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12 | Domingo 8 Julho 2012 | 2 Há 50 anos, uma mulher e a sua filha viveram sozinhas numa aldeia no cimo de um monte, na região de Lamego, passando fome e frio, abandonadas aos lobos e aos ladrões. Todos os habitantes da Anta deixaram a aldeia de casas de pedra e colmo, para se instalarem na menos inóspita Mazes. Mas Joaquina e a filha, Iria, ficaram lá no monte, numa casa minúscula e fria, durante 20 anos. Porquê? Mais de quatro décadas depois, levámos Iria a sua casa, na Anta de Mazes QUEM DEIXOU IRIA NA ALDEIA DA ANTA? PAULO MOURA TEXTO MANUEL ROBERTO FOTOGRAFIA

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12 | Domingo 8 Julho 2012 | 2

Há 50 anos, uma mulher e a sua fi lha viveram sozinhas numa aldeia no cimo de um monte, na região de Lamego, passando fome e frio, abandonadas aos lobos e aos ladrões. Todos os habitantes da Anta deixaram a aldeia de casas de pedra e colmo, para se instalarem na menos inóspita Mazes. Mas Joaquina e a fi lha, Iria, fi caram lá no monte, numa casa minúscula e fria, durante 20 anos. Porquê? Mais de quatro décadas depois, levámos Iria a sua casa, na Anta de Mazes

QUEM DEIXOU IRIA NA ALDEIA DA ANTA?

PAULO MOURA TEXTO MANUEL ROBERTO FOTOGRAFIA

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Iria volta-se para mim: “Não sei porque fi -quei eu. Devia ter morrido como os meus irmãos.” Atrás tem o cenário da aldeia da Anta e toda a beleza insidiosa da serra, agora perfeitamente domada, como um aquário da memória. “Fiquei viva, sabe-se lá porquê.”

Levei quase cinco anos a encontrá-la. Quando aqui vim a primeira vez falaram-me de Joaquina, a Joaquina da Anta. É muito co-

nhecida nas aldeias entre Bigorne e Britiande, não pelos seus feitos, mas pelo que lhe acon-teceu: viveu sozinha numa aldeia, durante 20 anos. É uma circunstância extraordinária, até para os pastores das serras bravias ao redor de Lamego. Joaquina tornou-se numa lenda da região. Fala-se da Anta de Mazes, uma al-deia abandonada há décadas, e logo alguém menciona a história que lhe está associada: uma mulher viveu lá sozinha durante 20 anos. Ainda está viva. É a Joaquina da Anta.

Eu andava a fazer uma série de reportagens sobre a Estrada Nacional número 2, quase 800 quilómetros de Portugal interior e desertifi -cado entre Chaves e Faro, quando encontrei esta história. Fui à aldeia da Anta, num veículo todo-o-terreno, depois procurei Joaquina.

Tinha 85 anos, feições delicadas, pele muito branca e olhos azuis e transparentes, e vivia so-zinha numa casa muito pequena, sem janelas, em Mazes, uma aldeia um pouco mais abaixo na encosta. Falei com ela e com os vizinhos, até fi car a saber tudo. Ou quase. Era verdade o que contavam: Joaquina fi cara na Anta quando todos vieram embora.

Joaquina, recém-nascida, Iria Joaquina.Maria Brízida veio para aqui viver desde

que casou, com um rapaz de Vale Abrigoso, uma aldeia mais a sul, entre Mezio e Várzea da Serra. Tiveram 12 fi lhos, entre os quais Jo-aquina e Piedade.

Nem um nem outra tiveram marido. Foram mães solteiras. Os fi lhos de Piedade saíram da aldeia antes de Iria nascer. E a avó desta, Maria Brízida, morreu quando ela tinha cinco anos, já depois da morte de Piedade. Por volta de 1953, Joaquina e Iria estavam sozinhas na al-deia da Anta. A mãe com 29 anos, a fi lha com cinco. E assim viveram por mais 15 anos.

Porquê? Porque foram todos embora e as deixaram lá? Esta é a pergunta que comecei a fazer desde o primeiro momento. Joaquina contou-me tudo sobre a vida na Anta, mas não me soube (ou não quis) dar a resposta à pergunta. Nem a outra, muito mais simples: onde estava a fi lha, Iria?

Todos conhecem a Joaquina da Anta, mas de Iria ninguém me falou. Dizem que Joaqui-na viveu 20 anos sozinha na Anta, mas isso não é rigorosamente verdade. Iria nasceu na Anta e viveu lá até aos 20 anos. Sozinha com a mãe, quase sem ver, conhecer ou falar com outras pessoas. Uma criança, uma adolescen-te, depois uma jovem sozinha naquela serra de esplendor inóspito. Uma pastora de ove-lhas, brincando com as fl ores e as pedras, uma menina selvagem. Que seria feito dela? Que mulher seria hoje Iria?

Era preciso encontrá-la, mas ninguém sabia do seu paradeiro. Apenas que vivia no Alente-

Anta de Mazes é uma aldeia com umas 50 casas de pedra e telhados de colmo, no topo de um monte. Não vive lá ninguém, há mais de quatro décadas. Tudo indica que nos anos 40 morava muita gente na aldeia. Todas as casas seriam habitadas, pelo menos a julgar pelo facto de terem cozinha.

