diabo e loucura em os irmãos karamazovi, de fiódor dostoievski
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Diabo e loucura em Os irmãos Karamazovi, de Fiódor Dostoievski
Autor: Gustavo Moreira Alves - http://lattes.cnpq.br/0104622301882021
Resumo: Este artigo faz primeiramente um breve histórico da insanidade, tomando
como base a História da loucura e a História do medo no Ocidente, respectivamente
escritas por Michel Foucault e Jean Delumeau, para depois analisar a loucura e o
demônio em Os irmãos Karamazovi, de Fiódor Dostoievski. Os fundamentos teóricos
são, além dos já citados, O psicótico – compreensão da loucura, de Andrew Crowcroft,
e Uma neurose demoníaca do século XVII, de Sigmund Freud.
Palavras-chave: Fiodor-Dostoievski; diabo; loucura
Abstract: This article makes first a brief history of the insanity, based on the books
Madness and Civilization: A History of Insanity in the Age of Reason and Sin and Fear:
The Emergence of the Western Guilt Culture, respectively written by Michel Foucault
and Jean Delumeau, for then to analyze the madness and the devil in The brothers
Karamazov by Fyodor Dostoyevsky. The theoretical foundations are, apart from the
aforementioned, The Psychotic – Understanding Madness by Andrew Crowcroft and A
demonic neurosis in century XVII by Sigmund Freud.
Keywords: Fyodor-Dostoyevsky; devil; madness
“O louco é presa de Satã”1
Jean Delumeau
Introdução
Loucura e diabo caminham juntos em diversos momentos e lugares. Alguns
exemplos do Novo Testamento bíblico: o episódio da cura do cego endemoninhado e
mudo, onde o “espírito imundo” diz que o homem é sua morada, para a qual retornará
com mais sete espíritos, todos piores do que ele (Mateus 12:22 a 45); a possessão
praticada por vários demônios, autonomeados Legião, que depois encarnam nos porcos
1 DELUMEAU. História do medo no Ocidente, p. 243
(Lucas 8:26 a 34); a mãe que pede a cura da filha endemoninhada metaforizando-se um
cachorrinho que come as migalhas do que Jesus oferecia a seu povo (Marcos 7:24 a 30 e
Mateus 15:21 a 28); o demônio que tentava matar o garoto que possuía (Marcos 9:14 a
27 e Mateus 17:14 a 21); e a cura de “endemoninhados, lunáticos e paralíticos” em
Mateus 4:23 a 25. No Antigo Testamento, loucura e diabo não se manifestam de forma
tão explícita, mas um espírito maligno mandado por Deus se apoderou de Saul (I
Samuel 18:10 a 30), fazendo-o desejoso por destruir Davi.
Contudo, a ideia deste ensaio surgiu a partir da feitura do verbete O diabo de
Dostoievski. Na circunstância houve uma percepção da proximidade entre demônio e
loucura no que Freud considera “o mais grandioso romance jamais escrito”2: Os irmãos
Karamazovi, de Fiódor Dostoievski – mais especificamente no capítulo O diabo. A
alucinação de Ivã Fiodorovitch3. Pretende-se analisar, então, a loucura a partir do
demônio, tomando como base a História da loucura e a História do medo no Ocidente,
a primeira traçada por Michel Foucault e a seguinte por Jean Delumeau. Este trabalho
fundamentar-se-á, ainda, no livro O psicótico – compreensão da loucura, de Andrew
Crowcroft, e num texto de Sigmundo Freud: Uma neurose demoníaca do século XVII. O
objetivo é destrinchar a forma como o diabo se manifesta na loucura de Ivã, um dos
irmãos Karamazovi desse que foi o último romance de Dostoievski.
1. Quando a loucura deixa de ser possessão e passa a caso clínico
Foucault coloca a loucura como herdeira da lepra nos medos seculares4. Os
loucos eram expulsos das próprias casas e excluídos socialmente da mesma forma que
os leprosos no final da Idade Média. Os marinheiros se incumbiam de levá-los pra longe
das cidades. Assim, as naus abarrotadas de insanos assombraram a imaginação de toda a
primeira parte da Renascença.
