deslocando fronteiras

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 22, n. 45, p. 279-305, jan./jun. 2016

    Deslocando fronteiras

    http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832016000100011

    * Aproveitamos este espao para agradecer especialmente Fundao de Amparo Pesquisa do Estadode So Paulo (Fapesp, processo n 09/50153-2) e Fundao para a Cincia e a Tecnologia (SFRH/BPD/94011/2013) pelo financiamento das pesquisas que do lugar ao presente artigo.

    ** Em ps-doutoramento. Contato: [email protected].***

    Em ps-doutoramento. Contato: [email protected].

    DESLOCANDO FRONTEIRAS: NOTAS SOBRE INTERVENESESTTICAS, ECONOMIA CULTURAL E MOBILIDADE JUVENIL

    EM REAS PERIFRICAS DE SO PAULO E LISBOA*

    Guilhermo Aderaldo**

    Universidade de So Paulo Brasil

    Otvio Raposo***

    Instituto Universitrio de Lisboa Portugal

    Resumo:Este artigo pretende adensar a reflexo acerca das possibilidades de trocaseconmicas e simblicas que se desdobram da relativa democratizao do acessoaos meios digitais, sobretudo, entre as populaes jovens e habitantes de reas so-cialmente marcadas por processos de precarizao nas metrpoles globais. Para tal,

    tomamos como ponto de partida a anlise do modo pelo qual dois coletivos de rapperse realizadores audiovisuais vinculados a regies perifricas de Lisboa e So Paulo seutilizam de uma variedade de ferramentas comunicativas tanto nos espaos urbanosquanto no ciberespao.

    Palavras-chave:juventudes, periferia, redes, tecnologias comunicativas.

    Abstract:This article aims to reflect upon the effects that have unfolded as a resultof the relative democratization of access to digital media, especially in terms of the

    possibilities for economic and symbolic exchanges, among young people and resi-

    dents of areas marked by processes of social precariousness in global metropolises.To this end, we analyze the way in which two collectives of rappers and audiovisual

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    producers linked to peripheral regions of Lisbon and So Paulo make use of a varietyof communication tools, both in urban spaces and in cyberspace.

    Keywords:communication technologies, networks, outskirts, youths.

    Mobilidades, juventudes e economias culturais emergentes

    O tema da mobilidade pode ser considerado um assunto clssico da lite-ratura acadmica sobre cidades. No entanto, nas ltimas dcadas, esse campode discusso tem sido consideravelmente adensado pelos estudos voltados

    reflexo sobre o avano e a popularizao das novas tecnologias de comu-nicao. Isso se deve ao fato de que o desenvolvimento dessas tecnologiase seu uso por parte, sobretudo, de grupos subalternizados, num contexto deintensa acelerao dos processos migratrios e crise dos Estados nacionais,tem favorecido a consolidao de verdadeiras esferas pblicas diaspricas,nas quais a cultura vista na chave da diferena passa a ser utilizadacomo instrumento/recurso na luta por reconhecimento e direitos (Agier, 1999,2011; Appadurai, 2005; Reyes, 2013). Nesse cenrio, onde a imaginao e acriatividade ganham verdadeira preponderncia, as mdias tornam-se fontesinesgotveis para a constituio de uma reserva rica, sempre mutante de pos-sveis vidas (Herzfeld, 2014, p. 371) e isso no ocorre apenas na nuvem,para utilizar uma metfora bastante atual.

    A exemplo do que afirmam diversos autores (Carmo, 2009; Castells,2013; Cressell, 2009; Haesbaert, 2010; Simes, 2009), os processos de des-territorializao das relaes e referncias culturais, desencadeados pela glo-balizao, tendem a estimular o surgimento de novas formas de representaoe ocupao do espao. Algo que nos leva necessidade de uma percepo

    mais complexa e abrangente da noo de territrio (Haesbaert, 2010), queprivilegie sua dimenso relacional. Conforme argumenta Carmo (2009, p. 45):

    [] considero que entre o anncio da morte ou da sua resistncia possvelconceber uma outra interpretao que tende a encarar o espao social comoalgo mais complexo, passvel de ultrapassar o vicioso destino dos lugares, queora perecem ora teimam em permanecer. Na verdade [] com a globalizaoos lugares tendem a ultrapassar largamente o permetro em que se circunscreve(e se inscreve) a sua materialidade. E, neste sentido, estes so constitutivos da

    prpria globalizao.

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    Para o autor, os lugares no devem ser entendidos como universos ho-mogneos e estanques, passveis de serem traduzidos por meio de percepes

    dualistas do tipo global/local, pois se tratam de ambientes de enrugamento,produzidos a partir das frices surgidas dos encontros entre distintas formasde percepo e uso dos mesmos.

    Seguindo nessa discusso, possvel dizermos que a maior intercone-xo global possibilitou que msicas, costumes e estilos de vida atravessassemfronteiras numa velocidade nunca antes vista. A expanso dessa circulao desmbolos por circuitos transnacionais, porm, no implica uma homogenei-zao cultural, tampouco a perda dos sentidos locais, considerando-se que os

    mesmos no existem fora dos ambientes onde so consumidos (Abls, 2012).A heterogeneizao do global (Sansone, 2007, p. 141) configurou no-

    vas oportunidades para as manifestaes culturais locais ao aprofundar osprocessos de crioulizao e hibridizao, fruto da maior conscientizao dosdiferentes estilos de vida, smbolos, produtos e costumes no planeta. Assim,expresses culturais deixaram de ser determinadas pelas fronteiras nacionais,passando os recursos materiais e simblicos a serem considerados glocais(Robertson, 1995).

    o que nos mostra, por exemplo, o estudo de Simes (2009), sobre o usoda internet por parte de jovens rappersda periferia de Lisboa. Ao analisar asformas de interao one off-line, tecidas por estes interlocutores, o autor apon-ta para o modo pelo qual, ao utilizarem o espao virtual para reivindicarem aimportncia simblica de seus pertencimentos territoriais atravs da constru-o de sitesespecificamente voltados apreciao das prticas vinculadas sculturas hip-hopregionais simultaneamente alargam suas redes e expandemseus circuitos de sociabilidade. Desse modo, ao mesmo tempo em que desvin-culam os processos e relaes sociais de seus contextos imediatos, reafirmam econsolidam seus vnculos a esses lugares. Nas palavras do prprio pesquisador:

    [] a desterritorializao, e com esta a acessibilidade global, acompanhadasimultaneamente pela constante localizao, com aluses explcitas e perma-nentes realidade geogrfica local. (Simes, 2009, p. 83).

    Reyes (2013), em sua anlise das redes de relaes tecidas entre escri-tores e agentes culturais vinculados a reas perifricas de So Paulo e Cidade

    do Mxico chega a concluses semelhantes, uma vez que aponta para o fato

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    de que a identificao desses atores com as experincias decorrentes dosdesdobramentos polticos, econmicos e sociais relacionados ao avano das

    polticas neoliberais nos pases latino-americanos fez com que os mesmosdesenvolvessem um modo particular de conceptualizao da noo de peri-feria, capaz de lanar todos na direo de um lugar comum. Esta periferiatransnacional, por sua vez, vem possibilitando a organizao de projetos quese convertem em deslocamentos e trocas materiais e simblicas capazes de in-fluenciar significativamente as prticas dos sujeitos privilegiados pela inves-tigao, sem que os mesmos percam suas identidades e vnculos originrios.

