diário de ityrapina

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"...o isolamento inviolável é hoje a única maneira de demonstrar alguma medida de solidariedade. Toda colaboração, todo o valor humano da convivência e da participação sociais, apenas mascaram uma aceitação tácita da desumanidade. São os sofrimentos dos homens que devem ser compartilhados: o menor passo no sentido dos seus prazeres é dado na direção do recrudescimento de suas dores". I maio/junho 270596 Como falar de uma cidade sem encantos? Que dizer de uma viagem que começou em uma direção, estagnou-se no meio do caminho, girou sem rumo, voltou atrás e veio parar aqui, neste ermo à beira de uma estrada em que as galinhas ciscam na pista, onde os galos cantam a qualquer hora e o trem passa direto? Vindo de Rio Claro pela estrada de Jaú, a primeira coisa que se avista é o presídio, principal empregador da cidade -- alguns afirmam que as granjas da Sadia e da Perdigão empregam mais gente, mas eu ainda não as vi e, portanto, até agora não passam de boatos. Quatro transversais e chega-se ao centro da cidade; mais cinco e já acabou. Do centro, que é a esquina da rua 4 com a avenida 1, temos oito quadras para a direita e sete para a esquerda. Três bancos, três farmácias, duas padarias, quarenta e quatro lojinhas de roupas, três casas do agricultor, duas lojas de móveis, três ou quatro restaurantes de prato feito, um à la carte, uma igreja católica pavorosa e vinte evangélicas patéticas e doze botecos. Pronto. Nos subúrbios, a estação ferroviária, um laguinho com um hortinho, muitos, muitos galpões enormes da FEPASA e do falecido IBC, todos

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Diário de sesenta e três dias em Itirapina, no interior de São Paulo

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"...o isolamento inviolvel hoje a nica maneira de demonstrar alguma medida de solidariedade. Toda colaborao, todo o valor humano da convivncia e da participao sociais, apenas mascaram uma aceitao tcita da desumanidade. So os sofrimentos dos homens que devem ser compartilhados: o menor passo no sentido dos seus prazeres dado na direo do recrudescimento de suas dores".

Imaio/junho

270596

Como falar de uma cidade sem encantos? Que dizer de uma viagem que comeou em uma direo, estagnou-se no meio do caminho, girou sem rumo, voltou atrs e veio parar aqui, neste ermo beira de uma estrada em que as galinhas ciscam na pista, onde os galos cantam a qualquer hora e o trem passa direto?

Vindo de Rio Claro pela estrada de Ja, a primeira coisa que se avista o presdio, principal empregador da cidade -- alguns afirmam que as granjas da Sadia e da Perdigo empregam mais gente, mas eu ainda no as vi e, portanto, at agora no passam de boatos. Quatro transversais e chega-se ao centro da cidade; mais cinco e j acabou. Do centro, que a esquina da rua 4 com a avenida 1, temos oito quadras para a direita e sete para a esquerda. Trs bancos, trs farmcias, duas padarias, quarenta e quatro lojinhas de roupas, trs casas do agricultor, duas lojas de mveis, trs ou quatro restaurantes de prato feito, um la carte, uma igreja catlica pavorosa e vinte evanglicas patticas e doze botecos. Pronto. Nos subrbios, a estao ferroviria, um laguinho com um hortinho, muitos, muitos galpes enormes da FEPASA e do falecido IBC, todos abandonados, uma pasteurizadora da Flor da Nata, umas cinco madeireiras, um conjunto de casas populares e projetos de reflorestamento: pinheiros e eucaliptos. Em pleno cerrado!

No primeiro dia em que acordei aqui, dei uma volta pela parte do jardim e do quintal que o Nicolau, fila de muito maus bofes, permitiu que eu inspecionasse. Dezenove plantas ornamentais diferentes, treze delas floridas, s quatro que eu conhea. Bosta do Nicolau por toda a parte, galinhas e galos garniss s dzias, milhares e milhares de pardais e outros seres alados igualmente barulhentos e perniciosos, cada um com uma bostinha mais custica que o outro. Moscas. Moscas. Moscas. Azuis, negras, amarelas, marrons. Borrachudos e as abelhas do Nelson.

A grande sensao social da noite anterior foi a inaugurao do bar do Paran, na rua 4 entre as duas linhas do trem. Msica ao vivo: Marcelo & Marcelo. Grosas de bbados, rodeados de mooilas de busti e sandlias de salto plataforma.

Moro na Avenida Doze, n 119 ou 131, dependendo de quem estiver contando, se a SABESP ou a Prefeitura. A avenida 12 a ltima esquerda de quem chega cidade e vai da rua 3 rua 5.

Saindo de casa esquerda, viro esquerda de novo, caminho uns quatrocentos metros at as linhas do trem, obedeo s placas e paro, olho, escuto, sigo em frente e chego ao centro. Compro po e volto. Minha cozinha deve ter uns vinte quilos de po velho. direita, passo pela oficina do Cludio Mo de Ona, pelo barzinho do seu Joo, pela Gallo Materiais de Construo, pelos fundos do Lar dos Pobres e chego beira do mundo. Terrenos baldios, armazns ferrovirios vazios e vagas madeireiras ao longe. Mais alm, estradas retas de terra bordeadas de eucaliptos ou pinheiros e, mais longe ainda, o cerrado. A gente anda levantando poeira e fica ouvindo o apito dos trens manobrando l atrs.