Nessa época, onde as artes começavam a difundir a figura bestial do demônio (é
o olhar dos artistas que vai construir o diabo e levá-lo para dentro da Igreja), uma
população essencialmente terrestre via um mar que era, “por excelência, o lugar do
2 FREUD. Dostoievski e o parricídio, p. 108
3 DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 623
4 FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 9
medo. (...) Erasmo faz dizer a um personagem do colóquio Naufragium: „Que loucura
confiar-se ao mar!‟”5.
Ao final do século XVI, De Lancre vê no mar a origem da vocação
demoníaca de todo um povo: o sulco incerto dos navios, a confiança apenas
nos astros, os segredos transmitidos, o afastamento das mulheres, a imagem
enfim dessa grande planície perturbada fazem com que o homem perca a fé
em Deus bem como todas as ligações sólidas com a pátria; ele se entrega
assim ao Diabo e ao oceano de suas manhas.6
A loucura de se entregar ao mar vai ao encontro da loucura de se entregar ao
diabo. O mar tem, portanto, bastante da função demoníaca de tentar, possuir e torturar.
A loucura traz a aproximação da morte7. O mar idem.
Com representações renascentistas que têm ao mesmo tempo poder de atração e
repulsão, mar e loucura exercem tanto fascínio quanto as imagens repugnantes do diabo.
A besta se liberta, escapa do mundo da fábula e da ilustração moral a fim de
adquirir um fantástico que lhe é próprio. (...) Os animais impossíveis,
oriundos de uma imaginação enlouquecida, tornaram-se a natureza secreta
do homem, e quando no juízo final o pecador aparece em sua nudez
hedionda, percebe-se que ele ostenta o rosto monstruoso de um animal
delirante.8
Mas a loucura também fascina por estar associada à queda, por ser vista como
punição ao indivíduo que procura o saber proibido. Não é à toa que A Nau dos Loucos
de Bosch tem uma árvore como mastro. “O que anuncia esse saber dos loucos? Sem
dúvida, uma vez que o saber é proibido, prediz ao mesmo tempo o reino de Satã e o fim
do mundo”9.
Depois do boom da loucura na Renascença, o fenômeno deixa de ser
representado de forma tão escatológica – é o período do fim das embarcações que
livraram as cidades dos loucos para a entrada do hospital. Durante a Grande Internação
os loucos são divididos em “maus loucos” (loucos diabólicos) e “bons loucos” (loucos
de Deus). Estes resignados e os outros revoltados com a condição de privação da
liberdade.
Enquanto na Idade Média e até na Renascença a sensibilidade à loucura estava
ligada a transcendências imaginárias, com o louco-mendigo despertando o sentimento
de caridade cristã por ostentar a miséria, na Grande Internação o mesmo louco é visto
5 DELUMEAU. História do medo no Ocidente, p. 41
6 FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 13
7 FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 16
8 FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 20
9 FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 21
como preguiçoso – símbolo maior de revolta contra Deus num momento onde “o
trabalho-punição recebeu um valor de penitência e resgate”10
.
Até o final do século XVII, alguns casos, particularmente os de epilepsia, ainda
mantêm a qualidade da transcendência, com chances de haver confusão com artifícios
do demônio11
.
É a partir de Philippe Pinel, no século XVIII, que os seres humanos
atormentados por perturbações mentais são tratados como doentes12
. Resiste a “loucura
moral”, onde apenas a conduta ética, e não a razão, é vista como perturbada (até a
prática da usura é considerada louca)13
, mas a loucura relacionada com o Mal sob a
forma de transcendências imaginárias tem seu fim. “(...) tornar-se-á evidente que (...)
práticas de profanação (...) mantêm um parentesco direto com o desatino e a doença
mental”14
. O pacto com o diabo passa a ser problema patológico quando a cultura deixa
de reconhecer o seu poder. Como já acontecia com os seres vivos e com as outras
doenças, as loucuras começam a ser classificadas e catalogadas. O problema possuirá,
cada vez mais, caráter científico.
2. Análise literária: loucura e diabo em Os Irmãos Karamazovi
Fiódor Pávlovitch Karamazovi “era o tipo estranho, embora bastante frequente,
da criatura vil e corrompida”15
. Tinha reputação de parasita – é adjetivado pelo narrador
como “papa-jantares” por gostar de cear na casa dos outros16
. Estúpido, diz-se “velho
bêbado”17
e só pensa na própria satisfação. Nunca se preocupou com os filhos, que
passaram a infância esquecidos, afastados para que ele não fosse incomodado em suas
orgias. Ivã, o segundo filho, é inteligente e questionador.
