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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 6017 DIÁRIOS DE CLASSE: MATERIALIDADE DA ESCOLA PRIMÁRIA NO RIO GRANDE DO NORTE Francinaide de Lima Silva Nascimento 1 Recortes Metodológicos O presente trabalho analisa a representação da escola primária no Rio Grande do Norte a partir de Diários de Classe, registrados pelas professoras diplomadas na Escola Normal de Natal e em atuação na Diretoria de Instrução Pública nas primeiras décadas do século XX. O objetivo é coadunar-se aos estudos realizados sobre a escolarização da infância norte-rio- grandense através da qual ocorreu a configuração de uma forma e cultura escolares no âmbito dos Grupos Escolares, provedores da instrução graduada e símbolos republicanos. Utilizamos como aporte teórico-metodológico Chartier (1990), Farias Filho (2014), Julia (2001), Mortatti (2000), Magalhães (2010), Souza (2009), Teive e Dallabrida (2011) e Vidal (2006, 2010). As fontes constituem-se de Atas, Decretos, Leis, Relatórios de Instrução Pública e de Ensino, Diários de Classe (1919), encontradas no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Norte/APE-RN. Serão analisados Regimentos Internos dos Grupos Escolares (1909), o Jornal A República, a Revista Pedagogium, localizados no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte/IHGRN. E, também, a Cartilha de Ensino Rápido da Leitura (1944), de Mariano de Oliveira, compêndios e materiais escolares do período. O Diário de Classe era um documento de escrituração oficial que revela os elementos determinantes na configuração da escola primária, em geral, e sugere operações analíticas para a coleta de fontes. É uma síntese do que os mestres apresentavam aos Inspetores de Ensino e aos Diretores dos Grupos Escolares para a fiscalização obrigatória. Nele se registrava o conteúdo das disciplinas diversas lecionadas por um professor único de uma turma específica de alunos. Os demais dados, a saber: registro de matrícula, frequência e aproveitamento escolar (avaliações), inventário de mobiliário e de material didático eram assentados no Livro de Inscrição dos Grupos Escolares, no Livro de Honra (1919), bem como em Relatórios de Ensino. O Diário de Classe era preenchido de forma manuscrita e registrava dados relativos 1 Doutora em Educação/UFRN. Professora de Didática do IFRN-Campus João Câmara. E-mail: <[email protected]>.

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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 6017

DIÁRIOS DE CLASSE: MATERIALIDADE DA ESCOLA PRIMÁRIA NO RIO GRANDE DO NORTE

Francinaide de Lima Silva Nascimento1

Recortes Metodológicos

O presente trabalho analisa a representação da escola primária no Rio Grande do Norte

a partir de Diários de Classe, registrados pelas professoras diplomadas na Escola Normal de

Natal e em atuação na Diretoria de Instrução Pública nas primeiras décadas do século XX. O

objetivo é coadunar-se aos estudos realizados sobre a escolarização da infância norte-rio-

grandense através da qual ocorreu a configuração de uma forma e cultura escolares no

âmbito dos Grupos Escolares, provedores da instrução graduada e símbolos republicanos.

Utilizamos como aporte teórico-metodológico Chartier (1990), Farias Filho (2014),

Julia (2001), Mortatti (2000), Magalhães (2010), Souza (2009), Teive e Dallabrida (2011) e

Vidal (2006, 2010). As fontes constituem-se de Atas, Decretos, Leis, Relatórios de Instrução

Pública e de Ensino, Diários de Classe (1919), encontradas no Arquivo Público do Estado do

Rio Grande do Norte/APE-RN. Serão analisados Regimentos Internos dos Grupos Escolares

(1909), o Jornal A República, a Revista Pedagogium, localizados no Instituto Histórico e

Geográfico do Rio Grande do Norte/IHGRN. E, também, a Cartilha de Ensino Rápido da

Leitura (1944), de Mariano de Oliveira, compêndios e materiais escolares do período. O

Diário de Classe era um documento de escrituração oficial que revela os elementos

determinantes na configuração da escola primária, em geral, e sugere operações analíticas

para a coleta de fontes. É uma síntese do que os mestres apresentavam aos Inspetores de

Ensino e aos Diretores dos Grupos Escolares para a fiscalização obrigatória. Nele se

registrava o conteúdo das disciplinas diversas lecionadas por um professor único de uma

turma específica de alunos.

