diálogos das carmelitas

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Em 1794, no período da Revolução Francesa conhecido como Reino do Terror, dezesseis irmãs carmelitas do mosteiro de Compiègne foram condenadas à morte, sob a acusação de fanatismo, e executadas em praça pública. Aos pés da guilhotina, as freiras entoaram hinos religiosos e renovaram seus votos. Dez dias depois da execução, o Grande Terror terminou. Partindo desse episódio, trágico e verídico, e tendo como base a novela A Última ao Cadafalso, da escritora alemã Gertrud von Le Fort, Diálogos das Carmelitas foi concebido originalmente, em 1948, para o roteiro de um filme – realizado e exibido apenas em 1960. Antes disso, em 1956, o compositor Francis Poulenc usou o texto para criar o libreto de sua ópera homônima. Esta obra é considerada o "testamento espiritual" de Bernanos: um texto brilhante sobre a renúncia, o sacrifício e o medo, escrito por ele à beira de sua própria morte e publicado postumamente.

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Impresso no Brasil, novembro de 2013

Título original: Dialogues des CarmélitesCopyright © Éditions du Seuil, 1949 e 1995Todos os direitos reservados.

Os direitos desta edição pertencem aÉ Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.Caixa Postal: 45321 · 04010 970 · São Paulo SPTelefax: (5511) 5572 [email protected] · www.erealizacoes.com.br

Editor Edson Manoel de Oliveira Filho

Produção editorial Liliana Cruz

Preparação de texto Juliana Ferreira da Costa

Revisão Danielle Mendes Sales

Capa e projeto gráfico Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É

Diagramação e editoração André Cavalcante Gimenez / Estúdio É

Pré-impressão e impressão Edições Loyola

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

GEORGES BERNANOS

Tradução de Roberto Mallet

Segundo a novela de Gertrud von le Fort e o roteiro de R. P. Bruckberger e Philippe Agostini

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GEORGES BERNANOS

Tradução de Roberto Mallet

Segundo a novela de Gertrud von le Fort e o roteiro de R. P. Bruckberger e Philippe Agostini

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A Christiane Manificat

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Veja, em certo sentido o Medo é também filho de Deus, resgata-

do na noite de Sexta-Feira Santa. Não é belo de se ver – não! – ora escarne-

cido, ora amaldiçoado, renegado por todos... E, entretanto, não se iluda: ele

está à cabeceira de cada agonia, ele intercede pelo homem.

A Alegria

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S u m á r i o

Prólogo.......................................................................................... 13

Primeiro Quadro ........................................................................... 15

Segundo Quadro ........................................................................... 27

Terceiro Quadro ............................................................................ 57

Quarto Quadro ............................................................................. 95

Quinto Quadro ........................................................................... 133

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Personagens

• Marquês de la Force

• Marquesa de la Force

• O Cavalheiro, seu filho

• Branca, sua filha (Irmã Branca da Agonia de Cristo)

• Senhora de Croissy (Madre Henriqueta de Jesus), Priora do Carmelo

• Senhora Lidoine (Madre Maria de Santo Agostinho), nova Priora

• Madre Maria da Encarnação, Subpriora

• Madre Joana do Menino Jesus, decana anciã

• Madre Geraldo, Irmã Clara, Irmã Antônio, porteira, freiras idosas

• Irmã Catarina

• Irmã Felicidade

• Irmã Gertrudes

• Irmã Alice

• Irmã Valentina da Cruz

• Irmã Matilde

• Irmã Ana

• Irmã Marta

• Irmã São Carlos, Irmã Constância de São Denis, freiras muito jovens

• O Capelão do Carmelo

• Senhor Javelinot, médico

• Marquês de Guiches

• Gontran

• Heloísa

• Rosa Ducor, atriz

• O Notário do convento

• Thierry, lacaio

• Antônio, cocheiro

• Delegados da municipalidade, comissários, oficiais civis

• Prisioneiros, guardas, homens e mulheres do povo

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P r ó l o g o

Cena I1774. Praça Luís XV, em Paris. Noite de festejos pelo casamento do

Delfim, futuro Luís XVI, com a arquiduquesa Maria Antonieta. Carrua-

gens de aristocratas passam entre a alegre multidão, contida pela guarda.

Numa das carruagens, vemos um jovem casal, o Marquês de la Force e sua

esposa grávida. O Marquês desce do carro e vai até as tribunas.