    Pesquisas como essas, ao apontarem para o alargamento dos circuitos de

    sociabilidade e trocas culturais partilhados, sobretudo, por jovens vinculadosa regies marcadas por intensos processos de precarizao, mostram que, paraalm das conexes artsticas j ressaltadas, tais vnculos tendem a estimularverdadeiros cmbios de conhecimento sobre o espao urbano e os modos deadministrao poltica de suas fronteiras.

    A posse de dispositivos tecnolgicos e digitais por parte desses atores,portanto, parece estar influindo decisivamente no modo atravs do qual osmesmos passam a representar a alteridade e criticar certas categorias que ten-dem a estereotip-los. Nas ltimas dcadas, muitos dos jovens associados aesses territrios tm se organizado em coletivos1 e lanado mo de umasrie de aes artsticas e culturais com o objetivo, entre outros, de redefinirsuas identidades, reclamar direitos e afirmar um modo especfico de viver ajuventude. Nesse sentido, vale ressaltar que a noo de juventude, do modocomo compreendemos, no deve ser confundida com uma essncia ou condi-o natural e universal do desenvolvimento humano, passvel de ser resumi-da situao etria, mas como uma posio a partir da qual as mudanassociais e culturais podem ser experimentadas (Bourdieu, 2008; Feixa, 1999;

    Garca Canclini; Cruces; Urteaga Castro Pozo, 2012; Pais, 2003).Se o ingresso na vida adulta estiver atrelado ao momento em que se

    consolida uma carreira e deixa-se a casa dos pais, por exemplo, possvel

    1 O que denominamos aqui como coletivos so pequenos agrupamentos, sem estrutura hierrquica egeralmente informais, os quais se constituem da juno de pessoas com certas afinidades, que se orga-nizam, na maior parte das vezes, para realizarem intervenes simultaneamente estticas e polticas emvariados espaos urbanos, com o propsito de ressignificar simbolicamente o sentido social dos locais

    ocupados, que so quase sempre reas de fronteira, marcadas por intensos processos de segregao.

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    dizer que a noo de juventude se alargou consideravelmente num cenriode crise do mundo do trabalho, onde se vive cada vez mais de projetos curtos,

    sem garantia de direitos e a ideia de futuro cada vez menos compreensvel.Em termos econmicos, as formas renovadas de interveno artstica

    e cultural, fundadas nas novas tecnologias e em processos colaborativos emrede, flexibilizam a noo industrial de copyrighte proporcionam uma maiorautonomia aos criadores em relao indstria cultural. Mas necessrio re-conhecer que tais facilidades no livram os produtores culturais, sobretudoaqueles menos privilegiados financeiramente, da instabilidade e precarizaolaboral. Ainda apoiando-nos na pesquisa dirigida por Garca Canclini, Cruces

    e Urteaga Castro Pozo (2012), de fcil constatao o fato de que a versati-lidade no manejo de mltiplas tcnicas e linguagens por parte das atuais ge-raes decorre, em certa medida, justamente desse processo de precarizaoe da necessidade de atuao simultnea em trabalhos diferentes e efmeros.

    No por acaso, como mostra De Tommasi (2013, 2014), as populaesconsideradas jovens e de baixa renda vm se tornando alvo privilegiadode interesses e investimentos pblicos e privados na abordagem e configura-o da chamada questo social. Conforme aponta a autora, muitas ONGse empresas envolvidas com projetos de responsabilidade social cumpremo papel de converter aqueles considerados como jovens-problema em jo-vens-soluo e o fazem, em grande medida, capacitando esse pblico--alvo atravs de oficinas e cursos voltados arte e cultura.

    dessa maneira que muitos desses jovens ingressam, ainda que semnenhuma proteo jurdica, no mercado das chamadas indstrias criativas.Entretanto, o acmulo de conhecimentos na manipulao de ferramentastecnolgicas e o surgimento de algumas polticas pautadas pelo princpio dachamada cidadania cultural2tambm os permite, como j adiantamos, mo-

    bilizar projetos culturais autnomos com o propsito (poltico) de interpela-rem a precarizao cotidiana de suas vidas.

    2 Referimo-nos aqui a um modelo de fomento baseado numa referncia mais ampla da noo de cultura,que no compreende o conceito como o resultado da ao de especialistas, mas, sim, como a experinciavinculada produo de costumes, significados e valores por parte de qualquer populao. Tal alarga-mento conceitual, por sua vez, amplia consideravelmente os perfis de sujeitos aptos a disputar os recur-sos culturais. Sobre essas polticas e sua diferena em relao aos modelos dominantes de financiamento

    cultural ver especialmente Lima e Ortellado (2013).

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    essa ltima dimenso que procuraremos ilustrar nos limites deste arti-go, tomando como base duas pesquisas etnogrficas recentes (Aderaldo, 2013,

    Raposo, 2010), nas quais buscamos compreender as formas de sociabilidadee os intercmbios culturais protagonizados por coletivos formados por jovensvinculados a reas perifricas de So Paulo e Lisboa. Nosso objetivo serapontar para certas regularidades no modo como grupos juvenis de ambas ascidades forjam inovadores circuitos de sociabilidade, produo e consumo,passveis de dar novos sentidos existenciais a si prprios e aos seus territriosde vivncia. Observaremos a maneira atravs da qual os jovens representamo territrio onde vivem e pelo qual circulam, levando em conta as amplas di-

    ferenas sociodemogrficas entre as populaes vinculadas a reas marginali-zadas nos dois casos, uma vez que os contextos urbanos abordados demarcamsituaes bastante particulares.3

    3 A proposta deste artigo no comparar modelos urbansticos, mas, to somente, buscar regularidades nasprticas relacionadas ao uso das novas tecnologias comunicativas por parte de jovens vinculados a regi-es urbanas marcadas por processos de precarizao. Todavia devemos destacar algumas caractersticasrelacionadas s especificidades demogrficas e histricas de cada ambiente, com o intuito de enquadraras diferenas e semelhanas quanto ao nvel das desigualdades vividas por nossos interlocutores. EmboraSo Paulo e Lisboa sejam reconhecidamente consideradas como cidades globais, h uma evidente di-ferena de escala entre elas. Com quase 3 milhes de habitantes (Instituto Nacional de Estatstica, 2014),a regio metropolitana de Lisboa muito menor que a de So Paulo, onde 20 milhes de moradores per-fazem quase o dobro de toda a populao portuguesa. Essa gigantesca diferena quantitativa certamentetraz consequncias nas mobilidades e formas de sociabilidade das suas respectivas populaes, tal comocomplexifica as noes de territrio, lugar ou metrpole. Se a histria urbana de So Paulo nopode ser dissociada dos processos migratrios (internos e externos), Lisboa e Portugal tm uma longahistria no sentido contrrio, ou seja, de emigrao; embora desde a independncia das antigas colniastenham-se tornado tambm cidade e pas de imigrao. Vale ressaltar que a partir de 2008, com o des-poletar da crise econmica mundial, as taxas de emigrao cresceram substancialmente, especialmente

    da sua populao juvenil. S em 2013 e 2014, a taxa de emigrao foi superior a 100 mil pessoas porano (Pires, 2015). Assim, a superao do desemprego e das fronteiras segregadas, para muitos jovens daperiferia de Lisboa, inclui tambm redes transnacionais familiares e de amizade espalhadas por toda aEuropa. J no caso de So Paulo, embora os nveis de desigualdade social sejam bastante superiores aosde Lisboa, preciso enfatizar que a primeira dcada dos anos 2000 trouxe uma srie de melhorias notocante qualidade de vida dos setores menos privilegiados. Como aponta Marques (2015), uma sriede mudanas associadas a um perodo de intenso crescimento econmico e ao aparecimento de algumaspolticas redistributivas tornou os bairros perifricos da capital paulista em ambientes mais heterogneose menos segregados, ao contrrio do que vem ocorrendo nas regies consideradas como ncleos residen-ciais da elite. Alm disso, o perfil hegemnico das populaes residentes dessas regies no correspondemais, como ocorreu nas dcadas anteriores, figura do migrante, que chegava cidade em busca detrabalho. Trata-se de jovens nascidos e criados na cidade e que gozam de maiores possibilidades de

    consumo e circulao pelo espao urbano.