280596

Sei que parece implicncia com a cidade, mas um dos lugares mais bonitos daqui o velrio municipal, bem em frente ao cemitrio. O prdio uma construo dos anos 30, estao de um ramal abandonado da ferrovia, isolado da cidade por um descampado em que se instalam os parques de diverso e circos que passam por aqui. Agora mesmo est l o Gran Circo Americano, com uma bela lona listada de azul e amarelo, daquelas italianas anti-incndio. A estaozinha foi restaurada para servir de velrio, e do outro lado da rua est o cemitrio, cujo muro oculta as campas mas deixa ver os flamboyants, as sibipirunas e as espatdeas que do sombra aos falecidos e a seus parentes. Atrs do cemitrio, um vasto vale descendo em um declive leve por uns trs quilmetros at um rio ou riacho que no se avista, semeado aqui e ali de pequenos stios, pastos e pinhais, e encerrado pelos paredes e mesetas da Serra dos Padres. esquerda h um eucaliptal com rvores de trinta metros de altura e mais campos.

290596

Alguma coisa deve ter acontecido. A cidade est cheia de pequenos grupos de gente conversando em frente aos bares e farmcias, todos olhando mais ou menos para a mesma direo, l para as bandas de Corumbata.

Dia produtivo: cortei a grama do jardim, capinei o quintal, lavei a bosta de passarinho do terrao e passei pano de cho na sala. E ainda fiz treze laudas de traduo. Nada mau. So 09:00 hs da noite. Vou para a cama, at amanh.

300596

Voltei de So Paulo com a mudana, passando por Piracicaba. Parei para conversar com a Bea e combinei de ir festa junina da Ana Nepomuceno em Rio Claro com ela. Chegamos em casa s trs da manh, o Nelson e eu. Minha me deve estar uma arara com ele, e comigo por tabela.

310506

Maio tem 31 dias, no tem?, ou ser que hoje j o ms que vem?

Fui de bicicleta at Analndia, 23 quilmetros de estrada. Cheguei, dei uma volta exausta pela cidade, ainda menor que Ityrapina, mas muito mais bonita, tomei um sorvete na praa sorrindo pr'as moas e voltei de carona na caminhonete de um queijeiro de Brotas. Comprei trs queijos de cabra dele e meu dinheiro acabou. Tragdia: s depois de chegar em casa com os trs queijos que vi que s tenho mais quatro cigarros, e 45 centavos no bolso. Hoje noite durmo em Piracicaba e amanh tem festa na chcara da Ceclia.

020696

Bela merda de festa junina. Eu devia ter lembrado que uma festa organizada pela Ana no podia ser boa coisa. Ainda por cima, arrastei comigo a Bea, que teve de ficar sorrindo amarelo para as insinuaes de desconhecidos sobre o estado das relaes dela comigo. A nica coisa que valeu a pena foi que, quando chegamos, trazidos da rodoviria pelo Papoula, a Ceclia, j completamente bbada s seis da tarde, estava ouvindo um disco do Quilapayun que eu no ouvia h 23 anos. A sensao que me deu foi a mesma que eu tinha quando estava fora e chegava a um lugar onde estivessem ouvindo msica brasileira. Comecei a garimpar entre as fitas dela e achei Violeta Parra, Victor Jara, Inti Illimani, Daniel Viglietti que uruguaio mas conheci no Chile, Atahualpa Yupanqui que argentino mas idem, Angel e Isabel Parra, Carlos Toro e mais um monte de preciosidades de cuja existncia eu j quase tinha esquecido. Mas lembrei de todas as letras, e fiquei ali sentado lacrimoso por uma meia hora, surdo aos protestos de quem tinha vindo para festejar. Tive de ser arrancado do toca-fitas. Depois disso, foi rotina. Vodca de monto, todos ficando de pileque e todos repetindo ritualmente, pra Toms assim voc vai ficar bbado e terminei a ltima garrafa sozinho com todos eles cados pelos cantos. Muita fofoca ao p da fogueira e l pelas tantas um tal de Ren perguntando, voc goiano de onde?, minha mulher de Pirenpolis. Grandes abraos, e o fulano, como que vai? e mengano? Mundeco. A Christiane continua solteira, dizem que mais linda que nunca. No havia mais nibus para Piracicaba e fui dormir com a Bea na casa da minha me.

030696

A Ceclia foi da Frao Bolchevique da Polop e do MEP, exatamente a mesma carreira que a minha. Puxando as lembranas do fundo do ba, ela acabou lembrando do Daniel Queiroz e de uma foto minha que saiu em um jornal em 79, quando eu estava preso na Inglaterra, de que nem eu me lembrava. Ela caiu na grande redada de 77 e pegou trs dias seguidos de pau-de-arara sem abrir, ento era ela a Marta que apanhou -toa no DOI-CODI da Tutia: os que ela estava protegendo j tinham sido presos, mas ela no sabia. Grande Ceclia. Hoje ela bebe, e eu viajo. Parece que j faz tanto tempo, e faz, e me d um certo engulho pensar que tudo isso aconteceu para que o Genono pudesse pontificar na Globo sobre as responsabilidades da oposio.