A queima de fogos de artifício começa e, de repente, as caixas de fo-

guetes incendeiam e explosões se sucedem. Embora não haja nenhum gra-

ve perigo, o pânico toma conta da multidão. Atropelos, gritos de medo,

pessoas caem no chão e são pisoteadas. A jovem Marquesa, apavorada,

fecha o ferrolho da porta. O cocheiro açoita os cavalos que disparam e

lançam-se numa louca corrida. Brusca cólera da multidão, os cavalos

são detidos, uma vidraça voa em estilhaços. Uma voz de homem grita:

“Tudo vai mudar daqui a pouco, vocês é que serão massacrados e nós an-

daremos nas suas carruagens!”. Os soldados chegam a tempo de resgatar

a Marquesa, que está a ponto de ser agredida.

Cena IIAlgumas horas mais tarde. Um médico sai do quarto da Marquesa,

no Palácio de la Force. Anuncia ao Marquês que acaba de nascer uma

menina, mas que a jovem mãe está morta.

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Primeiro Quadro

Cena IPalácio de la Force. Abril de 1789. O Marquês e o Cavalheiro. Este,

visivelmente surpreso com a presença do pai, não consegue conter a pergun-ta que lhe queima os lábios:

Cavalheiro

Onde está Branca?

marQuêS

Não estou sabendo de nada, por que diabos não pergunta às suas

mulheres em vez de entrar aqui sem avisar, como um turco?

Cavalheiro

Peço-lhe mil perdões.

marQuêS

Na sua idade não faz muito mal ser um pouco exaltado, como

na minha é natural querer manter os velhos hábitos. A visita do senhor seu tio me fez perder a sesta, e há pouco eu estava quase

cochilando, para dizer a verdade... Mas o que quer com Branca?

Cavalheiro

Rogério de Damas acabou de sair daqui e teve que retornar

duas vezes para não ser atropelado por uma grande multidão.

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Corre o boato de que vão queimar o retrato de Réveillon na

Praça de Grève.

marQuêS

Pois que o queimem! Com o vinho ao preço que está, é natu-

ral que a primavera esquente um pouco as cabeças. Tudo isso

vai passar.

Cavalheiro

Se ousasse fazer na sua presença uma brincadeira de mau gosto,

diria que em relação à carruagem da minha irmã está se saindo

muito mal como profeta. Damas viu a carruagem bloqueada pela

multidão, na encruzilhada de Bucy.

O Marquês de la Force, que tinha aberto a tabaqueira, fecha-a brus-

camente sem pegar nada, e como o Cavalheiro se aproxima, detém-no

suavemente com o braço estendido.

marQuêS

A carruagem... a multidão... perdão, essas imagens têm muitas ve-

zes assombrado minhas noites... Hoje falam bastante em rebelião

ou mesmo em revolução, mas quem não viu a multidão em pâ-

nico não viu nada... Deus me livre! Todos aqueles rostos de bocas

contorcidas, milhares e milhares de olhos... Misericórdia! De um

lado a outro, de repente a praça começou a fervilhar, as bengalas

e os chapéus voavam numa altura incrível, como se tivessem sido

arremessados ao ar pela explosão de um grito imenso. Algumas

testemunhas juraram depois que não viram esses chapéus e essas

bengalas, mas eu vi, por todos os diabos!

Cavalheiro

Perdão, senhor, eu deveria ter imaginado... Mais uma vez falei

sem pensar.

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O Marquês pega novamente a tabaqueira. Tamborila na tampa com a ponta dos dedos, pensativo.

marQuêS

Ora! É esta velha cabeça também que esquenta muito rápido. Mas qual é a semelhança, pergunto eu, entre o que vi naquela vez e uma rebeliãozinha casual, um desfile de bêbados pelas ruas de Paris? Minha carruagem é resistente, os velhos cavalos não se as-sustam com nada, Antônio está a nosso serviço há vinte anos, e os dois lacaios são ex-soldados do Regimento de Navarra. Não pode acontecer nada de mau à sua irmã.

Cavalheiro

Oh! Não é pela segurança dela que eu temo, o senhor sabe, mas pela imaginação doentia.

marQuêS

De fato, Branca é muito impressionável. Um bom casamento ar-ranjará tudo. Vamos! Vamos! Uma jovem bonita tem o direito de

ser um pouco medrosa. Paciência! Você ainda terá muitos sobri-nhos fazendo mil diabruras por aí.

