departamento de taquigrafia, revisÃo e redaÇÃo … · josÉ flÁvio sombra saraiva – diretor...

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CÂMARA DOS DEPUTADOS DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES TEXTO COM REDAÇÃO FINAL COMISSÃO DE RELAÇÃO EXTERIORES E DE DEFESA NACIONAL EVENTO: Seminário N°: 0742/02 DATA: 15/08/02 INÍCIO: 09h16min TÉRMINO: 13h35min DURAÇÃO: 04h19min TEMPO DE GRAVAÇÃO: 04h12min PÁGINAS: 99 QUARTOS: 51 REVISÃO: Anna Augusta, Carla, Cássia Regina, Cláudia Castro, Gilberto, Liz, Maria Teresa, Mesquita, Monica, Odilon, Tatiana, Waldecíria SUPERVISÃO: Amanda, Graça, Joel, Márcia, Maria Luíza, Myrinha, Neusinha, Zuzu CONCATENAÇÃO: Márcia DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO OVÍDIO DE ANDRADE MELO – Embaixador aposentado e ex-representante do Brasil em Angola; REGINA ZAPPA – Jornalista, filha de Ítalo Zappa; IRENE VIDA GALA – Chefe da Divisão de África II do Ministério das Relações Exteriores; JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA – Diretor da Assessoria de Assuntos Internacionais da Universidade de Brasília — UnB; JOSÉ WALTER BAUTISTA VIDAL – Ex-Secretário de Política Externa, ex-secretário de Tecnologia Industrial, professor, físico e membro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; FLÁVIA PIOVESAN – Procuradora-Geral do Estado de São Paulo e professora de Pós- Graduação da Pontifícia Universidade Católica — PUC, de São Paulo; MARCELO CASTRO – Economista da Pontifícia Universidade Católica — PUC, do Rio de Janeiro e Gerente de Renda Fixa do Banco BNP-Baribas; CARLOS HENRIQUE CARDIM – Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais — IPRI, do Ministério das Relações Exteriores; LUIS FERNANDES – Diretor-Científico da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa no Rio de Janeiro — FAPERJ. SUMÁRIO: Homenagem ao Embaixador Ovídio de Andrade Melo. Seminário Política Externa do Brasil para o Século XXI. Temas: “Perspectivas das relações do Brasil com o mundo lusófono” e “Desafios internacionais para o século XXI”. OBSERVAÇÕES A reunião esteve suspensa por alguns instantes.

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CÂMARA DOS DEPUTADOS

DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

COMISSÃO DE RELAÇÃO EXTERIORES E DE DEFESA NACIONALEVENTO: Seminário N°: 0742/02 DATA: 15/08/02INÍCIO: 09h16min TÉRMINO: 13h35min DURAÇÃO: 04h19minTEMPO DE GRAVAÇÃO: 04h12min PÁGINAS: 99 QUARTOS: 51REVISÃO: Anna Augusta, Carla, Cássia Regina, Cláudia Castro, Gilberto, Liz, Maria Teresa,Mesquita, Monica, Odilon, Tatiana, WaldecíriaSUPERVISÃO: Amanda, Graça, Joel, Márcia, Maria Luíza, Myrinha, Neusinha, ZuzuCONCATENAÇÃO: Márcia

DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO

OVÍDIO DE ANDRADE MELO – Embaixador aposentado e ex-representante do Brasil emAngola;REGINA ZAPPA – Jornalista, filha de Ítalo Zappa;IRENE VIDA GALA – Chefe da Divisão de África II do Ministério das Relações Exteriores;JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA – Diretor da Assessoria de Assuntos Internacionais daUniversidade de Brasília — UnB;JOSÉ WALTER BAUTISTA VIDAL – Ex-Secretário de Política Externa, ex-secretário deTecnologia Industrial, professor, físico e membro do Conselho Nacional de DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico;FLÁVIA PIOVESAN – Procuradora-Geral do Estado de São Paulo e professora de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica — PUC, de São Paulo;MARCELO CASTRO – Economista da Pontifícia Universidade Católica — PUC, do Rio deJaneiro e Gerente de Renda Fixa do Banco BNP-Baribas;CARLOS HENRIQUE CARDIM – Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais —IPRI, do Ministério das Relações Exteriores;LUIS FERNANDES – Diretor-Científico da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo àPesquisa no Rio de Janeiro — FAPERJ.

SUMÁRIO: Homenagem ao Embaixador Ovídio de Andrade Melo.Seminário Política Externa do Brasil para o Século XXI.Temas: “Perspectivas das relações do Brasil com o mundo lusófono” e “Desafiosinternacionais para o século XXI”.

OBSERVAÇÕES

A reunião esteve suspensa por alguns instantes.

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CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINALNome: Comissão de Relação Exteriores e de Defesa NacionalNúmero: 0742/02 Data: 15/08/02

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O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Declaro abertos os trabalhos

da presente reunião, que, inicialmente, visa a homenagear o Sr. Embaixador Ovídio

Melo, por seu brilhante trabalho, e também a memória do Sr. Embaixador Ítalo

Zappa. Em seguida, retomaremos nossos trabalhos, com a instalação da Mesa

destinada a discutir a perspectiva das relações do Brasil com o mundo lusófano.

Convido o homenageado, Sr. Ovídio de Andrade Melo, embaixador

aposentado e ex-representante do nosso País em Luanda, Angola, para compor a

Mesa. (Palmas.)

Registro a honrosa presença dos familiares do Sr. Embaixador Ítalo Zappa,

Sr. Sérgio Zappa, filho; Sra. Cristina Zappa, filha; Sra. Ana Elisa, filha; o jovem João

Pedro, neto, e a jovem Laura, também neta. Convido para integrar a Mesa a Sra.

Regina Zappa aqui representando a família do homenageado. (Palmas.)

Convido também para compor a Mesa o Conselheiro Raul de Taunay,

representante do Ministério das Relações Exteriores e Subchefe da Assessoria de

Relações com o Congresso. (Palmas.)

Convido o Sr. Embaixador da República de Angola em Brasília, Embaixador

Extraordinário e Plenipotenciário Alberto Correia Neto. (Palmas.)

Convido também o Sr. Amadeu Paulo da Conceição, Embaixador em Brasília

da República de Moçambique. (Palmas.)

Convido ainda a Sra. Secretária-Chefe da Divisão da África II, Irene Vida

Gala, do Ministério das Relações Exteriores. (Palmas.)

Exmo. Sr. Embaixador Ovídio de Andrade Melo, Sra. Regina Zappa, senhores

embaixadores, senhores integrantes do corpo diplomático, minhas amigas e meus

amigos, Monteiro Lobato dizia que um país se faz com homens e livros. Há aqueles

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que têm a característica, o traço, diante da história e dos desafios, de querer dar

uma contribuição a mais na construção material e espiritual das nações.

A Comissão de Relações Exteriores procurou, no momento difícil da vida

nacional, carregado de desafios, de exigência de ousadia e de perseverança para

encetarmos o prosseguimento da tarefa dos nossos ancestrais, buscar não apenas

cumprir sua tarefa constitucional e regimental de produzir, no seu dia-a-dia, o

trabalho necessário ao andamento das relações do Congresso com o Poder

Executivo e com a sociedade e do nosso País com o mundo. A esse empenho

ordinário, cotidiano, a Comissão de Relações Exteriores procurou também oferecer

sua contribuição para elevar, neste momento de encruzilhada, a auto-estima do

nosso povo e do nosso País diante dos desafios que enfrentamos.

O Brasil, ao longo de sua história, produziu princípios fundamentais nas suas

relações internacionais, confirmou o princípio da solução pacífica dos conflitos, o

princípio da luta anticolonialista, o princípio da autodeterminação dos povos, o

princípio da igualdade entre os Estados e o princípio da defesa dos direitos

humanos.

Quando a defesa desses princípios ultrapassa a simples doutrina, a

convivência pacífica com o papel, com a letra da lei ou dos artigos dos nossos

tratados e da nossa Constituição, e tenta adentrar terreno difícil e espinhoso da

prática é que surgem os homens capazes e à altura da execução dos elevados

propósitos que marcaram a trajetória do nosso País como nação independente.

Esses homens surgiram exatamente nos momentos cruciais da vida nacional.

Esses homens têm traços de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca, que, no

momento exato da luta pela consolidação da independência, percebia a necessidade

de firmar a presença do Brasil no cenário das nações livres e independentes.

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Esses homens surgem nos graves momentos, como no da consolidação da

República. Cito o Marechal Floriano Peixoto, cuja diplomacia, reverenciada na obra

do Embaixador Sergio Corrêa da Costa, demonstra também como em situação

gravíssima para a vida nacional, de luta pela superação de um regime e pela

consolidação de outro, soube ter a firmeza, a persistência e, ao mesmo tempo, a

sabedoria para firmar no espaço internacional a independência da nossa Pátria.

Nos anos 30, às vésperas do grande conflito mundial, os dirigentes brasileiros

souberam também defender e preservar os interesses nacionais.

Ainda antes dos anos 30, há a figura hoje centenária do Barão do Rio Branco.

Como Ministro das Relações Exteriores, S.Exa. soube também combinar

perseverança na defesa de uma solução pacífica para os litígios de fronteira. Com

firmeza e determinação defendeu a soberania da nossa Pátria.

Nos anos 60 e 70, o mundo vivia período de luta contra os impérios coloniais

em declínio em todo o planeta. O Brasil vivia o desafio de ampliar seus horizontes de

relações internacionais. Exatamente nesse momento, nessas circunstâncias, dois

homens cumpriram e carregaram sobre seus ombros frágeis, como diria o poeta, a

responsabilidade de interpretar e defender a dignidade, a soberania e a grandeza do

nosso País e do nosso povo.

Creio que, ao outorgar, por unanimidade, uma placa em homenagem ao

Embaixador Ovídio de Andrade Melo, como também ao Embaixador Ítalo Zappa, já

falecido, a Comissão de Relações Exteriores faz uma reverência à grandeza e à

dignidade do nosso País representadas na trajetória da vida e da carreira dos dois

embaixadores.

O Embaixador Ovídio de Andrade Melo estava servindo em Angola nos idos

de 1975. Chegava ao fim o império colonial português na África. O Brasil vivia sob

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regime de exceção, marcado pela radicalização ideológica e doutrinária de então.

Eram tempos da Guerra Fria, e chegavam a Luanda os destacamentos do

movimento popular pela libertação de Angola — guerrilha de caráter marxista.

Os Estados Unidos pressionavam para que nenhum Governo do mundo, e

muito menos seus aliados, reconhecessem a força militar e política que ocupava a

cidade de Luanda, Capital dessa colônia portuguesa e futura Capital da Angola livre.

Os Estados Unidos pressionavam contra o reconhecimento daquele Governo.

O Governo brasileiro enfrentava crise de indecisão. O Presidente Geisel tinha

contra o reconhecimento exatamente a opinião de seus três Ministros militares, do

Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Em Luanda, ao afrontar a opinião de um

império, por um lado, e contrariar a posição dos mais fortes Ministros do Governo

brasileiro, por outro, nosso diplomata defendia a visão e os interesses do nosso

País.

Não sei se num momento daqueles, mesmo na sua posição de diplomata

frágil diante de contendores que tinham peso externo, como os Estados Unidos, e

interno, como os próprios Ministros militares do Governo Geisel, qualquer um que

analisasse a correlação de forças se inclinaria a dizer que as opiniões do

Embaixador Ovídio de Andrade estavam previamente derrotadas. Por circunstâncias

compreensíveis naquele período, não encontrariam, e não teriam como encontrar,

apoio do Congresso, da opinião pública ou da imprensa. Mas foi exatamente nesse

momento que a firmeza, a convicção, a perseverança e o amor à Pátria — o alento

mais forte nas ocasiões cruciais para os indivíduos, como dizia Frei Caneca —

levaram o Embaixador Ovídio de Andrade a manter e defender sua posição,

fazendo-a então prevalecer.

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O Brasil reconheceu o que era justo, reconheceu o que era da sua tradição, o

Brasil ultrapassou situações e uma correlação de forças conjunturalmente

desfavoráveis para manter sua tradição em defesa do fim dos impérios coloniais e

da libertação das colônias.

Creio que, apoiado nessa tradição, na sua firme convicção, no seu espírito

público e no seu patriotismo, se deveu a ele, dentre outros diplomatas nesse

episódio particular, a adoção de posição justa, posição que até hoje é reverenciada

pelo nosso país-irmão, posição que coroou o reconhecimento generoso ao esforço

de décadas de luta do povo angolano pela libertação.

Sr. Embaixador Ovídio de Andrade Melo, receba da Comissão de Relações

Exteriores e de Defesa Nacional, pela unanimidade de todos os partidos dela

integrantes e da Câmara dos Deputados — unanimidade que, na minha modesta

interpretação, representa o que há de mais puro, mais verdadeiro e mais generoso

nesta Comissão —, esta homenagem. Receba, portanto, da Casa do povo, da

Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional o reconhecimento da

sociedade e do Congresso por seu patriotismo. E que ele sirva de exemplo e de

estímulo ao nosso corpo diplomático e ao nosso País:

“Esta placa constitui uma justa homenagem da

Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional

da Câmara dos Deputados ao Embaixador Ovídio de

Andrade Melo, cuja carreira de relevantes serviços

prestados ao Brasil serve de modelo e de inspiração a

todos os brasileiros que com ousadia e altivez projetam a

imagem do País no exterior.

Brasília, 24 de abril do ano de 2002.” (Palmas.)

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Neste momento, concedo a palavra ao nosso homenageado. Tem V.Exa. a

palavra, Sr. Embaixador.

O SR. OVÍDIO DE ANDRADE MELO – É com profunda emoção que recebo

esta homenagem e relembro aqueles anos passados na preparação daquele

trabalho e o ano de 1975, passado totalmente em Angola, em meio às lutas que lá

aconteceram.

Sou do Vale do Paraíba, das terras de café, da cidade de Barra do Piraí.

Desde minha infância, senti a importância da contribuição africana para o

desenvolvimento e o crescimento do Brasil, justamente com aquela frase de

Bernardo Pereira de Vasconcelos: “A África civiliza o Brasil, porque a África, palavra

de Joaquim Nabuco, construiu também o Brasil”. Creio que isso se sentia

perfeitamente na região de onde venho, onde há descendência de africanos mais

numerosa até do que nos Estados da Bahia e de Minas Gerais.

Acredito que isso contribuiu em muito para que eu sentisse, e sentisse de

coração, o art. 3º, pelo qual Portugal reconhece nossa independência, mas com uma

concessão de filho para pai. Dom Pedro I promete que não intervirá em nada para

ajudar na independência das colônias africanas.

Eu achava isso verdadeiramente vergonhoso, porque representantes de

Moçambique, Angola e Brasil vinham ao Rio de Janeiro coordenar a sua posição

antes de conversar com Portugal, em Lisboa, sobre a colonização, sobre o reino

unido que então se formara.

Tudo isso fez com que eu e Zappa, criados juntos e amigos de infância,

estivéssemos absolutamente afinados desde o primeiro momento com a

descolonização e com a necessidade de o Itamaraty adotar atitude firme diante da

África.

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Na época, eu era cônsul-geral em Londres. Acompanhei a súbita mudança

com a Revolução dos Cravos, mas nada tinha a ver naquele momento com os

acontecimentos que se desenrolavam em Lisboa.

Na Inglaterra, pude assistir à revolta da população contra o Governo Salazar

e massacres que tropas portuguesas haviam feito na localidade de Wiriyamu, na

Província de Tete, em Moçambique. E o Governo de Marcelo Caetano — não era

Salazar, que havia caído — fez um desmentido que, verdadeiramente, enfureceu o

jornal Times, de Londres, porque se limitou a negar que a aldeia de Wiriyamu

existisse na Província de Tete. Foi preciso que geógrafos, historiadores e jornalistas

do Times comprovassem com fotografias horripilantes o que havia acontecido

naquela província, a fim de que Portugal aceitasse a acusação.

A visita de Marcelo Caetano a Londres foi então cheia de ignomínia, porque

foi vaiado, maltratado mesmo pelas autoridades londrinas.

Estava eu em Londres e vim ao Brasil de férias quando, para minha surpresa,

fui convidado por Ítalo Zappa, meu amigo de sempre, para tomar parte numa política

efetiva, que seria ir para a África e criar algo que, até então, não existira na história

da diplomacia mundial. Era uma idéia que o Zappa havia tido e fora aprovada pelos

altos níveis no Palácio. Tratava-se da criação de representação especial dos dois

países africanos que iam tornar-se independentes: Moçambique e Angola.

Essa representação tinha como finalidade preparar a cooperação que o Brasil

pretenderia dar a esses países quando ficassem de todo independentes. Mas ambos

entrariam, a partir daquele momento, no Tratado de Alvor, num período de transição,

em que todos os partidos, que eram, na verdade, movimentos guerrilheiros armados,

e o Governo português passavam a governar a colônia simultaneamente.

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Eu fui, tive conversas com líderes da Frente de Libertação de Moçambique —

FRELIMO e com todos os chefes de movimentos em Angola. Estive no interior de

Angola, onde falei com Savimbi. Estive em Kinshasa e falei com Holden Roberto. E

em Dar-es-Salam, onde tive longa entrevista com Agostinho Neto.

Vou narrar minha impressão sobre essas entrevistas. Desde logo, achei

Agostinho Neto um estadista, um homem que tinha visão do Brasil, da cooperação

que o País poderia dar a Angola quando se tornasse independente. Era um homem

que tinha visão de historiador, digamos, das afinidades que existiam entre Brasil e

Angola, na cultura em todos os seus aspectos, na culinária, na dança, na música,

enfim, onde quer que fôssemos buscar, encontraríamos afinidades entre Brasil e

Angola. Outros movimentos de Angola não representavam esse sentimento, essa

visão. Tinham uma visão oportunista.

Holden Roberto era sustentado pelos Estados Unidos. Era uma sustentação

inconveniente de certa maneira, porque, ao mesmo tempo em que o incitavam

verbalmente a atacar Portugal e também Angola, os Estados Unidos o continham,

por causa das bases de que precisavam em Açores. Então, era um “empurramento”,

que, ao mesmo tempo, significava contenção.

Também Savimbi era uma criação das tropas portuguesas, da polícia

portuguesa que, nos últimos tempos, fora destacado para a região leste de Angola e

combatia não os portugueses, mas o MPLA. Então, era como se fosse uma força

auxiliar das tropas portuguesas no combate ao MPLA.

E, naturalmente, o que Savimbi poderia esperar do Brasil? Que o Brasil lhe

desse dinheiro, armas, coisa que eu não tinha. O que o Brasil, o Zappa e o Itamaraty

tinham a oferecer eram equanimidade e neutralidade, e isso não interessava a esses

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senhores da guerra, que estavam lutando a partir de Kinshasa, ou a partir de Silva

Porto, atualmente Huambo.

Mas Agostinho Neto me impressionara. Chegando a Luanda, onde se

concentraram as forças dos partidos, tive oportunidade de conhecê-lo melhor e

também sua equipe de governo. Assim, verifiquei todos aqueles membros do

Governo com quem eu me relacionei, principalmente aqueles com que o Brasil

poderia ter cooperação mais intensa: Ministérios da Saúde, da Agricultura, da

Educação, enfim, aqueles Ministérios que, verdadeiramente, permitiriam desde logo

uma cooperação brasileira de cunho apolítico.

Em todos esses casos, eu tive excelente impressão da equipe do MPLA. Essa

impressão perdurou. Houve um momento por volta de julho, quando o MPLA

prevaleceu sobre os demais movimentos, ou seja, alguns Ministros dos outros

movimentos permaneceram inexplicavelmente num governo que já não era tripartite.

Os portugueses continuam com o Governador-Geral, dando certo endosso a

situação que já não era tripartite. Ou seja, o Acordo de Alvor foi para as nuvens,

desapareceu.

Na verdade, a situação em Angola se definiu com uma eleição a bala. O

MPLA expulsou das cidades as tropas do Zaire, que se disfarçavam como tropas de

Holden Roberto, e expulsou as tropas do Savimbi, que, na verdade, jogavam como

um pêndulo entre Holden Roberto e o MPLA, mas não se decidiam, buscavam

sempre uma fímbria de poder sem se decidir.

Nesse momento, houve hesitação de Portugal e ligeira hesitação do Brasil

também, como decorrência da hesitação portuguesa. Felizmente, vim ao Rio e tive a

oportunidade de fazer prevalecer posição que, independentemente do que Portugal

decidisse, levaria o Brasil a apoiar o vencedor.

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Na realidade, digamos francamente, a política brasileira era um pouco

machadiana: “Ao vencedor as batatas”. E quem ganhara a guerra em Angola, já em

julho, era o MPLA. Isso era extremamente importante, porque a independência viria

em 11 de novembro. Os portugueses confirmaram que, a despeito de o Acordo de

Alvor já não existir, a independência ocorreria em 11 de novembro, tal como

prometido originalmente. Então, de setembro a 11 de novembro, teriam muito pouco

tempo para que houvesse qualquer mudança de política brasileira. Não haveria

tempo para tal, e fiz sentir isso ao Itamaraty. Era preciso manter a política como

estava e reconhecer Angola.

Nesse entretempo, ocorreram fatos verdadeiramente surpreendentes. A África

do Sul, combalida por sanções, vilipendiada pelo detestável regime de apartheid

que adotava, armou uma agressão com tanques contra Angola, contra o Governo do

MPLA. Houve, então, uma situação terrível, em que tropas sul-africanas, com 200

tanques Panhart, o último modelo francês, invadiram Angola e a divisa com o litoral

na região de Benguela e foram subindo pelo litoral para chegar a Luanda antes de

11 de novembro, a data da independência.

