deleuze-a pluralidade metafísica. rui magalhães

14
Título Deleuze: a pluralidade metafísica. Sobre Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, Relógio d’Água, Lisboa, 2001 Autor Rui Magalhães Keywords Deleuze Diferença Repetição Ontologia Origem Publicado originalmente em Ciberkiosk, 2001 Referência http://sweet.ua.pt~f660\docs\Deleuze_DR.pdf Rui Magalhães – Uso livre, indicando a fonte 1. Um século deleuziano Diferença e Repetição, como Logique du Sens, coloca-nos simultaneamente perante aquele que é não tanto o tema maior [1] mas a questão imperceptível de toda a filosofia desde Nietzsche: a dificuldade de pensar [2] e perante uma das mais radicais tentativas de pensar do nosso tempo. Diferença e Repetição, a mais sistemática das obras de Deleuze, é, também, um dos grandes livros de metafísica do século XX, só comparável a Ser e Tempo, ou ao Tractatus. Na realidade o século nunca poderia ser, por exemplo, benjaminiano e, neste sentido, tem razão Foucault quando escreve que um dia que talvez o século seja deleuziano. Independentemente das razões porque o fez e da confirmação ou não da sua previsão, o facto é que Foucault exprimiu, indirectamente, nesta frase, uma das tragédias essenciais da filosofia: o que marca os séculos filosóficos não é tanto o pensamento como as metafísicas [3], as imagens. E neste sentido, a obra de Deleuze reúne todas as condições para dar o nome a um século. Diferença e Repetição é, por um lado, como o próprio autor reconhece, um livro marcado pelo «ar do tempo» (p. 35); por outro é uma metafísica que vai buscar muita da sua inspiração à matemática (como Platão), à filosofia matemática de Leibniz e a G. Simondin. Neste aspecto constitui mais uma metafísica, a par de todas as que a filosofia ocidental foi produzindo. A tese central de Diferença e Repetição é a de que se há repetição não pode ser do mesmo porque no próprio acto de repetir se introduz a diferença. Isto implica que, no lugar do Mesmo, se instala, agora, a diferença. Uma diferença que não é apenas uma diferença específica, isto é, uma diferença conceptual (subsumível, por conseguinte, no Mesmo ou no Uno), mas uma diferença livre, que não remete nem supõe qualquer identidade de que ela seria ainda uma forma. Na tradição metafísica, a alternativa à 1

Upload: joao-petrus

Post on 14-Nov-2015

213 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

.

TRANSCRIPT

  • Ttulo Deleuze: a pluralidade metafsica. Sobre Gilles Deleuze, Diferena e Repetio, Relgio dgua, Lisboa, 2001

    Autor Rui MagalhesKeywords Deleuze Diferena Repetio OntologiaOrigem Publicado originalmente em Ciberkiosk, 2001Referncia http://sweet.ua.pt~f660\docs\Deleuze_DR.pdfRui Magalhes Uso livre, indicando a fonte

    1. Um sculo deleuziano

    Diferena e Repetio, como Logique du Sens, coloca-nos simultaneamente perante aquele que no tanto o tema maior [1] mas a questo imperceptvel de toda a filosofia desde Nietzsche: a dificuldade de pensar [2] e perante uma das mais radicais tentativas de pensar do nosso tempo.

    Diferena e Repetio, a mais sistemtica das obras de Deleuze, , tambm, um dos grandes livros de metafsica do sculo XX, s comparvel a Ser e Tempo, ou ao Tractatus. Na realidade o sculo nunca poderia ser, por exemplo, benjaminiano e, neste sentido, tem razo Foucault quando escreve que um dia que talvez o sculo seja deleuziano. Independentemente das razes porque o fez e da confirmao ou no da sua previso, o facto que Foucault exprimiu, indirectamente, nesta frase, uma das tragdias essenciais da filosofia: o que marca os sculos filosficos no tanto o pensamento como as metafsicas [3], as imagens. E neste sentido, a obra de Deleuze rene todas as condies para dar o nome a um sculo.

    Diferena e Repetio , por um lado, como o prprio autor reconhece, um livro marcado pelo ar do tempo (p. 35); por outro uma metafsica que vai buscar muita da sua inspirao matemtica (como Plato), filosofia matemtica de Leibniz e a G. Simondin. Neste aspecto constitui mais uma metafsica, a par de todas as que a filosofia ocidental foi produzindo.

