descascando a superfície -...

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1 Por direitos à queima-roupa: intervir para existir 1 Janine Justen 2 Orientador: Prof. Dr. Marcio Tavares d’Amaral 3 Resumo: Este artigo discute a problemática da legitimação de discursos em conflitos urbanos na América Latina. Em meio à disputa de interesses do mercado imobiliário, envolvendo inciativa privada e manejo de políticas públicas, a arte do fazer-se visível assume a linha de frente na luta pelo direito à cidade, seus usos e acessos. Como estudo de caso, a proposta de intervenção artística do português Alexandre Farto (Vhils), que descascando a superfície descasca também as barreiras sacras dos privilégios da legitimação aristocrática. Do incômodo, o congelamento do tempo presente – o único possível – como forma de existência dos indesejáveis, tratando a arte como ferramenta potencialmente transformadora das narrativas de sofrimento contemporâneas. Palavras-chave: cidade, desigualdade, visibilidade, América Latina, Vhils Da desigual matriz latino-americana “Às vezes esses homenzarrões brincam como meninos, empurram-se pelos ombros, correm uns atrás dos outros até o meio da rua, gritam como cães e depois, novamente, recobram o ritmo de seu sigilo e continuam conversando.” 4 Assim Beatriz Sarlo (2014, p.93) dá o tom aos estranhos da cidade de Buenos Aires, juntando às belas palavras de Robert Arlt, ensaios e fotografias próprios para montar uma espécie de quebra-cabeça de um cenário em transformação permanente. Ânimos se exaltam e se acalmam, posturas são excitadas e reprimidas, quase como se estivessem postas em um gráfico ondulatório que se alterna em face do coletivo e do individual. A ideia é, a partir dessas percepções e testemunhos, entrecruzar duas urbes, a real e a imaginada, na intenção de descrever (e decifrar) 1 Trabalho apresentado no GT Comunicação e Política do IV Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em Ciência Política. Realização: Universidade Federal Fluminense – UFF (agosto/2015). 2 Autora do trabalho. Mestranda em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista Capes. E-mail: [email protected] 3 Orientador. Professor emérito da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador-fundador do Laboratório de História dos Sistemas de Pensamento do IDEA (Programa de Estudos Avançados – ECO/UFRJ). E-mail: [email protected] 4 ARLT, Robert. Sirio libaneses en el centro, 1933.

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  1  

Por direitos à queima-roupa: intervir para existir1

Janine Justen2

Orientador: Prof. Dr. Marcio Tavares d’Amaral3

Resumo: Este artigo discute a problemática da legitimação de discursos em conflitos

urbanos na América Latina. Em meio à disputa de interesses do mercado imobiliário,

envolvendo inciativa privada e manejo de políticas públicas, a arte do fazer-se visível

assume a linha de frente na luta pelo direito à cidade, seus usos e acessos. Como

estudo de caso, a proposta de intervenção artística do português Alexandre Farto

(Vhils), que descascando a superfície descasca também as barreiras sacras dos

privilégios da legitimação aristocrática. Do incômodo, o congelamento do tempo

presente – o único possível – como forma de existência dos indesejáveis, tratando a

arte como ferramenta potencialmente transformadora das narrativas de sofrimento

contemporâneas.

Palavras-chave: cidade, desigualdade, visibilidade, América Latina, Vhils

Da desigual matriz latino-americana

“Às vezes esses homenzarrões brincam como meninos, empurram-se pelos

ombros, correm uns atrás dos outros até o meio da rua, gritam como cães e depois,

novamente, recobram o ritmo de seu sigilo e continuam conversando.”4 Assim Beatriz

Sarlo (2014, p.93) dá o tom aos estranhos da cidade de Buenos Aires, juntando às

belas palavras de Robert Arlt, ensaios e fotografias próprios para montar uma espécie

de quebra-cabeça de um cenário em transformação permanente.