Cavalheiro

Acredite: o que ameaça a saúde de Branca, ou até sua vida, não pode ser somente o medo. Ou então é um medo recalcado até

o fundo do ser, é o gelo na medula da árvore... É, meu senhor, acredite, há alguma coisa no caráter de Branca que ultrapassa o

entendimento comum. E talvez em um século menos esclarecido que o nosso...

marQuêS

O quê! Fala como um camponês supersticioso. A afeição que sem-pre teve por sua irmã está lhe perturbando o espírito. Branca me

parece quase sempre natural e, às vezes, até radiante.

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Cavalheiro

Oh! Sem dúvida, pode ser que eu esteja enganado e acreditaria

mesmo num bom destino se não visse sempre a maldição no seu

olhar. O que a voz pode ocultar, o olhar revela; é no olhar, não na

voz, que o medo se trai, foi o que aprendi a serviço do Rei, embo-

ra ainda seja um novato... Mas de que serve dizer-lhe o que outras

guerras mais terríveis já lhe ensinaram, bem antes que eu nascesse?

O Marquês esboça um primeiro gesto de protesto, depois responde

lentamente, com o aspecto de quem interroga as próprias lembranças.

marQuêS

Meu Deus, é verdade, sabíamos essas coisas, eram úteis quando

precisávamos delas, mas agora me parecem novidades em sua

boca, pois não pensamos mais nelas, e esta é a diferença entre a

nossa geração e a sua. Por que diabos teria a ideia de julgar sua

irmã a partir da experiência que adquiri com os cabos e os sar-

gentos do Real-Picardia?...1 Cuidado, pensando assim como faz

hoje acabará não compreendendo a razão de mais nada! Quando

Branca e sua governanta chegarem, daqui a pouco, rirá das suas

angústias e ela esquecerá as dela.

Cavalheiro

O que está querendo dizer é que mais uma vez terá sido aban-

donada pelo medo... Abandonada pelo medo! Falando de

Branca, a aproximação dessas duas palavras me faz tremer...

Uma jovem tão nobre e tão altiva! O mal entrou nela como

um verme num fruto... Oh, senhor, essas palavras devem pare-

cer-lhe obscuras ou pedantes, especialmente na minha boca...

Guarde apenas o suficiente para que decida enviar minha irmã

1 Regimento de infantaria da monarquia francesa. (N. T.)

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a Miromesnil, ou mesmo a Limeuil, respirar a primavera e be-

ber o leite das nossas vacas.

marQuêS

Sim, brincar de fazendeira, como está na moda hoje. Infeliz-

mente não é assim que uma moça encontra casamento. Só se es-

tivesse louco afastaria minha filha justamente quando começo a

me entusiasmar com as visitas do seu amigo. Ah, o jovem Damas

não é bem o que antigamente se chamava de um bom partido,

mas eu ficaria contente se fosse meu genro. Por que não? Acho

os jovens de hoje complicados demais para o meu gosto. Ele

é um verdadeiro francês, é mesmo um francês de três séculos,

com o cavalheirismo de um, a elegância do outro e a alegria do

atual. É verdadeiramente o que eu chamo de um belo francês,

um belo rapaz, um bravo rapaz, um homem de bom gosto da

corte francesa. Este é Rogério de Damas. Com os diabos! E você

também acha isso.

Cavalheiro

Basta dizer que é o meu melhor amigo... Mas não se iluda. No

estado lastimável em que se encontra, minha irmã jamais casará

com um homem conhecido pela valentia, em cuja presença teria

medo até de corar.

marQuêS

Criancices!

Cavalheiro

Está enganado. Não sei se o caráter bizarro de Branca pode levá-

-la a fazer alguma impropriedade, ao menos segundo a ideia que

tem sobre os deveres de uma boa filha, mas acho que não con-

seguiria sobreviver.

* * *

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Cena IIAbre-se a porta e Branca surge de forma tão repentina que nos per-

guntamos se ouviu ou não essas últimas palavras.

O Cavalheiro faz um gesto involuntário, mas o velho Marquês domi-

na melhor os nervos e diz com naturalidade:

marQuêS

Branca, seu irmão estava ansioso para encontrá-la.

Branca tem o aspecto profundamente alterado, mas vemos que teve

tempo de se refazer e que se esforça para falar com jovialidade.

BranCa

O Senhor Cavalheiro é tão bom para a sua coelhinha...

Cavalheiro

Não fique repetindo a toda hora uma brincadeira que só tem sen-

tido para nós dois.

