dissertaÇÃo de mestrado - educadores · heloisa araújo de araújo geografia e literatura: um elo...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE GEOCINCIAS
CURSO DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA
Heloisa Arajo de Arajo
GEOGRAFIA E LITERATURA: UM ELO ENTRE O PRESENTE
E O PASSADO NO PELOURINHO
DISSERTAO DE MESTRADO
SALVADOR 2007
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Heloisa Arajo de Arajo
GEOGRAFIA E LITERATURA:
UM ELO ENTRE O PRESENTE
E O PASSADO NO PELOURINHO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Geografia
da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para obteno
do Grau de Mestre em Geografia
Orientadora: PROF DR MARIA AUXILIADORA DA SILVA
Co-Orientador:
PROF. ANGELO SZANIECKI PERRET SERPA
Salvador 2007
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A663 Arajo, Heloisa Arajo de,
Geografia e literatura: um elo entre o presente e o passado no Pelourinho / Heloisa Arajo de Arajo. _ Sal-vador, 2007. 152 f. : il.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Auxiliadora da Silva. Dissertao (Mestrado) Ps-Graduao em Geo-
grafia. Instituto de Geocincias. Universidade Federal da Bahia, 2007.
1. Geografia humana 2. Geografia na literatura
3. Planejamento urbano Pelourinho (Salvador, BA) 4. Espao urbano Pelourinho (Salvador, BA) I. Ttulo.
CDU 911.3 (813.8) (043)
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AGRADECIMENTOS
Ao meu pai, Orestes, e a minha me, Ida, pelo exemplo de vida, pelo amor e pela ateno que, mesmo longe, estiveram sempre muito presentes.
Ao meu grande amor, Arajo; aos meus filhos, Andressa e Andrey, pela e-nergia, idias, apoio, compreenso e amor com que acompanharam todas as etapas deste processo e, porque no dizer, constituindo-se a razo mxima da minha inspi-rao... pelas muitas palavras de incentivo, carinho e encorajamento.
A minha v Lia, tias, tios e primos pelo apoio e carinho.
Aos meus irmos Guto, Denise e Luciano e toda minha famlia por toda fora transmitida durante o processo. Aos meus afilhados Andr Vinicius, pelo incentivo, e Juliana, tambm pela ajuda nas pesquisas de campo... A minha sobrinha, Nane, pe-la ajuda na digitao.
professora Dra. Maria Auxiliadora da Silva, por ter, primeiramente, acredi-tado em mim e assumido a orientao deste trabalho e, em especial, pela pacincia e carinho nos caminhos que foram trilhados.
Ao professor Dr. ngelo Serpa, pelo incentivo, pelo exemplo, mas tambm pela objetividade e rigidez com que me orientou, iluminando meu caminho.
Ao professor Dr. Jos Antonio Saja, pela participao na banca e contribui-es para enriquecer esta dissertao.
Aos meus colegas e amigos do mestrado, professores e funcionrios, pelo carinho ao longo desta conquista.
s amigas Clia e Meire, por fazerem parte da minha famlia.
A Lui, pelo apoio constante e por cuidar, com tanto amor, dos meus filhos.
Aos entrevistados que me permitiram entrar em seus mundos, possibilitando leituras e olhares diversos do Pelourinho.
A toda minha famlia, pelo carinho e pelo apoio constantes.
A todos, no mencionados aqui, porm no esquecidos, que direta ou indire-tamente contriburam para a realizao desta pesquisa, meu profundo agradecimento.
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Vindo do Terreiro, ou da Baixa dos Sapa-teiros, ou do Taboo, o deslumbramento o mesmo: est o visitante, face a face, com o mais belo conjunto arquitetnico brasileiro.
Eis a massa imensa e harmoniosa de edi-fcios dos sculos 18 e 19, marcada pelas torres das igrejas. o Pelourinho, como um lago onde confluem as guas das mais variadas fontes da humanidade baiana.
(...) Durante todas as horas do dia, o trfe-go incessante: operrios e carregadores; verdureiros e funcionrios pblicos; mari-nheiros e soldados; engraxates, motoris-tas, marceneiros, prostitutas; comercian-tes, padres, mes e pais-de-santo. E vm de todos os lados e vo para os seus mais variados misteres. E sobem e descem a ladeira, e sobem e descem destes sobra-dos, onde se goza e se sofre, onde se ama e se odeia, onde circulam ventos e tempestades das paixes humanas. guas serenas e guas revoltas, mansas corren-tes e agitados rios homens, mulheres e crianas, vm de todas as partes e vo dar a este lago para que integre a sua beleza, nem sempre serena, muitas vezes trgica, mas beleza que no se repete e no can-sa.