Ânimos se exaltam e se acalmam, posturas são excitadas e reprimidas, quase

como se estivessem postas em um gráfico ondulatório que se alterna em face do

coletivo e do individual. A ideia é, a partir dessas percepções e testemunhos,

entrecruzar duas urbes, a real e a imaginada, na intenção de descrever (e decifrar)

                                                                                                               1 Trabalho apresentado no GT Comunicação e Política do IV Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em Ciência Política. Realização: Universidade Federal Fluminense – UFF (agosto/2015). 2 Autora do trabalho. Mestranda em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista Capes. E-mail: [email protected] 3 Orientador. Professor emérito da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador-fundador do Laboratório de História dos Sistemas de Pensamento do IDEA (Programa de Estudos Avançados – ECO/UFRJ). E-mail: [email protected] 4 ARLT, Robert. Sirio libaneses en el centro, 1933.

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identidades culturais mapeadas – os fatores espaço-tempo assumem, portanto, função

ímpar na atividade narrativa: as tensões entre público e privado, os deslocamentos de

mercadorias, pessoas, demandas e serviços e, principalmente, as ressignificações das

práticas sociais, trazendo à tona forte carga simbólica dos processos de mediação.

O detalhe – que agora se sobrepõe ao contexto e ganha ar de moldura – se dá à

medida do calar-se, pois se calam em simultâneo as insatisfações, diminuem-se as

conquistas, saturam-se as organizações. Ao ciclo das interações urbanas

acrescentamos variáveis inconstantes, que induzem a separação da equação no campo

dos visíveis e dos invisíveis, dos legítimos e dos não legítimos. O único termo capaz

de inverter esta lógica, como veremos adiante, é o incômodo: alguns moradores da

cidade são invisíveis até o momento em que incomodam um dado projeto hegemônico

de apropriação do espaço urbano.

Ermínia Maricato (2003) prefere os temos legal e ilegal para se referir à

formalidade da configuração urbana: “A relação entre habitat e violência é dada pela

segregação territorial. Regiões inteiras são ocupadas ilegalmente. Ilegalidade

urbanística convive com a ilegalidade na resolução de conflitos: não há lei, não há

julgamentos formais, não há Estado.” Para ela, quem manda é o capital especulativo,

o mercado imobiliário, as empreiteiras e a indústria automobilística, que deixam à

margem da legalidade incríveis 50% da população das grandes metrópoles.

Materialmente, a cidade resulta de uma ocupação por sobreposição, por agregação, por metástase. Monstruosa excrescência da planície, a cidade foi produzida por uma inexorável causalidade geográfica que determinou sua história e sua atualidade. (SARLO, 2014, p.146)

Somando cerca de três milhões de habitantes5, a capital das terras hermanas

não compartilha conosco apenas a alta densidade demográfica, o “parentesco” do

continente sulamericano ou os acordos aduaneiros. Assolada por um governo

autoritário, para muitos classificado como terrorista, após efusivas implementações de

políticas populistas com o peronismo, seguiu sob as rédeas da Junta Militar por sete

penosos anos de chumbo, de 1976 a 1983, e carrega até hoje fantasmas para lá de

conhecidos pelos brasileiros.

                                                                                                               5 De acordo com o Instituto Nacional de Estadística y Censos da Argentina (Indec), a população total da cidade de Buenos Aires era de aproximadamente três milhões de habitantes em 2010. Para efeitos de comparação, a área metropolitana argentina é a segundo maior da América do Sul, ficando atrás apenas da Grande São Paulo no ranking de concentração demográfica. Dados disponíveis em: http://www.sig.indec.gov.ar/censo2010/. Último acesso: 07/01/15, às 22h09.

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Nós tivemos Getúlio, sofremos o golpe para coibir quaisquer planos a respeito

da reforma agrária no mandato de Jango. Problemas de infraestrutura e saneamento

básico, assistência salutar, educação, distribuição de renda, moradia, despreparo

policial, elevados índices de inflação e migração, itens comuns às metrópoles de

mercado associadas a países em desenvolvimento nos parecem restar. Triste herança.

Depois de significativo período de repressão política e intelectual, chegam as

sanções libertariamente travestidas do Estado Mínimo, condenando a população à

ditadura do consumo, um novo estágio da violência urbana. O expansionismo

comunista, ameaça clara às intenções de controle comercial norte-americanas sobre a

América Latina durante a Guerra Fria, alastrou-se ao patamar de justificativa para

uma dominação cultural global, adotando como seus mais sensíveis aliados, os meios

de comunicação tradicionais6.