Cheguei a Piracicaba ontem de manh e passei o dia de mau humor, pensando na Ceclia, no Genono e nas crianas, a Bea no entendeu nada, nem eu estava com disposio de explicar. Para piorar, a Fox passou "Esqueceram de Mim" e, logo em seguida, "Uma Bab Quase Perfeita". Perfeito. Quem j viu os dois sabe do que estou falando. Quem no viu no sabe, e vai continuar sem saber.

Vim para Ityrapina com a Eneida, toda chorosa porque o namorado no gostou que ela estivesse dando pro ex-marido.

040696

A rdio Estncia passou o dia tocando Credence Clearwater, The Mamas and the Papas, Moody Blues, The Who, Steppenwolf, Paulinho da Viola e Joo Gilberto. Preciso ir a So Pedro apertar pessoalmente a mo do programador, ele dos meus. Esse tipo de preferncia musical nunca acontece por acaso.

Em Pirenpolis eram as vacas no jardim. Aqui a bosta de passarinho. No acaba nunca. A Tor diz que nada pouco ou muito importante diante do Infinito. Talvez a bosta e a vaca sejam o mesmo aos olhos do prefeito de Ityrapina. Ssifo empurrava uma pedra, eu empurro o esfrego.

Na estao experimental, beira do lago, no meio do mato e longe das vistas do pblico, tem uma mesinha com, pasmem!, uma tomada de 220 V. Hoje tarde, depois de lavar bosta e antes de vir para Rio Claro, fui para l de bicicleta e trabalhei umas duas horas: nove laudas de 1650. Do meu escritrio silvestre, entre pinheiros e paus-ferro, d para ver a parte bonita da cidade, um pedao da estrada e outro da ferrovia, o lago quase inteiro e uma casa branca na qual eu passaria meus ltimos dias.

050696

Viemos de Rio Claro por dentro, passando por Camaqu, Ibat, Grana e Ub. Parte do caminho vai bordeando a antiga estrada de ferro, arrancada j l vo trinta anos. Ibat ainda tem a estao, mas o abandono da regio visvel. S pasto, e nativo, com uns boizinhos magros pastando aqui e ali. Dez quilmetros antes de Ityrapina comea a cana, que eu nem sabia que j tinha chegado por aqui.

No havia luz quando chegamos. Estava saindo para almoar no La Pequetita e depois trabalhar no bosque enquanto seu lobo no vinha e o lobo veio e acabou com a festa. Fomos ver o stio do Joaquim, l pr'os lados de Ub, e levar os cem pintinhos Rhodes que o Nelson comprou na estrada por dez contos e comprar rao para o Lao. O stio do Joaquim tem uma vista absolutamente linda, d para ficar a tarde inteira s olhando e esperando o trem passar no p da serra l do outro lado, mas s para isso serve. O Oscar quis que fssemos at a divisa com a fazenda do Padula, dois quilmetros de colonio de dois metros de altura e mato. Voltei com o cabelo to cheio de pico que pensei em tosar tudo, mas acabei conseguindo tirar todos, depois de uma hora e meia. J os micuins, que o Nelson insiste que so piolhos de galinha e o Oscar garantiu que no era poca, esses eu vou ter de ter pacincia e ir tirando aos poucos, com muito banho e sabo inseticida. Estou coando mais que a noite de chuva que dormi com o Pil e trs cavalos no curral da fazenda do Z Playboy em Corumb.

. . . . . . .

Vou jantar aqui ao lado, em Charqueada, na casa do Cristiano Marton, e depois sigo para Rio Claro para telefonar para So Paulo. Cumpridos os deveres paulistanos, vou direto para Piracicaba, que amanh tem almoo na rua do Porto, piapara na brasa, almeiro, arroz e piro. Nada como ser guloso e porttil!

060696

Picanha no alho com agrio, arrozinho, feijozinho, torresminho, salada de palmito, pudim de leite, caf forte, cachaa de alambique envelhecida em casa. O Marton sabe comer, mas a terra dele no presta. Onde no tem areia, tem brejo; onde a terra boa, rea de proteo. Estou com 84 quilos e subindo.

Duas horas parado na beira da estrada em Rio Claro -- olha a chuva, corre pr'o coberto, j passou, volta para a estrada -- trs horas para chegar de Rio Claro a Piracicaba. Ou corto o cabelo ou paro de andar de carona. O Nelson tem razo, Rio Claro no presta. como Barbacena, de onde eu s consegui sair depois de ficar seis horas em p no trevo, e isso que quem me levou foi um chofer de caminho crente de Santos Dumont.

Os desgraados dos micuins eram membros de uma conspirao secreta para me comer da cabea aos ps! Estou de marca de picada at atrs da orelha, para no mencionar outras partes menos mencionveis. Pena que os camaradas da KGB esto agora no ramo do contrabando, seno eu mandava interrogar um por um.

070696

Quando o mundo no fora ainda criado e a manh cobria tudo de luz baa, meu av sentava-se porta da casa dele e fumava um cigarro atrs do outro, amassando as bitucas com o salto da bota. Eu vinha sentar perto dele e ficvamos olhando as gentes passarem e falando mal da vida delas. De quando em quando, entrvamos para tomar um caf acabado de fazer. Os contornos do horizonte eram embaados e a manh no acabava nunca.