Os demais dados, a saber: registro de matrícula, frequência e aproveitamento escolar

(avaliações), inventário de mobiliário e de material didático eram assentados no Livro de

Inscrição dos Grupos Escolares, no Livro de Honra (1919), bem como em Relatórios de

Ensino. O Diário de Classe era preenchido de forma manuscrita e registrava dados relativos

1 Doutora em Educação/UFRN. Professora de Didática do IFRN-Campus João Câmara. E-mail: <[email protected]>.

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ao andamento escolar, no que toca às questões metodológicas, ressaltando conteúdos e,

quase sempre, livros, cartilhas utilizados nas lições.

Diários de Classe na Escola Primária do Rio Grande do Norte

O Diário de Classe é um registro que contribui para elucidar o cotidiano da escola

primária no Rio Grande do Norte. Constitui parte da materialidade e escrituração escolar,

assim como livros de ponto, atas, dentre outros que são fontes fundantes para esta pesquisa,

a exemplo do Livro de Honra (1919), Livro de Inscrição dos Grupos Escolares (1921).

Em linhas gerais, os Diários de Classe expressam as peculiaridades da sala de aula,

visto que registram as atividades desenvolvidas pelos professores e alunos, conteúdos e

métodos empregados, bem como os livros escolares adotados.

Fontes relevantes para o entendimento do funcionamento das escolas. Os livros de

escrituração escolar, os quais encontramos em acervos públicos norte-rio-grandenses, são

manuscritos em brochuras de capa dura, em geral com 100 páginas, e têm diferentes

finalidades: livro de inventário de mobiliário e/ou material didático; livro de ocorrências;

livro de portarias internas emitidas pela direção das escolas; livro de correspondências, livro

de ponto de professores e funcionários das escolas; livro de atas de reuniões do Conselho

Superior da Instrução Pública; livro de resultados de exames finais; livro de matrículas de

alunos; livro de registro de provas de professores para concurso público ao magistério; livro

de inventário de material de salas de aula; livro de movimentação de professores, com

nomeações, licenças e exonerações. Registros de conteúdos de ensino e atividades de classe,

foram encontrados com data relativa à década de 1920.

Trazem dados importantes para a escrita da história da alfabetização, por permitir

reflexão acerca da análise desse gênero. Estes registros escolares evidenciam a trajetória

desse suporte de registro do funcionamento das escolas, nas primeiras décadas do século XX.

Isto porque, houve preocupação em mencionar títulos de cartilhas, métodos de ensino, nem

atividades desenvolvidas pelos alunos, por exemplo. Acerca disto, podemos destacar a

menção aos seguintes materiais:

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TABELA 1 MATERIAL DIDÁTICO DA ESCOLA PRIMÁRIA – 1919

TÍTULO AUTOR PROFESSORA DISCIPLINA

Cartilha de Ensino Rápido da Leitura

Mariano de Oliveira

Alice Pereira de Brito

Josefa Botelho

Helena Botelho

Dolores Diniz

Leitura e Escrita

Nova Cartilha Analítico-Sintética

Mariano de Oliveira

Alice Pereira de Brito

Josefa Botelho

Helena Botelho

Dolores Diniz

Leitura e Escrita

Páginas Infantis Mariano de Oliveira

Alice Pereira de Brito

Josefa Botelho

Helena Botelho

Dolores Diniz

Leitura e Escrita

Fonte: DIÁRIOS DE CLASSE (1919/1921).

Nesta pesquisa são objeto de análise:

os Diários de Classe das professoras Alice Pereira de Brito, assinado

interinamente por um período específico pela professora primária Dolores

Diniz2, como também os de Josefa e Helena Botelho3;

o Diário de Classe de Helena Botelho (1919);

o Diário de Classe de Josefa Botelho (1919);

o Diário de Classe de Alice Pereira de Brito (1921), assinado pela professora

interina Dolores Diniz a partir de 04 de fevereiro de 1921.

Configurados na década de 1920 os referidos registros mostram evidências do cotidiano

da escola primária. Na capa encontram-se dados como:

a. Finalidade do livro, que informa o curso e instituição;

b. Professor primário a quem pertence;

c. Ano de registro.

A análise do registro da professora Dolores Diniz encontramos:

Diário de Classe da Cadeira Infantil Mista do Grupo Escolar “Senador Guerra”, organizado pela Professora Alice Pereira de Brito, no ano de 1921.