Alguns estudiosos da região desconfi am de que a ocupação terá sido sazonal e de que al-gumas casas terão servido apenas para guar-dar gado. Mas as pessoas recordam-se de a aldeia ter sido habitada. E essa é a única prova de que dispomos, uma vez que não há regis-tos, não há cultura escrita. É um mundo sem representações, que facilmente nos escapa entre os dedos, simultaneamente fi ctício e demasiado real.

Do que não há dúvidas é de que a Anta é um lugar tão belo quanto hostil e perigoso. Eu próprio vi uma tarde de sol transformar-se numa tempestade, em poucos minutos. Nuvens negras cruzaram o céu, rebentaram relâmpagos, pedras de granizo do tamanho de bolas de pingue-pongue cobriram o monte inteiro. Isto no início do Verão. No Inverno, é normal que o frio, o vento e a neve tornem a aldeia inabitável.

Por isso as pessoas fugiram. Era duro de mais viver na Anta. As que podiam arranja-vam uma casa em Mazes, de algum familiar, para habitar pelo menos no Inverno. Aos pou-cos, foram-se mudando para a aldeia do sopé. Pelas minhas contas, no ano de 1948 viviam na Anta apenas Joaquina Brízida e a irmã, Pieda-de, a mãe de ambas, Maria Brízida, e a fi lha de

jo. Perto de Évora, disseram algumas pessoas em Mazes. A mãe não tinha o seu endereço nem número de telefone. Disse que Iria vem visitá-la algumas vezes, sem avisar. Aparece no Natal, ou no Verão, fi ca uns dias e regressa ao Alentejo.

Perguntei a vários habitantes de Mazes. Uns amigos, uns primos. Não sabiam. Chegaram a dar-me números de telemóvel, que logo cons-tatei estarem desactivados. Ninguém contac-tava com Iria. Vim a saber que por vezes ela telefonava a uma amiga, Luísa, a saber da mãe. Encontrei Luísa e pedi-lhe ajuda. Prometeu-me que quando Iria lhe ligasse lhe falaria de mim. Passaram-se meses, anos.

Investiguei por conta própria. Sondei ami-gos de Évora, procurei o registo do nome. Mas como se chamava ela exactamente? Não con-segui confi rmar. Iria Brízida? Iria Joaquina? Como era possível ter desaparecido? Cheguei a duvidar de que tivesse realmente existido.

Fiquei a conhecer bem a zona. Chega-se através de Lamego, ou directa-mente pela A24, que tem uma liga-ção para Bigorne, para quem vem do Sul. A A24 corre paralela à velha EN2, pela qual ainda se pode ir de Lamego a Viseu.

É coerente o conjunto de aldeias em torno da Anta, sob o ponto de vista da paisagem e arquitectura.

Os povoados enraízam-se nos montes, numa mistura de casas simples, de pedra, e outras mirabolantes, fruto da aventura migratória

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das últimas décadas. Todas as aldeias possuem uma igreja, um cemitério e uma praça central, e algumas estão vivas. A maioria não. Têm as casas vazias e uma dúzia de idosos esperando a morte ou as festas de Agosto, quando os emi-grantes regressam para simular a existência que gostariam de ter tido.

É o mesmo por todas as aldeias, de Mazes a Lazarim, Lalim, Ferreirim, Meijinhos, Me-lcões, Cepões, Magueija, Dornas, Pretarou-ca, Penude ou Britiande. É um sistema, um universo, hoje ligado por estradas de asfalto, entre Lamego, Moimenta da Beira, Tarouca e Castro Daire, a norte da serra de Montemuro, a sul do Marão, junto ao rio Douro e às suas opulentas quintas do vinho do Porto. E, no entanto, a pobreza está à fl or da pele.

Percorri as várias aldeias, em busca desse passado recente onde pessoas como Joaquina viveram a sua vida. Lazarim, num sopé, de-pois Meijinhos, com as suas ruelas capilares, no cimo de um monte, descendo novamente, ao lado de Ribabelida, até à barragem do rio Balsemão, e às aldeias que a circundam, de Pretarouca e Dornas. Esta crava-se na encosta e tem vista para as serras e o lago de seda azul, num privilégio de estância turística, embo-ra as suas casas estejam quase todas vazias. Ao todo, vivem em Dornas umas 12 pessoas, segundo Fortunato, um homem que passou à porta para dar palha à sua burra, junto ao cruzeiro onde estão inscritas as palavras Deus, Pátria, Família.

Não frequentou a escola porque não havia. Só abriu uma quando ele já tinha 14 anos.

Presenciou a construção, em madeira, lá em baixo, à beira-rio. E ainda assistiu a algumas aulas, antes de ser impedido, por ter ultra-passado a idade. Foi então trabalhar para a terra, aos 15 anos.

Aos 17, construiu uma casa para si, com a ajuda do avô, com quem vivia, já que os pais emigraram quando ele nasceu. Ia pelos mon-tes apanhar pedras, que trazia num carrinho de mão. O avô recebia as pedras e edifi cava a casa. Fizeram-na os dois, sem a ajuda de ninguém. Era uma habitação minúscula, de uma só divisão, sem janelas nem chaminé, como todas as outras, para que não entrasse o frio. Situava-se no terreno que havia dispo-nível, num socalco inferior, em pleno trajecto das enxurradas de Inverno e no caminho das cobras e sardões. Quando fi cou pronta, For-tunato casou-se e foi para lá viver, depois de quatro anos de serviço militar em Angola. Só muito mais tarde, quando já ninguém queria fi car em Dornas, comprou a casa melhor on-de vive hoje.