080696

Surpresa: a tontinha da Alice a mais rpida das meninas: certeira e mortfera. Espero que continue gostando de mim. Ela s se perde quando quer sumir.

090696

Fim de semana prolongado em Piracicaba, tranqilo e caseiro. A Bea pega o ritmo de casa com rapidez, talvez demais. Agora que os meus projetos so mais avulsos, esse tipo de manobra fica muito bvio; se eu estivesse disponvel, j estava casado, e com mais uma filha sem limites.

Definitivamente, essa permissividade com as crianas pregada pela mudernidade vai criar um bando de crpulas submissos; todas elas, sem exceo, so o modelo acabado do canalha: aproveitadoras, calculistas, interesseiras, maniquestas, submissas com os mais fortes, cruis com quem estiver em situao de inferioridade.

Viva a vara de marmelo!

Sem contar o lado da formao intelectual, mas isto j outra conversa. Os antigos aprendiam mais s com o Tesouro da Juventude do que essa crianada com todas as enciclopdias em CD.

Ontem noite, em horrio nobre, a rua Aurora e a cara de viado enrustido do Srgio Amaral e de basbaque deslumbrado do Fernandinho em todos os canais: visita presidencial a Pirenpolis. Valeu pelo orgulho sereno da chileninha Rosario, recebendo o presidente em casa. O restaurante da Maringela, o poo da ponte, a cadeia, o pitidogue do Maurcio, a rua do Rosrio, a carroa de areia do Ado, o calamento de pedra, a matriz embrulhada em andaimes: estava tudo l.

Notcias da Christiane em um sbado, imagens de Gois no outro: ainda bem que eu no acredito em pressgios, ou j estaria a bordo de um rpido federal com o corao aos pulos.

100696

Volta a Ityrapina via So Pedro e Itaqueri da Serra, as duas valem um regresso mais demorado. Preciso ainda ir a Corumbata e a Ipena; mais tarde, Brotas e So Carlos; s ento posso dizer que conheo a regio, pelo menos de vista.

Piracicaba, Itaqueri, Ityrapina, Corumbata, Ibat, Ipena, Camaqu, Ub, Grana: vale um dicionrio dos toponmicos da regio.

Est fazendo frio. Cheguei em casa, o Nelson j estava aqui, com cara de gato ladro, sem motivo algum. A Ins passou um dia em casa enquanto eu estava em Piracicaba, e deixou o crapulazinho sem limites que ela est cevando para o mercado de trabalho solto entre as minhas coisas: um chapu de fita rasgada que serviu de cama para os gatinhos que no queriam dormir, uma caneta tinteiro com a ponta quebrada por ter sido usada para escrever na parede e no tampo da mesa de mogno, tinta verde espalhada pelo cho da sala. Que lindinho, to livre, to espontneo! E isso que eu nem fui at o quarto (o meu, claro) onde eles dormiram; estou com medo de ver o que a pedagogia libertria fez com a minha gaveta de meias.

No, no rabugice. tristeza. Satisfao imediata dos impulsos, consumo desenfreado, ausncia de solidariedade e de interao social, fase anal mantida e reforada: toda uma gerao, em todo o mundo, da aldeia metrpole, de estroinas perdulrios, deslumbrados, egostas, vaidosos, pretensiosos, ignorantes e politicamente corretos. Como vai ser a gerao que eles vo criar?

Est fazendo frio, muito frio; meus dedos esto comeando a ficar duros. Um fogo de ferro, a lenha, est custando 180 reais no prego de Rio Claro, que careiro. Pesquisando um pouco, d pr comprar dois, um para o quarto, outro para o escritrio; fechando bem a casa, fica tudo quentinho. Pena que o inverno dura pouco. O saco vai ser ficar catando lenha, So Roque que o diga.

s vezes esqueo de para quem estou escrevendo, e comeo a divagar demais; mas essa deriva ltero-ciberntica at que capaz de me levar a algum lugar. Algum podia inventar uma terapia da palavra escrita, com essa eu me entendia. Se at terapia de vidas passadas paga o leite das crianas do terapeuta (there's a sucker born every day, said Barnum), porque no uma internetanlise? ou uma psicoe-mailise?

(No disse? Fui ao quarto buscar um pulver e vi os sinais da passagem do meu sobrinho huno: chicl mastigado no criado-mudo, farelo de bolacha na cama, um dos meus cavantes e elefalos rasgado.)

Notcias familiares acumuladas durante o priplo flvio interiorano: minha irm que ouve vozes brigou com o marido xavante e est irritada; minha irm que tira a roupa no metr mudou-se para Pinheiros -- o marido dela espuma; minha irm que tenta o suicdio casou-se com um irlands e mora em Nova York; minha irm adolescente ouve a Transamrica e ainda no sabe o que quer ser quando crescer. Tenho um irmo batista e outro jornalista.

Perhaps love is like a window; perhaps it's like a door.