A abertura do referido foi realizada pelo Manoel Dantas, Diretor da Diretoria de

Instrução Pública, o qual rubrica todas as páginas. Seu texto diz o que segue: “Termo de

2 Professora prim ria diplomada em , o eto de estudo de oc a eto 2 , redigiu com lia Medeiros e Georgina Pires o Jornal das Moc as 192 -19 2 , no munic pio de aic -RN.

3 As professoras primárias Helena e Josefa Botelho eram irmãs diplomadas na primeira turma da Escola Normal de Natal; elas deram sua contribuicão à sociedade letrada norte-rio-grandense.

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Abertura. Servirá este livro de Diário de Classe da Cadeira Infantil Mista do Grupo Escolar

“Senador Guerra”, na cidade de aic , e leva no fim o Termo de Encerramento. Diretoria de

Instrução Pública, em Natal 10 de janeiro de 1921. Manoel Dantas, Diretor Geral”.

No alto de cada página, a partir da folha com numeração 2, encontra-se o seguinte

t tulo: “Di rio de lasse da adeira Infantil Mista do Grupo Escolar “Senador Guerra”, na

cidade de aic ”. É poss vel acompan ar em 4 colunas as finalidades dos registros que

demonstram as ações e atividades do sistema de ensino:

a. Horário

b. Matéria

c. Ponto a tratar

d. Demonstração

Finalizou em 24 de novembro de 1921, assinado ainda pela Professora Interina.

Termo de Encerramento. Tem este livro cem folhas, todas numeradas e rubricadas, com a rubrica Manoel Dantas, de que uso. Diretoria de Instrução Pública, em Natal 10 de janeiro de 1921. Manoel Dantas, Diretor Geral.

Das análises podemos afirmar que a Cadeira Infantil Mista funcionava em horário

intermediário entre as 10h10 e 14h00.

Os Diários de Classe eram fornecidos pela Diretoria Geral de Instrução Pública e

tinham, portanto, o mesmo padrão. Seguiam um tipo tablóide. Do ponto de vista histórico, o

“Di rio de lasse”4 se constituiu como um documento oficial, originado nas instituições

responsáveis pela educação, tais como departamentos estaduais de estatística, diretorias de

instrução pública, secretarias de educação estaduais e municipais, como também delegacias

de ensino.

De acordo com Amâncio e Cardoso (2012, p. 167), o Diário de Classe era um objeto

oficial imprescindível à escrituração escolar, devendo ser preenchido de forma manuscrita:

Cada professor era responsável por registrar dados relativos à identificação e aos processos escolares do grupo de alunos que pertenciam a sua classe. Assim, aparecem dados como, ano, classe, turno, número de alunos, nome do professor e outros profissionais da educação (como coordenadores e diretores), nome dos alunos, breve levantamento sociocultural dos pais (em alguns exemplares), dias letivos, presenças e ausências, transferências e desistências, notas, programa de ensino, áreas de ensino ou disciplinas, objetivos, conteúdos trabalhados, metodologias e, eventualmente, livros utilizados. Aparece, ainda, em alguns exemplares, o movimento de caixa escolar e entrada e consumo de material didático.

4 Ao contrário dos dados encontrados por integrantes do ALFALE, em que o t tulo “Di rio de lasse” aparece na década de 1970 (AMÂNCIO; CARDOSO, 2012), no Rio Grande do Norte as fontes evidenciam o uso do termo desde as primeiras décadas do século XX.

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No caso particular do Rio Grande do Norte, havia um documento de escrituração

escolar específico para cada finalidade. Desse modo, assinalamos como incumbência do

Diário de Classe o registro do ano, classe, curso, nome do professor, instituição, o programa

de ensino diário nos dias letivos de um ano, as disciplinas ministradas, metodologias e livros

utilizados, sobretudo, no que toca à alfabetização.

O Livro de Inscrição dos Grupos Escolares evidenciam registros como instituição

(Grupos Escolares), professores, número de matriculados por cursos e ano, frequência,

avaliações bimestrais (aproveitamento).

O programa de ensino, por curso, por seu turno, era assentado no Regimento Escolar

dos Grupos Escolares. Nesse aspecto, assinalamos, por exemplo, o Regimento Interno do

Grupo Escolar “ de Setem ro”, de Mossor -RN. Em contraponto com o da capital que

apresentava mais detalhes no que era necessário lecionar na escola primária.