    A tese central de Diferena e Repetio a de que se h repetio no pode ser do mesmo porque no prprio acto de repetir se introduz a diferena. Isto implica que, no lugar do Mesmo, se instala, agora, a diferena. Uma diferena que no apenas uma diferena especfica, isto , uma diferena conceptual (subsumvel, por conseguinte, no Mesmo ou no Uno), mas uma diferena livre, que no remete nem supe qualquer identidade de que ela seria ainda uma forma. Na tradio metafsica, a alternativa

    1

  • identidade e, por conseguinte, o pensamento da diferena equivale a pensar esta como um abismo indiferenciado (...) onde tudo dissolvido. Ora, Deleuze considera que no a diferena que supe a oposio, mas a oposio que supe a diferena (DR, p. 115). O projecto deleuziano consiste, ento, em arrancar a diferena ao seu estado de maldio (DR, p. 83), encontrando uma alternativa, simultaneamente, ao primado da identidade e diferena como indiferenciado.

    Este estado de maldio o modo prprio como a metafsica pensa a diferena, desde Plato. De Plato a Aristteles d-se a consolidao da reduo da diferena e o advento da representao como base de todo o pensamento. Platonismo e aristotelismo constituem duas verses de uma mesma metafsica do idntico: Plato uma verso moral (explicitada por Deleuze no combate entre o simulacro e a cpia) e Aristteles uma verso onto-lgica, consubstanciada na doutrina das categorias.

    O que est em questo, quer na doutrina platnica da cpia e do simulacro quer na doutrina aristotlica das categorias, a legitimidade. Uma legitimidade fundada no Mesmo, porque se as categorias so categorias do ser, a cpia , em relao ao simulacro, o nico pretendente legal verdade. Pensar ser ento, seguir as categorias que exprimem os modos legtimos de ser ou assumir-se como cpia do ser.

    Deleuze desenvolve uma inteiramente diferente concepo das ideias: As Ideias so multiplicidades; cada Ideia uma multiplicidade, uma variedade (DR, p. 303) e considera que a multiplicidade no deve designar uma combinao de mltiplo e uno, mas, pelo contrrio, uma organizao prpria do mltiplo como tal, que de modo nenhum tem necessidade da unidade para formar um sistema (Ibid).

    As Ideias no so, portanto representaes, mas antes movimentos de diferenciao: (...) a Ideia real sem ser actual, diferenada (diffrentie) sem ser diferenciada (diffrencie), completa sem ser inteira (DR, p. 307). Ou seja, as ideias so virtuais mas isso no significa que no so reais, mas apenas que ainda no so actuais.

    Sobre, por exemplo, a ideia de organismo, Deleuze, relembrando que Geoffroy Saint-Hilaire parece ter sido o primeiro a reclamar a considerao de elementos que chama abstractos, tomados independentemente das suas formas e das suas funes (DR, p. 239) escreve o seguinte: so estas relaes diferenciais (Diffrentiels) entre elementos anatmicos puros que se incarnam nas diversas figuras animais, os diversos rgos e as suas funes (ibid). Neste sentido, as identidades, isto , os organismos, seriam uma espcie de iluso que ofuscaria inteiramente, a realidade das diferenas.

    2

  • Atravs deste modo de entender a Ideia, entramos, pela mo inspiradora de Gilbert Simondon, num espao virtual que Deleuze ir desenvolver, sob formas ligeiramente diferentes ao longo de toda a sua obra, e a que, em Diferena e Repetio e em Lgica do Sentido, chama campo transcendental. O campo transcendental , por conseguinte, o espao especfico das Ideias, ou melhor, da gnese das ideias.

    Deste modo, Deleuze ope a um universo extensivo, constitudo por coisas e representaes, por identidades e diferenas referidas a uma identidade, um universo intensivo, constitudo por singularidades pr-individuais.

    Mas -- e este outro dos temas essenciais do pensamento deleuziano -- entre estas singularidades pr-individuais e os indivduos no se estabelece uma relao de possibilidade, ou seja, os indivduos no so a actualizao de um possvel mas de um virtual.

    De alguma forma se poderia, ento, dizer que a sua grande questo propriamente terica , precisamente, a da gnese e da actualizao, no sob a forma da passagem do possvel ao actual, mas do virtual ao actual. a que reside, talvez, a sua diferena em relao metafsica tradicional.