“Cheguei a ter algum gado, fazia a minha vida”, contou-me ele. “Mas em criança era muito pobre.” Lembra-se de andar a ajudar os lavradores e ir a casa pedir comida. A avó aquecia uma panela de água. Às vezes tinha um pouco de batata ou cebola para acrescen-tar, muitas vezes não tinha. Fortunato inge-ria a água quente sem mais nada. Voltava ao trabalho e ao fi m da tarde vinha comer mais sopa.

Fortunato contou-me isto e eu apenas sabia que ele não brincava porque outros, em Mazes

Os agricultores de Mazes continuam a ir à Anta apanhar feno. À esquerda, Iria dirige-se à casa onde viveu 20 anos sozinha com a mãe. A casa !ica na zona mais alta da Anta. No plano anterior, Iria Joaquina com a mãe, Joaquina Brízida, na casa onde esta vive hoje, em Mazes

e nas aldeias vizinhas, me haviam descrito o mesmo. Em muitas alturas, principalmente no Inverno, a sopa que se comia era água quen-te sem nada. Por vezes com umas migalhas de pão.

Tal dimensão da pobreza é difícil de con-ceber. Olhando a terra imensa em redor, co-berta de vegetação, como acreditar que não houvesse uma couve ou uma batata para pôr na sopa? A verdade é que todos os pedaços de terra tinham dono, e aos pobres não cabia na-da. Os recursos eram escassos, a sobrevivência uma luta. A pobreza absoluta é um conceito que nos escapa.

“Era tudo tão diferente”, disse Fortunato, olhando a paisagem. “Não havia carros, nem estradas. Eu ia a pé, ali, a Pretarouca, para trabalhar. Havia dias que junto à água nem conseguia andar, com o vento e a chuva. Ou ia ali, depois do rio, por trás daquele mon-te, a Várzea, à feira. Levava uma hora.” As distâncias mediam-se assim, pelo tempo e as difi culdades que levava a percorrê-las a pé. E a geografi a aprendia-se, não com mapas, mas com a memória do esforço e do sofri-mento.

Como as mnemónicas de Zora, uma das ci-dades invisíveis de Italo Calvino. Lembrei-me disso enquanto percorria as ruas silenciosas de Lalim, Meijinhos ou Pretarouca. “O homem que sabe de cor como é Zora, nas noites em que não consegue dormir imagina que anda pelas ruas e recorda a ordem em que se suce-dem o relógio de cobre, o toldo às riscas do barbeiro, o repuxo dos nove esguichos, a torre

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de vidro do astrónomo, o quiosque do ven-dedor de melancias…”, escreveu Calvino. E essa ordem de “fi guras que se sucedem como numa partitura musical em que não se pode mudar ou deslocar nenhuma nota” funciona como uma referência para a memória. Através dela é possível recordar nomes de homens ilustres, virtudes, números, datas de batalhas, constelações. Tudo o precisemos de saber. “E assim é de maneira tal que os homens mais sábios do mundo são os que conhecem Zora de cor.”

Também aqui, saber de cor esta paisagem de carvalhos, salgueiros, amieiros e freixos debruçados na água entre penedos, as serras de giestas e as extensões de penugem azul do capim-mimoso sobrevoadas por águias e mi-lhafres terá feito os homens sábios.

Embora hoje tudo isso seja um mundo per-dido, do qual o facto mais extraordinário é podermos ainda falar com um sobrevivente. Fortunato tem 70 anos. Há 50, aqui, estáva-mos na Idade Média. É verdade que as coisas mudaram e igualmente verdade que não mu-daram. De tão imutável, esta terra tornou-se insignifi cante. Tal como Zora, que “obrigada a permanecer imóvel e igual a si própria para melhor ser recordada, estagnou, desfez-se e desapareceu. A Terra esqueceu-a”.

A paisagem ainda é deslumbrante, mas sofreu uma estranha mutação. As estradas parecem ter sido construídas para que mais facilmente se pudesse fugir, deixando um horizonte de solidão, habitado apenas pelos monstros brancos dos parques eólicos e as

ovelhas tosquiadas e cinzentas do roço nos arbustos sobreviventes dos incêndios.

Em Abril deste ano decidi telefonar a Luísa, mais uma vez. Não que ti-vesse grandes esperanças de en-contrar Iria, mas por rotina de consciência. Provavelmente para reavivar a pequena emoção de me confrontar com o incrível — ela não vai ver a mãe, ninguém a conhece, é uma mulher que nasceu no nada e desapareceu no nada.

Mas Luísa respondeu com naturalidade: “Por acaso ela está cá na aldeia. Venha.”

Parti para o Norte. Cortei para Viseu, che-guei a Lamego, apanhei, em grande ansiedade, a estrada para Moimenta, a seguir a Britiande enveredei por Lalim, Lazarim, Mazes. Depois do café Lua de Mel, subi a rua íngreme da al-deia, virei à esquerda no beco quase a pique onde Joaquina tem a sua casa.