(...)
Praa de muita grandeza, de muita beleza, de muito sofrimento, de muito amor. Que o visitante saiba que ela no tem somente a face exterior que revela, como um assom-bro. H sua humanidade, trgica por ve-zes, nas suas ruas e no interior de seus sobrados.
(TAVARES, 1961, p. 123-124, 127-128, Bahia: imagens da terra e do povo).
Figura 1 - Sobrado no Pelourinho, Salva-dor, Bahia. Sidney Falco, Nanquim, aquarela e lpis de cor sobre papelo.
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SUMRIO
APRESENTAO ............................................................................................... 9
SIGLAS ............................................................................................................... 10
FIGURAS ............................................................................................................ 11
GRFICOS .......................................................................................................... 11
QUADROS .......................................................................................................... 11
TABELAS ............................................................................................................ 12
RESUMO ............................................................................................................. 13
ABSTRACT ......................................................................................................... 14
INTRODUO .................................................................................................... 16
CAPTULO 1 PELOURINHO: LUGAR DE HISTRIA ...................................... 33
1.1 Ocupao inicial e expanso ...................................................................... 33
1.2 Programa de requalificao do CHS: planejamento e as diversas fases
de implantao ........................................................................................... 40
1.3 Moradores do CHS: lutas, conquistas e sonhos.......................................... 48
1.4 O Estado, os movimentos populares e a garantia das famlias da 7
Etapa do Processo da requalificao ......................................................... 55
CAPTULO 2 GEOGRAFIA E LITERATURA NO PELOURINHO ..................... 63
2.1 As cidades na literatura .............................................................................. 63
2.2 Jorge Amado: valor da memria vivida ...................................................... 71
2.3 Construo do Pelourinho como cenrio em Suor ..................................... 78
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2.4. Jubiab: a memria construindo identidade .............................................. 86
2.5 O Pelourinho sob o olhar da cultura e turismo ........................................... 98
CAPTULO 3 - PELOURINHO: EM BUSCA DE UM NOVO OLHAR ................... 104
3.1 Lugar invisvel ............................................................................................ 104
3.2 Pelourinho como nova imagem para os turistas ........................................ 107
3.3 Pelourinho como nova imagem para os moradores ................................... 116
CONCLUSO ...................................................................................................... 129 REFERNCIAS ................................................................................................... 134 ANEXOS ............................................................................................................. 148 APNDICES ........................................................................................................ 153
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APRESENTAO
A anlise da Geografia do Pelourinho, nas narrativas de Jorge Amado, na
dcada de 1930, e nas histrias dos atuais moradores, est presente neste trabalho,
composto de trs captulos, alm desta apresentao, da introduo e da concluso.
Na Introduo apresentado o tema em estudo, com a justificativa, os obje-
tivos geral e especficos, a reflexo terica e o procedimento metodolgico. Far-se-
a construo do mapa da rea de estudo, inserida no Brasil, no Estado da Bahia, na
cidade do Salvador, e a localizao do Pelourinho dentro da poligonal que delimita o
Centro Histrico de Salvador.
O primeiro captulo apresenta o espao do Pelourinho, sua expanso e co-
mo este se encontrava antes da realizao do programa de requalificao. Em se-
guida, analisar-se- as intervenes, ainda em andamento, no Pelourinho, seus ato-
res intervenientes, e, principalmente, a 7 etapa da requalificao e o papel dos seus
moradores na busca de conquistas sociais.
O captulo dois est fundamentado em meio de uma viso interdisciplinar,
entre a geografia e a literatura, desvendando novas leituras e anlise do lugar de
estudo. Desse modo, incorporou-se a possibilidade de a literatura ser utilizada como
referncia para os estudos geogrficos medida que ela enriquece e completa a
realidade e dualidade existente no espao. Far-se- a construo do mapa percorri-
do pelos personagens das obras Suor e Jubiab, aqui analisadas, do escritor baiano
Jorge Amado, visando a (re)conhecer se aqueles caminhos coincidem com as eta-
pas da requalificao do Centro Histrico de Salvador e se os personagens apresen-
tados so os mesmos encontrados hoje no Pelourinho.