Ah!, lembrou-se o Nelson, um amigo teu, parece que de So Paulo, acho que Cludio ou o Xexu, ou ento aquele outro do Rio, ligou ontem e falou com a tua me ou com a Mariana, se no me engano para ligares para ele. Se tem uma coisa que eu aprecio nos lusitanos, a preciso.

Estou falando indevidamente: se para sermos rigorosos e detalhistas, hoje j amanh e eu continuo falando como se fosse ontem -- que as coisas vo ficando acumuladas, e eu estou comeando a gostar daqui, e isso me deixa nervoso e prolixo.

. . . . . .

Confirmado no bar do Roberto, guarda penitencirio que se vira: o presdio tem 250 funcionrios em trs turnos; a Perdigo, segundo maior empregador, paga quarenta e tantos salrios, e a Sadia trinta e poucos. Logo vi. E, de uma vez por todas, est na hora de encerrar o dia. Boa noite.

110696

Talvez seja o cerrado, mas no sei se j estou pronto para falar disso. Os chapades, paredes, mesetas e vales largos, a terra dura e seca mesmo nas guas, as rvores retorcidas e a erva esparsa, a vastido e o cu alto no so assunto que se trate com leviandade. Depois de uns dois ou trs copos cheios daquela cachaa de Ub que o Nelson trouxe, talvez eu me atreva.

Estou notando em mim uma certa tendncia (bem discreta, que no fundo sou conservador) a buscar formas de neutralizar alguns pronomes. Ser que sou a favor ou contra a aglutinao do portugus? Verbo flexionado ou pronome? Posio ou preposio? Complexo morfolgico ou complexo sinttico? Cames ou Houaiss? O que, meu deus, o que? Ligue para 0-900-5555 e d a sua opinio.

Seja como for, se para aglutinar e desmorfologizar, que seja moda de Goa e no de Houston, como querem alguns editores mudernos.

Tabaco e meus prprios cigarros; vinhas e meu prprio conhaque; feijo; mandioca e minha prpria farinha; porco e galinha a pasto; cabras, vacas, meu prprio queijo; um pomar e uma horta; girassol, ervilha torta e sorgo. Tudo isto cabe em dez alqueires, e sobra. Dois empregados, um trator de 40 hp, uma parablica, um telefone e estou instalado.

IIjunho/julho

O tempo gasto em preparaes nunca desperdiado.180696

Volto de So Paulo emocionalmente drenado. Antes de ir, pelo menos na noite de vspera, comeo a sentir dores de estmago, ansiedade, nervosismo generalizado; j era assim desde os tempos de Poos de Caldas. Acho que a expectativa dos conflitos que sei que vou ter de enfrentar assim que puser os ps na cidade. Bel, trabalho, trnsito, contas a pagar, barulho, excitao: sou paulistano at a ltima peptina, e aproximo-me da cidade como amante desprezado e esperanoso. Quando volto, estou esgotado. Vou precisar de uns trs dias para me recuperar.

A Marlia cresceu e est visivelmente mais carinhosa, o Lucas est mais doce que nunca.

A Bel continua a mesma.

Passei a tarde de segunda com a Fernanda: cerveja, domecq, almoo, cerveja, domecq, andanas automobilsticas meio a esmo, semi-bebedeira, muita conversa fiada, muita, muita entrelinha (pelo menos da minha parte, mas passaram recibo). Noite com a Mrcia: cerveja, domecq, janta, cerveja, domecq, andanas automobilsticas meio a esmo, semi-bebedeira, muita conversa fiada e nenhuma entrelinha, mas muita choradeira (dela) no final da noite, ou melhor, de manh ("Seu Antonico, vou-lhe pedir um favor, que s depende da sua boa vontade: necessria uma virao pr'o Nestor, que est passando por grandes dificuldades. Ele est mesmo danando na corda bamba, ele aquele que, na escola de samba, toca cuca, toca surdo e tamborim. Faa por ele como se fosse por mim"). Acho que vou ter de ir ao Rio no sbado que vem. Dependo s de ter dinheiro.

Encontrei, no meio da rua Purpurina, com um filho no ombro e outro da mo enquanto procurava o terceiro, o Walter Walto, que no via desde 1980. Ainda bem que eu no acredito em sinais, como j disse: o Walto, aquele que conheo desde antes de me casar com a Maringela, militante do PT dos velhos, uma das primeiras pessoas que me apresentaram em So Paulo, sobrinho do Z de Bi, segundo secretrio do diretrio do PT de -- quem adivinhar ganha um arroz com pequi -- Pirenpolis. Haja ceticismo...

Agora que me lembro, bem que o Z de Bi comentou que tinha um sobrinho em So Paulo. Eu devia ter adivinhado.

Voltei via Piracicaba. Cheguei s oito da noite, como quem volta para casa, e sa uma da tarde, como quem sai de viagem para voltar logo. engraado como Ityrapina continua parecendo um lugar para passar frias.

A Bea queixou-se de que eu estava reticente. Mal sabe ela o que me custa encarar minha terra.

So dez e meia da noite. Escorpio est bem acima da minha cabea, completo apesar da fumaa das queimadas dos canaviais: o horizonte est vermelho, mas no por causa da greve geral de depois de amanh; Proxima centauri queima-se em glria, com seu mistrio de vizinha. Por que ser que ainda no apontaram o Hubble para ela? Amanh, de manhzinha, comeo mais um manual de auto-ajuda, desta vez hassdico; deve ser o quinto ou sexto da minha carreira.

