dickie - teoria institucional da arte

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  • George Dickie

    A teoria institucional da arte

    Considero hoje que a verso da teoria institucional da arte que foi sendo trabalhada ao longo de uma srie de anos, e que foi apresentada de forma mais completa nos captulos I e VII de Art and the Aesthetic, se encontra errada em muitos dos seus pormenores. Creio, porm, que a abordagem institucional ao entendimento da arte vivel. Por abordagem institucio-nal refi r o-me ideia segundo a qual as obras de arte so o resultado da posio que ocupam dentro de um enquadramento ou de um contexto institucional. A teoria institucional , ento, uma espcie de teoria contex-tual. Todas, ou quase todas, as teorias tradicionais da arte so () teorias contextuais de uma espcie ou de outra. Uma difi culdade que paira sobre todas as teorias tradicionais est em que os contextos implicados por elas so demasiado fi nos para serem sufi cientes. Neste livro tentarei apresentar uma verso revista da teoria institucional, na qual os defeitos da verso ante-rior so corrigidos, proporcionando um contexto sufi cientemente espesso para levar a cabo este trabalho. Estou consciente da impossibilidade virtual de provar uma tese fi losfi ca positiva que no se encontra trabalhada em detalhe. No entanto, espero que os argumentos e as perspectivas avana-das neste livro forneam uma base de apoio sufi ciente para tornar a teoria institucional razoavelmente plausvel para ser levada a srio.

    Apercebi -me da necessidade de rever a teoria em grande parte devido s objeces levantadas pelos crticos. O cerne das mudanas resultado de eu ter levado em conta, conscientemente, as crticas de

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    Monroe Beardsley, Timothy Binkley, Ted Cohen, James Fletcher, Peter Kivy, Colin Lyas, Robert Schultz, Kendall Walton e Jeff rey Wieand. Algu-mas das alteraes so, sem dvida alguma, o resultado dos comentrios de crticos que eu levei em linha de conta de uma forma menos consciente. Estou grato a todos estes crticos.

    Antes de indicar, de um modo geral, quais so as alteraes que introduzi na teoria, ser til, em primeiro lugar, fazer um breve apa-nhado da antiga verso da teoria institucional, tal como surgiu em Art and the Aesthetic, para, de seguida, chamar a ateno para algumas das interpretaes errneas de aspectos da verso anterior, algumas das quais podem muito bem reincidir com esta nova verso, a no ser que sejam impedidas antecipadamente. Algumas destas interpretaes errneas so devidas a um mero tresler, mas muitas outras so provavelmente devidas a uma falta de clareza da minha escrita.

    O resumo da antiga verso pode comear com a defi nio de obra de arte que foi dada em Art and the Aesthetic.

    Uma obra de arte, em sentido classifi cativo, (1) um artefacto (2) com um conjunto de aspectos que fez com que lhe fosse conferido o estatuto de candidato apreciao por parte de alguma pessoa ou pessoas, agindo em nome de uma certa instituio social (o mundo da arte).

    Em primeiro lugar, a defi nio pretende dar um sentido classifi ca-tivo a obra de arte, o que deve ser distinguido de um sentido avaliativo do termo. Algumas das teorias tradicionais da arte integram o valor na noo de arte. Embora eu no negue que arte e obra de arte possam ser usados de um modo avaliativo, acredito que h que desenvolver uma teoria da arte que seja mais bsica e classifi catria.

    Em segundo lugar, a primeira condio para haver arte, especifi cada pela defi nio, a artefactualidade. () Ziff e Weitz negaram que tenha de haver qualquer condio para haver arte. E negaram especifi camente que ser um artefacto um requisito da arte. A sua rejeio da artefactualidade parece ir contra todas (ou virtualmente todas) as teorias tradicionais da arte, assim como contra o ponto de vista vulgar das pessoas em geral. A teoria institucional tenta, neste caso, defender o ponto de vista vulgar.

    Em terceiro lugar, a segunda condio para haver arte, especifi cada pela defi nio, pretende distinguir aqueles artefactos que so obras de

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    arte do domnio dos objectos que no so arte. Grosso modo, o que esta condio diz que as obras de arte so aqueles artefactos que tm um conjunto de propriedades que adquiriram um certo estatuto no interior de um enquadramento institucional particular chamado o mundo da arte. Mais ainda, a defi nio afi rma que o estatuto adquirido ao ser conferido por algum e que conferido por algum que age em nome do mundo da arte.

    Volto -me agora para as ms interpretaes da verso antiga da teoria institucional. Alguns leitores entenderam -me mal, julgando que estava a utilizar a expresso o mundo da arte para me referir aos grupinhos chi-ques do gnero que Tom Wolfe discute em Th e Painted World: os grupos poderosos que tm tanto para dizer sobre quais os quadros que devem ser expostos, qual a msica que deve ser tocada, e assim por diante. No entanto, eu no estava nem estou de todo preocupado com a poltica do sucesso na cena artstica, mas antes com a natureza da arte e o tipo de contexto que exigido para a sua criao. Este tipo errado de leitura no tem qualquer base de sustentao.

    Um nmero ainda maior de leitores pensou, erradamente, que eu concebo o mundo da arte como um corpo formalmente organizado, quem sabe se de uma espcie que tem os seus encontros e que precisa de atingir um certo qurum para poder fazer negcio. A minha inteno, porm, foi explicar o mundo da arte como constituindo a prtica cul-tural ampla e informal que eu acho que ela . Esta interpretao errada deveu -se, em larga medida, ao uso que fi z das expresses conferir a e actuar em nome de na minha defi nio de obra de arte, expresses que fazem logo pensar em corpos ofi ciais que fazem e levam a cabo decises polticas. Alm disso, muitas das analogias que usei envolviam a aco de organizaes formais (um Estado, uma universidade e assim por diante). Foram provavelmente estas analogias que me seduziram a usar aquelas expresses e noes que estas facilmente induzem em erro. Um mal -entendido semelhante levou alguns leitores a conclurem que eu pensava que o mundo da arte, agindo como um todo, que faz a arte, ou que tal acontece pelo menos em alguns casos. A minha inteno foi a de defender que, habitualmente, as obras de arte so feitas por pessoas individuais ou que, em alguns casos, a arte feita por grupos de pessoas, como, por exemplo, quando um grupo de pessoas faz um fi lme. A minha inteno foi defender que o mundo da arte como um todo o pano de

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    fundo diante do qual a arte criada. De novo, foi o meu uso de conferir a e de agir em nome de que facilitou o mal -entendido. Teria sido muito melhor que eu tivesse escrito sobre artistas que trabalham tendo o mundo da arte como pano de fundo do que sobre artistas que agem em nome do mundo da arte. Foram alguns dos comentrios de Beardsley em Ser a Arte essencialmente institucional? que me ajudaram a ver esta mistura confusa de linguagem formal e informal presente na minha descrio do mundo da arte. Alm disso, na defi nio referi-me a alguma pessoa ou pessoas agindo em nome do mundo da arte. Aparentemente, alguns leitores tomaram o uso do plural pessoas como se estivesse a referir-me ao mundo da arte como um todo, o que signifi caria que o mundo da arte como um todo cria obras de arte ou, pelo menos, que o mundo da arte como um todo tem de aceitar um objecto antes de este poder ser um objecto de arte. A minha inteno ao usar pessoas foi referir -me a grupos de pessoas que criam obras de arte, como acontece, habitualmente, quando se fazem fi lmes. Eu no tinha a inteno de me referir ao mundo da arte como um todo, e decerto no era minha inteno defender que a aceitao do mundo da arte necessria para se fazer arte.

    Para o ltimo mal -entendido que aqui gostaria de comentar, eu prprio forneci, infelizmente, imensa munio. Em Art and the Aesthetic, escrevi, vrias vezes, que a arte um estatuto conferido e, outras vezes ainda, que o que conferido o estatuto de candidato apreciao. Apesar de ter a afi rmado, explicitamente, que falar em conferir o estatuto de arte era apenas uma abreviao para a concesso do estatuto de candidato apreciao, esta forma de escrita iludiu, compreensivelmente, muita gente.O que agora poder complicar ainda mais a situao que, apesar de eu abandonar a noo de conferir o estatuto de candidato apreciao, neste livro pretendo manter a ideia de que ser uma obra de arte um estatuto. No entanto, a perspectiva da arte como um estatuto, que pretendo agora defender, concebe este estatuto, no como algo que conferido, mas como algo que conseguido de outra forma.

    Nos comentrios sobre este ltimo mal -entendido, chamei a ateno para uma alterao que ser feita pela teoria presente neste livro, nomea-damente, o abandono da noo de candidatura conferida apreciao. Contudo, antes de prosseguir com o tpico geral das alteraes teoria que tm de ser feitas, deixem -me chamar a ateno para uma alterao ocorrida em formulaes anteriores da teoria. A primeira formulao

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    da defi nio institucional de obra de arte rezava: Uma obra de arte no sentido descritivo 1) um artefacto 2) sobre o qual a sociedade, ou um subgrupo da sociedade, conferiu o estatuto de candidato apreciao. Cedo percebi que esta formulao sugeria fortemente que a arte seria criada por um grupo social agindo como um todo, sendo esta uma con-cluso que no fazia parte das minhas intenes. Consequentemente, modifi quei a segunda condio para que se lesse sobre o qual uma pessoa ou pessoas, agindo em nome de uma certa instituio (o mundo da arte), conferiu o estatuto de candidato apreciao. Mas infelizmente acabei por reforar a expresso agindo em nome de, j de si demasiado formal, tendo, assim, fornecido ainda mais razes para o mal -entendido.

    Permitam -me que regresse agora ao tpico das alteraes que tm de ser feitas teoria. A primeira mudana digna de nota no tanto uma alterao na teoria, mas antes uma mudana de perspectiva sobre a relao entre a teoria institucional e os escritos de Arthur Danto sobre a natureza da arte. Desde que o li pela primeira vez, sempre considerei o artigo de Danto O mundo da arte como um trabalho importante e estimulante. Durante muito tempo, achei que a teoria institucional seria uma espcie de desenvolvimento directo das concepes de Danto sobre o mundo da arte. Aps a publicao de Obras de arte e coisas reais e de A transfi gurao do lugar-comum, apercebi -me de que as duas perspectivas no estavam to prximas como eu pensava. Nos dois ltimos artigos, Danto sustenta que o ser sobre [aboutness] uma condio necessria para as obras de arte. Ou seja, ele defende que necessrio que haja um contedo semntico para que algo seja uma obra de arte. Resumindo, Danto mantm que uma obra de arte tem de ser sobre algo. Portanto, na ptica de Danto, se houver alguma instituio envolvida na natureza e criao da arte, ela tem de ser de natureza lingustica ou semntica. Pelo contrrio, a perspectiva institucional, tal como eu a concebi, sustenta que a instituio relevante especifi camente artstica, isto , trata -se de uma instituio ou de uma prtica cuja funo especfi ca a criao de arte, o que no envolve necessariamente a categoria da linguagem. Ambas as perspectivas utilizam a expresso o mundo da arte, embora tal designe coisas muito diferentes. O que h de comum entre a perspectiva de Danto e a teoria institucional a tese segundo a qual as obras de arte esto imersas num enquadramento ou contexto essenciais e de considervel espessura. Ambas as teorias especifi cam contextos ricos, embora difi ram

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    largamente quanto natureza do contexto. Devo sublinhar que adoptei o argumento de Danto sobre os objectos -visualmente -indistinguveis, segundo o qual, se existirem dois objectos visualmente indistinguveis e um for uma obra de arte e o outro no, ento dever haver algum contexto ou enquadramento no qual a obra de arte est inserida e que responde pelos diferentes estatutos dos dois objectos. Este argumento no revela, claro est, a natureza do contexto.