Pensar a exclusão não é mais suficiente. Faz-se necessário angariar

mecanismos eficazes que superem a resistência enquanto força contrária àquelas que a

segregam, existir de fato. “A cidade não oferece a todos a mesma coisa, mas a todos

oferece alguma coisa, mesmo aos marginais que recolhem as sobras produzidas pelos

incluídos” (SARLO, 2014, p.5). Para tal, os discursos, morada da (des)legitimação,

são a lei.

Bem salientado por Maricato (2003), as atenções das secretarias de habitação

em âmbitos municipal e estadual se voltam exclusivamente à cidade legal, dirigindo-

se à parte ilegal somente em casos de articulação combativa – uma sólida guerra de

interesses, mas que se torna discrepante ao analisarmos as possibilidades de recursos

disponíveis a cada um dos lados do conflito. É a chamada burocracia conveniente da

máquina pública.

Vamos a um, ou a alguns, exemplos emblemáticos: Villa Rodrigo Bueno7,

comunidade da zona portuária argentina, vizinha de uma reserva ecológica recém-

demarcada, Costanera Sur, do complexo esportivo do clube Boca Juniors e do projeto

                                                                                                               6 Em Antropológica do Espelho – Uma teoria da comunicação linear e em rede (2002), Muniz Sodré expõe, de maneira bastante embasada, a transformação da antiga cultura de massa para uma sociedade de informação, apontando a circulação acelerada de um grande volume de dados como principal diferencial entre os marcos. O historiador britânico Peter Burke, ao traçar um panorama para a história social do conhecimento, da prensa de Gutemberg ao Wikipédia, partilha das mesmas motivações que o pesquisador brasileiro: estaríamos em um momento de transição entre uma comunicação centralizada, unidirecional e vertical para uma comunicação de relativa interatividade e multimidialismo. 7 A questão da segregação socioespacial de Villa Rodrigo Bueno vem sendo tratada com propriedade pela pesquisadora María Carman, que integra o   departamento de Antropologia e Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA). Obra de referência: Las trampas de la naturaleza (2011).  

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de um condomínio de luxo da poderosa construtora IRSA. Localizada em uma área

enobrecida da cidade, valorizada a partir do início das obras de revitalização de

Puerto Madero, o maior símbolo da expansão imobiliária local, denuncia em larga

escala a falta de planejamento e o descaso de um poder público explicitamente elitista

e seletivo. A circunstância perfeita para redefinir os prestígios e o desfrute dos

direitos à cidade de Buenos Aires.

A região que reúne mais de 1.200 famílias surgiu ainda na década de 1980,

ironicamente ocupada por antigos operários responsáveis pela construção da zona

portuária e de seu entorno. Se o horror das remoções sem garantias financeiras

compensatórias ou de realocação próxima já indignam, acrescente às circunstâncias

adversas uma série de complicações ambientais de solo e lençol freático

contaminados catalisadas por redes de água e esgoto que nunca foram construídas –

neste patamar, soa-se capricho atentar para a ausência de vias de acesso e meios de

transporte, que dificultam a passagem dos moradores, a coleta de lixo, a entrada de

materiais de construção e até mesmo produtos para uso corrente.

Ameaças difusas, rumores, controles, formam parte dos intentos cotidianos para fazer a vida na comunidade mais difícil. Estes mecanismos a simples vista não são visíveis. São as botas no barro que permitem percebê-los e ver como funcionam e que efeitos causam na população. (PERELMAN, 2011, p.117)8

E na luta por visibilidade, uso e direito à cidade, María Carman (2011 apud

PERELMAN, 2011) vai além e direciona o debate para o campo do profano, cuja

densidade de sentidos nos permite perceber o sofrimento como valor constituinte,

intrínseco, conferido por um outro condenador: “Frente a tal conjuntura, o puro há de

ser posto à parte – vale dizer sagrado – como medida de segurança frente ao

percebido como contaminante” (p.254)9.