TABELA 2 LIVROS RECOMENDADOS NO GRUPO ESCOLAR – 1925

TÍTULO AUTOR

Cartilha de Ensino Rápido da Leitura Mariano de Oliveira

Nova Cartilha Analítico-Sintética Mariano de Oliveira

Páginas Infantis

Cartilha Infantil C. A. Gomes Cardim

Cartilha Analítica Arnaldo Barreto

Meu Livro de Primeiras Leituras Theodoro Moraes

Meu Livro de Segundas Leituras Theodoro Moraes

Leitura Preparatória Francisco Viana

Primeiro livro de leituras morais e instrutivas oa o Kopke

Segundo, Terceiro, Quarto Livro de Leituras Morais e Instrutivas

oa o Kopke

Primeiro, Segundo, Terceiro e Quarto Livro Francisco Vianna

Saudades e Trabalho Thales de Andrade

(segundo e terceiro anos) J. Pinto e Silva

Rocha Pombo

Leituras Morais Arnaldo Barreto

es Nacionais C. A. Gomes Cardim

Alma Nova Francisco Lagreca

Velhos Azulejos Mario Sette

Cadernos de caligrafia F. Vianna

Fonte: Regimento Interno dos Grupos Escolares (RIO GRANDE DO NORTE, 1925).

Todavia, assinalamos que essa escrituração garantia o registro formal e oficial do

ensino de cada sala de aula, bem como o controle e o acompanhamento das ações

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pedagógicas por parte dos responsáveis pela educação, no âmbito da escola (diretor,

supervisor, coordenador) e para além dela (inspetores escolares, diretores da instrução

pública, representantes de secretarias de educação).

Ensino da Escrita nos Diários de Classe

No Rio Grande do Norte, e em outras unidades federativas do Brasil, os Grupos

Escolares eram as instituições que buscavam atender aos ditames da educação higiênica por

meio de instalações adequadas, de iluminação suficiente e do ajustamento de móveis

escolares. A reorganização do espaço escolar, o discurso higiênico, o reordenamento de

práticas e métodos, evidenciam o esforço republicano brasileiro no sentido de sistematizar a

escrita, em direção, à normatização do corpo (VIDAL; GVIRTZ, 1998).

A escola passa a ser o lugar próprio de enunciação, diverso dos demais espaços, para o

ensino da escrita e sua representação. A escolarização do ato de escrever implicou estabelecer

os modos de ser e fazer daquele que escreve. Era na escola que se aprendia a posição

apropriada à escrita e a forma correta de escrever, uma vez que a escrita é uma modalidade

de linguagem que possui especificidades advindas de suas condições de produção

(OSAKABE, 1995). A posição do corpo, a disposição do banco escolar e o modo de pegar a

pena deveriam ser ensinados aos alunos. A escrita vertical era a mais indicada, dado que a

tendência por parte da criança é para a escrita vertical redonda. Outro argumento era o de

que os caracteres desta escrita eram mais parecidos com os da imprensa e eram mais legíveis.

Entretanto, o argumento mais forte era o de que o aprendizado da escrita vertical se dava em

menos tempo que o da inclinada (LIMA, 1911b, p. 1).

Os educadores consideravam necessário ensinar a escrever a todo homem porque

escrever em era uma atividade til ao cidadão repu licano. onforme Lima 1911, p. 1 “[...]

a boa escrita é regular, completa, intelig vel.” Em seu exerc cio deveriam ser o servados

alguns processos a serem empregados. Um dos princípios importantes durante a escrita em

classe dizia respeito à disposição do corpo do aluno, do papel e da pena. A falta de cuidado

com esses preceitos acarretaria problemas na visão, como a miopia, ou deformações na

coluna da criança, dentre outras enfermidades.

