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APROXIMAÇÕES ENTRE DIREITO E ANTROPOLOGIA: UMA REFLEXÃO A PARTIR DO PROJETO DE LEI N° 1.057/20 07 1 Débora Fanton RESUMO Atualmente, encontra-se tramitando no Congresso Nacional, sujeito à aprovação, o Projeto de Lei n° 1.057/2007. Conhecid o como “Lei Muwaji”, o referido Projeto de Lei dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais. Não obstante, percebe-se que algumas comunidades indígenas brasileiras concebem diferentemente as noções de ser humano, de vida e de morte e, por essa razão, não consideram tais práticas como “nocivas”. Diante desta questão, que envolve a diversidade cultural, a Antropologia assume relevante papel para a Ciência Jurídica, uma vez que evidencia, através de instrumentos interpretativos, diferentes sistemas de símbolos significantes. Neste contexto, o presente trabalho tem por objetivo introduzir, primeiramente, o conceito antropológico de “cultura”, a partir da perspectiva de Clifford Geertz, para uma melhor compreensão sobre a diversidade cultural, bem como os elementos relacionados a ela: o etnocentrismo e o relativismo cultural. Em seguida, será exposta a importante função do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na ordem jurídico-constitucional brasileira. Por fim, no terceiro e último capítulo, o Projeto de Lei será analisado e, em seguida, serão trazidos os argumentos tanto da perspectiva antropológica, como da jurídica. Concluir-se-á, nesse sentido, a necessidade de um diálogo intercultural, baseado em ambas as perspectivas. Palavras-chave: Direito. Antropologia. Diversidade Cultural. Relativismo Cultural. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. INTRODUÇÃO Cada vez mais se tem despertado o interesse e desenvolvido pesquisas entre os campos do Direito e da Antropologia. Atualmente, discute-se a necessidade do diálogo entre as duas áreas, principalmente no que concerne ao âmbito da diversidade cultural. Assuntos como a luta pelo reconhecimento e delimitação das terras indígenas, elaboração de políticas públicas, preservação do patrimônio histórico nacional, questões relativas à saúde e educação diferenciadas e os direitos das minorias étnicas de uma forma geral demonstram esta significante preocupação. O conhecimento antropológico, apesar de até o presente momento não ter recebido seu merecido destaque na Ciência Jurídica, é extremamente indispensável 1 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Aprovação, com grau máximo, pela banca examinadora composta pela orientadora Profª. Drª. Clarice Beatriz da Costa Söhngen, Profª. Drª. Lígia Mori Madeira e Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, em 25 de novembro de 2009.

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APROXIMAÇÕES ENTRE DIREITO E ANTROPOLOGIA: UMA REFLEXÃO A PARTIR DO PROJETO DE LEI N° 1.057/20 071

Débora Fanton

RESUMO

Atualmente, encontra-se tramitando no Congresso Nacional, sujeito à aprovação, o Projeto de Lei n° 1.057/2007. Conhecid o como “Lei Muwaji”, o referido Projeto de Lei dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais. Não obstante, percebe-se que algumas comunidades indígenas brasileiras concebem diferentemente as noções de ser humano, de vida e de morte e, por essa razão, não consideram tais práticas como “nocivas”. Diante desta questão, que envolve a diversidade cultural, a Antropologia assume relevante papel para a Ciência Jurídica, uma vez que evidencia, através de instrumentos interpretativos, diferentes sistemas de símbolos significantes. Neste contexto, o presente trabalho tem por objetivo introduzir, primeiramente, o conceito antropológico de “cultura”, a partir da perspectiva de Clifford Geertz, para uma melhor compreensão sobre a diversidade cultural, bem como os elementos relacionados a ela: o etnocentrismo e o relativismo cultural. Em seguida, será exposta a importante função do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na ordem jurídico-constitucional brasileira. Por fim, no terceiro e último capítulo, o Projeto de Lei será analisado e, em seguida, serão trazidos os argumentos tanto da perspectiva antropológica, como da jurídica. Concluir-se-á, nesse sentido, a necessidade de um diálogo intercultural, baseado em ambas as perspectivas. Palavras-chave: Direito. Antropologia. Diversidade Cultural. Relativismo Cultural. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. INTRODUÇÃO

Cada vez mais se tem despertado o interesse e desenvolvido pesquisas

entre os campos do Direito e da Antropologia. Atualmente, discute-se a necessidade do diálogo entre as duas áreas, principalmente no que concerne ao âmbito da diversidade cultural. Assuntos como a luta pelo reconhecimento e delimitação das terras indígenas, elaboração de políticas públicas, preservação do patrimônio histórico nacional, questões relativas à saúde e educação diferenciadas e os direitos das minorias étnicas de uma forma geral demonstram esta significante preocupação.

O conhecimento antropológico, apesar de até o presente momento não ter recebido seu merecido destaque na Ciência Jurídica, é extremamente indispensável

1 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Aprovação, com grau máximo, pela banca examinadora composta pela orientadora Profª. Drª. Clarice Beatriz da Costa Söhngen, Profª. Drª. Lígia Mori Madeira e Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, em 25 de novembro de 2009.

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a ela, tanto em termos teóricos, quanto em termos práticos. O Direito lida com o ser humano e ocupa-se, predominantemente, em regular e resolver os conflitos decorrentes das relações sociais. Já a Antropologia tem por objetivo buscar compreender, através de instrumentos interpretativos, os homens e sua cultura. Dessa forma, o pensamento antropológico assume importante papel para proporcionar uma ampliação e uma melhor compreensão sobre o homem e, assim, sobre o papel do Direito nas relações sociais.

Pode-se afirmar que a “Antropologia Jurídica” seria a disciplina encarregada dessa tarefa e que, através da teoria antropológica e de métodos específicos de estudo, como o trabalho de campo e/ou a observação participante, analisa e compara as instituições do direito e as concepções de justiça de determinadas culturas.2

Um exemplo presente no cenário nacional que evidencia a exigência de se refletir sobre a conexão entre Direito e Antropologia é o Projeto de Lei n° 1.057/2007. Conhecido como “Lei Muwaji”, ele foi apresentado pelo deputado Henrique Afonso e, no momento, encontra-se tramitando no Congresso Nacional, sujeito à aprovação. Este Projeto de Lei dispõe sobre o combate de algumas práticas tradicionais indígenas consideradas nocivas, em relação ao tratamento das crianças. Dentre as práticas, está aquela que popularmente se convencionou chamar de “infanticídio” indígena. Por meio de tal instrumento legal, pretende-se impedir tais práticas, a fim de se fazer cumprir os direitos humanos e fundamentais, bem como todas as normas de proteção à vida e à infância, previstas no ordenamento jurídico brasileiro.

A justificativa do Projeto de Lei n° 1.057/2007 est á calcada, principalmente, na garantia do direito à vida, já que este é o direito “por excelência”. Nesse sentido, percebe-se o ideal de preservar a dignidade da pessoa humana e, portanto, a vida, a saúde e a integridade físico-psíquica das crianças indígenas e, como aponta o texto legal, também das crianças pertencentes a sociedades ditas não-tradicionais.3

Igualmente, refere o Projeto de Lei, que o artigo 231 da Constituição Federal, relativo ao direito de reconhecimento da diversidade cultural, não deve ser interpretado de forma desvinculada do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, previsto no artigo 1°, inciso III, e das diretrizes dos direitos fundamentais, previstas no artigo 5°.

Contudo, desde a sua divulgação, o Projeto de Lei n° 1.057/2007 tem recebido inúmeras críticas e causado polêmicas, sobretudo, entre as comunidades indígenas englobadas nesta discussão. Percebe-se que algumas comunidades indígenas brasileiras não concebem tais práticas como nocivas, indicando, portanto, haver outro universo de significação em relação às concepções de ser humano, de vida e de morte.

Desse modo, nota-se que a discussão centra-se no conflito entre o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o direito à vida e o direito à diversidade cultural.

2 SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 12; COLAÇO, Thais

Luzia. O despertar da antropologia jurídica. In: COLAÇO, Thais Luzia (Org.). Elementos de antropologia jurídica. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008, p. 29.

3 Cumpre referir que a ênfase de nossa reflexão neste trabalho se dará sobre as práticas tradicionais indígenas.

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Assim sendo, o presente trabalho tem como finalidade refletir, a partir do Projeto de Lei n° 1.057/2007, sobre as aproximações que podem se estabelecer entre os campos do direito e da antropologia. Ou seja, iremos discutir a aplicação dos direitos humanos e fundamentais, questionando o caráter universalista e interventor do Projeto de Lei. Por outro lado, expor-se-á a particularidade da significação dos sistemas simbólicos indígenas, já que, a partir do ponto de vista antropológico, dever-se-ia interpretar o artigo 1°, inciso III e o artigo 5° em conformidade com o artigo 231 da Constituição Federal.

Tendo em vista que muitas vezes as minorias étnicas são incompreendidas ou, até mesmo, menosprezadas, interpretá-las significa despertar a importância de enxergar o “outro” a partir de seu contexto social.

Diante disso, no primeiro capítulo desta monografia serão abordados os principais conceitos antropológicos, como a noção de “cultura”, a partir da perspectiva de Clifford Geertz, para que seja possível um melhor entendimento sobre a diversidade cultural, além das concepções que estão diretamente ligadas a esta noção, como o etnocentrismo e o relativismo cultural.

No segundo capítulo, será explicada a noção e a importante função que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana exerce na ordem jurídico-constitucional brasileira, posto que ele é o principal fundamento do Projeto de Lei n° 1.057/2007. Ou seja, o primeiro capítulo expõe as principais ferramentas antropológicas para tratar deste tema, ao passo que o segundo capítulo, as ferramentas jurídicas.

Por fim, no terceiro capítulo, mostrar-se-á os principais aspectos e os fundamentos da justificativa do Projeto de Lei n° 1 .057/2007. Em contraposição, exporemos as críticas do olhar antropológico dirigidas a ele, bem como a interessante proposta do diálogo intercultural e da hermenêutica diatópica de Boaventura de Souza Santos sobre o debate relacionado à diversidade cultural e à aplicação dos direitos humanos (e fundamentais). Nesse sentido, o que estamos buscando é encontrar uma decisão sobre este Projeto de Lei que seja justificável para ambas as culturas.

Para uma melhor compreensão sobre o assunto, realizaram-se entrevistas, as quais nos aproximam da realidade indígena e, igualmente, suscitam outras questões, que poderiam muito bem ser abordadas neste tema, mas que, devido à complexidade, não foram objeto de maior desenvolvimento neste trabalho, tais como: a democracia, relacionada à participação das comunidades indígenas no processo constituinte brasileiro; o tratamento legal dos povos indígenas no Brasil; a colisão entre direitos e princípios constitucionais; os direitos coletivos e o pluralismo jurídico.

Considerando que o presente estudo limita-se em apresentar algumas aproximações entre Direito e Antropologia, ressalta-se que não temos o intuito de apontar soluções definitivas para o problema, mas o de esboçar questionamentos e ampliar o debate sobre ele, uma vez que repensar o Direito a partir do viés antropológico é um desafio que se impõe nos dias de hoje.

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1 CULTURA, ETNOCENTRISMO E RELATIVISMO CULTURAL: O ARCABOUÇO TEÓRICO DA ANTROPOLOGIA

Dizer que a Antropologia é a ciência que se dedica ao estudo do homem é

reiterar o óbvio. As áreas da Antropologia (Biológica, Arqueologia, Lingüística, Social e/ou Cultural, entre outras) se ocupam em interpretar a complexidade da existência humana, sob o enfoque de diferentes aspectos.4 Aqui, nos ateremos mais à abrangência do plano cultural, tendo em vista a especificidade dos fatores estudados.

A noção de “cultura” é de extrema importância para a reflexão antropológica, pois sobre ela foi desenvolvida a compreensão de como a experiência humana é organizada. Como existem diversas concepções sobre cultura, neste trabalho optaremos pela matriz epistemológica do antropólogo Clifford Geertz, tendo em vista a atualidade de seu pensamento no que concerne ao assunto, ressaltando-se claramente que não possuímos a pretensão de absolutizar o termo. 1.1 TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA: A PERSPECTIVA DE CLIFFORD

GEERTZ

Clifford Geertz (1926-2006), antropólogo norte-americano de notável influência na segunda metade do século XX, contribuiu para a reconstrução do conceito “cultura”, para o debate do relativismo cultural, além de ampliar e conectar suas reflexões a outras áreas, como história, política, direito, artes e literatura. Dessa forma, promoveu o desenvolvimento da antropologia moderna e o desencadeamento da antropologia pós-moderna. Sua dimensão hermenêutica rompeu com as estruturas metodológicas formais de estudo do meio antropológico, ao considerar que o homem e as relações humanas devem ser interpretados em suas particularidades culturais, e não sintetizados como se fossem leis gerais em uma espécie de Código Cultural. Nesse sentido, a abordagem semiótica da cultura revela que os fenômenos culturais são dotados de um conteúdo simbólico e, conseqüentemente, carregados de significados passíveis de serem interpretados de forma inteligível.

A posição por uma teoria interpretativa da cultura é claramente visível nos argumentos do pensador. O trabalho antropológico é uma interpretação, isto é, uma leitura do objeto analisado, e não uma “construção de representações impecáveis de ordem formal”.5 Dito de outro modo, a interpretação cultural, através do instrumento da prática etnográfica (a descrição densa), somente é possível pela aproximação de dados concretos. Ela é um ponto de vista articulado pelo próprio observador a partir da interpretação do(s) observado(s) e, por essa razão, nunca será completa, eis que apenas o “objeto” de estudo poderia revelar uma interpretação “pura”, já que faz parte de sua cultura.6 Nesse sentido, o trabalho antropológico é uma interpretação de uma interpretação. Ao estudar uma comunidade indígena, pode-se dizer que o antropólogo depende das informações reveladas pelos nativos, seus “informantes”.

4 Para uma noção geral sobre os ramos da Antropologia, consultar: DAMATTA, Roberto.

Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 27-38; LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 16-20.

5 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 13. 6 Ibidem, p. 11.

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Através dessa coleta de dados, o intérprete busca compreender a trama de significados. Assim, a interpretação não pode ser vista como uma lei, mas como uma compreensão de um fato particular, de uma comunidade particular, de uma cultura particular.7 Seguindo essa linha de raciocínio, o ideal de Geertz pode ser demonstrado pelo seguinte trecho:

Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.8

Com efeito, tendo em vista a atualidade dessa discussão em relação ao

estudo antropológico, em grande parte deste capítulo, serão apresentadas as idéias desenvolvidas por Clifford Geertz para uma melhor compreensão da cultura e, portanto, da diversidade cultural.

1.1.1 Cultura: o conjunto de sistemas de símbolos s ignificantes

Uma das principais preocupações da Antropologia foi – e continua sendo – a

definição do termo “cultura”.9 Tal preocupação deve-se ao fato de que em torno desse conceito é que se estruturou todo o estudo do homem.

Desde a antigüidade, inúmeros pensadores, tais como Confúcio, Heródoto e Tácito,10 tentaram explicar a noção de cultura, com o intuito de compreender a diversidade humana. Entretanto, apenas em 1871 que as idéias foram sistematizadas, sendo pela primeira vez descrito o conceito científico da palavra, trabalho realizado pelo inglês Edward Burnett Tylor.11 Após ele, diversos antropólogos se dedicaram a esse objetivo, cuja pluralidade de enfoques pode ser analisada nas escolas antropológicas do pensamento.12

Contudo, a maioria das formulações do conceito “cultura”, por serem um tanto abrangentes, mostrou-se demasiadamente confusa. Segundo Clifford Geertz, as noções amplas correm o risco de perder seu foco, frustrando o seu próprio sentido. Conforme o autor, as noções universais perdem sua força. Portanto, percebe-se que é de suma relevância delimitar e especificar o conceito cultura, a fim de que tal

7 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 11 e 21. 8 Ibidem, p. 4. 9 A opinião de Roque de Barros Laraia sobre o estudo da cultura é que: “provavelmente nunca

terminará, pois uma compreensão exata do próprio conceito de cultura significa a compreensão da própria natureza humana, tema perene da incansável reflexão humana”. (LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 63).

10 Ibidem, p. 10-11. 11 Para Edward Burnett Tylor (1832-1917), antropólogo inglês da corrente Evolucionista, “Cultura ou

Civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro de sociedade”. (TYLOR, Edward Burnett. A ciência da cultura. In: CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 69. Sobre a crítica de Clifford Geertz em relação ao referido autor, consultar p. 3 da obra A interpretação das culturas).

12 Neste trabalho não se pretende detalhar as diferentes contribuições das escolas antropológicas, limitaremo-nos em apenas citar as mais conhecidas: Evolucionismo, Difusionismo, Funcionalismo, Estruturalismo, Antropologia Interpretativa, Antropologia Pós-Moderna ou Crítica.