No terceiro captulo, so apresentados os resultados da pesquisa. Ao final
do captulo feita uma anlise com inferncias, relacionadas com os dados prim-
rios e secundrios utilizados, sobre a situao atual do Pelourinho durante a atual 7
etapa da requalificao.
Finaliza-se o estudo, apresentando as concluses obtidas, com indicaes
claras do alcance dos objetivos geral e especficos. Complementa-se o captulo com
a anlise do mrito do trabalho, sob a tica da Geografia, alm de sugestes para
novos estudos e trabalhos que aprofundem a discusso em torno dos temas apre-
sentados. Aps a parte textual, encontram-se dispostas as referncias bibliogrficas,
os anexos e apndices.
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SIGLAS Associao dos Moradores e Amigos do Centro Histrico de Salvador (AMACH)
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
Caixa Econmica Federal (CEF)
Centro de Estudos Sociais (CEAS)
Centro Histrico de Salvador (CHS)
Comisso de Acompanhamento as Obras (CAO)
Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (CONDER)
Cooperao para o Desenvolvimento da Morada Humana (CDM).
Departamento de Turismo e Diverses Pblicas (DTDP)
Diretoria de Aes Culturais (DIRAC)
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP)
Diretoria Municipal de Turismo (DMT)
Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR)
Empresa de Turismo da Bahia S/A (BAHIATURSA)
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE)
Instituto do Patrimnio Artstico Cultural (IPAC)
Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e a Cultura (UNESCO)
Ouvidoria Geral do Estado (OGE)
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN)
Plano de Desenvolvimento Integrado do Turismo Sustentvel (PDITS)
Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU)
Programa de Arrendamento Residncia (PAR)
Programa de Desenvolvimento do Turismo (PRODETUR)
Programa de Subsdio Habitacional (PSH)
Programa Habitacional do Servidor Pblico (PHSP)
Secretaria de Combate Pobreza (SECOMP)
Secretaria de Desenvolvimento Urbano (SEDUR)
Servio de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (SPHAN)
Superintendncia de Turismo do Salvador (SUTURSA)
Termo de Ajustamento de Conduta (TAC)
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
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FIGURAS
Figura 1 Sobrado no Pelourinho, Salvador, Bahia ........................................... 5
Figura 2 Mapa de Localizao: Brasil / Bahia / Salvador ................................. 17
Figura 3 Mapa de Localizao: CHS / Pelourinho ............................................ 20
Figura 4 Traado urbanstico de Salvador segundo Cordeiro ........................... 34
Figura 5 Localizao do Pelourinho ................................................................. 36
Figura 6 Praa da S, primeira verso depois de demolida a Igreja ................ 38
Figura 7 Mapa da Requalificao do Centro Histrico ..................................... 45
Figura 8 Vdeo sobre o Pelourinho: 2003 ......................................................... 54
Figura 9 Pelourinho hoje .................................................................................. 57
Figura 10 Imveis da 7 etapa vo virar moradias ........................................... 60
Figura 11 Mapa da 7 Etapa da Requalificao do CHS .................................. 62
Figura 12 Jorge Amado direta com sua famlia ............................................. 72
Figura 13 Mapa 1 Etapa de Requalificao do CHS ....................................... 84
Figura 14 Mapa temtico de Suor .................................................................... 85
Figura 15 Mapa da 4 Etapa da Requalificao do CHS .................................. 90
Figura 16 Mapa temtico de Jubiab ............................................................... 91
Figura 17 Cena de Jubiab, por Carib ........................................................... 98
Figura 18 Passeando e conhecendo o Pel ..................................................... 109
Figura 19 O carrinho do Pel ........................................................................... 109
Figura 20 Poster do filme Jubiab .................................................................... 112
Figura 21 Igreja do Passo ................................................................................ 113
Figura 22 Painis de Caryb representando orixs da Bahia .......................... 114
Figura 23 Capoeira Angola Zagrebe ............................................................... 115
Figura 24 Centro de Sade do Pelourinho ....................................................... 124
GRFICOS
Grfico 1 Diviso por Sexo dos Turistas Entrevistados .................................... 107
Grfico 2 Faixa Etria dos Turistas Entrevistados ........................................... 108
Grfico 3 Conhecimento dos Turistas Entrevistados sobre as Obras de
Jorge Amado ........................................................................................ 110
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QUADROS Quadro 1 As etapas da Revitalizao do CHS .............................................. 44
Quadro 2 Patrimnio Histrico ......................................................................... 59
TABELAS Tabela 1 Diviso por sexo dos turistas entrevistados ...................................... 107
Tabela 2 Faixa etria dos turistas entrevistados .............................................. 108
Tabela 3 Conhecimento dos turistas entrevistados sobre a obra de