200696

De volta bosta de passarinho! de cachorro! O Nicolau continua de maus bofes! Segundo as estatsticas, enquanto eu estive em So Paulo, foram abertas cinqenta novas ruas! Uma Ityrapina inteira! De favelas! Estou de muito bom humor!

E no me segure do brao, que eu no sou de companhia.

Tem umas vinte crianas aqui na frente, esperando o nibus que as leva escola em So Carlos. Vinte quilmetros de ida, vinte de volta, todos os dias, algumas de manh, outras tarde, com um motorista que, como o que levava o Daniel em Pirenpolis, tem cara de quem aproveita as paradas para tomar uma zinha.

Indo almoar no La Pequetita, hoje s onze e meia da manh, descobri uma coisa terrvel: no posso andar na rua com vento de popa, o cabelo cai nos olhos e fico tropeando. Vou ter de instalar uma meia de aeroporto aqui em casa para verificar a direo do vento antes de sair de casa, ou cortar o cabelo.

Como que eu vou traduzir "soul food"? Fao uma nota antropolgica apoiada em citaes eruditas, ou mando ver ao p da letra e o editor que se vire? Quanto me esto pagando? Na biografia daquele general negro americano, como mesmo, o Colin Powell(s?), apareceu a mesma coisa, mas no me pagavam o bastante para pesquisar; e, alm disso, o editor era outro.

Instalaram meu telefone. Tive de pedir o aparelho do vizinho emprestado para testar a ligao, e aproveitei para ligar para a mame e a namorada. Mame me deu os parabns pelo novo brinquedo e a namorada perguntou se eu continuava mal humorado.

No a primeira vez que ela me v com a p virada, mas a primeira vez que fica to incomodada. Deve ser porque eu voltei de So Paulo assim.

Devo estar com depresso, ira, ressentimento, hostilidade, tdio, amargura, ansiedade, cimes e todo o resto dos estados emocionais negativos. O livro que estou traduzindo diz que vou sentir tudo isso se no fizer o que a autora manda. Ento isso.

Bem que eu desconfiava que me faltava alguma coisa na vida.

Estava no bar do Roberto discutindo a rapidez com que a carne de frango pega tempero, apoiado na minha longa experincia como cozinheiro profissional e, de repente, paf!, faz vinte anos que fui cozinheiro.

De fato, tem um buraco a nessa minha vida. Mais ou menos uns dez anos.

210696

Estou em greve.

220696

Pensei em apagar quase tudo o que escrevi nos ltimos dois dias, desde que voltei de So Paulo. A cidade me deixa em um estado tal que mal consigo articular o que estou sentindo, coisa em que j no sou l muito bom. Chego aqui e s consigo ficar olhando para o cu por uns trs dias

230696

A cada dia que passa, estando fora, sinto mais vontade de voltar logo para Ityrapina e cuidar da casa, arrancar o mato do jardim e do quintal, passear pelo cerrado.

250696

Lembro-me de um molequinho que morava em Santana, em frente ao Hospital da Aeronutica que estava em construo naquela poca e at hoje no ficou pronto. O caminho da Vigor parava diante do porto da casa dele com aquele barulho de garrafas que os caminhes da Vigor faziam e o molequinho descia o jardim em declive at a mureta baixa que marcava o comeo do abismo at a calada de pedra l embaixo, olhava para o caminho como para confirmar que era aquilo mesmo e subia de volta o jardim s carreiras, gritando: "Ugute! Ugute!".

A gente anda pela cidade e vai vendo um bar fechado atrs do outro e fica pensando como a crise est feia. Ontem, que foi segunda feira, sa noite pela primeira vez desde que estou aqui, e tome surpresa: este no aquele barzinho que estava fechado h dias? E aquele ali tambm, e l e acol (sempre quis ter um motivo para dizer que alguma coisa estava "acol": pronto, consegui). Entrei em todos, tomei uma cachaa em cada um e desvendei o mistrio: os donos trabalham durante o dia no presdio como guardas. Chegam em casa, tomam um banho, beijam a esposa e as crianas e vo abrir seus bares para reforar o oramento. Como os nicos por aqui que tm dinheiro para gastar em bar so os guardas presidirios, ficam todos vazios. Mas abertos e luminosos.

Passei a tarde em So Carlos e encontrei o av da Fernanda, o Germano Fehr, de palet e colete, na Praa dos Voluntrios, bem no centro da cidade. Parei para tomar um guaran num desses carrinhos e, quando levei a garrafa boca, l estava ele, com os olhos alm do horizonte e cara de quem estava vendo um futuro brilhante. O ambulante que me vendeu o guaran, um velhote encarquilhado e simptico, trabalhou na tecelagem l pr'os idos dos anos 50.