Simultaneamente, tropas do Zaire, com mercenários da CIA recrutados

principalmente na Inglaterra, onde eu vivera, e com o apoio de Holden Roberto, do

FNLA e suas pequenas tropas apoiadas pelos chineses, moveram-se do norte do

Zaire em direção a Luanda. Ao norte estavam a 25 quilômetros, em Caxito,

ameaçando o fornecimento de água para Luanda, que vinha de Quifangondo. Ao sul

já haviam tomado todos os portos: Benguela, Lobito. Já estavam perto de Novo

Redondo, o porto mais próximo de Luanda. Não havia por onde o MPLA receber

suprimentos, armas, comida, o que fosse, dos aliados socialistas.

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Eu, o único representante, estava contando com colaboradores excelentes,

como Raul Taunay, jovem Secretário na época. Estava numa cidade sitiada, onde

faltava comida, água e luz de vez em quando e onde as dificuldades de vida eram

tremendas. Somente a organização de minha mulher conseguiu fazer com que

aquelas dezesseis pessoas que estavam comigo pudessem manter-se durante um

ano em Angola, porque ela montou um verdadeiro armazém e um verdadeiro

hospital. De manhã, saía distribuindo pastilhas. Cuidávamos da água com

permanganato de potássio, porque o cloro havia acabado. Guardávamos a água na

banheira para beber. Tivemos de blindar algumas janelas mais expostas a tiroteios,

e mesmo assim a casa do consulado foi metralhada de alto a baixo. Houve vários

combates nas imediações, até que a situação se definiu num combate fortíssimo,

que durou duas ou três semanas e em que as tropas da FNLA e da UNITA foram

expulsas de Angola.

Nesse momento, o que havia de vital era a resistência de Angola, das tropas

do MPLA e do povo de Angola. Aqueles ataques que vinham do Norte e do Sul.

Minha convicção, lidando com o povo e com os militares angolanos, era de que os

ataques seriam rechaçados com mais ou menos tempo, porque o povo não se

amedrontava. Os militares angolanos diziam algo absolutamente verdadeiro: um

ataque de tanques é algo tenebroso, mas ninguém mora dentro de um tanque. É

preciso sair dele para comer, dormir e fazer as suas necessidades, e simplesmente

se pode morrer a facadas. Era essa a disposição do povo angolano com respeito às

invasões sul-africanas e às invasões zairenses contra o MPLA.

Eu tinha a minha convicção íntima, pouco a pouco expressada no Itamaraty,

de que o MPLA prevaleceria em guerra, como prevalecera em tempos de relativa

paz. Ou seja, aquilo que antes fora uma guerra civil entre pseudopartidos para

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disputar, por eleições teóricas, o Governo de Angola tornara-se um episódio da

Guerra Fria, com a invasão sul-africana. E a imprensa internacional descaradamente

a ocultava, pois, durante dois meses, desde que saíram os primeiros tanques da

Namíbia, na África do Sul, ocultou-se que isso era uma invasão estrangeira

desproporcional às forças de Angola. Disfarçava-se isso como se fosse uma

ofensiva fulminante da UNITA e do FNLA, também no Norte. Os auxílios que as

tropas zairenses e a CIA, com os seus mercenários, davam a Holden Roberto não

eram em absoluto noticiados pela imprensa internacional.

Era uma posição absolutamente infeliz aquela em que eu estava, tentando

informar a verdade, como era também infeliz a situação dos poucos jornalistas

brasileiros que iam lá verificar a realidade. As manchetes dos jornais foram

terceirizadas no Brasil, copiadas das manchetes da imprensa internacional, que

simplesmente ocultava e mentia no tocante à realidade. Não havia presença cubana,

não havia presença alemã oriental, não havia presença russa. Poderia haver, no

meio dos matos, conselheiros militares que pudessem dar conselhos a respeito do

uso de uma ou outra arma, mas não havia, em massa, presença de tropas

comunistas nessa luta.

A grande surpresa é que, quando chegou 11 de novembro, tivemos as festas

de independência, e o Brasil se dispôs a reconhecer Angola. Compareci a todas as

festas numa cidade sitiada, ameaçada de bombardeios, ameaçada de invasão pelo

Sul e pelo Norte, e, nesse momento, houve a invasão cubana. Não pude saber dela

porque, no mesmo momento em que o Governador português se retirava, sem glória

e sem honra nenhuma, num porto às escuras, no mesmo momento em que

Agostinho Neto assumia e declarava a independência de Angola, no aeroporto, às

escuras, os cubanos desembarcavam três aviões britânicos com cerca de 150

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artilheiros e armas necessárias para resistir e para perfurar a blindagem dos

tanques, algo até então impossível para as lutas e as armas disponíveis para os

guerrilheiros.

Foi nesse momento decisivo que a África do Sul experimentou uma derrota

acachapante e que Holden Roberto, que já vinha com as suas tropas civis para

assumir o Governo e tentava aproximar-se de Luanda para esse fim, também foi

repelido e mandado para o Norte de Angola.

Essa foi a situação que vivi naquele país, e, já depois disso, a República de

Angola foi criada. A Embaixada do Brasil, que eu houvera montado durante esse

período de guerra — pois cabia-me também montar a embaixada e tê-la preparada

para funcionar durante o período de guerra —, estava pronta para funcionar.

Dispunha de telex, serviço comercial, enfim, tinha tudo. Era a única embaixada, não

havia nenhuma outra. A embaixada inglesa fugira de Luanda. O embaixador

americano telefonou-me nos últimos momentos e disse: “Estou indo embora. Sinto

muito. Você vai ficar? Sabe qual é a posição do Brasil?” Eu disse: “Presumo que o

Brasil vá reconhecer”. Ele disse: “Compreendo perfeitamente a posição do Brasil.”

Esse embaixador entrou em desgraça, porque as informações que ele dava

eram semelhantes às minhas, e o Kissinger não gostava dessas informações. O

Nathaniel Davies, Chefe do Departamento da África, que tinha sido embaixador no

Chile, era contrário à intervenção americana e dizia: “Reconheçam o MPLA o quanto

antes. Façam o que o Brasil está fazendo”. Também brigou com Kissinger e teve a

carreira truncada.

Também tive minha carreira truncada pelos brasileiros. Eu, que até então

tinha estado na Secretaria-Geral, tive postos importantes, chefias de divisão, postos

agradáveis na Argentina e em Washington, passei a ter postos extremamente

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turísticos, bastante agradáveis, mas sem grande peso no contexto da política

brasileira. E passei a prezar imediatamente o Congresso, porque fui Embaixador na

Tailândia e cumulativamente fui Embaixador na Malásia e em Cingapura, depois de

Angola. E nunca passei pelo Senado. O Itamaraty tirou-me do Senado, alegando

que eu era um mero cônsul — eu era Cônsul Geral em Londres —, sem importância,

e que ia para um país sem importância. Então, dos países com os quais tínhamos

relações, a Tailândia passava a ser sem importância, Cingapura e a Malásia

igualmente. E o Senado me dispensou.

Cinco anos depois, fui para a Jamaica, e o mesmo truque foi aplicado. O

Vasco Marins, encarregado de relações pelo Congresso, declarou no Jornal do

Brasil que foi encarregado pelo Silveirinha, pelo Guerreiro, de explicar ao Senado

que eu era um mero cônsul ou um embaixador que vinha da Tailândia, sem

nenhuma importância; ia para a Jamaica, outro país sem importância, e não

precisava ser sabatinado. Com o maior cinismo, ele disse que eu não podia ser

sabatinado, porque, se o fosse, a sabatina começaria na Tailândia e terminaria em

Angola, ou começaria na Jamaica e terminaria em Angola. E assim seria

forçosamente. Devo dizer com franqueza que vivi 76 anos até hoje, dos quais 50

anos trabalhando no Itamaraty. Mas se houve um ano em que aprendi, em que vivi

intensamente, foi o de 1975, que passei em Angola. Aprendi sobre a vida, sobre o

Itamaraty, sobre política, dez vezes mais do que tudo o que fiz no Itamaraty nesses

anos todos de vida.

Quero agradecer à Comissão a bondade de me dar essa placa, que guardarei

com carinho extraordinário. Verdadeiramente, acho excepcional que a Comissão e o

Senado procurem revitalizar este princípio básico da democracia: a fiscalização do

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Ministério das Relações Exteriores e de todos os Ministérios, para termos relações

externas condizentes com a importância do Brasil.

Muito obrigado. (Palmas prolongadas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Agradecemos ao estimado

Embaixador Ovídio de Andrade Melo as palavras. O seu depoimento é o testemunho

de justeza da singela homenagem que esta Comissão lhe presta.

Faremos, agora, a entrega da placa em homenagem ao Embaixador Ítalo

Zappa, outro grande embaixador do nosso País. Não tive oportunidade de conhecê-

lo pessoalmente. Conheci sua obra e sei o respeito que lhe é dedicado no mundo

diplomático e no Congresso Nacional.

O Embaixador Ítalo Zappa era homem dedicado à vida pública, ao Estado, e

tinha seu pensamento e sua ação voltados exatamente para os interesses maiores

do nosso País. Ainda jovem, foi Secretário-Geral do Ministério das Relações

Exteriores, mas destacou-se nas áreas de fronteira das nossas relações

internacionais. Onde o Brasil buscava ampliar seus horizontes políticos, geopolíticos,

comerciais e econômicos, lá estava o Embaixador Ítalo Zappa. Ele esteve em

Moçambique, em Cuba, na China e no Vietnã, seu último posto, e em todos esses

países criou as condições para as relações do Brasil com essas nações. Em todas

elas, foi nosso primeiro Embaixador e, como tal, não criava as condições apenas

para as relações formais entre Estados, via a diplomacia como uma atividade

multidisciplinar e não apenas entre governantes, entre Estados. Era também uma

relação entre povos. Ele somava essa visão de Estado também a um profundo

espírito democrático no exercício de suas funções.

É possível encontrar ainda hoje pessoas que se depararam com as atividades

do Embaixador Ítalo Zappa nos tempos difíceis do regime de exceção.

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Principalmente em Moçambique, colhemos vários desses depoimentos. Era comum

ativistas de esquerda, militantes de partidos de contestação ao Governo da época,

sofrerem restrições em repartições consulares do Brasil. Recentemente, o próprio

Senador José Serra fez publicamente queixa nesse sentido. Mas aqueles que viviam

em Moçambique registram que essas dificuldades não existiam enquanto lá estava o

Embaixador Ítalo Zappa.

Em 1968, recebi de uma funcionária cassada do Ministério das Relações

Exteriores depoimento singelo. Presa em processo que a ligava a uma organização

de esquerda e submetida ao tratamento comum na época, a constrangimentos e

vexames, recebeu ela a visita do então Secretário-Geral do Itamaraty, Embaixador

Ítalo Zappa.

Essa jovem, afastada das suas funções no final dos anos 60, só retornou ao

Itamaraty no início dos anos 90. Ela me disse que, depois de décadas sem ver o

Embaixador Ítalo Zappa, não teve dificuldade de reconhecê-lo no Ministério pela

forma como segurava seu inseparável cigarro. Procurou-o e disse: “Estou, neste

momento, depois de décadas, retomando minhas atividades no Itamaraty depois da

anistia. O senhor, como está?” Ele respondeu: “Estou assumindo a Embaixada do

Brasil no Vietnã. Você quer ir para lá nos ajudar?” Ela prontamente disse que queria.

Quando estive no Vietnã, o Embaixador Zappa já estava doente. Afastado de

suas funções, tinha nessa funcionária a expressão mais elevada da nossa

diplomacia.

Essa jovem optou por não viver na área destinada à residência dos

diplomatas e foi morar num bairro popular de Hanói. Ali fazia suas relações com as

famílias, as pessoas, e, ao lado dos funcionários da Embaixada de Cuba, promovia

grandes atividades em nome do Brasil.

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Portanto, prezados familiares, a Comissão de Relações Exteriores presta esta

homenagem mais do que justa ao Embaixador, ao homem de Estado. Ela presta

esta homenagem também a um estilo, a uma forma de encarar a vida pública, à

lealdade, à dedicação, ao espírito que levou o diplomata a ter sempre as razões do

seu povo e do seu País.

A Comissão de Relações Exteriores presta essa singela homenagem ao

Embaixador Ítalo Zappa exatamente porque vê nele a expressão mais pura e mais

elevada do diplomata, do homem público e do homem de Estado.

Leio o que diz a placa:

“Esta placa simboliza o sentimento de apreço,

respeito e consideração da Comissão de Relações

Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos

Deputados à memória do Embaixador Ítalo Zappa,

diplomata exemplar que marcou sua trajetória profissional

por atitudes pioneiras e corajosas na defesa dos mais

altos interesses do Brasil.

Brasília, abril de 2002.” (Palmas.)

A SRA. REGINA ZAPPA – Evidentemente, estou muito emocionada. Creio

que meus irmãos também estão. Apenas quero agradecer ao Deputado Aldo

Rebelo, à Comissão de Relações Exteriores e a todos os presentes esta

homenagem ao meu pai justamente no momento em que se debate temas

importantes do cenário internacional.

Quero cumprimentar também o Embaixador Ovídio de Andrade Melo pela

justíssima homenagem. Conheço o embaixador desde que nasci, por conta da sua

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amizade com meu pai. Lembro-me das longas conversas que tinham, as quais tive o

privilégio de ouvir calada, sentada num canto.

Em meu nome e no dos meus irmãos, quero dizer que é uma honra para nós

estarmos aqui recebendo esta homenagem. Tenho certeza de que meu pai gostaria

de estar aqui agora recebendo essa homenagem e também participando da

discussão dessas idéias.

É muito difícil para mim falar sobre ele. Posso dizer apenas que pude

acompanhar de dentro de casa a retidão e a seriedade com as quais conduziu sua

vida e seu trabalho. Aprendi muito com ele. Ajudou-me ao longo da minha vida

pessoal e de jornalista seu senso de justiça e de liberdade.

Ele tinha paixão por este País que abraçou — uma vez que nasceu na Itália,

veio para o Brasil com os pais aos 2 anos e optou por ser brasileiro aos 18 anos —

com amor e dedicação.

Quero lembrar que meu pai costumava dizer que o Brasil, apesar de às vezes

trilhar caminhos tortuosos e difíceis, estava condenado à grandeza e nunca poderá

fugir desse seu destino.

Espero de coração que ele esteja certo.

Muito obrigada a todos. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Senhoras e senhores,

prezados amigos, Embaixador Ovídio de Andrade Melo, prezada amiga Regina, Srs.

Embaixadores, espero que a trajetória de homens públicos como o Embaixador

Ovídio e o Embaixador Ítalo Zappa ilumine os caminhos difíceis do nosso País e do

nosso povo.

Muito obrigado. (Palmas.)

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O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Senhoras e senhores,

passamos à composição da Mesa destinada a debater o tema “As Perspectivas das

Relações do Brasil com o Mundo Lusófono”, que tem como expositores o Prof. José

Flávio Sombra Saraiva, Diretor do Instituto Brasileiro e Relações Internacionais e

Chefe da Assessoria de Assuntos Internacionais da Universidade de Brasília, e a

Sra. Irene Vida Gala, Chefe da Divisão de África II do Ministério das Relações

Exteriores.

Comunico que, em função da escassez de tempo, as intervenções terão o

tempo de 20 minutos.

Iniciaremos o painel desta manhã com a exposição da Sra. Irene Vida Gala, a

quem passo a palavra.

A SRA. IRENE VIDA GALA – Bom dia a todos, em especial ao Embaixador

Ovídio de Andrade Melo.

É um privilégio para mim, que trabalho há 15 anos com a África no Itamaraty,

ter ouvido seu testemunho depois de tanto ter lido a respeito do trabalho que S.Exa.

fez em Angola.

Cumprimento de forma especial a família do Embaixador Ítalo Zappa, a quem

também não tive o privilégio de conhecer, mas sinto-me muito satisfeita por ter

acompanhado a cerimônia em sua homenagem.

É muito importante situar nossa reflexão sobre as perspecti vas da relação do

Brasil com o mundo lusófono dentro até de uma reflexão sobre o que a Constituição

brasileira diz a propósito das relações exteriores do Brasil.

Quando a atual Constituição foi elaborada, houve grande discussão sobre

projetos de integração com a América Latina, em especial com a América do Sul. As

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relações do Brasil com a América do Sul ficaram consagradas como meta da política

externa brasileira.

Posso dizer — é claro que submeto isso a avaliações de outros convidados —

que se a Constituição brasileira fosse elaborada hoje, haveria referência ao

compromisso de relações privilegiadas com os países de língua portuguesa.

Estou convencida de que, desde os anos 60, quando as relações do Brasil

com a África começam sob a égide da política externa independente do Presidente

Jânio Quadros, até os anos 90, quando surgiu a CPLP, esse foi o grande momento

das relações do Brasil com os países de língua portuguesa. Nesse período, a

relação do Brasil com os países africanos, em especial com os países africanos de

língua portuguesa, ganhou densidade e sobretudo maior razão de ser.

Então, a lógica que aproxima o Brasil dos países africanos, em particular os

de língua portuguesa, remonta o final dos anos 90 e o início do século XXI.

Dito isso, que considero como introdução, refiro que Portugal e Timor Leste

são também países do mundo lusófono, mas neste momento os retiro da avaliação

que vou fazer. No final, poderei fazer alguns comentários sobre Portugal e Timor.

É importante pensarmos que a relação e as perspectivas do Brasil com o

mundo lusófono sejam consideradas de acordo com o histórico da sua relação com

esses países. Se estamos aqui para discutir perspectivas, precisamos ver como

essas relações se reinauguraram a partir dos anos 90, porque, nos anos 60 e 70 e,

em certa medida, nos anos 80, a presença do Brasil no exterior era outra. Houve

uma revisão do que era considerado interesse brasileiro.

No início dos anos 90, começou a desenhar-se outro quadro que não o de

Guerra Fria. A partir do momento em que a Guerra Fria deixa de ser determinante

das ligações entre os países do sul e as relações leste-oeste convertem-se em

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norte-sul, o Brasil precisa situar-se nesse novo contexto, no qual imagino devamos

pensar em referência às perspectivas do Brasil com os países do mundo lusófono,

como Portugal e Timor.

Esse novo contexto nos traz algumas dúvidas. O Embaixador Araújo Castro

participou do primeiro dia do seminário e disse que a política externa brasileira está

há alguns anos orientada para ter presença importante no sistema internacional

multilateral. Hoje, o Brasil faz questão de estar presente em todos os Legislativos

internacionais, porque quer participar das decisões sobre o sistema internacional.

Portanto, para a defesa de seus interesses, é essencial que ele participe das

discussões de temas como plataforma continental, comunicações, enfim, em todos

os regimes — e o Embaixador foi bastante claro a esse respeito.

O sistema internacional é bastante democrático quanto à participação dos

países, que são eleitos para os vários foros por meio de votação. Na maioria dos

casos, com exceção de Fundo Monetário Internacional ou semelhantes, são os votos

que podem levar o Brasil ao Legislativo internacional.

Qual é o grande conjunto de eleitores do Brasil no cenário internacional?

Essencialmente, países africanos, em número de 53 ou 54, que são tradicionais

eleitores do Brasil. Um parêntese: estou falando do conjunto africano porque a

relação do Brasil com os lusófonos tem de ser vista no contexto geral da África

Continental.

Como dizia, o Brasil tem na África um conjunto de eleitores tradicionais, a fim

de que possa ser eleito para o Legislativo internacional. Então, independente do que

sejam valores do comércio, do que sejam relações políticas bilaterais mais estreitas,

temos um grande elemento que justifica a aproximação com o conjunto africano, que

é a tentativa do Brasil de manter presença de peso nos organismos internacionais.

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Se considerarmos o número de votos que o Brasil consegue na América

Latina, que é sua outra vizinhança imediata, com aquele que pode conseguir na

África, esta tem um peso específico bastante grande e praticamente concede mais

do que o dobro de votos.

Os votos foram construídos historicamente pela relação cultural, pela

proximidade ética e pelos vínculos históricos. Hoje em dia, isso evolui menos para

uma questão tradicional e mais para uma questão temática. O Brasil é candidato, por

exemplo, ao Conselho de Segurança para 2004 e 2005 e já enviou nota aos países

solicitando apoio à candidatura brasileira.

É bastante interessante que, na nota, o Governo brasileiro diz que gostaria de

contar com o apoio dos países em desenvolvimento — refiro-me particularmente às

notas enviadas aos africanos. O Governo brasileiro diz: ”Nós, Brasil, gostaríamos de

contar com o apoio desse governo, porque o Brasil representará, no Conselho de

Segurança, os interesses desse conjunto de países em desenvolvimento.” Esse é

um compromisso que o Brasil faz.

Pela confiança que os outros países têm na capacidade do Brasil de defender

linhas de política externa orientadas para a defesa dos interesses dos países do sul

é que o Brasil vai conseguir votos. Essa é um pouco a relação da África com o

Brasil.

Talvez esteja fazendo uma leitura menos tradicional, porque o mais comum

são as pessoas se referirem às questões comerciais, tal como o faz a imprensa ou

mesmo os analistas.