    Mas, em termos concretos, em que consiste esta diferena? Em que que ela pode alargar o mbito da nossa experincia, limitada na metafsica tradicional, pela passagem do possvel ao actual? Quais os domnios em que esta diferena pode ser interventiva? Em suma: porqu e de que modo esta ideia nos pode ajudar a pensar o impensvel no quadro da metafsica (isto : o excessivamente estranho ou o demasido bvio)?

    2. O que quer Deleuze: o modo deleuziano da crtica

    A histria da crtica moderna corresponde constituio retrospectiva de um modo de pensamento de que, por exemplo, Hegel nos deu, simultaneamente a histria e a lgica.

    Tambm Heidegger no escapou perspectiva histrica e a partir dela e no seu interior que faz desenrolar perante ns as peripcias da histria do ser e dela extrai um certo nmero de categorias que, supostamente, teriam a virtualidade de conferir uma nova orientao ao pensamento. De Ser e Tempo at Unterwegs zur Sprache, passando pelo Kant e o Problema da Metafsica, Heidegger vai delineando uma outra possibilidade de histria do ser, sublinhando nela as virtualidades ontolgicas do

    3

  • sentido (entendido maneira kantiana).

    Heidegger constitui, deste modo, uma histria da metafsica e a sua crtica sob a forma de uma destruio que pretendia constituir as condies para uma reassuno do esquecido da metafsica.

    Mas neste tipo de procedimento revelam-se as origens teolgicas do pensamento heideggeriano que, inclusivamente, o levam a incluir Nietzsche na Histria da metafsica, com o seu derradeiro avatar. Efectuando uma leitura parcial de Nietzsche que o impede de ver o esforo radical deste pensamento, lendo-o na sua totalidade luz do que nele o sistema da sua sustentao psicolgica (os seus mitos pessoais), Heidegger no foi capaz de apreender o que em Nietzsche escapava histria da metafsica.

    Com Deleuze, as coisas passam-se de modo diferente. Primeiro no se dedica a uma especfica tarefa de destruio, mas sublinha, na Histria da Metafsica, os momentos em que algo de vital conseguiu irromper como se pode verificar nos seus estudos sobre Hume, Kant, Nietzsche e Bergson; depois, no sucumbe tentao dialctica. Isso , talvez, o essencial que lhe abre as perspectivas exploradas sistematicamente nesses dois livros centrais e incontornveis que so DR e Logique du Sens.

    O que quer, ento, Deleuze? Retomando a inspirao nietzschiana, pretende libertar as foras positivas, libertar as foras da vida (lembremos que a primeira obra de Deleuze uma recolha de textos sobre Instintos e Instituies (1955); como Nietzsche, ultrapassar os limites do pensamento resultantes do modo metafsico de constituir os objectos ontolgicos. Diz Deleuze: pensar no um fio estendido entre um sujeito e um objecto, nem a revoluo de um em torno do outro (Quest-ce que la Philosophie?, p. 82).

    Pensar significou sempre, na tradio metafsica, uma anlise de representaes. A questo consistia no grau de profundidade dessa anlise, no ponto em que a anlise se iniciava e no modo como o sujeito procedia perante essas representaes. O ponto de partida era, necessariamente, o sujeito (ou, pelo menos, uma identidade), mesmo quando o sujeito no era, ainda, uma categoria epistemolgica. Com a filosofia moderna, passando esta categoria a ocupar o lugar privilegiado, o pensamento desenvolve-se como explorao directa das representaes presentes no sujeito; assim de Descartes a Husserl. Deleuze, no apenas discute a legitimidade deste lugar central ocupado pelo sujeito, como considera que caracterizar o pensamento como a relao

    4

  • entre um sujeito e um objecto significa reduzi-lo a um ponto de partida que no mais do que uma transposio do senso comum, do modo comum de experienciar os acontecimentos. Ou seja, Deleuze considera que todo o pensar se inicia num sistema pressuposto que o senso comum que assim actua, determinantemente, no apenas no empirismo, mas, igualmente, no racionalismo: O pressuposto implcito da filosofia acha-se no senso comum, como cogitatio natura universalis, a partir do qual a filosofia pode iniciar-se (prendre son dpart) (DR, p. 228). E um pouco adiante, acrescenta: neste sentido, o pensamento conceptual filosfico tem por pressuposto implcito uma imagem do pensamento pr-filosfica e natural, retirada do elemento puro do senso comum. (...) A esta imagem do pensamento podemos chamar imagem dogmtica ou ortodoxa, imagem moral (DR, p. 229).