    O que certamente verdade que o O Mundo da Arte de Danto inspirou a criao da teoria institucional da arte.

    Finalmente, dirijo -me para as alteraes particulares que tm de ser feitas neste livro. Em Art and the Aesthetic, dediquei a maior parte da minha ateno e do espao do livro segunda condio da defi nio, a condio que se centra sobre o conferir do estatuto de candidato apreciao, prestando muito menos ateno condio do artefacto. Havia duas razes para esta relativa falta de ateno. Em primeiro lugar, apesar da minha tentativa para recusar a perspectiva de Weitz e de outros, segundo a qual a artefactualidade no um requisito para ser uma obra de arte, eu considerava a condio da artefactualidade como algo evidente. Consequentemente, a minha tentativa de refutao foi mnima. Mas a verdade que sero necessrios mais argumentos e mais comentrios para trazer superfcie aquilo que Weitz, entre outros, estavam a tentar fazer e para mostrar que o que parece falso para uns parece virtualmente auto -evidente para outros. A segunda razo para dedicar to pouco espao artefactualidade que, nessa altura, parecia -me que tudo aquilo que realmente interessava estava contido na segunda condio. Mas esta segunda razo est errada.

    Uma dos resultados do facto de ter dado um tratamento desigual s duas condies consiste em ter dado a impresso de que as duas condies no estavam muito relacionadas entre si e que a artefactualidade tinha menos importncia. Na nova verso da teoria, toda a abordagem feita atravs da condio da artefactualidade e, apesar de a nova defi nio reter a forma das duas partes, ir fi car evidente que as duas partes esto intimamente relacionadas.

    Um outro resultado da minha falta de ateno em relao primeira condio foi tirar a concluso precipitada de que a artefactualidade era algo que podia ser conferida, assim como pode ser conseguida pela obra. Em Art and the Aesthetic, exprimi algumas dvidas sobre esta concluso.

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    Foi a sugerido que talvez se devesse encontrar outra maneira para resolver os problemas que, supostamente, seriam resolvidos pela artefactualidade conferida, nomeadamente, o problema de saber como Fonte devia ser entendida como um artefacto de Duchamp. Mas agora parece -me que a artefactualidade no , pura e simplesmente, o tipo de coisa que pode ser conferida e que Fonte e os seus congneres devem ser percebidos, enquanto artefactos de artistas, como sendo o resultado de uma espcie de trabalho mnimo por parte de tais artistas. Determinar o que ser esta espcie de trabalho mnimo pode ser controverso. Uma vantagem adicional desta alterao est no facto de o requisito do trabalho mnimo funcionar como um factor limitador da pertena classe das obras de arte, um factor que, como muitos fi zeram notar, est ausente da antiga verso. De acordo com esta nova verso, claro que nem tudo pode ser uma obra de arte.

    Mencionei anteriormente que a noo de candidatura conferida apreciao seria abandonada na nova verso. O abandono desta pers-pectiva resulta de duas coisas. Uma a aceitao da crtica feita por Beardsley, segundo a qual alguma da linguagem que eu estaria a usar para tentar descrever os vrios aspectos do mundo da arte seria dema-siado formal para corresponder ao tipo de instituio em que eu estava a pensar. Especifi camente, a crtica de Beardsley defendia que o mundo da arte concebido por Art and the Aesthetic no seria uma instituio do gnero que confere estatutos. Uma outra razo para abandonar o estatuto conferido de candidatura reside na nova nfase dada artefactualidade. Na nova verso, o trabalho posto na criao do objecto contra o pano de fundo do mundo da arte que estabelece que tal objecto seja uma obra de arte. Consequentemente, no h necessidade para qualquer tipo de concesso de estatuto, quer se trate do de candidato apreciao, quer do da artefactualidade. O nico tipo de estatuto que continua a ser con-templado pela teoria o estatuto de ser arte, o qual atingido pelo uso criativo de um meio. A propsito, talvez valha a pena mencionar aqui que, ao falar do estatuto de ser arte, no quero que pensem que estou a sugerir que o objecto que usufrui deste estatuto seja por isso mesmo valioso, seja em que grau for. Aqui, como anteriormente, estamos a ensaiar uma explicao do sentido classifi cativo de obra de arte.

    A ltima alterao que quero aqui salientar consiste numa mudana de atitude em relao ao chamado problema da circularidade. Em Art and

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    the Aesthetic, admiti alegremente que havia uma circularidade envolvida na defi nio a formulada. Na nova verso, nada admitido, a circularidade envolvida na teoria est explcita. Mais ainda, na nova verso, no dada apenas uma defi nio, mas toda uma srie de defi nies entrelaadas. O entrelaamento das defi nies justifi ca -se pelo facto de os objectos por elas focados constiturem um sistema inter -relacionado e complicado.

    No que resta desta introduo, irei discutir alguns dos pressupostos da teoria institucional da arte. Pressuposto pode no ser a palavra certa em alguns dos casos, mas, em qualquer caso, irei discutir temas que, de uma forma ou de outra, so fundacionais no que se refere teoria.

    O primeiro princpio da teoria institucional o de que qualquer fi lsofo da arte deve ser capaz de tomar em linha de conta os desenvolvi-mentos que ocorrem no mundo da arte. Isto no signifi ca que o fi lsofo deva acreditar que tudo o que um artista diz verdadeiro ou que tudo o que um artista faz tem signifi cado para a fi losofi a da arte. No existe, por exemplo, qualquer garantia de que tudo o que um artista diz ser uma obra de arte seja, de facto, uma obra de arte. Um fi lsofo da arte, porm, deve considerar seriamente os desenvolvimentos que ocorrem no mundo da arte, isto porque o mundo da arte o seu domnio principal e os desenvolvimentos que ocorrem no seu interior (em especial, os mais radicais) podem ser particularmente reveladores.

    Em segundo lugar, parto do princpio de que os tericos tradicionais da arte estavam certos no modo como concebiam o domnio dos objectos sobre os quais teorizavam. Os tericos da imitao podem estar errados ao pensar que todas as obras de arte so imitaes, mas tm razo em pensar que as pinturas, os poemas, as peas de teatro e os outros objectos de arte constituem as coisas com as quais se deviam ocupar. Collingwood podia estar errado quando pensava que as obras de arte estavam locali-zadas entre as orelhas e que as peas de Shakespeare no eram obras de arte, mas tinha razo ao se concentrar sobre o domnio certo, mesmo quando se referia a uma parte desse domnio como arte falsamente assim chamada. Em resumo, assume -se aqui que a teoria da arte se ocupa com um certo tipo de artefacto. Uma vez que este pressuposto foi recentemente posto em dvida por, Weitz e por outros autores, acho que devo dizer algo como forma de justifi car este princpio.

    Um terceiro princpio o de que a teoria da arte se dedica ao sentido classifi cativo, neutro quanto ao valor, da noo de obra de arte. Isto

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    signifi ca que algo pode ser uma obra de arte e no ter qualquer valor, ter um valor mnimo, ter um valor mximo, ou estar algures na escala entre os dois. Ser obra de arte no garantia de valor ou de um qualquer grau de valor. Por outras palavras, uma teoria da arte no deveria ter como resultado tornar redundante a expresso boa arte ou fazer com que a expresso m arte seja autocontraditria. Ambas as expresses so usadas para dizer coisas importantes e a teoria da arte deve refl ectir isso mesmo. Ao afi rmar que a teoria sobre um sentido de obra de arte que neutro quanto ao valor, no se quer dizer seno aquilo que foi agora mesmo indicado.

    A controvrsia quanto ao princpio do sentido classifi cativo deriva de duas fontes. Em primeiro lugar, alguns usos da expresso obra de arte so laudatrios, e alguns tericos tomaram estes usos como bsi-cos. Mas existe uma classe de objectos mais vasta, que inclui as obras desprovidas de valor, as indiferentes e as medocres, bem como as obras boas e excelentes. E uma vez que todas estas obras so arte, o domnio bsico da fi losofi a da arte deve ser constitudo por esta classe mais vasta. Se algum quiser teorizar sobre a subclasse dos objectos de arte valiosos, muito bem, embora isso no signifi que que esse seja o nico conjunto de objectos que vale a pena considerar. A segunda razo por que uma teoria classifi cativa tem sido to controversa est em que talvez alguns tenham confundido a actividade de produzir arte com as obras de arte produzi-das. A actividade de produzir arte , claramente, uma actividade valiosa. Mas nem todos os produtos de uma actividade valiosa precisam de ser valiosos, embora, como evidente, uma certa percentagem tenha de o ser. Uma teoria classifi cativa lida tanto com o produto valioso como com o produto desprovido de valor. Talvez seja bom notar que a primeira de todas as teorias da arte a teoria da imitao uma teoria classifi cativa. claro que, de acordo com a perspectiva avaliativa associada teoria, ser uma boa imitao torna a arte boa. Mas talvez seja de presumir que para ser uma obra de arte sufi ciente (e necessrio) ser uma imitao.

    O ltimo princpio a ser aqui realado o de que fazer arte algo que est ao alcance de quase toda a gente. No uma actividade altamente especializada, como o a fsica nuclear, que est vedada queles que no possuem um certo grau de capacidades matemticas. So necessrias vrias capacidades primitivas para fazer arte, bem como a capacidade para entender a natureza da empreitada. Estas capacidades e este entendi-

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    mento esto ao alcance de crianas muito novas. claro que a criao de obras -primas requer capacidades de uma espcie que poucos conseguem atingir, mas as obras -primas constituem apenas uma parte diminuta da classe de artefactos com os quais a teoria da arte se ocupa.