Como o Brasil não tem recursos humanos, para não falar de recursos

financeiros — afinal, somos apenas mil diplomatas para um conjunto de países no

mundo inteiro —, e não é capaz de estar presente em toda a África, o que parece

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bastante claro na política externa brasileira nos anos 90 é que o País consegue

estabelecer algumas pontes de presença no continente africano. É a partir dessa

visão que o Itamaraty tem buscado estreitar as relações com o continente africano.

Essa é uma leitura bastante atualizada das relações internacionais, porque o

Itamaraty deixa de ver os países africanos do ponto de vista exclusivamente bilateral

e passa a entendê-los como regiões. Essa é a tendência. A tendência hoje são

blocos não só econômicos, mas também de identidade, de interesses comuns. Os

interesses tratados individualmente vêm perdendo expressão no final do século XX e

princípio do século XXI.

O que o Brasil tem hoje? Relações privilegiadas com a África do Sul.

Recentemente, a Ministra desse país esteve no Brasil para desenvolver parcerias

econômicas e tentar negociar um acordo entre o MERCOSUL e a África do Sul. O

Brasil também tem buscado estreitar relações com os países da África do Norte, os

países árabes, com a Nigéria e com o Senegal, cujo Chanceler esteve recentemente

no Brasil, na costa ocidental. Mas o Brasil não está em toda a África. Onde o Brasil

de fato está é na África portuguesa, nas ex-colônias. É preciso ver nossa presença

na África portuguesa sob um ângulo geográfico. Dos cinco países de língua

portuguesa na África, três estão na costa ocidental; um está na costa atlântica da

África Austral e outro na costa índica da África Austral. Os dois principais países da

África de língua portuguesa, exatamente Angola e Moçambique, fazem parte do

conjunto mais dinâmico da África, a África Austral. Se o Brasil mantém relações

absolutamente privilegiadas com Angola e Moçambique — não vou aqui discutir de

maneira pormenorizada, porque tudo está no texto — e tem hoje um parceiro

bastante importante na África Austral, que é a África do Sul, o que temos?

Importante presença na área mais dinâmica do continente africano, o sul da África.

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Isso dá a dinâmica de uma política externa feita com visão de futuro e que se está

buscando fazer na CPLP.

Quando surge a CPLP? Ela surge nos anos 90, após o fim do contexto da

Guerra Fria. Nos anos 70, havia uma luta anticolonial, apesar dos problemas nas ex-

colônias portuguesas, e, a partir do fim da colonização, o Brasil engaja-se numa

posição de princípio anticolonial, sobretudo no que se refere à África do Sul e à

Namíbia, contra o apartheid. Ao acabar a Guerra Fria, o Brasil perde seu discurso.

Nós, de alguma forma, tínhamos relações comerciais que também se enfraqueceram

em função do fim das linhas de crédito, do endividamento do Brasil, do

endividamento da África. Portanto, o que acontece? Os anos 90 são uma década

que se inicia sem um tema, vamos dizer assim, de política externa que se pretende

continental, com substância e que não constrói relações país a país.

A CPLP surge a partir da presença não de um homem, mas de um processo

histórico, embora, sem dúvida alguma, a presença do Embaixador José Aparecido

de Oliveira, já como Ministro da Cultura, tenha sido bastante importante. Costumo

dizer que ele é o político brasileiro que mais visitou os países de língua portuguesa e

talvez o único que tenha conhecido os cinco países, faltando apenas mandá-lo ao

Timor — também para essa questão, ele teve importante posição. Enfim, o fato é

que a CPLP surge num momento em que há espaço para essa nova política de

aproximação.

Quando, há pouco, falava da visualização geográfica da CPLP, referia-me à

África Ocidental, essencialmente francesa com alguma presença inglesa; também a

Nigéria é um grande país. A presença de países de língua portuguesa na África

Ocidental permite ao Brasil eleger alguns para irradiar respeito pela sua Diplomacia.

E o que faz o Brasil? Procura, com essas nações, realizar trabalho que não se

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resume às fronteiras nacionais. A idéia é a de mostrar aos demais países que o

Brasil tem importante política do ponto de vista de substância.

Cito o exemplo da África Ocidental com relação à dívida externa. O Brasil

perdoou 95% da dívida de Moçambique, o que significou, em 2000, em termos de

contas nacionais, algo ao redor de 300 milhões de dólares. Para os senhores terem

uma idéia, na última reunião do G-8, a Inglaterra anunciou plano de redução da

dívida externa de todos os países africanos para os próximos 12 ou 15 anos, e essa

dívida chega à casa dos 700 milhões de dólares. O Brasil fez metade disso de uma

única vez e sem nenhum anúncio, ou seja, temos uma política muito mais

consistente do que anunciamos. Talvez pudéssemos ser mais extrovertidos na forma

de anunciar o trabalho que o Governo brasileiro faz na África.

Outro caso na África Ocidental diz respeito ao perdão, por parte do Brasil, de

significativa parte da dívida externa de Cabo Verde. Nosso País está renegociando a

dívida externa da Guiné Bissau. Quando me refiro a esses exemplos, bastante

importantes no caso da dívida externa, estou querendo dizer que o Brasil adota

nesses países política que dá seriedade à sua política externa. Quando o nosso

País declara às demais nações que as defenderá no Conselho de Segurança, nos

vários assentos que já ocupa ou nos que venha a ocupar no Legislativo

Internacional, quer dizer o seguinte: “Eu faço políticas que de alguma forma

procuram ir ao encontro dos interesses de todos”.

Como só disponho de mais cinco minutos para falar especificamente das

perspectivas, quero lembrar que as perspectivas da política externa brasileira para o

século XXI dependem de condicionantes externas e internas. As condicionantes

externas têm bastante a ver com a própria evolução dos países africanos. Estes

estão buscando um trabalho de consolidação democrática, de correção das suas

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próprias economias, porque já fizeram o mea-culpa de um modelo de

desenvolvimento que também não os ajudou. Essas condicionantes externas

também têm a ver com a própria evolução do sistema internacional e em que medida

as ex-metrópoles, associadas aos Estados Unidos, deixarão aos países africanos a

liberdade de estabelecer relações com o Brasil.

Nosso País, é importante que se diga, ao buscar uma relação com a África,

tem de se bater com as grandes potências que, em termos sistêmicos, fazem uma

política de inviabilização das linhas de diálogo Sul—Sul.

Além dessas condicionantes externas, temos talvez o mais importante: as

condicionantes internas. Minha impressão é a de que o Governo brasileiro,

sobretudo ao longo dos últimos dez anos, na década de 90 e início do século XXI,

tem realizado política bastante consistente. É importante afirmar — e trabalho com

isso já há algum tempo — que há fortíssima e ampla convergência de setores da

sociedade civil brasileira em prol da política africana. Talvez haja setores que

gostariam de ver o Brasil mais agressivo nessa ou naquela área, mas todos

concordam com o fato de que o País está na linha certa quando procura aproximar-

se desses países. Quando digo todos, refiro-me ao setor empresarial, que tem

curiosidade em saber como obter novos mercados, estabelecer joint ventures e

mudar sua rota de investimento, de forma a, mediante concessões do sistema

Norte—Sul, ter melhor acesso aos mercados europeus.

Grande número de agentes técnicos brasileiros, como, por exemplo, o SENAI

e a FIOCRUZ, têm interesse nisso, porque estão aprendendo a fazer cooperação

internacional nos países de língua portuguesa.

Existem ainda algumas condicionantes internas bastante importantes, como a

imprensa. O Itamaraty navega muito sozinho, e a imprensa deixa muito a desejar

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enquanto parceira que conduz o Brasil nessa política, que me parece bastante

legítima, de aproximação com a África, tendo em vista os interesses que mencionei

no princípio.

O Congresso Nacional tem sido extraordinário parceiro do Brasil no que se

refere às relações com os países de língua portuguesa. Faço especial

agradecimento ao Deputado Aldo Rebelo e aos demais Deputados e Senadores

que, com suas emendas, conseguiram recursos adicionais do Orçamento da União

para promover a cooperação com os países de língua portuguesa. Essas nações

são as únicas que têm rubrica específica para cooperação no Orçamento nacional.

E, como o Orçamento é prioridade, temos aí clara manifestação de que o Congresso

considera prioridade os países de língua portuguesa.

Por fim, encontram-se os agentes políticos do Executivo. A última reunião da

CPLP foi importante para mostrar o engajamento do Presidente Fernando Henrique,

agora Presidente da Comunidade. A sensação que nós, do Itamaraty, temos é a de

que os demais agentes políticos da Esplanada dos Ministérios perceberam que a

relação com a África de língua portuguesa é importante e deve ser compromisso da

política brasileira.

Dito isso, refiro-me apenas ao Timor Leste e a Portugal. A relação com

Portugal — e tenho impressão de que o Prof. Flávio Saraiva irá falar um pouco mais

sobre isso — é bastante amadurecida, mas, no que se refere aos países de língua

portuguesa, em alguns momentos, passa por certas dificuldades. A relação Brasil—

Portugal, no tocante à África de língua portuguesa, não é tão convergente. Com

relação ao Timor, porém, foi um acréscimo dos mais felizes. Tenho a percepção de

que sua luta por independência trouxe para a sociedade civil brasileira, para nosso

consciente coletivo, a idéia de que se pode fazer uma política externa com vocação

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a promover a língua portuguesa, não pelo que ela representa como patrimônio, mas

pelo que ela representa como produto de exportação de valores, como os já

referidos anteriormente: soberania e igualdade entre os povos.

Nesse aspecto, a CPLP é um grande exemplo. O Timor, que acabou de entrar

para a CPLP, tem direito a voto. Todos falam com a mesma voz. Trata-se de

exercício da diplomacia multilateral para um país que tem apenas três meses no

cenário internacional. A CPLP dá às novas lideranças timorenses oportunidade de

fazer esse exercício de diplomacia multilateral. Para nós, já antigos nesse cenário,

Timor dá nova referência, como disse o Primeiro-Ministro português na abertura da

Comunidade, de que é possível trabalhar com ideais. Na CPLP temos clara visão de

que isso é possível.

Termino por aqui, colocando-me à disposição para responder a possíveis

indagações.

Muito obrigada. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Muito obrigado, Sra.

Secretária Irene Gala. De público, a Comissão de Relações Exteriores agradece e

reconhece o esforço de V.Sa. no sentido de aprofundar as relações do Itamaraty

com o Congresso e deste com nossos irmãos, os países de língua portuguesa, aos

quais nos unimos não só pelos laços do idioma e da História, mas pela identidade

comum de desafios.

Com a palavra o Prof. Flávio Saraiva, Diretor da Assessoria de Assuntos

Internacionais da Universidade de Brasília.

O SR. JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA – Felicito todos os membros da

Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados,

na figura do seu Presidente, Deputado Aldo Rebelo; o Embaixador Ovídio de

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Andrade Melo; a família do Embaixador de Moçambique, Ítalo Zappa, que recebe a

homenagem póstuma do Governo brasileiro e, em especial, deste Parlamento.

Agrada-me a forma cooperativa com que acadêmicos, diplomatas e

Parlamentares foram convocados a opinar sobre matéria que, embora de interesse

societário, ainda se circunscreve, neste País, ao viés prejudicial no trato da política

externa como assunto burocrático de especialistas ou profissionais em Diplomacia.

O exercício pedagógico e democrático vem crescendo. A socialização do

debate acerca das possibilidades do meio internacional é retratada neste mesmo

auditório quando se percebe a extraordinária adesão não apenas dos membros da

Comissão e dos andarilhos de Brasília, mas dos jovens que se incluem no conjunto

de estudantes de Relações Internacionais, que, nas universidades brasileiras,

alcançam hoje o número aproximado de 22 mil estudantes, em 60 cursos da área

credenciados pelo Ministério da Educação, segundo documento ontem publicado

pelo mesmo órgão.

Trata-se de extraordinária responsabilidade social do Parlamento, assim

como da Chancelaria e dos professores. E essa responsabilidade diz respeito ao

ambiente de geração de conhecimento mais sofisticado e democratizado na área

internacional.

É, portanto, essencial o exercício que aqui está sendo feito.

Circunscrevo-me ao tema proposto a partir de um lugar, a universidade, que é

a observância, nos últimos 15 anos, da nossa relação com a África, país sobre o

qual escrevi alguns livros. Tenho sobre ela a seguinte preocupação: a de que sua

história com o Brasil, com os países de língua portuguesa, acumule oportunidades

que foram exploradas e algumas não, relançamentos de forma ciclotímica e

esquecimentos depois das festas. É um triângulo que se move entre Brasília, Lisboa,

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capitais africanas de língua portuguesa e agora Timor Leste; é um compasso

nervoso, modulado no tempo, entre memória e esquecimentos, ação e abandono,

vontade e desinteresse.

Mesmo assim, o Brasil oscilou historicamente entre uma espécie de amor

incontido nas suas relações com Lisboa, muitas vezes em detrimento das

possibilidades de diálogo direto com outras partes do mundo oficial de língua

portuguesa. As posições desenhadas no extraordinário depoimento do Embaixador,

de ativo reconhecimento rebelde, devem ser consideradas contra interesses de

potências hegemônicas diante de processos revolucionárias na África.

Ainda componho a geração renovada de Embaixadores a acreditar, a partir da

sociedade civil, na imaginação da política africana no Brasil, que possa ela ser não

apenas a continuação do que se está fazendo, mas também incluir algumas ações

de forma extremamente positiva.

A Secretária Irene Gala exemplifica esse movimento com sua dedicação à

carreira e ao seu ofício, apesar dos constrangimentos diante de meios escassos e

do afastamento político-intelectual da África, o que não é de responsabilidade

exclusiva da Chancelaria, mas de nós mesmos, em todas as nossas instituições, e

que está no seio da sociedade.

Portanto, é ímpar e urgente que o Parlamento, ao reconvocar o tema da

ALCA para novembro, em acréscimo ao que fez no ano passado, tenha promovido

este seminário com o cuidado de incluir os assuntos africanos e dos países

lusófonos nesse ambiente. É portanto, um ato de coragem.

Tenho três aspectos para abordar. O tempo é o constrangimento, mas não

posso perder a oportunidade de tratar de três problemas. O primeiro é a própria

CPLP, aqui já abordada em algum de seus contributos pela Secretária Irene Gala. O

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segundo é o que chamo de constrangimento para o relançamento de política

africana mais agressiva no século XXI, de acordo com o tema deste seminário. Em

terceiro lugar, as contribuições que a sociedade brasileira pode dar à construção da

mencionada política.

Celebramos a IV Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da CPLP,

que se realizará entre o final de agosto e o início de setembro deste ano, ocasião

alvissareira em que se passará em revista o percurso histórico da infanta instituição

dotada — o que deve ser relembrado aos estudantes — de personalidades jurídicas

internacionais, como tem o common goal e o instituto da francofonia — este último

posterior ao próprio estatuto jurídico da CPLP —, para investigar as possibilidades

no futuro.

Há importantes novidades na Conferência em Brasília, como a inclusão do

seu oitavo membro, o Timor Leste, com a abertura, portanto, de uma franja asiática

para a instituição tingida ainda pela baixa visibilidade interna dos Estados-membros

e por quase imperceptibilidade perante a comunidade internacional.

Destaca-se o relançamento da estratégia conjunta dos Chefes de Estado e de

Governo no sentido da redução das barreiras impostas pelas legislações nacionais,

ciosas da abertura de seus portos e aeroportos à livre circulação de 200 milhões de

cidadãos do clube da língua portuguesa. Reforça-se a cooperação técnica na área

de saúde, com acordos voltados para ações conjuntas na prevenção, diagnóstico e

assistência aos doentes contaminados pelo HIV. A idéia da transferência de

tecnologia, que é um velho recurso brasileiro na África entre os países-membros,

bem como a formulação de políticas de acesso aos próprios medicamentos, foram

acordos também assinados. Então, vida à CPLP!

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Não podemos, porém, esquecer as dificuldades do caminho tortuoso da

instituição criada no Palácio de Belém, em 1996. Ela padece de algumas

ambigüidades que emergem da convivência histórica desses sete países — agora,

oito — , em projetos e interesses distintos no ambiente comunitário.

Brasil e Portugal nem sempre coincidiram nas suas intenções de convergir

políticas em favor da valorização da CPLP. Os países africanos de língua

portuguesa, por sua vez, nem sempre podem oferecer aos esquemas de

funcionamento da instituição aquilo que desejamos.

O Brasil expõe dificuldade de origem, transportada para o momento atual, que

não tem a ver com o esforço que a divisão dos Departamentos África I e II do

Itamaraty faz, mas está relacionada com a terrível coincidência do lançamento da

CPLP com o ciclo de retraimento das relações comerciais, diplomáticas e

estratégicas do Brasil com os países do outro lado da franja asiática.

Está vedada a evolução do quadro dos diplomatas brasileiros no exterior.

Basta verificar a gradativa redução, que se iniciou no final dos anos 80, mas foi

claramente deflagrada no início dos anos 90, do contingente dos diplomatas em

atuação nas nossas representações. O comércio é outro exemplo.

As relações do Brasil com tais países, nos anos 90 e no início do século,

portanto, vêm se ajustando ao contexto atlântico menos relevante na inserção

internacional do nosso País.

Ficaram para trás os anos de ativa cooperação mútua de empreendimentos

comuns, sustentados na determinação política do Estado brasileiro — não pretendo

criticar o Governo — de desenvolver projetos econômicos voltados para o

desenvolvimento da África (o ciclo se encerrou), diversificando as parcerias, o

comércio internacional, subtraindo o que houve nas décadas de 70 e 80, a chamada

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vulnerabilidade energética. A própria sociedade civil perdeu, nos últimos tempos,

parte do encantamento acerca das chamadas possibilidades construtivas de forte

presença brasileira na África.

O silêncio na imprensa, no Parlamento e na universidade sobre o que

acontece na África é impressionante. Chamo isso de perda da vocação atlântica. Ela

tem gerado desmobilização diplomática e, evidentemente, não nutre apenas as

nossas vicissitudes e dificuldades, mas também a leitura do que se passa do outro

lado, que nem sempre é adequada. Está particularmente dominada pelo paradigma

do afro-pessimismo, que nem sempre corresponde às realidades da evolução

política, econômica, da democratização, ainda que lenta, e da retomada de certos

processos de desenvolvimento econômico em países de língua portuguesa na

África.

Há determinado ponto nevrálgico na CPLP que atinge Portugal e Brasil, em

especial: uma certa ausência de conteúdo político e econômico nas formulações e

práticas da instituição. De tal crítica advém o rosário de reclamos com relação à

dinâmica de trabalho e aos financiamentos dos projetos.

A CPLP, apesar do empenho, mostrou historicamente, no seu pequeno

período de experiência, ter enormes dificuldades na construção e no financiamento

de projetos focais, como aqueles voltados ao combate ao HIV e à AIDS, à formação

dos centros regionais de excelência e de desenvolvimento empresarial e de

administração pública, projetos extremamente relevantes. Eles têm se limitado a

restrições de toda ordem, sobretudo orçamentárias.

Em outras palavras, para concluir o primeiro ponto, o que se espera é que o

momento midiático dos debates da Conferência de Brasília não tenha apenas

encapsulado a CPLP a poucos minutos de glória.

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O esforço do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Itamaraty,

que realizou excelente seminário organizado pelo Instituto Brasileiro de Relações

Internacionais — IBRI, não pode fenecer no ambiente global e no contexto

pantanoso em que vivemos, pela dimensão dos países de língua portuguesa, no

último tópico da agenda, ou no último painel a ser tratado.

Portanto, há a atitude de reconhecimento naquilo que se vem desenvolvendo,

mas há desconfiança metódica, não de ceticismo de fins, porém de meios acerca do

muito que se precisa fazer.

Segundo aspecto: a política africana no Brasil. Sem ela não se pode pensar

no desenvolvimento da política externa do Brasil para os chamados países

lusófonos. Utilizo pouco esse termo. Prefiro dizer “países de língua oficial

portuguesa”. Nem todo país que fala a língua portuguesa tem a expressão da língua

portuguesa oficialmente ou a expressão lingüística cultural dominante lusófona. São

os limites para o relançamento da política africana no Brasil no seio da quadratura

em que vivemos.

Há constrangimentos estruturais para o lançamento da política africana. Eles

estão relacionados com a adoção de modelo econômico perverso que, na última

década, foi marcado por não identificar a Nação e por impulsionar o terreno

movediço das vulnerabilidades criadas pela alienação do patrimônio nacional a

grandes companhias. Tal modelo inibiu vontades políticas dos governantes, limitou

investimentos naturais na economia atlântica e reduziu a criatividade diplomática.

Do lado africano, o que torna difícil o diálogo é o acumular, depois de quatro

décadas do início das independências, dos contornos de uma crise de explicação

controversa e de renascimento ainda incompreendido deste lado do Atlântico.

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Nem as políticas de ajustamento estrutural preconizadas pelo Banco Mundial

e pelo FMI, nem os processos de ampliação democrática dos sistemas políticos têm

sido suficientes para enfrentar, em grande parte dos países africanos, a

profundidade dos problemas econômicos, políticos e sociais.

Havia o sonho, nos anos 60 e em parte dos 70, de caminho distinto do que a

África no seu conjunto tomou. Temos parte nisso, porque também construímos

parâmetros oscilantes na política externa brasileira nos anos 90, com reverberação

na política africana e que nada têm a ver apenas com o movimento específico de

organismos ou de funções diplomáticas.