Para Maricato (2012), “a fronteira da expansão imobiliária precisa se deslocar

e você vê isso em qualquer cidade se expandindo. Em vez de aplicar onde é

necessário, por prioridade social, vamos aplicar para produzir a nova centralidade e é

                                                                                                               8 Tradução livre. Do original: “Amenazas difusas, rumores, controles, formaron parte de los intentos cotidianos para hacer la vida en la villa más difícil. Estos mecanismos a simple vista no son visibles. Son las botas en el barro las que permiten percibirlos y ver cómo funcionan y qué efectos tienen en la población.” 9 Tradução livre. Do original: “Frente a tal coyuntura, lo puro ha de ser puesto aparte – vale decir sagrado – como medida de seguridade frente a lo percibido como contaminante.”

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lá que o capital imobiliário está”10. Segundo a urbanista, “o povo não evapora”11, um

lamento profundo para aqueles que orquestram as finanças e os loteamentos

produtivos12.

Poderíamos citar Assunção, La Paz, Bogotá, Quito, Montevidéu, Tegucigalpa,

todos conglomerados imersos em conflitos urbanos de mesmo feitio, ou ainda Porto

Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, a fim de nos aproximar da discussão.

Para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a América

Latina coleciona dez dos quinze países mais desiguais do mundo, trazendo consigo a

posição de primeiro lugar no ranking quanto ao quesito protestos sociais. Segundo o

último relatório publicado pela rede da ONU (2010)13, Peru, Bolívia e Argentina

contabilizaram mais de 200 protestos cada no período de um ano, sendo os de maior

número de manifestações – para efeitos comparativos, o Chile aparece em último

lugar na lista com 58.

Desta disputa saldamos duas deduções importantes: é inegável a conformação

de urbes partidas, de privilégios aristocráticos, cuja concentração de poder traduz-se

em oportunidades e na ausência delas; todavia, é impossível não ver a mobilização

dos descontentes, passam a ser inúteis os esforços dos condutores sociais em abafar as

demandas e reivindicações daqueles que por obra do próprio sistema foram postos à

margem do bios14.

David Harvey (2014) defende a ideia de cidades doentes. Para ele, é nos

grandes centros que se articulam multidões às quais o capital já não oferece

alternativas tradicionais. A cura estaria, então, ligada à dinâmica de embates, ou seja,

ações que explorem a essência fluida de movimentação das metrópoles entendendo-as

como lugares simbólicos de manifestações por e pelo poder e de construção de

imaginários sociais potencialmente transformadores: a cidade como antídoto da

própria cidade, injetando novos óleos lubrificantes em suas engrenagens.                                                                                                                10 Entrevista concedida à Revista Fórum, publicada em 25 de junho de 2012. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/blog/2012/06/15298/. Último acesso: 14/01/15, às 16h49. 11 Idem. Ver nota 8. 12 O jornal El Tribuno atesta que até o dia primeiro de dezembro do ano passado, nada havia sido feito pelas autoridades. Texto disponível em: http://www.eltribuno.info/patch-adams-visito-la-villa-rodrigo-bueno-n475835. Último acesso: 08/01/15, às 3h03. 13 Relatório “O protesto social na América Latina”. Disponível em: http://www.pnud.org.br/. Último acesso: 15/01/15, às 23h39. 14 Para nos aproximar das teorias foucaultianas, caem por terra as regulações sociais pautadas exclusivamente nos mecanismos de hierarquia de verticalização de poder – em redes, percebemos nós articulados: “O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer esse poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão” (FOUCAULT, 2012, p.283).

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Mais do que reivindicar acesso, o direito à cidade reivindica um conjunto de

intervenções reais nos processos de configuração da urbe, como ocupações de prédios

abandonados, grafites ou reuniões em fóruns virtuais. Sem meias palavras, Maricato

(2012) afirma: “Olha, eu posso ser processada se disser que os movimentos devem

ocupar. Mas só queria dizer que, se os movimentos não ocupam, essa questão não tem

visibilidade. Não, se não ocupam áreas valorizadas.”15

A arte pode ser essa saída à barbárie, não por seus atributos estéticos apenas,

mas majoritariamente pela capacidade de produzir significados e agregar olhares. Eis

outra forma de se legitimar discursos, existir através da narrativa e do narrador: uma

cadeia de incômodos.