Iria esperava-me. Uma mulher alta, magra e jovial, de nariz fi no e olhos irrequietos. “Sei que andava à minha procura”, disse ela. For-neceu umas explicações sobre a confusão de telemóveis e moradas, fez com que tudo pa-recesse normal. E ali estava ela, sem nada de enigmático, e com tempo para conversar.

Contou-me que vive no Alentejo, com uma das fi lhas. Tem outra, mais velha, e no meio um rapaz. Todos eles lhe deram netos, seis ao todo. Nasceu na aldeia da Anta e, depois de terem morrido a avó e a tia, viveu lá sozinha com a mãe até aos 19 anos. Foi nessa altura que

teve, também ela, uma fi lha, Leonor. Joaquina comprou então a casa em Mazes e fi cou lá a viver com a neta. Iria foi para Lisboa, servir numa casa. Só mais tarde viria buscar a fi lha. Teve vários trabalhos, casou-se, nasceram-lhe mais dois fi lhos, mudou-se para o Alentejo. Divorciou-se.

Além de empregada doméstica, trabalhou em fábricas, foi pastora de ovelhas e cabras, tal como fazia em criança, na Anta. Foi uma vida difícil, mas aprendeu muito, contou-me ela. Está satisfeita. Quer falar sobre tudo, com muitos pormenores, menos daquilo que mais me interessa: a vida na Anta. É o único perí-odo que não quer recordar. Não vê nesga de romantismo nesses anos que viveu sozinha na montanha. Por isso não gosta de voltar lá, e a Mazes vem apenas para visitar a mãe.

“Foi uma vida má, lá em cima. Passei muito frio e fome. E medo. Só tenho más recorda-ções. Estávamos isoladas, não sabíamos nada. Tudo o que aprendi foi depois de chegar a Lis-boa. Aprendi tanta coisa. Logo nos primeiros dias a patroa mandou-me à rua comprar 250 gramas de esparguete. Eu fi quei a olhar para ela. Não sabia o que era esparguete.”

Após horas de conversa, combinámos ir à Anta no dia seguinte. Há um caminho até lá, desde Mazes, que agora é possível percorrer de carro. Passámos o dia na aldeia abando-nada. Dois meses depois, voltámos com o fotógrafo Manuel Roberto, para mais um dia inteiro de caminhadas, reconstituição do pas-sado e deslumbramento.

Na Anta, todos os lugares têm nome. O Cabo

Tal como no tempo de Iria, crianças continuam a apascentar ovelhas nos montes em redor da aldeia. Diz Iria: “Fiquei viva, sabe-se lá porquê”, recordando a sua infância na Anta. No plano seguinte, a Eira do Meio da Anta. Na aldeia, todos os lugares têm um nome e uma função

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da Anta, o Meio da Anta, o Fundo da Anta. A rua do Cabo da Anta segue até à Fonte da Anta, de onde brota água fresca e límpida. Era ali que Iria enchia o regador e as panelas, para beber, cozinhar e tomar banho (agora debruça-se para limpar as ervas à volta da boca da fonte, para garantir que o jacto se mantém limpo). Na Tapada da Anta há outra fonte, também de água potável. Mas a do rio, que nasce na Cruz (onde Iria costumava apa-nhar ervas para os coelhos), também se podia beber, junto à Ponte das Traves, em frente aos Tojos da Ponte. Tal como a dos dois ribeiros que rompem das Botelhas.

Não há um lugar da aldeia ou arredores que não tenha nome. O Caminho da Furna, as Poldras da Vargem, o Fundo da Quelha, o Salvadorinho, a Cabeça de Pedras Moles, o Forno da Chamusca, do alto do qual se avista Colo do Pito. E função. No Meio da Anta fi ca a eira onde se malhava o centeio. Pela Ponte das Traves passava-se o gado que ia pastar para o lado do Castelo e do Sabugueiro, outras povoações também já abandonadas quando Iria aqui viveu, na encosta do monte para lá do qual se situa Ribabelide.

Há várias eiras e cada uma tinha a sua es-pecialidade. Por umas podia-se passar, por outras não, como a Eira dos Galegos, cujos donos se mantinham ciosos da propriedade, apesar de já não viverem na aldeia. A Eira do Curral também era interdita. Eira da Fonte, sem problemas. O mesmo com a Eira da Var-gem e a Eira do Meio da Anta.

As casas da Anta são todas de pedra. Umas

mantêm o telhado de colmo, outras foram posteriormente cobertas de telhas ou de zin-co. As ruas são de terra ou pedras. Algumas parecem túneis cavados na rocha, onde ainda são visíveis as marcas da passagem dos carros de bois. A aldeia está construída no cimo do monte, a cujos acidentes naturais obedece, em disposição e arquitectura. As habitações situam-se em diferentes níveis, e entre elas há promontórios, vales, encostas e declives.

Algumas casas estão construídas junto a um penedo, que aproveitam como parede. Não têm janelas nem chaminés. Mas têm cozinhas. O fumo das lareiras fi cava em casa até se dissi-par lentamente pelas frestas das pedras.