O País parece ter transitado entre alguns parâmetros confusos em política

externa nos anos 90. Desde aqueles que chamo de equívocos de substância — e

não apenas eu, mas muitos —, os da apresentação da abertura econômica, da

estabilidade monetária e da democracia como vetores de política externa, mesmo

sabendo que tais vetores nunca serviram a Estados maduros como externos,

passando pela aplicação acrítica de políticas importadas de rigidez fiscal, que

retiram o Estado dos investimentos produtivos, contraem salários, privatizam

empresas públicas, vendendo-as às companhias estrangeiras para arrecadar

dólares e pagar a dívida externa, até os equívocos de meios. Esses equívocos de

meios, que não são de substância, também se reverberaram na política africana,

como a crença kantiana e idealista, em especial da diplomacia de Cardoso nos foros

multilaterais, de que se podia mudar o mundo por intermédio de mobilização

multilateral em grande escala e que a generosidade kantiana emergiria. Esses

equívocos, evidentemente, tiveram reverberação num acumulado de relações

bilaterais, de parcerias estratégicas, que haviam sido historicamente desenhadas no

Brasil em um ciclo de racionalidade anterior à década de 90.

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A África, portanto, se outras regiões ficaram excluídas desse norte, ficou mais

fora ainda. O Brasil se deixou contaminar pela interpretação ingênua das relações

internacionais kantianas, em torno das quais as saídas para a modernidade estavam

no multilateralismo, no esforço da construção de uma agenda global consensual e

na regulação de temas globais como o liberalismo econômico, o meio ambiente, os

direitos humanos, o sacrifício da segurança nacional, entre outros.

Tal confusão conceitual levou, no caso específico da África, ao abandono de

alguns ricos caminhos anteriores já trilhados pelo Brasil e que reaparecem agora em

capítulos relevantes dos programas de política externa dos candidatos à Presidência

da República deste País: o modelo de substituição de importações e política de

promoções comerciais agressiva.

Portanto, a confusão entre meios e fins, de vez ou outra ocasiona o jogo entre

a racionalidade e a irracionalidade nos conceitos de política externa.

A reversão do comércio exterior, amparada no preconceito de que certo

protecionismo ao mercado interno emperrava o crescimento econômico e de que o

comércio exterior, que foi o braço essencial nas relações Brasil—África, perdera sua

função de gerar saldos, matou as matrizes que davam materialidade à política

atlântica do Brasil. Associo tal dificuldade ao fato de que, por parte de diplomatas e

negociadores brasileiros, se gerara extraordinária expectativa nas potências

avançadas sobre vontade reformadora do sistema multilateral — o que não se vem

fazendo —, a conduzir o Brasil para a modernidade que muito distava do padrão de

relacionamento comercial externo que embalara os anos dourados da política

africana do Brasil.

Não me estenderei na crítica, apenas insisto no fato de que a erosão do

modelo empurrou o Brasil para o MERCOSUL, afastando-o da África. Ela expõe

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justamente a dificuldade de trato da dimensão múltipla, orgânica e de valorização de

múltiplas estratégias em uma visão um pouco mais brasileira e menos copista, que

poderia ter gerado a permanência de uma política africana mais ativa do que a que

temos hoje.

Vou concluir, porque me restam apenas cinco minutos, abordando outros

aspectos importantes para o debate: as razões pelas quais temos a obrigação

histórica, social, diplomática, estratégica, comercial e militar de renovar a política

africana do Brasil no início do novo século. Este será um desafio para o próximo

Presidente da República e para o próximo Congresso Nacional.

Cito quatro elementos. Em primeiro lugar, a rica tradição, muitas vezes

esquecida, que gerou frutos de valor para a inserção internacional do Brasil, na forja

de parcerias múltiplas, consonantes com a tolerância da nossa sociedade,

desprovida de ódios étnicos e laboratório de experiência de recepção de todos que

um dia aportaram na Terra de Pindorama. É fundamentalmente dessa tradição que

deriva a vocação universalista da política exterior do Brasil, que provém da

sociedade brasileira, dos seus fundamentos; é um constructo social. Estar na África

é, portanto, estar prestando contas internas, naquele aspecto que nos faz ímpar e

originais no seio da comunidade internacional.

Ademais, como bem sabemos — e as lições do presente nos indicam —, não

se podem concentrar relações externas no Brasil em pólos únicos, em detrimento de

outros, apenas pela razão do poder hegemônico, imperial ou especulativo que tais

centros exercem. As relações internacionais não se realizam apenas na realpolitik

nem no ambiente dos interesses imediatos. A dimensão africana da política externa

do Brasil é mediata, não imediata; não pode se circunscrever, pela sua própria

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dinâmica, apenas aos fatores da materialidade, por mais romântica e piegas que a

frase possa parecer.

A política africana deve ter estatuto próprio, identidade que a torne singular no

emaranhado de interesses múltiplos do Estado e da sociedade brasileira.

Em segundo lugar, há uma dívida histórica com a África. Isso foi declarado

muitas vezes por Ministros de Estado e por Presidentes da República. É preciso

preencher essa frase com densidade contextual e prática. Há, na sociedade,

demanda de uma política específica, pública e legitimada por intermédio de

instituições, como o Parlamento, as universidades, as empresas e a opinião pública.

A África é lugar privilegiado de formação da brasilidade, curtida e urdida ao longo do

compasso do tempo. Os dois Atlânticos já se abraçaram em era geológica remota,

compondo um mundo único. A África ocupou o papel cêntrico na formação da

sociedade e da economia do Brasil.

Apesar dos laços encerrados em certo momento e do silêncio que imperou

nos escassos contatos atlânticos em grande parte do século XX, períodos afônicos,

a África permanece como uma lavra fundadora da brasilidade — e verificamos

também retomadas importantes, gestos diplomáticos extraordinários, gestos

comerciais fundamentais. Creio, porém, que ainda precisamos, de forma mais

criativa, aproveitar as oportunidades que o continente vem abrindo.

Em sua diversidade, a política para Moçambique não é a mesma para Angola,

África do Sul, Gabão ou Nigéria, porque a África são muitas Áfricas. Varia de nação

a nação, de povo a povo, na diversidade que compõe o xadrez africano. Isso é

importante, porque, quando se fala da política européia do Brasil, não se fala na

política do Brasil para a Europa ou apenas MERCOSUL—União Européia ou nas

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relações bilaterais importantes, como a que rege Brasil—Alemanha e a que rege

Brasil—França.

Portanto, o xadrez africano é múltiplo. E se não há mais possibilidade de

grande política para todos, há escolha, há opção entre possibilidades, sobretudo,

nessa dimensão da diversidade, das formas de pensar.

Em terceiro lugar, Sr. Presidente, para concluir, o relançamento da política

africana não seria apenas um ato de fé — mesmo com o romantismo que pareço

transmitir nas conclusões —, mas o resultado de cálculo político e econômico.

Politicamente, ir à África e lá permanecer serve para reforçar a idéia de que o Brasil

ainda tem um projeto cooperativo no Sul para engendrar alguma liderança nas

novas rodadas de negociação de temas globais, na reformulação do Conselho de

Segurança das Nações Unidas, na busca de parcerias estratégicas ao Sul, junto

com países como África do Sul, Índia e China.

Portanto, são possibilidades de o País concertar com seus parceiros de forma

horizontal, e o Brasil tem todas as condições de constituir instrumento de barganha e

reorientar o próprio eixo diplomático, passando de temas como o terrorismo para

outros mais construtivos e de nosso interesse, como o desenvolvimento sustentável

e a cooperação Sul—Sul.

Esse aspecto político se desdobra economicamente. De modo que uma

política africana serviria de instrumento ou de reforço ao conjunto de movimentos

que a inserção internacional do Brasil terá de fazer nos próximos anos, em nítida

crise de identidade no momento atual. Em contraste com a inserção marcada pelo

triunfalismo liberal, a África serviria ao esforço de aproveitamento de brechas

estruturais na ordem internacional e de reforço na retomada de um modelo de

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inserção internacional de bases mais nacionais e voltado para o desenvolvimento

interno sustentável, gerador de empregos e produtivista, mais que financista.

A África está interessada nessa cooperação e sabe muito bem o que

aconteceu no País na última década. Estudam o Brasil como nem sempre

estudamos a África.

Portanto, seriam necessárias iniciativas no interior dessas brechas. Refiro-me

aos espaços que se abrem no coração da crise internacional do momento pelos

foros da própria tecnoburocracia internacional do Banco Mundial, do FMI, no sentido

da percepção da vulnerabilidade desses modelos, da sua reconstituição, das

brechas para uma revisão crítica, especialmente dos efeitos perversos realizados de

um lado e do outro do Atlântico. Mas não vou seguir nisso, porque pode parecer que

faço proselitismo político, e este lugar é de Deputado, não de acadêmico.

Quero falar sobre algo particular e útil, que me parece importante: as relações

luso-brasileiras.

A Secretária Irene, sob constrangimento diplomático, mas de forma

apropriada, chamou a atenção, ao final, para o fato de que precisamos nos acertar

com Portugal. Antes, estávamos cada um de um lado. Juntamo-nos em alguns

instantes, mas não podemos mais atuar na África de forma isolada.

Há novo ambiente. Há substrato inédito. Há um Portugal que se fez europeu,

mas que não pode abandonar seu braço atlântico. Há nova engenharia da atuação

bilateral, que se configura na Comissão Bilateral e na relação Brasil—Portugal — o

Presidente encerrará seu mandato indo a Portugal, em novembro ou dezembro. Há

investimentos portugueses, turismo lado a lado, comemorações da viagem de

Cabral, tratados de Porto Seguro. Há coisas lá e cá. Mas não vemos essa energia

sendo orientada dos dois lados, tanto do setor empresarial, como do setor político-

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diplomático; ou seja, a construção do que chamo plataforma atlântica cooperativa e

utilitária em projetos de troca de experiência na África. Por quê?

Se analisarmos o que foi dito sobre a CPLP nesses dias de reunião,

poderemos sintetizar algumas idéias publicadas, acessíveis a todos. Por exemplo,

para que a língua portuguesa na África, se as línguas do desenvolvimento e da

obtenção de possibilidades de ajuda internacional passam, naquele país, pelo inglês

e pelo francês?

Essa discussão está posta. Na Internet, encontrei um desses críticos de

plantão. A possibilidade de seguir o transcurso da própria presença cultural, de dar

diversidade ao mundo, de mostrar que o mundo não tem uma única polaridade, um

só caminho, em que a cultura e a língua estejam presentes, pode fenecer, se

fraquejarmos na materialidade da ação naquele continente.

Os jovens de algumas capitais africanas — não vou referir-me a elas neste

instante — já se interessam muito mais pelo estudo das línguas inglesa e francesa

— eles estão nesse ambiente regional de grande presença dessas línguas — do que

pelo estudo do português. Vamos abdicar dessa presença, deixando a materialidade

tomar conta das possibilidades permanentes dessa forma?

Portanto, são essas as questões, a título de debate, sob o ângulo

tendencialmente provocador do professor.

Muito obrigado, Deputado.

Agradeço a todos a atenção. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Desejo registrar que nosso

serviço de comunicação, a TV Câmara, transmitiu ao vivo — e continua a fazê-lo —

toda a sessão da manhã de hoje.

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Quero avisar que as conferências serão publicadas na íntegra pelos

organizadores, inclusive as desta Mesa. Em função do tempo, nem a Secretária

Irene Gala, nem o Prof. Flávio Saraiva tiveram oportunidade de expor o conjunto das

suas opiniões e das suas preocupações em relação ao tema. E exatamente pelo

fator tempo não teremos também, nesta Mesa, a possibilidade de realizar o debate.

Mas as perguntas, por si só, já constituem importante conquista das exposições.

Então, pelo menos isso já se produziu.

Agradeço, mais uma vez, ao Prof. Flávio Saraiva e à Secretária Irene Gala as

presenças.

Vou suspender os trabalhos por cinco minutos e retomá-los com a próxima

Mesa, cujos debatedores já estão presentes.

Muito obrigado. (Palmas.)

(A reunião é suspensa.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Senhoras e senhores,

retomamos nossos trabalhos, com a penúltima atividade: a Mesa de nº 9, que tem

como tema os desafios internacionais para o século XXI: a proteção internacional

dos direitos humanos; as transformações da natureza; os conflitos internacionais;

novas formas de intervenção; o sistema financeiro internacional; os organismos

internacionais, os capitais transnacionais; a dívida externa dos países menos

desenvolvidos; a relação entre o FMI e os países em desenvolvimento; a assistência

ou a ingerência; os capitais transnacionais; a regulação internacional ou o livre

mercado; a dívida externa dos países emergentes; as mudanças de paradigmas na

questão ambiental; o Protocolo de Kioto.

O conferencistas será o físico e professor da Universidade de Brasília, José

Walter Bautista Vidal, a quem convidamos para integrar a Mesa. Convidamos ainda

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para integrarem a Mesa a Procuradora-Geral do Estado de São Paulo, Dra. Flávia

Piovesan, e o Sr. Marcelo Castro.

Após o término desta Mesa, juntamente com o Prof. Luis Fernandes, Diretor

da FAPERJ, e com o Ministro Carlos Cardim, Diretor do Instituto de Pesquisa de

Relações Internacionais do Itamaraty, faremos o encerramento do nosso seminário.

Não precisamos declarar que estamos premidos pela circunstância do tempo.

Vou conceder, de acordo com o que adotamos desde a tarde de ontem, um

período de vinte minutos para os expositores. Em seguida, faremos o encerramento

do nosso seminário.

Então, passamos a palavra, para a intervenção inicial do tema da presente

Mesa, ao professor da Universidade de Brasília, físico e ex-Secretário de Política

Industrial do Brasil, José Walter Bautista Vidal.

O SR. JOSÉ WALTER BAUTISTA VIDAL – Sr. Presidente da Comissão de

Relações Exteriores e de Defesa Nacional, Deputado Aldo Rebelo, senhores

membros da Comissão, senhores diplomatas, minhas senhoras e meus senhores,

gostaria inicialmente de me congratular com a Comissão pela oportunidade deste

seminário no presente momento, não só por estarmos num ano eleitoral, num ano,

acredito, decisivo, mas também pelas circunstâncias em que se encontra o mundo.

Na realidade o mundo está em guerra, por causa do fim de uma era que

durou duzentos anos e está colocando as nações hegemônicas em situação

desesperadora, em razão de problemas energéticos, ecológicos e do efeito estufa.

Prevemos para o futuro situações muito sérias.

É sobre essa questão que vou centralizar minha exposição, tendo em vista o

papel fundamental que, acredito, o Brasil tem a desempenhar nesse contexto do

início do século XXI, nessa terrível situação em que vivemos.

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Congratulo-me com a Comissão por esta importante homenagem aos dois

embaixadores. Conhecia de nome o Embaixador Ovídio de Andrade Melo, mas

convivi muito com o Embaixador Ítalo Zappa, que era amigo íntimo do Ministro

Severo Gomes e freqüentemente nos encontrávamos no Ministério — um patriota e

homem de grande visão, com enorme capacidade e coragem. Percebo que os

senhores estiveram juntos desde a infância e são realmente dois exemplos

fundamentais de referência para o Brasil no futuro.

Este trabalho propõe a formulação de grupo de alianças do Brasil com

importantes países para resolverem questões convergentes com as excepcionais

vocações brasileiras, com vistas à solução de problemas cruciais desses países e

também para atender a fortes e consistentes interesses comuns.

Essas alianças orientariam nossa política externa de modo a criarem

condições de fortalecimento do conjunto, para assim podermos resistir a

devastadoras investidas de grupos oligárquicos que dominam o sistema financeiro

mundial, os quais estão levando as nações e os povos ao desastre. Por esse

processo, países detentores de grandes potenciais de riqueza e povos operosos

estão sendo transformados, em curto espaço de tempo, em párias internacionais.

Além de emitirem moeda em regime de monopólio e sem qualquer critério —

as regras de Breton Woods deixaram de existir desde 1971 —, esses grupos

inundam o mundo com moeda falsamente simbólica, sem lastro, em proporção de

dez para um, submetem a irresponsável desregulamentação os Estados nacionais, o

que praticamente destrói suas respectivas moedas e estabelece a tirania do dinheiro

falso de controle externo. Os ricos patrimônios naturais das nações, imprescindíveis

ao processo civilizatório, são desvalorizados ao extremo e têm seus controles

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transferidos para grupos externos, o que compromete gravemente a vida das futuras

gerações.

Esse dinheiro sem pátria, sem lastro e sem lei invade as estruturas

institucionais e jurídicas dos diferentes Estados, ao tempo em que o comando efetivo

destes é entregue a suspeitos gestores ligados a esses grupos oligárquicos. Assim,

fica facilitada a entrega dos principais ativos e patrimônios naturais estratégicos

nacionais a grupos externos pelo chamado processo de privatização, na realidade,

internacionalização, em ilegítimos atos usurpadores.

Os agentes da oligarquia externa que dominam o Estado pela via da tirania

financeira manipulam índices a seu bel-prazer, como taxas de câmbio, de inflação e

de juros, de modo a submeter a riqueza nacional e todos os instrumentos e meios

econômicos do País ao controle desses grupos.

Enquanto o industrial brasileiro ou o produtor agrícola de capital nacional

pagam taxas de juros, na melhor das hipóteses, de 20% a 40% ao ano — chegaram

a 49% com Gustavo Franco no Banco Central —, o seu competidor externo,

operando em território nacional, consegue em suas origens recursos financeiros de

1% a 4% de taxas anuais. Nessas condições, por questão de aritmética elementar, é

impossível ao nacional competir e sobreviver.

Partimos aqui de algumas premissas básicas e de recentes fatos concretos

assustadores, que estão ocorrendo, por exemplo, na vizinha Argentina, um dos

países mais bem dotados do planeta, que já teve, per capita, a segunda maior

renda e a maior exportação do mundo. Grande supridor de alimentos, com auto-

suficiência energética, mesmo dispondo das melhores terras agricultáveis e com

povo de excelente nível de educação, está sendo esmagado por criminosas políticas

financeiras impostas por entidades do “governo mundial”. Cinqüenta por cento da

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sua população já se encontram na miséria, em crescente e rápida deterioração

generalizada.

Esse sistema monetário está levando o povo argentino a acelerado processo

de planejada destruição. A absurda aritmética que regula o endividamento externo

levou o país de uma dívida externa de 27 bilhões de dólares, em 1980, a 140 bilhões

de dólares, em 2002, embora tivesse pago nesse período 120 bilhões de dólares,

em esquizofrênica aritmética!

O exemplo da Argentina tende a repetir-se, provavelmente com maior

impiedade e violência, no Brasil, pois os fundamentos das políticas dos dois países,

impostos de fora, são muito próximos e as posturas de seus dirigentes, igualmente

servis. Apesar dos trágicos resultados já lá atingidos e das evidências de que

caminhamos nas mesma direção, comportamo-nos como se nada semelhante fosse

ocorrer conosco e, passivamente, aguardamos a proximidade do desastre.

As premissas previstas são aquelas de procurarmos sair desse nefasto

sistema de abstrações afastadas da realidade e voltarmos para o mundo concreto da

natureza, da terra, da água, da energia, do trabalho e da ciência; enfim, voltarmos a

fundamentar nossa vida nos elementos físicos retirados do nosso continente tropical.

É preciso também resgatarmos os conhecimentos acumulados pela ciência e pela

experiência da nossa natureza e recuperarmos os valores morais da verdade e da

justiça, que suportam as nossas melhores tradições e a dignidade humana. É dessa

base física territorial que iremos retirar inquestionáveis soluções para os gravíssimos

colapsos que atingem a humanidade, especialmente o dos combustíveis fósseis, das

matérias-primas estratégicas, da água e do meio ambiente. Por isso, é grande crime

transferir, a troco de nada, o controle desse soberbo patrimônio natural estratégico

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para grupos externos suspeitos, de modo a comprometer irremediavelmente as

futuras gerações.

É essencial também recuperarmos os fundamentos do Estado nacional e

libertarmo-nos desse sedicioso processo de colonização que inunda e mutila a

mente de nosso povo, em especial dos lamentáveis dirigentes que infelicitam nossa

vida e nosso destino.

Não podemos pensar em dar passos decisivos em benefício do povo

brasileiro se não detemos o controle dos resultados retirados do esplendoroso

espaço do nosso território continental e se não reconhecemos os graves problemas

que afligem outros povos no início desse século XXI. Para isso, é necessário nos

contrapormos à postura de mentes colonizadas, de dirigentes descomprometidos,

conforme a definição do pensador José Ortega y Gasset: "Mentes colonizadas são

aquelas que ignoram o seu espaço — o território nacional — e o seu tempo".

Vivem países e blocos econômicos fase de grande complexidade, em parte,

conseqüência do desmoronamento da bipolaridade do poder mundial e,

principalmente, devido ao previsto colapso dos combustíveis fósseis, que

sustentaram a evolução do mundo nos últimos duzentos anos, além da crescente

escassez de matérias-primas e de água.

Essa complexidade reflete também a perda da estabilidade que vinha desde a

Conferência de Ialta, que determinou a divisão do mundo desde o final da Segunda

Grande Guerra e que dava equilíbrio ao mundo bipolar. Este viveu em permanente

confronto ideológico do capitalismo com o socialismo, sem levar em consideração a

necessária sustentação energética do processo.

