dieta mediterrânica: um modelo cultural

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Foi com grande satisfação que o País e a delegação de Portugal que participava em Baku na 8.ª Sessão do comité intergoverna- mental para a Salvaguarda do Património cultural imaterial, ouviram as palavras elo- giosas da UneScO em relação à candida- tura da dieta Mediterrânica, coordenada diplomática e tecnicamente por Portugal. nesse dia 4 de dezembro de 2013 foi vo- tada em poucos minutos, por unanimidade e sem recomendações, a inscrição da dieta Mediterrânica na Lista Representativa do Património cultural imaterial da Humani- dade, um momento de elevado significado para os 7 estados e comunidades represen- tados na candidatura, pelo reconhecimento da comunidade internacional em relação a um património milenar construído pelas ge- rações que nos antecederam. esta decisão da UneScO envolveu Ta- vira, comunidade representativa de Portugal e foi a primeira distinção planetária abran- gendo a cultura algarvia e a segunda inscri- ção do nosso País na lista representativa do Património cultural imaterial da Humani- dade, que se seguiu à inscrição do fado. estiveram presentes em Baku delegações de 116 estados, 18 dos quais constituem o comité intergovernamental com poderes de voto. Foi a reunião mais participada de sem- pre desta convenção da UneScO com ape- nas 10 anos de existência, confirmando o crescente interesse e o desejo dos povos de verem as suas culturas protegidas e valori- zadas, com efeitos potencialmente positivos para as populações abrangidas e na preser- vação da biodiversidade. A inscrição culminou um trabalho prepa- ratório continuado que se iniciou em Janeiro de 2011, onde Portugal garantiu um trabalho de qualidade na frente diplomática e na pre- paração dos conteúdos de natureza técnico- -científica, com especial realce para a componente do património cultural, como elemento central Portugal e os restantes estados/comuni- dades ficaram na posse de um importante instrumento, com implicações jurídicas na proteção e valorização das culturas mediter- rânicas, o qual inclui conhecimentos e sabe- res ancestrais, produtos locais, paisagens culturais, cozinhas tradicionais e gastrono- mias, festividades, modelo nutricional e de bem-estar, potenciando também uma eco- nomia mais alicerçada no conhecimento, na criatividade e na identidade cultural, sobre- tudo respeitadora da sustentabilidade dos territórios e do ambiente. cada estado participante selecionou uma comunidade ou região representativa, como forma de garantir participação e envolvi- mento mais ativo das populações locais, sendo estas na ótica da candidatura os veí- culos dinamizadores dos diversos projetos. 8 Nº31 Jan-Mar 2014 Pág. 8-18 Jorge Queiroz Sociólogo. diretor do departamento de cultura, Património e Turismo da câmara Municipal de Tavira e do Museu Municipal. coordenador Técnico da candidatura Transnacional da dieta Mediterrânica a Património cultural imaterial da Humanidade da UneScO ????????????????????? dieta Mediterrânica: um modelo cultural Palavras-chave: Dieta Mediterrânica; Património imaterial; Cultura; História

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Page 1: dieta Mediterrânica: um modelo cultural

Foi com grande satisfação que o País e adelegação de Portugal que participava emBaku na 8.ª Sessão do comité intergoverna-mental para a Salvaguarda do Patrimóniocultural imaterial, ouviram as palavras elo-giosas da UneScO em relação à candida-tura da dieta Mediterrânica, coordenadadiplomática e tecnicamente por Portugal.

nesse dia 4 de dezembro de 2013 foi vo-tada em poucos minutos, por unanimidadee sem recomendações, a inscrição da dietaMediterrânica na Lista Representativa doPatrimónio cultural imaterial da Humani-dade, um momento de elevado significadopara os 7 estados e comunidades represen-tados na candidatura, pelo reconhecimentoda comunidade internacional em relação aum património milenar construído pelas ge-rações que nos antecederam.

esta decisão da UneScO envolveu Ta-vira, comunidade representativa de Portugale foi a primeira distinção planetária abran-gendo a cultura algarvia e a segunda inscri-ção do nosso País na lista representativa doPatrimónio cultural imaterial da Humani-dade, que se seguiu à inscrição do fado.

estiveram presentes em Baku delegaçõesde 116 estados, 18 dos quais constituem ocomité intergovernamental com poderes devoto. Foi a reunião mais participada de sem-pre desta convenção da UneScO com ape-nas 10 anos de existência, confirmando o

crescente interesse e o desejo dos povos deverem as suas culturas protegidas e valori-zadas, com efeitos potencialmente positivospara as populações abrangidas e na preser-vação da biodiversidade.