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    Considerando esse quadro e as especificidades de cada caso, buscare-mos, no decorrer do texto, debater como nossos interlocutores produzem for-

    mas renovadas de identificao e do suporte a culturas juvenis, por vezes,subvertendo as dinmicas de segregao urbana, do racismo, da pobreza e daviolncia. Problematizar usos e apropriaes do espao pblico, bem comoalargar o espectro de anlise dos sistemas de troca e dos processos de mo-bilidade desses agentes, sero outras das finalidades do presente artigo, quetambm pretende lanar algumas pistas de entendimento sobre a contribuiodas redes digitais e dos novos dispositivos tecnolgicos para a transformaoda relao entre economia e cultura nas metrpoles contemporneas.

    A participao dos sujeitos pesquisados em variadas redes informais eassociativas, como buscaremos tornar claro, funciona como um disparador deinformao e conhecimento, estimulando seu fluxo pela cidade. Paralelamente,incita uma forma de estar no mundo que pode ser reorganizadora de suasposies, na medida em que potencializa a abertura de caminhos na direo deuma cidadania insurgente (Holston, 2013) capaz de desconstruir as repre-sentaes hegemnicas sobre si prprios e seus lugares de origem. esse pro-cesso que buscaremos esclarecer por meio da anlise dos casos que seguem.

    Red Eyes Gang: (re)inventando a ArrentelaRed Eyes Gang4 o nome de um dos maiores coletivos de rappersde

    Portugal, influente no circuito hip-hop5por conta da qualidade e do carterinterventivo das suas msicas. Com idades que variam dos 16 aos 30 anos, osseus integrantes so jovens oriundos de camadas socialmente desfavorecidas,majoritariamente rapazes, negros e moradores da Arrentela, um bairro situ-ado no Seixal, antiga cidade industrial da Regio Metropolitana de Lisboa.6

    Formado em 1995 a partir da emergncia de vrias bandas de rapna Arrentela 187Squad, Kombanation, Defensores da Rua, Bronxiano e Revelasom foram

    4 O nome Red Eyes Gang uma referncia aos efeitos do cigarro de haxixe nos olhos de quem o fuma,tornando-os vermelhos. Fumar haxixe uma prtica usual entre esses jovens.

    5 O hip-hop um movimento cultural urbano formado por quatro expresses artsticas: rap, djing(disc--jockey), break dancee grafite.

    6 A pesquisa sobre o Red Eyes Gang foi realizada entre 2005 e 2007 por um dos autores, OtvioRaposo (2007), no mbito do mestrado em Antropologia Urbana. Dez anos aps a entrada no terreno,o autor retomou o contato com antigos interlocutores para conhecer algumas das transformaes ocorri-

    das no grupo.

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    os precursores , o Red Eyes Gang corresponde a um grupo de amigos que fazdas ruas do bairro o palco das suas vivncias quotidianas, onde forjam estilos

    de vida prprios e sociabilidades inovadoras. um grupo informal, no hie-rarquizado e sem rituais de admisso ou estratgias de ao relacionadas comprticas criminais, o que difere do significado de gangue atribudo por pesqui-sadores da Escola de Chicago.7Assim, o Red Eyes Gang deve ser encaradocomo uma crew8de rappers, resultado da afirmao da amizade no interiordo grupo e do sentimento de pertena Arrentela. A organizao numa crewpossibilita, ainda, uma maior projeo das msicas dos jovens que a integram,constituindo-se como o emblema de uma identidade localmente construda.

    A estigmatizao do bairro, o estatuto social vulnervel dos seus habi-tantes e as ms experincias relacionadas com o racismo, a violncia policiale as dificuldades para conseguir a nacionalidade portuguesa9constituem al-gumas das dinmicas centrais para a apreenso da vida social dessa camadajuvenil. Se, num primeiro momento, Red Eyes Gang era um grupo restrito dejovens ligados ao rap no chegava a 20 pessoas , a relativa notoriedade dealguns msicos fez crescer a adeso dos jovens crewa partir dos anos 2000.10Composta principalmente por filhos de pais imigrantes de ex-colnias portu-guesas na frica,11as referncias culturais africanas exercem uma importanteinfluncia nas expresses artsticas, estilsticas e identitrias desses jovens.

    7 O uso da noo de gangue ganhou destaque nos estudos da Escola de Chicago na dcada de 1920, e utilizada para designar uma organizao com racionalidade instrumental e fins de mobilidade socialentre os seus integrantes. Altamente hierarquizadas e com uma identificao a um territrio, as ganguescostumam estar envolvidas com comportamentos violentos, e podem estar ligadas a atos de delinquncia(Abramovay et al., 1999).

    8 Fortemente territorializadas, as crewscorrespondem a grupos de jovens que se reveem em prticas co-

    muns e que se juntam sob o mesmo nome, partilhando um estilo de vida semelhante.9 Parte significativa dos jovens de origem africana tem dificuldade em aceder nacionalidade portuguesamesmo quando nascidos em Portugal, em consequncia das limitaes impostas pelo critriojus sangui-nis. Ou seja, preciso ser filho de portugus para a obteno da nacionalidade portuguesa. A partir de2006 houve uma flexibilizao da lei, garantindo aos filhos de imigrantes nascidos em Portugal a naciona-lidade desde que um de seus pais estivesse regularizado h, pelo menos, cinco anos (cf. Portugal, 2006).

    10 O sucesso do rapperChullage foi decisivo para o engajamento de mais jovens ao Red Eyes Gang. O seuprimeiro discoRapreslias. Sangue, lgrimas e suor, lanado em 2001, foi um dos grandes expoentesdo hip-hopportugus daquela altura, responsvel por difundir o nome da crewpara norte e sul do pas.Nos anos posteriores, mais de uma centena de jovens integravam o grupo, dos quais cerca de 40 estavamdiretamente ligados msica rap.

    11 Embora os filhos de cabo-verdianos sejam maioritrios, verifica-se uma ampla diversidade de origens

    nacionais entre os jovens negros que integram o coletivo: Angola, Guin-Bissau e So Tom e Prncipe.

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    Todavia, mais do que meras adaptaes da herana cultural dos pais, importaressaltar o carter hbrido das suas manifestaes culturais e rituais de esquina,

    resultado de uma socializao cosmopolita num contexto urbano europeu.12No por acaso, a convivncia estabelecida pelos jovens do grupo amplamen-te misturada, no existindo separaes nas suas sociabilidades consoante a corda pele ou origens nacionais. Por isso, o Red Eyes Gang s faz sentido em serpensado enquanto cultura juvenil sincrtica e working class, cujas refernciasafricanas so valorizadas e reinventadas num ambiente intercultural.