Era conveniente, ainda, que as crianças escrevessem no quadro negro, pois neste

momento tinham a liberdade de fazer as letras do tamanho e espessura que desejassem para

desenvolver os braços e dedos. Lembrava que o mestre tinha que respeitar a criança, que

teria toda autonomia nas formas de segurar a pena a fim de evitar câimbras e tornar a escrita

bonita. Observava que a caligrafia ou a ela escrita “é feita com arte e perfeição, segundo os

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tipos esta elecidos”. Este exerc cio procurava desenvolver a aligrafia, escrita feita com arte,

recomendada na Escola Primária e que poderia ser do tipo inglesa – vertical – e francesa –

inclinada. Conforme os higienistas, a escrita inclinada era apropriada à Escola Elementar,

porque permitia a postura correta, dificultando o surgimento de problemas ortopédicos e

havia, também, a preocupação por parte dos docentes com a escrita no sentido de evitar

doenças musculares e de visão. Lima (1911a) assevera que neste período existia na Europa um

movimento em defesa do uso das duas mãos durante a escrita. O educador assinalava que

não era sem razão a campanha pela ambidestria.

No ponto de vista ortopédico, reconheceu-se por unanimidade que a escrita vertical é para a criança uma atitude normal, por causa do cotidiano deslocamento de braço. Este movimento do braço ocasiona uma fadiga muscular que torna esta escrita fatigante e muito lenta e apresenta grandes perigos para as crianças predispostas às deformações e a câimbra dos escritores. A escrita inclinada que se produz por um mecanismo mais simples e, por conseguinte, muito menos fatigante, assegura a criança uma atitude correta. É esta que convém ensinar nas escolas. No ponto de vista oftalmológico o Dr. Pechia afirma que a escrita vertical não evita mais a miopia que a inclinada. (LIMA, 1911a, p. 1).

Além de higiênica, a escrita vertical era considerada adequada à vida moderna, dado

que este tipo caligráfico, ao ser apresentado como rápido, econômico e higiênico, trazia para

o universo escolar “[...] a legi ilidade e a simplicidade do texto produzido na m quina de

escrever, oferecendo-se como mais adaptado aos signos da modernidade” VIDAL; GVIRTZ,

1998, p. 19).

Os professores defendiam o uso da chamada caligrafia muscular, em contraposição a

caligrafia vertical. A caligrafia muscular dava ênfase ao movimento, à rapidez do processo de

escrever, e não a força e a forma. A caligrafia muscular se daria a partir de exercícios

preparatórios, quando a criança era instada a apurar o controle dos movimentos da mão e do

antebraço, seja com desenhos no ar ou no papel, iniciava-se o aprendizado do traçado de

letras, palavras e frases.

A caligrafia muscular prescrevia uma escrita de tipo inclinado e sem talhe, obtida por tração e não pressão, resultado da unidade entre o movimento dos músculos do antebraço e da mão, a postura corporal do aluno na carteira, a posição levemente oblíqua do caderno, o ritmo regular do traçado da letra e a manutenção do lápis ou da pena constantemente sobre o papel. O ritmo era controlado por palmas ou canções elaboradas para o exercício. À medida que se aperfeiçoava o traço, reduzia-se paulatinamente seu tempo de execução. (VIDAL, 2003, p. 501).

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Não era somente no ensino da escrita que os preceitos de higiene deveriam ser

observados, uma vez que os problemas decorrentes da má postura envolviam outros

aspectos:

Mal se pode imaginar como se faz a oxigenação do sangue de uma criança a escrever sobre uma mesa que não está adaptada à sua altura, com o tronco todo torcido, reduzindo a sua já acanhada capacidade pulmonar, respirando o ar viciado e impuríssimo que já várias e repetidas vezes tem entrado e saído do aparelho respiratório de dezenas de crianças encerradas na mesma sala, carecendo de todo o conforto e da mais elementar higiene. (SACADURA, 1906b, p. 5).

Em Melhoramentos Técnicos do Ensino Primário e Normal, Nestor Lima (1913, p. 6)

registrou as observações sobre as Escolas Modelos Anexas às Escolas Normais em São Paulo.

onfirmou que “o mo ili rio consiste em uma mesa de pequena altura e cadeiras em redor

dispostas e da proporção dos alunos”, ou se a, fica evidente a preocupação com a educação da

infância. O Governador do Estado Alberto Maranhão assinalava a compra, pela Diretoria

Geral de Instrução Pública, de mobiliário escolar à indústria alemã. (RIO GRANDE DO

NORTE, 1910).

A escola passava a ser um lugar de interesse da indústria escolar em desenvolvimento.

A Maison Deyrolle, criada pela família Deyrolle na cidade de Paris, em 1831, fabricava e

comercializava objetos para uso na escola, como mobiliário escolar, material de laboratório e

de museu, quadros parietais, pranchas pedagógicas, dentre outros elementos que

expressavam os campos de atividade de ensino, a saber: agricultura, anatomia, zoologia,

geologia. Em um momento em que as ciências naturais, a história e geografia humana

passam a ser saberes ensinados na escola primária.