    Ora, a filosofia moderna em nenhum momento corresponde a uma tal caracterizao. Nem em Descartes, nem em Kant. Tanto as Meditaes Metafsicas como a Crtica da Razo Pura partem do modelo da recognio que necessariamente compreendido na imagem do pensamento (DR, p. 232). Deleuze reconhece que a filosofia rompe com a doxa, que o elemento fundamental da imagem do pensamento: A imagem do pensamento no outra coisa do que a figura sob a qual universalizamos a doxa elevando-a ao nvel racional. Porm, permanecemos prisioneiros da doxa quando nos limitamos a abstrair o seu contedo emprico, mantendo o uso das faculdades que lhe correspondem e que retm, implicitamente, o essencial do contedo (DR, p. 233).

    Isto significa, todavia, que a filosofia rompe com a doxa, mas apenas com a doxa particular, conservando o essencial que a forma. Ora, se definirmos, como o faz Deleuze, a recognio como o exerccio concordante de todas as faculdades sobre um objecto suposto o mesmo (DR, p. 231), no h qualquer dvida de que o cogito constitui um princpio de recognio. E como efeito desse princpio que se constitui um dos topoi centrais da filosofia cartesiana: a simultnea constituio e recalcamento das duas instncias de pensamento: a razo e a experincia; a razo, como razo da experincia e esta, como domnio de exerccio da razo. Mesmo em Kant o espao transcendental constitudo imagem e semelhana do emprico.

    Contra este sistema de pensamento, Deleuze retoma a inspirao crtica moderna mas, essencialmente, para mostrar que ela essencialmente limitada, nunca se pondo a si mesma em questo, isto , no interrogando o seu ponto de partida. A questo torna-se, ento: em que reside a possibilidade crtica? Deleuze afirma que o que distingue uma filosofia crtica de uma filosofia no crtica reside no seu ponto de partida; em vez de se basear na imagem do pensamento, como o faz a filosofia no crtica, a filosofia crtica

    5

  • tomaria como ponto de partida uma crtica radical da imagem e dos postulados que ela implica. Ela encontraria a sua diferena ou o seu verdadeiro comeo, no num acordo com a imagem pr-filosfica, mas numa luta rigorosa contra a imagem, denunciada como no filosofia (DR, pp. 172-173).

    O nico caminho vivel da crtica consiste num recuo em relao ao universo da representao o que Kant havia pretendido mas no conseguira concretizar -- , penetrando num universo anterior s categorias e representao como forma de realizar o pensamento.

    Deleuze inspira-se, para trilhar este outro caminho, naturalmente em Kant, mas num kantismo pluralizado leibnizianamente com apoio no energtico bergsoniano e inspirado pela crtica nietzschiana. Inspira-se, igualmente, em discursos da literatura (que exprimem uma des-ordem) e da cincia (que exprimem uma outra ordem). A partir de tudo isso constri uma metafsica. certo, como sublinha Badiou (Deleuze, La Clameur de lEtre, p. 53), que Deleuze luta contra si prprio, mas preciso dizer que no vence essa luta.

    Se Deleuze afirma explicitamente que se comea sempre pelo meio (acerca dos comeos em filosofia), o facto que a sua ambio sempre a da origem, a de estabelecer (reconhecer?) as condies de gnese. Neste sentido, o seu projecto permanece kantiano (mas haver algum projecto filosfico actual no kantiano?). O mito de que a origem explicativa no est ausente deste monumental trabalho filosfico. O objectivo de Deleuze o de constituir um transcendental que no reconstitua a imagem do emprico.

    O que Deleuze descreve um aliquid que subsume o ser e o no ser (Logique du Sens, p. 16), campo intensivo e no extensivo, campo de acontecimentos puros, para alm do modelo e da cpia, fundamento de um e de outro. por isso que Deleuze insiste no simulacro, pretendente no legitimado pela semelhana.

    Este espao absolutamente prvio de diferenas puras onde a repetio se liberta do Mesmo e que ser caracterizado em Mille Plateaux como rizomtico e explicitado atravs das ideias de mquinas desejantes e corpo sem rgos torna-se o lugar de emergncia de todo o pensamento de Deleuze.

    Deleuze coloca a tnica no real, pensando-o em termos de imanncia: Quando se invoca uma transcendncia, detemos um movimento para introduzir uma interpretao

    6

  • em vez de experimentar (Signes et Evnements, Magazine Littraire, n 257, Septembre de 1988, p. 22).