Jorge Amado .................................................................................... 110
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RESUMO
A investigao da cidade do Salvador, a partir da Geografia e da Literatura, permite
o recorte de imagens produzidas em determinados tempos e contextos, realizando-
se, assim, e neste trabalho, uma anlise do espao do Pelourinho, como lugar de
memria, nas obras Suor e Jubiab do escritor baiano Jorge Amado, na dcada de
1930 e, hoje, durante o processo de requalificao, na histria de vida dos atuais
moradores. Os estudos culturais vm inaugurar um novo pensar e olhar sobre a ci-
dade... Correlacionou-se o olhar crtico e potico da cidade, captado por Jorge Ama-
do, atravs da apropriao do espao percebido e sentido por ele, pois suas experi-
ncias semeiam memrias e representaes sobre este espao. Investigou-se o es-
pao vivido pelos moradores da 7 Etapa da Requalificao, contrapondo o debate
sobre o planejamento urbano, onde s nesta etapa puderam participar. Diante do
objetivo proposto, optou-se por uma metodologia de carter qualitativo, sob a forma
documental, bibliogrfica e de campo, pois parte-se do pressuposto que o lugar de
memria aquele experienciado: dando queles sentimentos e significados. Os ca-
minhos percorridos pelos personagens da obra Suor coincidem com os da 1 etapa
da requalificao do CHS, e em Jubiab, com os da 4 etapa, unindo passado e pre-
sente no cotidiano do Pelourinho. Com o estudo destas obras, concluiu-se que no
h uma nica cidade: elas so mltiplas. Repensar as prticas de requalificao,
nas quais os desejos e os sonhos dos moradores so conhecidos, elevaria o homem
condio de sujeito nesse processo. Trouxe-se uma dimenso multifacetada do
Pelourinho e dos sujeitos que o freqentavam. Apresentou-se uma reflexo sobre a
importncia do lugar e do modo como ele percebido pelos moradores, turistas na-
cionais e estrangeiros e pelos rgos pblicos. Esta pesquisa, ao percorrer os ca-
minhos da interdisciplinaridade, visa a contribuir com o desenvolvimento de outras
tantas na linha da Geografia Humanstica, bem como convidar os planejadores ur-
banos a vivenciarem os lugares nos quais faro as intervenes. Experienciou-se,
aqui, tambm, um instigante e apaixonante novo desafio: a Geografia na Literatura.
Palavras-chave: Geografia; Literatura; Pelourinho.
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ABSTRACT
The inquiry of the city of Salvador, from Geography and Literature, allows the
clipping of images produced in determined times and contexts, becoming fulfilled in
this study an analysis of the space of the Pillory, as memory place, in the books Suor
and Jubiab of the Baiano writer Jorge Amado, in the decade of 1930 and today, dur-
ing the process of requalification in the history of life of the current inhabitants. The
cultural studies come to inaugurate a new way to think and to look at on the city...
The critical and poetical look of the city, caught for Jorge Amado was correlated
through the appropriation of the space perceived and felt for it, therefore its experi-
ences sow memories and representations on this space. It was investigated the
space lived for the inhabitants of the Seventh Stage of Requalification opposing the
debate on the urban planning, where in this stage the participation of the inhabitants
only happened. Considering the objective, a qualitative character methodology was
opted, under the documentary form, bibliographical and field, thinking of the esti-
mated memory place is that one lived deeply and experienced, giving to them feel-
ings and meanings. It was used half-structuralized personal interview, contends
opened, closed and double questions. The intentional not probabilistic sampling was
used (or for judgment, or vagueness doctrine). The ways covered for the personages
of the book Suor coincide with the ones of first stage of the requalification of the
CHS, and in Jubiab, with the ones of fourth stage, joining past and present in the
daily of the Pelourinho. With the study of these books the conclusion is that it does
not have an only city: they are multiple. To rethink the practical ones of requalifica-
tion, in which the desires and the dreams of the inhabitants are known, would raise
the man to the condition of citizen in this process. A multifaceted dimension was
brought of the Pillory and the citizens that frequented it. A reflection was presented
on the importance of the place and the way as it is perceived by the inhabitants, na-
tional and foreign tourists and for the public agencies. This research, when covering
the ways of the inter discipline, aims at to contribute with the development of others
as much in the line of Humanistic Geography, as well as inviting the urban planners
"to live deeply" the places in which will make the interventions. And that these are
human beings, focusing itself the diverse inhabitants who inhabit it and that in it also
they dream. With Geography and Literature, the reality was understood better and
the condition human being... trod new, pulsates ways in that experienced space. To
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look at is to feel what it is seen... and in the Pillory in the City of Salvador, Bahia,
much was seen, learned very, felt... was lived. The man, with its dynamic body, com-
plete and complex, beyond living creature, is integrant part of this space. He lived
deeply himself, here, also, an instigate and lovely challenge: Geography in Litera-
ture.