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noção não perca seu conteúdo, torne-se mais esclarecedora e quiçá mais poderosa.13 Por essas razões, Clifford Geertz expõe que:

a cultura é melhor vista não como complexos de padrões concretos de comportamento – costumes, usos, tradições, feixes de hábitos -, como tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de controle – planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiros da computação chamam de “programas”) – para governar o comportamento. [...] O homem é precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais, para ordenar seu comportamento.14

Diferentemente de Tylor, que define cultura utilizando a enumeração de itens,

como um mero descritivismo – e aqui não desvalorizamos seu mérito, pois foi a partir de sua construção que o conceito se desenvolveu –, a concepção de Geertz torna-se mais consistente, pois mesmo subjetivamente, define de forma simples e clara a expressão “cultura”, sem dissecar as “banalidades empíricas do comportamento”.15 Em suma, para Geertz, o conceito antropológico de cultura pode ser designado como um conjunto de sistemas de símbolos significantes ou padrões culturais, construídos historicamente, que orientam o comportamento humano, dando significado à sua experiência.16

Ao contrário do que é comumente pensada, a cultura não é apenas um detalhe característico que pode marcar um povo, como se o futebol representasse o brasileiro, a cuia, o gaúcho, o acarajé, o baiano e assim por diante. Conforme Geertz, a cultura não é simplesmente um acessório, mas um elemento essencial para a existência humana.17 Os sistemas de símbolos significantes ou padrões culturais são, de acordo com o autor, uma espécie de “programa” ou um “gabarito”18, no qual o homem norteia as suas decisões. Ressalta-se que o homem não é estritamente determinado por sua cultura, como se fôssemos fadados a viver de uma só forma. A gama de possibilidades de nossas decisões está inserida em uma espécie de gabarito cultural. Por essa razão, pode-se dizer, por exemplo, que preferimos escolher comer churrasco de gado à aranha grelhada.

Para Geertz, “um dos fatos mais significativos a nosso respeito pode ser, finalmente, que todos nós começamos com o equipamento natural para viver milhares de espécies de vidas, mas terminamos por viver apenas uma espécie”.19 Assim, todas as pessoas são capazes de crescer em qualquer cultura, porém tendo crescido em uma específica, a ela se adaptará, pois a convivência com os símbolos correspondentes implica na sua absorção e, por conseguinte, no seu modo de vida. Conforme Geertz:

É por intermédio dos padrões culturais, amontoados ordenados de símbolos significativos, que o homem encontra sentido nos acontecimentos através dos quais ele vive. O estudo da cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, é, portanto, o estudo da maquinaria que os indivíduos ou grupos

13 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 3 e 28-31. 14 Ibidem, p. 32-33. 15 Ibidem, p. 33. 16 Ibidem, p. 66 e 135. 17 Ibidem, p. 34. 18 Ibidem, p. 124. 19 Ibidem, p. 33.

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de indivíduos empregam para orientar a si mesmos num mundo que de outra forma seria obscuro.20

Portanto, pode-se afirmar que a cultura modela o comportamento humano, na

medida em que fornece símbolos, ou seja, diretrizes abrangentes de conduta e até mesmo tendências e reflexos sutis, os quais orientam a vida do homem. Sem tais “códigos”, a vida humana seria vazia de sentidos. 1.1.2 Os elementos simbólicos e seus significados

Como a cultura é um conjunto ordenado de sistemas de símbolos significantes, entendê-la importa assimilar o que são os símbolos. Já foi dito anteriormente que os símbolos orientam, coordenam e dão sentido ao comportamento humano. Mas, o que são eles?

Em linhas gerais, “símbolo” é tudo aquilo que carrega em si um significado. Da mesma forma que a noção de cultura, o conceito de símbolo precisa ser delimitado. Geertz o especifica, referindo que:

[...] ele é usado para qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação que serve como vínculo a uma concepção – a concepção é o “significado” do símbolo [...] são formulações tangíveis de noções, abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações concretas de idéias, atitudes, julgamentos, saudades ou crenças. [...] Os atos culturais, a construção, apreensão e utilização de formas simbólicas, são acontecimentos sociais como quaisquer outros; são tão públicos como o casamento e tão observáveis como a agricultura.21

Os significados, segundo Geertz, “só podem ser ‘armazenados’ através de

símbolos”.22 Estes, por sua vez, podem ser expressos por uma atitude, um objeto concreto, uma relação ou até mesmo uma abstração. A mão abanando em direção a alguém que está partindo, o calendário, uma obra de arte, a palavra “amor”, uma música. Todos eles são símbolos carregados de um significado específico, isto é, que procuram “dizer algo”. Eis alguns exemplos de Geertz:

O número 6, escrito, imaginado, disposto numa fileira de pedras ou indicado num programa de computador, é um símbolo. A cruz também é um símbolo, falado, visualizado, modelado com as mãos quando a pessoa se benze, dedilhado quando pendurado em uma corrente, e também é um símbolo a tela “Guernica” ou o pedaço de pedra chamada “churinga”, a palavra “realidade” ou até mesmo o morfema “ing”.23

Logo, os significados da cultura de um povo estão sintetizados e

representados em símbolos, construídos pelo homem para que sua vida tenha sentido. Ressalta-se que os elementos simbólicos não podem ser confundidos com os atos, objetos e relações, aos quais o homem atribui os significados. Embora os primeiros confundam-se com os segundos, isto é, uma cruz simbolize a fé cristã, a cruz por si só não é a fé cristã, mas um objeto que a exprime a partir de sua utilização por crentes. 20 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 150. 21 Ibidem, p. 67-68. 22 Ibidem, p. 93. 23 Ibidem, p. 68.

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A interação de um símbolo com outro, dos símbolos entre si, forma um conjunto de sistemas de símbolos, os quais regulam e modelam as demais relações em que o homem está inserido.24

Segundo Geertz, os sistemas de símbolos, ou seja, os padrões culturais desempenham um papel mútuo: são modelos “da” realidade e modelos “para” a realidade. No sentido de modelo “da” realidade, as estruturas simbólicas modelam as relações físicas ou não-simbólicas. No segundo caso, no modelo “para” a realidade, as estruturas simbólicas é que são adaptadas às relações físicas ou não-simbólicas. Fazendo-se um paralelo à atividade agrícola, no modelo “da” realidade, o homem elabora uma teoria sobre as condições climáticas, da acidez do solo, da necessidade de fertilizantes, etc., a fim de obter uma maior produtividade em sua plantação. Ao mesmo tempo, no modelo “para” a realidade, essa teoria é modelada de acordo com o desenvolvimento da referida plantação, isto é, de acordo com os resultados obtidos com as condições climáticas, da acidez do solo e da qualidade dos fertilizantes utilizados. Destaca-se que os modelos “da” e “para” a realidade não possuem um caráter cronológico, como se um precedesse o outro. Ao contrário, a relação entre “da” e “para” a realidade é mútua, paralela, assim como pode ser observado em relação ao exemplo da agricultura. Ao mesmo tempo em que o homem elabora sua teoria agrícola, ele observa a natureza, ou seja, a teoria molda o físico, bem como a teoria se ajusta ao físico. Desse modo, os símbolos assumem uma dupla função, qual seja, dar sentido à realidade, modelando-a e, igualmente, modelando a realidade a eles mesmos.25 Nas palavras de Geertz:

Diferentemente dos genes e outras fontes de informação não-simbólicas, os quais são apenas modelos para, não modelos de, os padrões culturais têm um aspecto duplo, intrínseco – eles dão significado, isto é, uma forma conceptual objetiva, à realidade social e psicológica, modelando-se em conformidade a ela e ao mesmo tempo modelando-a a eles mesmos.26

Apenas o homem possui uma ligação entre os modelos “da” e “para” a

realidade. Isto é, diferentemente dos animais, os homens modelam a realidade e não apenas adaptam-se a ela. Portanto, a partir das observações do mundo em que está inserido, o homem procura tirar proveito dessas constatações, possibilitando desenvolver seu aprendizado.27 É o acúmulo desses aprendizados, ou, nas palavras de Geertz, do “fundo acumulado de símbolos significantes”28, criado historicamente, que possibilita ao homem enriquecer sua própria cultura. Nesse sentido, os símbolos representam a essência do comportamento humano. Os símbolos possuem papel elementar na vida do homem e, por essa razão, os indivíduos têm uma dependência tão grande em relação a eles. 1.1.3 Pensamento Humano e Diversidade Cultural

Inúmeras pessoas acreditam que as diferenças culturais entre os seres humanos são produtos da composição genética. Existem teorias que sustentam que algumas raças e povos possuem atribuições hereditárias. Pode-se recordar, em

24 CRAIK, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69. 25 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69. 26 Ibidem, p. 69. 27 Ibidem, p. 70. 28 Ibidem, p. 35.

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tempos não muito distantes, do nazismo, o qual propunha serem superiores os indivíduos da raça ariana. Além disso, muitas afirmações como estas se tornaram populares: “índio é preguiçoso”, “negro de canela fina é mais trabalhador do que o negro de canela grossa” ou “japoneses são mais inteligentes”.29

Da mesma forma, tal problemática pode ser exemplificada pela notícia veiculada em uma reportagem do programa Globo Repórter. Nela, os cientistas demonstram que a característica de infidelidade de homens e mulheres estaria relacionada a determinados genes, ou seja, pessoas com certos atributos genéticos estariam mais propensas a trair. Nesse sentido, argumentam os cientistas:

A diferença entre fiéis e infiéis pode ter mesmo relação com os hormônios. Cientistas suecos e americanos estudaram o comportamento sexual de ratos que formavam pares e descobriram um gene presente no hormônio vasopressina que, até então, acreditavam controlar apenas a pressão sanguínea, mas que pode influenciar também nos relacionamentos. [...] “No ano passado, um grupo de cientistas publicou o primeiro trabalho em uma variação desse gene que é relevante para o comportamento dos homens. Os homens que têm a versão curta do gene tendem a ser mais promíscuos e mais infiéis, e homens que têm a versão longa do gene tendem a ser mais monogâmicos e a ficar mais vinculados em casa e a cuidar mais dos filhos”, explica o geneticista Renato Zamora Flores, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).30

Como é de se notar, a discussão do poder dos genes sobre o comportamento

humano é ainda muito polêmica. Negar que a composição genética influencia os seres humanos soaria irrazoável. Contudo, a Antropologia, através de pesquisas, desmistifica a concepção de que tão-somente os genes são os elementos essenciais para a distribuição dos comportamentos. Assim, as diferenças genéticas não determinariam as diferenças culturais, de modo que, como no exemplo citado, homens comportar-se-iam diferentemente das mulheres não em razão de seus hormônios, mas porque a cultura lhes fornece uma gama de possibilidades de comportamentos e de identificações distintos.31

Por outro lado, há quem pense que a diversidade cultural é resultante da geografia. O tipo de clima, vegetação e outras condições naturais específicas do local onde um povo se instalou interfeririam fortemente na vida desse grupo humano, conduzindo-o de modo peculiar. Até mesmo condicionariam seu progresso. Essa doutrina surgiu na antigüidade, mas se desenvolveu e tornou-se conhecida no final do século XIX e início do século XX, sendo refutada por antropólogos como Franz Boas. Para ele, os fatores geográficos exercem influência limitada sobre as culturas. Tal doutrina também dificilmente responderia por que alguns povos com

29 Baseado em LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2008, p. 17. 30 REPORTAGEM EXIBIDA no dia 31 de julho de 2009 na rede Globo, às 22h30min. Disponível em:

<http://g1.globo.com/globoreporter/0,,MUL1250884-16619,00-ESTUDO+DOS+BRASILEIROS+CASADOS+TRAEM.html>. Acesso em: 09 ago. 2009.

31 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 19-20.

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condições geográficas muitíssimo semelhantes e até mesmo em distâncias próximas desenvolveram suas culturas de maneira tão discrepantes.32

Portanto, nem o determinismo biológico, nem o geográfico são suficientes para justificar a diversidade cultural. Claramente, o homem sofre influência de sua genética e do meio ambiente onde vive, porém não é determinado por esses aspectos, como se agisse com um caráter meramente receptivo a eles. Ambos são limitados.33

A perspectiva tradicional sobre a evolução biológica e cultural do homem refere que primeiramente o homem desenvolveu seu aparato físico para, somente após a finalização desse estágio, a partir de um “momento mágico”, começar a produzir e transmitir elementos culturais.34

Em oposição, Geertz afirma que a cultura sempre esteve presente na evolução do homem, sugerindo “não existir o que chamamos de natureza humana independente de cultura”.35 Assim, o autor contesta a teoria do “momento mágico” ou do “ponto crítico”, julgando ser incorreta a tese de que o desenvolvimento total da biologia humana seria pré-requisito para a capacidade de acumulação cultural.36 De acordo com Geertz:

E torna-se evidente, de forma ainda mais crucial, que a acumulação cultural não só já estava encaminhada muito antes de cessar o desenvolvimento orgânico, mas que tal acumulação certamente desempenhou um papel ativo moldando os estágios finais desse desenvolvimento [...] a ferramenta de pedra ou o machado rústico, em cujo rastro parece ter surgido não apenas uma estatura mais ereta, uma dentição reduzida e uma mão com domínio do polegar, mas a própria extensão do cérebro humano até seu tamanho atual.37

Observa o autor, ainda, que não é possível traçar uma linha delimitando o

homem “não-enculturado” do homem “enculturado”38, como se o próprio homem tivesse subitamente se promovido de “coronel” a “general-de-brigada”39. A evolução biológica deu-se de forma gradual juntamente com o acúmulo cultural, ambos influenciando-se mutuamente.40 Dessa forma, a cultura foi ingrediente essencial para

32 Segundo Franz Boas: “As condições ambientais podem estimular as atividades culturais existentes,

mas elas não têm força criativa. O mais fértil solo não cria a agricultura; as águas navegáveis não criam a navegação; um abundante suprimento de madeira não produz edificações de madeira. Mas onde quer que exista agricultura, arte da navegação e arquitetura, todas essas atividades serão estimuladas e parcialmente moldadas segundo as condições geográficas”. Logo adiante o autor complementa: “Desse modo, é infrutífero tentar explicar a cultura em termos geográficos [...] Entretanto, as relações espaciais dão apenas a oportunidade para o contato; os processos são culturais e não podem ser reduzidos a termos geográficos”. (FRANZ, Boas. Antropologia cultural. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 61-62; BOAS apud LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 21-23).

33 Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 24.

34 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 34. 35 Ibidem, p. 35. 36 Ibidem, p. 45 e 60. 37 WASHBURN, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 49. 38 O significado que o autor imprime à palavra “enculturado” refere-se ao homem ser capaz de

produzir e acumular cultura. 39 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 47. 40 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 46-47. Nesse sentido, observa Laplantine que o inato (biológico) e o adquirido (aspectos culturais) interagem

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a formação do homem, influenciando até mesmo seu aparato físico, mas principalmente a organização e refinamento do sistema nervoso central. Ressalta-se que o homem, nos seus primórdios, não havia ainda desenvolvido uma cultura no sentido de um conjunto de sistemas de símbolos significantes ordenados, o que não impede afirmar que já existiam resquícios culturais capazes de orientar o comportamento humano e, conseqüentemente, torná-lo cada vez mais dependente deles.41

No exemplo bem formulado de Geertz, sem cultura provavelmente os personagens da obra de William Golding, “O Senhor das Moscas”, não seriam selvagens inteligentes, “seriam monstruosidades incontroláveis, com muito poucos instintos úteis, menos sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto: verdadeiros casos psiquiátricos”.42

Por conseguinte, a cultura interferiu e pode-se afirmar que continua interferindo na evolução da mente humana. Uma constatação recente é a da provável modificação da percepção cerebral provocada pela revolução dos meios de comunicação. Os acessos à internet estimulam os circuitos cerebrais e ativam o córtex pré-frontal, possibilitando aos indivíduos tomarem decisões rápidas diante de um grande volume de informações complexas.43

Assim, segundo Geertz, como um ser inacabado, o homem é complementado pela sua cultura, por suas particularidades culturais.44

Um pássaro, após nascer, ensaia seus primeiros vôos incertos, busca seu alimento, acomoda fios, gravetos e barro para a construção de seu ninho e acasala-se basicamente através de seus instintos – os comandos de seus genes – e pelos estímulos externos, os quais ordenam suas ações para desempenhar tais atividades. O homem, por sua vez, para escolher sua companheira ou seu círculo de amizades, selecionar o alimento que lhe apetece e construir sua residência necessita muito mais das chamadas “fontes extrínsecas de informação” do que de “fontes intrínsecas”.45 As fontes intrínsecas de informação são os nossos genes. Já, as fontes extrínsecas são os fatores externos ao corpo do ser humano, os quais não possuem ligação direta com os genes, ou seja, são os padrões culturais.46 O homem, ao contrário do pássaro e de outros animais, se apóia muito mais em fontes não genéticas para se desenvolver. Nesse sentido, Geertz aduz que:

Entre o que o nosso corpo nos diz e o que devemos saber a fim de funcionar, há um vácuo que nós mesmos devemos preencher, e nós o preenchemos com a informação (ou desinformação) fornecida pela nossa cultura.47

continuadamente. (LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 17). 41 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 50. 42 Ibidem, p. 35. 43 LUZ, Lia. A internet transforma o seu cérebro. Veja, São Paulo, edição 2125, ano 42, n. 32, p. 96-

99, 12 ago. 2009. 44 GEERTZ, op. cit., p. 36. 45 GALENTER; GERSTENHABER, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de

Janeiro: LTC, 2008, p. 121. 46 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 36, 68, 121-124. 47 Ibidem, p. 36.