A inscrição culminou um trabalho prepa-ratório continuado que se iniciou em Janeirode 2011, onde Portugal garantiu um trabalhode qualidade na frente diplomática e na pre-paração dos conteúdos de natureza técnico--científica, com especial realce para acomponente do património cultural, comoelemento central

Portugal e os restantes estados/comuni-dades ficaram na posse de um importanteinstrumento, com implicações jurídicas naproteção e valorização das culturas mediter-rânicas, o qual inclui conhecimentos e sabe-res ancestrais, produtos locais, paisagensculturais, cozinhas tradicionais e gastrono-mias, festividades, modelo nutricional e debem-estar, potenciando também uma eco-nomia mais alicerçada no conhecimento, nacriatividade e na identidade cultural, sobre-tudo respeitadora da sustentabilidade dosterritórios e do ambiente.

cada estado participante selecionou umacomunidade ou região representativa, comoforma de garantir participação e envolvi-mento mais ativo das populações locais,sendo estas na ótica da candidatura os veí-culos dinamizadores dos diversos projetos.

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Jorge Queiroz Sociólogo. diretor do departamento de cultura, Património e Turismo da câmara Municipal de Tavira e do Museu Municipal. coordenador Técnicoda candidatura Transnacional da dieta Mediterrânica a Património cultural imaterial da Humanidade da UneScO

?????????????????????

dieta Mediterrânica: um modelo cultural

Palavras-chave: Dieta Mediterrânica; Património imaterial; Cultura; História

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Os sete países escolheram regiões commenor dimensão demográfica ou territorial,onde as relações de proximidade produtivase culturais se encontram preservadas. nestecomplexo processo de elaboração conceptuale prática Portugal fez-se acompanhar de ou-tros seis estados e suas comunidades repre-sentativas, casos de espanha/Soria, itália/cilento, Grécia/Koroni, Marrocos/chef-chaouen, croácia/Hvar e Brac e chipre/Agros.

Portugal escolheu Tavira, por razões quese prendem com o seu ambiente e patrimó-nio cultural milenar mediterrânicos, de quesão testemunhos as inúmeras estruturas e

espólios de origem fenícia, romana e islâ-mica, diversidade das paisagens culturais eo pomar de sequeiro algarvio, as produçõesagrícolas e atividades pesqueiras, a capturado atum e do polvo, a salinicultura e a apa-nha de bivalves, olivicultura e apicultura,festividades cíclicas e múltiplas manifesta-ções do património cultural imaterial.

A candidatura baseou-se numa sínteseconcretizada em formulário único para os 7estados com referências às especificidadesnacionais e das comunidades representati-vas, o qual incluiu a caracterização da dietaMediterrânica, funções sociais e práticas cul-turais transmitidas de geração em geração,medidas de salvaguarda e inventário, acom-panhado de documentação probatória, par-ticipação e declarações de compromisso eapoio das entidades envolvidas (no caso dePortugal/Tavira foram cerca de 70), biblio-grafias temáticas, traduções, fotografias e um

vídeo transnacional, também múltiplas açõesde divulgação e salvaguarda como a exposi-ção «dieta Mediterrânica, património cultu-ral milenar» no Museu Municipal de Tavirae a i Feira da dieta Mediterrânica realizadanos dias 6, 7 e 8 de Setembro em Tavira.

em maio de 2011 foi organizado em Ta-vira um seminário nacional preparatóriocom a participação de diversos especialistas,da cultura, saúde e agricultura, também de-zenas de reuniões sectoriais e individualiza-das e muito trabalho de campo preparandoinventários.

na construção do modelo conceptualapresentado à UneScO e aprovado salien-

tamos algumas linhas estratégicas e caracte-rísticas:

Transnacional, ao integrar 7 estados erespetivas comunidades representativas,geograficamente situadas em zonas orien-tais, central e ocidental do espaço mediter-rânico.

Evolutiva dado que possibilita e estimulaa futura integração de outros estados da re-gião mediterrânica em novas candidaturas.

Partilhada propondo e perspetivandoobjetivos comuns na defesa e promoção depatrimónio civilizacional comum, que incluiplano de salvaguarda, inventários, investiga-ção, educação…

Multicultural ao congregar valores eculturas de tradição católica, ortodoxa e is-lâmica, aproximando povos com práticas re-ligiosas diferenciadas com especificidadesno plano das celebrações coletivas e outroscomportamentos sociais.