Assim, prevêem-se profundas mudanças no fim do que se convencionou

chamar de “Era dos Combustíveis Fósseis”. Elas seriam de tal ordem que se

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sobreporiam em importância às razões que motivaram as duas grandes guerras do

século passado e decorrem de: ocaso inexorável do uso de combustíveis fósseis —

carvão mineral e petróleo —, cujas evidências de declínio vêm ocorrendo desde

1973; processo de previsível e irremediável implosão da bolha monetária no sistema

financeiro internacional, montado em Bretton Woods, em 1944.

Tal processo foi interrompido em 1971 de maneira unilateral pelos Estados

Unidos. O dólar, moeda de referência internacional, desvinculou-se do lastro-ouro e

o mundo passou a viver a era do dinheiro falsamente simbólico, sob a égide tirânica

desse sistema.

Essas profundas modificações são de natureza distinta daquelas ideológicas

que dominaram o século XX e que se refletiram diretamente no confronto Leste-

Oeste, especialmente durante a chamada Guerra Fria, que tinham como motivação

principal as relações capital/trabalho.

Na realidade, isso ocorria em modelo energético estruturado, tendo por

fundamento o uso extensivo de combustíveis fósseis, com supostas reservas

ilimitadas. Elas definiram a matriz energética do mundo desde a Primeira Revolução

Industrial, inicialmente com o carvão mineral e depois com o petróleo, até os dias

atuais.

As dinâmicas que iniciaram essa era foram desencadeadas, de um lado, pelo

uso da máquina a vapor, acionada por energia concentrada do carvão mineral e, de

outro lado, pela intensificação do comércio mundial decorrente da superação do

barco a vela e de sua substituição pelo barco a vapor. A decadência dessa era

ocorre com o declínio dos combustíveis fósseis, que de forma tão predominante

deram suporte ao processo civilizatório desenvolvido nesse período. Esse declínio

se dá com o petróleo, pela crescente diminuição de suas reservas, e com o carvão

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mineral, pela necessidade da redução drástica do seu uso, em conseqüência dos

tremendos efeitos ambientais que vem provocando.

É importante destacar que houve forte motivação de natureza geopolítica para

que inicialmente a Inglaterra e depois a Europa e os Estados Unidos da América

impusessem ao mundo essas formas energéticas predominantes, apesar das

inúmeras desvantagens que traziam, especialmente as mais críticas, devido a sua

natureza não-renovável e aos dramáticos danos ambientais que produzem.

Essa motivação foi a ausência, nas regiões temperadas e frias do planeta,

onde, no Hemisfério Norte, localizam-se as nações hegemônicas, de outras formas

energéticas extensivas nas dimensões que alcançaram os combustíveis fósseis.

Tais modalidades de energia são capazes de estabelecer modelo civilizatório

energético mais consistente e limpo que o associado aos fósseis.

Mesmo após o embargo do petróleo, ocorrido em 1973, promovido pela

OPEP e por corporações petrolíferas transnacionais, como conseqüência direta da

limitação das reservas existentes, houve grande esforço na mídia mundial,

patrocinada por essas corporações e pelas da área automobilística, para afastar da

opinião pública a irremediável idéia de limitação dessas reservas.

Assim, as enfáticas preocupações iniciais com a busca de alternativas

praticamente desapareceram, embora as conseqüências das evidentes reduções

das reservas de petróleo tenham levado a continuadas guerras, que vêm ocorrendo,

cada vez com maior intensidade, desde a época do Presidente Nasser, do Egito. Os

conflitos estiveram concentrados inicialmente no Oriente Médio e foram se

estendendo a outra regiões, como no caso dos atentados ao Pentágono, em

Washington, e às torres do World Trade Center, em Nova Iorque, em 11 de

setembro de 2001; dos bombardeiros sobre o Afeganistão; da agressão de Israel

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aos palestinos; da prevista invasão do Iraque pelos norte-americanos. Todos esses

movimentos bélicos têm motivação no fim da era dos combustíveis fósseis e nas

gravíssimas conseqüências dele decorrentes.

A segunda principal motivação ocorreu muito depois, no final da Segunda

Grande Guerra, com a implantação do sistema financeiro de moeda de emissão

monopólica, que dava à agora grande potência Estados Unidos o controle do

símbolo absoluto de todas as riquezas, o dólar, moeda internacional de referência

desde 1944. Foi assim que os Estados Unidos e seus aliados estabeleceram o

domínio econômico sobre o resto do mundo. Por outro lado, o valor dessa moeda,

após sua desvinculação do lastro-ouro, em 1971, passou a depender de sua

vinculação à compra do petróleo, agora garantida por meio militar.

O ciclo de correspondência entre os dois entes — dólar e petróleo — foi

fechado quando o acesso a esse combustível fóssil no Oriente Médio, onde se

localizam mais de 70% das reservas mundiais, ficou sob controle militar de forças

norte-americanas.

Com as questões de poder do mundo físico colocadas nesse quadro de

interconexões e com o controle da propriedade sujeito ao falso valor monetário do

dólar de Bretton Woods, restaram aos governos e povos as disputas ideológicas

entre o capital e o trabalho, agora arrefecidas com o desmoronamento da União

Soviética.

Algo semelhante ao ocaso dos combustíveis fósseis também ocorre com o

sistema internacional de moeda monopólica de referência. Esta, ao desvincular-se

do suporte concreto do mundo físico que lhe dava sustentação e lastro, perde

legitimidade e caminha para o declínio.

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É a ocupação militar norte-americana no Oriente Médio que impõe ao dólar o

valor de referência internacional como moeda que compra petróleo. O valor dessa

moeda, assim, vincula-se à essencialidade do petróleo, que ainda movimenta o

mundo, embora o ouro negro esteja no ocaso e tenda a exaurir-se. Existe a evidente

possibilidade de ele ser preservado para o consumo exclusivo das nações nucleares

hegemônicas. Ou seja, corre-se o risco de, em prazo relativamente curto, embora

impossível de prever-se, ocorrer perigoso vácuo energético que, como

conseqüência, porá em perigo o valor da moeda de referência e ameaçará levar o

mundo ao colapso.

Com o desaparecimento da base energética que dava suporte estrutural

principal à produção de bens de utilidade e de poder, ficam faltando os fundamentos

da natureza, que garantiam o processo de evolução das nações e das civilizações.

Assim, o século XXI começa com a necessidade extrema de urgente

equacionamento dessas questões, com vistas a recompor-se a estabilidade perdida

e a buscar-se o reencontro do processo civilizatório em sólidas bases físicas e não

com falsas simbologias e salamaleques irresponsáveis.

Com o desmoronamento dos símbolos de valor e de troca, representados

pela moeda de referência, devido a seu deslocamento da realidade concreta, surge

grande vácuo que compromete tudo o que sempre existiu e funcionou. O mundo

permanece envolvido em absoluta inconsistência, com a possibilidade de colapso,

todos no aguardo do que se convencionou chamar de “implosão da bolha

financeira”.

Ademais, surge forte complicador adicional, que são as questões ambientais

do efeito estufa e da chuva ácida pela continuada queima, em grandes proporções,

dos combustíveis fósseis. Seu início de solução, porém, encontrou rejeição no

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principal causador, os Estados Unidos da América, mais preocupados em não

reduzir os seus ganhos econômicos do que em preservar o equilíbrio termodinâmico

do ecosfera.

Essas dificuldades resultaram do modo precário como o processo civilizatório

definiu as relações do homem com a natureza, como se ela fosse permanente,

imutável, sobre a qual não houvesse necessidade de cautelas e como se estivesse

sempre ao dispor do homem e da economia, de modo contínuo, com recursos

naturais estratégicos supostamente infinitos.

Essa visão do processo civilizatório reflete-se diretamente nas relações entre

os países criando perversas desigualdades e subjugações inaceitáveis. Os mais

poderosos procuram impor suas regras em enlouquecida corrida de “salve-se quem

puder”, ao tempo em que esmagam os mais fracos e usurpam seus patrimônios

naturais.

Essa visão é também responsável pelos critérios que estabelecem

degradados valores aos bens e aos recursos da natureza por imposições coloniais

arbitrárias. É crescente o grau de depreciação desses valores em injusta e seletiva

divisão internacional das atividades produtivas: as de alta rentabilidade (produtos

industrializados, acabados) e as de baixa rentabilidade ou apresentadoras de

prejuízo (produtos da agricultura e matérias-primas em geral, embora estas sejam

absolutamente essenciais, escassas e, em grande parte, não-renováveis).

Fica assim imposta pelos fortes a divisão do mundo entre grandes usuários

dos recursos naturais do planeta (países ditos ricos ou desenvolvidos) e os eternos

fornecedores desses recursos (os chamados países pobres ou em desenvolvimento,

apesar de detentores de sólidas bases físicas para a produção de riqueza.

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Nesse contexto, o que foi exemplificado com o caso energético dos fósseis

pode ser dito dos recursos minerais e de outros elementos absolutamente essenciais

para o processo civilizatório, como a terra, a água e o sol, elementos predominantes

da natureza.

Essas questões, porém, suscitam enorme resistência para discussão e

principalmente para solução, pois implicam a revisão de práticas seculares,

consolidadas pelos hegemônicos, que estão levando o mundo a situações muito

perigosas, com motivações bélicas comprovadamente evidentes e irreversíveis.

É sintomático que, no contexto das ideologias sobre as quais falamos, os

aspectos essenciais do uso dos recursos da natureza nunca tenha sido

adequadamente considerados. O relacionamento entre os países, nessas questões,

aprofundou tremendas desigualdades, impossíveis de serem mantidas sem deflagrar

processos destrutivos de gravíssimas conseqüências. Vimos recentemente os

ataques ao Afeganistão com um manto de poderosas bombas, que terão como

conseqüência a previsível ocupação do território daquele país por gasodutos e

oleodutos, com vistas ao escoamento do petróleo e do gás do Mar Cáspio, como é

de interesse de corporações norte-americanas. Os conflitos resultantes dessas

questões, concentrados inicialmente em países do Oriente Médio, tendem a se

estender a outras regiões do mundo. Há grupos hegemônicos radicais interessados

em ver o circo pegar fogo. Eles querem transformar esses problemas energéticos

em choques de civilizações que atinjam todos os países, especialmente os do

mundo árabe, que por acaso detêm em seus territórios a maior porção das reservas

remanescentes de petróleo.

Fica assim evidenciado que, pelas imitações das reservas de petróleo que

restam e pela continuada série de conflitos bélicos relacionados com o controle

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dessas formas energéticas que movimentaram o mundo nos últimos 200 anos e que

caminham para o ocaso, aqueles embates estão diretamente relacionados com a

energia do passado. Para nós brasileiros é importante responder à seguinte

pergunta: onde serão localizados os conflitos relacionados com as formas

energéticas predominantes no futuro? Para nós brasileiros essa pergunta cabe

perfeitamente. Em se considerando as evidências dadas pela Ciência, as leis e os

princípios que regem a natureza física, a resposta é que eles se localizarão nas

regiões com intensa incidência de luz solar e abundância de água doce — ou seja,

nas regiões tropicais do continental território brasileiro. Essa é a principal questão

que se coloca à Humanidade no início deste século, não somente diante da

crescente vulnerabilidade das nações dependentes, fornecedoras de recursos

naturais primários, o que põe em risco a sobrevivência dessas nações como tais,

mas também pela imensa imprevidência, arrogância, truculência dos países

hegemônicos, todos situados em regiões temperadas e frias do planeta, os quais,

portanto, não têm perspectivas de solução em seus territórios para os problemas

concretos decorrentes dos colapsos a que está submetida a Humanidade neste

início do século XXI.

As profundas modificações a que nos referimos anteriormente dizem respeito

ao obsoleto e perverso processo de colonialismo que impera e que divide o mundo

em dois grupos: um pequeno, constituído de países privilegiados, e outro formado

por países dependentes, que em sua grande maioria são submetidos a um regime

profundamente discriminatório de globalização, que condena ao extermínio grande

parte da Humanidade, em benefício de uns poucos. Esse status quo é mantido pelo

chamado "governo mundial", que detém instituições controladas por poucos países

hegemônicos, sob a égide dos Estados Unidos da América, como o Banco Mundial,

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o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio e algumas

agências financeiras, além de outras estruturas complementares de poder, como a

OTAN e órgãos de dominação regional, a exemplo do NAFTA e da pretendida

ALCA.

Falemos agora das alianças. Identificamos nos países situações muito

complicadas e especiais que evidenciam práticas até aqui consagradas, apesar de

sua natureza explosiva, mas impossíveis de serem continuadas, além de

profundamente injustas para os povos, explorados ao extremo em seus patrimônios

naturais.

O caso do Japão é sintomático e pode encaminhar soluções novas, que

representam um grande avanço nas relações futuras entre os povos. Com a derrota

militar perante os Estados Unidos da América e a clarividente ocupação do General

MacArthur, esse país foi transformado numa poderosa economia industrial

capitalista, com a função de impedir a expansão da União Soviética no Pacífico.

Com um povo operoso, capaz de grandes realizações técnicas e com um profundo

sentimento nacionalista, o que lhe dá sentido de unidade continuada, o Japão

transformou-se numa importante potência industrial-tecnológica, de elevado poder

competitivo, capaz de conquistar mercados das mais avançadas nações. Faltava-

lhe, porém, algo crucial: os recursos naturais essenciais, como energia e matérias-

primas. Esse gargalo absolutamente impeditivo foi superado pelo Japão mediante o

acesso às ricas matérias-primas concentradas em países do chamado Terceiro

Mundo e vendidas por valores insignificantes, muitas vezes abaixo dos custos de

extração e transporte, como estabelecido pela tradição colonial do século XIX,

mantida no século XX.

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Quanto ao petróleo, especialmente o do Oriente Médio, distribuído hoje pelas

"quatro irmãs", seus baixos preços favoreceram ainda mais o Japão. Sem petróleo, o

Japão pára em poucos meses.

Esses suprimentos de matérias-primas e de energia realizaram-se em

grandes proporções e representaram sempre pequenas porcentagens do PIB

japonês, quando comparadas com as exportações de produtos acabados resultantes

das transformações dessas matérias-primas e do uso dessa energia, sempre com

elevado valor agregado. Isso deu ao Japão constantes superávits no balanço

comercial — o terceiro maior do mundo, depois dos Estados Unidos e da Alemanha.

O Japão passou a dominar tecnologias sofisticadas que lhe deram grande poder de

barganha. Sua grande competitividade tecnológica permitiu-lhe penetrar em outras

importantes economias com grandes vantagens em relação às empresas locais. Isso

ocorreu, por exemplo, nos setores eletrônico e automobilístico dos Estados Unidos e

de outros países, o que começou a criar graves dificuldades para as políticas locais,

que visavam, logicamente, favorecer as indústrias dessas nações.

Esses conflitos ganharam dimensão na medida em que o domínio japonês

crescia, e já havia ocorrido o desmoronamento da União Soviética; então, não

existiam mais razões para o Japão servir de freio à expansão soviética para o

Pacífico, o que tinha justificado sua ampla liberdade de usufruir condições coloniais

excepcionais no acesso a recursos naturais de países ligados à área da influência

política e econômica dos Estados Unidos. De qualquer forma, o Japão já se tinha

beneficiado ao extremo de tais condições, que privilegiam os chamados países ricos,

no confronto com os detentores de recursos naturais. Nessas condições, os

interesses ianques começaram a pressionar para impedir, na origem ou pela via

marítima, o acesso do Japão a esses recursos em condições tão favoráveis.

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Autores americanos consideram inevitável que o aumento dessas restrições,

que objetivam tentar bloquear o acesso do Japão a matérias-primas essenciais

nessas condições e frear, portanto, o ímpeto competitivo nipônico, leve à guerra.

Segundo esses autores, as vantagens obtidas pelos japoneses não poderão

persistir. Configura-se assim, claramente, neste caso, uma guerra por matérias-

primas, que vem juntar-se às guerras que vêm ocorrendo em relação ao petróleo.

Não tardarão a surgir guerras relacionadas ao controle da água.

O Brasil é um dos principais fornecedores de matérias-primas em condições

coloniais para as nações hegemônicas. Eis alguns exemplos:

1- Há pouco mais de uma década, exportávamos a tonelada de minério de

ferro por valor equivalente a 22 gramas de ouro; hoje exportamos por pouco mais de

1 grama.

2- Para um brasileiro dormir uma noite em um hotel de quatro estrelas em

Nova Iorque, o Brasil precisa colocar 30 toneladas de minério de ferro no outro lado

do mundo.

3- Exportávamos quartzo para fins piezelétricos, usados nos telégrafos da 1ª

Guerra, pelo valor de 5 dólares o quilo. Com o surgimento da tecnologia do silício,

que tornou toda a eletrônica contemporânea dependente do quartzo de primeira

qualidade, a demanda cresceu enormemente; então, o Brasil, produtor de mais de

98% do quartzo mundial, passou a exportá-lo por 40 centavos de dólar o quilo, em

vez de 5 dólares. Note-se que a demanda aumentou, mas, surpreendentemente, o

preço baixou. Esse é um flagrante exemplo de que a decantada lei da oferta e da

procura é manipulada por quem pode.

4- A produção de alumínio metálico exige uso intenso de eletricidade. Cerca

de 80% do custo de produção do metal é despendido em energia elétrica. As

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grandes corporações transacionais de alumínio vieram localizar-se próximo à

Hidrelétrica de Tucuruí para usufruir da energia ali gerada, que, pelos elevados juros

dos empréstimos feitos, custa cerca de 42 dólares o megawatt-hora. A

ELETRONORTE vende essa energia por valores próximos dos 10 dólares para as

corporações de alumínio transacionais.

Os exemplos são tantos que podemos considerar essas práticas como

sistemáticas de uma política de exportação que visa favorecer o importador colonial.

A China vem conseguindo há longo tempo um crescimento excepcional, e o

nível de vida do seu povo vem melhorando. Sua população, de cerca de 1,2 bilhão

de habitantes, dá-lhe uma base sólida para esse crescimento. Prevê-se que em

poucos anos o país terá um PIB maior do que o dos Estados Unidos. Ademais, a

China vem dando alta prioridade ao desenvolvimento tecnológico autônomo, o que

favorece o uso comparativo de seus fatores de produção. O principal problema da

China localiza-se na crucial área dos recursos naturais, na área energética. Embora

disponha de razoáveis reservas de petróleo, elas não são suficientes para enfrentar

o extraordinário crescimento econômico que o país está alcançando. Sua principal

fonte energética são as imensas reservas de carvão mineral, cuja queima, como

sabemos, contribui de maneira ponderável para aumentar o efeito estufa. Hoje, a

China já é o segundo maior poluidor do planeta, depois dos Estados Unidos. Com

seu crescimento econômico em grande parte devido ao aumento do uso do carvão

mineral, ela passaria a ser o maior poluidor, o que, evidentemente, desqualifica o

enorme esforço em benefício de seu povo, pois tal crescimento seria alcançado à

custa de graves conseqüências para a humanidade.

Além da acentuada necessidade de fontes energéticas limpas, como as

derivadas da biomassa tropical, a China, com um quinto da população do mundo,

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dispõe de um imenso mercado para um grande produtor de alimentos. Os campos

de interesses do Brasil e da China são, sem dúvida, de enorme potencial estratégico

e de grande extensão e diversidade.

A Alemanha adotou talvez a mais corajosa e saudável política energética dos

últimos dez anos, com extraordinários efeitos para o futuro: decidiu interromper a

geração de energia elétrica de origem nuclear, quando já atendia 30% da demanda

com essa modalidade. Desativará os reatores atômicos à medida que cumprirem

sua previsão de utilidade, e não os substituirá por outros. Essa posição de

vanguarda mundial, tratando-se de um país de primeiro nível tecnológico, abre

perspectivas muito interessantes para a procura de novas formas energéticas por

meio de intensa cooperação comercial e tecnológica com países de regiões

tropicais. Por exemplo, em sua política de cooperação tecnológica, a Alemanha há

muito vem dando elevada prioridade a formas renováveis e limpas de energia. Sua

política de procurar substituir derivados do petróleo na agricultura, especialmente por

óleo vegetais, como o da colza e o do girassol, é demonstração evidente dessa

política.

No caso da Rússia, embora com ponderáveis reservas de petróleo e muito

maiores de carvão mineral, a grande população e as condições climáticas exigem

uma prudente postura ante o futuro. O enorme consumo energético, em grande

parte do ano para aquecimento, e a necessidade de moderar o uso do carvão

mineral por questões ecológicas são condicionantes que justificam a procura de

soluções permanentes e limpas. Suas reservas de petróleo, como acontecerá

inexoravelmente com todos aqueles que dispõem ainda de volumes importantes,

caminham para o ocaso em prazos históricos relativamente reduzidos. Isso

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aconselha-os naturalmente a poupá-las, substituindo-as paulatinamente por formas

renováveis, enfaticamente por aquelas de efeitos ambientais benévolos.

A Índia é um caso muito especial. Pela imensidão territorial e pela grande

população, tem um papel crucial no futuro do mundo. Suas analogias e diferenças

com o Brasil oferecem largo espectro de convergências e ações complementares, o

que permite muitos ajustes e ações de cooperação. A dependência energética no

fim da era dos combustíveis fósseis predestina a Índia a uma potencialmente intensa

cooperação com o Brasil e com os demais países aqui considerados. Seu peso

populacional e territorial é sem dúvida extraordinário, e dá grande sentido ao

conjunto. Ademais, a Índia, sem ser caso evidente de carências, como a China e o

Japão, exige um tratamento prioritário e cuidadoso, pela natureza de sua estrutura

social e cultural.