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[...] Para construir um dique, o castor precisa apenas de um local apropriado e de materiais adequados – seu modo de agir é modelado por sua fisiologia. O homem, porém, cujos genes silenciam sobre o assunto das construções, precisa também de uma concepção do que seja construir um dique, uma concepção que ele só pode adquirir de uma fonte simbólica – um diagrama, um livro-texto, uma lição por parte de alguém que já sabe como os diques são construídos, ou então através da manipulação de elementos gráficos ou lingüísticos, de forma a atingir ele mesmo uma concepção do que sejam diques e de como construí-los.48

A capacidade humana provém da interação das fontes intrínsecas e das

fontes extrínsecas de informação. O aparato genético determina frouxamente o ser humano, deixando lacunas na experiência humana a serem preenchidas pelos padrões culturais. Dessa forma, as fontes extrínsecas de informação, isto é, os sistemas de símbolos significantes, especificam o comportamento humano.49

Não há dúvidas que possuímos a capacidade de sorrir. No entanto, os sorrisos irônico, envergonhado, constrangido e tímido são essencialmente culturais. Como o sorriso, outros símbolos são criados pelo homem. A capacidade de criar símbolos e compreendê-los é que distingue o homem dos animais.50 Além disso, o ser humano necessita aprender e continuar aprendendo.51

Ora, o pensamento humano não é uma ocorrência enigmática ou misteriosa, na qual não possamos descrever ou interpretar. Segundo Geertz, o homem pensa, apoiando-se em símbolos elaborados historicamente por sua cultura, os quais dão sentido à sua experiência.52 E isto pode ser descrito pela Antropologia. Em conformidade com Geertz:

Para tomar nossas decisões, precisamos saber como nos sentimos a respeito das coisas; para saber como nos sentimos a respeito das coisas precisamos de imagens públicas [...]53 Para obter a informação adicional necessária no sentido de agir, fomos forçados a depender cada vez mais de fontes culturais – o fundo acumulado de símbolos significantes.54 Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornarmos individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas. Os padrões culturais não são gerais, mas específicos.55

Assim, a cultura é o ingrediente essencial para a orientação do raciocínio;

como antes referido, é um “gabarito”. Um indivíduo, ao refletir sobre o instituto do casamento, por exemplo, raciocina de acordo com os padrões de sua cultura, isto é, na forma como o casamento é realizado. Por esse motivo, muitos ocidentais estranham o modo como é procedido o casamento muçulmano no Oriente Médio. De um lado a monogamia, de outro, a poligamia. Seus sistemas ordenados de

48 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69. 49 Ibidem, p. 33, 36, 69, 124. 50 Ibidem, p. 48. 51 Ibidem, p. 58. 52 Ibidem, p. 150, 33, 36. 53 Ibidem, p. 59-60. 54 Ibidem, p. 35. 55 Ibidem, p. 37.

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símbolos são diferentes e, assim, estranhos um ao outro.56 Nesse sentido, nas simples palavras de Roque de Barros Laraia, percebe-se que “a cultura condiciona a visão de mundo do homem”.57

Concordando com Gilbert Ryle, Geertz afirma que o pensamento humano é primeiramente um ato público e secundariamente um ato privado. É basicamente um ato público, pois os indivíduos manipulam sua experiência a partir dos símbolos e seus significados, os quais são públicos. É a partir deles que particularmente o indivíduo constrói seu pensamento e toma suas decisões.58 Conforme Geertz:

os símbolos [...] são construídos historicamente, mantidos socialmente e aplicados individualmente59 O sistema nervoso humano depende, inevitavelmente, da acessibilidade a estruturas simbólicas públicas para construir seus próprios padrões de atividade autônoma, contínua. Isso, por sua vez, significa que o pensamento humano é, basicamente, um ato aberto conduzido em termos de materiais objetivos da cultura comum, e só secundariamente um assunto privado.60

Portanto, o acesso às estruturas simbólicas permite ao homem guiar seu

pensamento, deliberar sobre as suas ações e determinar a sua própria vida. Logicamente, por uma cultura abranger uma multiplicidade de padrões culturais, os indivíduos não participam ou, então, não compreendem todos eles. Ainda assim, para que sua vida torne-se viável em sociedade, o homem precisa dominar o mínimo de símbolos significantes, pois são eles que vinculam os indivíduos, tornam possível a sua existência.61

Igualmente, nesse contexto, cumpre salientar que a cultura é dinâmica. Isto é, segundo Roque de Barros Laraia, as características culturais não são imutáveis, mas sofrem alterações dentro da própria cultura, tendo em vista, por exemplo, os acontecimentos históricos de seu povo e, também, sofrem alterações externas, pela interação com outros sistemas culturais.62 Diante de um mundo globalizado, torna-se fácil identificar essas modificações. O Brasil, por exemplo, através do contato com outras nações, importou palavras tais como “internet”, “hambúrguer”, “buffet”, entre outras. O indígena utiliza o celular e não deixa de ser índio. Nós aprendemos a falar francês e comemos sushi e, mesmo assim, não deixamos de ser brasileiros. Enfim, nenhuma cultura é estática, ela modifica-se ao longo do tempo pelo tráfico de símbolos significantes.

56 Evidentemente existem muitos casais poligâmicos no Ocidente, como ocorre em algumas regiões

nos Estados Unidos. No entanto, de uma forma geral, a prática mais comum é de que as uniões entre pessoas sejam monogâmicas. Destaca-se também que a religião exerce grande influência nesse aspecto.

57 Para outros exemplos sobre como a cultura condiciona a visão de mundo do homem, consultar: LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 67-74.

58 RYLE, Gilbert, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 121, 150-151.

59 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 151. 60 Ibidem, p. 61. 61 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

2008, p. 82. 62 Ibidem, p. 94-101.

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Diante do exposto, fica mais claro agora pensar que a diversidade cultural não é produto dos fatores genéticos ou, então, da localização em que os grupos humanos se desenvolveram. A diversidade cultural é resultado dos diferentes tipos de interação do homem com o mundo. As relações específicas de um povo, tendo em vista sua história, a maneira de como criaram seus símbolos, classificaram seus elementos e organizaram suas experiências resultaram em conjuntos de sistemas de símbolos significantes diferenciados.63 Nesse sentido, os homens foram ao mesmo tempo produtos e produtores de sua cultura e, portanto, essa mútua interação, através do processo de aprendizagem (por meio da linguagem), tornou viável a construção de diferentes culturas, as quais projetaram diferentes sentidos à vida dos seres humanos.

Em suma, na perspectiva de Clifford Geertz, observa-se que a cultura, como um conjunto ordenado de sistemas de símbolos significantes ou padrões culturais, construídos historicamente, é elemento essencial para o desenvolvimento do homem. Ela funciona como uma espécie de “gabarito” ou “programa”, no qual os indivíduos norteiam suas vidas, fazendo-os capazes de tomar suas próprias decisões. Dito de outro modo, o homem está atrelado a esta “teia”, pois são os símbolos e seus respectivos significados que imprimem sentido e razão à sua própria existência. É por esse motivo que Geertz salienta: “sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significativamente, sem cultura não haveria homens”.64 A cultura é fundamental para a formação do ser humano.

Assim, o que distingue o homem dos animais é a cultura, pois somente ele tem o poder de criar e assimilar os símbolos. Ademais, o que distingue os homens entre si não é a sua composição genética ou a geografia, mas sim a diferença da mútua interação entre os modelos “da” e “para” a realidade que cada povo percebeu e elaborou de maneira singular. Tal processo possibilitou, portanto, construções diversificadas de modelos simbólicos, refletindo nas diferentes visões de mundo que cada cultura possui e orienta seus indivíduos. 1.2 ETNOCENTRISMO

Quando uma cultura se defronta com outra é natural que deste encontro desperte um estranhamento. Isso porque, como já examinado, cada cultura imprime e entende de maneira peculiar os significados dos seus símbolos, os quais nem sempre coincidem com o conteúdo de outros universos simbólicos existentes. Não obstante, é possível notar que muitas vezes atribuímos os nossos próprios significados aos símbolos de outras culturas, ou seja, emitimos juízos valorativos a partir de nossa visão de mundo e nossa experiência em relação à diferentes culturas (o “outro”). Assim, tal estranhamento traduz nossa dificuldade em pensar o “outro” em seus próprios valores. Esse fenômeno é explicado por Everardo Rocha do seguinte modo:

63 DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco,

1987, p. 24. 64 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 36.

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Etnocentrismo é uma visão do mundo com a qual tomamos nosso próprio grupo como centro de tudo, e os demais grupos são pensados e sentidos pelos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc.65

Pode-se afirmar que a visão sobre o “outro” a partir das concepções do “eu”

esteve presente em toda a história da humanidade. Esse aspecto pode ser principalmente verificado na época dos descobrimentos, isto é, quando o desenvolvimento da navegação permitiu os primeiros contatos entre diferentes povos. Talvez, esses foram os momentos marcantes para se começar a pensar sobre a diferença. Referindo-se aos índios do Brasil, o escrivão Pero Vaz de Caminha descreve ao Rei de Portugal: “Assim, quando o batel chegou à foz do rio estavam ali dezoito ou vinte homens, pardos, todos nus, sem nenhuma roupa que lhes cobrisse suas vergonhas”.66 Essa, dentre outras passagens, revela a perplexidade dos portugueses com a imagem dos indígenas; em outras palavras: como eles não se vestem como nós? Por que não cobrem suas “vergonhas”?67

Pero Vaz de Caminha também escreve a Dom Manuel:

E, portanto, se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, fazerem-se cristãos e crerem na nossa santa fé, a qual praza Nosso Senhor que os traga porque, na verdade, esta gente é boa e de boa simplicidade e gravar-se-á neles, ligeiramente, qualquer cunho que lhes queiram dar.68 E, portanto, Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar na santa fé católica, deve intervir em sua salvação.69

Igualmente, os trechos citados manifestam a visão etnocêntrica do grupo do

“eu” em comparação ao grupo do “outro”. Os portugueses, ao terem a pretensão de incorporar a fé cristã à cultura indígena, a fim de salvar os “bons selvagens” e torná-los mais “humanos”, consideraram a sua religião como a única ideal. Nesse sentido, o etnocentrismo pode ser percebido quando o “eu” eleva a sua visão e as suas características como superiores, mais corretas e mais naturais. Já o “outro” é visto como uma expressão do absurdo, do frágil ou do ininteligível.70

O etnocentrismo é um fenômeno que está presente em todas as sociedades e que pode ser considerado natural, uma vez que ele decorre do choque entre as culturas, ou seja, da constatação das diferenças.71 Além disso, é um fato natural e/ou comum, pois a diferença do “outro” parece ameaçar a própria identidade cultural. Assim, o etnocentrismo até certa medida torna-se necessário, já que ele funciona como uma espécie de autodefesa ou força capaz de revigorar os elementos culturais

65 ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 7. 66 CAMINHA, Pero Vaz de. Carta ao rei Dom Manuel. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998, p. 9. 67 Eduardo Bueno traz à tona mais registros sobre as impressões entre os indígenas brasileiros e os

navegantes lusos: BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998, v. 1, p. 94-102.

68 CAMINHA, op. cit., p. 46. 69 Ibidem, p. 47. 70 ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9. 71 Ibidem, p. 8; LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 1989, p. 333.

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de uma coletividade, afirmando e assegurando a identidade de um povo. Diante disso, apresenta-se o seguinte questionamento: o que seria de uma cultura se os indivíduos achassem os seus elementos inferiores, abdicando de sua própria identidade para emergir em outra cultura? Por essa razão, pode-se dizer que o sentimento de superioridade que caracteriza a visão etnocêntrica, observando-se alguns limites, é um fator positivo para o desenvolvimento de uma cultura.72

O etnocentrismo pode assumir várias feições, desde formas sutis, como o estranhamento diante dos diferentes modos de viver e pensar, e também formas extremas, como a intolerância cultural. Por conseguinte, ele é até certa medida aceitável, pois sua força pode tornar-se perigosa, sendo utilizada pura e simplesmente para menosprezar e reprimir o “outro”, negando-lhe condições para apresentar a si mesmo.73 Em relação à dificuldade dos homens em encarar a diversidade das culturas, Lévi-Strauss comenta que:

A humanidade cessa nas fronteiras da tribo, do grupo lingüístico, às vezes mesmo da aldeia; a tal ponto, que um grande número de populações ditas primitivas se autodesignam com um nome que significa “os homens” (ou às vezes – digamo-lo com mais discrição? – os “bons”, os “excelentes”, os “completos”), implicando assim que as outras tribos, grupos, ou aldeias não participam das virtudes ou mesmo da natureza humana, mas são, quando muito, compostos de “maus”, de “malvados”, de “macacos da terra” ou de “ovos de piolho”. Chega-se freqüentemente a privar o estrangeiro deste último grau de realidade, fazendo dele um “fantasma” ou uma “aparição”.74

O próprio desenvolvimento da ciência antropológica é marcado por idéias de

caráter etnocêntrico. Os pensadores da corrente evolucionista75, fortemente influenciados pela obra “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, acreditavam que a diversidade cultural poderia ser explicada em virtude das diferentes posições que os povos ocupariam nos denominados graus de evolução da humanidade. Segundo eles, todas as culturas enfrentariam obrigatoriamente três estágios de desenvolvimento: selvageria, barbárie e civilização. Assim, o parâmetro de “civilizado” para o pesquisador era, por exemplo, a existência de elementos tecnológicos em uma cultura. Contudo, o que é tecnologia? O pesquisador baseava-se na sua noção do que é tecnológico, esquecendo-se que esta sequer existia em outras culturas. Conforme as críticas dirigidas a essa corrente, o erro do evolucionismo estaria em comparar e classificar as culturas de acordo com os critérios da sociedade do pesquisador, ignorando o contexto no qual os elementos da cultura analisada estariam inseridos. Porém, é de se ressaltar que o mérito do evolucionismo está em, ao menos, ter se proposto a refletir sobre o “outro”.76

72 SIMON, apud CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p.

242-243; ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9. 73 ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 14; CUCHE,

Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 48 e 243. 74 LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

1989, p. 334. 75 Edward Burnett Tylor, James Frazer e Lewis Morgan foram os autores expoentes do Evolucionismo

Cultural. 76 Sobre a corrente evolucionista: DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma Introdução à Antropologia

Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 89-101; ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 25-36.

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No plano legislativo brasileiro, igualmente, essas idéias podem ser observadas. O antigo Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais, criado em 1910 pelo Decreto n° 8.072, por exemplo, tinha como principal finalidade, apesar de aparentes benefícios, transformar o índio em um trabalhador rural, a fim de que ele pudesse “progredir” ao estágio “civilizado” da cultura dominante nacional. Em outras palavras, os indígenas eram considerados como um atraso ao desenvolvimento. O objetivo do projeto era o de integrar e assimilar de forma pacífica a cultura indígena pela cultura branca.77

Além disso, até pouco tempo o indígena não era considerado plenamente capaz para exercer pessoalmente todos os atos da vida civil. O artigo 6° do Código Civil de 1916 arrolava os indígenas como relativamente capazes, ao lado dos maiores de 16 e menores de 21 anos e dos pródigos. A imagem do índio “não civilizado” como um ser infantil, que necessita da tutela do Estado, pode ser notada no parágrafo único do referido artigo.78

É de se ressaltar também que, ainda hoje, o índio é visto como um personagem do folclore brasileiro que já deveria ter sumido da história do país.79 Essa posição etnocêntrica em relação às comunidades indígenas pode ser visualizada através do trecho do antropólogo Julio Cezar Melatti:

Os brancos que vivem próximos das aldeias indígenas dedicam-se à coleta de borracha ou de castanha, à criação de gado, à agricultura e outras atividades, segundo as diferentes regiões. Sejam grandes empresários, trabalhadores rurais, camponeses, ou garimpeiros, estão sempre a disputar o território dos índios. O látex, a castanha, o pasto natural, a terra boa para a lavoura, a caça acham-se muitas vezes dentro da área de ação de sociedades indígenas. [...] os vizinhos das terras dos índios afirmam que eles são preguiçosos, cruéis, sujos. Ao chamá-los de preguiçosos, associam a isto a idéia de que os índios não aproveitam bem suas terras, que estas produziriam muito mais se pertencessem aos brancos; tal acusação serve também para justificar os salários baixos que dão aos índios ou em outras regiões onde há excesso de mão-de-obra, para lhes

77 BECKHAUSEN, Marcelo. O reconhecimento constitucional da cultura indígena – os limites de uma

hermenêutica constitucional. 2001. Dissertação. (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2001. p. 21-23. Disponível em: <http://www.prpe.mpf.gov.br/internet/Revista-Eletronica/2007/Dissertacao-de-Mestrado-sobre-direitos-indigenas>. Acesso em: 15 jul. 2009.