O mais velho [dos dois filhos que Fiódor teve com a segunda esposa], Ivã,
tornou-se um adolescente sombrio e fechado, nada tímido, mas
compreendera bem cedo que seu irmão e ele cresciam em casa de estranhos,
de graça, que tinham como pai um indivíduo que lhes causava vergonha, etc.
Esse rapaz mostrou, desde sua mais tenra idade (pelo que se conta, pelo
menos), brilhantes capacidades para o estudo. Com a idade de cerca de treze
anos, deixou a família de Iefim Pietróvitch [o protetor] para seguir os cursos
10
FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 71 11
FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 189 12
FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 132 13
FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 137 14
FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 84 15
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 5 16
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 6 17
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 21
de um ginásio de Moscou, e tomar pensão em casa de um famoso pedagogo,
amigo de infância de seu benfeitor. Mais tarde, Ivã contava que Iefim
Pietróvitch fora inspirado por seu “ardor pelo bem” e pela idéia de que um
adolescente genialmente dotado devia ser educado por um educador genial.
De resto, nem seu protetor, nem o educador de gênio existiam mais, quando
o rapaz entrou para a universidade.18
A máxima de Ivã, “Se Deus não existe, tudo é permitido”, serve de justificativa
para Smerdiakov, o irmão bastardo, cometer o parricídio. Além disso, Ivã é acusado por
Smerdiakov de não se manifestar contra a possibilidade de ver o pai assassinado. “O
senhor matou, é o senhor o principal assassino, não fui senão seu auxiliar, seu fiel
instrumento, o senhor sugeriu, eu realizei”, diz Smerdiakov a Ivã19
. E ainda: “O senhor
era atrevido então, „tudo é permitido‟, dizia o senhor, agora está com medo”20
e “Foi o
senhor quem, com efeito, me ensinou isso e muitas vezes explicou-o: se Deus não
existe, não há virtude e ela é inútil”21
.
A partir de então, Ivã adoece e começa o capítulo que será analisado: O diabo. A
alucinação de Ivã Fiodorovitch22
.
Depois de consultar um médico, Ivã é advertido de que deve tratar-se
seriamente, caso contrário a doença se agravará. Com os termos “desarranjo cerebral”23
e “espírito doente”24
, o problema da loucura paira sobre a materialidade da alma. Quem
age como louco não tem controle sobre o cérebro. Por isso quem comete crime sob o
domínio da loucura não pode ser tão culpado25
.
[A partir do século XVIII] a experiência médica da loucura se desdobra de
acordo com esta nova partilha: fenômeno da alma provocado por um
acidente ou uma perturbação do corpo; fenômeno do ser humano em sua
totalidade – alma e corpo ligados numa mesma sensibilidade – determinado
por uma variação de influências que o meio exerce sobre ele: afecção local
do cérebro e perturbação geral da sensibilidade.26
O louco é alguém que não tem sensibilidade para o real. Portanto, esta análise
iniciar-se-á com um olhar da alucinação demoníaca enquanto sonho – ou
prolongamento do sonho. “(...) o Inimigo ao mesmo tempo tenta e atormenta os
18
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 13 19
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 612 20
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 614 21
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 621 22
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 623 23
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 623 24
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 626 25
FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 209 26
FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 225
humanos. Aterroriza por meio de sonhos, apavora por meio de visões”27
. O demônio é
“autor da loucura e ordenador dos paraísos artificiais”28
.
De olhos fechados é possível imaginar lugares, mas a definição não é a mesma
do que vemos de olhos abertos. Os sonhos também são assim, turvos, com o diferencial
de serem conduzidos inconscientemente – não existe poder sobre o que acontece no
plano onírico. Essa criação mental característica dos sonhos também ocorre no despertar
e quando se está prestes a dormir, sendo possível ter consciência da extensão do sono
por conta de pensamentos que fujam de uma total coordenação. No caso de certas
pessoas esquizofrênicas, o estado de criação mental característica dos sonhos pode
acontecer quando se está inteiramente acordado29
. Como as situações vivenciadas nos
sonhos têm poder de produzir sentimentos tão fidedignos quanto os do mundo real, e
como os sonhos podem passar bruscamente de uma situação para outra completamente
diversa, de um sonho agradável a um pesadelo, por exemplo, fica fácil entender
mudanças repentinas, às vezes em curtos espaços de tempo, nos estados de humor30
,
algo tão característico daqueles que são taxados como loucos.