Quando Iria aqui viveu nenhuma casa estava habitada. Mas to-das tinham dono. “Aquela é da Margarida Batoco, que está em França. Aquela do Zé Capador. Aquela da Ti Maria Rita. Esta grande era do Zé Marcelino. Ali o Maximino, a Celestina, o Fran-cisco Abel, o João Terezo, o José Peixota, o Domingos da Antónia, a Agostina Galego.”

Não morava aqui ninguém, mas as casas ti-nham nomes e histórias. Era como se a aldeia vivesse, mas em estado fantasma.

Mal chegou à Anta, Iria pareceu transfor-mar-se numa criança. Dantes nunca tinha tempo para brincar. “Por isso faço-o agora”, explicou ela. Empoleira-se nas pedras, desce a correr a rampa da Ponte das Traves, espreita

para o interior de cada uma das casas agora esburacadas, ou sem telhado. Comporta-se como se fosse a rainha da aldeia. Conhece ca-da centímetro daquele chão, de que agora se reconhece dona e onde pela primeira vez se sente livre. Vê-se que tem uma ligação íntima e inescrutável com as pedras, as árvores e as giestas.

É isso que lhe apetece mostrar e explorar, numa vertigem de triunfo sobre o passado. Mas o que eu quero é levá-la a casa. À sua casa, onde viveu com a avó e a mãe, depois apenas com a mãe, Joaquina.

A casa, que se situa na zona mais alta da Anta, ainda lhes pertence, e Iria traz a chave. Percebo que deixou de sorrir, no momento em que fi ca de costas para mim e de frente para a porta. Abre-a com um empurrão.

Estamos aqui fi nalmente. A casa de Iria. O primeiro choque é a dimensão. Tem uns se-te ou oito metros quadrados de área e uma divisão única. Quando habituamos os olhos ao escuro, distinguimos o lugar onde foi a la-reira, uma espécie de prateleira na parede, coberta com um oleado, alguns objectos — um crucifi xo de madeira, muito tosco, uma foice, uma cesta de verga, uma balança, um tinteiro antigo.

Iria conta como viviam. Em frente, encos-tada à parede, fi cava a cama, uma espécie de berço de tábuas pregadas ao chão, com um metro de largura. Ali dormiam as três mulhe-res, com a seguinte disposição: Iria e a avó com a cabeça para o lado da lareira, a mãe no sentido oposto. Era a única forma de caberem

ali, aconchegadas umas contra as outras para se protegerem do frio, com palha de feno por baixo dos corpos e serapilheira de sacos de batatas por cima. Levavam ovelhas a pastar, mas não tinham uma manta de lã.

Ao lado da cama estava a arca do milho, so-bre a qual colocavam as roupas que despiam à noite. Quando tinham batatas, guardavam-nas debaixo da cama. A parede oposta era a lareira. Sobre a cavidade onde se colocavam as panelas de ferro ao lume existe ainda a pilheira, uma laje que impedia o fogo de atingir o colmo do te-lhado. Por baixo colocava-se a lenha, e do lado direito é visível o buraco nas tábuas do soalho por onde se deitavam, para o piso inferior — a loja — os restos de comida aos coelhos, quando os havia. Do lado direito tinham colocado um ramo de amieiro, sem folhas, que servia para pendurar os tachos e panelas.

“Esta cozinha era maravilhosa”, deixa esca-par Iria. Com as mãos, procura algo entre o lixo que enche o fosso da lareira. Retira uma pedra pequena e arredondada. “Isto era a mi-nha ‘cadeira’. Onde eu me sentava.”

Mostra os vários objectos e explica para que serviam. A cesta de apanhar azeitonas, a lan-terna de petróleo. Havia um alguidar de zinco para tomar banho. A vassoura consistia num ramo de giestas apanhadas no monte. Com um caule torcido fazia-se o atilho que mantinha o feixe unido. Após cortadas as pontas com a foice, o ramo era colocado a secar debaixo de uma pedra, para assumir a forma achatada.

Tudo era obtido desta forma, com mate-riais apanhados nos montes. Não havia lojas,

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nem dinheiro. A roupa de Iria era oferecida por gente caridosa, de Mazes. Sempre usou saias, quer fosse à missa ao domingo, em Ma-zes (levantavam-se às 5 da manhã e seguiam a pé para a Igreja, ainda de noite, iluminando o caminho com uma tocha feita de giestas), quer fosse apascentar as ovelhas. E tranças, que a mãe fazia. Nos pés trazia tamancos. Era um luxo, mas seria impossível andar descalça pelos montes pedregosos. Como não tinham dinheiro, colhiam um pedaço de madeira de amieiro, que levavam a um sapateiro de Vale Abrigoso. Ele, que era da família, fazia, a partir do amieiro, os tamancos de graça, por medi-da, após contornar com um lápis o pé de Iria, colocado sobre uma folha de papel.

Tento imaginar aquela menina que, há 50 anos, levava todos os dias, do nascer ao pôr do Sol, um rebanho de ovelhas e cabras para os montes. E tento imaginar a rapariga de 17 ou 18 anos vivendo sozinha naquele cárcere de pedra. Obviamente não há fotografi as da época, e ela diz apenas que era magra como um pa-lito, devido à fome que passava.