Key - Words: Geography; Literature; Pillory.
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INTRODUO
A cidade no conta o seu passado, ela o contm como as linhas da mo, escrito nos ngulos das ruas, nas grandes janelas, nos corrimos das esca-das, nas antenas dos pra-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmen-to riscado por arranhes, serraduras, entalhes, esfoladuras.
(TALO CALVINO, As cidades invisveis)
O Pelourinho, localizado na cidade do Salvador, Bahia, guarda em cada rua,
ladeira e beco... segredos, encantos, desencantos, magias... Inspirao e fascnio
de vrios poetas, pesquisadores, pintores, escritores, entre eles, o escritor baiano
Jorge Amado em vrios de seus romances... Neles, suas narrativas descrevem as
relaes scio-espaciais, tanto no plano do pensamento objetivo/racional, como no
plano da subjetividade.
Espaos se descrevem, se circunscrevem, se transformam e podem ser
poticos, dependendo da forma como so interpretados ou representados, quando
carregados de recordaes e significados, estes adquiridos atravs da experincia.
Para Bachelard (1993, p.19), o espao percebido pela imaginao no pode ser o
espao indiferente mensurao da gemetra. um espao vivido. E vivido no em
sua posteridade, mas com todas as parcialidades da imaginao.
Salvador, importante cidade brasileira, primeira capital do Brasil, tem uma
trajetria de muita histria. De um lado, uma cidade que encanta o mundo com sua
beleza, mistrio e riqueza arquitetnica; de outro, a cidade que segrega pela grande
desigualdade social, que esconde um mundo de misria.
O Pelourinho abrangia, antigamente, a rea compreendida entre o Terreiro
de Jesus e a Praa dos 15 Mistrios. Segundo Rocha (1994, p. 23), dentro destes
limites esto localizados alguns dos mais importantes monumentos da arquitetura
religiosa e civil do Brasil, solares, conventos e igrejas dos sculos XVII e XVIII.
A importncia do Pelourinho ficou caracterizada por Silva e Pinheiro (1997,
p. 1) quando afirmam:
El Pelourinho... tras conocer tiempos de esplendor y miseria, de indiferencia y abandono y, por ltimo, de restauracin de su grandeza histrica, la ur-dimbre del Pelourinho circunscribe un largo perodo que se inicia y confunde con el origen de la ciudad de Salvador, la ms antigua aglomeracin urbana brasilea, que durante 214 aos fue la sede del gobierno colonial de Portu-gal (1549-1763) y durante tres siglos fue la ciudad ms importante de la Amrica portuguesa.
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Na figura 2, o mapa da localizao do Salvador:
Figura 2 Mapa de Localizao: Brasil / Bahia / Salvador. Fonte: Base Cartogrfica 1992 CONDER. Elaborao e mapeamento preliminar: Ana Rosa Iberti e Helosa Arajo
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Considerado a principal rea de expanso urbana da cidade, no sculo XVII
e at meados do sculo XIX, viveu momentos de requintes, poca de prosperidade
econmica, onde os senhores de engenho, desembargadores e altos funcionrios
da administrao pblica construram seus suntuosos casares. quando tambm
as ordens religiosas erguem suas mais grandiosas e luxuosas igrejas.
Na segunda metade do sculo XIX, desencadearam-se mudanas significa-
tivas nas formas de sua ocupao e uso do solo. As classes privilegiadas que ali
residiam comearam a migrar para outros pontos da cidade, como para o Campo
Grande, Vitria e Barra, em busca de espaos mais abertos e arborizados, objeti-
vando construir suas manses.
Local de sonhos, lutas e mistrios, o Pelourinho inspirou Jorge Amado e o
cenrio de vrios de seus romances, a partir da dcada de 1930, onde o autor utiliza
o espao geogrfico como espao de vivncia e relata, atravs dos seus persona-
gens, as pssimas condies de vida dos seus moradores.
