivo. Nota-se, com isso, que a
cantora se apropriava de inúmeros elementos musicais a seu modo, com sua banda, e
interpretação. Esta aproximação se faz notar tanto através da sonoridade, dos timbres
dos instrumentos e canto mais contidos, quanto na escolha de gravar compositores da
bossa nova e também novos nomes do cenário musical, como João Bosco, Aldir Blanc e
Ivan Lins.
Acredito ter sido pertinente a análise até o disco produzido juntamente com Tom
Jobim, ícone da bossa nova, pois o mesmo representou o encerramento de uma fase de
sua carreira. Ao longo de nossa análise, a constante abertura e encerramento de ciclos na
carreira da intérprete é perceptível. Não houve mais nenhum vestígio do nacional-
326 “Elis Regina vira a mesa, mas salva as papoulas”. Diário do abc, 17/08/75. Apud PACHECO,Mateus. Elis de todos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção. Dissertação (mestrado) –Universidade de Brasília. Departamento de História, 2009.
176
popular no repertório lançado a partir de 1969, e a partir de 1975, Elis passou a inserir
espetáculos temáticos em sua carreira musical, dando um novo sentido a sua trajetória.
Quanto ao diálogo realizado entre a obra de Elis Regina e o contexto brasileiro
que a cercou, posso afirmar, através da análise dos discos lançados neste período, de
1969 até 1974, que Elis “dialogou” com o contexto daquele período e com a censura
exercida pelo governo. Nesta fase, temos a temática amorosa predominando em quase
todos os LPs, além de vermos sumir o nacional-popular do seu conteúdo. O país
retratado é maravilhoso e exaltado, como em Aquarela do Brasil, o romantismo da
bossa nova aparece com grande força, assim como o interior do país e seus costumes,
indícios de que Elis soube esperar passar o momento de pior cerceamento dos militares,
não inserindo em seu repertório muitas canções com temáticas diretamente políticas,
neste período. Não que a política estivesse completamente excluída do repertório de
Elis, o ato de gravar canções de Gil e Caetano em exílio era, de certa forma, um ato
político, mesmo que os conteúdos destas canções não fizessem referência direta ao
governo.
Muitas vezes, o próprio ato de não inserir canções com temática política em seu
repertório já significava em si uma relação com a política, visto a problemática da
censura e dos inúmeros exílios ocorridos naquela época. Para entender que Elis assume
uma postura mais crítica em suas obras, considero fundamental perceber a sua trajetória
musical e os conflitos por que passou e que certamente influenciaram na redefinição de
sua carreira. Não só o contexto da ditadura militar foi importante para a transformação
da sua obra, mas também as tensões que experimentou, através do diálogo com diversos
setores da sociedade, como a crítica musical, sobretudo aquela ligada ao tropicalismo,
como foi demonstrado, tanto em suas declarações, como na musicalidade produzida
após o seu surgimento.
Elis utilizou a vitória simbólica do samba no cenário musical brasileiro, em
todos os seus LPs, como uma forma de legitimar a valorização da identidade nacional.
No entanto, ela não demonstrou identificação com os segmentos populares. Apesar de
ser oriunda deste segmento, a artista não construiu uma imagem de si mesma
identificada com os grupos populares.
Ao lado de nomes como Gilberto Gil, João Bosco, Caetano Veloso, Milton
Nascimento, entre outros, Elis Regina associou-se à própria definição de MPB. Essa
associação contribuiu para a nossa análise em um aspecto fundamental: as reflexões que
177
sua obra apresentou em torno dos conceitos de música, de povo e de Brasil e que são
exatamente as palavras cujas iniciais formam a sigla MPB.
Os interesses de Elis, neste momento, se configuraram em modificar sua carreira
e encontrar novos públicos, em um diálogo nem sempre tranqüilo com as redes de
televisão e com as gravadoras. Uma análise pormenorizada, que tratou desses temas,
mostra uma artista em constante questionamento, opondo-se a verdades estabelecidas e
a conceitos tomados como absolutos. Assim, a imagem de povo que sobressai da obra
de Elis, a partir de 1969, é marcada pela pluralidade. Da mesma maneira, o Brasil que
emerge de sua música está longe de ser uma entidade plenamente definida, uma vez que
sintetiza sonoridades e instrumentos estrangeiros com composições e questões
nacionais. Nos LPs lançados de 1969 até 1974, o Brasil presente no repertório,
interpretado por Elis, não é mais o dos negros e dos morros, mas sim, o do vazio
causado pelos problemas das grandes cidades e gerado pela televisão e seus comerciais.