    As grias e o uso do crioulo13como lngua corrente, tal como suas roupas,acessrios (bons, brincos e cordes) e cdigos de conduta (postura, gestos e

    atitudes) expressam um estilo de vida estruturado em torno de um imaginrioassociado ao hip-hope das experincias que os jovens partilham nas ruas daArrentela. A cultura de rua (Bourgois, 2010, p. 38) basilar para o cole-tivo, enquadrando-se num contexto de resistncia explorao laboral e dedesidentificao com as instituies de ensino.14Valorizadora de um ethosguerreiro (Zaluar, 2004, p. 26), as sociabilidades do grupo so fortementemasculinizadas, o que perceptvel nas suas disposies corporais e perfor-mances. Quando cantam em showsou improvisam na rua, os seus rostos estocontrados e os seus gestos exprimem rispidez e agressividade, prevalecendouma fachada grupal (Pais, 2003, p. 115) com fortes ligaes s concepes

    12 Contrariamente a algumas anlises essencialistas sobre as identidades dos jovens descendentes de imi-grantes africanos, eles no esto preocupados em manter uma uniformidade tnica e cultural, pois assuas referncias esto centradas na interao com outras populaes e coletividades. O termo segundagerao de imigrantes exemplar dessa perspectiva ao reificar a diferena tnica dos jovens nascidos e/

    ou criados em Portugal, ignorando a diversidade de seus percursos biogrfi

    cos (Raposo, 2005).13 O crioulo a lngua falada no arquiplago de Cabo Verde e na Guin-Bissau, cuja fontica tem vriassemelhanas com o portugus e mltiplas variaes internas.

    14 A escola no articula o seu programa pedaggico com as experincias dos jovens fora dos seus muros, oque a torna distante da realidade e dos anseios de grande parte dos seus alunos. Tanto as dificuldades e osdesafios enfrentados pelos jovens no seu dia a dia como a riqueza das suas produes culturais (em queo rap apenas um exemplo) so ignorados ou, no mnimo, pouco aproveitados nas salas de aula. Para osfilhos de imigrantes africanos tais questes so ainda mais prementes, dado que as referncias culturaisdos pases de seus pais serem pouco valorizadas. Fechada em si mesma, a escola no promove uma ade-quada educao intercultural. A situao mais flagrante a disciplina de Histria, na qual a ausncia dereferncias positivas vindas de frica torna o seu estudo frustrante para os jovens. Os seus antepassadosso apresentados como escravos, meros objetos sem valor, fazendo da sua histria um motivo de vergo-

    nha e no de orgulho.

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    dominantes sobre a masculinidade. Esta, talvez, seja uma das razes princi-pais para o reduzido nmero de mulheres entre os Red Eyes Gang.15

    A msica rap a alma do grupo. Seus integrantes usufruem do estilopara desfrutar do tempo livre, interpretar a realidade sua volta e gerar aesde visibilidade que denunciam o contexto de racismo e privao econmicaem que esto inseridos. De fato, o rappromove a imagem dos jovens enquan-to criadores ativos, pondo em causa os esteretipos de passividade e violnciaa que so sistematicamente associados. Nesse processo, reelaboram o signifi-cado de ser jovem (pobre e negro), formulando identidades positivas sobre siprprios que desafiam as vises hegemnicas sobre o seu lugar social. O rap

    abaixo reala bem a insatisfao ao estatuto social subalterno a que so rele-gados num pas que os trata como cidados de segunda classe.

    Korao l e korpo k em pretugal. Mentalmente enkkkarcerados k em pretu-gal. Sem po, mas kom veneno e armas pra morrermos em pretugal. Segregados

    pra sermos ningum em Portugal. (Pretugal, Chullage, 2005).

    Participar no Red Eyes Gang passa pelo ato de representar a crewa quepertencem e o bairro em que vivem, quando se apropriam da arte, do esporte

    e da unio para sobressarem coletivamente do anonimato. Falar da Arrentelanas letras de rape mandarprops16 crew, ir a showspara incentivar as bandas,fazer grafites com a sigla do grupo,17gritar o nome do bairro aps marcar umgol e defender o coletivo de ataques exteriores (tanto da polcia como de bair-ros rivais) so algumas das mltiplas maneiras de representar Red Eyes Gang.Os jovens da Arrentela aspiram a ser reconhecidos, como rappers, grafiteiros,jogadores de futebol, lutadores ou gngsteres18 de uma crew respeitada nomovimento hip-hop, e por isso representar Red Eyes Gang to importante.

    Cantar rap a prtica por excelncia desse ritual de identifi

    cao, quandorimam crnicas da vida que subvertem esteretipos e preconceitos. Por meio

    15 As mulheres que acedem aos rituais de esquina absorvem a esttica masculinizada do Red Eyes Gang,patente na corporalidade, vestimenta e letras de rapdos seus integrantes.

    16 uma forma de agradecer, saudar ou identificar positivamente bandas, pessoas, bairros ou crewstidascomo aliadas. Isso geralmente realizado nos concertos ou na gravao de uma msica, quando no meiode uma cano ou no seu intervalo o rapperidentifica o nome daqueles que so importantes para ele.

    17 As iniciais do nome da crew(REG) podem ser vistas pintadas em vrias paredes do bairro, inclusive emoutras partes da Regio Metropolitana de Lisboa.

    18

    Esta uma expresso mica e refere-se aos jovens que vivem de prticas ilcitas.

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    das suas canes, os jovens exaltam as qualidades da Arrentela e dos seusmoradores, impulsionando uma boa imagem de cada um deles para alm dos

    discursos que os representam negativamente. Nas suas msicas fica evidenteque as ruas da Arrentela no so uma entidade passiva, e que os quadrosde interao local (Costa, 1999) permanecem importantssimos na busca deidentificaes positivas e solues adequadas aos problemas quotidianos.

    Com mais de 900 mil visualizaes no YouTube, o videoclipe O nossobairro, do rapperDon Nuno,19evidencia o profundo sentimento de pertena Arrentela, vivido como um mundo relacional bem diferente do retratado pe-las reportagens sensacionalistas da mdia convencional, onde novos cdigos

    morais e estticos so criados na perspectiva de quem sofre o estigma de vivernum bairro mal-afamado.

    Ns aqui temos o dom, daqui que vem o som. Todos querem vir para aqui,porque isso aqui t muito bom. Tudo aqui tem o seu nome: esquina, beco, ruela.M fama no falta quando se fala ARRENTELA. Falam do que no sabem, nun-ca passaram por c. Mas j que tu falas tanto quando passar levas um br. Isto Chakas, Red Eyes, Arrentela, Muay Thay. Por mais degradado que seja, esse

    bairro nunca cai. Eles s falavam, no se aproximavam. Porque o jornal e a TV

    s nos difamavam. Mas eles viram que no era bem assim. E agora acreditammais em mim. O meu bairro bonito tambm. Onde o pobre tem e o rico no tem.Orgulho do nosso bairro. Ooooh! Ooooh! (O nosso bairro, Don Nuno, 2012).

    A intensa ligao ao territrio, porm, no impede que os jovens RedEyes Gang integrem um circuito amplo de relaes e trajetos que ultrapassaas fronteiras da Arrentela. Eles no esto isolados num enclave social alheioao que se passa em Lisboa e no mundo sua volta, pelo contrrio. Ao canta-rem em festas e showsno centro e em bairros da periferia de Lisboa, noutras

    cidades e at fora do pas, intensificam o conhecimento sobre o espao urbanoe expandem as suas redes de amizade, uma forma de auferir reconhecimentoe respeito fora da Arrentela.

    Ao ter que cantar aqui e ali, conheces muito mais bairros, conheces muito maisgente. Eu acho que o rapte leva a stios [locais] que no iria se no estivesse no

    19 O referido videoclipe pode ser visualizado no seguinte endereo eletrnico: https://www.youtube.com/

    watch?v=CrNq7fBjW84.