Nesse sentido, h de se ressaltar que a experincia e vivncia do escritor Jor-
ge Amado, que morou na adolescncia na Ladeira do Pelourinho, num pensionato que
funcionava num casaro, o 68, foram essenciais e enriquecedoras para represent-lo.
No sculo XX, em 1985, o Pelourinho foi tombado pela UNESCO Organi-
zao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura como Patrim-
nio da Humanidade em razo da sua histria e beleza arquitetnica.
Os vrios usos do espao do Pelourinho inserem-se no processo de produ-
o e reproduo do capitalismo, j que so, simultaneamente, produto e condio
para a sua existncia e continuidade. Carlos (1994, p. 33) salienta que a medida em
que a sociedade produz e reproduz a sua existncia de um modo determinado, este
modo imprimir caractersticas histricas especficas a esta sociedade e conseqen-
temente influenciar e direcionar o processo de produo espacial. 1Iniciou-se em 1992, o Programa de Revitalizao do Centro Histrico do
Salvador, com os objetivos de promover a recuperao e a restaurao fsica da -
rea, do seu potencial produtivo e da sua organizao social (CONDER, 1995). Faz-
se, ainda hoje, a restaurao fsica do local.
Esta pesquisa busca analisar o espao do Pelourinho, como lugar de mem-
ria, nas obras Suor e Jubiab do escritor baiano Jorge Amado e, hoje, durante a 7 1 O termo revitalizao deveria ser substitudo por requalificao pela natureza das intervenes,
que requerem tanto o contexto fsico (arquitetnico) quanto o econmico e o social.
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etapa do processo de requalificao do Centro Histrico de Salvador - C.H.S. Focar-
se- como as obras literrias de Jorge Amado analisadas constroem e legitimam o Pelourinho como lugar de memria. E, atualmente, durante o processo de requalifi-
cao do Centro Histrico de Salvador, como se constri a memria do Pelourinho?
Busca-se compreender o Pelourinho, como lugar, nos estudos de Tuan. Pa-
ra ele, o afeto que se tem por um lugar est, portanto atrelado experincia que se
pode ter neste espao. Tuan (1983) considera que as pessoas podem desenvolver
afetividade pelos espaos quando estes se transformam em lugares, permitindo uma
real experincia espacial.
A riqueza das obras de Jorge Amado, referentes ao Pelourinho, pode ser
comprovada, pois foi o romancista brasileiro com maior nmero de obras traduzidas
em todo o mundo e detentor de inmeros e importantes prmios nacionais e interna-
cionais. O autor considera a cidade e as relaes nela tecidas na produo de seu
imaginrio e das apropriaes dos personagens que nela habitam, fazendo-a mlti-
pla de significados para que ocorram as prticas sociais.
Nesta perspectiva, pode-se inferir que Jorge Amado vai muito alm da narra-
tiva, pois est fortemente inserido na histria que cantou e encantou, atravs da rea-
lidade vivenciada. Como ratificam Silva e Pinheiro:
Ningum contou melhor do que ele o mar, os becos e vielas, as ruas ngre-mes e os mistrios e magias da cidade da Bahia, espao privilegiado na fic-o amadiana. No h, portanto, qualquer dvida de que a cidade fonte de inspirao de escritores e desafio cotidiano de seus habitantes... (SILVA e PINHEIRO, 2004, p. 27).
Assim, sua narrativa o reflexo da cidade... Explorar-se- o texto literrio,
em conjuno com o texto geogrfico, enquanto fonte de conhecimento do social e
do econmico, com diferentes formas de percepo e leitura do real. Desta maneira,
Cndido (1985, p. 5) ressalta que o texto uma espcie de frmula, onde o autor
combina consciente e inconscientemente elementos de vrios tipos.
Este contexto fez surgir algumas questes: Quais os limites desse Pelouri-
nho nos romances? Coincidem com os limites da requalificao? Qual o cotidiano
dos personagens e dos atuais moradores do Pelourinho?
Na figura 3, o mapa do Pelourinho dentro da poligonal que delimita o Centro
Histrico do Salvador:
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Figura 3 - Mapa de Localizao: CHS / Pelourinho. Fonte: Base Cartogrfica 1992 CONDER. Elaborao e mapeamento preliminar: Ana Rosa Iberti e Helosa Arajo
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Essa representao espacial e social, elaborada por Jorge Amado, poder
contribuir para se pensar e repensar esse Pelourinho, que presencia e vive hoje a 7
Etapa da requalificao do Centro Histrico, especialmente no que se refere ao a-
tendimento habitacional, adequado a sua populao moradora que, atravs de pro-
testos e lutas da Associao dos Moradores e Amigos do Centro Histrico de Salva-
dor (AMACH), garantiu a efetiva participao nas importantes decises desta etapa.