    A natureza institucional da arte

    O ataque incisivo que Monroe Beardsley fez teoria institucional pro-porciona um bom ponto de partida para uma discusso sobre a natu-reza institucional da arte.1 Em contraste com a concepo institucional da arte e do artista, Beardsley prope o que ele chama uma concepo romntica do artista um artista que trabalha e produz arte isolado de quaisquer instituies. claro que ele no pensa que todos os artistas trabalham num tal isolamento, mas desde que pelo menos um o possa fazer, Beardsley acha que a teoria institucional falsa. Beardsley carac-teriza o artista romntico do seguinte modo:

    Retirado na sua torre de marfi m, refractrio a todo o contacto com as instituies econmicas, governamentais, educacionais e outras instituies da sua sociedade, () ele vai trabalhando nas suas telas, talha a sua pedra, retoca as rimas e a mtrica da sua preciosa lrica claro que no podemos negar que uma instituio que fornece electricidade ao artista romntico, que o seu papel ou a tela tm de ser manufacturados, que os seus prprios pensamentos sero em certa medida, moldados pela linguagem adquirida e pela aculturao prvia. Mas nada disto interessa para o ponto em apreo, segundo o qual (nesta verso) ele poder fazer uma obra de arte, e valid -la como tal, pelo seu prprio poder originador livre. E esta tese que tem sido explicitamente contestada, em anos recentes, por aqueles que sustentam que a arte essencialmente institucional.2De certo modo, aquilo que eu quero defender, contra Beardsley,

    que, apesar de um artista se poder retirar do contacto com vrias das instituies da sociedade, ele no pode retirar -se da instituio da arte

    1 Is art essentially institutional?, in Culture and Art, Lars Aagaard -Mogensen, ed., Nova Jrsia: Atlantic Highlands, 1976, pp. 194 -209.

    2 Ibid. p.196.

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    porque ele transporta -a consigo, tal como Robinson Crusoe transportou consigo a sua inglesidade durante toda a sua estadia na ilha.

    Beardsley no est a defender a concepo romntica da arte, mas antes a argumentar contra vrias verses particulares da perspectiva institucional, achando -as todas inadequadas. Consequentemente, tudo o que Beardsley diz pode ser verdade e a perspectiva romntica ser falsa, se uma qualquer verso ainda no formulada da teoria institucional, ou qualquer outra teoria no -romntica, se revelar verdadeira.

    Beardsley comea o seu ataque s teorias institucionais formulando dois princpios, cada um dos quais, segundo defende, exprime uma con-dio sufi ciente para a arte ser essencialmente institucional.

    Se a existncia de uma instituio for includa entre as condies de verdade de A uma obra de arte, ento as obras de arte so objectos essen-cialmente institucionais.

    Se a existncia de alguma instituio for includa entre as condies de verdade de esta obra de arte tem a propriedade P, sendo P uma propriedade normal das obras de arte, ento as obras de arte so objectos essencialmente institucionais.3

    Beardsley acha que o segundo princpio se aplica a perspectivas como a seguinte: as obras de arte pertencem a gneros e pertencer a um gnero uma propriedade institucional, logo, as obras de arte so institucionais. Vou ignorar este princpio e as teses relacionadas com ele porque ele no diz respeito questo realmente bsica da institucionalidade da arte.

    Beardsley acha que o primeiro princpio deve ser o princpio de uma teoria institucional como a minha. Mas h vrios problemas com a tese de Beardsley. Em primeiro lugar, o nome A no antecedente do primeiro princpio ambguo. Ele pode estar a referir -se a um qualquer objecto particular ou a todos os membros da classe das obras de arte. Mas tem de ser entendido de acordo com a segunda hiptese porque, de outro modo, ele carece da generalidade necessria para suportar a consequente, que tem a forma de uma generalizao universal. Vou assumir que Beardsley quer que A seja entendido desta forma geral. Em segundo lugar, Bear-dsley formulou o primeiro princpio apenas em termos de uma condio

    3 Ibid., p.197.

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    sufi ciente, embora a minha teoria sustente que a institucionalidade uma condio tanto necessria como sufi ciente. Ele enuncia o primeiro princpio desta forma mais fraca, presumivelmente, porque ele quer for-mular dois princpios, cada um dos quais sufi ciente e porque, se fosse demonstrado que a institucionalidade no uma condio sufi ciente, isto mostraria que ela no necessria e sufi ciente. Mas ainda que Beardsley tivesse demonstrado que o primeiro princpio falso, ele no teria demonstrado que a institucionalidade no uma condio necessria para a arte. E, como evidente, teria de demonstrar que a institucionalidade no necessria de modo a poder demonstrar que a perspectiva romntica verdadeira. Como foi referido antes, Beardsley no est a argumentar de modo positivo em favor da perspectiva romntica. Mais ainda, ele no tenta demonstrar que a institucionalidade enquanto tal no sufi ciente, mas antes que algumas das explicaes tericas da institucionalidade, em particular, no demonstraram que ela seja sufi ciente. Consequentemente, mesmo que tudo o que Beardsley diz seja verdade, ainda assim ele no demonstrou que a institucionalidade, em dada forma, no sufi ciente.

    De seguida, irei referir e aceitar algumas das crticas que Beardsley faz minha teoria, corrigindo, desse modo, a minha concepo da natureza institucional da arte. Em segundo lugar, concentrar -me-ei na concepo do artista romntico, de Beardsley, de modo a us -la como contraponto no desenvolvimento de uma explicao da natureza institucional da arte.

    Antes de iniciar uma discusso sobre a noo de artista romntico, ser til considerar uma observao muito importante feita por Beardsley. Ele distingue entre o que chama de instituies -tipo e instituies--instncia. Por instituio -tipo ele entende uma prtica comum, tal como construir ferramentas, contar histrias, o casamento e outras prti-cas semelhantes. Por instituio -instncia ele entende uma organizao como a General Motors, a Columbia Pictures, a Igreja Catlica Romana, e outras semelhantes.4 As instituies -instncia executam o gnero de acti-vidades que so especifi cadas por instituies -tipo. claro que algumas instituies -tipo (prticas) podem existir sem as instituies -instncia (organizaes).

    4 Ao dar estes exemplos de tipos e de instncias, no estou a tentar fazer uma correlao entre os vrios tipos e instncias particulares que constam das duas listas de exemplos. No pretendo, por exemplo, a rmar que a General Motors a instncia de que fabricante -de -ferramentas o tipo.

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    Beardsley utiliza a distino entre instituio -tipo e instituio--instncia para criticar um aspecto da minha teoria. Ele cita a defi nio de obra de arte proposta em Art and the Aesthetic, que reza do seguinte modo: Uma obra de arte, em sentido classifi cativo, (1) um artefacto (2) com um conjunto de aspectos que fez com que lhe fosse conferido o estatuto de candidato apreciao por parte de alguma pessoa ou pes-soas, agindo em nome de uma certa instituio social (o mundo da arte). Beardsley levanta um certo nmero de questes sobre vrios elementos da defi nio, mas, de momento, apenas me interessa um. Ele aponta o facto de eu caracterizar a instituio do mundo da arte como uma prtica estabelecida, o que, na sua terminologia, a torna uma instituio -tipo. Ele faz notar que a defi nio contm expresses como conferido, estatuto e actuar em nome de, que habitualmente encontram aplicao no mbito de instituies -instncia (a Universidade do Illinois, o governo dos Esta-dos Unidos e outras semelhantes). Para Beardsley, a difi culdade est no facto de o mundo da arte, tal como eu o concebi, no ser uma instituio--instncia mas uma prtica. Pergunta Beardsley: faz sentido falar em agir em nome de uma prtica? Uma instituio que confere estatutos pode centrar -se numa instituio -instncia, mas s prticas enquanto tais parece faltar o requisito da fonte de autoridade. possvel que o mundo da arte, tal como Dickie o concebe, no possa conferir estatuto.5

    Penso que Beardsley est completamente certo sobre este ponto. A formulao que fi z da teoria institucional no coerente. As expresses retiradas da defi nio que esto em questo so demasiado formais e apenas so apropriadas para grupos do tipo que Beardsley denomina por instituies -instncia. Estas expresses levaram -me a fornecer descries inexactas do mundo da arte e de algumas das suas funes. Por exemplo, tentei fornecer explicaes para o modo como se confere o estatuto de candidato apreciao no mundo da arte. Parece agora claro que a acti-vidade de criar arte no envolve qualquer acto de conferir. No entanto, se a teoria institucional que eu formulei anteriormente no est correcta, tal no implica que nenhuma formulao de uma teoria institucional possa estar correcta, nem que a perspectiva romntica da arte seja verdadeira. Posto de uma forma muito geral e sem qualquer elaborao, o que agora designo como teoria institucional da arte a viso segundo a qual uma

    5 Op. cit., p. 202.

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    obra de arte arte por causa da posio que ocupa dentro de uma prtica cultural, ou seja, como evidente, dentro de uma instituio -tipo, na terminologia de Beardsley.

    Jeff rey Wieand apurou e ampliou os comentrios de Beardsley sobre as instituies ao distinguir entre instituies -aco e instituies -pessoa.6 As instituies -aco so certos tipos de actos, como o acto de prometer e outros semelhantes. Estes gneros de aces esto sujeitos a regras que todos os que nelas participam entendem. As instncias de uma instituio--aco so as execues particulares desse tipo de aces. As instituies--pessoa so organizaes que se comportam como quase -pessoas ou agentes, como o fazem, por exemplo, a Igreja Catlica ou a General Motors. Habitualmente, alguns membros escolhidos da organizao agem em nome dela. As instituies -pessoa podem participar em instituies--aco, como quando uma organizao promete fazer algo. Em vista dos afi namentos de Wieand, o que agora quero dizer que fazer arte uma instituio -aco e no envolve, de uma forma essencial, qualquer instituio -pessoa. claro que muitas instituies -pessoa museus, fundaes, igrejas e outras tm relaes com a produo de arte, mas nenhuma instituio -pessoa essencial produo de arte.

    Agora que j aceitei as crticas de Beardsley e de Wieand, permitam--me regressar concepo de arte e de artista romnticos, proposta por Beardsley como a anttese perspectiva institucional. Uma discusso em torno da perspectiva romntica ser til para formular a perspectiva institucional com mais algum detalhe e para a tornar plausvel. claro que a descrio do artista romntico feita por Beardsley foi enunciada tendo em mente a minha anterior exposio da teoria institucional, mas este facto no afecta o confl ito que subsiste entre a concepo romntica e o ponto de vista institucional em geral. Mas exactamente sobre que que divergem os dois pontos de vista? Beardsley tem toda a razo quando afi rma que o facto de a sociedade fornecer electricidade, telas, papel, ou outras coisas semelhantes, a um artista, irrelevante para a questo de saber se a sua arte de natureza romntica ou institucional. Mas Beardsley junta a estas irrelevncias o facto de os prprios pensamentos [de um artista] serem, em certa medida, moldados pela sua linguagem adqui-rida e pela aculturao anterior. Por detrs desta ideia fugaz do moldar 6 Jeffrey Wieand, Can there be an institutional theory of art?, Journal of Aesthetics and Art Criticism,

    39 (1981), pp. 409 -417.