78 O artigo 6° do Código Civil de 1916 dispõe: São in capazes, relativamente a certos atos (art. 147, I), ou à maneira de os exercer: I - os maiores de 16 (dezesseis) e os menores de 21 (vinte e um) anos (arts. 154 a 156); II - os pródigos; III - os silvícolas. Parágrafo único: Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do País. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L3071.htm>. Acesso em: 14 set. 2009; BECKHAUSEN, Marcelo. O reconhecimento constitucional da cultura indígena – os limites de uma hermenêutica constitucional. 2001. Dissertação. (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2001. p. 21-23. Disponível em: <http://www.prpe.mpf.gov.br/internet/Revista-Eletronica/2007/Dissertacao-de-Mestrado-sobre-direitos-indigenas>. Acesso em: 15 jul. 2009.

79 Em relação à visão sobre os indígenas, destacamos o interessante trecho de Eduardo Viveiros de Castro: “A impressão que tenho é que o ‘Brasil’ até bem pouco não queria saber de índio, e sempre morreu de medo de ser associado, ‘lá fora’, a esse personagem, que deveria ter sumido do mapa há muito tempo e virado uma pitoresca e inofensiva figura do folclore nacional. Mas os índios continuam aí, e vão continuar. E, como vemos, eles começam devagarzinho a ser admitidos no Brasil oficial-midiático, agora que foram legitimados na metrópole. A Amazônia precisou passar pela Europa para se tornar visível do litoral do Brasil. Antes assim”. (SZTUTMAN, Renato. Encontros Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 85).

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recusar trabalho. Ao chamá-los de cruéis, justificam a crueldade que usam para com eles. Não raro se ouve dizer que o índio deve ser tratado a bala.80

A presente passagem demonstra como o grupo do “eu” constrói uma imagem

distorcida do “outro”. Ao considerarmos como critério a nossa sociedade (desenvolvida, com elevado acúmulo de reservas), concebemos as comunidades indígenas como atrasadas, projetando, por exemplo, seu tipo de economia (de subsistência) como sinônimo de miséria e pobreza. Dito de outro modo, esquecemos o contexto no qual tais comunidades estão inseridas.81

Portanto, diante dos exemplos citados, percebe-se a necessidade de superação do pensamento etnocêntrico, caso não queiramos cair erros teóricos. Muito embora seja uma tarefa difícil, ao tentar analisar e compreender o “outro”, é importante exercitarmos o desprendimento das concepções da nossa própria cultura, atividade que é possível através da relativização. 1.3 RELATIVISMO CULTURAL

O relativismo cultural é um tema extremamente polêmico e, por essa razão, não é surpreendente que sobre ele suscitem inúmeras discussões.82

Conforme afirma Denys Cuche, o relativismo cultural é compreendido de três maneiras distintas: (a) como uma teoria, na qual é sustentado que cada cultura forma uma entidade separada das demais, cujas conseqüências mais radicais seriam a impossibilidade de comparação e de diálogo entre as outras culturas; (b) como um princípio ético, que exige uma absoluta neutralidade e respeito em relação à diversidade das culturas; (c) como um princípio metodológico, que privilegia uma abordagem compreensiva da diversidade, tendo-se em vista a análise completa do sistema simbólico das culturas.83

Embora existam essas três concepções sobre o relativismo cultural, para Denys Cuche, apenas a última é válida. Isso, porque a primeira noção não pode ser comprovada cientificamente, ou seja, não é razoável pensar que as diferentes culturas não podem ser comparadas entre si; e a segunda – da neutralidade ética –, porque serve, muitas vezes, como uma “máscara do desprezo”.84

Portanto, segundo o autor, o relativismo cultural deve ser considerado como um princípio metodológico. Nesse sentido:

Recorrer ao relativismo cultural é postular que todo o conjunto cultural tem uma tendência para a coerência e certa autonomia simbólica que lhe

80 MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2007, p. 255-256. Neste capítulo da

obra, Melatti expõe também outras visões de como os índios são julgados: do ponto de vista romântico, da mentalidade estatística, burocrática ou empresarial. (Ibidem, p. 256-261).

81 SAHLINS, apud ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 79-80.

82 Cumpre destacar que foi Franz Boas (1858-1942) o responsável pela concepção antropológica do relativismo cultural. Apesar de não ter cunhado a expressão, em seus textos é notável a idéia de que as culturas devem ser analisadas em suas particularidades. A primeira pessoa a utilizar a expressão “relativismo cultural” foi Melville Herskovits nos anos 1930. (CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 44 e 240).

83 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 239-241. 84 Ibidem, p. 239-240.

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confere seu caráter original singular; e que não se pode analisar um traço cultural independentemente do sistema cultural ao qual ele pertence e que lhe dá sentido. Isto quer dizer estudar todas as culturas, quaisquer que sejam a priori, sem compará-las e ou “medi-las” prematuramente em relação a outras culturas.85

Assim, o relativismo cultural não pode estar associado à trivial idéia de que

“tudo é variável” ou “tudo deve ser aceito”, mas a de que os fatores de uma cultura necessitam ser primeiramente compreendidos em seus próprios termos, ou seja, a partir da lógica do sistema simbólico dessa mesma cultura e, vale dizer, não a partir da lógica do sistema do observador.86

Na mesma linha, Everardo Rocha destaca que relativizar é “não transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na dimensão de riqueza por ser diferença”.87 Dessa forma, ao observar o “outro”, as concepções do grupo do “eu” não podem ser colocadas como o centro de tudo, ou seja, não podem ser absolutizadas ou universalizadas. Ao contrário, é importante que o “outro” seja analisado de acordo com os seus elementos, as suas características e os seus próprios problemas.88 Ademais, ressalta o autor que o relativismo é um processo complicado, uma vez que devemos perder de vista nossas “certezas” etnocêntricas. Todavia, a postura relativizadora permite a reflexão sobre o “outro” e, até mesmo, a transformação da própria sociedade do “eu”.89

Em relação à postura de reflexão sobre o “outro”, Roberto DaMatta refere que essa atividade consiste basicamente no movimento de “transformar o exótico no familiar e/ou transformar o familiar em exótico”.90 Eis o processo relativizador.

Na transformação do exótico em familiar, pode-se afirmar que o pesquisador busca entender o universo de significação do sistema do “outro”, familiarizando-se, ou seja, conhecendo melhor os aspectos culturais que outrora pareciam exóticos, incompreensíveis e obscuros. O movimento inverso, a transformação do familiar em exótico, refere-se ao fato de o pesquisador descobrir o “outro” na sua própria cultura. Em outras palavras, trata-se de identificar e estranhar os elementos familiares que estão “petrificados” em nós, ou seja, de realizar um movimento de reflexão sobre nós mesmos a partir dessa diferença.91 É justamente essa mútua relação entre o familiar e o exótico que proporciona a reflexão e, por conseguinte, o diálogo.92

85 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 241. 86 Sobre esse aspecto, Roque de Barros Laraia ressalta que cada cultura tem a sua lógica própria. A

transposição da lógica de um sistema cultural para outro caracteriza um ato etnocêntrico. Por essa razão, um traço cultural deve ser observado em conformidade com a coerência de seu próprio sistema cultural. (LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 87 e 91).

87 ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 20. 88 Ibidem, p. 46. 89 Ibidem, p. 54, 73 e 93. 90 DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma Introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco,

1987, p. 157. 91 Ibidem, p. 157-158. 92 Ibidem, p. 26-27, 158 e 162.

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Clifford Geertz, diante desse polêmico tema, assume a posição Anti Anti-Relativista.93 Esta expressão quer indicar que o autor não possui a pretensão de defender o relativismo cultural, mas a de atacar o medo infundado que é mantido em relação a ele. Assim, a dupla negativa [Anti Anti-] refere-se, estritamente, a sua oposição ao pensamento anti-relativista.94 Tal pensamento, para Geertz, além de atribuir conseqüências infundadas ao relativismo cultural, como, por exemplo, o niilismo (“ou tudo ou nada”) e o subjetivismo (“tudo depende da maneira como você vê as coisas”), dá uma solução errada a este problema antropológico, qual seja, a de que precisamos encontrar um aspecto (imutável) do ser humano que esteja acima da cultura, como a moral ou o conhecimento (a Razão), para, só assim, afastar os supostos fantasmas da abordagem relativista.95 Todavia, mesmo que Geertz rejeite a posição anti-relativista, ele não quer assumir uma posição relativista como uma teoria antropológica. Nesse sentido, ele destaca que a inclinação relativista dos antropológicos recebe impulsos não tanto das teorias construídas a partir dos dados antropológicos (costumes, vestígios arqueológicos, crânios, léxicos, etc.), mas, sim, a partir destes mesmos dados.96 Ou seja, o alerta dos relativistas sobre o perigo de nossas concepções teóricas e atitudes práticas estarem demasiadamente arraigadas em nossa cultura e, assim, impossibilitarem-nos de entrar em um diálogo autêntico com outras culturas, não precisa ser erigido ao status de uma teoria, porque a questão encontra-se em como viver com estes dados antropológicos, que colocam em questão, constantemente, a cultura na qual advém o antropólogo.97

Logo, retomando a idéia central do presente capítulo, pode-se afirmar que o relativismo cultural é um princípio metodológico ou, ainda, um exercício no qual se busca compreender como os povos deram e dão sentidos diversos aos modelos “da” e “para” a realidade. Relativizar significa abandonar a forma radical da visão etnocêntrica, na medida em que se busca interpretar a outra cultura a partir de seu próprio universo de significação.

2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA ORDE M JURÍDICO-

CONSTITUCIONAL BRASILEIRA

Antes mesmo de adentrarmos na discussão propriamente dita do Projeto de Lei n° 1.057/2007, objeto deste trabalho, teceremos alguns breves delineamentos sobre a importante função do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na ordem jurídico-constitucional brasileira, eis que ela está diretamente relacionada à justificação do referido projeto de lei. Cumpre ressaltar também que não nos deteremos a examinar a totalidade das normas que estão relacionadas ao problema proposto em nosso tema, pois isto envolveria uma análise teórico-jurídica muito mais ampla do que a prevista, como, por exemplo, a análise da relação entre os direitos previstos em convenções e declarações internacionais e a respectiva abertura material do catálogo dos direitos fundamentais da Constituição Federal, bem como as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente. Dessa forma, limitar-nos-

93 GEERTZ, Clifford. Anti Anti-Relativismo. In: _____. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2001, p. 47-67. 94 Ibidem, p. 47. 95 Ibidem, p. 61-63. 96 Ibidem, p. 49. 97 Ibidem, p. 49 e 65.

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emos em refletir sobre o Princípio Fundamental da Dignidade da Pessoa Humana, uma vez que ele irradia diretrizes a todo o ordenamento jurídico brasileiro. 2.1 A NOÇÃO DE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA ORDEM JURÍDICO-

CONSTITUCIONAL BRASILEIRA

Definir o que seja a dignidade da pessoa humana não é uma tarefa fácil, tendo em vista a complexidade desta idéia. Isto se deve ao fato de que a dignidade possui um conceito extremamente impreciso, genérico, vago e ambíguo.98 Contudo, há a necessidade de conceituá-la, da maneira mais explícita possível, mesmo que em linhas gerais.99

A dignidade da pessoa humana pode ser tida como a qualidade intrínseca de todo o ser humano, sendo o elemento que o identifica como tal,100 sem distinções, ou seja, independentemente de suas características.101 Como algo inerente a todo e qualquer ser humano, a dignidade é insubstituível, inalienável e irrenunciável,102 não podendo, dessa forma, ser ela substituída, transferida ou mesmo abdicada. Note-se que a principal tarefa, aqui, é a procura de critérios de delimitação do conceito de dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, ressalta Sarlet, a dignidade da pessoa humana não é criada, concedida ou retirada, mas sim reconhecida e protegida pelo Estado.103 Em outras palavras, a qualidade que uma pessoa seja digna, não depende do Direito, já que a dignidade preexiste a ele. Ao mesmo tempo, a dignidade da pessoa humana pode ser violada e, por essa razão, ao Estado incumbe protegê-la e promovê-la.104 Assim, a dignidade é tida como um princípio e não um direito em nosso ordenamento jurídico, já que não é concedida, mas reconhecida.105 Sarlet explicita que a dignidade da pessoa humana deve ser entendida como norma (princípio e regra) e valor fundamental na ordem jurídico-constitucional.106

98 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição

Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 44. 99 Não nos ateremos em expor aqui a perspectiva histórica da construção da noção de dignidade da

pessoa humana, sendo que, para isso, pode ser consultada a obra de Ingo Wolfgang Sarlet: (Ibidem, p. 31-44).

100 SACHS, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 45.

101 No contexto dos direitos humanos, Fábio Konder Comparato afirma que se trata de “algo que é inerente à própria condição humana, sem ligação com particularidades determinadas de indivíduos ou grupos”. (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 57).

102 DÜRIG; STERN, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 47.

103 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 47.

104 Ibidem, p. 77-78. 105 Ibidem, p. 78. 106 Sobre o status jurídico-normativo da dignidade da pessoa humana como norma (princípio e regra)

e valor fundamental, Ingo Sarlet remete o pensamento a Robert Alexy e, em virtude da complexidade deste raciocínio, não o desenvolveremos aqui. Para isso, conferir: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 74-84.

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Em função disso, afirma-se que a dignidade da pessoa humana é, ao mesmo tempo, limite (função defensiva) e tarefa (função prestacional) do Estado. Limite, pois, como uma qualidade intrínseca e indisponível de todo o ser humano, obsta que o poder estatal venha ofendê-la, atuando como uma defesa. E, tarefa, pois ao Estado cumpre respeitar, preservar e proteger a dignidade da pessoa humana e, em especial, prestar e proporcionar condições para a sua concretização.107 Ainda, aponta Sarlet, que a dignidade assume uma dimensão intersubjetiva,108 ou seja, não é tarefa apenas do Estado protegê-la, promovê-la e não a violar, mas também da comunidade e das próprias pessoas.109

Em síntese, para Sarlet, a dignidade da pessoa humana pode ser designada como:

A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida a cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.110

Ressalta-se que a dignidade da pessoa humana, embora seja uma qualidade

intrínseca ao ser humano, é concretizada através de um processo histórico-cultural.111 Retomando as idéias do capítulo anterior, a afirmação desta qualidade como um símbolo significante depende da interação dos modelos “da” e “para” a realidade, de tal modo que seu conceito está em constante desenvolvimento, sendo isto uma das razões pelas quais não possui um conteúdo fixo. É o contexto histórico e cultural de um povo que assegura e procura concretizar efetivamente este elemento intrínseco de cada ser humano.112 Porém, tal elemento deverá valer para todo e qualquer ser humano protegido pelo ordenamento.

Além disso, a dignidade da pessoa humana está intimamente ligada à liberdade. Isto diz respeito à possibilidade de o ser humano exercer sua autonomia e sua autodeterminação, isto é, de governar a si próprio, bem como definir sua

107 PODLECH; SACHS, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos

fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 52-53.

108 KANT, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 58.

109 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 125.

110 Ibidem, p. 67. 111 HÄBERLE, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais

na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 51. 112 De acordo com Sarlet, a dignidade é a qualidade intrínseca ao ser humano, que preexiste ao

Direito, mas que apesar disso “o grau de reconhecimento e proteção outorgado à dignidade da pessoa por cada ordem jurídico-constitucional e pelo Direito Internacional, certamente irá depender de sua efetiva realização e promoção” (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 76). Sobre este ponto convém lembrar a notável obra de Fábio Konder Comparato, que demonstra, através de documentos normativos, a construção histórica dos direitos do homem (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005).

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conduta e escolher as circunstâncias em relação à sua vida.113 Sobre este aspecto, José Joaquim Gomes Canotilho refere-se à idéia de o indivíduo ser “conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projeto espiritual”.114 Oportuno frisar que a dignidade da pessoa humana deve ser reconhecida a todo o ser humano, mesmo que a pessoa não possa exercer sua liberdade de maneira autônoma, como é o caso, por exemplo, dos absolutamente incapazes (portadores de sérias doenças físicas e/ou mentais, nascituro). Por conseguinte, fala-se que a dignidade humana está relacionada ao potencial de liberdade.115

Observa-se, assim, que a dignidade da pessoa humana será efetiva se forem garantidos – não somente eles, mas principalmente – o direito fundamental à vida e à liberdade. Nas palavras de Sarlet, eles constituem as “exigências da dignidade da pessoa humana” (bem como os outros direitos e garantias fundamentais, na medida em que são concretizações daquela).116 Nesse sentido, segundo o autor:

Onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças.117

Portanto, embora tenhamos traçado em linhas gerais o conceito jurídico de

dignidade da pessoa humana, percebe-se que o mesmo possui, segundo afirma Sarlet, um caráter multidimensional,118 visto que a dignidade da pessoa humana é qualidade intrínseca de todo e qualquer ser humano, com uma dupla função (limite e tarefa), concretizada em um plano histórico-cultural, e que, como veremos no próximo tópico, é o princípio embasador do ordenamento jurídico brasileiro.

2.2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO E FIM DO

ESTADO E A SUA RELAÇÃO COM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 consagrou o valor da dignidade humana, ao reconhecer em seu preâmbulo e em outros artigos que o homem possui o direito de ser reconhecido como pessoa perante a lei. Este documento exerceu grande influência e, a partir disso, a idéia sobre o valor supremo da dignidade da pessoa humana passou a ser integrada expressamente em diversas cartas constitucionais.119 Após um longo processo histórico, o homem figura o elemento primordial do Estado, isto é, que legitima e justifica o poder estatal.