Dos olhos, os holofotes: o caso Vhils

Nascido em 1987, o artista de rua Alexandre Farto, mais conhecido como

Vhils, cresceu no subúrbio industrial de Seixal – uma das mais antigas periferias

lisboetas – sendo, portanto, profundamente influenciado pelas transformações urbanas

de uma Portugal em intenso desenvolvimento econômico nas últimas décadas do

século XX.

Ele define sua técnica de escavação como estética de vandalismo e busca na

poesia visual “falar diretamente às emoções humanas, expressando a luta entre as

aspirações do indivíduo e o ambiente saturado que habita, destacando e expondo a

dimensão sombria presente por trás do atual modelo de desenvolvimento que o engole

e seus anseios materiais”16. As plataformas são variadas: madeira, papel, chapas

metálicas, cortiça, outdoors entre outros, até mesmo explosivos já foram utilizados.

Concentremo-nos nas paredes.

Europa, Ásia, Oceania, América Latina. Muitas são as arenas de intervenções

de Vhils, todas urbanas. O artista escolhe fachadas de prédios abandonados, viadutos,

muros, escombros, vias subterrâneas para literalmente descascar a superfície, como o

                                                                                                               15 Entrevista concedida à Revista Fórum, publicada em 25 de junho de 2012. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/blog/2012/06/15298/. Último acesso: 15/01/15, às 23h42. 16 Tradução livre, texto de autoria do artista disponível na página http://www.alexandrefarto.com/. Do original: “This striking form of visual poetry, showcased around the world in both indoor and outdoor settings, has been described as brutal and complex, yet imbued with a simplicity that speaks to the core of human emotions, expressing the struggle between the aspirations of the individual and the demanding, saturated environment of the urban spaces he lives in, highlighting and exposing the sombre dimension that lies behind the current model of development and the material aspirations it encompasses – unsustainable, yet inebriating.” Último acesso: 12/01/15, às 21h10.

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nome do próprio projeto sugere, e desenhar rostos dos moradores locais17. Uma

apropriação por afeto, não por capital, que genuinamente nutre cenários em comum

estado de degradação com valores sensíveis às faculdades humanas. Emocionam.

Um manifesto de identidade cultural legitimador que invoca cidades para

cidadãos – cidadãos aqui plenos por sua existência e história, ambas amplamente

vinculadas ao meio dos quais comumente são expulsos ou, no mínimo, a eles são

ditos estranhos. “São o imprevisto e o não desejado da cidade, o que se quer apagar,

afastar, desalojar, transferir, transportar, tornar invisível” (SARLO, 2014, p.61). São

estes agora os protagonistas, que antes de resistir, existem, eternizados na dimensão

de um frame congelado (figura 1).

 (Figura  1)  No  topo:  Hong  Kong,  San  Juan;  Embaixo:  Cidade  do  México,  Medelin

Para Sarlo (2014), o presente é o único tempo possível na cidade – nele

correm juntos passado e futuro, presos ao instante. Na mesma lógica, seguem o

chamado regime presentista de François Hartog ou a ideia de tempo autista e

amnésico de Martín-Barbero, que procuram reinstalar a própria noção de processo

histórico e conceber uma nova condição de experiência de tempo ao contemporâneo,

cuja articulação e intervalo entre os seus três estágios clássicos não seja mais                                                                                                                17 O projeto intitulado Descascando a superfície (Scratching the surface) já circulou pelos quatro cantos do globo. No Brasil, as intervenções se deram nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.

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evidente. Estaríamos vivendo uma contagem de presente alongado, sob a qual a noção

de risco parece nos afetar muito mais que a consciência de uma linha em retrospectiva

ou o compromisso de se resumir a planos e previsões estáticos.

(...) contra o passado, que é também a morte coloca-se na frente a vida e o presente. (...) Passou-se, portanto, em nossa relação de tempo, do futurismo para o presentismo: para um presente que é, para si mesmo, seu próprio horizonte. Sem futuro e sem passado, ou gerando, quase diariamente, o passado e o futuro de que necessita cotidianamente. O slogan “Tudo, imediatamente!” pichado nos muros de Paris, em 68, é um bom exemplo dessa “hipertrofia do presente” (HARTOG, 1997, p.11-13).