  • 125A teoria institucional da arte | George Dickie

    dos pensamentos, esconde -se o tema que divide a teoria institucional e a teoria romntica. Que a nossa sociedade nos fornea certos tipos de pensamentos pode ser comparado ao fornecimento de electricidade ou de telas, mas o fornecimento de outros tipos de pensamentos algo muito diferente. Vale a pena olhar mais de perto para as semelhanas e para as diferenas.

    Se Beardsley se est a referir ao modo como o ambiente cultural capaz de moldar os nossos pensamentos sobre, por exemplo, a justia social, as atitudes raciais, os costumes sexuais, as aces governamentais, a afectividade humana e outros temas semelhantes (os quais constituem o gnero de coisas que pode tornar -se tema para a arte), ento o facto de um artista possuir estes pensamentos, culturalmente derivados, no momento em que produz a sua arte irrelevante para a questo de saber se a sua arte essencialmente institucional. E no penso que algum possa ter suposto que este tipo de pensamentos relevante. Se, no entanto, os pensamentos culturalmente derivados que o artista possui no forem apenas pensamentos sobre os temas prprios da arte, mas pensamen-tos sobre a prpria arte, ento tudo diferente e h bons motivos para pensar que a arte que ele cria essencialmente institucional. claro que nem todo o pensamento sobre um objecto que um objecto de arte relevante neste contexto. Por exemplo, no me refi ro aqui a pensamentos sobre objectos que, apesar de serem obras de arte, no so reconhecidos como arte pela pessoa que est a ter esses pensamentos. Uma pessoa que se esteja a lembrar ou a refl ectir sobre um artefacto antigo sem perceber que se trata de uma obra de arte, est a ter pensamentos sobre arte, mas de um gnero irrelevante. Uma pessoa que observe Fonte e depois refl icta sobre ela sem saber, de algum modo, que se trata de uma obra de arte, outro exemplo de pensamentos sobre arte que no constituem um caso relevante. Os pensamentos relevantes sobre a arte so pensamentos sobre objectos que so reconhecidos como arte pela pessoa que os est a ter, so pensamentos sobre a actividade da produo de arte e outros semelhantes. Numa palavra, os pensamentos relevantes so pensamentos que envolvem um certo grau de entendimento do conceito de arte. So, como foi referido antes, pensamentos sobre a prpria arte. Se os artistas criam obras de arte, pelo menos em parte, por causa dos pensamentos do gnero relevante sobre arte que derivaram da sua linguagem e da sua aculturao, ento est aberta a possibilidade para o facto de a existn-

  • 126 Arte em teoria | uma antologia de esttica

    cia de algo a que podemos chamar a instituio da arte poder ser uma condio para essas obras serem obras de arte.

    Surgem aqui, naturalmente, certas questes: 1) como que os pen-samentos relevantes sobre arte funcionam na experincia do artista e 2) o que se quer dizer quando se afi rma que estes pensamentos sobre arte envolvem algo a que podemos chamar a instituio da arte? Em resposta primeira questo, h que dizer que os pensamentos sobre arte funcionam de duas maneiras. De um lado do espectro, podem assumir a forma de pensamentos conscientes sobre a prpria arte, como quando os dadastas, os criadores de happenings, ou outros semelhantes, criam as suas obras. Do mesmo lado do espectro, esto aqueles que criam arte de uma forma tradicional e que, numa dada altura do processo criativo, se apercebem conscientemente de que o seu trabalho se encaixa na categoria arte. Do outro lado do espectro, os pensamentos sobre arte nunca ocorrem cons-cientemente na mente durante o processo criativo, mas os artistas fazem as suas criaes em resultado da sua exposio prvia a vrios exemplos de arte, do seu treino nas tcnicas artsticas e do conhecimento de fundo geral que tm da arte. Acabamos de responder primeira questo: os pen-samentos sobre a arte podem funcionar consciente ou inconscientemente, tal como ocorre com os pensamentos sobre inmeros outros domnios. Em resposta segunda questo, pode afi rmar -se que os pensamentos sobre arte envolvem algo a que podemos chamar a instituio da arte porque os referidos artistas empregam tais pensamentos, consciente ou inconscientemente, como um enquadramento dentro do qual trabalham. No fi nal deste captulo () tentarei explicar com mais detalhe a natureza deste enquadramento.

    Ser que a arte pode ser criada fora do gnero de enquadramento que sugeri? Creio que Beardsley pensa que tal possvel e que essa a tese implcita na sua noo de artista romntico. O modo como ele faz a descrio do artista romntico, porm, no parece contrariar efi caz-mente a perspectiva institucional porque no claro o que Beardsley quer dizer quando afi rma que os prprios pensamentos do artista sero, em certa medida, moldados pela sua linguagem adquirida e pela acultura-o anterior. Se nos basearmos agora no que acaba de ser dito sobre os pensamentos sobre a arte, podemos fazer com que a sua noo de artista romntico se torne efi cazmente contrria perspectiva institucional, se entendermos o livre poder originador do artista para criar obras de arte

  • 127A teoria institucional da arte | George Dickie

    como sendo uma capacidade de criar obras de arte independentemente do enquadramento dentro do qual os artistas trabalham, enquadramento que habitualmente adquirido atravs da experincia de obras de arte, do treino nas tcnicas artsticas, do conhecimento de fundo sobre a arte, entre outras coisas semelhantes. Depois de apurar a concepo do artista romntico, muito difcil imaginar que um tal ser possa existir nos dias de hoje. Como que algum com mais de dois ou trs anos de idade pode escapar ao conhecimento dos elementos bsicos do enquadramento? Pintores primitivos como Grandma Moses no so qualifi cveis como artistas romnticos. No se trata de pessoas com uma total ignorncia sobre a arte. Trata -se de pessoas que tm um conhecimento bsico sobre a arte, apesar de poderem desconhecer muitas das tcnicas artsticas e dos feitos mais recentes dos crculos artsticos avanados. Portanto, a ocorrncia de um artista romntico parece ser, no mnimo, muito pouco plausvel. Ainda assim, e apesar da implausibilidade de tal acontecimento, pode parecer que a emergncia de um artista romntico logicamente possvel. Podemos imaginar um membro de uma tribo primitiva, despro-vido de qualquer concepo sobre a arte, ou at um membro da nossa prpria sociedade, que se encontra to isolado em termos culturais que um completo desconhecedor da arte. concebvel que qualquer um destes indivduos, subitamente, venha a possuir e a empregar o tipo de enquadramento a que me refi ro, da resultando a produo de uma obra de arte a partir de quaisquer materiais que tenham mo. bvio, no entanto, que esta experincia de pensamento no sufi ciente para demonstrar que uma obra de arte possa ser criada independentemente do enquadramento atrs esboado, pois est a retratar a produo de arte como ocorrendo no interior do contexto de um enquadramento artisti-camente especfi co. O que esta experincia de pensamento demonstra, de facto, que logicamente possvel que a arte, juntamente com o seu enquadramento, tenha uma ocorrncia romntica. Acabo de distinguir duas coisas, ambas apoiadas pela perspectiva de Beardsley: 1) a ocorrncia do artista romntico e 2) a ocorrncia romntica da instituio da arte. bastante implausvel que algo com a magnitude de uma instituio perfeitamente desenvolvida possa ocorrer espontaneamente. A nossa preocupao aqui, porm, no a de saber se logicamente possvel que a instituio da arte, no seu todo, possa surgir de repente, mas antes saber se a arte pode ser criada independentemente de um enquadramento, i.e.,

  • 128 Arte em teoria | uma antologia de esttica

    saber se pode dar -se a ocorrncia de um artista romntico. A questo a de saber se se pode criar uma obra de arte apenas atravs do exerc-cio daquilo que Beardsley designa como o nosso prprio livre poder originador. Tal como a tenho vindo a interpretar, a noo de artista romntico, proposta por Beardsley, abre a possibilidade de a produo de arte poder ser totalmente, pelo menos em alguns casos, o produto de uma iniciativa individual, um processo que poderia ocorrer num vcuo cultural. Vamos supor que uma pessoa que ignora totalmente o conceito de arte (o membro de uma tribo primitiva ou o indivduo culturalmente isolado que referi anteriormente, por exemplo) e que desconhece qualquer tipo de representaes faz um dia uma representao de algo a partir do barro. Sem querer diminuir a importncia da criao de uma representa-o sem precedentes, uma tal criao no seria uma obra de arte. Ainda que o criador da representao reconhea, certamente, o objecto como sendo uma representao, ele no tem as estruturas cognitivas nas quais o poderia inserir, de modo a entend -lo como arte. Qualquer um pode cometer o erro de identifi car a arte com a representao (uma identifi ca-o profundamente inculcada) e concluir, portanto, que a representao arte. Mas, assim que rejeitamos esta tentao, podemos perceber que o criador da representao no capaz de reconhecer a sua criao como arte e que, portanto, ela no pode ser arte. No devemos confundir este caso com aquele outro, discutido anteriormente, do artista que cria arte sem ter, conscientemente, o pensamento de que est a criar arte, pois essa pessoa podia ter o pensamento relevante. No caso em questo, a pessoa que cria a representao no pode ter o pensamento ou pensamentos relevantes porque lhe faltam as estruturas cognitivas relevantes. A arte no pode existir no vcuo sem contexto requerido pela perspectiva de Beardsley. Ela s pode existir numa matriz cultural, enquanto produto de algum que cumpre um papel cultural.7

    Parece inconcebvel, portanto, que o artista romntico pudesse alguma vez ter existido, ou que venha a existir no futuro. Contudo, apesar de o artista romntico, i.e., algum que cria arte sem um enquadramento, parecer ser inconcebvel, algum pode, no entanto, pensar que a prpria instituio da arte tenha de ter tido um incio romntico, pois, de outro modo, ela nunca teria comeado. A implausibilidade de ver a institui-

    7 Mais adiante, neste captulo, desenvolverei este ponto com mais detalhe.

  • 129A teoria institucional da arte | George Dickie

    o da arte surgir de repente, com o seu inventor actuando maneira de um doador -da -arte prometeico (com o enquadramento includo) um embarao para a explicao romntica da arte e das suas origens. Mais ainda, perfeitamente razovel pensar que a arte no teve o incio instantneo pretendido pela tese da origem romntica. A arte pode ter emergido (e, sem dvida, emergiu) de um modo evolutivo, a partir das tcnicas originariamente associadas s actividades religiosas, mgicas e outras semelhantes. No incio, essas tcnicas deviam ser, sem dvida, mnimas e os seus produtos (diagramas, cnticos, etc.) seriam rudes e desinteressantes em si mesmos. Com a passagem do tempo, as tcnicas ter -se -iam apurado e passaram a existir especialistas, e os seus produtos teriam passado a ter caractersticas com algum interesse (para os seus criadores bem como para os outros) para alm do interesse que teriam como elementos da actividade religiosa, ou de qualquer outra actividade na qual estivessem inseridos. mais ou menos a partir deste momento que comea a fazer sentido dizer que a arte primitiva comeou a existir, se bem que aqueles que possuem essa arte ainda no disponham de uma palavra para a designar.