    Mas o que real? Podemos tentar uma aproximao atravs do modo como Deleuze entende o problema da subjectivao em Foucault; Sobre esta matria escreve Deleuze: Os processos de subjectivao no tm nada a ver com a vida privada mas designam a operao pela qual os indivduos ou as comunidades se constituem como sujeitos, margem dos saberes constitudos e dos poderes estabelecidos ... (sublinhados meus, RM). neste margem que reside o essencial da questo. Porque, na realidade, no tanto margem mas contra, ainda que este contra possa assumir uma multiplicidade de figuras. Tal o movimento de Deleuze: um movimento que liga directamente os acontecimentos quele aliquid, passando por cima ou ao lado das configuraes efectivas, por via de um desejo que no reside num sujeito mas nas mquinas desejantes.

    O real de Deleuze no se identifica com o perceptvel nem com o imperceptvel: reside para l de tudo isso nas relaes entre as bordas e no entre essncias. por isso que, como diz em Logique du Sens, profundo deixou de ser um cumprimento (p. 19).

    A topologia ultrapassa, completamente a geografia. Mas h aqui, um ntido recalcamento do geogrfico, isto , daquilo que se apresenta e do modo como se apresenta.

    H, pois, em Deleuze, uma descrio que s pode ser ideal ou irreal. de um platonismo emprico e materialista que se trata.

    3. Concluso

    O problema que libertar a diferena no pode ser ignorar a identidade. O real a luta da diferena contra a identidade (contra uma identidade em contnuo processo de reconstituio), mas tambm a ausncia de luta e a diferena livre.

    O Campo Transcendental real (como o arquivo em Foucault) no pode ser pensado como cpia do real (e nisso Deleuze tem plena razo) mas tambm no pode ser pensado como o lugar das singularidades pr-individuais, mas antes como um espao instvel (em termos temporais e espaciais) constitudo por imagens e fragmentos.

    O que h um sistema de imagens, as suas fracturas, os seus restos e as relaes e no

    7

  • relaes entre tudo isso. Eis porque todas as tentativas de Deleuze so condenadas ao fracasso se por fracasso entendermos a constituio de uma metafsica. S pode haver uma ontologia do acontecimento em relao ao regime de imagem/fragmento/fractura/resto. A imanncia pura uma iluso de no transcendncia, o ponto de fuga que permite constituir uma ontologia alternativa, mas igualmente instalada no ideal. A isso preciso opor o real que o espao onde todas as ontologias e todas as metafsicas se encontram, se confrontam, originando filosofias.

    O campo transcendental real, enquanto domnio de intensidades, abriria, segundo Deleuze, a possibilidade de um outro pensamento no limitado pelas categorias nem pela representao. Deleuze encontra em certos textos literrios, em certos modelos cientficos e na linguagem do esquizofrnico realizaes desse outro modo de pensar. Em relao ao discurso do esquizofrnico, escreve: No se trata de opor imagem dogmtica do pensamento uma outra imagem, tomada, por exemplo, esquizofrenia. Trata-se, antes, de lembrar que a esquizofrenia no somente um facto humano, mas uma possibilidade do pensamento, que apenas se revela como tal na abolio da imagem (DR, p. 252).

    No entanto, preciso no esquecer que mesmo na esquizofrenia no encontramos um sem fundo de singularidades impessoais. O que se perde a ligao normal (corrente, habitual) entre as imagens, mas sempre com imagens que o esquizofrnico opera. Com fragmentos, mas fragmentos de imagens. Tentar encontrar a verdade das coisas na linguagem do esquizofrnico um puro mito. O diferente no o verdadeiro.

    A ordem no universal. Mas substituir a ordem por um caosmos (expresso muitas vezes utilizada por Deleuze) uma operao que, em ltima instncia, se limita a estabelecer um outro tipo de ordem na qual, supostamente, habitaria a verdade.

    O que resulta da procura deleuziana uma ontologia que no mais do que a descrio de um ser que est inscrito na metafsica; ou seja, estamos perante exactamente o modelo tradicional. Entre a analogia e a univocidade no pode colocar-se uma questo de escolha: so metafsicas alternativas. E se o nosso objectivo for o de libertar as foras confinadas na metafsica tradicional, o caminho no pode ser o de constituir uma metafsica alternativa e da, extrair uma outra ontologia. At poderamos admitir que o objectivo foi alcanado, mas apenas no plano da formulao da prpria ontologia. Ora. do que se trata no , como na literatura, de engendrar um mundo, ideal, onde nos possamos recolher, mas de compreender o que efectivamente se passa e como se passa. Eis a grande diferena entre a literatura e a filosofia.