Não tinham nada. Os animais não lhes per-tenciam, nem sequer a lã com que Joaquina tricotava meias e camisolas. Os clientes de aldeias vizinhas forneciam a matéria-prima, ela a mão-de-obra, mediante um pagamento irrisório, em batatas ou feijão.

Em tempo de fartura, era isso que se mistu-rava na sopa que comiam duas vezes por dia. Quando havia milho, moíam e coziam pão, no forno da casa da tia, enquanto ela foi viva. Desde que houvesse lenha seca. Se não havia, comiam o milho em papas. No Inverno, as mulheres chegavam a dormir com giestas na cama, para depois fazerem lume e aquece-rem sopa. Que muitas vezes era apenas água. Talvez com um pouco de pão misturado. Ou quatro feijões e uma folha de couve. Ou labres-tos, uma erva que cresce nos montes. Joaquina habituou-se a comer sopa de urtigas.

E Iria lembra-se de, nos meses de Inverno, escavar na neve para tentar colher algum ve-getal para comer. Uma couve, ou mesmo uma urtiga, mas não encontrar nada, chegar a casa de mãos vazias.

Nesses períodos, o frio era tanto que fi ca-vam em casa todo o dia, na escuridão, agarra-das uma à outra a tremer. Não conseguiam ir trabalhar e por isso não ganhavam nada.

Depois da morte da avó, quando Iria tinha cinco anos, mãe e fi lha fi caram completa-mente sozinhas na aldeia. Alguns pastores passavam lá durante o dia e deixavam o gado guardado nas casas, à noite, o que começou a despertar o interesse dos ladrões da região. Os assaltos tornaram-se frequentes e Joaquina passava noites sem dormir, atenta a todos os ruídos, paralisada de medo. Não tinha nada que lhe pudessem roubar, mas temia que lhe viessem perguntar em que casas se abrigava o melhor gado.

Depois do frio e da fome, o medo juntava-se à família. Além dos ladrões, havia os lobos. No Inverno andavam famintos e rondavam a aldeia, farejando as ovelhas abrigadas sob as frágeis construções de pedra.

Joaquina e Iria habituaram-se a conviver com eles, e até, quando necessário, a lutar. Iria lembra-se de ver a mãe, um dia, correr como louca na direcção de um lobo que ata-cava uma das ovelhas. “Ah cão! Larga cão!”, gritava ela, franzina e baixinha, agarrando a ovelha que o lobo já abocanhava no fl anco. Puxaram cada um para seu lado, ela e o lobo, rasgando a carne da borrega, num combate ruidoso e sanguinário de dois animais ferozes. Joaquina venceu.

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Era assim o mundo delas, selvagem e mor-tífero. Uma tarde, enquanto dormiam a sesta, ouviram um estrondo, uma espécie de explo-são numa casa ali perto. Tinha-se levantado uma trovoada súbita e violenta e um raio atin-gira o edifício, lançando-lhe o fogo. Joaquina correu para lá, mas não conseguiu impedir que os cabritos que se encontravam no inte-rior morressem carbonizados.

Se no Inverno o frio e a neve impediam que se saísse de casa, no Verão não se podia lá es-tar. O calor era tanto, que Joaquina e Iria dor-miam à porta, do lado de fora. Iria gostava da sensação de acordar ali. “Levantava-me para ver o sol nascer”, recorda. “Ficava a ver ele chegar, devagarinho, muito vermelhinho.”

Como estava sozinha na aldeia da Anta, Iria não tinha amigas nem amigos. Não conhecia ninguém, excepto os outros pastores que por vezes atravessavam, fugazmente, a Anta, o Castelo ou o Sabuguei-ro. Além de Joaquina, ninguém lhe ensinou nada. Durante mui-tos anos, Iria não sabia o que era música. Não tinham rádio, nem

havia electricidade na aldeia. Apenas ouvia a mãe cantar. “Olha a chibinha, mé mé mé, olha a chibinha, não se sabe de quem ela é.”

É notório que Iria gosta de conversar. Com quem o fazia, quando vivia na Anta? Falava com a mãe, à noite, mas apenas sobre o tra-balho. Onde levar o gado, que terra se ia aju-dar a lavrar.

De dia falava com as ovelhas e as cabras. Atribuía um nome a cada uma. A Raposa, a Bonita, a Morgadinha, a Vermelhinha. Estas eram as ovelhas. As cabras chamavam-se Cor-nuda, Pretinha, Mocha.

Iria brincava com elas. “Anda cá Raposa!” Mostrava-lhes as roupas que estava a confec-cionar, a malha que tricotava com giestas, com os gestos hábeis da costureira que sonha vir a ser um dia.

Fazia roupa para a boneca de cartão pintado e arame que a tia Piedade lhe oferecera antes de

morrer. Trazia-a sempre consigo, no cestinho das azeitonas. Como era o único brinquedo, não tinha nome, ao contrário das ovelhas. Era apenas “a boneca”. Começou a desfazer-se, pri-meiro nos pés. Depois despontou-lhe o arame debaixo dos braços. Mas sobreviveu, em situa-ção de farrapo, enquanto Iria morou na Anta.