Instaurado após a crise da Modernidade, período no qual o progresso ditava as

formas de ver, sentir e analisar o mundo, o presentismo, que começa a se formar ainda

nos anos 196018, tendo como marco a queda do Muro de Berlim, reitera a força da

lógica do consumo, conferindo-lhe a capacidade de produzir, além das identidades

socioculturais, o próprio tempo. “Com o regime moderno, o exemplar, como tal,

desaparece para dar lugar àquilo que não se repete. O passado está, por princípio,

ultrapassado” (HARTOG, 1997, p.9).

Para o pós-moderno Jean Baudrillard (1981), alia-se à conjuntura uma aposta

na eficácia dos simulacros como resposta à crise da representação, pois capazes de se

tornarem imagem de imagem de imagem, indicam, em alta potência, uma replicação

viral hiper-real, que os exime da necessidade de fundamento ou estímulo primário.

“A simulação parte, ao contrário da utopia, do princípio de equivalência, parte da

negação radical do signo como valor, parte do signo como reversão e aniquilamento

de toda a referência” (BAUDRILLARD, 1981, p.13).

A arte de Vhils, então, cria uma memória virtual, individual e coletiva,

absolutamente pautada em simulacros que se reproduzem e se reafirmam, uma vez

postos na zona urbana de visibilidade, por interações sociais. Vamos a um exemplo

(figura 2):

                                                                                                               18 Na década de 1960, eclode uma série de manifestações populares nas ruas, mundo a fora, em busca de marcos para as minorias representativas. O ano de 1968 tornou-se emblemático com a conquista de direitos civis, liberação sexual e reconhecimento dos movimentos estudantis. Na América Latina, as vozes gritaram pelo fim da repressão política, conforme situamos na primeira parte deste artigo.

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 (Figura 2) Retrato de Edinho - Morro da Providência, Rio de Janeiro

Nos meses de setembro e outubro de 2012, como em resposta às manipulações

torpes do Estado brasileiro frente aos investimentos preparatórios para o Mundial de

Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, o artista português se instalou nas

dependências do Morro da Providência, a favela mais antiga do Brasil. À época, o

montante girava em torno de R$ 131 milhões e estava destinado, a priori, à

construção de um teleférico que interligasse a comunidade e de um plano inclinado,

um elevador que transportaria os moradores ao ponto mais alto do morro.

O projeto avançou, mas se transmutou em uma elaborada rota turística. Assim

como Villa Rodrigo Bueno, na Argentina, a comunidade carioca se viu vítima das

obras de revitalização do Porto Maravilha, compondo mais um processo de

gentrificação urbana19 – estão previstas intervenções de capital misto em cinco

milhões de metros quadrados no centro do Rio, das quais espera-se um dramático

aumento das unidades de imóveis residenciais para classe média alta e de complexos

empresariais atrativos para o capital especulativo.

Junto à valorização fundiária, as políticas de ocupação policial em favelas

coordenam a demolição de cerca de mil casas – até janeiro de 2013, 140 delas já

                                                                                                               19 “A palavra em português, gentrificação, é geralmente entendida como o processo de mudança no estoque imobiliário, nos perfis residenciais e padrões culturais, de maneiras semelhantes aquelas bem documentadas nas cidades da América do Norte, Europa e América Latina.” (GAFFNEY, 2013, p.7)

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haviam sido destruídas20 –, atingindo aproximadamente 32 mil pessoas. Daquelas que

permanecem de pé, os aluguéis exorbitantes tratam de cuidar. Para Christopher

Gaffney (2013), é o maior projeto de privatização urbana das Américas a fim de criar

espaços de exceção.