Esses países formam com o Brasil um grupo que tem tudo para harmonizar

seus interesses cruciais em torno da questão energética, de inestimáveis efeitos

para todos, no momento em que o mundo, em contraste, parece caminhar para

graves dificuldades e conflitos. Lembremo-nos de que esse conjunto — China,

Japão, Alemanha, Rússia, Índia e Brasil — representa parcela ponderável da

humanidade. Esses países são capazes, portanto, de retomar o valor da natureza

como principal reservatório dos elementos físicos essenciais à vida e ao processo

civilizatório. Hoje faz-se o contrário. E, ao desvalorizar a natureza e substituí-la de

modo inconsistente por uma moeda abstrata, que deveria simbolizá-la, cria-se um

vácuo de valor que leva o mundo a incríveis discrepâncias com o universo físico e a

permanentes conflitos.

Ademais, é necessário dar um passo decisivo na recuperação da necessária

estabilidade nas relações entre os povos, com vistas a superar os dois maiores

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colapsos estruturais que a humanidade jamais sofreu: o ambiental e o energético,

decorrentes da queima desproporcional de combustíveis fósseis.

Com novas políticas de relações internacionais para esse conjunto de

importantes países, o Brasil poderia ajudar a superar problemas cruciais, que

impedem a evolução humana. Cabe, entretanto, ir agregando paulatinamente outros

que venham a juntar-se no esforço coletivo, a exemplo de experiências de alta

potencialidade, como a dos países do MERCOSUL, esmagados pela oligarquia

financeira internacional e pelo projeto colonial da ALCA que os Estados Unidos

pretendem impor. Nesse caso, a Argentina tem uma contribuição efetiva a dar ao

conjunto dos países, pelo seu elevado potencial de produção alimentícia para

suprimento de grandes populações, como as da Índia e da China, mas, sem

nenhuma dúvida, o país-chave desse conjunto é o Brasil. Por seu território

continental, seu clima tropical, com grandes reservas naturais estratégicas e

respostas práticas e possíveis, extraídas do mundo concreto e afastadas da loucura

atual, ele é importante tanto para a solução dos problemas relacionados com os dois

colapsos mundiais, o ambiental e o energético, como para superar a perigosa

escassez de matérias-primas e de água.

Há inúmeros precedentes de iniciativas de cooperação de alguns desses

países com o Brasil, iniciativas essas que demonstram predisposição de busca de

soluções para questões cruciais com base em elementos estratégicos da nossa

natureza, mas que não vão adiante por não encontrarem interlocutor do lado

brasileiro nem políticas ou respostas concretas relacionadas com vocações

brasileiras de importância mundial. O descolamento da ação do Estado brasileiro

das suas vocações naturais frusta qualquer iniciativa em favor do seu povo. Seus

atuais dirigentes concentram-se na administração do desastre financeiro

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programado, do dinheiro digital abstrato, conduzido de fora do País por agentes da

oligarquia financeira internacional.

A então Comissão Européia promoveu, em outubro de 1997, em Brasília, uma

conferência internacional sobre o tema "Biomassa para a produção de eletricidade:

experiências e perspectivas na União Européia e no Brasil". O desinteresse do

Governo brasileiro praticamente interrompeu o processo, que se iniciava com uma

conferência realizada em Brasília por iniciativa da União Européia, totalmente

custeada por eles.

Os Estados Unidos, que estavam importando crescentes quantidades de

etanol do Brasil, bloquearam essas importações mediante um subsídio de 100%

para seus produtores de álcool obtido de milho, ineficiente conversor energético,

com vistas à substituição do chumbo em mistura com a gasolina. Com a

impossibilidade de obter etanol em quantidade suficiente, passaram a adotar a

substância química MTBE, altamente poluidora, no lugar do chumbo. Após vários

anos de prática dessa substituição, uma fundação norte-americana dedicada ao

setor ambiental levantou que em 31 Estados a substância tinha contaminado 50%

dos poços de água potável — um verdadeiro desastre ecológico.

Para ganhar fôlego e poder levar avante esse ambicioso programa de

alianças com importantes países, é crucial consolidar a situação interna, com

ampliação substantiva do nosso mercado consumidor, eliminando a miséria, as

odiosas e perversas desigualdades, e criando vários milhões de novos postos de

trabalho, precisamente por meio da ampliação do uso de formas energéticas

renováveis e limpas do estoque. Isso permitirá construir, com meios próprios, a base

de uma infra-estrutura de produção e distribuição essencial para o ambicioso e

necessário programa das referidas alianças externas.

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A ênfase dada ao novo papel do Brasil no contexto internacional encontra,

porém, do nosso lado, graves carências estruturais, como conseqüência de políticas

de destruição do Estado implantadas de acordo com os objetivos propugnados pelo

Consenso de Washington e pelo neoliberalismo. Deles resultaram a eliminação dos

poucos instrumentos de que dispúnhamos para atuação no mercado externo. Assim,

foi fechada a INTERBRÁS, de elevado poder de barganha internacional, por ser a

principal compradora individual de petróleo do mundo; o Instituto do Açúcar e do

Álcool (IAA), que atuava nas exportações de açúcar e álcool; e o Instituto Brasileiro

do Café (IBC), na área do café. Não dispomos de instrumentos nem mesmo para

promover o comércio dos nossos principais produtos de exportação.

A questão ambiental do efeito estufa tem muitos outros fatores. A mais

importante entidade ambiental mundial, a norte-americana Worldwatch Institute,

propugnou, no documento "A situação do mundo", de 1997, a criação de uma cúpula

mundial, a ser formada pelos principais países relacionados com essas questões.

Seria o Grupo E-9 — "E" de environment —, mais poderoso que o atual G-8, que

atua na área financeira. O E-9 seria composto de três superpotências ambientais: os

Estados Unidos, a maior potência industrial-militar e o maior poluidor; a China, com

um quinto da população do planeta, segundo maior poluidor, com possibilidade de

passar a ser rapidamente o principal; e o Brasil, o país-continente tropical, o único

não predador do conjunto. Os outros seis países seriam a Alemanha, o Japão, a

Indonésia, a Grã-Bretanha, a Índia e a Rússia.

Note-se que os países que comporiam o E-9 — proposto pelos norte-

americanos, repito — são aqueles que têm problemas cruciais, no que se refere

tanto à energia e ao meio ambiente como a matérias-primas, em convergência

complementar com o Brasil. Excetuam-se dessa condição os Estados Unidos e a

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Grã-Bretanha, por motivos óbvios, e a Indonésia, com quem não temos relações

intensas.

Esse complexo quadro de alianças não tem o critério geográfico ou cultural

como princípio unificador, mas sim razões mais fundamentais, ligadas à evolução e

até à sobrevivência dos países envolvidos. Sua característica principal é oposta

àquela radical que orienta o chamado "choque das culturas", confinadora dos povos

no redil de suas culturas originais, e limitadora, de modo indevido, do amplo

potencial de cooperação em questões vitais. Os resultados do quadro de alianças

aqui apresentado representam o oposto daqueles pretendidos com o "choque de

culturas", que leva à guerra.

A conotação bélica, destruidora, que caracteriza o "choque de culturas",

conforme defendem intelectuais do Império, fica superada, na presente proposta do

quadro de alianças, pelo papel pacificador desempenhado pelo nosso país-

continente tropical, que pode resolver problemas cruciais de países de grande peso

na população mundial. A redução das tensões que o surgimento de uma forma de

energia extensiva, permanente e limpa, em condições de substituir plenamente os

combustíveis fósseis, poderá representar é sem dúvida uma razão substantiva e

prática para se alcançar a paz no mundo. O contraponto do estopim de conflitos

provocados pelo ocaso do petróleo e pelo declínio dos demais combustíveis fósseis

por questões ambientais são as formas energéticas renováveis e limpas de origem

vegetal nos trópicos.

Todas as formas energéticas utilizadas pelo homem, com exceção da energia

das marés, da geotermia e da energia nuclear, vêm do Sol, o eterno e imenso reator

da fusão nuclear natural. A energia solar acumulada nos hidratos de carbono das

plantas e de animais microscópicos necessita de centenas de milhões de anos para

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transformar-se em combustível fóssil. O uso direto dos hidratos de carbono das

plantas encurta em eras geológicas a possibilidade de uso da energia solar em

formas concentradas, sólidas, líquidas e gasosas. Enquanto os hidrocarbonetos,

cujas misturas formam o petróleo, derivam dos hidratos de carbono pela perda de

oxigênio, no processo de fossilização, e levam quatrocentos ou mais milhões de

anos para se formar, o óleo de girassol, limpo e renovável, do ponto de vista

ecológico, que chega a fazer 40 quilômetros por litro em motores ciclo diesel, um

excepcional substituto do óleo diesel do petróleo, leva apenas três semanas para se

formar. Assim, em vez de usar-se o capital da energia solar, que exige centenas de

milhões de anos para se constituir, usemos os dividendos dessa energia, renovados

de forma permanente.

Os combustíveis derivados da biomassa, hidratos de carbono vegetal, exigem

formação acelerada, o que ocorre com muito sol e muita água. Isso somente é

possível em regiões tropicais. O território continental brasileiro detém de 22% a 24%

da água doce da Terra. Somente a região amazônica tem 18% desse montante,

ficando o Canadá em segundo lugar, com 14%, embora em forma de gelo durante

grande parte do ano.

Finalmente, ser o principal supridor mundial de energia renovável e limpa ou

de produtos de elevado conteúdo energético exige territórios de dimensões

continentais localizados nos trópicos, dotados de água e com imensas áreas não

ocupadas. Assim, oferece-se ao Brasil a grande oportunidade econômica que jamais

país algum teve na História da Humanidade, o que justifica o papel importante que

temos no mundo, neste começo do século XXI, como propomos neste trabalho.

Aproveito a oportunidade desta reunião para acrescentar que esse projeto,

óbvio, claro, absolutamente pragmático e decisivo para o futuro e a paz da

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humanidade, exige governo no Brasil. Estamos em vésperas de uma eleição, e, na

minha perspectiva, duas coisas podem acontecer: ou o futuro Presidente da

República vira um líder mundial, um estadista compatível com a dimensão de um

programa dessa natureza, ou será o nosso De la Rúa.

Muito obrigado. (Palmas.)

O SR. COORDENADOR (Deputado Aldo Rebelo) - Prof. José Walter Bautista

Vidal, agradecemos a V.Sa. a exposição.

Passo agora a palavra à Dra. Flávia Piovesan, Procuradora do Estado de São

Paulo, professora de Direito Constitucional e de Direitos Humanos do Programa de

Pós-Graduação da PUC de São Paulo e autora do livro "Direitos Humanos e o

Direito Constitucional Internacional", publicado pela Editora Max Limonad, já na 5ª

edição.

A SRA. FLÁVIA PIOVESAN - Bom dia a todos. Inicialmente, eu gostaria de

agradecer às entidades organizadoras deste evento o especial e honroso convite

para participarmos deste seminário em que se discute a política externa do Brasil

para o século XXI.

Cumprimento o Coordenador dos trabalhos e Presidente da Comissão de

Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, Deputado

Aldo Rebelo, o Prof. José Walter Bautista Vidal, que fez uma excelente intervenção,

e o Prof. Marcelo Castro, que falará a seguir.

O tema da minha exposição será "A proteção internacional dos direitos

humanos — desafios internacionais para o século XXI". Pretendo trazer ao debate

duas reflexões que me parecem centrais. A primeira, eu diria, é uma abordagem

preliminar sobre a proteção internacional dos direitos humanos, ou seja, como

compreender o sistema internacional de proteção desses direitos, seu perfil, seu

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objetivo, sua lógica, sua epistemologia. Num segundo momento, avançarei no

campo das inovações e dos desafios contemporâneos da proteção internacional dos

direitos humanos, isto é, nos desafios e perspectivas desse sistema à luz do

contexto contemporâneo.

Primeira indagação: como compreender a arquitetura internacional de

proteção dos direitos humanos? A que veio? Qual é seu propósito, seu objetivo, sua

lógica, sua epistemologia? Começo pela historicidade dos direitos humanos,

afirmando, como diz Anna Arendt, que os direitos humanos não são um dado, mas

sim um construído. Eles têm a sua história e a sua dinâmica própria de construção e

reconstrução. Pautas como direito ao meio ambiente, direitos reprodutivos, direito ao

desenvolvimento sustentável, direito ao acesso à tecnologia seriam impensáveis

cinco décadas atrás.

Não obstante essa historicidade, os direitos humanos sempre celebram a

linguagem da inclusão, a linguagem emancipatória do nosso tempo. Posso então

dizer, tendo em vista esse olhar histórico e alinhando-me às lições de Norberto

Bobbio, que os direitos humanos nascem como direitos naturais universais — invoco

o legado iluminista — e desenvolvem-se como direitos positivos particulares quando

cada Estado escreve sua própria Constituição, contemplando sua própria declaração

de direitos, para, no dizer de Bobbio, finalmente encontrarem sua plena realização

como direitos positivos universais.

O que significa essa sistemática internacional de proteção aos direitos

humanos? Por que, em determinado momento histórico, a humanidade clamou por

uma sistemática supra-estatal de proteção desses direitos?

Trago algumas notícias que evidenciam esse fenômeno. Uma delas foi pauta

deste seminário, o Tribunal Penal Internacional. Teremos o privilégio de poder

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freqüentar ineditamente a instalação do primeiro Tribunal Penal Internacional,

inaugurado no mês de julho deste ano, para o julgamento dos graves crimes que

afetam a ordem internacional. Outra matéria, também impensável há algumas

décadas, intitulada "Comissão de Direitos Humanos da Câmara denuncia o

esquema de exploração sexual infantil na Paraíba junto à OEA", foi publicada em

maio deste ano, mostrando o que ocorre no interior da Paraíba, e submetida ao crivo

da comunidade internacional. Há também a notícia que foi estampada na mídia em

junho deste ano, intitulada "Brasil teme punição pela OEA por absolvições no caso

Eldorado dos Carajás". Essas três notícias possuem em comum essa gramática

internacional dos direitos humanos, fenômeno extremamente recente da História,

como resposta às atrocidades, aos horrores, à barbárie da era Hitler.

Quando o Estado se faz o grande delinqüente no marco jurídico, é necessário

ousar, na visão de um constitucionalismo global, com capacidade de proteger

direitos e limitar o arbítrio acima ou numa ordem internacional. Dessa maneira, a 2ª

Guerra surge como a ruptura dos direitos humanos, e o pós-guerra como a

esperança de um horizonte moral, a esperança de reconstrução desses direitos.

Fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve reduzir-se ao

domínio reservado de um Estado, mas é tema global de legítimo interesse da

comunidade internacional. Por sua vez, isso traz duas conseqüências. A primeira é a

necessidade de revisitar a noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que

passa por um processo de redefinição, de releitura.

No campo dos direitos humanos, direitos humanos globais significam uma

soberania menos centrada no âmago do Estado e mais centrada no âmago de uma

cidadania universal. Como diz o Prof. Lafer, temos de transitar da lente ex parte

principis, focada no Estado, nos deveres dos súditos, para a lente ex parte populi,

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focada nos direitos individuais. Assim, nesse cenário, nasce em 1948 a Declaração

Universal, com a tentativa de traduzir esse mínimo ético irredutível, parâmetros

mínimos de proteção, transcendendo a diversidade cultural de cada um dos Estados.

A Declaração Universal traz a nova visão dos direitos humanos, pautada pela

sua universalidade e indivisibilidade, rompe com o legado nazista, que entendia que

o sujeito de direito estava integrado a uma raça específica, a "raça pura ariana", e

traz a visão de que a dignidade humana é o fundamento dos direitos humanos,

porque o ser humano é um ser essencialmente moral, dotado de dignidade. Traz

também a visão da indivisibilidade desses direitos, porque celebra a conjugação da

plataforma liberal com a social. É o primeiro documento da nossa História a prever

direitos civis e políticos combinados com direitos sociais, econômicos e culturais.

Tão importante é o direito à liberdade, o direito de não ser submetido a tortura, como

o direito à educação, à saúde, ao trabalho, à Previdência e à justiça social.

Liberdade e igualdade somam-se, na medida em que não há liberdade sem

igualdade, tampouco igualdade sem liberdade.

Com isso, nasce essa arquitetura internacional, e são pautados consensos

éticos afinados com temas centrais para a dignidade humana. Ou seja, o grande

esforço aqui se traduz em parâmetros mínimos de proteção capazes de evitar

abusos, retrocessos, e de potencializar avanços no âmbito interno dos Estados. Cito

o exemplo do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, com o aval de 147

Estados Parte; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,

atualmente com o aval de 145 Estados Parte; a Convenção sobre os Direitos da

Criança, com o recorde de ratificações, celebrado na voz de 191 Estados, excluídos

os Estados Unidos e a Somália; a Convenção Racial, com a ampla adesão de 157

Estados; a Convenção da Mulher, com o aval de 168 Estados.

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Por que esses números? Porque esses números são capazes de ilustrar o

grau desses consensos internacionais, buscando a proteção da dignidade humana.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos mapeia esse horizonte moral

contemporâneo. À época, foi adotada em 48 Estados, sendo que oito deles se

abstiveram. Passados 50 anos, a Conferência Mundial de Viena endossou a mesma

gramática, afirmando serem os direitos humanos universais interdependentes e

inter-relacionados; indo além, travando o diálogo necessário entre direitos humanos,

democracia e desenvolvimento. Ou seja, não há direitos humanos sem democracia e

vice-versa. Reitero: o regime mais compatível com a proteção dos direitos humanos

é o democrático.

Novamente, valho-me de Bobbio para dizer que a liberdade e a igualdade são

valores que fundamentam a democracia. Entre as várias definições de democracia, a

que leva em conta não só as regras do jogo, mas os princípios e os criadores dele, é

a de que a democracia não é sociedade livre de iguais, mas sociedade regulada, de

tal modo que os indivíduos que a compõem sejam livres e iguais em qualquer outra

forma de convivência política. Ou seja, a democracia promove a igualdade e a

liberdade e, por isso, dialoga com a gramática dos direitos humanos. Igualmente, foi

a fala do vetor desenvolvimento do hemisfério sul sobre o direito ao

desenvolvimento, também obstado pelos Estados Unidos, como direito universal e

inalienável, direito a uma globalização ética e solidária, na medida em que reflete

uma demanda crucial da atualidade. E a demanda é simples: quatro quintos da

população mundial não mais aceita o fato de um quinto continuar a construir sua

riqueza com base na miséria e na pobreza deles remanescentes.

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Assim, surge a ética dos direitos humanos, que compreende a

interdependência, a democracia e o desenvolvimento, pressupondo-se sempre uma

gramática de inclusão, uma plataforma emancipatória.

Quais as inovações, os desafios, as perspectivas do sistema internacional à

luz da ordem contemporânea?

Há cinco desafios centrais para o século XXI.

O primeiro se refere ao processo de sanção dos direitos humanos. Ou seja,

especialmente nós do eixo sul precisamos ter voz neste debate, trazer nossas

reivindicações específicas, buscando romper com a tradição que sempre priorizou os

direitos civis e políticos e não os direitos sociais, econômicos e culturais. Lembro que

o Brasil tem inventado essa gramática.

Trago matéria publicada este ano sobre a vitória do Brasil na Comissão de

Direitos Humanos da ONU, que permitiu a entrada de remédios para tuberculose e

malária. Algo impensável há décadas. Então, quando se fala em direitos humanos,

fala-se na expansão contínua e dinâmica dos direitos humanos — e isso traz

impactos ao sistema internacional.

O segundo se refere ao processo de identificação de novos sujeitos de

direitos e a criação de uma tutela jurídica específica no plano internacional.

Se numa primeira fase, especialmente no cenário internacional, buscou-se a

proteção geral, abstrata e genérica das pessoas — até porque a diferença fomentou

a arquitetura da destruição —, hoje percebemos como é importante a especificação

do sujeito de direito. O sujeito de direito precisa ganhar rosto, gênero, recortes de

raça, etnia, idade, dentre outros. Ou seja, surgem sujeitos especificados e a ordem

jurídica internacional deve transpor uma proteção específica.

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O direito à diferença nasce ao lado do direito à igualdade. A igualdade tem

que ser contemplada com base na diversidade e na diferença — diferença não mais

como elemento de destruição, mas de construção de direitos. É nessa perspectiva

que lembro a Conferência de Durban, na África do Sul, no ano passado, e penso

que, ao trabalharmos com direitos humanos, temos de abranger os recortes de

gênero, etnia, raça e exclusão social. Há pesquisas com as quais sempre me

escandalizo quando leio. Uma pesquisa feita pelo PNUD mostra que 96 anos

separam Lagoa e Acari, bairros do Rio de Janeiro. Quer dizer, no mesmo Município,

temos Índices de Desenvolvimento Humano absolutamente distintos. O IDH da

Lagoa é semelhante ao da Itália; o IDH de Acari é semelhante ao da Argélia. Isso

significa, por exemplo, que quem nasce na Lagoa vive em média 73 anos e quem

nasce em Acari vive 56 anos, quase 20 anos a menos. Quem nasce na Lagoa tem

uma taxa de escolaridade média de 12 anos e em Acari, de 3 anos. O recorte

exclusão social tem de estar presente, como também o recorte raça e etnia. O nosso

País figura dentre as grandes economias mundiais, 11ª ou 12ª. Contudo, estamos

classificados em 73º lugar pelo IDH. E sob o prisma racial, se indagássemos como

vive aqui a população branca, subiríamos 30 casas; se indagássemos como vive a

população negra, desceríamos 30 casas. Temos de dar visibilidade a esse

apartheid quando lidamos com direitos humanos.