So Carlos at que simptica, mas meio esquisita. do tamanho de Rio Claro, mais ou menos, mas parece muito mais sofisticada. Em compensao, o centro da cidade parece aquelas cidades do sul da Bahia: comrcio amontoado, dezenas de lojinhas pequenas, vendedores como aves de rapina na porta de seus negcios, ambulantes por toda a parte. Andei umas dez quadras a esmo atrs de um restaurante e s achei lanchonetes. Quando finalmente achei um, valeu a pena: a cervejaria So Jos, com um bar que at arak, pernod e grappa tinha, r passarinho, lombo aperitivo, bauru de fil, carpaccio dna. amlia, sucos, camaro, bacalhau, bar de jacarand com topo de mrmore, cho de lajotas anos 20, cristaleiras de quatro metros de altura tambm de jacarand, vista para a praa: perfeito. Fiquei da uma s quatro, tomei uns cinco araks, sa cambaleando para encontrar o av da moa em outra praa, suei ladeira acima pela avenida So Carlos e achei um dos sebos mais bonitos que j vi no Brasil, propriedade de uma ex-vereadora do PT. P direito baixo, muito baixo, salas e mais salas limpas e bem arrumadas, mais de vinte mil ttulos separados por tema, tapetes pelo cho, belos quadros nas paredes. Comprei dois cortzar, um le carr e um clancy. Desci a avenida, feliz da vida, acenei um at logo pr'o vov e voltei de nibus.

Bela tarde.

Cheguei em casa e, por um breve momento de iluso feliz, achei que o Nicolau tinha sido levado embora, resultado talvez do Tratado de Ityrapina, firmado ontem aps longas negociaes entre as partes envolvidas. Mas logo ouvi-lhe o rosnado vindo do fundo do quintal, prometendo-me castigos terrveis assim que ele conseguir livrar-se da corrente que o prende do lado de l do Hades.

260696

Por que que comeo a fazer planos como se fosse ficar por aqui para sempre? Eu precisaria ter passado por uma enorme transformao, clandestina at para mim, para ficar na mesma casa por mais de um ou dois anos. Mas, cada vez que mudo, comeo a estender tentculos minha volta, fazendo contatos, lanando projetos, iniciando amizades, formando laos, noivando, pondo idias na cabea dos outros, comprometendo-me.

Depois, como sempre, viro as costas e deixo todo o mundo pendurado na brocha. Mas claro que todo o mundo no tem como saber que isso vai acontecer. At eu acho que no vai.

Ontem, alis, sa de casa para ir para Brotas. E acabei em So Carlos, que fica do outro lado.

Hoje dia de dar uma geral na casa: passar o ancinho na grama que cortei ontem antes que a de baixo comece a amarelar, transferir a penteadeira de um quarto para o outro, guardar as meias e camisetas, construir um raque para os sapatos, pr o quarto de pernas para o ar, varrer tudo, passar pano, limpar a bosta de passarinho da varanda, achar duas ou trs vigotas para erguer o estrado da cama, recolher a roupa suja espalhada pela casa, lavar as janelas, arrancar os galhos secos do maracuj e da primavera, trocar as lmpadas queimadas do banheiro, da sala e da cozinha, descobrir o que tem nas caixas de papelo empilhadas no quarto "das crianas", pensar em uma soluo para a tralha do Nelson empilhada na varanda, no escritrio, no quintal, no banheiro. Meu dia de Maria.

Falar, como sempre, bem mais fcil que fazer.

Quem estiver lendo isto por favor anote: preciso de cinzeiros, com urgncia. musa, traze-me um das tuas andanas!

270696

Outro moleque trancou-se com um peru bbado em uma espcie de quarto de despejo no quintal de uma casa que j no existe na rua principal de Indaiatuba. No quarto havia uma quantidade enorme de garrafas transparentes, guardadas ali sabe-se l para qual propsito obscuro. Ele ameaou quebr-las uma a uma at obter a promessa de que a vida do dipsomanaco quase smbolo do grande irmo do norte seria poupada.

Se no me falha a memria, todos em casa comeram galinha naquele natal.

Poucos meses antes, ou depois, um moleque muito parecido com o das garrafas saiu atrs de uma tia que estava voltando para So Paulo e perdeu-se na periferia que hoje fica no centro de Indaiatuba.

A rdio Estncia est tocando "If", com os Bee Gees, msica que embalou minha primeira grande paixo, por uma moa de Taubat que conheci em Bertioga. Voltei para So Paulo e fui direto para a casa de um amigo que tinha telefone e comecei a ligar para todos os nmeros em Taubat, via telefonista naquele tempo, perguntando a quem respondesse do outro lado se por acaso o senhor ou a senhora no conhece uma moa assim e assado a na cidade. Estava quase conseguindo quando o pai do meu amigo chegou e acabou com a festa.

Anos, muitos, mais tarde, fiz a mesma coisa atrs de uma moa que se tinha ido esconder no sul da Bahia, mas dessa vez o telefone era meu, e achei a fugitiva. Fui atrs dela, que ficou muito contente e vaidosa com o meu trabalho de detetive, voltou de mos dadas e abraadinha e trocando beijos comigo durante toda a viagem de Eunpolis a Braslia, mas dar, que bom, nada.

Acordei reminescente, hoje, n? Tambm, so trs da manh. o que acontece quando a gente vai para a cama s nove da noite.

Eu estava sonhando com galinhas.