BranCa

Os coelhos não costumam passar o dia fora da toca. É verdade

que levei a minha comigo. Mas uma simples vidraça entre aquela

multidão e a minha medrosa pessoa pareceu-me por um momen-

to uma proteção bem irrisória. Devo ter feito um papel ridículo.

O Marquês faz sinal para o filho calar-se.

marQuêS

Está bem! Falaremos das suas aventuras ao jantar, quando já tiver

repousado um pouco. É melhor esquecer por um tempo o que

viu, e não devemos julgar essa canalha pela aparência... O povo de

Paris não é mau, e aqui tudo acaba em canções.

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Cavalheiro

O Senhor de Damas, que a viu na encruzilhada Bucy, disse-me há

pouco que fazia uma bela figura por trás da vidraça...

Ela cora de prazer e, para esconder a emoção, fala com uma joviali-

dade exagerada, que acaba criando certo mal-estar. O Marquês e seu filho

trocam um olhar.

BranCa

Oh! O Senhor de Damas na certa viu somente o que ele mesmo

queria ver... É verdade, eu fazia uma bela figura? Meu Deus! Será

que o perigo é como a água fria que primeiro nos tira o fôlego e

depois fica agradável, quando nos cobre até o pescoço? Mas tam-

bém quando é que temos a chance de enfrentar um desafio, nós,

as jovens? Para valer alguma coisa é preciso conhecer o próprio

valor... Meu Deus, meu Deus, imaginem que há pouco a Senhora

Janin, descendo da carruagem, não acreditava nos próprios olhos,

e eu me sentia tão leve... Este grande peso, desde sempre, no meu

coração... (Leva a mão ao peito, olha em torno, estanca.) Mas o que

estou dizendo? Não passo de uma tola, perdoem-me... (Antes que

seu irmão tenha a oportunidade de abrir a boca, retoma com uma

voz cuja alegria é totalmente fictícia:) Essa cerimônia nas Senhoras

da Visitação foi muito longa e deixou-me muito cansada. Sem dú-

vida é por isso que devaneio. Com a sua permissão, meu pai, vou

seguir seu conselho e repousar um pouco antes do jantar. Vejam!

Como a noite vai chegando depressa...

marQuêS

Se não estivéssemos no início da estação, eu diria que se prepara uma

tempestade. O céu escureceu rapidamente, enquanto você falava.

Ela se dirige para a escada, o irmão a acompanha.

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Cavalheiro

Já que vai recolher-se em seu quarto, peça logo uma lâmpada e

não fique sem companhia. Sei que o crepúsculo sempre a deixa

melancólica. Dizia quando era pequena: “Morro toda noite para

ressuscitar a cada manhã”.

BranCa

É que somente houve uma única manhã, senhor Cavalheiro: a de

Páscoa. Mas cada noite que começa é a da Santíssima Agonia...

Ela sai.

* * *

Cena III

marQuêS

Sua imaginação vai sempre de um extremo a outro. Que diabos

significa essa última frase?

Cavalheiro

Não entendi nada, e não importa muito! O seu olhar e a sua voz

é que me ferem a alma. Os cavalos já estão desatrelados. Vou fazer

algumas perguntas ao velho Antônio.

Ele sai. Mal encosta a porta, ouve-se um grito de terror. O Marquês

hesita um momento sobre que direção tomar, depois vai para a escada.

Ouvem-se passos nos degraus. O Marquês parece reconhecer alguém na

penumbra e grita:

marQuêS

És tu, Thierry?

Os passos se aproximam e aparece um jovem lacaio, muito pálido.

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O que aconteceu contigo, meu menino?

laCaio

Estava acendendo a lâmpada quando a senhorita Branca entrou

no quarto... Acho que viu primeiro minha sombra na parede. Ti-

nha acabado de fechar as cortinas.

* * *

Cena IVQuarto de Branca. Quando seu pai entra, Branca vai até ele. Sua

voz, sua atitude, os traços de seu rosto traduzem uma espécie de resolução

e de resignação desesperada.

marQuêS

Subi até aqui num impulso, em vez de chamar a governanta, per-

doe o mau jeito. Pelo que vejo, não houve nada de grave.

BranCa

Oh, meu senhor, é o mais amoroso e o mais delicado dos pais...

marQuêS

O senhor Rousseau, que não era muito bom com seus filhos, quer

que sejamos amigos dos nossos. No fim das contas, temo que a

amizade acabe diminuindo a clemência e a delicadeza, pois, em

suma, ela beneficia mais a nós mesmos. É menos difícil ser amigo

que ser pai... Mas não falemos mais nisso.