Terceiro aspecto: o processo de reconhecimento de novos atores na ordem

internacional e a democratização dos instrumentos internacionais. Foi-se o tempo

em que os Estados eram os únicos protagonistas da ordem internacional. Hoje,

temos uma sociedade civil internacional, entidades, organizações regionais, blocos

regionais, indivíduos, e isso tudo mapeia um outro mosaico nas relações

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internacionais e demanda uma reavaliação dessa arquitetura pensada para lidar

apenas com Estados.

Portanto, na ótica dos direitos humanos, aceno a essa democratização.

Citaria cada vez mais, por exemplo, o sistema europeu que já admite, desde 1998, o

acesso direto do indivíduo à Corte Européia de Direitos Humanos como sujeito de

direito. Vejo que ainda muitos Estados resistem em aceitar a sistemática de petição

individual presente nos Tratados de Direitos Humanos. Pela petição individual, posso

encaminhar uma denúncia de violação de direitos humanos a instâncias

internacionais. Mas isso é cláusula facultativa de muitos tratados. Para que os

senhores tenham uma idéia, dos 124 Estados que fazem parte da Convenção

Contra a Tortura, 40 aceitam as petições individuais. Dos 157 Estados que fazem

parte da Convenção Racial, 34 aceitam a sistemática de petição individual.

Felizmente, dentre eles, o Brasil, em razão do acolhimento desse mecanismo neste

ano de 2002. Tenho aqui outros números, mas não vou cansá-los; no entanto, aceno

a essa resistência dos Estados na democratização desses instrumentos

internacionais.

Faço também a minha crítica. É fundamental encorajar os Estados a

aceitarem esses mecanismos, sendo hoje inadmissível que os Estados aceitem

direitos e, ao mesmo tempo, neguem a garantia da sua proteção.

Quarto aspecto: necessidade de incorporar a agenda de direitos humanos nas

organizações e instituições econômicas regionais e globais, especialmente na arena

da globalização econômica em que temos não só Estados, mas blocos regionais e

grandes multinacionais. Lembro que das cem maiores economias mundiais hoje, 51

são multinacionais e 49 são Estados. Há multinacionais cujo faturamento anual

exorbita e muito o PIB de Estados.

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Como repensar a gramática dos direitos humanos nesse novo contexto?

Parece-me central que neste contexto há o desafio de que os direitos humanos

possam atingir, permear as políticas macroeconômica, fiscal, monetária e cambial.

Trago aqui a observação que Mary Robinson, a então Alta Comissária da ONU para

os Direitos Humanos, faz: “O incompetente diretor do Banco Central é muito mais

lesivo aos direitos humanos do que o incompetente Ministro da Educação”, porque

há um impacto explícito dessas políticas nesses direitos.

A ONU vive uma grande esquizofrenia, diria, porque, de um lado, há o vetor

includente dos direitos humanos com esses tantos tratados, e, de outro, há todo o

braço do sistema — agências financeiras internacionais, Sistema Bretton Woods,

FMI, Banco Mundial e tantos outros — que não traz a mesma tônica includente. Ou

seja, estamos assistindo ao desastre da América Latina, na medida em que toda a

política do FMI, orientada pela condicionalidade, submete países em

subdesenvolvimento a modelos de ajustes estrutural incompatíveis com os direitos

humanos. Aqui me vem à lembrança Jack Morraine, para quem mercados livres são

economicamente análogos a um sistema político baseado na regra da maioria, sem

a observância, contudo, dos direitos das minorias.

As políticas sociais são fundamentais, essenciais para resguardar os direitos

das minorias em desvantagem ou privadas pelos mercados e para que elas sejam

consideradas com respeito na ordem econômica. Também aceno a responsabilidade

social do setor privado. Se hoje vivemos a privatização do público, do mesmo modo

devemos ter a contrapartida: a publicização do privado. Imagino o Código dos

Direitos Humanos com relação à atividade do comércio, às sanções comerciais, seja

o que for.

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Para terminar, cito o quinto e último fator: o processo de jurisdicionalização

do Direito Internacional, que passa a ganhar garras e dentes, ou seja, passa a não

mais se limitar às sanções do power of embarrassment, poder do embaraço, do

constrangimento político e moral. Passamos a ter hoje, como já mencionei, justiça

internacional. E isso nos dá novo lastro no campo dos direitos humanos. Temos o

Tribunal Penal Internacional, a Justiça Internacional no campo da OEA e do sistema

europeu, também previsto no sistema africano, ainda não instalado. É fundamental

que exista esse braço jurisdicional, porque não há Estado de Direito sem Judiciário.

E se pensamos, ainda que utopicamente, no Estado de Direito no campo

internacional que se desamarre do Estado natureza, é fundamental que haja a

prestação jurisdicional, que existam cortes independentes que profiram decisões

obrigatórias e vinculantes e que façam com que os Estados levem a sério os direitos

humanos, já que as cortes têm essa especial legitimidade.

Por fim, no contexto após 11 de setembro, há o desafio de prosseguir no

esforço construtivo de um Estado de Direito Internacional em uma arena mais

democrática e participativa, tentando romper com as mazelas de um Estado polícia,

de um Estado fundamentalmente guiado pelo lema da força e segurança

internacional. O maior desafio — lembro Paulo Sérgio Pinheiro — é evitar a

neoguerra fria, tendente a conduzir ao perigoso retorno às polaridades. De um lado,

as noções de terrorismo e, do outro, os métodos para combatê-lo. Sabemos que o

risco é que a luta contra o terror comprometa esse aparato civilizatório de décadas

construtivo dos direitos. E contra esse terrorismo de Estado só resta haver a

construtiva dos delineamentos do Estado de Direito.

Que o Direito, portanto, possa prevalecer em razão da força; que a força do

Direito prevaleça em detrimento do direito da força. Esse é o grande desafio, e

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sempre foi, do cenário internacional. O após 11 de setembro invoca, então, o maior

desafio: avançar na era dos direitos, avançar no Estado do Direito Internacional ou

retroceder ao Estado de polícia. Que o Direito Internacional no tocante aos direitos

humanos, ao consagrar esses parâmetros protetores mínimos de defesa da

dignidade, seja capaz de impedir retrocessos, arbitrariedades e propiciar avanços.

Hoje, mais do que nunca, é tempo de inventar uma nova ordem mais includente,

democrática e igualitária e que sobretudo tenha na sua centralidade o valor da

absoluta prevalência da dignidade humana.

Muito obrigada. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Agradeço à Dra. Flávia

Piovesan.

Concedo a palavra ao Sr. Marcelo Castro, Economista da PUC do Rio de

Janeiro e Gerente de Renda Fixa do Banco BNP-Baribas.

O SR. MARCELO CASTRO – Sr. Presidente, Deputado Aldo Rebelo,

diplomatas aqui presentes, turistas que vieram para a apresentação, senhoras e

senhores, concentrarei minha apresentação na questão do capital financeiro

internacional e sua interação com a realidade brasileira. Nesta apresentação,

descreverei as duas grandes tendências mundiais a que assisti nesses treze anos

de minha carreira em bancos, trabalhando tanto no Brasil quanto em Nova Iorque,

onde permaneci durante seis anos, e como elas estabelecem novos desafios para

nosso País no século XXI.

A virada do século XX foi marcada por grandes crises financeiras, a começar

pelas crises do México, em 1995, seguida pela crise asiática, em 1997, a crise da

Rússia, em 1998 e, finalmente, o triste débâcle da Argentina, em 2001. Agora

mesmo, nosso País passa por sérios percalços que encerram graves incertezas

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sobre o futuro. Porém, encerram também certas oportunidades de mudar o que não

está dando certo, ou mesmo oportunidades de o País ser testado pela comunidade

internacional e passar no teste, seguindo adiante mais robusto e autoconfiante.

Todas essas crises recentes, inclusive o atual momento de nosso País,

tiveram duas características comuns: afetaram o capital financeiro numa escala

global e possuíram uma sincronia perversa entre os diversos participantes do

mercado. São essas as duas tendências que procurarei aqui desenvolver.

Antes, porém, peço um pouco de paciência dos presentes para discorrer

sobre a doutrina.

A teoria financeira clássica tradicional postula que os preços dos ativos e das

taxas de juros decorrem dos fundamentos econômicos. Ou seja, o estado da

economia de um país determina a taxa de juros; a capacidade de geração de caixa

de uma empresa determina o preço de sua ação na bolsa de valores. Se uma nova

informação mostra que os fundamentos se alteraram, imediatamente essa

informação se dissemina pelos agentes do mercado, e o preço oscila de acordo com

ela. É importante notar a causalidade sempre dos fundamentos econômicos para os

preços dos ativos.

Quem trabalha no mercado financeiro já experimentou na prática que a

realidade não é tão simples assim. Normalmente, o primeiro aprendizado, de que os

preços podem se descolar dos fundamentos de forma irracional, ocorre

dolorosamente para os operadores. Há duas razões básicas para tal, que vou aqui

descrever.

A primeira razão é o comportamento das multidões, que na língua inglesa é

denominado efeito manada. Indivíduos que interagem com outros, por vezes,

desenvolvem algum padrão de comportamento que parece combinado, quando de

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fato ocorreu espontaneamente. Cabe frisar a palavra “espontaneamente”, porque

quem observa de fora tende a pensar que há certo conluio entre os indivíduos, o que

não é verdade. Quem teve a chance de assistir a um jogo de futebol no Maracanã,

quando havia ainda a geral, pode entender bem esse ponto. Na geral, os torcedores

assistiam ao jogo em pé, separados do campo somente por um fosso. Volta e meia,

algo acontecia na geral, uma briga, por exemplo, e alguns poucos torcedores

corriam. Não era raro, no entanto, ver aquela pequena agitação se transformar numa

onda de corre-corre, que, sem motivo aparente, dava uma volta em torno do campo

até se dissipar.

Outro exemplo de cunho futebolísticos, para ilustrar o comportamento das

multidões, é a organização das torcidas cariocas no Maracanã. As torcidas do Vasco

da Gama e do Flamengo são as únicas que jamais trocam de lado no Maracanã:

sempre à direita e à esquerda das cadeiras especiais, respectivamente.

A torcida do Botafogo também quer ocupar o lado direito, à exceção de

quando joga com o Vasco. Nesse caso, a torcida do Botafogo cede o lado direito das

cadeiras à torcida do Vasco. O mesmo acontece com a torcida do Fluminense, que

ocupa o lado esquerdo do estádio só em dias de Fla x Flu. Então, há uma regra de

posicionamento das torcidas e dessas grandes multidões no Maracanã,

independentemente de qual time joga. Interessante notar que essas regras se

originaram de forma totalmente espontânea. Normalmente, depois de várias brigas,

atritos e querelas.

Da mesma forma que acontece nas torcidas de futebol, o mercado é uma

grande multidão. São inúmeros os exemplos de sincronização espontânea de

agentes de mercado. Um estudo dessas regras de como as multidões se organizam

é objeto fundamental da Ciência Econômica. Na maioria das vezes, o

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comportamento dessas multidões é estabilizador, aludindo, no caso, ao exemplo do

posicionamento das torcidas no Maracanã. Outras vezes, o comportamento

resultante é caótico, originando um corre-corre na geral. Quando isso acontece, os

preços costumam perder aderência aos fundamentos econômicos. Nessas ocasiões,

é normal a mídia e os jornalistas procurarem uma razão para tal comportamento em

interesses escusos, teorias conspiracionistas ou ataques especulativos. Não estou

dizendo que isso não ocorre; volta e meia existe manipulação de mercado e ataque

especulativo, mas é raro. Na maior parte das vezes, é simplesmente esse

comportamento de multidão que causa esses fenômenos irracionais. Esse é o

primeiro ponto que influencia o comportamento dos preços.

O segundo ponto é um conceito que se chama “Teoria da Reflexividade”,

desenvolvido pelo megaespeculador George Soros, que ganhou muito dinheiro com

ele. São as chamadas profecias auto-realizáveis. Por exemplo, o pessoal vende na

bolsa e com isso o dólar sobe, gera inflação, que gera um desconforto, que acaba

validando o fato de a pessoa ter vendido na bolsa num primeiro momento. Há

também o fato de especularem contra títulos da dívida brasileira, o que também gera

uma situação de desconforto, afetando inclusive nossa questão política. Essas

profecias auto-realizáveis, às vezes de cunho realmente escuso, outras vezes

movidas por questões externas a nós, geram também esse comportamento.

Disse anteriormente que existem duas razões no mundo atual que trazem

esse prejuízo. Primeiro, quando os preços se descolam, o que já é problemático.

Quando os preços se descolam ocorrem as duas coisas: um movimento irracional de

preços, que gera fundamentos piores para a economia, prejudica nossa sociedade,

com crises severíssimas como a que estamos vivendo atualmente.

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Essa conjunção de fatores perversos ficou exacerbada na primeira virada do

século XX, de acordo com duas tendências que abordarei agora.

A primeira tendência é a existência de um capital financeiro cada vez mais

sofisticado. Jamais houve abundância de capital especializado no mundo. Ou seja,

um capital muito especializado que se originou com esse sistema de previdência

privada e demais sistemas de capitalização e floresceu uma indústria de

gerenciamento de recursos — fundo de pensão, empresas seguradoras, fundos

mútuos. Esses fundos perscrutam o mundo em busca de aplicações financeiras que

proporcionem um retorno superior aos seus clientes acionistas. Além disso, nessas

empresas mais tradicionais há também fundos ultra-especializados. Por exemplo, há

fundos indexados, que não querem ter um retorno superior, simplesmente querem

replicar o retorno equivalente ao da bolsa americana ou do rendimento do ouro.

Existem os famosos fundos alavancados, os perversos hedge funds, em que se

apostam grandes tendências mundiais — se o juro vai cair, se haverá crise. São

fundos de valor relativo, que na verdade investem comprando um produto e

vendendo outro. Há ainda os fundos de dívida estressada, os fundos abutres. São

terríveis porque compram dívidas de países que já realizaram reestruturação da

dívida, como Argentina e Peru, e depois tornam a vida desses países um inferno.

Vão a tribunais internacionais, ameaçam arrestar os bens desses países, como a

Itália está fazendo com os bens argentinos e a exemplo do que aconteceu no Peru.

Esses países são obrigados a fazer acordos à parte com esses fundos para evitar

esse inferno. Isso acontece no mundo moderno.

Além desses agentes especializadíssimos, os bancos internacionais

desenvolveram, na última década, departamentos de risco que comparam retorno de

um vasto número de ativos. Já vi isso funcionar. São modelos de risco capazes de

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padronizar retornos de ativos muito díspares, ou seja, títulos do Tesouro americano,

bônus da dívida do Equador, títulos de hipoteca da Dinamarca, opções de títulos do

Banco do Japão. Tudo isso é colocado lado a lado basicamente para se ver onde há

maior possibilidade de ganho e de retorno.

As empresas transnacionais também participam desse movimento de

globalização do capital com operações de câmbio em vários países, diversificando

suas linhas de produção entre diferentes localizações do mundo. Esse capital

movimenta-se rapidamente de um país para outro e está pronto para avaliar as mais

diversas oportunidades de investimento e especulação. Além disso, esse capital

formou uma rede de conexões que não tem centro e por isso é muito dinâmica,

semelhante à Internet. Diria mesmo que semelhante à maneira como a Al Qaeda se

organiza no mundo. Quer dizer, é uma rede sem centro e por isso é muito robusta.

Há alianças entre empresas, trocas de informação entre altos executivos,

autoridades e empresas de consultoria. Tudo isso gera uma rede de contatos em

que a informação flui rapidamente.

Essa teia de relacionamentos não só compartilha informação como também

interage através de fusões e aquisições, contratos de fornecimento, serviços de

consultoria e terceirização de atividades. Da mesma forma que os chefes de Estado

mantêm contato entre si, o mesmo ocorre entre diretorias das empresas

transnacionais, bancos e gerenciadores de recursos, que se encontram em eventos

em Davos ou Nova Iorque para discutir decisões estratégicas. Freqüentemente, têm

decisões semelhantes ou compartilham a mesma visão sobre determinado assunto.

A segunda grande tendência é que o altíssimo grau de interação que acabei

de descrever não desenvolveu capacidade de julgamento na mesma medida. É

impressionante, parece até contraditório, mas arrisco dizer que a modernidade gerou

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um excesso de informação que, de fato, prejudica o julgamento. Para julgar, é

necessário introspecção, o que por sua vez é a antítese dessa cultura da Internet, da

informação em tempo real, da ânsia de estar conectado ao mundo.

Neste ponto, relembro um conto de Jorge Luis Borges chamado “Fumes, o

Memorioso”. Trata-se de um “gaucho” possuidor de memória absoluta; lembrava-se

de cada folha da árvore que avistava, de cada estrela do céu, decorava as mais

diversas línguas. Mas Borges observa: “Suspeito, no entanto, que não era muito

capaz de pensa”. Pensar é esquecer diferenças, generalizar, abstrair. No

abarrotado mundo de Fumes não havia senão detalhes quase imediatos.

Este conto de Borges é para mim a metáfora dessa Internet, em que o afã de

se conectar prejudica a capacidade de introspecção e de desenvolver julgamento

independente.

Uma rede de capital financeiro altamente especializada e conectada, aliada a

esse empobrecimento da capacidade de introspecção, levou à exacerbação do

comportamento de multidões. O mercado global tornou-se a multidão final. Na

azáfama da geral do Maracanã, os pobres “geraldinos” correm sem saber por qual

motivo. Pois sim, num mercado globalizado não é tão raro que se compre porque

todos estão a comprar, que se entre em pânico simplesmente porque todos estão

tomados de pânico. É impressionante como esse ambiente é propício à propagação

de modismos, mitos e idéias reducionistas, quando não flagrantemente falsas.

Em minha vida profissional, várias vezes vi que, de repente, todos os

gerentes de risco de vários bancos começavam a pensar ao mesmo tempo: “Ah, o

Brasil é o melhor lugar do mundo, o Brasil vai fazer o default”. Não acho que seja só

um problema de conspiração, mas de falta de julgamento dessa questão que estou

abordando.

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O ponto que quero deixar claro é que no século XXI o Brasil deve incentivar

os investimentos e desencorajar a especulação. Mas, antes de discutir como fazê-lo,

convém diferenciar claramente os conceitos de especulação e investimento. O

célebre investidor Benjamin Graham, professor do grande investidor Warren Buffett,

que está nas páginas dos jornais, escreveu um livro muito bom, “Intelligent Investor”.

No primeiro capítulo, diferencia investimento de especulação da seguinte forma: uma

operação de investimento é aquela que, após análise rigorosa, promete segurança

do principal e retorno adequado. Operações que não obedecem a esses critérios

são especulativas.

A essa lapidar definição, acrescento ainda a origem etimológica da palavra

especulação. Vem do latim. O verbo depoente, cuja forma infinitiva é speculari,

segundo o dicionário Saraiva, significa observar de lugar alto, estar de observação,

estar de atalaia, de sentinela. Speculari occasionem quer dizer espreitar a ocasião.

Speculari consilia significa expiar os desígnios. Speculabor unde significa

espreitarei a oportunidade de. Finalmente, speculatores era o nome dado aos

batedores do exército de César, que iam à frente para desbravar o terreno e adquirir

informação.

Investimento pressupõe um comprometimento de longo prazo, haja vista que

a preservação do capital está sendo assegurada. Já especulação é uma atividade

na qual a perda do capital é uma possibilidade real, por isso exige retornos mais

elevados e prazos menores. Ao contrário do investidor, o especulador necessita de

uma porta de saída, caso mude de opinião sobre o cenário traçado. Como os

batedores do império romano, o especulador espreita matreiramente, aproxima-se

aos poucos, fica de sentinela e foge rapidamente ao primeiro estampido.

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Definidos assim esses conceitos, diria que toda economia com preços livres,

invariavelmente, por bem ou por mal, necessita de especuladores e investidores. Os

especuladores conferem liquidez à economia. Além disso, várias atividades

cotidianas são na verdade atividades especulativas. Por exemplo, a decisão de um

exportador de fechar o câmbio para exportar minério de ferro a um dólar de 2,90 ou

esperar mais uma semana para ver se sobe mais um pouco é uma decisão

especulativa. Uma dona de casa que recebeu o extrato da conta do Fundo DI e se

apavorou com o que viu e resolveu tirar tudo par aplicar em um fundo cambial está

agindo como uma especuladora.

Compreendido o que significa especulação, todos temos de concordar que

nenhum país pode traçar um projeto de longo prazo em que contemple depender

desse tipo de capital para fechar suas contas fiscais ou externas.

É particularmente trágico que dependamos da agências internacionais de

avaliação de risco como a Standard & Poor’s e a Mood’s para que o mundo veja o

Brasil como país propício a receber capitais de longo prazo, um país com grau de

investimento. Essas agências já cometeram vários equívocos notoriamente

documentados, mas a crua realidade é que ainda permanecem como referência para

aquela rede de capital internacional que descrevi. É grave que todas as agências

internacionais no momento classifiquem o Brasil como país conveniente somente

para capitais especulativos. Não podemos nos contentar com isso.

Como evitar ser destino de capitais especulativos? Faço um adendo. O capital

especulativo é como se fosse um vampiro: só vai à sua casa se for convidado.

Qualquer pessoa que já viu um filme de terror sabe disso.