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Primeira distinção planetária abrangendo a cultura algarvia

e a segunda inscrição do nosso País na lista representativa

do Património cultural imaterial da Humanidade

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Pluridisciplinar porque agrega diver-sos campos disciplinares que vão da agrono-mia à história, da antropologia à nutrição ouda sociologia ao turismo ou à investigaçãoaplicada à empresa.

Potenciadora de efeitos positivos naqualificação dos territórios, proteção dos re-cursos locais e na prevenção da morbilidade,promoção da saúde e de estilos de vida sau-dáveis.

Descentralizada pois promove a coope-ração inter-comunitária e culturas de proxi-midade potenciadoras de relações entre osdiferentes espaços geoculturais, sendo deter-minantes as pequenas comunidades comoAgros, chefchaouen, cilento, Hvar e Brac,Koroni, Soria e Tavira.

A UneScO reconheceu a validade e im-portância desta perspetiva e o contributoque poderá dar nas boas relações entre ospovos na base do reconhecimento de umahistória e culturas comuns.

A «longa história» da dieta mediterrânica

não é possível entender a «dieta mediter-rânica» sem compreender os traços funda-mentais do mundo mediterrânico, da suahistória e das poderosas civilizações quecriou ao longo de milénios, os valores que de-terminaram as formas de vida em sociedade.

As culturas alimentares mediterrânicassão expressão e evidência dessas civilizaçõese nelas estão contidos valores espirituais emateriais, tempos e ritmos de trabalho, aspráticas rituais alimentares com as suas va-lorizações e interdições.

O Mediterrâneo foi e é um poderoso fenó-meno cultural que ultrapassou as suas fron-teiras geográficas, é uma forma de olhar,pensar e agir que influenciou o mundo e pro-duziu parte substancial do que hoje conside-ramos como «civilização ocidental».

Os movimentos sociais e concepções filo-sóficas da helenização, romanização, cristia-

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Tavira – Antigo Solar da família Corte-Real (séc. XV-XVI d.C.). Neste local foram detectadas estruturas habitacionais islâmicas (séc. XII-XIII d. C.), níveis turdetanos(séc. IV a.C.) e muralha fenícia ( séc VIII a.C.). Fotografia do Arquivo da Câmara Municipal de Tavira

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nização e a islamização marcaram o «mundoantigo» e estão presentes no mundo atual deforma muito evidente apesar das novasquestões globais como o ambiente, a demo-grafia e a alimentação planetárias.

A visão sobre a «dieta mediterrânica» émultidisciplinar, não apenas focalizada emtorno da história da alimentação, das práti-cas alimentares e do modelo nutricional,mas também nos aspectos relacionais noseio das comunidades, os valores fundamen-tais que dão suporte a um «estilo de vida», asua produção simbólica, ritual e artística queo acompanha, onde se insere a cultura ali-mentar. Possui ainda um enorme potencialde produção e reprodução de novos conhe-cimentos.

A crítica da «dieta mediterrânica» centra--se fundamentalmente na desvalorização oumesmo negação da correlação «mecânica»deste modelo nutricional com a morbilidadee mortalidade que resulta das teses de Keys.contudo, e sabendo-se que outras culturasalimentares produzem igualmente resultadospositivos para a saúde humana, o elementocentral da «dieta mediterrânica» é um mo-delo cultural que persiste há milhares de anose que resistiu às mutações civilizacionais econsequentemente com ação preventiva daschamadas «doenças da civilização».

A relação entre o consumo cíclico de umaenorme variedade de produtos frescos pro-duzidos pela agricultura familiar ou de pro-ximidade, sendo importante não explica porsi só as vantagens da dieta mediterrânicapara a saúde, que é multifatorial.

A estruturação da «dieta mediterrânica»,enquanto conceito mais amplo, inscreve-sena perspetiva da história da longa duração oudo «tempo longo», uma corrente alternativaà história das ocorrências breves, das conjun-turas marcadas por personalidades que de-terminam episódios decisivos. É umaperspetiva interpretativa e analítica desen-volvida há décadas pelos Annales, que com-binou interdisciplinaridade, numa primeirafase centrada na geografia, história e socio-logia. esta visão científica foi concebida porMarc Bloch e Lucien Febvre da Universidadede estrasburgo nas décadas de 20 e 30 do sé-culo XX, a que se lhes seguiu um incontorná-vel investigador do mediterrâneo, FernandBraudel e também a corrente historiográfica

ligada à psicologia, a história das mentalida-des. Segundo esta as mentalidades constitui-riam estruturas de longa duração.

Mediterrâneo e o mundo mediterrânicona época de Felipe II é ainda hoje uma obraindispensável para quem se interessa peloconhecimento das culturas mediterrânicas.