BranCa

Meu pai, não há acontecimento tão insignificante que não tenha

inscrita em si a vontade de Deus, como toda a imensidão do Céu

em uma gota d’água. Sim, foi Deus que o trouxe aqui para ouvir o

que meu coração tantas vezes não permitiu que eu dissesse. Com

a sua permissão, decidi entrar no Carmelo.

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marQuêS

No Carmelo!

BranCa

Acho que minha confissão surpreende-o menos do que está

parecendo.

marQuêS

Ah! É sempre perigoso quando uma jovem tão virtuosa quanto

minha filha acaba ouvindo os conselhos de uma devoção exaltada.

O fato é que algumas circunstâncias infelizes do seu nascimento

criaram em mim uma relação de muita ternura com você, e eu

não gostaria de contrariá-la em nada. Depois falamos disso com

mais calma, mas desde já eu lhe digo que confia demais, não na

sua coragem, mas nas suas forças e na sua saúde...

BranCa

Minha coragem...

marQuêS

Uma jovem menos orgulhosa não se atormentaria por causa de

um simples grito.

BranCa

Minha coragem...

Ela se decide bruscamente, como se, tentando convencer o pai, au-

mentasse pouco a pouco a esperança de persuadir-se a si mesma.

Meu Deus, é verdade, acho mesmo que há várias coisas em mim

de que não se envergonharia. Fazendo-me do jeito que sou, por

que Deus quereria apenas me aviltar? A fragilidade da minha na-

tureza não é uma simples humilhação que me foi imposta, mas

um sinal da sua vontade para sua pobre serva. Em vez de sentir

vergonha, eu deveria me gloriar com tal predestinação. Oh! Sem

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Diálogos Das carmelitas 25

dúvida, sei que não é conveniente, mesmo na sua presença, tirar

vantagem do sangue que tenho nas veias, e da importância da

nossa casa. Não importa! Por que milagre eu teria nascido total-

mente indigna de tantos homens de bem, com justiça famosos

por seu valor? Há vários tipos de coragem, é o que penso agora.

Uma certamente é a de enfrentar os mosquetes. Há outra, a de

sacrificar as vantagens de uma posição invejável para viver entre

companheiras e sob a autoridade de superiores com nascimento e

educação muitas vezes inferiores aos nossos.

Para, um pouco envergonhada. O velho Marquês escuta em silêncio,

a cabeça baixa. Depois diz com certo esforço, mas com o tom de um ho-

mem que fala para cumprir um dever:

marQuêS

Minha menina, há mais soberba na sua resolução do que pode

imaginar. Não sou propriamente um devoto, mas sempre acre-

ditei que as pessoas de nosso estado devem agir honestamente

diante de Deus. Não se abandona o mundo por desgosto, como

um novato que se deixa matar na primeira batalha mais violenta

por medo de perder a coragem, privando assim de seus serviços,

inutilmente, o Rei e seu país.

Ela vacila sob esse golpe, mas não se entrega.

BranCa

Eu não desprezo o mundo, e não é bem medo que sinto dele; o

mundo para mim é como um elemento em que não consigo viver.

É, meu pai, não posso suportar fisicamente o seu ruído, a sua agi-

tação; as melhores companhias me esgotam, qualquer movimento

na rua me atordoa, e quando acordo de noite, espio com desagrado

através das cortinas o rumor dessa grande cidade incansável, que

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só adormece quando raia o dia. Poupem-me os nervos dessa pro-

vação e verão do que sou capaz. Condenaria um jovem oficial que

renunciasse a servir na armada do Rei porque não suporta o mar?

marQuêS

Minha querida filha, que a sua consciência decida se a provação

está acima das suas forças ou não...

BranCa

Oh, meu pai! Vamos parar com isso, por piedade. Oh, por pieda-

de! Deixe-me crer que há um remédio para essa horrível fraqueza

que me torna a vida tão infeliz! Ai, o Senhor de Damas tem que

ser bem cego para ter visto em mim uma bela figura. Deus! Mal

conseguia ficar em pé, estava gelada até o coração, ainda estou,

toque minhas pobres mãos... Oh, meu pai, meu pai! Se não espe-

rasse que o Céu tivesse algum desígnio para mim, morreria aqui

de vergonha aos seus pés. Talvez tenha razão, talvez a provação

não tenha chegado ao fim. Mas Deus não vai querer isso para

mim. Eu lhe sacrifico tudo, abandono tudo, renuncio a tudo para

que ele me devolva a honra.

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