113 BLECKMANN, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais

na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 50. 114 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e Teoria da constituição. 4. ed. Coimbra:

Almedina, 2000, p. 225. 115 DÜRIG, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na

Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 50-51. 116 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição

Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 51. 117 Ibidem, p. 65. 118 Ibidem, p. 66. 119 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo:

Saraiva, 2005, p. 222-237.

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Conforme assinala Bleckmann, “é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal”.120 Para Judith Martins-Costa “a pessoa, considerada em si e em (por) sua humanidade, constitui o ‘valor fonte’ que anima e justifica a própria existência de um ordenamento jurídico”.121 E, segundo Canotilho:

A dignidade humana como base da República significa o reconhecimento do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Neste sentido, a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios.122

Nessa mesma linha, tendo em vista que os direitos protegem a dignidade do

homem, Robert Alexy destaca que:

A observação aos direitos do homem é uma condição necessária para a legitimidade do direito positivo. Nisto, que o direito positivo deve respeitar, proteger e fomentar os direitos do homem para ser legítimo, portanto, ser suficiente à sua pretensão à exatidão, manifesta-se a prioridade dos direitos do homem. Direitos do homem estão, com isso, em uma relação necessária com o direito positivo, que está caracterizada pela prioridade dos direitos do homem.123

Em suma, o homem pelo simples fato de ser pessoa e, portanto, dotado de

dignidade, não pode ser considerado como um objeto, ou seja, não pode ser instrumentalizado, servindo como meio do poder estatal. Ao contrário, é a dignidade da pessoa humana que possibilita e legitima o poder do Estado, uma vez que este está a serviço do homem, pois, como no pensamento de Kant, “o homem é um fim em si mesmo”.

Em nosso ordenamento jurídico ela está prevista como princípio fundamental no artigo 1°, inciso III da Constituição Federal. S egundo Sarlet, os princípios fundamentais possuem “a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional”.124 Desse modo, a dignidade humana constitui o fundamento e o fim de nosso Estado Social e Democrático de Direito,125 ideal estabelecido no caput do referido artigo.

Nesse contexto, os direitos e garantias fundamentais são concretizações ou desdobramentos – em maior ou menor grau – do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, uma vez que se referem à proteção e desenvolvimento das pessoas.126 Assim, a dignidade de cada pessoa humana só pode ser exercida se lhe forem 120 BLECKMANN, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais

na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 73-74. 121 MARTINS-COSTA, Judith. As interfaces entre o Direito e a Bioética. In: CLOTET, Joaquim (Org.).

Bioética. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 75. 122 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e Teoria da constituição. 4. ed. Coimbra:

Almedina, 2000, p. 225. 123 ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no Estado Constitucional Democrático: para a relação entre

direitos do homem, direitos fundamentais, democracia e jurisdição constitucional. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 16, p. 208-209, 1999.

124 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 69.

125 Em relação ao conceito de Estado Social e Democrático de Direito, conferir: SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 112-122.

126 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Portugal: Coimbra, 2000, v. 4, p. 181.

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concedidos os direitos e garantias fundamentais, pois, por exemplo, como referido anteriormente, o direito à liberdade e à integridade física e moral (entre outros) constituem condições para uma vida digna. Por isso, os direitos fundamentais podem estar ligados direta ou indiretamente à dignidade da pessoa humana, lembrando que essa vinculação será mais ou menos intensa de acordo com a importância que o contexto histórico-cultural de determinada sociedade imprimir aos mesmos.127 Nessa linha de raciocínio, Sarlet, com base no pensamento de Geddert-Steinacher, destaca que a violação de um direito fundamental implica também em uma violação à dignidade da pessoa humana, tendo em vista o vínculo sui generis estabelecido entre eles e dada a função da dignidade da pessoa humana como “elemento e medida” dos direitos fundamentais.128 2.2.1 A função integradora e hermenêutica do Princí pio da Dignidade da

Pessoa Humana

Com efeito, sendo a dignidade da pessoa humana o fundamento da existência e o fim do próprio Estado, afirma-se que ela constitui um princípio de maior hierarquia axiológico-valorativa, sendo que a interpretação do ordenamento jurídico deve ser realizada com vistas a ela. Sobre este aspecto, cumpre referir que, apesar de o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana assumir uma posição privilegiada em nosso ordenamento jurídico, Sarlet destaca, com base em Robert Alexy, que não existem princípios absolutos. Assim, não seria possível conceber sua prevalência de forma absoluta em todos os casos concretos. Havendo colisões, no momento da ponderação, a dignidade da pessoa humana poderá assumir diversos graus de realizações.129

Isso significa dizer que, mesmo não sendo princípio absoluto (pois nenhum o é), a dignidade da pessoa humana assume relevante função no ordenamento jurídico, pelo o que já exposto, servindo como elemento de conexão dos direitos e garantias fundamentais, bem como de todo o ordenamento jurídico brasileiro. Em outras palavras, o referido princípio tem uma função de integrar o ordenamento jurídico, de tal forma que o mesmo revele-se coerente internamente como um todo. Ademais, ele revela-se como parâmetro para o processo de interpretação e aplicação das normas previstas em nosso sistema.130 Nesse sentido:

A dignidade da pessoa humana constitui valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem constitucional, razão pela qual se justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-valorativa.131 Na medida em que serve de parâmetro para a aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e do restante das normas

127 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição

Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 105. 128 GEDDERT-STEINACHER, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos

fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 113. 129 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição

Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 82-83 e 89. Em relação a este ponto, conferir: COELHO, Inocêncio Mártires. Princípio da dignidade da pessoa humana. In: MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires (Org.). Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 172-177.

130 NIPPERDEY, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 88.

131 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 119.

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constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico, imprimindo-lhe, além disso, sua coerência interna.132

Tais afirmações podem ser constatadas em face dos limites que o Princípio

da Dignidade da Pessoa Humana pode estabelecer em relação às restrições realizadas aos direitos fundamentais.133 Ressalta-se também que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana pode estabelecer limites aos próprios direitos fundamentais134 ou a outras normas previstas no ordenamento jurídico, levando-se em consideração a ocorrência de eventuais colisões.135

Portanto, verifica-se que pelo conteúdo e significado do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o mesmo “atua simultaneamente como limite e limite dos limites”.136

Poder-se-ia, inclusive, dizer que – e aqui novamente retomamos os conceitos vistos no capítulo anterior –, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é um símbolo de tamanha importância que, em virtude de seu significado e conteúdo, coordena a interpretação de todos os demais símbolos normativos do ordenamento jurídico brasileiro, assegurando uma coerência entre eles. Por essa razão, ela não está unicamente prevista no artigo 1°, inciso III d a Constituição Federal, mas também expressa ou implicitamente prevista em outras normas – principalmente nos direitos e garantias fundamentais.

Diante do exposto neste capítulo, questiona-se, agora, sobre a possível relativização do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, isto é, se ele pode ser aplicado no contexto cultural de algumas comunidades indígenas brasileiras, as quais possuem diferentes concepções sobre a vida, a morte e o ser humano. Sobre esta intrigante questão da diversidade cultural e da dignidade da pessoa humana Sarlet expõe que:

Com efeito, é de perguntar-se até que ponto a dignidade não está acima das especificidades culturais, que, muitas vezes, justificam atos que, para a maior parte da humanidade são considerados atentatórios à dignidade da pessoa humana, mas que, em certos quadrantes, são tidos por legítimos, encontrando-se profundamente enraizados na prática social e jurídica de determinadas comunidades.137

132 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição

Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 88. 133 Ibidem, p. 129. 134 Em relação à limitação à restrição dos direitos e à limitação dos próprios direitos, afirma Sarlet que

“o princípio da dignidade da pessoa humana serve como importante elemento de proteção aos direitos contra medidas restritivas. [...] Todavia, cumpre relembrar que o princípio da dignidade da pessoa humana também serve como justificativa para a imposição de restrições a direitos fundamentais, acabando, neste sentido, por atuar como elemento limitador destes”. (Ibidem, p. 135).

135 O assunto sobre a colisão entre princípios e direitos e a forma pela qual o conflito é resolvido (ponderação/proporcionalidade/proibição de retrocesso) no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro não serão desenvolvidos no presente trabalho, em virtude da complexidade da questão.

136 SARLET, op. cit., p. 135. 137 A respeito do reconhecimento e proteção da dignidade da pessoa humana numa ambivalência

multicultural, o autor deixa o estudo em aberto. (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 62).

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Dessa forma, passaremos a expor o conteúdo do Projeto de Lei n° 1.057/2007 e as suas justificativas para, assim, podermos refletir sobre a questão da diversidade cultural relacionada à temática do Direito e da Antropologia. 3 APROXIMAÇÕES ENTRE DIREITO E ANTROPOLOGIA: UMA RE FLEXÃO A

PARTIR DO PROJETO DE LEI N° 1.057/2007

Até o momento, desenvolvemos as idéias concernentes aos dois panos de fundo de nosso trabalho: a noção de cultura como um conjunto de sistemas de símbolos significantes, assim como os elementos que estão ligados a ela, e a importante função do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana para o ordenamento jurídico brasileiro. Este raciocínio foi necessário para agora compreendermos o Projeto de Lei n° 1.057/2007 e as questões que envolvem o debate entre Direito e Antropologia. 3.1 O PROJETO DE LEI N° 1.057/2007

Sabe-se que algumas comunidades indígenas brasileiras sacrificam suas crianças em virtude, por exemplo, de serem portadoras de deficiência física e/ou mental, serem gêmeos, ou, ainda, serem filhos de mãe solteira ou viúva. Esses motivos, bem como as circunstâncias da prática e a escolha da decisão de eliminar a criança, seja pelo grupo seja pela própria mãe, são variáveis, dependendo da organização (do sistema simbólico) de cada comunidade.138

Foi diante desses fatos e de outros exemplos semelhantes relacionados ao tratamento das crianças que o Projeto de Lei n° 1.0 57 foi criado. Então, em maio do ano de 2007, ele foi apresentado pelo Deputado Henrique Afonso139 e atualmente está tramitando na Câmara Federal, sujeito à aprovação.140

O Projeto ficou conhecido como “Lei Muwaji”, em homenagem à mãe da etnia

Suruwahá (Amazônia), que impediu que sua filha Iganani fosse sacrificada por ter nascido com paralisia cerebral. Além disso, para que o Projeto de Lei ganhasse publicidade, o deputado federal Henrique Afonso utilizou-se do filme “Hakani”, reprodução da história de uma menina da etnia Suruwahá que teria sido salva do sacrifício pelo seu irmão.141

138 Ressalta-se que o presente trabalho não possui o intuito de descrever, analisar ou especificar os

motivos das práticas, bem como a sua ocorrência, estatísticas, etc., pois, para isso, demandaria uma pesquisa entre as comunidades indígenas. Além do que, esses dados não são facilmente acessíveis em trabalhos ou sites do Governo. Por essa razão, nos ateremos em examinar o Projeto de Lei n° 1.057 de 2007 e as suas propostas . Para alguns exemplos em relação a esses acontecimentos nas comunidades indígenas, consultar: HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 16-68.

139 Henrique Afonso é componente do Partido Trabalhista do Acre. Sua área de atuação política pode ser conferida no Portal: <http://henriqueafonso.com/index.php>. Acesso em: 04 set. 2009.

140 Para acompanhar a tramitação do Projeto de Lei n° 1.057 de 2007, consultar: <http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=351362>. Acesso em: 02 set. 2009.

141 No Brasil, há principalmente duas organizações não-governamentais que atuam contra a prática, como elas mesmas denominam, do “infanticídio” indígena: ATINI <http://www.atini.org/>, <http://www.hakani.org/pt/default.asp> e JOCUM <http://www.jocum.org.br/>. Tais organizações

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Pelo o que se depreende da leitura do Projeto de Lei n° 1.057/2007, seu alcance não se limita somente em inibir o que se convencionou a ser popularmente chamado de “infanticídio” indígena, mas visa também inibir, entre outras práticas, o abuso sexual e os maus-tratos a crianças. Sobre este aspecto, cumpre primeiramente destacar que, muito embora o termo “infanticídio” seja utilizado para impressionar e, ao mesmo tempo, abreviar a descrição de tal prática, como pode ser observado no próprio portal da internet do deputado Henrique Afonso, essa categoria não está incorporada ao texto legal. O artigo 2°, caput do referido Projeto de Lei, emprega a expressão “práticas tradicionais nocivas”, desvinculando-as, portanto, da conceituação do crime de infanticídio, previsto no Código Penal, posto que elas devem ser lidas de acordo com o artigo 231 da Constituição Federal. Assim, é oportuno ressaltar que o uso do termo “infanticídio” é inadequado ao se referir às práticas tradicionais indígenas, uma vez que ele se apóia na legislação penal brasileira, cujo símbolo significante da ação é diverso. Segundo o artigo 123 do Código Penal, o crime de infanticídio significa “matar, sob o estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”.142 O estado puerperal, conforme Guilherme Nucci é:

O estado que envolve a parturiente durante a expulsão da criança do ventre materno. Há profundas alterações psíquicas e físicas, que chegam a transtornar a mãe, deixando-a sem plenas condições de entender o que está fazendo. [...] O puerpério é o período que se estende do início do parto até a volta da mulher às condições pré-gravidez.143

Portanto, na prática indígena não se trata, de modo algum, do ato de matar a

criança sob o estado puerperal, senão por outros fatores que possuem origens culturais, constituídos por uma significação simbólica diferente.

Do mesmo modo, como tais práticas não são vistas como criminosas, os autores diretos não são criminalizados. Ressalta-se, nesse sentido, que, ao contrário da posição de Rita Segato,144 o Projeto de Lei n° 1.057/2007 procura inibir tais “práticas tradicionais nocivas”, uma vez que elas contrariam os direitos fundamentais, previstos no ordenamento jurídico brasileiro, e os direitos humanos, reconhecidos internacionalmente.

A polêmica sobre a criminalização das práticas tradicionais é esclarecida no site do deputado federal Henrique Afonso: “O Projeto de Lei não pretende criminalizar o índio ou a mulher indígena e sim qualquer pessoa ou autoridade que tenha ou tinha conhecimento que uma criança corre ou corria o risco de morte e

exerceram grande influência no Projeto de Lei. O filme “Hakani” foi produzido por David L. Cunningham, filho do fundador da organização JOCUM, e desde a sua veiculação tem recebido inúmeras críticas. O filme também foi transmitido na Câmara dos Deputados em 27/11/2008. <http://henriqueafonso.com/infanti.php>. Acesso em: 04 set. 2009.

142 BRASIL. Código Penal. 10. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 277. 143 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 7. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 565. 144 Em seu texto sobre o assunto, Rita Laura Segato diz o seguinte: “No me dedicaré aquí a hacer

una crítica del Proyecto de Ley en términos jurídicos. Baste decir que he repetidamente indicado que esa ley ‘ultra-criminaliza’ el infanticidio ind ígena porque, por un lado, repite la sanción que pesan sobre acciones ya debidamente encuadradas en la Constitución y el Código Penal y, por el otro, incluye en la acusación no só lo a los autores directos del acto sino a todos sus testigos reales o potenciales , es decir, toda la aldea en que el acto ocurre, y otros testigos como, por ejemplo, el representante de la FUNAI, el antropólogo, o agentes de salud, entre otros posibles visitantes.” [grifos nossos]. [Material por e-mail pessoal], p. 6.

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nada fez ou faz para impedir o seu sacrifício”.145 Portanto, pode-se dizer que o Projeto de Lei n° 1.057/2007 é, de certo modo, rela tivizador, pois compreende que tais práticas são tradicionais (e não crimes), sendo elas analisadas de acordo com o artigo 231 da Constituição Federal. Além disso, propõe que todas as medidas previstas no Projeto de Lei para o combate das práticas tradicionais nocivas serão realizadas através “da educação e do diálogo”, consoante o artigo 7°.

A única pena estabelecida encontra-se no artigo 4° do Projeto de Lei e refere-se à omissão de socorro, a qual remete ao artigo 135 do Código Penal. Neste caso, em conformidade com os artigos citados e o artigo 3° do Projeto, qualquer pessoa (indígenas, antropólogos, agentes dos órgãos do Estado, visitantes, etc.) que souber de alguma prática tradicional nociva deverá comunicá-la a uma autoridade competente (FUNAI, FUNASA, Conselho Tutelar, autoridade judiciária ou policial), sob pena de ser responsabilizada. Caso as autoridades competentes não tomarem as devidas medidas em relação aos casos também incorrerão no crime de omissão de socorro, de acordo com o artigo 5° do mesmo Proj eto de Lei.146

O texto do Projeto de Lei n° 1.057/2007 dispõe sobr e “o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais”. Por “práticas tradicionais nocivas” entende-se aquelas atentatórias à vida e à integridade físico-psíquica (das crianças). Nesse sentido, o artigo 2° visa coibir não apenas o “infanticídio”, mas elenca as práticas tradicionais nocivas em um rol exemplificativo, de acordo com a seguinte classificação: (a) homicídio de recém nascidos (incisos I a IX); (b) abuso sexual (inciso X); (c) maus-tratos (inciso XI); (d) regra em aberto (outras práticas tradicionais que, culposa ou dolosamente, ofendam a vida ou a integridade físico-psíquica da criança). Observa-se, portanto, que o referido Projeto não abrange apenas o denominado homicídio de recém-nascidos, mas também o abuso sexual e os maus-tratos, assim como práticas atentatórias, estendendo-se às crianças indígenas e às pertencentes a sociedades ditas não tradicionais.147

Em casos extremos, quando não houver um acordo entre as autoridades competentes e as partes envolvidas na prática, dispõe o artigo 6° que se deverá afastar os genitores do convívio da criança ou, então, retirá-la provisoriamente, mantendo-a em abrigos autorizados. O parágrafo único do mesmo artigo permite, ainda, que, no caso de ser frustrada a medida de afastamento, deve a criança ser encaminhada à adoção, tendo em vista a necessidade de preservação do direito fundamental à vida e da integridade físico-psíquica.