É uma evidência que toda história hu-mana está relacionada com duas necessida-des básicas que determinam e garantem asobrevivência e continuidade dos grupos: aalimentação e a fertilidade.

durante milhares de anos o homem es-teve dependente da caça e da recoleção. coma sedentarização e a fixação em regiões fér-teis, com boas condições para a agriculturae a domesticação de animais, deu-se umamutação nas vivências e comportamentoscom consequências em todas as esferas da

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O Mediterrâneo foi e é um poderoso fenómeno cultural

que ultrapassou as suas fronteiras geográficas, é uma forma de olhar,

pensar e agir que influenciou o mundo e produziu parte substancial

do que hoje consideramos como «civilização ocidental»

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vida coletiva, a obtenção de excedentes quepreveniam os frequentes ciclos de carênciase de fome.

A revolução neolítica produziu uma ex-traordinária transformação, o surgimento decidades, algumas já densamente povoadasdesde o 7.º milénio anterior à era cristã. nabacia do Mediterrâneo floresceram evoluídassociedades agropastoris e mercantis, numaprimeira fase na Suméria, parte sul da Meso-potâmia. como mostram os baixos-relevosanalisados nas últimas décadas, os rios Tigree eufrates e também o nilo são as primeirasgrandes vias de comunicação, a «oficina»que permitiu o desenvolvimento da náuticano delta e a navegação em mar aberto.

Posteriormente verificou-se o seu alarga-mento geográfico para regiões litorais medi-terrânicas onde surgiram dezenas de cidadesportuárias e mercantis, com intensa navega-ção, atividade de pesca e comércio de produ-tos de extração, agrícolas e artesanais.Jericó, por exemplo, estimada em dois milhabitantes, dedicava-se à exportação de sal,comércio de obsidiana da Anatólia, turque-sas do deserto do Sinai do mar Vermelho,búzios do mar Vermelho.

em vários pontos surgiram civilizações epólos de conhecimento, como na Grécia,Roma cartago, e com estes os instrumentosideológicos, políticos e económicos que origi-naram novas realidades como a polis, arqui-tecturas monumentais e defensivas, religiõesmonoteístas, democracia, alfabeto, mercados,náutica, matemáticas, astronomia, …

A Península ibérica, foi influenciada pelasculturas do Mediterrâneo e o território por-tuguês vivenciado por gentes vindas de todasas partes do «mare nostrum», que deixaramno espaço que habitamos um patrimónioainda vivo em muitos aspetos da vida cole-tiva, nas estruturas fundiárias, língua e reli-gião e também nas tradições alimentares.

Mediterrâneo, ao ritmo dos astrose dos deuses

O tempo cíclico e os seus marcadores sãofundamentais para entender as culturas me-

diterrânicas, os ritmos das actividades, asfestividades agrárias, as tradições alimenta-res ritualizadas e os «comeres» que as acom-panham.

Os movimentos cíclicos, as estações doano, fenómenos regulares e extremos da na-tureza, foram acompanhados com atenção,receio e esperança pelas populações. Osequinócios e solstícios são há miléniosmarca dores temporais indutores dos com -por ta mentos e das principais festividades cí-clicas.

O calendário judaico é lunar iniciando-seem 3761 a.c. e o iom Kipur ou «dia do Jul-gamento» a festa mais importante do calen-dário litúrgico implica a abstinência decomida e bebida, como de relações sexuais.

igualmente no islão durante o período doRamadão, o 9.º mês do calendário islâmico,o jejum e abstinência são obrigatórios. O ca-lendário islâmico, também lunar tem 29 ou30 dias, é designado por «hegírico» por seiniciar com a Hégira, a fuga de Maomé paraa Medina em 16 de Julho de 622.

O calendário gregoriano foi adaptado em1582 é solar e está relacionado com a expan-são das culturas mediterrânicas para o restodo planeta, por decisão do Vaticano e in-fluência das poderes de castela, França ePortugal.

não é possível analisar a «dieta mediter-rânica» enquanto património cultural ima-terial sem olhar as cidades, as religiões, avida agrária e mercantil que determinaramas culturas alimentares.

A «dieta Mediterrânica», enquanto estilode vida dos povos da europa do sul e donorte de África, apresenta característicasparticulares que embora variando de regiãopara região possui elementos comuns. Opão, o azeite e o vinho, constituem a «trilogiada dieta mediterrânica», consagrados desdea Antiguidade.

Os campos de cereais, os olivais e a vinhafazem parte da paisagem e cultura de todoeste espaço de criatividade e civilização.