Assim Ivã se comporta durante a conversa com o diabo: com mudanças bruscas
de humor, do calmo ao irado, tal qual se estivesse no plano onírico. Também sob a ótica
do “sonhar de olhos abertos”31
, o tempo parece mais vagaroso, ou a existência parece
dar-se fora do tempo32
. Não se sabe como o diabo foi parar ali e tampouco como sumiu,
ou o momento exato que a alucinação termina e Ivã vai receber a pessoa que está
batendo na janela. Alucinação e realidade se misturam como num girar caleidoscópico.
Ivan fica paralisado de medo, petrificado como se tivesse lançado o olhar direto na
Medusa, “esforça-se por partir os laços que o prendiam”33
.
“O sonho, o insensato, o destino podem esgueirar-se para dentro desse excesso
de sentido”34
. Logo outro ponto importante a ser colocado é a aproximação paradoxal de
razão e loucura. Não é só o exercício da razão que ajuda na contenção da loucura, mas
também a loucura atua no avanço da razão. Ivã é o personagem que mais faz o uso da
inteligência no romance. Os assuntos que ocupam seu pensamento são, como os
assuntos dos esquizofrênicos, “freqüentemente muito abstratos – por exemplo, filosofia,
27
DELUMEAU. História do medo no Ocidente, p. 242 28
DELUMEAU. História do medo no Ocidente, p. 243 29
CROWCROFT. O psicótico, p. 45 30
CROWCROFT. O psicótico, p. 48 31
CROWCROFT. O psicótico, p. 45 32
CROWCROFT. O psicótico, p. 58 33
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 639 34
FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 19
espiritualismo, religião, poder”35
. Ivã é ainda o mais questionador do livro – e isso se
defronta com o diabo que aparece para ele, um senhor decadente que se diz
“visceralmente bom e inapto para a negação”36
, um diabo que se sente preso numa
função que não o agrada.
A propósito, esse diabo do romance aparenta ser um cavalheiro normal, de uns
cinquenta anos, que usa um paletó que apesar de bom está gasto, fora de moda – “um
aspecto ao mesmo tempo decente e de quem anda em dificuldades financeiras”37
. No
decorrer do encontro com Ivã ele diz o seguinte de si mesmo:
Sou pobre, mas... não direi muito honesto, mas... admite-se geralmente como
axioma que sou um anjo decaído. (...) Se o fui algum dia, foi há tanto tempo
que não é um pecado esquecê-lo. Agora, atenho-me apenas à minha
reputação de homem decente e vivo como posso, esforçando-me por ser
agradável. Gosto sinceramente dos homens. Quando me transporto aqui
para a terra, entre vocês, minha vida toma uma aparência de realidade, e é o
que mais me agrada. Porque o fantástico me atormenta como a ti mesmo, de
modo que gosto do realismo terrestre. Entre vocês, tudo é definido, há
fórmulas, geometria; entre nós, só equações indeterminadas! Aqui, passeio,
sonho (gosto de sonhar). Torno-me supersticioso, não rias, peço-te; a
superstição me agrada. Adoto todos os hábitos de vocês; gosto de ir aos
banhos públicos. (...) Meu sonho é encarnar-me em algum comerciante obeso
e partilhar de todas as suas crenças. Meu ideal é ir à igreja e lá acender uma
vela, de todo o coração, palavra! Então meus sofrimentos terão fim.38
Mas Ivã não acredita na existência do diabo. Entretanto, este não parece muito
empenhado na função de convencer o personagem de Dostoievski do contrário. Ivã
insiste em manter-se racional, o que alude ao que acontece com os esquizofrênicos, que
depois da cura dizem que “(...) durante todo o tempo da crise havia (...) uma pessoa
normal escondida, que aguardava o tumulto da doença passar”39
. Ele nega a
personificação diabólica diante de si, acreditando ser ele próprio, numa espécie de
duplo, aquela alucinação. Mas “nunca se tem certeza de não estar sonhando, nunca
existe uma certeza de não ser louco”40
. Então Descartes inventou essa certeza com o
Cogito (“Penso, logo existo”). É nela que Ivã se agarra. É dela que o diabo fala ao dizer:
Se queres, tenho a mesma filosofia que tu, é verdade. Je pense, donc je suis,
eis o que é certo; quanto ao resto, quanto a todos esses mundos, Deus e o
próprio Satã, tudo isso não me é provado. Têm eles uma existência própria,
ou serão apenas uma emanação de mim, o desenvolvimento sucessivo de meu
“eu”, que existe temporal e pessoalmente...41
35
CROWCROFT. O psicótico – compreensão da loucura, p. 46 36
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 630 37
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 624 38
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 627 39
CROWCROFT. O psicótico, p. 52 40
FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 47 41
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 631
Foucault atenta, a despeito do Cogito, para o gênio maligno, impeditivo da
Verdade, eternamente ameaçador. “Até a existência e a verdade do mundo exterior, esse
perigo pairará sobranceiro sobre o caminho de Descartes”42
. O Cogito não é solução da
loucura, nem no louco consciente – caso do personagem de Dostoievski.