145 Disponível em: <http://henriqueafonso.com/infanti.php>. Acesso em: 05 set. 2009. 146 Poder-se-ia talvez aqui realizar um paralelo com o artigo 58 da Lei n° 6.001/1973 (Estatuto do Índio) , o

qual não prevê punição ao indígena que adquire bebidas alcoólicas, mas a quem vender a ele. O referido artigo preceitua: “Art. 58. Constituem crimes contra os índios e a cultura indígena: [...] III – propiciar, por qualquer meio, a aquisição, o uso e a disseminação de bebidas alcoólicas, nos grupos tribais ou entre índios não integrados. Pena – detenção de seis meses a dois anos.” Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L6001.htm>. Acesso em: 01 nov. 2009. Sobre a significação do uso de bebidas alcoólicas entre comunidades indígenas, conferir o trabalho de: CAMPOS, Jankiel de. Envio do artigo “O uso abusivo de bebidas alcoólicas entre os Macuxi e Wapishana de Roraima” (Jankiel de Campos) [Material por email pessoal]. Mensagem recebida por [email protected] em 09 maio 2009.

147 Caberia, no entanto, perguntar aqui se o conceito de sociedades não-tradicionais englobaria as sociedades não-indígenas, já que o Projeto de Lei n° 1.057/2007 não o especifica.

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Dentre as principais justificativas teóricas do Projeto de Lei n° 1.057/2007 está a proteção à vida, eis que é o “direito por excelência”, bem maior a ser tutelado pelo ordenamento jurídico brasileiro. Em outras palavras, independentemente do sistema simbólico que o indivíduo está inserido, deve prevalecer o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o direito fundamental à vida e à saúde em oposição, no caso, ao direito de exercer a prática tradicional que seria válida em virtude do direito ao reconhecimento da diversidade cultural. Por essa razão, estabelece o referido Projeto de Lei – e este é o ponto cerne da reflexão – que o artigo 231 da Constituição Federal deve ser interpretado em conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro, e não de maneira isolada. Nesse sentido, prevê o artigo 1°:

Reafirma-se o respeito e o fomento a práticas tradicionais indígenas e de outras sociedades ditas não tradicionais, sempre que as mesmas estejam em conformidade com os direitos humanos fundamentais, estabelecidos na Constituição Federal e internacionalmente reconhecidos.

Por conseguinte, são reconhecidas as práticas tradicionais englobadas pelo

artigo 231 da Constituição Federal, desde que as mesmas não infrinjam o ordenamento jurídico brasileiro. Salienta o texto do Projeto que as tradições são reconhecidas e devem ser respeitadas, no entanto, não são legitimadas quando violam os direitos humanos e fundamentais, conforme também preceitua o artigo 8°, n. 2, da Convenção n° 169 da OIT. Verifica-se, port anto, que há uma limitação ao direito constitucional de reconhecimento à diversidade cultural. Assim, o objetivo do Projeto de Lei é resguardar o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, justificando-se em uma interpretação dos direitos e princípios constitucionais e das demais diretrizes de proteção à criança. É por isso, então, que foi desenvolvido o Capítulo anterior, a fim de expormos tal entendimento.

Logo, cabe agora analisarmos as propostas do Projeto de Lei n° 1.057/2007 e

as críticas dirigidas a ele. 3.2 O OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE O PROJETO DE LEI N° 1.057/2007

Como vimos, o Projeto de Lei n° 1.057/2007 refere-s e à nocividade de algumas práticas tradicionais indígenas, com base no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Porém, o que significam essas práticas para as próprias comunidades indígenas? A resposta a esta pergunta só pode ser realizada a partir de um trabalho antropológico e, como destacado anteriormente, não temos o intuito de trazer descrições sobre elas, até porque esta tarefa demandaria um estudo mais aprofundado, o qual não nos cabe aqui. Assim, para compreendermos melhor a necessária aproximação entre Direito e Antropologia, exporemos a pesquisa de Marianna Assunção Figueiredo Holanda, que evidencia a significação dos sistemas simbólicos de algumas comunidades indígenas em relação a determinados interditos da vida.

Afirma a autora que a vida entre os ameríndios – de uma forma geral – é construída. É construída, pois é através do vínculo com a comunidade que a criança torna-se aos poucos pessoa: pela aquisição de alimentos, pelo cuidado, pela

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socialização, resumidamente, pelo saber “ser social”.148 Nesse sentido, a construção da pessoalidade é “um processo contínuo de aprender a ser humano”.149 Observa-se, assim, a importância do social e do coletivo para a concepção de vida ameríndia. De acordo com Marianna Holanda:

[...] o projeto indígena de criação de vidas só se efetiva pela elaboração do social como um espaço de trocas, reciprocidades e interações. Fora disso não há social, não há possibilidade de vida humana sem vínculos afetivos, consangüíneos e/ou afins. Não há possibilidade de vidas nuas.150

Segundo Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro, o corpo desempenha

importante função para refletir a concepção de ser humano e para desenvolver a organização das sociedades indígenas brasileiras.151 A idéia de indivíduo recai sobre o aspecto social e coletivo, tendo em vista que a noção de pessoa está atrelada à corporalidade, relação baseada nas trocas inter-pessoais de fluídos (sêmen, sangue, leite), de alimentos e na convivência social.152 Nesse sentido, a pessoa é construída pela sociedade, ou seja, pelo processo de socialização. Portanto, nesses sistemas simbólicos, o nascimento implica em diversas transformações, afetando a vida prática dessas sociedades e as relações de parentesco e de troca.153

Dessa forma, por exemplo, os povos Araweté e Yanomami dão o nome à criança apenas quando ela está envolvida nos laços sociais, ou seja, quando ela consegue interagir com o meio social (falar, andar, alimentar-se, etc., de maneira autônoma).154

Ocorre que alguns recém-nascidos não possuem condições desse “saber ser”, pois estão impedidos, de alguma forma, de viver no grupo. Por essa razão, muitos deles não são considerados seres, são considerados não-humanos.155 Em outras palavras, os “entes”, nesses casos, não existem.156 Dentre as razões de as crianças não serem consideradas humanas, apresentam-se alguns fatos, como por exemplo, a criança não ter pai,157 o número ideal de filhos e o planejamento familiar,

148 Segundo Marianna Holanda, “uma criança que ‘nasce’ não é imediatamente feita humana e,

portanto, a procriação não é garantia de parentesco. Isso porque, para eles, a consubstancialidade que nos faz consangüíneos e parentes não é fato, não é um dom, mas uma condição a ser continuamente produzida pelas trocas e relações”. (HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 16).

149 Ibidem, p. 17. 150 Ibidem, p. 135. 151 SEEGER, Anthony; DAMATTA, Roberto; CASTRO, Eduardo Viveiros de. A construção da pessoa

nas sociedades indígenas brasileiras. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de Oliveira (Org.). Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1987, p. 13.

152 Ibidem, p. 20-21. 153 HOLANDA, op. cit., p. 37-38. 154 Ibidem, p. 27. 155 Ibidem, p. 17. 156 Marianna Holanda destaca que alguns neonatos, por carecerem do “saber ser”, não são inseridos

nas relações sociais. Tal motivo justifica a sua denominação a eles como “entes”, ao invés de “seres”. (Ibidem, p. 17).

157 IRELAND, apud HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 25; REVISTA TERRA apud HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos

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a gemeleidade, a deficiência física e/ou mental, a preferência pelo sexo da criança, a criança ser concebida fora do casamento, os filhos de viúva,158 entre outros.

Conforme salienta Marianna Holanda, “são as relações que vão dizer quem está apto ou não a transformar-se, a humanizar-se ou a não fazer sentido socialmente”.159 De acordo com José Otávio Catafesto de Souza, para os indígenas, a questão maior é a do sofrimento. Para eles, uma vida sofrida é uma vida indigna, razão pela qual a morte é vista como um mal menor. Assim também destaca Rita Segato, com base em alguns estudos, que em determinadas circunstâncias avalia-se se a vida do neonato vale a pena ser vivida ou não.160

Logo, consoante Marianna Holanda, se a criança, devido a alguma das circunstâncias mencionadas, é considerada incapaz de se tornar humana, então, não poderá continuar vivendo. Nesse sentido, argumenta-se que não há morte e, portanto, não há crime, pois, para isso, a criança deveria ser considerada pessoa e, assim, pertencer à sociedade – o que não ocorre.161 Afirma Marianna Holanda:

Isso indica que, no intuito de pensar a negação do status de pessoa a alguns entes não estamos falando em morte, nem de crime, nem de movimento. O despertencimento do universo social é um processo tão gradual como a aquisição de humanidade; esta é, inclusive, a função dos ritos funerários, retirar o consubstancial. Ritos que não são efetuados para neonatos que nunca vieram a pertencer. Nenhuma marca social é registrada nestes entes. [...] Contudo, é justamente por estarem fora do sistema de relações que compõe o mundo, inclusive do sistema vida e morte, humanos e não-humanos que, paradoxalmente, podem ser constitutivos de toda esta sócio-lógica ameríndia: eles falam de tudo que se ausentam.162

Ao contrário, ressalta a autora, se a criança já está socializada, se já pertence

ao grupo, a retirada de sua vida significa a morte e, neste caso, são procedidos os rituais funerários163 e a respectiva punição.

Portanto, podemos perceber que a cultura indígena possui um sistema de símbolos significantes muito diferente do nosso. E é a partir desta tese que o olhar antropológico irá criticar o Projeto de Lei n° 1.05 7/2007. Agora, com o intuito de refletir melhor sobre o assunto, ordenamos as principais considerações de Rita Segato e Marianna Holanda,164 restringindo-nos a explicar somente as críticas concernentes ao

direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 42.

158 HOLANDA, op. cit., respectivamente p. 48-49 e 64; 50-55 e 62-63; 59-60; 62; 61; 61. 159 Ibidem, p. 44. 160 SEGATO, Rita Laura. "Que cada pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo

Jurídico en diiálogo didáctico con legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena. ORTIZ, Héctor; SIERRA, María Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de globalización. México: CIESAS e Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008, [Material por e-mail pessoal], p. 9.

161 HOLANDA, op. cit., p. 44. 162 HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a

criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 44.

163 Ibidem, p. 60. 164 Rita Laura Segato é antropóloga e professora da UnB e, em agosto de 2007, foi convocada pela

Comissão de Direitos Humanos e Minorias do Congresso Nacional para participar da Audiência

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direito, tais como: (a) a necessária superação do pensamento monista do Estado; (b) o ideal universalista dos Direitos Humanos; (c) as práticas, as quais o Projeto de Lei n° 1.057/2007 denomina como “nocivas”, não possuem o mesmo significado para as comunidades indígenas; (d) o Projeto de Lei “ultra-criminaliza” as práticas, pois legisla o que já foi legislado; (e) o caráter intervencionista e colonizador do Projeto de Lei; (f) as comunidades indígenas devem participar efetivamente na deliberação sobre uma lei, a qual elas estão englobadas; (g) o papel do Estado e a necessidade de um projeto de pluralismo jurídico no Brasil.

Segundo Holanda, o direito ao reconhecimento à diversidade cultural só poderá ser efetivamente garantido se for superado o pensamento monista do Estado, ou seja, de que ele não é o único produtor de juridicidade. Tendo em vista as diferenças culturais, é de notar-se que não existe apenas uma única concepção do que é a vida, morte, ética e ser humano.165 Ressalta a autora que o problema está na interpretação desses direitos tidos como universais, isto porque “a teia moral que balizou e sustenta os Direitos Humanos foi se constituindo também pela imposição de inumanidade às alteridades, sempre portadora de falhas morais a serem corrigidas”.166 Assim, a imposição de valores universais tem por conseqüência a minimização das diferenças. Esse ideal de igualdade sustentado pelo Estado e dissociado da compreensão da alteridade reflete um racismo institucional,167 que abafa a voz do “outro” e exige ao mesmo uma adaptação à forma do Estado, que nem sempre corresponde a sua própria forma de organização.168 Em outras palavras, evidencia-se a postura etnocêntrica do Estado em relação às peculiaridades culturais dessas comunidades indígenas.

Nesse sentido, algumas comunidades indígenas revelam possuir outra significação de vida e de morte, razão pela qual suas práticas não deveriam ser consideradas pelo Projeto de Lei n° 1.057/2007 como “nocivas”. Como já referido, pode-se dizer que a elaboração da vida para algumas comunidades indígenas se dá através da construção da rede social, na qual os indivíduos precisam ter condições de viver em comunidade.169 Acerca deste tema, sustenta Segato:

Constatamos una vez más, que no es la ignorancia lo que se esconde detrás de la diferencia en el tratamiento de la vida recién nacida en sociedades originarias del Nuevo Mundo, sino otra concepción de lo que es humano y de las obligaciones sociales que lo manufacturan.170

Pública sobre o Projeto de Lei n° 1.057/2007. Maria nna Holanda é antropóloga e foi orientada por Rita Segato em sua dissertação de mestrado, trabalho já referido aqui. Por serem as pessoas envolvidas neste assunto e que possuem material publicado a respeito, exporemos suas idéias e críticas em relação ao referido projeto de lei.

165 HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008. p. 143.

166 Ibidem, p. 10. 167 STAVENHAGEN, apud HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos

direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 10.

168 HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 10-11.

169 Ibidem, p. 135. 170 SEGATO, Rita Laura. "Que cada pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo

Jurídico en diiálogo didáctico con legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena.

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Ademais, para Rita Segato, o referido projeto de lei “ultra-criminaliza” as

práticas indígenas, uma vez que estabelece diretrizes já previstas no ordenamento jurídico brasileiro, como as normas da Constituição Federal e do Código Penal, além das reconhecidas internacionalmente.171 Assim, para a antropóloga, não haveria sentido promulgar uma lei com este conteúdo, porque isso implicaria em legislar sobre o que já está devidamente legislado.172 Em sua opinião, o projeto de lei ligado às campanhas humanitárias promovidas por algumas organizações não-governamentais (como ATINI e JOCUM), que atuam em prol da vida das crianças indígenas, mascaram uma propaganda anti-indígena. Isso porque eles criam uma idéia de que os povos indígenas são bárbaros, ignorando a significação de seus sistemas simbólicos, com o fundamento de que as crianças devem ser salvas da incapacidade cultural de seus povos. Tal fato origina uma abertura para a intervenção, na qual muitas vezes ocorre de maneira inadequada. Nesse sentido, alega Rita Segato:

Tanto las noticias plantadas por esta organización en diarios y revistas de amplia distribución nacional como la conmovedora entrada en el auditorio del Congreso en que se desarrollaba la sesión resultan naturalmente en una imagen de las sociedades indígenas como bárbaras, homicidas y crueles para con sus propios e indefensos bebés. Imagen contrapuesta a la de un movimiento religioso que afirma “salvar los niños” de pueblos que los asesinan. La legítima defensa de la vida de cada niño y el deseo de una buena vida para todos se transformaba así en una campaña proselitista anti-indígena y en la prédica de la necesidad de incrementar la supervisión de la vida en las aldeas.173

Igualmente, Marianna Holanda refere que:

Isso faz das missões e da forma de atuação das missões um debate que deve ser posto na cena política nacional. A violência com que muitas delas atuam em aldeias indígenas no Brasil é encoberta por uma filantropia e protegida por uma moralidade que não se sustenta mais [...] Mudar as culturas “em seus aspectos sombrios e negativos” é o desejo trágico destas missões. [...] Um humanismo que insiste no que, por séculos, os Povos Indígenas no Brasil vêm demonstrando: que não se dobram à colonização persistente.174

ORTIZ, Héctor; SIERRA, María Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de globalización. México: CIESAS e Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008. p. 12. [Material por e-mail pessoal].