Então, como devemos evitar convidar esse capital especulativo para entrar

aqui? Na minha humilde opinião, o País deveria atuar em diversas áreas. A

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providência mais eficaz, e também a mais árdua, seria adotar um plano de médio

prazo para galgar essa escala de avaliação das agências internacionais, atingindo o

grau de investimento. Na América Latina, apesar de todas as crises, o México e o

Chile já atingiram esse nível. Não é coincidência que esses países sofreram menos

contágio do que nós próprios em razão dessas crises todas que assolam o mundo.

Deveria ainda o País reforçar a atuação dos órgãos fiscalizadores como

Banco Central, Conselho Monetário Nacional e Comissão de Valores Mobiliários,

para que zelem para o bom funcionamento dos mercados, evitando a manipulação

de preços e minimizando a aparição de efeitos manada, tão deletérios para a

economia. É importante notar que o efeito manada pode ocorrer tanto para o lado do

otimismo, caso da bolha da Internet, quanto do pessimismo, que talvez esteja

acontecendo agora com o nosso País. Ambos são nocivos e devem ser

desencorajados.

A política que melhor os combate é a da ampla transparência. Informação

sobre contas públicas, contas externas, inflação, diálogo contínuo, além de dados

precisos sobre a situação patrimonial, de fluxo de caixa das empresas negociadas

em bolsa conferem racionalidade à formação dos preços, porém, reduzindo, não

eliminando totalmente o risco de bolhas especulativas.

É necessário admitir que o Banco Central sozinho não possui todos os

instrumentos suficientes para promover a estabilidade, como bem mostrou a Profa.

Piovesan. Sem um regime fiscal austero, a política monetária não tem como garantir

inflação baixa e, sem uma política tributária eficiente, o País arrisca perder

investimentos de longo prazo para outros países que oferecem condições melhores.

Temos de reconhecer também o prejuízo enorme que o crime organizado e o atual

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ambiente de insegurança acarretam para o investimento e, conseqüentemente, para

o crescimento econômico do País.

Relacionamento com o FMI.

O FMI apoiou e fomentou políticas econômicas equivocadas em alguns

países, que liberaram seus mercados ao capital especulativo quando ainda não

estavam maduros para tal. Em artigo publicado recentemente na revista The

Economist, de 3 de agosto, o diretor do Departamento de Pesquisa do FMI, Dr.

Kenneth Rogoff, reconheceu que “em suas visitas — o texto foi truncado assim

mesmo; demorou para reconhecer o erro do FMI, mas reconheceu — de rotina,

antes da crise da Ásia, o FMI algumas vezes pendeu longe demais em direção a

uma certa negligência benigna, quando os países liberaram seus mercados para

capitais de curto prazo, antes que a estrutura regulatória doméstica estivesse pronta

para lidar com eles. Agora, a opinião do FMI tem mais nuanças.” O Dr. Rogoff usou

de um inglês muito nebuloso para admitir o erro da instituição.

Entretanto, o FMI não impõe sua política a nenhum país, isso é importante. O

FMI é sempre requisitado pelos outros países, chamado pelos governos para auxílio.

A opção de assinar o acordo é soberana do país. Nesse sentido, o FMI é uma das

alternativas de que dispõe o país. Pode às vezes ser uma boa alternativa, ou pode

muitas vezes não o ser. Cabe ao país avaliar responsavelmente, sem paixão, seu

leque de opções, tendo como objetivo primordial — diria mesmo o único objetivo —

garantir o crescimento econômico de longo prazo e a melhoria das suas condições

de vida.

China, Rússia, Malásia são exemplos de países que não seguiram o

receituário do FMI. Romperam com o FMI. A questão sobre se obtiveram ou não

resultados melhores por ter seguido seus próprios rumos é tema de controvérsia no

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ambiente acadêmico, mas alguns autores de renome como o Prêmio Nobel Stiglitz e

o respeitado economista de Harvard Dani Rodrik, bem como o especulador George

Soros, em recente artigo no Financial Times sustentaram que sim, que em alguns

casos países que não aderiram às políticas do Fundo conseguiram resultados

melhores do que os que o fizerem.

Cabe ao Brasil fazer nesse momento a sua própria avaliação do que o FMI

oferece e tomar sua posição. O relacionamento deve ser de parceria, jamais de

submissão. A via certa para a submissão é esperar que a comissão técnica do FMI

venha aqui, analise nossas contas, nossa economia e, ante algumas

condicionalidades, disponibilize algumas dezenas de bilhões de dólares. Com isso,

esperamos que os problemas se resolvam. Essa é a receita para a submissão

completa.

Não é isso o que o FMI deseja. Pelo contrário. Acredito que o Brasil tem as

condições para resolver sozinho seus dilemas, mas se o FMI pode minimizar o custo

social da solução e acelerar a retomada do crescimento, então que um acordo seja

bem-vindo.

Finalmente, concluindo, diria que no século XXI há de se ter clareza de

propósitos, transparência e consistência nas políticas econômicas. No século XXI

não há mais espaço para políticas inconsistentes. O motivo é muito simples. Com o

advento da Internet, com a informação em tempo real, o relacionamento entre

governos e mercados é francamente assimétrico.

O que é o mercado? São milhares de pessoas tomando decisões de negócios

a todo momento; é toda essa rede de capitais globalizados que descrevi nesta

apresentação; são meus familiares quando perguntam o que fazer com suas

economias; são os aposentados e também V.Sas. quando pensam em comprar um

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imóvel, um carro, ou aplicar na poupança. E mais, são todas essas pessoas munidas

das cabeças mais brilhantes e bem informadas, consultores financeiros, advogados,

economistas com larga experiência, jornalistas versadíssimos. Isto é o mercado.

E do lado dos governos, quem dita a política econômica? Diria que, no

máximo, umas trinta pessoas — patriotas, inteligentes, bem-intencionados e bem

informados, porém estressados, com agenda lotada, sem tempo para a introspecção

que o cargo exigiria. A única forma de lidar com o mercado nessa situação é ser

transparente, rigoroso e consistente nas ações. Na expressão popular, é não colocar

prego sem estopa, não presumir que o mercado não vai se dar conta de algum furo

de política.

A simetria de informação e de recursos disponíveis é evidente. Praticar

políticas econômicas inconsistentes no século XXI é ter certeza do fracasso, é como

jogar xadrez contra um grande mestre internacional e fazer o seguinte raciocínio:

vou posicionar meu cavalo, se ele não notar o que pretendo fazer, em cinco lances

dou o xeque-mate. Por outro lado, se o grande mestre der conta, arrisco perder meu

cavalo em dois lances. No século XXI, governos que agirem assim estarão a

especular com o dinheiro do povo. Governos especuladores perdem sempre, pois

especulação é um jogo que os governantes não dominam e, pelo bem do povo, não

devem jogar.

Muito obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – A Presidência agradece à

Dra. Flávia Piovesan, que precisa sair de imediato.

Conversei com os presentes e percebi que algumas conferências já estão

disponíveis em disquete. Portanto, as palestras dos senhores estarão disponíveis

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não apenas em livro, mas também na Internet, nas páginas da Comissão de

Relações Exteriores e de Defesa Nacional, do IPRI e da FAPERJ.

Agradecemos também ao Prof. José Walter Bautista Vidal e ao economista

Marcelo Castro pela presença e pela disposição em colaborar com este seminário.

Convido para integrar a Mesa, neste encerramento, o Ministro Carlos

Henrique Cardim, Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do

Itamaraty, da Fundação Alexandre de Gusmão; o Prof. Luis Fernandes, Diretor

Científico da FAPERJ. Saúdo os Embaixadores Musa Amer Odeh, da Palestina, e

Samuel Pinheiro Guimarães, que resistiram ao adiantado da hora.

Vamos encerrar os trabalhos com um balanço final de nossa atividade. Nosso

propósito é fazer um encerramento singelo e informal. Para tanto, passo a palavra a

um dos idealizadores deste evento, com quem mantivemos contato permanente, o

estimado Ministro Carlos Henrique Cardim, Diretor do IPRI.

O SR. CARLOS HENRIQUE CARDIM – Sr. Presidente, senhoras e senhores,

é uma grande satisfação concluir este seminário que representa um estudo das

relações internacionais no Brasil.

Tomo a liberdade de citar o Prof. Karl Deutsch, grande especialista em

relações internacionais. Ele dizia que nas relações internacionais e na política em

geral há dois elementos fundamentais: a ação e o conhecimento. Segundo Deutsch,

numa situação médica, por exemplo, não basta somente a ação, por mais bem-

intencionada que seja e por maiores que sejam a boa vontade e o empenho; é

necessário também que o médico tenha conhecimento específico, caso contrário, o

paciente sofrerá muito, e poderá perder a vida. Esse mesmo modelo pode ser

aplicado em relações internacionais, em que, além da ação, o conhecimento é

fundamental. Mas há uma diferença entre o erro do médico e o do especialista em

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relações internacionais. Nas relações internacionais, precisamos de cemitérios

muito maiores do que na Medicina, ou seja, realmente as conseqüências da falta de

conhecimento nas relações internacionais podem ser terríveis.

Acredito que o conhecimento tem duas dimensões: a pessoal e a social. A

dimensão social, justamente no caso brasileiro, implica ampliar o debate,

incrementar a reflexão sobre as relações internacionais. Eventos como este

seminário colaboram decisivamente para a ampliação e o incremento do assunto. Os

textos produzidos vão gerar conhecimento, debates, e vão estar nas universidades,

além do livro que pretendemos publicar .

Quando estava na Inglaterra, chamava-me a atenção o fato de que, quando

alguém queria perguntar o que se estava estudando não dizia, What are you

studying? mas, What are you reading? O sinônimo de estudo é a escrita, que se

encontra numa universidade, num seminário, no que se pode ter acesso e ler.

Eventos assim são importantes colaborações. Registro, com grande satisfação, a

boa combinação que logramos entre a Comissão de Relações Exteriores e de

Defesa Nacional, a FAPERJ e o IPRI. E espero que essa parceria resulte em novos

empreendimentos em breve.

Muito obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) – Concedo a palavra, com

muita satisfação, ao Sr. Luis Fernandes, Diretor Cientifico da FAPERJ, professor do

Instituto de Relações Internacionais da PUC do Rio de Janeiro e da Universidade

Federal Fluminense, para suas considerações sobre o seminário. Sinto-me honrado

com a longa trajetória de nossa amizade e de termos integrado juntos a diretoria da

gloriosa União Nacional dos Estudantes.

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O Prof. Luis Fernandes teve papel decisivo na elaboração da concepção

deste evento. Graças a seu entusiasmo e ao valor que atribui às relações

internacionais, como parte importante da centralidade da questão nacional,

conseguimos realizar este seminário. Por seu intermédio, agradeço ao Prof. Renato

Lessa e à FAPERJ.

O SR. LUIS FERNANDES - Sr. Presidente, em primeiro lugar, agradeço à

Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados

a oportunidade de colaborar na organização deste seminário, juntamente com o

Ministro Carlos Henrique Cardim, e de contar com o trabalho conjunto e a

cooperação do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Ministério das

Relações Exteriores.

Todos que participaram deste seminário farão suas avaliações ao ler os

trabalhos aqui apresentados, mas na minha apreciação o seminário é amplamente

positivo e uma iniciativa — vou usar uma palavra ousada — sem precedentes. É

normal reunir membros de um Ministério e de setores da área acadêmica para

discutir alguns temas; é normal uma relação institucional regular entre o Ministério,

seus órgãos e Comissão de Relações Exteriores — da Câmara dos Deputados ou

do Senado Federal. Mas esta conjunção que conseguimos reunir é singular, pois há

a participação ativa do Ministério, na organização e apresentação dos trabalhos e

dos debates, da Comissão da Câmara dos Deputados e do mundo acadêmico, que

resultam numa triangulação não muito usual. Esse talvez tenha sido um dos pontos

altos do seminário que realizamos.

Como mencionou o Deputado Aldo Rebelo, sempre há a contribuição da

biografia individual das pessoas envolvidas, além da relação institucional. Nesse

caso, não é comum ter na direção de uma importante agência de fomento no País

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alguém da área de Ciências Sociais. E é menos raro ter — estou há mais de três

anos na função de diretor científico — alguém da área acadêmica de relações

internacionais. No caso da FAPERJ, além dessa singularidade, tivemos durante

quase dois anos como diretor-presidente outra pessoa que também é da área do

Direito Internacional, o Prof. Antônio Celso, que participou de uma das mesas neste

seminário, e mais recentemente um cientista político de renome como diretor-

presidente também da FAPERJ. Aliado a isso, o fato de termos na presidência da

Comissão alguém para quem as relações internacionais e a política externa do País

não são mero pretexto e preocupação desse cargo; são parte das preocupações

existenciais e individuais deste presidente. A conjunção desses fatores singulares

nos permitiu fazer esse desenho e reunir esse conjunto de atores que se fizeram

presentes neste seminário.

Tais fatos singulares devem ser superados daqui para frente, porque o que

atendemos com este seminário foi a uma necessidade permanente do Estado

brasileiro — mais importante do que o fato de pessoas a ocuparem cargos de

direção nas instituições e fundações respectivas e também na Comissão de

Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados.

Talvez o nosso grande desafio seja avançar na institucionalização desse tipo

de iniciativa para que ela tenha continuidade ao refletir o interesse e necessidade

permanente do Estado e do povo brasileiro.

Por ter sido representante de uma das instituições organizadores, tive

oportunidade de participar de todos os seminários, do início ao fim. Nem todos

tiveram essa chance. A minha impressão é que tivemos um painel bastante rico e

abrangente dos desafios da política externa brasileira no início do século XXI, que

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captou tanto a riqueza quanto a variedade dos desafios que se apresentam para a

política externa do País.

Apesar das diferenças existentes nas apresentações — comentava isso com

o Ministro Carlos Henrique Cardim no intervalo —, as discussões foram marcadas

por uma convergência de preocupações e de propósitos.

Vou até me valer da imagem do futebol, apresentada pelo Marcelo Castro, na

mesa anterior. Freqüento o Maracanã há quase quatro décadas, sempre sentando

do lado direito. Então, vocês podem tirar as conclusões futebolísticas desse

posicionamento. O fato é que há três anos, os órgãos de segurança do Governo do

Estado do Rio de Janeiro tomaram uma decisão que tem implicações, para

entendermos as conclusões desse seminário: além de distribuir as torcidas dentro do

Maracanã, distribuíram também fora dele, especialmente no caso de clássicos de

maior rivalidade do futebol carioca, como Vasco e Flamengo. O que ocorreu? A

rivalidade territorializada e controlada dentro do estádio foi transferida para fora dele,

em circunstância absolutamente desterritorializada.

Qual foi o resultado? Não foi ordem, harmonia, relações pacíficas, mas

justamente o inverso, a liberação de um conflito, de uma identidade que antes

estava territorializada em um espaço não territorializado de organização dessa

tensão e o aumento gigantesco da violência, inclusive casos de mortes em

decorrência das tensões entre as torcidas.

Houve uma preocupação que serviu de fio condutor para o seminário, ou seja,

a supremacia adquirida por uma única potência no sistema internacional, após o fim

da Guerra Fria, traduziu-se, depois dos atentados de 11 de setembro, em uma

política menos respeitosa para os fóruns multilaterais e tendente a buscar preservar

e consolidar uma supremacia unipolar, impossível de se consolidar no sistema

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internacional. Isso gera um ambiente internacional muito preocupante e propício ao

agravamento de tensões e conflitos dentro do qual o Brasil deve procurar

posicionar-se com cautela, mas com coragem e firmeza, buscando preservar a sua

autonomia e a sua margem de manobra no sistema internacional.

Vimos nas discussões do seminário uma valorização de esforços de

integração que fortaleçam a posição do Brasil no sistema internacional, com

destaque para o MERCOSUL, como o embrião de uma integralização sul-americana,

e esforços de aproximação no âmbito da comunidade dos países de língua

portuguesa. Para além disso, a necessidade de investir e de valorizar processos de

multipolarização no sistema internacional que impeçam o simples predomínio da lei

do mais forte no sistema internacional e que possam fornecer bases materiais para

consolidação do respeito aos fóruns multilaterais. Por isso a necessidade da busca

de maior aproximação com diversos países integrantes da União Européia; a busca

de um aproximação, tanto política quanto econômica, com pólos regionais que se

formam e se consolidam no sistema internacional; e o reforço firme e decidido do

Brasil aos seus compromissos com os fóruns multilaterais, como resposta racional à

irracionalidade da lei do mais forte no sistema internacional.

Essas foram as preocupações convergentes que dominaram as discussões

do seminário e que formam uma pauta de política externa do Estado brasileiro, que

independe propriamente das variações do Governo.

Acredito que esta pauta está presente na agenda dos candidatos que hoje

disputam as eleições para Presidente do Brasil. Ter tornado pública essa pauta,

ajudando a debatê-la e discuti-la foi a grande realização deste seminário. Sinto-me

satisfeito por ter podido ajudar na sua organização e realização.

Agradeço a todos a participação e a atenção. (Palmas.)

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O SR. PRESIDENTE (Deputado Aldo Rebelo) - Muito obrigado, Dr. Luis

Fernandes.

Não há nada a acrescentar às palavras do Ministro Carlos Henrique Cardim e

do Prof. Luis Fernandes. Diria apenas que o esforço da Comissão de Relações

Exteriores e de Defesa Nacional de encontrar espaço para o debate de projetos de

interesses do povo brasileiro e a formulação de uma política externa, no início do

século XXI, ao lado do Poder Executivo, das universidades, do Itamaraty, da

sociedade brasileira, foi bem-sucedido, vitorioso, embora ainda inicial.

Num mundo tão carregado de adversidades e riscos, o Brasil tem condições

de desempenhar suas potencialidades como poucos países possuem, a partir de

sua fronteira mais próxima.

Ao longo de quase 15.800 quilômetros de fronteira com dez países não

encontramos um palmo sequer de discórdia, de ressentimento, de insatisfação. Para

exemplificar: no frontispício do papel timbrado do Congresso argentino está lavrado

que as Malvinas e outra ilha são argentinas, embora estejam em posse da Inglaterra;

no brasão da República Colombiana ainda figura como território desocupado o

Panamá; no mapa da Venezuela ainda figura um espaço reivindicado junto à Guiana

Inglesa, se não me engano; o Peru e o Equador só recentemente conseguiram

celebrar — queira Deus que em definitivo — a paz em torno da disputa fronteiriça.

Ou seja, o Brasil dispõe de condições muito favoráveis para desempenhar esse

papel a partir da América do Sul e para enfrentar, sem qualquer recurso à

beligerância ou à arrogância — que, além do mais, não seriam aconselháveis — as

circunstâncias de um processo de integração. Por um lado, pode ser a nossa

vocação, a partir do MERCOSUL e da América do Sul, e por outro, uma opção

imposta nós, diante de dificuldades não apenas comerciais — cito o caso do aço, da

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soja, do calçado, da carne —, mas diplomáticas. Por exemplo: o que ocorreu

recentemente com o Presidente da Organização para Proibição de Armas Químicas,

quando houve a tentativa de isolamento do Brasil não só diante do mundo, mas aqui

mesmo na América do Sul, em que países como o Uruguai e a Argentina foram

levados a votar contra os interesses do Brasil e contra o nosso embaixador, na

tentativa de não permitir o isolamento de Cuba, que conduziu a diplomacia do nosso

grande vizinho e irmão do norte a levar o Uruguai a adotar a posição que resultou no

rompimento das relações diplomáticas entre o Uruguai e um país latino-americano

por história, por opção e por natureza, que é Cuba; a Argentina a adotar posição

semelhante; que levou às diferenças de posição que temos adotado diante do que

ocorre na crise econômica argentina, na crise militar na Colômbia e na crise política

na Venezuela.

Então, há uma grande área com enorme coeficiente de atritos no aspecto

comercial, econômico, diplomático, militar, envolvendo os interesses do Brasil. E

creio que nessas circunstâncias, quando boa parte da agenda de política econômica

tem migrado, nesta Casa, para a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa

Nacional, porque não podemos discutir política econômica sem discutir ALCA,

MERCOSUL, OMC, e assim por diante, é importante que a sociedade encontre um

espaço para refletir, para debater e para ajudar a formular, escolher e sustentar

caminhos que abram espaço para a afirmação do nosso País. A democracia, os

direitos humanos, o desenvolvimento, só para citar a agenda da Dra. Flávia

Piovesan, serão palavras vãs se não forem sustentadas pela autonomia, pela

independência, pela soberania do nosso País. Uma colônia não tem autonomia para

criar democracia, direitos sociais, nem desenvolvimento. Uma colônia financeira,

militar, tecnológica não tem autonomia para forjar ou formular políticas próprias. E

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sem desenvolvimento, sem soberania seremos ainda mais frágeis e será mais difícil

a realização dos objetivos legítimos e justos do Brasil em política externa.

Agradeço à Presidência da Câmara dos Deputados o apoio; à Comissão

Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização; à Comissão de Constituição e

Justiça e de Redação; à Consultoria Legislativa; à Secretaria de Comunicação e

Relações Públicas; à TV Câmara; ao CEFOR; ao Cerimonial da Casa; à Taquigrafia,

ao Serviço de Copa; aos companheiros da Segurança; e, finalmente, aos promotores

deste seminário, em destaque a FAPERJ, na pessoa do Prof. Luis Fernandes.

Na próxima semana teremos novo seminário, também com o apoio da

FAPERJ, sobre política de defesa para o Brasil no século XXI.

Declaro encerrada a presente reunião.

Muito obrigado. (Palmas.)