178
Conclusão
Na mesma época em que Elis se mudou de Porto Alegre para o Rio de Janeiro e,
posteriormente, para São Paulo, houve o desenvolvimento da indústria televisiva
brasileira, que se popularizou em meados dos anos sessenta. Parte da atração televisiva
dos anos sessenta se configurou nos Festivais de Música Popular Brasileira e nos
programas de auditório, dos quais Elis foi protagonista, quando venceu o I Festival com
Arrastão (1965), na TV Excelsior, e quando comandou de 1965 a 1967, ao lado de Jair
Rodrigues, O Fino da Bossa, na TV Record. Estes aspectos, somados a inúmeros outros
abordados nesta pesquisa, demonstram como muitas vezes a trajetória artística de Elis
se entrelaçou com a própria história da música popular brasileira e de seus meios de
divulgação e institucionalização.
Verificou-se, nesta análise, que as preocupações de Elis se voltaram para os
modos de se interpretar o Brasil, seus dilemas e soluções, a partir de 1965. No entanto, a
imagem do país se modificaria ao longo de sua carreira. A análise das canções
interpretadas por Elis Regina, ao longo desta pesquisa, mostra que são tantas as suas
influências - a bossa nova, peças teatrais e filmes do cinema novo, das cantoras de rádio
ao tropicalismo - que a adoção de um modelo explicativo restritivo não conseguiria
apreender. Embora existam muitos elementos que constatem o engajamento político de
Elis ao longo de sua carreira, principalmente nos discos lançados entre 1965 e 1974, há,
também, evidências da diversidade de temas, interesses, e mesmo os conflitos da artista
ao se posicionar perante os dilemas que se impunham aos seus processos criativos e que
obrigavam-na a se situar na discussão sobre a função social da arte.
Elis circulava em um contexto histórico de grande exaltação das identidades
nacionais. Além de se definir como brasileira, não se lançou em uma carreira
exclusivamente internacional, como fizeram outros artistas naquela época. A carreira de
Elis, no Brasil, desenvolveu-se em meio a um período de mudança na percepção da
questão social. Junto à explosão de estrelato de Elis, aconteceu a tomada de poder pelos
militares e iniciou-se no país um longo período de ditadura. Estes fatos marcaram
momentos de modificação na organização política, econômica e social nacionais,
havendo transformações também culturais, as quais foram enfocadas nesta pesquisa.
O popular, apresentado por Elis Regina em seu canto, é ligado principalmente ao
universo afro-brasileiro de 1965 até 1968. No entanto, não foi encontrada nenhuma
179
fonte que demonstrasse a ligação de Elis com este universo. Na fase analisada em que
percorremos os anos de 1961 até 1974, o Brasil presente no repertório interpretado por
Elis se modifica. Na primeira fase de sua carreira quase não há representações de Brasil,
há algumas letras que mencionam o samba327. Na fase em que a cantora se muda para o
Rio de Janeiro e inicia apresentações musicais em teatros e, posteriormente na televisão,
o Brasil em sua obra passa a ser representado pelos pescadores, negros e migrantes; na
terceira fase de sua carreira, e última analisada aqui, o Brasil é representado pelo vazio
causado pela solidão dos grandes centros urbanos e pela televisão e seus comerciais.
Não percebo, a partir da análise dos vídeos e entrevistas realizados ao longo da
carreira de Elis, uma iniciativa da artista por conhecer determinadas manifestações das
culturas brasileiras, aumentando, dessa forma, sua percepção em relação ao universo
popular brasileiro. Suas gravações e performances não faziam menção direta a este
aspecto, fosse através da vestimenta ou mesmo no instrumental.
Um interessante aspecto a ser observado, é que Elis Regina foi uma grande
intérprete dela mesma. Diferentemente de Gal Costa, que tinha nome para os discos
como Fatal, ou Bethânia, com Pássaro proibido, dentre muitas outras artistas, Elis
nomeou grande parte dos seus trabalhos com o próprio nome, o que demonstra que a
intérprete centrava em sua figura o repertório de dentro do disco, enfatizando que não só
sua arte, seus discos eram significativos, mas também a sua pessoa, a sua imagem.
Para uma demonstração mais sólida, listo328 os títulos de LPs de algumas das
mais importantes intérpretes do período e comparo a freqüência dos nomes de LPs
coincidir com os das intérpretes, desde o início de suas carreiras até o ano de 1982, ano
de falecimento de Elis:
327 1 canção sobre o Rio de Janeiro no repertório do Bem do amor (1963) e 2 canções sobre o sambapresentes no LP Ellis Regina (1963).328 Informações contidas no site: http://www.dicionariompb.com.br.