Edinho (figura 2), morador da comunidade há 30 anos, teve sua casa

expropriada pelo governo e deu vida a um dos sete rostos esculpidos nas paredes por

Vhils. “Você me viu na parede? Você não disse que eu mudei daqui? Eu não mudei,

eu continuo morando no mesmo lugar.”21 Este é o seu relato, mais politicamente

simbólico do que a própria política. A coisa em si não está mais lá, no entanto, sua

representação faz as vezes do real de maneira assustadoramente intensa. Um outro

sistema e não um fora dele.

O despejo é real, a desapropriação também, mas Edinho nunca esteve tão

dissolvido e integrado à comunidade nas décadas em que circulou por suas vielas e

becos. Pode ser essa uma das facetas da febre de memória a que se refere Barbero

(2000), pontuando-a como uma das maiores demandas do homem contemporâneo.

Um produtor de presente com desejo de passado, com desejo de controlar o

tempo. Seriam os simulacros este lugar de memória? Ao menos quanto à arte,

podemos dizer que sim. Vhils não só retratou cidadãos à margem da sociedade de

mercado, mas devolveu-lhes suas auras assassinadas pela especulação imobiliária.

Considerações finais

“A cidade existe nos discursos tanto quanto em seus espaços concretos, e,

assim como a vontade de cidade a transformou num lugar desejável, o medo da cidade

pode transformá-la num deserto em que o receio prevaleça sobre a liberdade”

(SARLO, 2014, p.92). Começamos e terminamos com Sarlo.

O tal medo da cidade aparece em perfeito compasso com as recentes

demandas da iniciativa privada e das concessões públicas, que preferem abdicar-se do

posto de autoridade da regulação de direitos em benefício da regulação de recursos. O

deserto vem se estabelecendo, cerceando a liberdade daqueles que possivelmente

ainda não a conheceram por inteiro ou sequer pela metade.

                                                                                                               20 Dados obtidos a partir do blog do jornalista Luis Nassif. Texto disponível em: http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/copa-800-casas-do-morro-da-providencia-serao-demolidas. Último acesso: 15/01/15, às 14h51. 21 Fala extraída de depoimento concedido a um mini-documentário sobre a intervenção artística no Morro da Providência. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=I8MNwStj_58. Último acesso: 15/01/15, às 12h05.

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Quando a política de exclusão se torna política de Estado, a arte surge como

um eficaz mecanismo de legitimação e visibilidade e eterniza narrativas na dimensão

efêmera de um tempo presentista: a memória virtual faz do incômodo uma realidade e

possibilita aos indesejáveis, aos estranhos da cidade, a certeza de existirem.

Na conjuntura pós-moderna de uma vida fragmentada e sem referências, a

identidade cultural das urbes parece diluir-se junto aos seus habitantes, apostando na

questão dos simulacros a saída para a crise de representação vigente.

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Referências de pesquisa BARBERO, Jesus-Martin. Dislocaciones del tiempo y nueva topografia de la memória. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de; REZENDE, Beatriz (orgs.). Artelatina: cultura, globalização e identidades. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio D’Água, 1981. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2012. GAFFNEY, Christopher. Forjando os anéis: A paisagem imobiliária pré-Olímpica no Rio de Janeiro. E-Metrópoles: Revista eletrônica de estudos urbanos e regionais. Ano 4, n.15, dez. 2013, p.6-20. HARVEY, David. Cidades Rebeldes – Do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014. MARICATO, Ermínia. Conhecer para resolver a cidade ilegal. In: CASTRIOTA, L.B. (org.) Urbanização Brasileira: Redescobertas. Belo Horizonte: Arte, 2003, p.78-96. PERELMAN, Mariano. Repensando la segregación urbana en la ciudad de Buenos Aires. Revista del Área de Estudos Urbanos del Instituto de Investigaciones Gino Germani de la Facultad de Ciencias Sociales (UBA). Quid 16, n.1., 2011, p.114-119. SARLO, Beatriz. A cidade vista – Mercadorias e culturas urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014. SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes, 2002. Websites: http://www.pnud.org.br/ http://www.alexandrefarto.com Entrevista: MARICATO, Ermínia. O panorama das cidades doentes. Entrevista concedida à Revista Fórum, publicada em 25 de junho de 2012. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/blog/2012/06/15298/ Mini-Documentário: https://www.youtube.com/watch?v=I8MNwStj_58