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    rap, isto uma verdade, leva-te a ter experincia que no terias se no estivesseno rap, conhecer pessoas que no conhecerias. Depois os rappersde cada bairro

    vo se conhecendo, vo se espreitando, vo se interessando uns pelos outrostambm. (Chullage, 28 anos, entrevista em 2005).

    Vinte anos aps a emergncia do Red Eyes Gang, as ruas da Arrenteladeram lugar a uma outra gerao de jovens. So eles os novos donos do peda-o, os atuais responsveis por agitar a bandeira da crew. A trajetria para avida adulta, com o aumento das responsabilidades da decorrentes, significou,para a maior parte daqueles que estiveram na origem do coletivo, o abandonoprogressivo da produo artstica e do tempo disponvel para estar na rua. Unscasaram e tiveram filhos, tendo empregos mais ou menos estveis. Outros fo-ram presos (alguns deles continuam de cana), muitos emigraram para outrospases europeus20e uma minoria ainda para na streetpara conviver, emborano com a frequncia de outrora.

    Paralelamente, com a popularizao das novas tecnologias, assistiu-sea uma transformao no modo como os jovens da Arrentela implementam osseus projetos musicais. A tremenda dificuldade que os rappersmais antigostinham para adquirir os chamados beats bases sonoras utilizadas na msica

    rap deixou de ser uma realidade. A maior intimidade da nova gerao com astecnologias mais recentes revela-se no grande nmero de produtores que hojeexiste na Arrentela, iniciados desde novos nos programas dedicados produomusical. Importa no ignorar o caminho percorrido pelos rappersmais velhosno sentido de colmatar as dificuldades de criao,21tal como a significativa

    20

    A emigrao para outros pases europeus foi a soluo encontrada por muitos jovens Red Eyes Gangpara lidar com os altos ndices de desemprego, fruto do agravamento da crise econmica em Portugal.De fato, as ruas da Arretenela (e de outros bairros da periferia de Lisboa) j no renem tantos jovenscomo em anos anteriores, o que revela a intensificao do fenmeno da emigrao juvenil na sociedadeportuguesa.

    21 A emergncia da Khapaz Associao Cultural de Jovens Afro Descendentes foi muito importante paraos rappersda Arrentela aperfeioarem os conhecimentos sobre os programas de produo musical.A organizao de vrios workshopsde hip-hope a criao de um estdio na associao permitiu aosjovens produzirem autonomamente os seus beatse gravarem as suas msicas, fortalecendo o rapdaArrentela. Integrada no Escolhas, um programa governamental de mbito nacional desenvolvido peloAlto Comissariado para as Migraes (ACM), a Khapaz foi perdendo o antigo vigor medida que seinstitucionalizava, pondo em causa a plena autonomia at ento desfrutada. Para mais informaes con-

    sultar: http://khapaz.org/index.php/.

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    diminuio dos custos atuais na aquisio de computadores e equipamentossonoros. No obstante, os estdios, antes raros e de difcil acesso, multi-

    plicaram-se dentro e fora do bairro, dando origem a um circuito indepen-dente de produo, distribuio e consumo que atua margem da indstriadiscogrfica.

    Assim, a popularizao do acesso aos meios digitais abriu novas oportu-nidades para os artistas perifricos (da Arrentela e demais bairros), que pas-saram a driblar o bloqueio da indstria cultural atravs de uma economia dacultura que faz das plataformas digitais redes sociais, pginas web, YouTube o modo privilegiado de difuso e venda das suas produes artsticas. As

    fronteiras que antes separavam os msicos amadores dos msicos profissio-nais se esbatem, perante uma revoluo digital que diminui os custos de pro-duo, ao mesmo tempo em que multiplica as possibilidades deles fazerem-sevisveis (Urteaga Castro Pozo, 2012).

    A proliferao de videoclipes entre os rappers da periferia de Lisboademonstra a maior horizontalidade nas dinmicas de fazer cultura advindasda irrupo tecnolgica. Se h dez anos o sonho de qualquer rapperera gra-var o prprio disco, uma oportunidade restrita a uma minoria, atualmente, apossibilidade de ter um bom videoclipe j no to remota, constituindo-sea forma privilegiada de divulgao dos seus trabalhos. A constante conexodas geraes mais novas s redes digitais, aliada intensificao do poder daimagem na sociedade contempornea, tornaram a linguagem audiovisual umrecurso imprescindvel para qualquer artista. A facilidade de acesso s cme-ras digitais abriu novas oportunidades de insero laboral para os jovens daperiferia, conhecedores da esttica hip-hop(alguns dos quais rappers), e cujosservios depressa alcanaram uma qualidade profissional.

    O videoclipe Sem mimos, protagonizado pela nova gerao de rappers

    Red Eyes Gang,22 paradigmtico desse fenmeno em Portugal. Com quasedois milhes de visualizaes no YouTube, essa cano acaba por ter uma pro-jeo (na internet) superior ao de muitos msicos consagrados no mercado.23

    22 O referido videoclipe pode ser visualizado no seguinte endereo eletrnico: https://www.youtube.com/watch?v=uCsjW7em_wE.

    23 Essa cifra surpreende se tivermos em conta a populao portuguesa 10 milhes de habitantes , e o fato

    de os seus trabalhos no serem divulgados pela grande mdia: rdio, televiso e grandes editoras.

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    A realizao desse videoclipe ficou a cargo do rapperDon Nuno, membrodo Red Eyes Gang, que atualmente tenta se afirmar profissionalmente como

    realizador audiovisual, ao trabalhar com msicos dentro e fora de Portugal.O caso de Don Nuno revelador das mudanas estruturais trazidas pelas no-vas tecnologias, em que artistas independentes passam a ocupar um espaoantes inacessvel na chamada indstria criativa.

    A convergncia cultural dos jovens da crewem torno do hip-hop, ao serconstruda no mbito glocal (Robertson, 1995), proporciona um imagin-rio que extravasa as fronteiras de atuao quotidiana,24conferindo a sensaode eles pertencerem a uma prestigiada cultura transnacional. Nesse espao

    de fronteiras fluidas, aderentes de extremidades opostas de Lisboa mesclamreferncias do contexto local e smbolos (materiais e imateriais) longnquostransmitidos via internet. Itinerrios alternativos e pontes de sociabilidade econsumo so criados entre diferentes bairros perifricos da cidade, numaespcie de expedio que reserva o centro da cidade para ocasies especiais(Fradique, 2003, p. 66).

    Em estreita ligao com as novas tecnologias e meios digitais, portanto,os jovens Red Eyes Gang desenvolvem formas inovadoras de intervenoartstica e cultural que invertem os fluxos convencionais organizados pelopoder institudo. Ao valorizarem as reas marginalizadas da cidade atravsdas suas msicas, transformam a vivncia nesses espaos num elemento deprestgio, desestabilizando o campo de poder que privilegia o centro emdetrimento da periferia. verdade que as suas canes narram, principal-mente, o quotidiano vivido nas bordas da cidade. No entanto, suas expressesmusicais e estticas no esto margem do mercado e da sociedade, mas in-tegradas na cena pblica atravs de circuitos comunicativos que ousam rom-per com os tradicionais mecanismos de segregao que os querem sem voz e

    isolados nos ditos territrios de pobreza. Fenmeno semelhante quele queveremos no caso seguinte, relacionado ao coletivo Cinescado, na cidade deSo Paulo.