Sua parte central e fsica est verdadeiramente transformada. Nesta 7 Eta-
pa, o processo de relocao est acontecendo com a participao dos moradores,
porque tambm no Relatrio da Misso Conjunta da Relatoria Nacional e da ONU,
de 29 de maio a 12 de junho de 2004, foram identificadas inmeras violaes no
CHS: Violao do Direito Moradia Adequada (art.6, da Constituio Federal); Vio-
lao do Direito Gesto Democrtica da Cidade (art. 2, inc.II, da Lei Federal n.
10.257/01); Violao do Direito Identidade e Manifestao Cultural (art. 215 e 216,
da Constituio Federal) e a No-discriminao (art.3, inc.IV, da Constituio Fede-
ral); Violao do Direito ao Trabalho (art.1, inc. IV; e art.170, incisos VII e VIII, da
Constituio Federal) e Recomendaes ao Governo Brasileiro.
Para a Misso, ficou clara a preocupao do poder pblico apenas com o pa-
trimnio arquitetnico e o desprezo ao patrimnio humano, que so os moradores do
Pelourinho.
O Programa de requalificao at a 7 etapa mostrou-se um desafio ao po-
der pblico, tendo em vista os insucessos nas relocaes e indenizaes dos seus
moradores. Uma reflexo se faz oportuna: onde est ou como ficou a preserva-
o da memria e da identidade cultural desta populao? Os antigos moradores
foram expulsos por no se enquadrarem nas novas exigncias que se impuseram ao
local, uma vez que eram tratados como a vergonha da cidade.
Nesta viso, Carlos (2004, p.112), enfatiza que um dos subprodutos da revi-
talizao a assepsia dos lugares, pois o degradado sempre o que aparece, na
paisagem, como o pobre, o sujo, o feio, exigindo sua substituio pelo rico, limpo,
bonito; caractersticas que no condizem com a pobreza.
Transitar, partindo-se das vivncias para uma anlise do espao geogrfico,
uma tarefa fundamental para a Geografia, medida que se cria base para conce-
ber, produzir, transformar e interpretar o espao, a partir dos anseios e das vrias e
reais necessidades e desejos de sua populao.
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Foi esse novo olhar, em relao ao Pelourinho, que a disciplina O Espao
Geogrfico na Literatura proporcionou s reflexes sobre o Espao Geogrfico, a-
travs das obras de Jorge Amado: Suor, Jubiab e Mar Morto. Nas suas obras, o
escritor utiliza o referido espao geogrfico para denunciar, de forma crtica e criati-
va, os problemas que afetam diretamente os moradores do Pelourinho, do entorno e
de toda a Cidade. Escreve com a propriedade de quem conhece e fala sobre o es-
pao vivido e percebido; remete a importncia dos seus romances para o estudo do
passado ao retratar todo um imaginrio de uma poca.
A pesquisadora motivou-se em conhecer o Pelourinho, no mais com o olhar
de turista, j que estava morando h apenas dois anos em Salvador. Ver esse novo
Pelourinho, observar e viajar nele, atravs das obras de Jorge Amado, foi essencial
para o desenvolvimento de um artigo, na disciplina Anlise Ambiental Urbana, sobre
o Programa de Recuperao do CHS e suas diversas etapas, identificando os as-
pectos positivos e negativos, na viso do seu pblico-alvo, desde o seu incio at
setembro de 2004, com a utilizao de uma viso integrada, holstica, histrica e
social.
Ratificou-se, assim, a idia sobre o foco da dissertao a ser realizada e h
muito sonhada: o Pelourinho, onde o passado torna-se presente por meio do pro-
cesso de interao e construo da memria. Ele se transforma em cenrio das
grandes mudanas sociais, econmicas e polticas, originadas pelas diversas inter-
venes e reconfiguraes espaciais, culturais e socioeconmicas.
Assim, a comunidade social e acadmica ter a sua disposio um estudo
sobre o Pelourinho, como lugar de memria, e reflexes acerca das suas origens e
transformaes e da importncia para este das obras de Jorge Amado e da atual 7
etapa da requalificao.