    O facto de ser possvel explicar os comeos da arte sem recorrer a uma origem romntica no signifi ca, como bvio, que no existiram quaisquer origens romnticas. No entanto, a implausibilidade de que algum sem formao possa, de repente, ter alcanado e utilizado o gnero de enquadramento que tenho vindo aqui a discutir, criando desse modo a instituio da arte de um s golpe, algo que custa muito a engolir. Quero sublinhar, de novo, que o tema da origem romntica da instituio da arte no a principal questo que me separa de Beardsley. A questo fundamental a de saber se poder existir um artista romntico, i.e., algum que cria arte independentemente de um enquadramento.

    Existe, contudo, algo na noo de Beardsley da origem romntica da instituio da arte que tem de ser tratado. O originador romntico, tal como eu o descrevi, um indivduo complexo, e essa complexidade que torna implausvel a sua existncia. mais plausvel pensar no que poderamos chamar os proto -artistas romnticos, i.e., pessoas cujas aces deram incio a certas prticas que, no decurso do tempo, conduziram a algo reconhecvel como uma instituio da arte. Estou aqui a pensar em aces como o uso de um certo pigmento para colorir um objecto tradicional ou uma representao tradicional, aco que faz realar o

  • 130 Arte em teoria | uma antologia de esttica

    objecto ou a representao. O tipo de aces que tenho em mente pode ser identifi cado com o apuramento de tcnicas ou o desenvolvimento de especialistas, de que falei anteriormente. O efeito cumulativo de tais actos de iniciativa individual pode, em certas circunstncias, conduzir, por fi m, criao da instituio da arte. O gro de verdade presente na concepo que Beardsley faz do artista romntico pode, portanto, ser incorporado na teoria institucional, sem que isso obrigue a aceitar toda a concepo.

    possvel, e at mesmo provvel, que, por artista romntico, Beardsley esteja a querer referir -se ao tipo de indivduo a que acabo de chamar proto -artista romntico. Entendido desta maneira, o artista romntico seria o indivduo que concebe um objecto porque gosta de uma, ou at mais do que uma, das suas caractersticas: representativas, expressivas ou estticas, por exemplo. De acordo com Beardsley, o objecto assim criadoseria uma obra de arte. Segundo esta interpretao, a perspectiva de Beardsley consideraria como obra de arte o primeiro artefacto que d in-cio particular cadeia de eventos que ir resultar no sistema de um mundo da arte. Ora, afi rmei anteriormente que a aco do gnero de indivduo concebido por Beardsley se situa, sem dvida, no comeo do desenvol-vimento que ir ter como resultado um sistema no interior do qual so criadas as obras de arte. No entanto, a perspectiva institucional defende que s mais tarde, no decurso da cadeia de eventos em considerao, se torna razovel afi rmar que existem obras de arte, nomeadamente, a partir do momento em que se tenham estabelecido certos papis relativamente criao e ao consumo de tais artefactos.

    Aps ter tentado lidar com o desafi o representado pela teoria do artista romntico, devo agora enfrentar um tipo radicalmente diferente de oposio, a saber, a concepo de arte de Timothy Binkley uma perspectiva que, at certo ponto, assume uma abordagem semelhante teoria institucional.

    Binkley comea o seu Deciding about Art, afi rmando que, tal como Duchamp demonstrou, de modo a poder criar uma obra de arte, apenas necessrio especifi car o que a obra de arte.8 Perto do fi m do seu artigo, ele faz a seguinte afi rmao, insistindo em que no se trata de uma defi nio, mas antes de uma descrio do estado actual das

    8 Em Culture and Art, ibid., p. 92.

  • 131A teoria institucional da arte | George Dickie

    instituies artsticas: Uma obra de arte uma pea especifi cada no mbito de convenes artsticas indexantes.9 Munido da especifi cao na sua verso de uma teoria da arte semelhante institucional, Binkley prossegue com um ataque conjunto a todas as teorias da arte tradicionais. O seu argumento que para cada uma das defi nies tradicionais da arte existir sempre algo cuja defi nio exclui como no sendo arte. Binkley ento especifi ca que esse algo que a teoria tradicional afi rma no ser arte uma obra de arte. E defende que, desse modo, capaz de refutar cada uma das teorias tradicionais.

    No entanto, Binkley diz que a minha teoria institucional da arte no derrotada por esse argumento.10 Contudo, ele dirige vrios outros argumentos contra a minha perspectiva. Como muitos outros fi zeram, Binkley ataca a minha noo de artefactualidade conferida, por a con-siderar inadequada. Como j me retratei sobre este ponto, e como os seus comentrios no acrescentam novas questes, no irei comentar este assunto. Ele tambm defende que a teoria institucional est errada ao incorporar a noo de candidatura apreciao na defi nio de arte. Penso que Binkley tem razo quando afi rma que a candidatura apreciao no tem lugar na defi nio de obra de arte, mas [irei deixar esta questo para mais tarde].

    Binkley tem ainda uma terceira objeco contra a minha verso da teoria institucional. Como j referi, ele concorda com a abordagem ins-titucional geral, quando esta defende que algo arte por causa do lugar que ocupa no mundo da arte, mas pe em questo que a noo da concesso de estatuto designe com exactido o modo como algo alcana um lugar no ndex das obras de arte.11 Eu nunca pretendi defender, como esta citao pode fazer crer, que a artisticidade ela mesma seria um estatuto conferido, mas antes que ao conjunto dos aspectos de um artefacto (uma obra de arte) que se atribui estatuto. O estatuto suposta-mente conferido foi o de candidato apreciao e no o de artisticidade. Infelizmente, algumas passagens do meu livro davam a impresso de que eu pensava que era o estatuto de arte que estava a ser conferido. A minha inteno era defender que so necessrios dois requisitos para

    9 Ibid., p. 107.

    10 Ibid., p. 99.

    11 Ibid., p. 102.

  • 132 Arte em teoria | uma antologia de esttica

    haver arte: 1) a artefactualidade e 2) o facto de ter sido conferido o esta-tuto de candidato apreciao a alguns aspectos do artefacto por algum membro do mundo da arte. A minha tese a de que a concesso de um estatuto est envolvida na produo da arte, mas tambm que isso ape-nas uma parte da histria. De acordo com a minha anterior perspectiva, a artisticidade era conseguida em resultado de duas aces ocorridas no contexto do mundo da arte: a criao de um artefacto mais um acto de concesso. Nos casos em que estava supostamente envolvida a concesso de artefactualidade, e isto segundo a perspectiva anterior, a artisticidade era alegadamente conseguida em resultado de dois actos diferentes de concesso de estatuto no contexto do mundo da arte.

    A crtica fundamental de Binkley consiste em perguntar se a noo de concesso do estatuto de arte diferente da noo da especifi cao do estatuto de arte. Para ele, especifi car a explicao correcta para a produ-o de arte e, se a concesso diferente disso, ento est errada. Sustenta, assim, que as duas so diferentes e que, portanto, a ideia de concesso no a explicao correcta para a produo de arte. Binkley oferece mais algumas crticas acutilantes contra a ideia de produo de arte como con-cesso de estatuto, mas, uma vez que eu no defendo que a produo de arte uma espcie de concesso de estatuto, as suas crticas erram o alvo. Em todo o caso, na minha discusso do artigo de Beardsley j concedi que a noo de concesso de estatuto no desempenha qualquer papel na criao de arte. Falta ainda ver, porm, se a especifi cao da verso que Binkley faz da abordagem institucional , ou no, adequada.

    O que signifi ca exactamente especifi car algo como arte? Binkley escreve que O xito na especifi cao no uma questo de saber se algum um artista, mas antes de saber se algum conhece e sabe usar as convenes especifi cadoras existentes, ou ento se sabe estabelecer convenes novas.12 Este comentrio diz -nos que a especifi cao da arte envolve o uso de certas convenes existentes. Que convenes so estas? Binkley d um exemplo que envolve as aces de um artista tradicional: O simples facto de ter utilizado a conveno artstica da pintura sobre tela assegura que aquilo que ele especifi ca como sendo a pea ser arte.13 No caso de no ter fi cado claro nesta passagem, a conveno artstica da

    12 Ibid., p. 98.

    13 Ibid., p. 106.

  • 133A teoria institucional da arte | George Dickie

    pintura sobre tela idntica a uma especifi cao de arte. A pintura sobre tela uma maneira de especifi car como arte. de supor que tambm se possa especifi car como arte, pintando sobre madeira, esculpindo a pedra, e de muitas outras formas. A somar s convenes tradicionais do gnero que citei, em que uma pessoa executa uma aco com alguns materiais, existe, segundo Binkley, aquilo a que irei chamar especifi cao simples. A especifi cao simples ocorreu, de acordo com Binkley, quando Robert Barry fez uma obra de arte dizendo (especifi cando) que ela seria todas as coisas que eu conheo mas sobre as quais no estou a pensar neste momento 1:36 p.m.; 15 de Junho 1969, Nova Iorque. Assim, segundo Binkley, todas as coisas que Robert Barry conhecia, mas sobre as quais no estava a pensar naquele momento especfi co, tornaram -se uma obra de arte. Creio que Binkley tambm pensa que a especifi cao simples foi usada quando Duchamp fez a Fonte. No fi m do seu artigo, Binkley defende que pode tornar tudo o que existe no universo arte por especifi cao simples, eliminando desse modo o problema de monitori-zar aquelas coisas no universo que so arte e aquelas que o no so. (A especifi cao simples no deve ser confundida com a especifi cao que feita pelos arquitectos, ou, por vezes, pelos escultores, de obras que iro ser fabricadas por outros, ou casos semelhantes. Esta ltima especifi cao pode ser parte de um processo que produz uma obra de arte, enquanto se supe que a especifi cao simples capaz de produzir uma obra de arte s por si.)

    Que as obras de arte so produzidas quando se pinta sobre uma tela ou quando se talha um pedao de pedra no precisa, creio eu, de defesa, embora algo mais deva ser dito sobre tudo isso. Ns podemos, por exemplo, pintar sobre uma tela e no criar uma obra de arte, como quando algum contratado apenas para preparar telas e as pinta com gesso. Binkley diz -nos que pintar sobre uma tela, quando tal feito por conveno, tem como resultado uma obra de arte. Mas, ao certo, o que que est envolvido na conveno? Ele menciona a tradio cultural e a inteno de que algo feito para consumo artstico, mas no acrescenta mais nada.14 Todavia preciso que nos diga algo mais do que isso, em especial quanto aos casos em que est envolvida a especifi cao simples e em que, na produo de arte, apenas est envolvido o uso de convenes.