    24 O hip-hop exemplar da maior complexidade das atuais prticas culturais, moldadas, simultaneamente,num contexto territorial local e num quadro global. A sua emergncia emblemtica de uma nova erainformacional (Castells, 2007), responsvel por tornar as culturas urbanas bem mais difusas porque osseus elementos estilsticos (da msica moda) deixaram de estar cerceados por mbitos nacionais ou

    referncias locais (Feixa, 2011, p. 213).

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    Cinescado: alargando a periferia

    O coletivo Cinescado formou-se no ano de 2007, a partir do encon-tro entre o estudante universitrio e realizador audiovisual Flvio Galvo25eos rappersdo grupo CaGBe (Cada Gnio do Beco)26em um cineclube queFlvio ajudava a coordenar na Favela do Sapo, situada na regio norte de SoPaulo, numa rea marcada por profundas desigualdades sociourbanas.

    Os contatos inicialmente estabelecidos no encontro desdobraram-senuma amizade, decorrente da afinidade entre os projetos audiovisuais deFlvio e as narrativas presentes nas letras das msicas dos rappers. E foi a

    partir de uma ideia de Czar Sotaque, integrante do CaGBe, que nasceu oprojeto de ocuparem uma viela na Favela do Peri27onde este residia cujalocalizao ficava em frente a uma grande escadaria, que deu origem ao nomeCinescado28 para a realizao de um evento cultural que envolvesse aintegrao entre as linguagens do audiovisual, do grafite e do rap.

    Para cuidar da parte do grafite, convidaram outro morador da Favela doPeri: o artista Thiago Go, tambm conhecido como Esbomgaroto devi-do ao nome utilizado na assinatura de suas pinturas e, gradualmente, outras

    pessoas foram se somando, como colaboradores eventuais, nas atividades quepassaram a ser promovidas pelo coletivo.

    25 Flvio, que no perodo da pesquisa vivia com seu pai, serralheiro aposentado, no bairro de LauzanePaulista um bairro de classe mdia situado na rea norte da cidade, ao lado de um grande complexo defavelas , era estudante do curso de Letras na Universidade de So Paulo. Apaixonado por cinema e deperfil profundamente engajado, passou a dedicar-se produo de vdeos sobre temas como segregaourbana, violao de direitos, entre outros que o conduziram a uma relao bastante prxima com diferen-

    tes movimentos de luta social na capital paulista. Alm de produzir vdeos, ele tambm se envolveu comdiferentes movimentos culturais da zona norte, entre os quais o coletivo Cinescado.26 O grupo de rapCaGBe, cuja formao original contou com as presenas de Czar Sotaque, Shirley

    Casa Verde, DJ Paulinho e Andr 29, atualmente conta apenas com os trs primeiros integrantes,uma vez que 29 deixou o grupo pouco aps a gravao do primeiro lbum,Lado beco, em 2007. Dostrs membros atuais, dois deles, Czar e Shirley, vivem na Favela do Peri, onde tambm atuam com ocoletivo Cinescado, conforme veremos. Em relao escolaridade, apenas Czar possui diploma denvel superior. O mesmo formado em histria numa universidade particular, onde obteve acesso a umabolsa de estudos integral.

    27 Situada na regio norte, a Favela do Peri, assim como a Favela do Sapo, faz parte de um enorme comple-xo de favelas localizadas no entorno do Parque Estadual da Cantareira.

    28 A referida escadaria dava acesso casa de Rodrigo Roninha, um amigo que sempre participava das

    atividades do coletivo.

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    Duas dessas pessoas foram os realizadores audiovisuais Rica Saito eValmir Rodrigues, mais conhecido como Vras77.29Saito, que formado na

    Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo (ECA/USP)e dono da produtora Temporal Filmes, havia conhecido Flvio no perodo emque estudavam na universidade e frequentavam alguns dos mesmos espaosde sociabilidade; j Vras77, cujo aprendizado das tcnicas audiovisuais se deude forma autodidata, era velho conhecido dos integrantes do CaGBe pelofato de tambm residir na zona norte mais especificamente no Jardim ElizaMaria30, ser rappere dedicar-se realizao de videoclipes para uma srie degrupos na cidade, com o auxlio de traquitanas como uma grua que ele prprio

    construiu a partir do uso de sobras de materiais encontradas em ferro-velho.31

    A juno de pessoas com origens sociais, graus de escolaridade e trajet-rias to diversas em torno de um mesmo ncleo, vinculado a um conjunto defavelas na zona norte de So Paulo, com destaque para a Favela do Peri, gerouoportunidades para que, a partir da soma de suas foras em processos cola-borativos, os mesmos furassem certos bloqueios econmicos, normalmenteimpostos pelo mercado cultural dominante.

    Saito e Vras77, juntamente com Flvio, por exemplo, auxiliaram em di-versos filmes e vdeos que passaram a ser realizados pelo coletivo, inclusivenos videoclipes das msicas do CaGBe, cujas letras sempre enfocavam tem-ticas polticas que refletiam acerca das vivncias e experincias associadas spopulaes oriundas das regies menos favorecidas da cidade. Tais videocli-pes foram visualizados por milhares de pessoas em sitescomo o YouTube, oque ajudou o grupo a projetar-se profissionalmente, chegando inclusive a par-ticipar de programas televisivos32e contar com a parceria do rapperEdi Rock,

    29

    Outras presenas marcantes eram os rappersRogrio Batom e Deivid Brasilit, alm da educadoraRenata Saito, irm de Rica Saito, os quais sempre contribuam com as aes do coletivo.30 O Jardim Eliza Maria um bairro localizado no subdistrito de Brasilndia, zona norte do municpio de

    So Paulo. A regio caracterizada pela precria infraestrutura urbana e pelos acentuados ndices deviolncia.

    31 Atualmente Vras77 vive da realizao de videoclipes para grupos de todo o pas. O reconhecimento daqualidade de seu trabalho, aliado aos baixos preos cobrados em comparao ao mercado (Vras77 cobracerca de dois mil reais por videoclipe finalizado) explicam a razo desse sucesso. Uma reportagem sobrea trajetria e as atividades do realizador pode ser vista no seguinte endereo: https://www.youtube.com/watch?v=qCTw0Gn-IPw.

    32 Os rappersparticiparam em mais de uma edio do programa Manos e Minas, exibido semanalmentena emissora TV Cultura. O vdeo de uma dessas apresentaes pode ser visto em: https://www.youtube.

    com/watch?v=SJXtImEM1yo.

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    do grupo Racionais MCs,33 em uma das faixas de seu disco mais recente,O vilarejo, lanado em 2011. Alm disso, o material tambm costumava ser

    exibido nos eventos organizados pelo Cinescado.Entre os trabalhos mais conhecidos est o videoclipe da msica Oba!

    Clareou (CaGBe) que reconstitui a prpria histria do coletivo e das redesresponsveis por sua consolidao, como podemos ler no trecho destacadoabaixo:

    Vai dar trabalho sim. Quem falou que no daria trabalho mentiroso. Comigo,a Shirley, o Go, Roninha e o Flvio. Valmir foi convidado pra filmar. Produo,direo, Valmir assina como Vras. Me lembro bem das palavras do KL Jay.Vamos fazer a nossa, eu somo com vocs! Muito louco na ideia, profundono que disse. Perto do nada vai chegar se no tiver equipe. Batom dirige, pe a

    parati nos corre. Carapicuba, do lado de l corre o Pixote. Na zona norte, nsfaz divulgao nos postes. Deu certo! Imagens Perifricas, o projeto. Modestoe visivelmente srio. o bonde! No aquele que aparece e some. Desde antes,ningum aqui nasceu ontem. Tem uma data que a retomada foi microfonada.