Outra brincadeira eram os estalos com mar-cavalos. Os montes estão repletos dessa fl or roxa que nasce em cachos rasteiros ao chão. Iria arranca uma para exemplifi car. Aperta com os dedos a base aberta do pequeno cone da fl or e faz rebentar contra a outra mão, com um estalo, o ar comprimido no interior. “Fazí-amos assim na testa das pessoas. Toma!”

Mas que pessoas, Iria? Não havia aqui mais ninguém. “Pois não. Mas eu fazia assim”, ad-mite ela, rebentando o marcavalo na sua pró-pria testa. “Toma!”

Iria não esteve sempre sozinha na Anta. A mãe teve mais dois fi lhos, um a seguir ao ou-tro, com um intervalo de três anos. O António e o João. Como não podia deixar de trabalhar,

Joaquina Brízida no seu quarto, em Mazes, onde hoje vive. Na casa da Anta (em baixo), o cesto das azeitonas, onde Iria levava a boneca de cartão pintado para o monte, o seu único brinquedo

Iria fi cava a tomar conta deles. À hora de ma-mar, levava-os a Joaquina, que andava a cavar terra pelas aldeias vizinhas.

Mas os dois bebés não se desenvolveram. Não cresciam, nunca aprenderam a falar nem a andar. Iria não compreende porque aconte-ceu assim. Talvez porque a mãe trabalhasse violentamente, carregando pesos às costas, enquanto esteve grávida. Não havia médicos a quem pedir ajuda. Joaquina chegou a ir ao dispensário de Lamego. Disseram-lhe que não se preocupasse, que era tudo normal.

Um a seguir ao outro, os dois bebés tiveram vidas semelhantes. Gatinhavam, não ingeriam qualquer alimento para além do leite materno. Nenhum deles alguma vez se conseguiu pôr de pé. “Nunca comeram nada deste mundo”, diz Iria. Nenhum sobreviveu. João nasceu logo a seguir a António ter morrido, aos três anos, e morreria também com três anos de idade. De tudo isto, Iria apenas acha surpreendente a sua própria sobrevivência. Porque não mor-reu ela também?

Diz isto sem qualquer emoção aparente, deixando a seguir actuar o silêncio, o assobio da brisa que lhe levanta os cabelos grisalhos, varre toda a paisagem de veludo, de um verde que é ao mesmo tempo azul, as ruínas das ca-sas abandonadas, as árvores espalhadas pelos montes como seres humanos cambaleantes, as ventoinhas brancas da energia eólica mon-tando guarda a toda a volta.

A paisagem tem a majestade de um mar imenso dançando no horizonte, mas é eté-rea e suspensa. A vida aqui parece ser mais bem-sucedida nas suas formas rasteiras. Os grilos, as cigarras, as vespas, as cobras e os sardões movimentam-se freneticamente ao nível do solo. O cheiro sensual do feno atrai para a terra e até os milhafres seguem com os olhos as lebres que se enfi am nas tocas.

Depois dos seis anos, Iria passou a ir todos os dias à escola, em Mazes. Comia a sopa de água de manhã e caminhava monte abaixo, cheia de medo dos lobos. Houve uma professora que, ao vê-la esfome-ada, lhe oferecia uma merenda. E até quis levá-la para casa. Mas Joaquina não deixou. Mais tarde, permitiu que fosse trabalhar para

outra aldeia, mas não por muito tempo.Um dia, tinha Iria dez anos, apareceu na

Anta um homem a cavalo. “A senhora chama-se Joaquina?”, perguntou. “Disseram-me que tem aqui uma rapariga para trabalhar.”

“Tenho, mas só se ela quiser”, respondeu Joaquina.

“Tenho lá três meninos para tomar conta”, disse o homem, que se chamava Hermínio. Iria montou logo ali no cavalo e partiu com ele. Seguiram até Meijinhos, onde o Hermínio visitou os pais, lancharam e continuaram para Moimentinha.

O trabalho consistia em cuidar das crianças de um e dois anos, e quando elas adormeciam, apanhar batatas. Mas Iria gostava, porque lhe deram roupas novas e porque na casa havia um rádio. Mas um ano depois, no dia da festa da Senhora dos Remédios, uns conhecidos de Mazes passaram por lá e viram-na a cavar a vinha. Vieram contar a Joaquina, que mandou buscar a fi lha.

Um mês depois, já estava a trabalhar nas vindimas, na Quinta da Carvalha, uma das propriedades produtoras de vinho do Porto, junto ao Pinhão. Dormia no chão, com uma manta, num barracão juntamente com cente-nas de mulheres e crianças da sua idade. Só de Mazes havia ali a trabalhar umas 12 meninas de 10 ou 11 anos.

Levantavam-se antes do nascer do Sol, para

acartar uva. Três vezes por dia, comiam sopa e sardinha de barrica. Eram uns peixes mi-núsculos, achatados, sem cabeça, salgados e amarelos. Iria nunca tinha comido tão bem.

Eram trabalhos sazonais, que começou a aceitar, em várias regiões. A mãe também o fa-zia, embora com a sua idade já só a quisessem para cavar batatas e milho. Tinha de laborar muitas horas, porque o trabalho de uma mu-lher apenas valia metade do de um homem. Iria ganhava uma média de 3$50 por dia, que entregava na totalidade à mãe.