A argumentação de Ivã que remete a Descartes é ironizada pelo diabo com frase
em latim “Satanas sum et nihil humani a me alienum, puto”43
(“Sou Satanás e nada do
que é humano reputo alheio a mim”), o que desperta surpresa. “Isto não aprendeste de
mim”, diz o personagem de Dostoievski. Então o diabo “age com lealdade” (por deixar
de usar o artifício para provar a própria existência), explicando que todo homem é capaz
de ter ideias tão criativas “que o próprio Liev Tolstói não as imaginaria”. Mais uma vez
eis a referência à razão que surge da loucura. Pode-se inclusive mencionar a pressão do
pensamento sugerida por Crowcroft, quando as ideias ocorrem em abundância na mente
dos esquizofrênicos44
.
A frase em latim ainda aponta como o diabo é próprio do homem. Assim, além
de representar a maldade humana, a antítese de Deus também representa a loucura.
Nesta adesão imaginária a si mesmo, o homem faz surgir sua loucura como
uma miragem. O símbolo da loucura será doravante este espelho que, nada
refletindo de real, refletiria secretamente, para aquele que nele se
contempla, o sonho de sua presunção. A loucura não diz tanto respeito à
verdade e ao mundo quanto ao homem e à verdade de si mesmo que ele
acredita distinguir.45
E se a antítese de Deus não está alheia à loucura, o próprio Deus igualmente não
está. Cristo também “quis passar aos olhos de todos por demente”46
. Ele honrou a
loucura da cruz, santificou a enfermidade curada, o pecado perdoado, a pobreza que
conduz à riqueza eterna. O próprio Deus feito homem era um louco.
Ivã, para se eximir da culpa pela morte do pai, também “se crucifica”. A doença
soa como penitência. Ele fica em oposição ao diabo, um duplo dele mesmo, mas um
duplo que tenta se justificar da maldade acometida.
Quando se traçou um resumo do histórico da loucura, na primeira parte deste
ensaio, foi dito que o saber dos loucos está relacionado ao saber que levou à queda. A
42
FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 160 43
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 628 44
CROWCROFT. O psicótico, p. 46 45
FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 25 46
FOUCAULT. História da loucura na idade clássica, p. 156
culpa de Ivã por disseminar esse saber proibido o conduziu à doença e ao encontro com
o demônio.
O parricídio e a culpa ainda remetem ao estereótipo freudiano do Édipo. O pai
idealizado na infância de Ivã se torna totem na figura do diabo.
Sabemos que Deus é um substituto paterno (...), constitui a cópia de um pai
tal como este é visto e experimentado na infância. Posteriormente na vida, o
indivíduo vê seu pai como algo diferente e menor. Porém, a imagem ideativa
que pertence à infância é preservada e se funde com os traços da memória
herdados do pai primevo para formar a ideia que o indivíduo tem de Deus.
(...) Com respeito ao Demônio Maligno, sabemos que ele é considerado
antítese de Deus, e, contudo, está muito próximo dele em sua natureza. (...)