A história do Mediterrâneo é marcadapelas dinâmicas das cidades marítimas e

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mercantis cercadas pelas montanhas, pelaconfluência e fusão de grupos humanos e ne-cessidades de regulação social que determi-naram poderosas religiões unitárias, tambémpelos alfabetos fenício, grego, latino e árabe,os calendários astrais e de trabalho que per-mitiram dar eficácia às relações de troca.

A par do estabelecimento das primeirasgrandes rotas comerciais por gregos e fení-cios foi também na parte oriental mediterrâ-nica que nasceram e se desenvolveram astrês religiões monoteístas, com suas figurasproféticas e livros sagrados. O mundo poli-teísta de divindades em permanente con-flito, uma interpretação mitológica danatureza, foi gradualmente substituído pelanova ordem de justiça divina, a religião dosHebreus, com um deus que cria o Universoe elege um povo com a Missão.

Os monoteísmos mediterrânicos resul-tantes das concepções filosóficas da GréciaAntiga de interpretação do real através damitologia, promoveram uma intensa compe-

tição pela influência, domínio espiritual etambém material dos povos, de que são tes-temunhos a sumptuosidade dos templos epoder sobre vastos territórios e populações.

com extraordinárias semelhanças e vio-lentos conflitos, nelas se cruza toda a Histó-ria do Mediterrâneo, determinante para aposterior expansão para o hemisfério sul e asua contínua influência também no mundoatual.

O século XViii a.c. registou o apareci-mento da mais antiga das religiões unitárias,o judaísmo, cuja síntese filosófica está contidana oração diária: «escuta israel, o Senhor é onosso deus, o Senhor é uno» Abraão era ori-ginário de Ur na Mesopotâmia e a famíliafixou-se em canãa, a Terra Prometida.

Séculos depois na Palestina surgia umanova religião, o cristianismo, capaz de en-frentar e submeter as religiões de oriente,que estrutura o misticismo helénico, prega aigualdade perante deus provocando de ime-diato a atração de camadas pobres e ganha

Exposição “Dieta Mediterrânica, património cultural milenar” no Museu Municipal de Tavira. Fotografia do Arquivo da Câmara Municipal de Tavira

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apoios nas mulheres. numa era de supersti-ções faz-se acompanhar de pregadores, san-tos e milagres que ajudam a consolidar anova filosofia em terreno pagão.

Surgido dos desertos arábicos no séculoVii, o islão contraria e desmente as duas re-ligiões unitárias predecessoras, com amesma matriz original mas cria uma novainterpretação da Revelação, recusa a Santís-sima Trindade e a encarnação. É uma dis-puta de filosofias e interpretações mastambém de luta pela supremacia entre tribosda Palestina e da Arábia, que influencia de-pois todo o Ocidente mediterrânico e vem acristianizar a Roma pagã.

com o desaparecimento das cidades-es-tado a cultura grega entrou em declínio,mantendo poderosa influência sobretudonas artes e na arquitetura, na importância doseu simbolismo de que é testemunho o Re-nascimento europeu.

Um dos mais extraordinários fenómenoscivilizacionais do Mediterrâneo foi cartago, ameio caminho entre a Fenícia e o Atlântico,constituiu uma importante plataforma das li-gações comerciais entre a parte oriental e oci-dental mas também difusor de culturas epráticas. esta cidade helenizada, manteve-seem permanente conflito com o império quetudo controlava e foi em 146 a.c. destruída etotalmente arrasada pelos exércitos romanos.

Roma criou um vasto império e o Medi-terrâneo foi um «lago romano» de tal formamarcante que a cultura latina permanecehoje em inúmeros da vida quotidiana, do di-reito e sistemas constitucionais à arquite-tura, da língua à organização territorial eadministração publica.

Outro dos centros nevrálgicos da culturamediterrânica foi Bizâncio, cidade grega fun-dada em 657 a.c., que o império romano em330 transforma em «cidade de constantino»ou constantinopla e com o império Oto-mano em istambul. Foi um centro da hele-nização que depois se tornou irradiador docristianismo e com a queda de constantino-pla em 1495 do islamismo.

Dieta mediterrânica, um modelo cultural

O fisiólogo norte-americano Ancel Keys(1904-2004), apelidado com simpatia e ca-rinho pela imprensa como «dr. colesterol»,veio dar nas décadas de 50 e 60 um extraor-dinário contributo para a descoberta do mo-delo nutricional da «dieta mediterrânica» edos seus benefícios na saúde humana.Quando realizou com a sua equipa o Estudosdos 7 Países Keys trabalhava há duas déca-das nas questões da nutrição.