    A gente se instala em curto espao. Cada metro quadrado conquistado, apro-veitado. o quarteiro que se amplia. Alm das esquinas idealistas, aonde agente realmente cria.Na frente das cortinas, Esbomgaroto pinta. Uma parede

    ganha vida! Clareou! Clareou! H quanto tempo rezo pra chuva passar. Oba!Clareou! (Oba! Clareou, CaGBe, 2011, grifo nosso).34

    Na msica e no vdeo, os rappersnarram o modo como as trocas exis-tentes nos vnculos colaborativos que deram origem ao Cinescado possibili-taram a abertura de novos caminhos e perspectivas relacionadas circulaode suas produes por diferentes espaos de consumo cultural e enunciaopoltica. Destacam, igualmente, que o acesso s tecnologias comunicativasfortaleceu as oportunidades para um efetivo alargamento de suas redes e for-mas de mobilidade urbana.

    33 Fundado em 1988 por Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay, os Racionais MCs so consideradosum dos grupos mais importantes da histria do rapbrasileiro, no apenas pela originalidade sonora, maspelo modo como suas letras foram capazes de traduzir os sentimentos da parcela menos privilegiada dajuventude paulistana, sobretudo na dcada de 1990.

    34 O referido videoclipe pode ser integralmente visualizado no seguinte endereo eletrnico: https://www.

    youtube.com/watch?v=xCK0xZR46II.

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    Ao ser ilustrado como um ncleo conectado a outros ncleos e experin-cias espalhados pela cidade, portanto, o Cinescado representado na cano

    (e no videoclipe), como uma base capaz de fornecer as condies de possi-bilidade para a ressignificao da prpria paisagem segregada de So Paulo,clareando, assim, o ambiente nublado, responsvel por impedir a legibilidadedas relaes que marcam as fronteiras desta metrpole.

    importante destacar que entre 2009 e 2012, o coletivo obteve xito naseleo de alguns editais pblicos voltados ao apoio de iniciativas culturaisprotagonizadas por grupos no hegemnicos,35o que possibilitou a aquisiode equipamentos prprios (cmeras, projetor, caixas de som, tela de projeo,

    etc.) e a ampliao de suas interlocues com outros movimentos e redes as-sociativas, sobretudo, nas reas social e urbanisticamente marginalizadas dacidade.

    Os membros do Cinescado, juntamente com outros coletivos locais,tambm se envolveram na criao de uma associao formal, denominadaAssociao Cultural Fabrica de Gnios, com o objetivo de captarem maioresrecursos e disputarem editais voltados somente a instituies juridicamenteconstitudas. Pretendiam, com essa iniciativa, criar condies para fomentarprojetos de maior alcance na regio, bem como formas mais slidas de atua-o profissional no campo da cultura. Tais processos, porm, no momento dapesquisa entre 2009 e 2012 encontravam-se em sua fase inicial.

    Os equipamentos do coletivo eram, eventualmente, utilizados de formaindividual pelos integrantes em suas prticas profissionais independentes,uma vez que a maioria deles no possua renda fixa, vivendo de pequenosservios no campo da produo cultural e da funo de arte-educadores, quecostumavam exercer a partir de contratos curtos junto a distintas organizaessem fins lucrativos.

    No tocante s prticas decorrentes de seu engajamento, cabe dizer que,mediante a relativa autonomia conquistada, os mesmos passaram a atuar deforma itinerante fazendo o que chamavam de ocupaes audiovisuais emdistintos ambientes.36Tais ocupaes consistiam na tomada de diferentesespaos localizados em reas precrias, sobretudo, na zona norte, para a rea-

    35 Sobre essas polticas, ver o tpico inicial deste artigo.36 Inclusive em espaos como o edifcio Mau, que havia sido tomado por diferentes movimentos de luta

    por moradia na rea central da cidade.

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    lizao de eventos que, a partir do vnculo entre as linguagens do rap, grafitee audiovisual, pudessem atribuir visibilidade pblica a uma diversidade de

    questes relacionadas s problemticas urbanas.Um ponto caracterstico dessa prtica era a interdio do uso de palcos

    ou qualquer barreira fsica que pudesse gerar a impresso de uma separaoentre aqueles que poderiam ser pensados como artistas e o restante da popu-lao, justamente para que esta no corresse o risco de ser entendida no papelpassivo de pblico espectador. Tal mtodo, discutido em encontros internoseventualmente promovidos pelos integrantes do coletivo, fazia com que osmesmos utilizassem a tcnica do microfone aberto, para que qualquer um

    dos presentes pudesse se valer da palavra com o objetivo de cantar ou se pro-nunciar durante os eventos.A ideia, ao transformar o territrio na grande atrao das intervenes,

    conforme os prprios membros do Cinescado costumavam dizer, era promo-ver rituais audiovisuais com vistas a provocar o inconsciente coletivo dacidade. Lgica facilmente compreensvel quando consideramos que, duranteo perodo pesquisado, o coletivo se abastecia de vdeos que eram produzidospor uma diversidade de associaes dedicadas realizao audiovisual poli-ticamente engajada, integradas em torno de uma rede chamada Coletivo deVdeo Popular (CVP).37

    A supracitada rede havia nascido da necessidade que alguns jovens re-alizadores, oriundos de regies perifricas de So Paulo e/ou engajados emdistintos movimentos de luta popular, passaram a sentir de organizarem-senum espao autnomo, com a finalidade de criarem um circuito de produo,exibio e distribuio de filmes dedicados abordagem de temticas que pri-vilegiassem um olhar crtico da cidade e das questes urbanas. Desse modo,produziam filmes sobre assuntos como luta por moradia, falta de acesso a

    direitos, alm de reconstituies biogrficas de intelectuais, artistas e mili-tantes populares, entre outros assuntos. Tais filmes eram distribudos entre osintegrantes da rede, para que fossem exibidos e debatidos em seus respecti-vos espaos de atuao e, posteriormente, tais experincias eram trocadas nasreunies presenciais que faziam uma vez ao ms, ou pela lista de e-mailsquepossuam na internet.

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    Para uma reflexo mais detalhada acerca desta rede ver Aderaldo (2013).

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    No caso do Cinescado, era interessante notar como as mensagens pre-sentes nos vdeos exibidos passavam a ser significativamente potencializadas

    quando sua projeo na tela sempre adaptada a espaos situados em regiesmarcadas por processos de precarizao era intercalada, durante as referidasocupaes audiovisuais, com a execuo de msicas cujo contedo dialogavacom os assuntos abordados. Durante a exibio de vdeos sobre temticas comoa luta por moradia, por exemplo, era frequente o uso de msicas como Manhseguinte, do prprio grupo CaGBe, de onde destacamos o trecho abaixo:

    L vem o trem, sem freio e sem direo, destruindo lares, casas em constru-o. Corao disparou, lgrimas no parou, um fim trgico, no terminou!Longe, bem distante, fora do alcance. Pra um lugar que eu nunca ouvi falar.Desnecessrio, tratores que nos derrubaram. Poeira, o que restou pra mim?Madeira, fogueira, fumaa na estrada, avenida interditada. Briga, polcia inti-mida, na rua o rapa, se afasta, recua, viatura, prefeitura, raiva, meia volta. Narevolta o troco me alimenta. O sustento eu garanto, meu adianto sou eu por mim,que fiz, eu entendi, me proibi. Por que me privar, trabalhar, quer se livrar. Cadeiame jogar nem pensar. Guerrear, sair na mo, multido. O furaco a todo vapor anosso favor. As cmera escondida, propina, fim da linha. Brava gente denuncia,

    paralisa. Negcios da China, Coreia, coreano, dominando enfeza, favela quebra-

    -quebra, escorrega, levanta, esperana nas criana caula a fortuna, de carroana dificuldade, que dia quente, valente, salve os camel, fora, ratat barracos,multiplicou. Formigueiro avassalador, periferia, na sintonia certa, Sem Terra,Sem Teto, treta L vem o trem L vem o trem L vem o trem, destruindo,indo indo []. (CaGBe, 2006).