    8

  • Ora, para isso, preciso partir do modo real como as coisas (indivduos, acontecimentos, afeces) efectivamente funcionam. E a ser preciso ter em considerao a simultaneidade de vrias metafsicas tpicas. Ser preciso considerar que h diferenas livres e diferenas dependentes. Que h modos que se subordinam univocidade e modos que se subordinam analogia.

    Apesar de todas as precaues de Deleuze, na realidade o seu pensamento uma metafsica do mltiplo que se ope a uma metafsica do uno. Trata-se, afinal, da oposio entre modelos interpretativos. Da, a maneira como ele estuda a gnese do indivduo, por exemplo.

    Ora o importante ser reconhecer o carcter tpico a funo tpica dos vrios modelos e os modos como eles se relacionam. Se h uma diferena livre h tambm uma diferena dependente que to real como a primeira. O prprio ideal real.

    Deleuze procura ultrapassar o sistema metafsico de oposies: Assim como no h oposio estrutura-gnese, tambm no h oposio entre estrutura e acontecimento, estrutura e sentido. As estruturas comportam tantos acontecimentos ideais quantas as variedades de seleces e de pontos singulares que se cruzam com os acontecimentos reais que eles determinam (DR, p. 316).

    Isto no significa que, de facto, no exista oposio. H momentos em que o tipo de relao ser o da oposio. A questo continua a ser a da prioridade ou originalidade. Mas determinar um modo de originalidade j descrever um modo de pensamento, uma metafsica especfica. A afirmao da pluralidade pode, em certas circunstncias, significar uma negao da pluralidade.

    A compreenso no se d pelo acesso origem mas pelo reconhecimento dos modos como os acontecimentos se ligam e engendram as suas prprias origens. Apreender a pluralidade enquanto pluralidade implica no recalcar os efeitos da unidade, como pensar a diferena implica no recalcar os efeitos da identidade.

    Ser preciso tomar o real no como pluralidade ou como unidade, mas como o conjunto simultneo de ambas, sendo que a unidade no se integra na pluralidade. Assim, os pares possvel/actual e virtual/actual no se opem. No se trata de uma alternativa mas de uma coexistncia. Opo-los optar por um, um acto metafsico.

    9

  • O mundo que Deleuze descreve atravs desta opo ser real, mas no mais do que o que se baseia na outra opo.

    O espao em que Deleuze desenvolve o esforo de compreender e de libertar redunda na descrio de uma viso parcelar que se identifica com o desejo da libertao, mas um desejo que, como todo o desejo, se funda no efeito de uma imagem.Neste sentido e apesar da sua aparncia de radicalidade, o programa deleuziano comparvel a uma srie de outros, como os de Foucault e de Derrida na sua igualmente presente vertente metafsica. Foucault escapa, em muitos pontos, exactamente porque nunca teve o desejo de constituir uma metafsica (poder-se-ia dizer que nunca teve o desejo - o seu tema o prazer [4]. E lendo-o mais nas suas margens, nas suas fracturas para alm das suas afirmaes, podemos achar uma descrio bem mais real do que acontece.

    Como um livro de filosofia, um pensamento, s pode ser nem absoluto nem discutvel, um jogo eternamente apaixonado do absoluto com as suas formas (ou modos) relativos.

    H um desejo a mover um pensamento. Esse desejo tem as suas exigncias, efectua as suas reivindicaes de um modo mais ou menos subtil atravs de todos os passos desse pensamento. As concluses de um pensamento equivalem ao orgasmo final e como ele, so o menos interessante. Os pensamentos, na sua forma mais selvagem e interessante agem pelas bordas, pelos flancos, atravs de invisveis deslocamentos do que dito ou mesmo pelo que no dito. So aqueles pontos que escapam ao desejo e, simultaneamente, imagem do prazer. Que so livres. Mas livres em relao a coisa nenhuma.

    O pensamento de Deleuze ser extremamente activo se o arrancarmos ao pensamento de Deleuze, se o lermos fragmentariamente no o opondo nem o ligando tradio; ou seja, se o lermos nem na sua vertente crtica, nem na constitutiva, mas nos traos menos visveis que vai deixando sobre o espao do prprio pensamento.