Por vezes iam a terra distantes, como Castro Daire, buscar ou entregar trabalhos de lã. Iam quase sempre a pé, porque não tinham dinhei-ro para a camioneta. Custava 25 tostões. Uma vez Iria entrou no veículo com apenas dois escudos no bolso. O revisor queria expulsá-la, mas os outros passageiros tiveram pena e angariaram os 5 tostões em falta.

Quando chegava a noite, batiam à porta de uma casa e pediam dormida. Geralmente deixavam-nas fi car no palheiro.

Aos 15 anos, Iria teve o primeiro na-morado. Era um rapaz de Mazes, dois anos mais velho e oriundo de uma família rica, pois tinha vinho e duas vacas.

Quando engravidou, Iria não disse a ninguém. Até ao último mês, nem a mãe nem o namorado souberam. Depois, fi cou sozinha. A família dele não o deixou casar,

por Iria ser pobre. Era a fi lha da Joaquina da Anta. Disseram que o fi lho não era dele.

O rapaz ainda veio ter com Iria ao meio do monte, onde ela estava com as ovelhas e Le-onor, de oito meses, ao colo. Era para trocar as cartas, como era costume fazer-se quando se terminava o namoro. E desapareceu.

Mal chegou à Anta, Iria pareceu transformar-se numa criança. Dantes nunca tinha tempo para brincar. “Por isso faço-o agora.” Empoleira-se nas pedras, espreita para o interior das casas esburacadas. Conhece cada centímetro daquele chão, de que agora se reconhece dona e onde pela primeira vez se sente livre

Foi nessa altura que Joaquina comprou a casa em Mazes, o Iria foi para Lisboa. Leonor viveu com a avó durante seis anos.

Iria foi servir numa casa do Restelo. Era um casal rico. Tinham um Mercedes preto e uma carrete com cavalo. Iria tinha de usar farda e ganhava mil escudos por mês. Era passar de um mundo para outro. As suas funções incluíam limpar as casas de banho, limpar e engraxar os sapatos do senhor, levar a rou-pa ao quarto e o pequeno-almoço à cama do casal.

À hora do pequeno-almoço a senhora toca-va à campainha. Iria entrava, abria a janela, retirava, de uma prateleira do guarda-fatos, o tripé do tabuleiro. Então o senhor desviava uma perna para a direita, a senhora uma pa-ra a esquerda, para que Iria colocasse entre eles o tabuleiro com as vitualhas. O senhor não comia torradas, porque tinha nojo das mãos das empregadas da cozinha. Pedia a Iria a roupa que pretendia. Todas as peças tinham nomes. “Iria, traz-me o fato cinzento Picpic.” À noite, Iria mudava de farda, para servir o jantar. O senhor só comia peixe gre-lhado e fruta.

Dali, Iria foi para outra casa, depois para uma fábrica de bolachas. Namorou sete anos com um homem, casou-se com ele. Mudou-se para Pavia, depois para a região de Abrantes, depois para a de Montemor-o-Novo. Voltou a pastorear ovelhas. Chegou a ter mil ao seu cuidado.

Tentou levar a mãe para sua casa, mas ela não se deu bem. Regressou a Mazes. Conhe-ceu um viúvo e casou-se, mas ele morreu logo a seguir.

Já depois da minha primeira visita, arranjou um namorado em Mazes. Foi viver com ele. Tratava-lhe da roupa e da comida, mas estava feliz. Visitei-a nessa altura em que, já quase

com 90 anos, terá vivido pela primeira vez um amor, e achei-a uns 20 anos mais nova.

Mas depois os fi lhos do namorado acharam por bem levá-lo para casa de um deles, em Lis-boa. Como ele, em protesto, tivesse deixado de comer, devolveram-no à Anta. Pediram a Iria que deixasse a mãe voltar para casa dele. Iria não quis que a mãe fosse, naquela idade, escrava de um homem. Não permitiu. Leva-ram-no de novo, desta vez para um lar. Ele voltou ao jejum de protesto e morreu.

Fui várias vezes a Mazes visitar Joaquina. Tornei-me amigo dela, mas não escondo que me faltava a resposta a uma pergunta, e era essa dúvida que por vezes me arrastava até às aldeias de Lamego.

Porque abandonaram Joaquina na Anta? Nem ela nem Iria alguma vez me responde-ram. Foram os vizinhos de Mazes que aos pou-cos desvendaram o mistério. Ela não tinha família cá em baixo, diziam. E eu perguntava: e o marido dela? A Joaquina? Nunca teve ma-rido, riam-se as vizinhas.

A resposta, vim a perceber, estava aí. Joa-quina foi votada ao ostracismo por ser mãe solteira. Era vista como uma mulher fácil para os homens e uma ameaça para as mulheres. Foi por isso mais cómodo para todos deixá-la sozinha na Anta, afastada da comunidade. Acontecera o mesmo com a irmã Piedade e viria a acontecer com Iria, se ela não tivesse desaparecido para o Sul.

Era assim Portugal há 50 anos. Hoje, Iria é um prodígio de sobrevivência e triunfo. Apenas não gosta de neve nem de fumo, em-bora não explique a ninguém porquê. Aos 64 anos, é uma mulher completa com uma mácula no seu passado. Não lhe perguntem de onde vem, porque decerto todos percor-remos o mesmo caminho, largo de mais para uma mulher sozinha.