    14 Ibid., p. 101.

  • 134 Arte em teoria | uma antologia de esttica

    Uma vez que mais nada nos dito relativamente s convenes que so usadas na produo de arte, ser til olharmos com ateno para o modo como Binkley justifi ca o facto de coisas como a pea de Robert Barry (a que Binkley d o nome de Arte Conceptual) serem obras de arte. Escreve Binkley:

    no sei que mais dizer seno que so feitas (criadas, realizadas, ou seja o que for) por pessoas que so consideradas artistas, que so tratadas pelos crticos como arte, que so referidas em livros e em revistas que tm a ver com arte, que so expostas em galerias de arte, ou tm relaes com elas, etc. A arte conceptual, como toda a arte, est situada no interior de uma tradio cultural a partir da qual se desenvolveu Os mesmos crticos que escrevem sobre Picasso e sobre Manet escrevem sobre Duchamp e sobre Barry.15

    A primeira coisa a notar relativamente a esta justifi cao que Binkley trata a Fonte de Duchamp e a pea de Barry como se fossem exactamente do mesmo tipo. Elas so, porm, muito diferentes uma da outra: para comear, a Fonte uma obra de arte visual (sem querer com isto dizer que se reduz apenas quilo que captado pelo olhar) ao passo que a pea de Barry no o .

    A pea de Barry nem sequer um tipo de arte como Th e Wasteland um poema ou Guerra e Paz um romance. Se Binkley tiver razo, trata -se de arte que transcendeu a necessidade de um meio e que, portanto, no pode ser arte de um tipo particular. A Mona Lisa foi produzida tendo como meios a tinta e a tela, Th e Wasteland e Guerra e Paz, pena, tinta e palavras e a Fonte teve como meio artstico um urinol. A pea de Barry, no entanto, no tem qualquer meio. No foi produzida a partir de nada. Foi, apenas, especifi cada. O facto de a pea de Barry no ser algo fsico no tem aqui qualquer signifi cado. A pea de Binkley que o universo , evidentemente, algo fsico. Mas no podemos dizer que os Pensamentos ou o Universo (se que os posso intitular) foram produzidos, tal como o foram a Mona Lisa ou a Fonte (embora o grau de produo envolvido na criao da Fonte seja absolutamente mnimo). Portanto, a Fonte no , ao contrrio do que pensa Binkley, um caso de arte conceptual, se por arte conceptual entendermos aquela que feita por simples especifi cao. Alm disso, a Fonte um arte-

    15 Ibid., p. 95.

  • 135A teoria institucional da arte | George Dickie

    facto da criao de Duchamp, ao passo que os Pensamentos e o Universo no so artefactos de ningum. Esta diviso coloca a Fonte do lado da Mona Lisa, de Th e Wasteland e de Guerra e Paz, o que lana luz sobre algumas diferenas importantes. Resta -nos ainda a questo de saber de que forma uma simples especifi cao supostamente capaz de criar arte.

    O argumento de Binkley que sustenta que os Pensamentos de Barry, e outras obras do mesmo estilo, so arte, como vimos, que tais obras so criadas por artistas reconhecidos, so tratadas como arte pelos crticos, escreve -se sobre elas nas revistas de arte e, fi nalmente, so desenvolvidas a partir de uma tradio cultural. Binkley tem toda a razo quando afi rma que qualquer fi lsofo que queira construir uma fi losofi a da arte tem de olhar para as prticas efectivas dos artistas, as afi rmaes dos crticos, etc. Daqui no se segue, contudo, que o fi lsofo tem de levar a srio tudo o que fazem os habitantes do mundo da arte. Temos de ver um pouco para alm da superfcie das coisas para percebermos o que est realmente a acontecer. Em primeiro lugar, nem tudo o que criado por um artista (ou um canalizador) necessariamente um objecto de arte (ou uma pea de canalizao). Do mesmo modo, s porque algo tratado como se fosse uma coisa de um certo tipo (arte), isso no signifi ca necessariamente que se trata de uma coisa desse tipo. provvel que Binkley concordasse com estes comentrios, embora eu ache que ele responderia dizendo que um artista que trabalhe dentro da tradio cultural de que ele fala capaz de criar arte por simples especifi cao porque o artista assim o quer. Criar arte por simples especifi cao parece, assim, no ser mais do que ter a inteno de fazer arte e dizer que algo arte. Mas ser que ter a inteno de fazer algo e dizer que tal foi conseguido sufi ciente para conseguir tal coisa? Austin ensinou -nos que, por vezes, como quando, dadas certas condies de partida, o padre declara um casal marido e mulher. Mas ser que a tradio cultural de fazer arte assim to semelhante tradio cultural de realizar um matrimnio? A produo de arte sempre teve no seu centro o trabalho com um meio. Aprender a ser um artista signifi ca aprender a trabalhar com um ou outro meio tinta, pedra, palavras, tons. Durante centenas de anos, milhares de pessoas aprenderam a usar um meio e, desse modo, a fazer arte. At que um dia Duchamp usou um urinol como meio, um pouco como um escultor usa um pedao de pedra e consegue ( justa) fazer uma obra de arte. Dessa forma, adicionou -se um meio novo e surpreendente ao arsenal dos artistas. Impressionados com o

  • 136 Arte em teoria | uma antologia de esttica

    feito de Duchamp, Barry e muitos outros aparentemente decidiram que, se Duchamp conseguiu criar arte trabalhando com um meio como o urinol, ento tambm eles seriam capazes de criar arte sem qualquer meio. Penso que no chega afi rmar que o conhecimento sem pensamento de Barry um meio. Barry no trabalha o seu conhecimento sem pensamento, do mesmo modo que Binkley tambm no trabalha o universo, eles apenas se referem a estas coisas de uma forma invulgar. Duchamp, pelo menos, fez com que o urinol mudasse de stio e fosse exibido no interior da moldura do mundo da arte. Duchamp no fez muito em termos de capacidade aplicada, mas pelo menos fez algo com algo. Barry e Binkley apenas fazem referncia a algo. As aces de Duchamp e de Binkley so, de certo modo, semelhantes, mas pertencem, basicamente, a gneros muito diferentes. A aco de Duchamp consiste num acto de fazer, ao passo que a de Barry apenas um acto de apontar para algo. A fractura que divide as duas aces marca a diferena entre fazer arte e o simples dizer que se est a fazer arte. Duchamp consegue permanecer dentro da tradio cultural de que fala Binkley, mas Barry, ao tentar (ou ao preten-der) perpetuar essa tradio cultural, passa -lhe completamente ao lado. Haver, sem dvida, quem queira defender que, com Pensamentos, Barry est apenas a tentar ampliar (e acaba por consegui -lo) a tradio cultural, de certo modo como ela foi ampliada quando se acrescentou outro actor ao drama grego ou quando os artistas comearam a usar tintas acrlicas. Mas que faceta da tradio cultural ampliada com Pensamentos? No se acrescenta nem se altera qualquer meio. De facto, Barry abandona aqui todos os meios. (A propsito, no estou aqui a tirar quaisquer concluses sobre as actividades de Barry para alm de Pensamentos.)

    Binkley questiona a minha malograda noo de artefactualidade conferida, perguntando se o baptismo sufi ciente para transformar algo num artefacto. Ele acha que bvio que o baptismo no sufi ciente, e eu acho que ele tem razo.16 E tambm bvio que referir -se a uma coisa com uma qualquer inteno no transforma essa coisa numa obra de arte.

    Chegados a este ponto, talvez seja til fazermos um apanhado das concluses a que fomos chegando ao longo deste captulo.

    Vimos que a noo de Beardsley do artista romntico, quando reve-lado aquilo que ela implica, encerra algumas difi culdades substanciais.

    16 Ibid., p. 100.

  • 137A teoria institucional da arte | George Dickie

    O falhano da abordagem de artista romntico mostra que os artistas produzem arte apenas como resultado de terem estado em contacto com exemplos de arte (sabendo o que eles eram), terem sido treinados em tcnicas artsticas, terem um conhecimento de fundo da arte, ou algo parecido. Resumindo, os artistas produzem arte em resultado de se terem inserido num enquadramento complexo que foi desenvolvido ao longo da histria. Creio que neste gnero de enquadramento que Binkley est a pensar quando fala da tradio cultural e das convenes da produo de arte. Binkley est, portanto, orientado no sentido certo. A sua verso da perspectiva institucional, porm, envolve algumas difi culdades: 1) ele acha que a artefactualidade no necessria s obras de arte, i.e., que a simples especifi cao sufi ciente para criar arte e 2) ele no tem prati-camente nenhuma explicao a dar sobre a natureza das convenes que esto supostamente envolvidas na produo de arte.

    Agora o que preciso dizer algo mais sobre o enquadramento juntar algo sobre a razo por que um enquadramento essencial para que um objecto seja arte e sobre a natureza e os detalhes do enquadramento que so essenciais para que um objecto seja arte.

    Uma vez que j se disse muito de substancial sobre a razo pela qual o enquadramento essencial, irei comear por este ponto. O falhano da noo do artista romntico mostrou a necessidade de uma espcie de enquadramento para a criao de arte. Para alm do argumento que gira em torno da noo de artista romntico, existe um outro argumento que, tanto quanto sei, remonta a Th e Artworld, de Danto, e que usado nos dois artigos que se lhe sucedem. O argumento centra -se sobre pares de objectos visualmente indistinguveis, um dos quais uma obra de arte e outro no : a Caixa Brillo de Warhol e uma caixa Brillo comum, um abre -latas que obra de arte e outro que no , o quadro O Cavaleiro Polaco e um objecto produzido acidentalmente que muito parecido com ele. A esta lista podemos acrescentar a Fonte e um urinol que seja seu gmeo mas que no uma obra de arte.

    O que cada um destes pares nos mostra que no so apenas as carac-tersticas visuais dos objectos que os transformam em objectos de arte, uma vez que a obra de arte visualmente indistinguvel de um objecto que no uma obra de arte. Este facto demonstra que o objecto que uma obra de arte deve estar inserido numa espcie de enquadramento (que no visvel aos olhos, do mesmo modo como as cores dos objectos, por

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    exemplo, so visveis aos olhos), que o responsvel por ele ser uma obra de arte. Este argumento no exclui a possibilidade de ser a posse de uma propriedade no -natural (no -relacional) aquilo que transforma em obra de arte um dos objectos visualmente indistinguveis. Parece ser impossvel derrubar esta perspectiva misteriosa. Contudo, uma vez que ningum leva a srio esta perspectiva, no me irei ocupar dela aqui. A propsito, com alguns pequenos ajustamentos, o argumento dos Objectos -Indistinguveis tambm se aplica fora do domnio dos objectos visuais.