Keys provou que a elevação do colesterolpela ingestão de gorduras de origem animalprovocava o aumento de doenças coronárias,riscos de arteriosclerose e outras patologias.

de então para cá a investigação da dietaMediterrânica tem vindo a ser acompanhadapor novos enfoques disciplinares, em parti-cular no âmbito dos estudos sobre os mode-los de nutrição, história da alimentação,agricultura sustentável, psicologia social, an-tropologia do espaço e sociologias do quoti-diano, entre outros.

A «dieta mediterrânica» expressa a vivên-cia milenar de comunidades da área geográ-fica do Mediterrâneo e de regiões por esteculturalmente influenciadas, é um modelocultural que incorpora valores e práticas so-ciais, tal como foi expresso e fundamentadona candidatura apresentada e aprovada pelaUneScO.

O termo «dieta» inspira-se no gregodíaita, significando estilo de vida. É o con-junto de saberes-fazeres dos povos mediter-rânicos resultante de vivências comunitáriasancestrais, somatório de conhecimentos em-píricos e evolução tecnológica, processos deagricultura e pescas, produção e confeção dealimentos, sociabilidades, simbologias e ri-tuais de celebração coletiva, tradições orais,convívio na partilha dos espaços socializados

Mas, o que é um «estilo de vida»? A questão é pertinente e levanta naturais

problemas e dificuldades. Trata-se de um conceito, do latim consep-

tus, uma ideia contida numa representaçãoabstracta da realidade que se pretende uni-

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tária, a qual produz significado ou uma mul-tiplicidade deles aos quais se atribuem de-terminadas qualidades.

O conceito é neste caso dual, dieta apre-senta-se ligada à palavra mediterrânica.este mediterrânica não é tão só um mar ouuma geografia, mas uma ideia à qual se atri-buem qualidades, valores materiais e imate-riais, uma identidade singular ou umconjunto de múltiplas identidades.

O estilo de vida resulta da forma como vi-vemos e nos relacionamos em comunidade,com os valores sociais e religiosos que nosorientam e o que culturalmente aprendemose transmitimos, com os rituais simbólicos eas formas como habitamos, produzimos enos alimentamos…

Haverá uma cultura mediterrânica comtraços comuns diferenciadores de outras cul-turas?

A resposta nunca pode ser simples ou ba-seada em meras convicções, porque o Medi-terrâneo é e sempre foi uma realidadecomplexa e contraditória, nele convivem econflituam há muitos séculos espaços geo-culturais, grupos étnicos, religiões. Mas hátambém traços e características comuns quefundamentam uma forma de viver.

A «dieta» evidencia e exprime culturas departilha e proximidade, de cooperação nasatividades comunitárias, de celebração efesta. A mesa nas culturas mediterrânicaspossui grande centralidade social, quer emespaço privado como no público.

As alterações sócio-demográficas e demodelo económico ocorridas pós revoluçãoindustrial, colocaram em causa culturas an-

cestrais com perda de conhecimentos mile-nares, patrimónios vários que garantiramdesde sempre o equilíbrio na elação dohomem com a natureza. este processo acen-tuou-se ao longo do século XX, a par dosgrandes progressos na ciência e tecnologia,ocorreu o declínio das culturas agrárias, a in-tensificação dos fluxos migratórios para ascidades e emergência de extensas metrópo-les, alterações na estrutura e relações fami-liares, ritmos de vida intensos, a entrada doaudiovisual no espaço doméstico com alte-rações no processo de transmissão de valo-res e conhecimentos

A família alargada, constituída por váriasgerações habitando a mesma casa ou espaçohabitacional foi, até há poucas décadas, o

modelo familiar dominante em Portugal. Amesa era centro privilegiado de encontro,transmissão de conhecimentos, de informa-ção sobre a organização da vida familiar, deanálise dos problemas coletivos, de debate eesclarecimento, de negociação e decisão.embora em risco, resultante do modelo fa-miliar restrito e estilo de vida urbano, a fun-ção social da mesa sobreviveu.

no sul da europa, embora com influênciados modelos culturais da globalização, o es-paço público, as praças e mercados, bairrose áreas portuárias, a mesa continua sendo olugar para convivialidades intensas, onde hásempre lugar para alguém que chega e sejunta ao grupo. nestas culturas do sul da eu-ropa a conversa, o jogo de mesa, os «petis-cos» e o «copo», são fatores de desinibiçãoe estimuladores das relações. São tambémlocais de venda de produtos de proximidade,

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Os movimentos cíclicos, as estações do ano (…) são fundamentais

para entender as culturas mediterrânicas, os ritmos das actividades,

as festividades agrárias, as tradições alimentares

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da terra e do mar, áreas plenas de vida co-munitária, impregnadas de odores, pesca-dos, carnes, legumes frescos e frutas,pregões de vendedores e discussão de pre-ços, conversas bem sonoras que fazem delesespaços sensoriais cheio de vida e emoções.estes mercados tradicionais representamculturas de proximidade e partilha envol-vendo pessoas e os produtos locais.