Os deuses podem transformar-se em demônios maus quando novos deuses os
expulsam. Quando determinado povo foi conquistado por outro, seus deuses
caídos não raramente se transformam em demônios aos olhos dos
conquistadores. (...) Não é preciso muita perspicácia para adivinhar que
Deus e o Demônio eram originalmente idênticos – uma figura única
posteriormente cindida em duas figuras com atributos opostos.47
Freud também expõe como o fato de a alucinação acontecer justamente com o
diabo pode demonstrar que o primitivo pai primevo era um ser de maldade ilimitada,
mais semelhante à antítese de Deus.
Ao final do encontro de Ivã com o diabo, este lamenta não condizer com a figura
fascinante difundida na Renascença:
(...) tens razão de querer-me mal porque não apareci em meio duma nuvem
vermelha, entre o trovão e os raios, com as asas avermelhadas, mas me
apresentei com traje tão modesto. Em primeiro lugar teus sentimentos
estéticos estão melindrados, depois teu orgulho: tão grande homem receber
a visita de um diabo tão comum!48
Pouco depois o diabo desaparece tão encoberto quanto surgiu.
Conclusão
Aquilo que não é compreendido é demonizado. O Deus de um povo é o diabo de
outro. Idiomas estranhos parecem diabólicos. “É fácil entender por que os povos
primitivos acreditavam que uma pessoa que se queixava de ouvir vozes na cabeça, ou
vindas de diferentes partes do corpo, estava „possuída‟”49
. Portanto, não é novidade na
Idade Média que loucura e diabo caminhem juntos. Também não se pode dizer que hoje
em dia não exista mais associação das duas ideias. Ainda há tentativas de exorcismo,
pessoas que se afirmam possuídas etc.
47
FREUD. Uma neurose demoníaca no século XVII, p. 6 48
DOSTOIEVSKI. Os irmãos Karamazovi, p. 636 49
CROWCROFT. O psicótico, p. 50
No entanto, a partir do histórico apresentado por Focault, percebeu-se em que
momento o tratamento médico apareceu e o problema pôde começar a ser visto como
doença.
Para este trabalho, buscou-se estudar a loucura a partir do diabo com base em
quatro autores: Crowcroft, Delumeau, Foucault e Freud. A conclusão é que há diversas
possibilidades. Crowcroft abriu espaço para se refletir, principalmente, sobre a fusão do
plano onírico com o estado de vigília. Delumeau e Foucault trouxeram um grande
embasamento histórico. Freud também contribuiu, mas ainda parece fazer interpretações
propositadamente absurdas para ridicularizar a doença e assim obter a cura, como se a
psicanálise tentasse reprimir a alucinação por meio do recalque (pode-se mencionar
Onde encontrar a sabedoria?, onde Harold Bloom elogia a “eloqüência antifreudiana
de Karl Kraus, satirista vienense de origem judaica: „A psicanálise, em si, é a doença
que ela mesma se propõe a curar‟.”50
).
Ainda a respeito de Freud, a invalidação deliberada do texto Dostoievski e o
parricídio se deu porque entrar em questões biográficas não era o objetivo deste ensaio.
De qualquer forma, vale mencionar que Dostoievski sofria de epilepsia, sendo ele
próprio, exatamente como Smerdiakov, seu personagem parricida, um louco.
Chegou-se, então, a uma análise bastante rica de Os irmãos Karamazovi, onde
Ivã se revelou um personagem sensível à fé. O ceticismo nele, reflexo do ceticismo de
muitos, não passa de um ideal de quem se julga dotado de inteligência.
Bibliografia
A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1985.
CROWCROFT, Andrew. O psicótico – compreensão da loucura. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Empreza Democratica, 1979.
BLOOM, Harold. Onde encontrar a sabedoria? Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
DELUMEAU, Jean. . História do medo no Ocidente – 1300-1800: uma cidade sitiada.
São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
DOSTOIEVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamazovi. São Paulo: Abril Cultural, 1971. (Os
Imortais da Literatura Universal 1)
50
BLOOM. Onde encontrar a sabedoria?, p. 24
FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. 6ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 1999.
FREUD, Sigmund. Dostoievski e o parricídio. In: Edição Eletrônica Brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
FREUD, Sigmund. Uma neurose demoníaca no século XVII. In: Edição Eletrônica
Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1980.