    Em Th e Artworld, o enquadramento ou contexto usado por Danto como uma explicao para o facto de um membro de um par indistin-guvel ser uma obra de arte, enquanto o outro no . Nos artigos poste-riores, Danto usa o facto de um dos membros do par ser uma obra de arte enquanto o outro no o , como um argumento para a necessidade do contexto. Este o argumento que estou aqui a usar.

    Algumas pessoas manifestaram dvidas sobre o argumento por ele fazer uso do par Fonte, pois defendem que Fonte no , de facto, uma obra de arte, ou que no claro que seja uma obra de arte. Consequentemente, tm a sensao de que, com o par Fonte, o argumento nunca chega a pegar. Mas, felizmente, o argumento no est necessariamente ligado ao par Fonte. O caso real do par Caixa Brillo ou o caso hipottico de O Cavaleiro Polaco, ou outro qualquer caso hipottico, so sufi cientes para fazer com que o argumento ganhe asas. Alm disso, o argumento pode ser modifi cado de modo a funcionar tambm com o par Fonte mesmo que a Fonte no seja uma obra de arte. No preciso que Fonte seja uma obra de arte para que seja demonstrada a necessidade de um contexto. Basta que, em qualquer altura, uma pessoa se engane (embora no de uma forma insana) ao pensar (ou ao poder pensar) que Fonte uma obra de arte. O contexto no qual Fonte, aparentemente, tem lugar, explicaria, neste caso, o engano. E, como evidente, tem havido muita gente a pensar que Fonte uma obra de arte.

    Creio que todas as teorias da arte tradicionais se comprometeram com uma determinada espcie de enquadramento, embora no tenham feito dele o centro da sua refl exo. Consideremos, por exemplo, o caso da teoria da imitao. A perspectiva segundo a qual a arte imitao tem implicaes que seguem em duas direces: na direco de algum que cria a imitao e na direco do tema retratado. Portanto, para a teoria da imitao, a obra de arte existe no enquadramento proporcionado pelo

  • 139A teoria institucional da arte | George Dickie

    artista e pelo tema, embora a teoria no esclarea se o enquadramento existe apenas para a criao de uma dada obra de arte num tempo espec-fi co ou se o enquadramento persiste ao longo do tempo de tal modo que o mesmo enquadramento serve de pano de fundo para a criao de muitas obras. Alm disso, a teoria no esclarece se o prprio enquadramento pode ser a inveno de um originador (romntico) ou se o enquadramento persiste como uma matriz cultural permanente para certos artistas. Con-sideremos um outro exemplo. Se, como defende Langer, a arte a criao de formas simblicas do sentir humano17, ento as obras de arte deveriam existir dentro de um enquadramento que seria bastante semelhante ao da teoria da imitao. A criao de formas aponta no sentido de um criador, e as formas simblicas do sentir humano no sentido de um certo tema especfi co. Aqui, o enfoque dirigido to fortemente para o alegado tema da arte (o sentir humano), que o restante enquadramento pressuposto para a criao de arte virtualmente ignorado. Deste modo, e tal como com a teoria da imitao, a natureza do enquadramento fi ca por explorar. Creio que possvel demonstrar que todas as teorias tra-dicionais da arte pressupem um certo tipo de enquadramento para a criao de arte, embora nem sempre de uma forma to directa e simples como nos casos da teoria da imitao e da teoria de Langer. A inteno destes comentrios sobre as teorias tradicionais mostrar que a noo de um enquadramento que torna possvel a criao de arte, embora no tenha sido desenvolvida, tem estado sempre presente ao longo de toda a teorizao sobre arte.

    At a teoria de Beardsley admite a existncia de um enquadramento mnimo, pois, se um artista romntico criou uma obra de arte, ento a obra deveria estar em relao com o artista que a criou. Contudo, a teoria pressupe que, se um artista romntico criou uma obra de arte, ento o prprio enquadramento teria sido inventado ou criado de novo com a criao da obra de arte. Sobre este ponto, uma diferena importante entre a teoria de Beardsley e as teorias tradicionais, como a teoria da imitao, est em que estas ltimas nunca esclarecem se o enquadramento criado instantaneamente ou se ele visto como uma coisa persistente, ao passo que, na perspectiva de Beardsley, quando um artista romntico cria arte, o pouco enquadramento que possa haver criado nesse instante. claro que

    17 Feeling and Form, Nova Iorque, 1953, p. 40.

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    a perspectiva de Beardsley no rejeita a possibilidade de, uma vez criado, o enquadramento poder fazer parte da cultura, persistindo ao longo do tempo como matriz para a criao de arte. Pelo menos, preciso que haja um enquadramento que persista ao longo do tempo. Ao tirar esta conclu-so, fui para alm da questo de saber porque que um enquadramento essencial para que um objecto seja uma obra de arte e passei questo sobre a natureza do enquadramento que torna a arte possvel conclu, nomeadamente, que um tal enquadramento deve persistir ao longo do tempo. Que mais pode ser dito sobre a natureza do enquadramento?

    Tomarei como ponto de partida para o desenvolvimento de um enquadramento adequado o tipo relativamente simples de enquadra-mentos que se acham envolvidos na teoria da imitao e na teoria de Langer. Tal como foi mencionado anteriormente, os enquadramentos de tais teorias consistem num agente (um artista) e num tema. Tambm deve ser realado que estes enquadramentos so daqueles que persistem ao longo do tempo e no daqueles que so criados instantaneamente pelo agente. Em ambos os casos, a aco imitativa do agente pode ser vista como cumprindo um papel cultural.

    Comearei a minha descrio do enquadramento com uma sub-traco: a descrio no precisa de incluir uma explicao para um tipo especfi co de tema ou um tema de qualquer tipo. Parto do princpio de que, nesta fase j to avanada, no preciso de refutar os argumentos da teoria da imitao, da teoria de Langer ou de qualquer outra das teorias tradicionais, segundo os quais ter um tema uma caracterstica essencial da arte. Tentei demonstrar [antes] que o argumento, mais recente e sofi s-ticado, de Danto, segundo o qual a arte necessariamente sobre algo, o que uma forma de dizer que a arte tem de ter um tema, falso.

    Algo mais deve ser dito sobre a perspectiva de Danto, segundo a qual o papel das teorias artsticas tornar o mundo da arte, e a arte, possvel, pois, se este argumento for verdadeiro, ento teremos de encon-trar um lugar, no interior do enquadramento, para o funcionamento das teorias artsticas. De novo, procurei mostrar que a tese de Danto sobre o papel das teorias artsticas falsa. O prprio Danto parece ter abandonado esta perspectiva, a qual, de qualquer forma, nunca foi tornada muito clara, em favor da sua teoria do ser sobre algo [aboutness theory]. Portanto, parece no haver motivo para tentar acomodar o funcionamento das teorias artsticas no interior do enquadramento.

  • 141A teoria institucional da arte | George Dickie

    Do enquadramento primitivo das teorias tradicionais, com que comecei, apenas resta o papel do artista. claro que, enquanto expli-cao em si, esta verso reduzida pouco mais satisfatria do que o enquadramento primitivo do qual derivou, mas pelo menos parece estar apontada na direco certa na direco do artista e no do tema. De modo a obter uma explicao adequada do enquadramento, devemos, em primeiro lugar, descobrir o que faz com que algum possa assumir o papel de artista.

    J antes neste captulo, ao opor -me noo de artista romntico, fi z uma sugesto sobre o enquadramento no interior do qual a arte criada. Sugeri que se trata de um enquadramento normalmente adquirido por uma pessoa que tenha tido um contacto anterior com exemplos de arte, sabendo que eram arte, que tenha sido treinada nas tcnicas artsticas, que tenha um conhecimento de fundo sobre arte, ou algo semelhante. Esta caracterizao, por mais inadequada que possa ser, est focada sobre o artista e sobre o modo como ele conhece ou compreende o seu papel. Sem-pre que criada arte, h um artista que a faz, embora um artista tambm crie para um pblico, seja este de que tipo for. Portanto, o enquadramento tambm inclui um papel para o pblico a quem apresentada a arte. Como evidente, uma obra de arte particular no precisa de ser apresen-tada a um pblico para ser arte. As relaes entre uma dada obra e um pblico so variadas. Muitas obras de arte foram criadas com a inteno de serem apresentadas a um pblico, embora, por diversas razes, nunca tenham chegado a esse pblico. Um nmero muito grande de quadros, de poemas e de outros tipos de arte, apenas foi experimentado por aquelas pessoas que os criaram. Por uma razo ou outra, os seus criadores no querem que outros experimentem o seu trabalho. A arte que feita com a inteno de ser apresentada a um pblico, quer chegue at ele quer no, pressupe claramente um pblico. Mesmo a arte que feita sem a inteno da apresentao pblica pressupe um pblico, pois no s possvel apresentar-lha (como por vezes acontece) como se trata de uma coisa de um gnero que tem como objectivo a apresentao a um pblico. A noo de pblico paira constantemente em pano de fundo, mesmo quando um dado artista se recusa a apresentar o seu trabalho.

    Por pblico no me refi ro apenas a um conjunto de pessoas. O que faz com que algum seja membro de um pblico o facto de saber desempe-nhar um papel. Ser membro de um pblico requer um conhecimento e um

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    entendimento semelhantes, em muitos sentidos, queles que esperamos encontrar num artista. Eis alguns exemplos daquilo em que estou a pensar. Para ser membro de um pblico de pinturas representacionistas, preciso ser capaz de ver que certos desenhos retratam objectos, embora, como evidente, esta capacidade no seja sufi ciente. Para ser membro de um pblico de teatro, preciso ter conhecimento do que algum representar um papel, e assim por diante. Muitas das capacidades e sensibilidades que se encontram envolvidas no facto de se ser membro de um pblico so de uma espcie vulgar, comum (embora isso no signifi que que sejam simples ou descomplicadas), mas outras apenas so alcanadas depois de um adestramento e de um desenvolvimento especiais.

    Comparemos o enquadramento que foi desenvolvido at aqui com o enquadramento da teoria da imitao e da teoria de Langer. Nos dois ltimos, a obra de arte est suspensa entre o artista e o tema. Se descar-tarmos a questo de saber se o tema um factor essencial, os enquadra-mentos destas duas teorias so muito estreitos. Nenhuma das teorias estabelece uma relao entre o artista e o seu passado ou a sua cultura, embora tambm nenhuma negue essa relao. A relao, no que importa s teorias, simplesmente irrelevante. Um artista apenas algum que faz algo que se assemelha a outra coisa. A teoria institucional coloca as obras de arte num enquadramento complexo pelo qual um artista, ao criar arte, desempenha um papel cultural, desenvolvido historicamente, para um pblico mais ou menos bem preparado. Falo de um pblico mais ou menos bem preparado porque, por vezes, os artistas surpreendem o seu pblico. O pblico de uma pea de teatro tradicional, ou os visitan-tes de museus habituados a imagens tradicionais, esto normalmente preparados para experimentar e apreciar aquilo com que se deparam. As pessoas que deparam com arte de vanguarda esto, com frequncia, menos bem preparadas, apesar de que, se vierem a perceber que aquilo com que depararam arte, tornam -se, com isso, membros de um pblico e fi cam preparadas de uma forma geral.