180
Tabela 3 - Frequência com o nome das cantoras no título dos discos
Artista Discos
LP com o nome
da artista %
Elis Regina 26 14 53,8
Clara Nunes 19 8 42,10
Nara Leão 18 6 33,33
Maria Bethânia 21 6 28,57
Gal Costa 18 5 27,77
Fonte: http://www.dicionariompb.com.br. Acessado em 28/05/2011.
A proposta ao longo desta pesquisa foi analisar qual a imagem de Brasil que se
cantou nos long plays da intérprete desde o lançamento de seu primeiro LP, Viva a
brotolândia, até 1974, quando percebemos uma outra clara modificação quanto aos
rumos de sua carreira. O cenário musical da década de sessenta estava inserido em uma
discussão acerca da arte enquanto veículo de engajamento político-social, e a
compreensão das músicas interpretadas por Elis, enquanto definidoras de uma
identidade nacional forjada ao longo da década de sessenta no país, nos demonstrou que
são diferentes os Brasis visitados por Elis, mas que houve sempre uma tentativa de
analisar e compreender as coisas nacionais, seus problemas e soluções, em sua obra.
Elis Regina não é vista, neste trabalho, somente como uma grande intérprete e
artista, mas como um produto e também produtora de seu próprio tempo e representante
de diversas questões que permearam seu trajeto artístico. Dentre os vários shows, discos
lançados e programas feitos para a televisão, Elis teve uma carreira musical marcada por
inúmeras situações que demandavam diversas escolhas e caminhos. Suas escolhas, bem
como o percurso que seguiu, foram, de certa maneira, reelaboradas e ressignificadas
pela artista ao longo de toda sua carreira.
181
A trajetória artística de Elis Regina comprova que a intérprete foi significativa
no momento de abertura para a MPB nacionalista e engajada. Antigos paradigmas,
como a voz empostada das cantoras de rádio, por exemplo, foram assimilados pelo
mercado musical dos anos sessenta se juntando a novas tendências e públicos, surgidos
nos auditórios dos programas televisivos e nos teatros. Elis desempenhou um papel
fundamental na criação de uma imagem de Brasil que vingaria, que tinha solução, neste
período pós-golpe e de institucionalização da televisão. A sua esperança era que se
criasse um Brasil socialmente justo. Podemos dizer, também, que ela não esteve à
margem, mas inserida no protesto político daquele momento; por questões estéticas ou
ideológicas, Elis passou a cantar o Brasil.
A trajetória artística de Elis Regina em muito se confunde com a trajetória das
construções imaginárias sobre o Brasil, feitas em seu tempo. Mais do que isso, Elis
expressou as expectativas de amplos segmentos da população do país que representou,
fosse através de seus programas televisivos ou através das mudanças percebidas em sua
carreira. Elis aceitou, ainda, se colocar como receptáculo destas expectativas,
incorporando às suas canções, à sua imagem, à sua performance, representações que
estes segmentos da população buscavam ver nela. Neste sentido, Elis estava
precisamente desenvolvendo sua carreira no momento da consolidação da televisão e da
indústria fonográfica no Brasil. Esse foi um elemento fundamental para que ela se
apresentasse como representante e defensora da música popular brasileira e ter sido
percebida desta forma por grande parte de seu público e crítica.
182
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Jair Rodrigues. Programa Ensaio – 1991. Produzido pela TV Cultura. Programa
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DVD Chico Buarque Vai passar. Produzido em 2005 pela Rede Bandeirante de
Televisão. Dirigido por Roberto de Oliveira.
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DVD Vento Bravo. Direção de Regina Zappa e Beatriz Thielmann, realizado pela
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Anexo
Relação dos discos analisados, com o número de canções por temática,
demonstrando as mudanças no repertório de Elis ao longo do período analisado.
Destaco que considerei as canções dos pot-pourris como sendo 1 em cada trecho e
algumas se enquadram em mais de uma temática.
Disco/ano Total demúsicas
Temáticaamorosa
Temáticanacional
Temáticapolítica
Outros
Viva abrotolândia
(1961)12 12
Poema de amor(1962) 12 11
1
O bem do amor(1963) 12 10 1 2
Ellis(1963) 12 10 2
Dois na bossa(1965) 20 6 9 5
O fino do fino(1965) 12 3 3
Samba eu cantoassim (1965) 14 7 4 5
Dois na bossa 2(1966) 18 8 9 2
Elis(1966) 12 3 6 1 2
Dois na bossa 3(1967) 18 6 8 4 1
ElisEspecial(1968) 15 7 8
Elis como &porque (1969) 11 6 4 2
No teatro dapraia (1970) 17 14 2 1
Em pleno verão(1970) 11 5 2 3 1
Ela(1971) 11 5 3 1 2
Elis(1971) 12 4 2 1 5
Elis(1973) 10 1 3 4 2
Elis e Tom(1974) 14 13 1