    Escapar crtica e metafsica, simultaneamente, escapar ao desejo e imagem do prazer, escapar, escapar, escapar. Eis o pensar que no toma o ser como objecto, que no anseia, desmedidamente, nomear o ser. Que, por conseguinte, indiferente s opes entre o rizomtico e o arborescente porque sabe que h um tempo para cada um dos modos e para uma infinidade de outros. E que cada modo igualmente real. No poderemos, portanto, dizer que as multiplicidades se opem s arborescncias. Deleuze afirma a no oposio, mas pratica activamente a oposio. Compreender Deleuze ,

    10

  • tambm, compreender os modos como o seu desejo sistematicamente interfere no real sob a forma de indiscutveis opes.

    O problema est na indeterminao dos modos de ligao entre as imagens e os fragmentos. Os modos como isto recalcado no chegando sequer a ser isto, e como isto se condensa, adquirindo um contorno, uma substncia, um nome.

    O campo transcendental real uma tentativa de resposta a esta questo. Mas apenas por via de uma outra interposta: a de saber qual a natureza verdadeira do que existe antes da existncia nomevel.

    O que importa, ento, em termos de trabalho filosfico, o de saber como (de que modos) se liga o caos e a ordem, a identidade e a diferena, a singularidade e o sistema no em geral, mas em cada caso concreto. O problema o de saber que mundo descrevemos: se o real, se o que existe, se o que supomos constituir o modo ltimo do ser.

    Que a linguagem deleuziana permanece essencialmente metafsica e os seus objectivos tambm a inevitvel concluso de uma leitura que no se limite s declaraes do autor.

    A grande questo : ser vivel um nietzschianismo filosfico? Ser Nietzsche e tudo o que ele representa compatvel com a linguagem, os conceitos e os temas filosficos?

    Em Deleuze, Derrida e Foucault encontramos esta matria explorada em vias distintas, mas constantemente presente. Ser sequer possvel uma leitura filosfica de Nietzsche? Ou ser apenas possvel us-lo? Nietzsche , talvez, um dos poucos casos que confirma a hermenutica pragmatista.

    Derrida tentou encontrar vias travessas para ler Nietzsche e para construir o seu pensamento, partindo da conscincia de que no possvel quebrar a metafsica, instalar-se fora dela.

    Foucault, num gesto tipicamente nietzschiano, ignorou a metafsica, a filosofia e desenvolveu o seu pensar num soberano desprezo pelos registos e pelas retricas. Correu os mesmos riscos de Nietzsche e como Nietzsche foi-se apoiando nos seus mitos pessoais.

    11

  • Deleuze, diferentemente, muito kantianamente, explorou a metafsica em modo metafsico e lutou contra si mesmo.

    Recusar a univocidade (as categorias) em nome da libertao das foras positivas um processo idealista. Por outro lado, a infinitizao das categorias apenas uma escapatria.

    As categorias so plurais. No h uma lista (nem uma nova lista como queria Peirce), mas sucessivamente e paralelamente, listas que se vo reformulando de acordo com o nosso conhecimento do ser. Haver categorias mais e menos gerais. Haver, inclusivamente, quem sabe, categorias individuais. Mas o problema no pode ser formulado nestes termos. Estamos, assim, sempre, na metafsica. A alternativa unvoco/anlogo , obviamente, metafsica.

    Por outro lado, se contemplamos o sentido (o que dito que , os modos como nos ligamos exterioridade e interioridade, a ns mesmos) ser preciso reconhecer categorias como elementos determinantes da constituio do real, ou melhor: imagens (fragmentos no integrados ou excludos). E as lutas entre umas e outros. O sentido categorial, no categorial e combate.

    ***O tempo ainda curto para pensar um trabalho como o de Deleuze e quase absurdo, de to pretensioso, efectuar qualquer crtica porque a crtica filosfica sempre, no essencial, um conflito entre mundos, uma guerra de mundos. Ela , neste sentido, totalmente intil, tal como a discusso, como sabiamente o sublinharam Deleuze e Guattari em O que a Filosofia?. A crtica poder, no entanto, e seguindo de certo modo as indicaes do prprio Deleuze, comear no meio, isto , no se assumir como um discurso sobre mas insinuar-se nas malhas do texto, numa espcie de inciso a-lgica, para, a partir desse ponto injustificado e provavelmente indefinvel e injustificvel, refluir para as margens do texto e do mundo e nelas ir erguendo uma espcie de tendas de campanha (no de militares mas de nmadas ou de exploradores) e a ir fotografando, medindo, registando, anotando. Experimentando, dir-se-ia em linguagem deleuziana, mas sem a cobertura de retaguarda de uma teoria gentica.