    Uma reclamao frequentemente dirigida contra Art and the Aesthetic afi rma que, apesar de a se defender que a produo de arte institucio-nal, nada feito para mostrar como que a produo de arte regida por regras. O princpio desta crtica assume que reger segundo regras distingue prticas como a da promessa, que so institucionais, de prticas como passear o co, que no o so. O princpio e a crtica esto bem fei-

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    tos. Ironicamente, Art and the Aesthetic contm uma discusso explcita e substancial sobre as convenes e as regras que regem a apresentao das obras de arte18 e o comportamento dos membros do pblico19, mas no contm qualquer discusso sobre as regras que regem a produo de arte. As regras para a produo de arte encontram -se implcitas, em Art and the Aesthetic, na explicao da criao de arte, uma vez que a expli-cao tece consideraes sobre as condies necessrias da produo de arte. Declarar uma condio necessria para qualquer actividade uma forma de declarar uma regra a ser usada por essa actividade.20 Infeliz-mente, eu no fi z nada para chamar a ateno para a natureza segundo regras da produo de arte. Para alm disso, e como j foi sublinhado, a minha explicao confundiu a linguagem da instituio -aco com a linguagem da instituio -pessoa. Por seu lado, esta confuso obnubilou as implicaes da explicao relativamente s regras da produo de arte, que instituio -aco.

    Defendi [anteriormente] que ser um artefacto constitui uma condi-o necessria para algo ser uma obra de arte. Esta afi rmao implica uma regra para a produo de arte: se algum quiser fazer uma obra de arte, deve faz -lo criando um artefacto.21 Afi rmei agora que ser uma coisa do tipo das que se apresentam a um pblico do mundo da arte uma condi-o necessria para algo ser uma obra de arte. Esta afi rmao implica uma outra regra para a produo de arte: se algum quiser fazer uma obra de arte, deve faz -lo criando uma coisa do tipo das que se apresentam a um pblico do mundo da arte. As duas regras so conjuntamente sufi cientes 18 Art and the Aesthetic, pp. 173 -181. Ao discutir aqui as convenes e as regras que comandam a

    apresentao das obras de arte, z a distino entre aquilo a que chamei as convenes primrias e as convenes secundrias. Quero manter aqui esta distino embora pense que aquilo a que chamei a conveno primria no , de facto, uma conveno. Portanto, aquilo a que chamei as convenes secundrias, que so mesmo convenes, no precisa de ser designado como secundrio. Voltarei a esta questo na prxima seco.

    19 Ibid., pp. 104 -106.

    20 No estou a defender que uma condio necessria como esta implica necessariamente uma regra. A espcie relevante de condio necessria tem de ser uma conveno de algo cuja ocorrncia pode envolver a obedincia a uma regra. Por exemplo, h certas condies necessrias produo de cido sulfrico, mas nenhuma destas condies envolve uma regra produzir um cido uma questo de seguir um procedimento fsico. Por outro lado, as condies necessrias ao estabelecimento de uma promessa constituem as regras para a promessa. A diferena est entre operar a partir de leis fsicas e observar convenes.

    21 com esta regra que os dadastas como Duchamp gostavam de brincar, vendo at que ponto a podiam quebrar e mesmo assim produzir uma obra de arte.

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    para produzir obras de arte. Pode parecer que as duas regras tambm so cumpridas por coisas que no so obras de arte, mas no nos podemos esquecer que as regras operam dentro de um domnio cultural especfi co e historicamente desenvolvido. No captulo seguinte, irei discutir como este domnio pode ser isolado.

    Defendi anteriormente que a existncia de um enquadramento essencial para que algo seja arte. Em seguida, procurei descrever um enquadramento para a arte, falando prioritariamente sobre artistas e pbli-cos. A questo surge naturalmente: Porque que o enquadramento sob discusso aquele que essencial? No poder haver outro enquadramento que seja o essencial? Enquadramentos-tema do tipo visado pela teo-ria da imitao, pela teoria de Langer, ou mesmo pela teoria do ser sobre de Danto, no so, como evidente, enquadramentos viveis. Os comentrios de Danto no seu primeiro artigo sobre teorias artsticas e histria da arte sugerem a existncia de um certo tipo de enquadramento terico e histrico, embora ele nunca esclarea bem o que pretende. O enquadramento que comecei por descrever devedor das sugestes de Danto sobre a histria da arte, embora seja difcil apontar exactamente a relao entre os dois. Ou seja, sublinhei a dimenso histrica do papel do artista e do pblico o que eles aprenderam com o passado. Mesmo assim, o facto de alguns enquadramentos no servirem e o facto de Danto sugerir coisas que foram tratadas na minha concepo de enquadramento no so sufi cientes para provar que a minha descrio a mais correcta. Em defesa da minha perspectiva, pode dizer -se que se trata da concepo de um enquadramento no interior do qual as obras de arte esto claramente imersas, e que no se vislumbra nenhum outro enquadramento. Espera -se que a descrio detalhada do mundo da arte, apresentada no prximo captulo, torne ainda mais clara a relao essencial entre as obras de arte e o contexto do respectivo mundo da arte. Na falta de um argumento mais conclusivo em defesa da maior plausibilidade da minha concepo do enquadramento essencial da arte, espero que a descrio oferecida neste captulo e no prximo funcione como argumento em favor da correco da minha concepo. Se a minha descrio do enquadramento essencial estiver correcta, mesmo que aproximadamente, ento a descrio dever evocar no leitor uma experincia do tipo isto mesmo.

  • 145A teoria institucional da arte | George Dickie

    O Mundo da Arte

    At aqui, ao interrogar a natureza institucional da arte, estive a descrever o enquadramento essencial da arte. Ao faz -lo, concentrei -me nos papis do artista e do pblico e caracterizei -os vagamente em termos daquilo que aqueles que desempenham tais papis sabem sobre arte, sobre a sua criao e a sua experincia, com base no passado. Talvez seja sensato neste momento realar o facto bvio de que criar arte uma actividade intencional. Os acidentes, fortuitos ou no, podem ocorrer no interior do processo criativo, mas a actividade em geral no acidental. Irei prosse-guir com a discusso dos papis do artista e do pblico, focando a relao entre artista e pblico. Ao criar arte, o artista est sempre envolvido com um pblico, uma vez que o objecto criado de um gnero que feito para ser apresentado a um pblico. A relao consiste, ento, em criar um objecto de um gnero para ser apresentado. A apresentao efectiva do objecto ou mesmo a inteno de o apresentar por parte do autor no pode ser um requisito porque, como j foi referido antes, algumas obras de arte nunca chegam a ser apresentadas enquanto outras so produzidas sem que o seu autor tenha a inteno de as apresentar a um pblico. O que deve ser aqui sublinhado que o objecto criado de um gnero que feito para apresentao. Consideremos alguns casos nos quais as obras de arte no so apresentadas. Algumas obras no so apresentadas pelos seus autores porque estes as consideram trabalhos prticos, que no merecem apresentao. Os trabalhos prticos so de um gnero prprio para apresentao, de outro modo no faria sentido julgar que alguns no merecem apresentao. Algumas obras de arte no so apresentadas porque os seus criadores tm dvidas sobre o seu valor. Algumas obras de arte no so apresentadas porque os seus criadores crem que as obras revelam demasiado sobre eles prprios. E poderamos continuar. Nestes tipos de casos, existe o que se pode chamar uma dupla inteno. Existe a inteno de criar uma coisa de um gnero que apresentado, mas tambm a inteno de no a apresentar efectivamente. O artista e o pblico esto numa relao que podemos designar, como o fi z numa outra ocasio, como grupo de apresentao.22 Um grupo de apresentao , de facto, o enquadramento mnimo para a criao de arte.

    22 Art and the Aesthetic, Ithaca (N.I.), 1974, p. 36.

  • 146 Arte em teoria | uma antologia de esttica

    O papel do artista tem dois aspectos centrais. Em primeiro lugar, existe o aspecto geral que caracterstico de todos os artistas, nomeada-mente, a conscincia de que o que criado para apresentao arte. Em segundo lugar, existe a grande variedade de tcnicas artsticas, sendo que a capacidade de usar uma delas em algum grau permite -nos criar arte de um tipo particular. Quando estes dois aspectos se do simultaneamente, a grande variedade de coisas que os artistas so capazes de fazer (pintar, esculpir, escrever, compor, actuar, danar, etc.) vista como subsumida na descrio criando um objecto de um gnero que apresentado. O papel do artista pode ser desempenhado de vrias maneiras. Pode ser desempenhado por uma s pessoa, como normalmente o caso dos pintores. Mas mesmo no caso dos pintores, o papel do artista pode ser internamente complexo no sentido em que um certo nmero de pessoas pode estar envolvido, como quando um assistente (ou vrios assistentes) ajuda(m) o mestre. Neste tipo de casos, existe um nico papel, mas que desempenhado por vrias pessoas. Por oposio, nas artes performativas, a regra que o papel do artista consista, de facto, numa multiplicidade de papis cooperativos. Por exemplo, no teatro, o papel do artista abarca o dramaturgo, o encenador e os actores. Todos estes papis podem, em casos particulares, ser desempenhados por uma nica pessoa. Neste caso, continua a haver uma multiplicidade de papis, mas so desempenhados por uma s pessoa.

    O papel de membro do pblico tambm tem dois aspectos. Em primeiro lugar, existe o aspecto geral que caracterstico dos membros de todos os pblicos de arte, nomeadamente, a conscincia de que o que lhes est a ser apresentado arte. O segundo aspecto do papel de mem-bro de um pblico a grande variedade de capacidades e sensibilidades que tornam algum capaz de captar e entender o tipo particular de arte que est a ser apresentado. Algumas sensibilidades, ou os seus opostos, podem pertencer a um tipo especifi camente fi siolgico: surdez, surdez para os tons, capacidade normal de ouvir tons, ouvido absoluto, cegueira, capacidade normal de distinguir cores, sensibilidade cromtica aguda, e assim por diante. Estas sensibilidades podem ser apuradas atravs do treino e da experincia. E podem ser embotadas pelo envelhecimento, por acidente ou por outros factores. Algumas capacidades no tm uma base fi siolgica especfi ca e dependem, de modo fundamental, do facto de termos adquirido certa informao a capacidade de reconhecimento,

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    por exemplo. H outras capacidades que so de um tipo mais especfi co a capacidade intelectual para compreender que um certo nmero de elementos faz parte de um todo, por exemplo. E poderamos continuar.

    No incio deste captulo, falei da relao entre artista e pblico como sendo o grupo de apresentao. Se, no entanto, o artista cria e o pblico acolhe e compreende, existe uma outra funo a medi -los. E