A mesa é um elemento indissociável doestilo de vida mediterrânico.

A centralidade da mesa manifesta-seainda como local na concretização de negó-cios, de namoros e casamentos, festas deaniversário, encontros de grupos profissio-nais e outras convivialidades. As formalida-des à mesa e a sua hierarquização variaramao longo das épocas, culturas e classes so-ciais, registam também diferenças quanto àlocalização da mesa no espaço doméstico,colocada na cozinha ou por vezes em varan-das ou no exterior da própria casa.

Os bons padrões de saúde verificados nazona mediterrânica, físicos e mentais, resul-tam não apenas do consumo de alimentosfrescos, produzidos localmente e de acordocom a época do ano, mas também da formacomo as populações vivem os valores quenos foram transmitidos, a quase ausência destress, o contacto com a natureza, a impor-tância das formas de entreajuda coletiva, osrituais e as expressões artísticas.

A UneScO reconheceu este patrimóniocultural do qual somos herdeiros, uma cul-tura para defender e valorizar.

Portugal mediterrânico e o Algarve na obra Portugal, o Mediterrâneo e o

Atlântico (1945), texto fundamental para acompreensão da geografia humana portu-guesa, Orlando Ribeiro (1911-1997) funda-menta a coexistência no território nacionalde influências culturais e geoclimáticas me-diterrânicas, mais acentuadas a sul do Tejo esimultaneamente de influências atlânticas nolitoral centro-norte até à Galiza.

Ao longo de milénios o Homem foi modi-ficando os territórios. com a sedentarização,a agricultura e atividades extrativas, os es-paços naturais foram humanizados e trans-formados em paisagens culturais. estasper mitem hoje preciosa informação histó-rica sobre a nossa relação com os lugares,que são em muitos casos de grande belezasuscetíveis de integrar o património classifi-cado e atrair visitantes.

A UneScO tem vindo a sublinhar e esti-mular a necessidade dos estados e regiões domundo preservarem as suas paisagens cultu-rais, conservando a biodiversidade e permi-tindo a identificação valorizada do território.em Portugal foram classificadas como Patri-mónio da Humanidade a paisagem culturalde Sintra (1995), o Alto douro Vinhateiro(2001) e a Paisagem da cultura da Vinha nailha do Pico (2004) nos Açores.

embora todo o País tenha uma forte in-fluência das culturas do «mar entre as ter-ras», o centro-sul de Portugal são claramentemediterrânicos, pelo clima, espécies mari-

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Paisagem rural.Fotografia do Arquivo da Câmara Municipal de Tavira

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nhas, paisagens culturais, actividades silvoagropastoris do montado, na serra e no bar-rocal algarvio com o pomar de sequeiro, pre-sença do olival, da vinha e dos cereais emextensas áreas, hortos e hortas familiares,rotas de transumância e pastoreio, caça,plantas silvestres alimentares e aromáticas,entre outras espécies.

Região periférica, com uma forte identi-dade cultural, viu os seus habitantes desen-volverem durante muitos séculos das maisbelas paisagens europeias.

Algarve é um anfiteatro exposto a sul pro-tegido pela serra e influenciado pelo clima ecultura mediterrânicos. durante séculos o Al-garve manteve a sua identidade estruturadapor uma sociedade de camponeses, a maioria,e pescadores, com alguma indústria extrac-tiva e transformadora, uma região que até aoséculo XiX exportava mais do que importava.

descoberto pela indústria turística emmeados do século XX, que em muitos aspec-tos alterou a região do ponto de vista físico ecultural, permanece contudo na região al-garvia a herança de uma cultura milenar,percetível nas pequenas aldeias e cidades li-torais, nos portos e suas atividades piscató-rias, nos mercados cheios de mil vozes,odores a frutas e pescado e sempre muitoconvívio à volta da mesa…