    S o esprito de aventura ser adequado a pensar sobre este pensamento.

    preciso no perder de vista o facto de que as eventuais crticas que o crtico faz no tm como objecto o livro ou o pensamento de Deleuze, porque um livro ou um

    12

  • pensamento no um objecto, mas as sensaes geradas pelo encontro entre a imagem que o livro produz de si mesmo e a imagens que o leitor produz a partir dessas imagens da sua prpria imagem de leitor.

    Porque um livro de metafsica (como qualquer grande livro e qualquer grande livro um livro de metafsica) age distncia e, sobretudo, por aquilo que no diz ou no diz claramente.

    Se certo que no se pode pensar contra o prprio tempo, o que importa tentar apreender o que podemos fazer, de que modo podemos utilizar esta metafsica no apenas para compreender melhor (para justificar ou fundar) o que o tempo que foi o do livro produziu, mas se e at que ponto nos ensina, por um lado a compreender o tempo enquanto produtor e, por outro, a nossa relao com esse tempo, os conflitos, as conformaes, os apaziguamentos, as guerras, em suma, as sensaes afectivas, emotivas e intelectuais que vamos entretecendo com o nosso prprio tempo. Ou seja, os modos mais ou menos paradoxais como vamos efectuando uma interpretao do que se nos presente, seja sob a forma temporal que for (presente, passado, futuro).

    O que de melhor se pode pedir a um grande livro de metafsica no que explique a eternidade; mas que nos ajude na tarefa de compreender que tempo e eternidade so dois modos de compreender a infinidade absoluta que cada instante contm num no menos infinito jogo de visibilidade e invisibilidade.

    A filosofia deleuziana representa uma das maiores tentaes do nosso tempo, na medida em que uma viso alternativa das coisas , no apenas o modo mais comum de tentar enfrentar os problemas como a viso especificamente deleuziana , indiscutivelmente aliciante e permissora de um dilogo, muitas vezes fecundo, com domnios extra-filosficos como a arte e a literatura, dilogo esse praticado exaustivamente pelo prprio Deleuze. , tambm, talvez, uma das maiores obras literrias; neste sentido no apenas est ao nvel das maiores como as ultrapassa na capacidade de construir um mundo, na medida em que dispe de um nmero infinito de personagens e porque, desenhando esses personagens no modo conceitual pode escapar inteiramente ao psicolgico que a literatura dificilmente pode evitar. O mais metafsico dos filsofos radicais acaba por ser mais adequadamente lido como o mais literrio de todos. O que ele inventa ou reinventa um tipo de literatura filosfica, tal como havia sido praticada por Plato. O que nos d Deleuze , no fim de contas, uma definio de real. Tal como Plato. Mas trata-se, inevitavelmente, do seu real, ou melhor: da sua imagem (desejante) de real.

    13

  • Como em todos os grandes autores, h, em Deleuze, dois Deleuzes: o filsofo e o sbio, situando-se o segundo nos interstcios, nas fracturas, no no desejo do primeiro. O primeiro produz teorias (ou pseudo-teorias, conforme queiramos entender o estatuto das formulaes terico-filosficas); o segundo pensa. Compete a ns, leitores, escolher o Deleuze que nos interessa, especificando uma hermenutica capaz de lidar, simultaneamente, com teorias e com pensamentos, com imagens e com fragmentos.

    Notas:

    1- Como tema o tratou Heidegger, por exemplo, no seu livro O que Pensar?, projectando num tempo futuro a possibilidade de vir a pensar.

    2- Por impossibilidade de pensar no se dever entender uma afirmao negativa, mas antes a relao com o in-pensvel, isto , com aquilo que no se d ao pensamento como um seu objecto.

    3- O pensar , originariamente, um acto inteiramente selvagem. por isso que o pensamento mais fundo aquele que pensa o mais bvio ou o mais improvvel de ser objecto de pensamento.

    4- Tambm a podemos detectar uma outra espcie de metafsica, mas isso j uma outra questo.

    14

    1.Um sculo deleuziano2.O que quer Deleuze: o modo deleuziano da crtica3.Concluso