Hoje comea de novo o grande circuito: Ityrapina, Rio Claro, Piracicaba, So Paulo, Ityrapina; da minha casa para a casa da mame, da casa da mame para a casa da Bea, da casa da Bea para a casa da Bel com uma extenso para a mesa da Fernanda, da mesa da Fernanda para a minha casa. muita casa e pouca mesa.

030796

Frias motorizadas. A musa no estava disponvel, e voltei para casa na segunda com o Edu, a Yara e o Dedeco, via Piracicaba, com parada para beijo na Bea, guas de So Pedro com parada para almoo, So Sebastio da Serra, Itaqueri da Serra e Ityrapina. Samos ao meio-dia, chegamos s seis e meia. Bela viagem. Os Leme ficaram de segunda at hoje. Estivemos em Analndia para almoar no restaurante do hngaro ao p da cachoeira e de l fomos encher a cara em So Carlos, na j famosa cervejaria So Jos ao p da igreja. A minha j estava razoavelmente cheia, acordei ontem de cu virado e abri o dia com dois domecqs e gua com gs no La Bambina s para dar o tom, continuei com quatro ou cinco doses auto-servidas de aguardente de ameixa no restaurante do seu Lazjos e encerrei com vrios araks com suco de laranja na So Jos. Sem contar as cervejas. Moo respeitoso, fiz questo de cumprimentar o musav na entrada e na sada.

Fui direto para a cama e a guerra fria clanciana assim que cheguei, e dormi quatorze horas direto. Estava precisando. Acordamos, fomos almoar em Cachoeira de Emas -- bonitinha, mas ordinria, e a comida no estava l essas coisas: tinha tudo para ser boa, piapara, dourado e pintado, frita, abafado e na grelha, mas estava sem graa -- um pouco para l de Pirassununga. Tentei achar pinga de alambique por l, mas depois que o terceiro dono de bar ameaou chamar a polcia, achei que no estava com tanta vontade assim, e tomei guaran mesmo.

Na volta a Ityrapina, o Edu achou que eu j estava sem trabalhar h tempo demais e resolveu encurtar as frias, e voltou para So Paulo.

Sbado chega a Cibele. vidinha social movimentada!

Quanto mais passeio pelo estado de So Paulo, mais tenho vontade de escrever aquele livro anti-ecologista que estou formando h mais de trs anos. Vou ver se conveno a Cibele a fazer algumas fotos.

Fiquei bem chateado por no ter conseguido ver a musa, e hoje me surpreendi pensando que preciso v-la com alguma urgncia, antes que ela deixe de cumprir o papel que vem cumprindo com louvor h mais de um ano.

O vento est soprando na direo errada, e o cheiro de galinha molhada da granja da estrada de Camaqu est insuportvel.

050796

Vou l ver se a Eneida depositou ou no o meu dinheiro, j volto.

No depositou, e no voltei. Acabei indo para Rio Claro, onde recebi o recado de que a Mayra me tinha telefonado de So Paulo. Amanh tem festa na casa dela. Vou ou no?

Quanto no, quanto vou, quanto volto!

070796

Se eu fizer isso de novo, no volto para contar a histria: onze horas da manh, partida de Rio Claro para Ityrapina. Parada para espera do dinheiro da Eneida e, como ele no veio, sada s quatro para So Paulo. Chegada s dez da noite, jantar com a Mayra e a Mrcia (valpolicella, hummm, fondue de queijo, hummm). Pr cama s trs da manh, alvorada s seis, telefonemas apressados s oito, sada para So Jos do Rio Pardo s duas e meia, chegada em Rio Pardo s sete da noite. Tudo isso de carona, e sem um nico centavo no bolso. Um dia eu conto como que se faz.

Uma coisa eu sei: muito bom para emagrecer.

Depois de todas essas cidades e meses, s agora percebi o que me incomoda em todas elas: a minha gerao no sai rua de noite em nenhuma delas. Esto todos em casa vendo televiso. As ruas ficam entregues adolescncia motorizada.

080796

Me leva para a tua casa, disse ela, mas eu s tinha horas e palavras para oferecer, e fomos sozinhos encontrar o tempo: rostos vagos, bares, longas fileiras de luzes, garrafas, ruas infinitas, msica de rdio, estradas escuras, pontes, gua, uma saudade impossvel de definir, a noite e suas manhs, mos e bocas, o cu estrelado sem fundo, o cu nublado impiedoso, suor e estupor, uma embriaguez terrvel e perptua e a dor onipresente, o passado inteiro a nos levar pela mo. Me leva para a tua casa, ela disse, olhando-me sem peso, e mostrei-lhe as casas todas da minha vida e os caminhos entre elas, passando o fio inteiro dos meus anos na lmina verde de seus olhos, e aos meus prprios as imagens pareceram de repente novas e frgeis e duvidei estar ali ouvindo-me, como ela me ouvia; e percorremos os parques da cidade como quem olha vitrines noite, com a neblina logo ali e a manh longnqua. Me leva para a tua casa, disse ela, e eu disse vamos de trem, chegamos depois de amanh. Me leva para casa, disse ela, e nunca quis tanto ter a minha casa.

Quero violes e uma varanda, quero nuvens distantes e a sombra dela a proteger-me do sol que ilumina o mundo em que no h nada que eu queira.

IIIjulho/agostoO cnsul parou e leu a inscrio: "No se puede vivir sin amor".