Al-Razi, cronista árabe do Séc. iX descre-veu assim o Algarve: «… e é terra de muitaságuas corredias. e é mui boa terra de caçaassim de monte como de ribeira. e há por vi-zinho o mar como se estende. e há mui boase mui sabor em que podem aportar as barcas.e há aí muito boas e mui boas frutas e muiclaras…Suas bondades fazem dele um dosmelhores lugares que há no mundo»

no século passado Orlando Ribeiro naobra citada chamaria a atenção que «ne-nhuma outra região portuguesa (o Algarve)possui uma rede urbana tão antiga, tão densae tão importante. Pode ver-se aqui a últimariviera mediterrânica e a influência de todasas colonizações marítimas da Antiguidade».

importa hoje que decisores e populaçõesreconheçam a importância destas formas de

viver, saibam preservar as paisagens cultu-rais, genuíno rosto da construção da nacio-nalidade.

como é evidente, se recorrermos aos ins-trumentos de investigação das ciências so-ciais, as formas de vida e organização socialalgarvias têm origem na herança deixada noterritório por gentes vindas do Mediterrâneooriental e ocidental: fenícios, gregos, roma-nos e árabes. estes desenvolveram na regiãoa salinicultura, as pescas e a captura de mo-luscos, a apanha de bivalves, introduziramnovas culturas e sistemas hidráulicos paracaptação e transporte de águas imprescindí-veis à agricultura familiar em climas de plu-viosidade irregular, deixando ainda noterritório inúmeras tradições orais, topóni-mos, vocábulos, expressões artísticas, reli-giões e formas rituais e uma grandeinfluência nas culturas alimentares.

As principais cidades do Algarve são por-tuárias ou estuarinas, à excepção de Loulé,mas em todas encontramos nas zonas maisantigas e centros históricos um urbanismoclaramente mediterrânico, estruturado porpequenas praças, portos, mercados, templos,ruelas estreitas, habitação concentrada ondese estabeleceram seculares relações de vizi-nhança e entreajuda.

do ponto de vista da alimentação na anti-guidade a investigação arqueológica em Ta-vira exumou um volume significativo demateriais cerâmicos de uso doméstico mastambém osteológicos. A partir do estudo des-tes materiais confirmou-se uma alimentaçãovariada, consumo de peixes e bivalves, comoconquilha e a amêijoa, as ostras e o berbigão,

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A mesa é um elemento

indissociável do estilo de vida

mediterrânico.

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mas também vestígios da caça ao javali e deanimais de criação doméstica e pastoreio.

Surgiram também objetos e recipientesde uso doméstico como candeias de azeite ede uso culinário como panelas, alguidares,almofarizes, tigelas, taças, jarras e jarrinhas,copos, etc.

Tavira, a grande cidade do Algarve no Séc.XVi que acolhia a «esquadra do estreito» eo seu maior centro exportador, é ainda hojeuma cidade com uma fisionomia inquestio-navelmente mediterrânica, detetável logo aoprimeiro olhar do visitante.

A dieta Mediterrânica, enquanto estilo devida e modelo alimentar integra o patrimó-nio histórico-cultural do País, de formamuito evidente de toda a região a sul do Tejo.com a alteração do paradigma turístico, oPaís e o Algarve têm na inscrição como Pa-trimónio cultural imaterial da Humanidadeuma oportunidade de reencontro com a sualonga história de quase mil anos.

Face a um modelo de globalização quetende a homogeneizar e padronizar, ospovos encontram nas suas culturas formasde auto-defesa, respostas para a preservaçãoe sobrevivência.

«As civilizações não são mortais, sobrevi-vem às transformações e às catástrofes…renascem das cinzas» escreveu Braudel.

A história do mundo o confirma…

Bibliografia Selecionada

Braudel, Fernand, Memórias do Mediterrâneo, Pré-História e Antiguidade, Terramar, 2001, Lisboa

cidade e mundos rurais – Tavira e as sociedadesagrárias, catálogo de exposição, Museu Municipal deTavira/cMT, Tavira, 2010

dieta Mediterrânica, Património cultural Milenar,catálogo de exposição, Museu Municipal de Ta-vira/cMT, 2013

Mattoso, José (coord.), História de Portugal, circulodos Leitores, 1992, Lisboa

Ribeiro, Orlando, Portugal, o Mediterrâneo e oAtlântico, Livraria Sá da costa, 1998, Lisboa

Ribeiro, Orlando, Geografia e civilização, Livros Ho-rizonte, 1991, Lisboa

Ribeiro, Orlando, introduções Geográficas à Histó-ria de Portugal – estudo crítico, imprensa nacional- casa da Moeda, 1977, Lisboa

Tavira, patrimónios do mar, catálogo de exposição,Museu Municipal de Tavira, 2009, Tavira

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