171 Em relação às diretrizes de proteção à criança que já possuiriam previsão legal, se poderia destacar: artigo 1°, inciso III (dignidade da pesso a humana); artigo 5°, caput (direito à vida); artigo 5°, inciso III (tratamento desumano ou degradante); artigo 227, caput (dever do Estado em assegurar o direito à vida e à saúde às crianças) – todos da Constituição Federal; artigo 121 (homicídio); artigo 129 (lesão corporal); artigo 135 (omissão de socorro); artigo 136 (maus-tratos) – todos do Código Penal; o artigo 7° (direito e prote ção à vida e à saúde); artigo 13 (maus-tratos); artigo 15 (dignidade da pessoa humana); artigo 17 (integridade física, psíquica e moral), todos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069 de 1990). (SEGATO, Rita Laura. "Que cada pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo Jurídico en diiálogo didáctico con legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena. ORTIZ, Héctor; SIERRA, María Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de globalización. México: CIESAS e Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008, [Material por e-mail pessoal], p. 6.

172 Ibidem, p. 14. 173 Ibidem, p. 5. 174 HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a

criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 145.

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Aliás, este também é o posicionamento da Associação Brasileira de Antropologia, ao declarar que o Projeto de Lei n° 1 .057/2007 simboliza uma renovação do preconceito e, por isso, merece ser arquivado pelo Congresso Nacional.175

Conforme afirma João Pacheco de Oliveira, representando a Comissão de Assuntos Indígenas da ABA, as publicações sobre as práticas indígenas nos meios de comunicação (internet, televisão, revistas e jornais) demonstram nada mais do que um discurso desprovido de qualquer fundamentação científica, tornando-se uma perigosa estratégia retórica para criminalizar as comunidades indígenas, estando aí implícita a consideração da irracionalidade e da perversão desses povos.176 O antropólogo compara tal discurso àquele da época da colonização da América, onde os atos eram justificados por diversas pretensões “humanitárias”. Por trás disso há, em realidade, interesses de intervenção.177

Da mesma forma, segundo o antropólogo, o Projeto de Lei n° 1.057/2007 apóia-se em informações da mídia e registros não confiáveis. A questão que ele coloca é: como, então, legislar sobre o assunto, impondo um “parâmetro de fiscalização” e “outros modos de socialização” sobre essas coletividades?178 Logo, João Pacheco de Oliveira declara:

Tal intervenção pode resolver problemas de consciência de algumas pessoas, mas decididamente cria um falso problema e propõe soluções lastimáveis. Pior ainda, contribui para estimular uma visão negativa, ultrapassada e mesmo racista desse segmento da população brasileira.179

João Pacheco de Oliveira destaca ainda que a Declaração Universal dos

Direitos do Homem serve como um instrumento para proteger os cidadãos, e não para afirmar a superioridade moral de alguns povos sobre outros. Nesse contexto, afirma que a Constituição Federal de 1988 teve justamente a proposta de romper com as barreiras autoritárias da tradição colonial, promovendo um Estado Social de Direito, ao reconhecer e proteger as coletividades culturalmente distintas. Contudo, o que aparenta estar acontecendo é que o Brasil está na “contramão da história”, renovando o preconceito através deste Projeto de Lei. Segundo o antropólogo, essa pretensão de um movimento interventor poderia ser convertida em um diálogo

175 Comissão de Assuntos Indígenas da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA. Infanticídio

entre as populações indígenas – Campanha humanitária ou renovação do preconceito? Disponível em: <http://www.abant.org.br/index.php?page=2.31> Acesso em: 25/06/2009. p. 4.

176 O antropólogo João Pacheco de Oliveira afirma que atualmente as práticas em questão são raras entre as comunidades indígenas brasileiras e que não existem registros confiáveis e consistentes sobre elas. Além disso, comenta que o filme “Hakani”, veiculado no Youtube, trata-se de uma encenação produzida para obter fundos para as missões das instituições “pilantrópicas”.

Ressalta-se que o objetivo deste trabalho não é investigar os dados etnográficos e estatísticos da questão, mas expor os debates teóricos em torno do tema. Comissão de Assuntos Indígenas da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA. Infanticídio entre as populações indígenas – Campanha humanitária ou renovação do preconceito? Disponível em: <http://www.abant.org.br/index.php?page=2.31>. Acesso em: 25 jun. 2009, p. 1 e 3.

177 Comissão de Assuntos Indígenas da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA. Infanticídio entre as populações indígenas – Campanha humanitária ou renovação do preconceito? Disponível em: <http://www.abant.org.br/index.php?page=2.31> Acesso em: 25 jun. 2009, p. 3.

178 Ibidem, p. 3. 179 Ibidem, p. 3.

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intercultural, o qual obviamente deverá contar com a efetiva participação das comunidades indígenas afetadas por esta polêmica discussão.180

De acordo com essa abordagem, Rita Segato alega que o Estado não possui legitimidade, capacidade e responsabilidade para intervir nas comunidades indígenas afetadas pelo Projeto de Lei n° 1.057/200 7. Diante desse pensamento, ela relembra as “cicatrizes” deixadas pelo impacto colonial sobre os povos indígenas, período profundamente marcado pela exploração, violência e ganância.181

Segundo Rita Segato, as conseqüências da promulgação deste Projeto de Lei seriam, no mínimo, nefastas. Em primeiro lugar, porque essas práticas, como o “infanticídio”, poderão virar emblemas da diferença, ou seja, essas práticas tornar-se-iam um símbolo representativo com uma conotação extremamente negativa, sendo as comunidades indígenas “marcadas” e lembradas apenas por esses atos. Em segundo lugar, pois o cumprimento das diretrizes estabelecidas no Projeto de Lei poderá permitir a intervenção das forças públicas para vigiar e fiscalizar os atos das comunidades indígenas, interferindo, conseqüentemente, na sua autonomia e intimidade.182

Explica a antropóloga que o papel do Estado deveria ser mais o de proteger e promover a vitalidade dos povos indígenas, bem como a sua autonomia, do que atuar com um caráter preponderantemente punitivo e interventor.183 O foco da discussão para Rita Segato é o direito dessas comunidades como sujeitos coletivos184, ou seja, o direito de condição como povos, o qual ainda não teria sido objeto de maior desenvolvimento no ordenamento jurídico brasileiro.185 Assim, é necessária que seja restituída e garantida a liberdade às comunidades indígenas para que elas possam resolver seus próprios conflitos de acordo com seus usos, costumes e tradições. Só assim, continua Segato, será possível que esses povos dialoguem a seu modo com os parâmetros estabelecidos no Brasil e internacionalmente.186

180 Comissão de Assuntos Indígenas da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA. Infanticídio

entre as populações indígenas – Campanha humanitária ou renovação do preconceito? Disponível em: <http://www.abant.org.br/index.php?page=2.31>. Acesso em: 25 jun. 2009, p. 3.

181 Estes são alguns questionamentos colocados por Rita Segato: “¿Qué Estado es ese que hoy pretende legislar sobre como los pueblos indígenas deben preservar sus niños? ¿Qué estado es ese que hoy pretende enseñarles a cuidarlas? ¿Qué autoridad tiene ese Estado? ¿Qué legitimidad y qué prerrogativas? ¿Qué credibilidad ese Estado tiene al intentar, mediante esta nueva ley, criminalizar a los pueblos que aquí tejían los hilos de su historia cuando fueron interrumpidos por la violencia y la codicia de los cristianos?”. (SEGATO, Rita Laura. "Que cada pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo Jurídico en diálogo didáctico con legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena. ORTIZ, Héctor; SIERRA, María Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de globalización. México: CIESAS e Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008, [Material por e-mail pessoal], p. 17 e 20).

182 Ibidem, p. 21. 183 Ibidem, p. 17-18. 184 Em relação ao direito ao reconhecimento da diversidade cultural, há a discussão sobre a

legitimidade dos sujeitos coletivos de direito. Não abordaremos tal assunto aqui. Sobre isso, consultar: SOUZA, Rosinaldo Silva de. Direitos Humanos através da história recente em uma perspectiva antropológica. In: DE LIMA, Roberto Kant; NOVAES, Regina Reyes (Org.). Antropologia e Direitos humanos. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2001, p. 47-79.

185 SEGATO, op. cit, p. 15. 186 Ibidem, p. 18.

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Portanto, conforme expõe a autora, não cabe ao Estado, através da coerção, impor o curso que esses povos devem seguir. Ao Estado compete respeitar e proteger a capacidade que cada sistema simbólico possui, como sujeitos coletivos de direito, de construir a sua história, livre de intromissões autoritárias.187 Nesse sentido, a posição final de Rita Segato é que o Projeto de Lei n° 1.057/2007, ao “criminalizar” as práticas aqui já mencionadas, coloca o “outro” em uma posição de inimigo, impedindo que as comunidades indígenas deliberem internamente sobre o curso de sua tradição, em outras palavras, que “teçam os fios de sua história”.188 Em conformidade com a antropóloga:

Por eso, esa ley es, antes que nada, anti-histórica, ya que una de las preocupaciones centrales de nuestro tiempo es la de valorizar y preservar la diferencia, la reproducción de un mundo en plural que, para existir, necesita del desarrollo del derecho de sujetos colectivos. Cuidar de ellos es central inclusive porque, a pesar de nuestras agresiones constantes en el curso de estos 500 años, esos pueblos no solamente sobrevivieron mediante sus propias estrategias y lógicas internas, sino también porque es posible imaginar que nos superarán en esa capacidad de sobrevivencia.189

Além disso, Rita Segato discute que a tentativa de criminalizar as

comunidades indígenas através deste Projeto de Lei viola o direito constitucional que garante e protege a diversidade cultural e desrespeita a autodeterminação e os Direitos Próprios desses povos, garantias asseguradas na Convenção 169 da OIT, a qual o Brasil ratificou.190

A ênfase, portanto, da crítica de Rita Segato está na legitimidade do Estado na intervenção, na desnecessidade de legislar sobre o que já está previsto no ordenamento jurídico brasileiro, na eficácia dessa pretensa criminalização e, também, na não-participação das comunidades indígenas na redação das leis, como é o caso do Projeto de Lei n° 1.057/2007.

Diante dessas circunstâncias, a antropóloga aponta a necessidade de um projeto de pluralismo jurídico191 no Brasil, isto é, a possibilidade de uma abertura para que os povos da nação resolvam e deliberem internamente sobre os seus conflitos e trilhem o seu próprio caminho.192 Tendo em vista o mundo multicultural e globalizado da atualidade, nada mais sensato do que permitir a esses povos esta

187 SEGATO, Rita Laura. "Que cada pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo

Jurídico en diálogo didáctico con legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena. ORTIZ, Héctor; SIERRA, María Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de globalización. México: CIESAS e Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008, [Material por e-mail pessoal], p. 22.

188 Ibidem, p. 18. 189 Ibidem, p. 18. 190 Nas palavras de Rita Segato: “Esos datos imponen nuevos interrogantes al respecto de las

motivaciones que los legisladores podrían entretener al insistir en una ley que criminaliza los pueblos indígenas y vuelve más distante su acceso a un Derecho Propio y a una jurisdicción propia para la solución de conflictos y disensos dentro de las comunidades, contraviniendo así el Convenio 169 de la OIT, plenamente vigente en Brasil desde 2002.” (Ibidem, p. 19).

191 Sobre o assunto do pluralismo jurídico, conferir a obra: WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura do Direito. São Paulo: Alfa-Omega, 1994.

192 SEGATO, op. cit, p. 20.

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garantia de liberdade, a fim de que não sejam objetos de ações fundamentalistas por outros setores da sociedade.193

Essa proposta, contudo, não significa que o Estado deverá ausentar-se. Ao contrário, seu papel deverá ser o de promover o diálogo entre os povos e os poderes estatais, assim como o diálogo interno. Em suma, a intervenção estatal será no sentido de restituir e garantir a liberdade das comunidades indígenas, através de um projeto de pluralismo jurídico, que possibilite a deliberação de forma justa e o exercício da justiça própria.194

Neste tópico, vimos que a discussão está baseada na interpretação do artigo 231 da Constituição Federal. Por um lado, conforme a justificativa do Projeto de Lei n° 1.057/2007, tal artigo deve ser interpretado de acordo com o artigo 1°, III e com o artigo 5° da Constituição. Por outro, o olhar antropológico refere que os artigos mencionados devem ser lidos de acordo com o artigo 231, tendo em vista que a concepção de pessoa é relativa aos sistemas de símbolos significantes.

Agora, passaremos a expor algumas propostas concernentes ao problema. 3.3 O DIÁLOGO INTERCULTURAL E A HERMENÊUTICA DIATÓPICA

Diante do polêmico assunto que expomos neste trabalho, é possível observar que um questionamento torna-se saliente: afinal, os direitos humanos e fundamentais poderiam assumir um caráter universal, no sentido de deverem estar presentes em todos os sistemas simbólicos da cultura brasileira, apesar das especificidades culturais?

O Projeto de Lei n° 1.057/2007 é apenas um dentre o utros exemplos que poderíamos ter evidenciado sobre os casos que envolvem a problemática dos direitos humanos e fundamentais e a diversidade cultural e que indica a importante e necessária reflexão sobre o Direito e a Antropologia.

Tentaremos desenvolver esse raciocínio a partir da tese de Boaventura de Souza Santos, a qual discute a aplicação dos direitos humanos em tempos de uma era globalizante. Ressaltamos que não temos o objetivo de fornecer respostas, mas de apenas impulsionar reflexões.

Os direitos humanos tidos como universais, na visão de Boaventura de Souza Santos, são fruto da construção do mundo ocidental.195 Essa construção concebe a

193 SEGATO, Rita Laura. "Que cada pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo

Jurídico en diálogo didáctico con legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena. ORTIZ, Héctor; SIERRA, María Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de globalización. México: CIESAS e Red Latinoamericana de Antropología Jurídica, 2008, [Material por e-mail pessoal], p. 20-21.

194 Ibidem, p. 23. 195 De acordo com a exposição de Boaventura de Souza Santos: “O conceito de direitos humanos

assenta num bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, designadamente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior à restante da realidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que tem de ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica, como soma de indivíduos livres”. (PANIKKAR, apud SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção

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existência de uma natureza humana universal e a dignidade da pessoa humana como qualidade intrínseca. No entanto, percebe-se que outras culturas não compreendem a natureza humana e a dignidade humana da mesma forma, pois alguns povos sequer contemplam essas noções como direitos humanos. Nota-se, dessa forma, que os direitos humanos não são universais em sua aplicação. Desse modo, as políticas dos direitos humanos são políticas baseadas em pressupostos culturais específicos.196 Nesse sentido, eles tendem a atuar como localismo globalizado, razão pela qual é indispensável um redirecionamento dos direitos humanos à forma do cosmopolitismo.

Para Boaventura de Souza Santos, a globalização, a partir de uma perspectiva social, cultural e política, compreende-se em diferentes conjuntos de relações sociais e, por serem diferentes, geram também diferentes modos de globalização. Por essa razão, segundo o autor, existem fenômenos de globalizações, no plural, e não no singular. Seguindo este raciocínio, há quatro modos de produção de globalização que dão origem a quatro formas de globalização: (a) o localismo globalizado, que ocorre quando um fenômeno local consegue se estender ao resto do globo, como é o caso dos fast-food, por exemplo; (b) o globalismo localizado, que ocorre quando um fenômeno global causa impacto nas condições locais e, assim, essas passam a se adaptar com o novo imperativo, como por exemplo, a transformação da agricultura de subsistência em agricultura do tipo exportação; (c) o cosmopolitismo, que ocorre quando as formas de dominação transnacional são utilizadas de forma não imperativa em prol dos interesses comuns dos Estados-nação, como é o caso das ONG´s; (d) o patrimônio comum da humanidade, processo no qual abrange todo o globo, como a discussão sobre a escassez dos recursos naturais. Diante disso, Boaventura de Souza Santos classifica as globalizações em: de-cima-para-baixo, isto é, com pretensões hegemônicas (localismo globalizado e globalismo localizado), e as globalizações de-baixo-para-cima, ou seja, com pretensões contra-hegemônicas (cosmopolitismo e patrimônio comum da humanidade).197

Esse raciocínio se faz necessário para entender a tese de Boaventura de Souza Santos. Segundo o autor, os direitos humanos podem assumir essas formas de globalização. Contudo, é necessário que a concepção de direitos humanos revele a forma de cosmopolitismo, ou seja, como uma globalização contra-hegemônica que opere de-baixo-para-cima. O autor pensa os direitos humanos não como universais, mas como multiculturais. Este projeto é proporcionado pelo diálogo intercultural e através do que ele denominou de “hermenêutica diatópica”.198 Nas palavras de Boaventura de Souza Santos:

A minha tese é que, enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo

multicultural de direitos humanos. Revista Lua Nova, São Paulo, CEDEC – Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, n. 39, p. 112, 1997). Sobre este aspecto, conferir: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 31-44.

196 SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Lua Nova, São Paulo, CEDEC – Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, n. 39, p. 107 e 112, 1997.

197 Ibidem, p. 107, 109-111. 198 Ibidem, p. 107, 109-111.

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globalizado – uma forma de globalização de-cima-para-baixo. Serão sempre um instrumento de “choque de civilizações”[...]. A sua abrangência global será obtida à custa da sua legitimidade local.199 Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização de-baixo-para-cima ou contra-hegemônica, os direitos humanos têm de ser reconceitualizados como multiculturais.200

Conforme o autor, “todas as culturas tendem a considerar os seus valores máximos como os mais abrangentes, mas apenas a cultura ocidental tende a formulá-los como universais”.201 Dito de outro modo, cada cultura considera seus símbolos significantes como os mais abrangentes, entretanto, é característica do ocidente querer elevar a sua validade ao resto do mundo e, aqui, poderíamos arriscar em dizer que, talvez, essa atitude demonstra um caráter etnocêntrico.