Na História da Educação a materialidade da escola se constitui como objeto e

possibilidade de análises. Carteiras, utensílios diversos, cadernetas de professores, exercícios,

provas, boletins escolares, livros de ocorrência, cadernos e trabalhos de alunos, uniformes,

quadros-negros (ou de ardósia), bibliotecas escolares, livros dirigidos ao estudante ou ao

professor, muito podem dizer sobre métodos de ensino, disciplina, currículo, saberes

escolares, formação de professores. (LOPES; GALVÃO, 2005, p. 83).

Nesse sentido, a preocupação dos mestres do magistério primário com a higiene,

mobiliário, utensílios e espaços escolares destinados as crianças estava justificada.

Repare-se na atitude arqueada em que uma criança procura ler em quadro parietais colocados em mal calculadas posições e veja-se a atitude forçada em que o aluno escreve num quadro preto de dimensões desproporcionadas à sua altura. Chegam a ser grotescas e curiosas as atitudes em que o aluno lê,

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escreve e desempenha todos os exercícios escolares. (SACADURA, 1906b, p. 5).

Lima, L., (1927) acreditava que o professor primário tinha a responsabilidade de

orientar e corrigir os maus itos dos alunos durante o per odo da infância. “Descurados do

lar, se não orientados nos jardins de infância e escolas maternais, cabe à escola primária a

correção e formação dos hábitos numa idade que, bem aproveitada, pode restringir as

consequências do inaproveitamento da fase mais pr pria e mais til” Idem, p. 7 .

Para o educador norte-rio-grandense, os mestres deveriam desenvolver uma segunda

natureza na criança, aproximando-se com estas ideias do pensamento de Rousseau (2004)

para a educação do Em lio. “O que visa o educador é corrigir uma natureza eredit ria, m ,

criando o ito que é, no vel o conceito popular, uma segunda natureza oa”. LIMA, L.,

1927, p. 29). A noção de segunda natureza, nesta concepção, aproxima-se do conceito de

habitus, postulado por Elias (2004), entendido como a incorporação do social pelos

indivíduos.

O médico higienista potiguar acentuava, também, que as mães estavam incumbidas do

exerc cio de educação das crianças: “é evidente a necessidade improrrog vel de preparar as

mães para exercer sobre esses plásticos, a influência norteadora dos bons hábitos, pois que

nisso se resume a vida deles.” LIMA, L., 1927, p. 9 .

Na tese Higiene Mental e Educação (1927, p.142) registrava que a educação de que a

escola se incumbia da aplicação da Higiene Mental e da Psicologia Experimental, disciplinas

imprescindíveis aos programas das Escolas Normais, que tem a seu cargo a preparação do

professorado. Durante a formação recomendava que fossem contemplados conhecimentos de

higiene mental, ao lado dos outros que concorriam à formação literária e técnica dos

profissionais do ensino.

Diante disso, asseveramos que os livros, a legislação e os regulamentos compõem e

construíram uma cultura escolar, como também colaboraram para a consolidação da Escola

Normal, instituição conhecida em diferentes partes do mundo. São materiais criados no

interior de projetos de formação de um número significativo de professores que destinavam-

se à instrução pública mantida pelo Estado e propostos a uma parcela expressiva de forma

gratuita e, por vezes, obrigatória.

Considerações

Diante disso, podemos concluir que os Diários de Classe visavam garantir o registro

formal e oficial das ações pedagógicas que ocorriam em sala de aula para fins internos e

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externo. Contudo, apesar das possibilidades analíticas que esta fonte enseja, ao ser

problematizada ela revela o registro do que se esperava. Ou seja, a total consonância com as

prescrições da Diretoria de Instrução Pública. Logo, o registro não garante a execução das

ações. O contrário também é válido. O que era valorizado pela cultura escolar da configuração

dada a ler nos lega a representação que temos da escola de outrora. Essas nuances

constituem-se nosso objeto de análise.

Referências

Documentos

BOTEL O, elena. Di rio de lasse. Taip , RN. 1919. BOTEL O, osefa. Di rio de lasse. Taip , RN. 1919. BRITO, Alice Pereira de. Diário de Classe. Caicó, RN, 1921.

Livros

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