    Como vemos, a letra da cano compe um quadro audiovisual que buscainserir o ouvinte no movimento por trs das cenas descritas. As palavras soaglomeradas e vo colando-se umas s outras sem que para isso se adequem

    estrutura gramatical, da mesma forma que os barracos das favelas surgem sema necessidade de uma adequao estrutura urbana. Na letra, dois modelos decidade parecem confrontar-se. De um lado vemos a concepo conceitual,hegemnica e administrativa do termo, descrita sob a metfora de um trem,que passa por cima de outra cidade, relacional, cuja presena sentida nachave de uma experincia de virao (Gregori, 2000), da correria por partedaqueles que no parecem ter sido beneficiados com o direito a ter direitos.

    Assim, na msica, a fronteira entre as regies precrias como favelas e

    ocupaes e as demais reas urbanas revela-se no na tica de uma diviso

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    rgida entre mundos fixos e homogneos, mas por meio de uma conexo queprojeta a todos na direo de um universo comum de mediao que, por sua

    vez, ope-se ao modelo urbanstico dominante, o qual cristaliza diferenas namedida em que entende a favela como um contexto totalmente apartado dacidade legal.

    Dessa maneira, a cidade vai, ao longo da cano, perdendo a aparnciaslida, normalmente revestida pelo verniz conceitual dos discursos oficiaise se desfaz, cedendo lugar s relaes que marcam uma conjuntura de expe-rincias violentas, vivenciadas por aqueles que cruzam cotidianamente suasfronteiras.

    Logo, ao ser evocada com base na itinerncia, a periferia representa-da na msica do CaGBe deixa de ser imaginada apenas como um territriofixo (positiva ou negativamente valorizado), na medida em que parece estarem toda parte, seguindo na mesma velocidade da mobilidade das vtimas dosprocessos de segregao sociopoltica apresentados.

    A observao in situdos efeitos trazidos pela sobreposio de msicas evdeos como os que foram mencionados de maneira brevssima aqui, quandoos mesmos eram projetados e cantados a plenos pulmes em espaos ilustradoscom grafites, ao lado de um conjunto de pessoas direta ou indiretamente vin-culadas s reas perifricas da metrpole paulista, portanto, permitiu a consta-tao do fato de que, mais do que a periferia, era a prpria cidade que oseventos promovidos pelo Cinescado buscavam reconstituir simbolicamente.

    O acesso s tecnologias digitais, por sua vez, foi o que possibilitou aosmembros desse coletivo conectarem suas ocupaes audiovisuais a uma s-rie de outras experincias associativas com as quais partilhavam certos prin-cpios, consolidando, assim, uma economia de trocas simblicas capaz deconfigurar o desenvolvimento de novos circuitos e experincias profissionais,

    artsticas, bem como em termos de consumo cultural e representao polticana cidade de So Paulo.

    Consideraes finais

    O breve tratamento analtico dos dois casos abordados ao longo dopresente artigo teve como objetivo apontar para o modo pelo qual a relati-va democratizao do acesso aos meios de produo digital tem facilitado

    a constituio de circuitos de trocas econmicas e simblicas por parte de

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    populaes historicamente alijadas dos espaos hegemnicos de consumocultural.

    Se, por um lado, preciso reconhecer que a maioria de nossos interlocu-tores salvo raras excees no consegue ganhar a vida por meio das suasprticas artsticas e vive como trabalhadores precarizados, inclusive pelas cha-madas indstrias criativas, trabalhando em pequenos projetos temporrios,sem registro profissional e outras garantias laborais, por outro lado, tambmdevemos considerar o fato de que suas habilidades no manejo de ferramentastecnolgicas e comunicativas tm criado condies para que possam atraves-sar mltiplas fronteiras, construindo, por meio de seus vnculos colaborativos,

    campos de interao e mobilidade ampliados.Atentar para essas experincias torna-se fator importante na medida emque tal conduta nos permite superar determinadas estigmatizaes identit-rias, as quais buscam encerrar tais sujeitos nos limites de certos espaos geo-grficos reconhecidos como perifricos.

    Assim, correto dizer, portanto, que coletivos como o Red Eyes Gange o Cinescado nascem de contextos bastante especficos, onde constituemseus vnculos mais slidos. Todavia, no podemos negligenciar os proces-sos que ocorrem no momento em que transformam suas regies de origemem cenrios para videoclipes e letras de rap. Isso porque, ao compartilharemsuas criaes em sitescomo o YouTube, assim como em discos e outros benssimblicos que produzem colaborativamente, tambm abrem espao para queoutros atores oriundos de ambientes socialmente (e, em certos casos, econo-micamente) distintos possam se identificar com o modo pelo qual problema-tizam, a partir dessas bases locais, uma variedade de desigualdades urbanass quais encontram-se submetidos. Dessa maneira, passam a conectar lugarescomo a Arrentela e a Favela do Peri a uma rede de outros territrios, atravs do

    modo pelo qual interpelam as relaes de alteridade que atravessam a experi-ncia urbana de quem vive margem dos circuitos econmicos dominantes.

    Contudo, embora se valham da ampla utilizao de recursos tecnolgi-cos, no momento em que ocupam, por meio de suas prticas citadinas, osespaos urbanos, olhando-se nos olhos e reconhecendo-se como parceiros,que se constituem efetivamente como movimentos coletivos. o que vemosno caso das ocupaes audiovisuais organizadas pelo Cinescado e doseventos concretizados pelo Red Eyes Gang. Trata-se de momentos rituais que

    estimulam tanto a celebrao de seus vnculos de pertencimento aos espaos

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    dos quais se originam quanto a reafirmao de sua adeso aos coletivos queintegram.

    A ocupao dos espaos fsicos da cidade tambm serve para que pos-sam demonstrar criativamente seu desejo de reagir ao que percebem comosendo uma dominao cultural, urbanstica e econmica, responsvel pelaviolao dos direitos de uma parcela bastante significativa da populao. Algoque Castells nos ajuda a compreender, ao analisar os chamados movimentossociais em rede. Segundo este autor:

    O espao do movimento sempre feito de uma interao do espao dos fluxos

    na internet e nas redes de comunicao semfi

    o com o espao dos lugares ocupa-dos e dos prdios simblicos visados em seus atos de protesto. Esse hbrido deciberntica e espao urbano constitui um terceiro espao, a que dou o nome deespao da autonomia, porque s se pode garantir autonomia pela capacidade dese organizar no espao livre das redes de comunicao; mas, ao mesmo tempo,ela pode ser exercida como fora transformadora, desafiando a ordem institu-cional, disciplinar, ao reclamar o espao da cidade para seus cidados. (Castells,2013, p. 160-161, grifo nosso).

    Dessas experincias autnomas, se desdobram reflexes e construessolidrias de projetos cujas dimenses so cada vez mais amplas, atingindo,em certos momentos, at mesmo extenses transnacionais. E nessa interfaceentre as esferas one off-lineque nossos sujeitos de pesquisa esforam-se parasuperar a escassez de certos recursos materiais, econmicos e simblicos.

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    Recebido em: 30/04/2015Aprovado em: 05/10/2015