Assim, à medida que os direitos humanos operarem sob o aspecto universal, isto é, atuarem como localismo globalizado, pretendendo atingir um âmbito global (globalização de-cima-para-baixo/hegemônica), a sua abrangência e aplicação se dará “à custa da sua legitimidade local”, ignorando, muitas vezes, as peculiaridades culturais dos outros povos, a partir da imposição de valores ao restante do mundo.202

Por tal razão, de acordo com Boaventura de Souza Santos, os direitos humanos devem assumir uma política progressista e emancipatória com âmbito global e legitimidade local.203 O que isso significa? Significa dizer que os direitos humanos necessitam operar como forma de cosmopolitismo, isto é, como globalização contra-hegemônica, assumindo uma dimensão multicultural, ao invés de universal.

Tendo em vista que o multiculturalismo é requisito para uma vinculação harmônica entre as relações globais e locais, ele proporcionaria uma política contra-hegemônica de direitos humanos.204 Logo, para transformar os direitos humanos universais, ou seja, aqueles decorrentes do localismo globalizado ou de uma globalização hegemônica (globalização de-cima-para-baixo) em direitos humanos multiculturais, isto é, aqueles decorrentes do cosmopolitismo ou de uma globalização contra-hegemônica (globalização de-baixo-para-cima) é preciso do diálogo intercultural.

De acordo com Santos, o diálogo intercultural caracteriza-se pela troca de saberes entre universos de sentido diferentes,205 ou podemos dizer, entre diferentes sistemas de símbolos significantes. Para que isso ocorra, em primeiro lugar, é importante: (a) reconhecer que todas as culturas possuem noções de dignidade humana, embora diversas, mas de forma inteligível; e, principalmente, (b) reconhecer a incompletude de cada cultura em relação a essas concepções.206 Dessa forma, é possível construir uma concepção multicultural de direitos humanos,

199 SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Lua

Nova, São Paulo, CEDEC – Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, n. 39, p. 111, 1997. 200 Ibidem, p. 111-112. 201 Ibidem, p. 112. 202 Ibidem, p.111. 203 Ibidem, p. 105 e 107. 204 Ibidem, p. 112. 205 Ibidem, p. 115. 206 Ibidem, p. 114.

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que “em vez de recorrer a falsos universalismos, se organiza como uma constelação de sentidos locais, mutuamente inteligíveis, e que se constitui em redes de referenciais normativas capacitantes”.207 Trata-se, portanto, de uma concepção de direitos humanos com âmbito global e com legitimidade local.

Ressalta-se que a proposta de um diálogo intercultural é viabilizada através do que o autor denominou de “hermenêutica diatópica”. Segundo Boaventura de Souza Santos, os universos de sentido de cada cultura são compostos por topoi forres, “lugares comuns teóricos mais abrangentes”, ou seja, premissas de argumentação.

Através dos topoi de cada cultura é possível propor uma produção e troca de argumentos, isto é, estabelecer o diálogo intercultural.208 Isso significa que, por exemplo, a partir das premissas de argumentação sobre dignidade humana de uma cultura estabelece-se o diálogo com as premissas de argumentação sobre dignidade humana de outra cultura, como em nosso caso, entre noções indígenas e não-indígenas de dignidade humana. Pode-se dizer que ocorre um intercâmbio de símbolos significantes, ocasião em que cada cultura vê-se a explicar e a justificar os significados dos símbolos de seu sistema.

A tese de Boaventura de Souza Santos centra-se na idéia de que nenhuma cultura é completa. Segundo o autor, por mais fortes que sejam os argumentos – topoi –, eles são tão incompletos, assim como a sua própria cultura. Nesse sentido, a hermenêutica diatópica seria um instrumento capaz de auxiliar na compreensão da incompletude dos elementos culturais ou sistemas simbólicos, sem, no entanto, ter a pretensão de que o diálogo intercultural proporcione a sua completude, pois isso seria algo impossível.209 Ao contrário, esse esforço possuiria a ambição de ampliar a consciência sobre a incompletude de ambas as culturas e, por essa razão, revelar a necessidade do alargamento do diálogo, “com um pé numa cultura e outro, noutra”. Eis o caráter diatópico.

Fazendo uso do pensamento de Ruth Benedict, no qual “a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo”, se poderia afirmar que nenhuma cultura consegue enxergar o mundo sozinha. Todas elas sofreriam de uma miopia, motivo pelo qual necessitariam dos óculos do “outro”, isto é, do diálogo intercultural e de um tráfico de símbolos significantes, proporcionando até mesmo uma (re)significação de seus próprios símbolos.

Portanto, um dos pressupostos para o diálogo intercultural é o reconhecimento das incompletudes mútuas.210 Assim, a hermenêutica diatópica

207 SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Lua

Nova, São Paulo, CEDEC – Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, n. 39, p. 107, 109-115, 1997.

208 Ibidem, p. 115. 209 Ibidem, p. 116. 210 O autor fornece exemplos sobre os topoi dos direitos humanos na cultura ocidental, de dharma na

cultura hindu e de umma na cultura islâmica, demonstrando que todas essas noções possuem incompletudes em si. Segundo Santos: “A hermenêutica diatópica mostra-nos que a fraqueza fundamental da cultura ocidental consiste em estabelecer dicotomias demasiado rígidas entre o indivíduo e a sociedade, tornando-se assim vulnerável ao individualismo possessivo, ao narcisismo, à alienação e à anomia. De igual modo, a fraqueza fundamental das culturas hindu e islâmica deve-se ao fato de nenhuma delas reconhecer que o sofrimento humano tem uma dimensão individual irredutível, a qual só pode ser adequadamente considerada numa sociedade

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torna-se um procedimento que engloba um trabalho mútuo, isto é, que envolve a construção de conhecimento por diversas culturas.211

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conceito antropológico de “cultura”, tal como concebido por Clifford Geertz,

indica um conjunto de sistemas de símbolos significantes, construídos historicamente. A partir desta perspectiva, a diversidade cultural apresenta-se como as diferentes interações dos grupos humanos com os modelos “da” e “para” a realidade. A tarefa antropológica constitui-se, assim, na interpretação de diferentes e peculiares maneiras de como cada cultura elabora e organiza o seu universo de símbolos e seus respectivos significados.

Com efeito, neste trabalho pôde-se perceber, através da pesquisa de Marianna Holanda, que algumas comunidades indígenas brasileiras concebem e compreendem diferentemente as noções de ser humano, de vida e de morte, comparativamente à cultura não-indígena, visto que esses símbolos possuem outras significações.

Não obstante, a justificativa do Projeto de Lei n° 1.057/2007 centra-se na exigência da interpretação do artigo 231 da Constituição Federal de acordo com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e os direitos fundamentais, além de outras normas de proteção à infância, englobadas no ordenamento jurídico brasileiro. Isto significaria, a partir do olhar antropológico, a exigência de uma mesma interpretação ou atitude em relação ao ser humano entre diferentes culturas. Por outro lado, pode-se afirmar que algumas comunidades indígenas interpretariam os artigos 1º, inciso III e 5º da Constituição Federal de modo radicalmente diferente, uma vez que sua concepção de ser humano é compreendida de outra forma. Observa-se, portanto, um embate gerado pela transposição de categorias de um sistema simbólico a outro. No entanto, tal embate não traz como conseqüência a existência de diferentes ordenamentos jurídicos.

Não é de se negar, que existam diferentes culturas em nosso país e que elas possuem outros universos de significação. Com isso não se quer dizer que as mesmas não estejam englobadas e protegidas pelo ordenamento jurídico nacional.

Verifica-se no caso do Projeto de Lei, o inquietante debate entre o Direito e a Antropologia. Mais do que isso, nota-se a importância e a necessidade das aproximações entre esses dois campos de conhecimento.

Acredita-se que o problema apresentado atinge a interpretação atual da ordem jurídico-constitucional brasileira, baseada no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Nesse sentido, questionam-se as conseqüências de se levar em consideração a questão da diversidade cultural como sendo tão fundamental quanto o referido princípio.

não hierarquicamente organizada”. (SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Lua Nova, São Paulo, CEDEC – Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, n. 39, p. 118, 1997).

211 Ibidem, p. 120.

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Visto que a cultura orienta o comportamento humano, dando sentido à sua experiência, trata-se, sobretudo, de estabelecer questionamentos e perceber que existem outras formas de concepção do que seja o ser humano, a vida e a morte no Brasil, símbolos os quais coordenam alguns sistemas simbólicos indígenas, e que não podem ser esquecidas ou ignoradas.

Entretanto, frise-se oportunamente que, com tais reflexões, não queremos, simplesmente, ser a favor ou contra as práticas tradicionais indígenas, mencionadas no Projeto de Lei n° 1.057/2007. Parafraseando o tí tulo de um artigo de Clifford Geertz,212 adotaremos a posição Anti anti-“infanticídio”, ou seja, ao irmos contra as posições que procuram impedir algumas práticas tradicionais indígenas, como estabelece o referido Projeto de Lei, não estamos necessariamente adotando uma posição a favor de tais práticas. Isto significa dizer, como Geertz explica em sua posição anti anti-relativista, que a dupla negativa “permite rejeitar algo sem que com isso nos comprometamos com aquilo que este algo rejeita”.213

A partir de tal posição, encontramos três direções sobre o caso investigado: (1) as ditas “práticas tradicionais nocivas” devem ser impedidas, pois ferem o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, bem como as normas de proteção à infância, previstas no ordenamento jurídico brasileiro; (2) tais práticas, tendo em vista que estão inseridas em sistemas de símbolos significantes diferentes, não poderiam sofrer intervenções; (3) seria necessário o estabelecimento de um diálogo intercultural, tendo por objetivo principal a justificação de tais práticas entre ambas as culturas e, nesse sentido, elas seriam (3.1) permitidas ou (3.2) proibidas até o consenso sobre os seus topoi.

Percebe-se, assim, que as duas primeiras direções baseiam-se fortemente ora na perspectiva jurídica, ora na perspectiva antropológica. Já a terceira procura um diálogo entre ambas as perspectivas, mas difere essencialmente em sua resolução inicial. Diante destas propostas, o nosso trabalho procurou mostrar que as duas primeiras direções são insuficientes. Por essa razão, consideramos válida a terceira direção, à qual passaremos a justificá-la a seguir.

A perspectiva antropológica revela que, ao se examinar determinados fenômenos e elementos culturais, é essencial não dissociá-los do contexto do qual pertencem. Simplesmente “pinçar” um símbolo cultural, desvinculando-o de seu significado e de seu sistema simbólico, e transpondo outros valores ao mesmo, pode caracterizar uma atitude etnocêntrica. Dessa forma, o relativismo cultural, como um princípio metodológico, tem por objetivo compreender o “outro” a partir de seus próprios termos.

Ressalta-se, no entanto, que, dentro do sistema simbólico indígena, existem muitos indivíduos que participam diferentemente de sua cultura, sendo algumas pessoas contrárias às suas próprias práticas tradicionais, razão pela qual elas reivindicam a proteção das crianças.

A partir da perspectiva jurídica, considera-se de suma relevância a construção e a conquista histórica dos direitos humanos, as quais desencadearam e 212 GEERTZ, Clifford. Anti anti-relativismo. In: _____. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2001, p. 47-67. 213 Ibidem, p. 48.

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possibilitaram que diversas cartas constitucionais reconhecessem expressamente esses direitos e garantias. Além disso, é inegável a importância do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, bem como a necessidade de serem primordialmente resguardados os direitos fundamentais à vida, à saúde e à integridade físico-psíquica das crianças brasileiras, sejam elas indígenas ou não-indígenas.

No caso da “Lei Muwaji”, é evidenciado, por um lado, o seu caráter relativizador, pois tal projeto não considera as práticas indígenas como crimes, associando-as ao artigo 231 da Constituição Federal. Contudo, ao mesmo tempo, o referido projeto de lei pretende impedi-las, defendendo o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana acima das especificidades culturais.

Nesse sentido, observa-se que as propostas do Projeto de Lei n° 1.057/2007 são embasadas em concepções hegemônicas de direitos humanos (e fundamentais), desconsiderando, por isso, as noções indígenas aqui já mencionadas. Além disso, verifica-se que a elaboração do referido projeto não contou com a efetiva participação das comunidades indígenas englobadas nesta discussão.

Tecidas essas considerações, entende-se que a perspectiva do diálogo intercultural tem o condão de proporcionar trocas de justificação das práticas tradicionais. Desse modo, cada sistema simbólico – indígena e não-indígena – vê-se impelido a explicar e, sobretudo, fundamentar a significação de seus elementos, expondo-se ao olhar do “outro”. As conseqüências desse argumento indicam que, nesse caso, tanto a nossa cultura, quanto a cultura indígena precisaria realizar uma justificação mútua de suas práticas e de suas concepções de vida, sem uma intervenção enquanto isso não ocorrer. Uma importante pergunta que se poderia fazer agora, no entanto, é a seguinte: que tipos de justificações seriam aceitas como razoáveis?

Atualmente, é salutar a reflexão sobre a aplicação dos direitos humanos e fundamentais, principalmente no cenário nacional, que se caracteriza pela vasta diversidade de culturas. Nesse sentido, a idéia de Boaventura de Souza Santos sobre o diálogo intercultural, através da hermenêutica diatópica, fornece uma interessante proposta para que haja um intercâmbio entre diferentes símbolos significantes. Assim, os direitos humanos e fundamentais podem assumir um caráter não-hegemônico, ou seja, multicultural, respeitando, dessa forma, as diferenças.

Com isso, o saber antropológico auxilia a Ciência Jurídica, na medida em que fornece compreensões de outros universos culturais, isto é, traduz o significado dos símbolos. Dessa forma, ele pode facilitar o trabalho dos juristas no deslinde de diversas questões, tais como as indígenas. Conforme mencionam Marcelo Veiga Beckhausen e José Otávio Catafesto de Souza, a Antropologia surge como a ciência capaz de narrar e evidenciar os elementos culturais. Os antropólogos são, nesse sentido, os profissionais responsáveis por isso, uma vez que servem de intermediadores e tradutores dos símbolos significantes de outras culturas que, muitas vezes, não estão ao alcance do jurista.

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Em vista disso, os laudos antropológicos, por exemplo, assumem relevância nos processos judiciais e administrativos relativos aos direitos socioculturais.214 Esses instrumentos podem ser requisitados em virtude da realização de perícias ou para o assessoramento técnico a juízes ou às partes envolvidas nos processos, a fim de serem contextualizados e avaliados determinados elementos e situações culturais.215 Dentre alguns exemplos de laudos antropológicos estão aqueles relacionados à demarcação de terras indígenas, identificação étnica, impacto socioambiental, educação, saúde, etc.216

Em relação ao aspecto do trabalho antropológico, ressaltamos um importante trecho do Parecer Técnico n° 49/2009 da 6ª Câmara d e Coordenação e Revisão (Índios e Minorias) do Ministério Público Federal da 4ª Região, o qual sintetiza o pensamento até então desenvolvido:

O objetivo é trazer para o bojo das ações do Estado perspectivas não-hegemônicas, na tentativa de arejar e dilatar o alcance das decisões do poder público em favor da consolidação de direitos diferenciados. O intuito é evitar, ao máximo, que decisões relativas às vidas de grupos étnicos e sociais minoritários ocorram baseadas em uma visão etnocêntrica, que toma apenas as suas próprias categorias de compreensão do mundo como parâmetro de consideração e julgamento para outros contextos sociais e culturais. Desse modo, é pertinente que no Brasil a consolidação do pluralismo jurídico passa, também, pela afirmação das perícias antropológicas.217

Por fim, mostra-se imprescindível um diálogo interdisciplinar entre os campos do direito e da antropologia, que, cada vez mais, vai encontrando espaço nos ambientes acadêmicos. A Resolução do Conselho Nacional de Educação e da Câmara de Educação Superior n° 9, 218 por exemplo, institui diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em Direito e dá outras providências, obrigando o desenvolvimento de projetos pedagógicos que envolvam o conteúdo sobre Antropologia.

Retomando o pensamento de Ruth Benedict, o Direito não enxerga o mundo sozinho e, por isso, muitas vezes precisará dos “óculos” de outras ciências e de outros campos do saber para resolver a demanda de conflitos, tais como da Antropologia, Sociologia, Psicologia, Medicina, entre outros.

214 DARELLA, Maria Dorothea Post; MELLO, Flávia Cristina de. Laudos antropológicos e sua

contribuição ao Direito. In: COLAÇO, Thais Luzia (Org.). Elementos de antropologia jurídica. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008, p. 161.

215 Ibidem, p. 183-184. 216 Ibidem, p. 163. 217 BRASIL. Parecer Técnico n° 49/2009 da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (Índios e Minorias)

do Ministério Público Federal da 4ª Região. Brasília, 2009. 218 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Disponível em:

<portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/ces092004direito.pdf>. Acesso em: 04 nov. 2009.

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