Objetivos
Objetivo Geral
Analisar o espao do Pelourinho como lugar de memria, nas obras Suor e
Jubiab do escritor baiano Jorge Amado, na dcada de 1930 e, hoje, durante o pro-
cesso de requalificao, na histria de vida dos atuais moradores.
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-
Objetivos Especficos
Relacionar as principais alteraes no uso do solo do Pelourinho;
Sintetizar o Programa de Recuperao do Centro Histrico de Salvador e suas
diversas fases de implantao;
Distinguir se os personagens e os caminhos relatados nos romances so os
mesmos encontrados hoje no Pelourinho;
Descrever a situao atual dos moradores do Pelourinho.
Reflexes tericas
O despertar silencioso, mas abrangente. Essa retomada das origens necessria para o nosso prprio equilbrio interior. A volta natureza tam-bm uma arte, a participao na grande arte de viver. (ANDRS, Os cami-nhos da arte).
Abordar-se- o espao do Pelourinho, sob o enfoque da Geografia Huma-
nstica, enfatizando o conceito lugar como foco da afetividade e da relao com o
meio ambiente e utilizando-se, como aporte terico-metodolgico, a Fenomenologia
para a abordagem do lugar que visa a descrever qual o significado do Pelourinho
como lugar de vivncia. Neste vis, far-se- a discusso acerca da importncia das
obras de Jorge Amado e do processo de requalificao do Pelourinho e de sua rele-
vncia, pois estas carregam o sentimento de pertencimento ao lugar.
Para Oliveira, L. (2002), as Cincias Humanas tm procurado vrias explica-
es para a compreenso do homem e do seu ambiente na fenomenologia, tendo-se
a vivncia e a experincia como os pilares dessa relao. A filosofia sempre privile-
giou o pensamento e a contemplao, ou seja, busca ir alm da experincia ingnua
do mundo.
Milton Santos considera que os gegrafos, junto com os cientistas sociais,
devam se preocupar com o espao legitimamente humano e observa: ... um espao que una os homens por e para o seu trabalho, mas no em seguida os separar em classes, entre exploradores e explorados; um espa-o matria inerte trabalhado pelo homem, mas no para se voltar contra ele; um espao natureza social aberta a contemplao direta dos seres huma-nos, e no um artifcio; um espao instrumento de reproduo da vida, e no uma mercadoria trabalhada por uma outra mercadoria, o homem artifi-cializado. (SANTOS, 1978, p. 219).
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-
Nesta perspectiva, Santos (1995, p. 24) ressalta que o Pelourinho pode ser
estudado sob o ponto de vista da fenomenologia,... sobretudo se acrescentamos o
enfoque existencialista. Eu diria que a sociedade ela ; o que existe o espao. O
espao a existncia da sociedade.
Vrios filsofos e gegrafos tentaram definir o espao ou buscaram se apro-
ximar do seu sentido. Edmund Husserl (1859-1938), filsofo alemo, considerado
o fundador da Fenomenologia Moderna. Alertou que se deveria buscar as essncias
do fenmeno e isso s poderia ser feito indo ao encontro dos sujeitos no seu mundo
da vida.
Husserl incluiu, como idia fundamental em sua fenomenologia, a noo de
intencionalidade como sendo algo inerente ao ato do conhecimento. Para Husserl
(1986, p. 170), a fenomenologia um caminho, ou seja, um mtodo e conclui que o
desenvolvimento de um mtodo real para compreender em sua intencionalidade a
essncia fundamental do esprito e para construir a partir da uma teoria analtica do
esprito que se desenvolva at o infinito de modo coerente, conduz Fenomenologia
Transcendental.
Para Bachelard (1993), em outra viso, a fenomenologia da imaginao o
fenmeno do aparecimento da imagem potica da alma do ser humano. A base des-
sa via potica a experincia fenomenolgica da presena. Assim, Bachelard (1993,
p. 9) assinala:
A fenomenologia no alcana o momento do racionalismo dos conceitos, o instante da nova conscincia, onde o racionalismo subitamente nega a his-tria da aquisio das idias para designar e organizar as idias constituti-vas... A tomada de conscincia racionalista , pois nitidamente uma nova conscincia. uma conscincia que julga seu saber e que quer transcender o pecado original do empirismo.
O autor ressalta que o estudo dos movimentos da imaginao deve conduzir
ao infinito, que na linguagem dos poetas, corresponde a imaginao pura. Assim, a
imagem literria desvela o papel imaginante da linguagem. O poeta no me confere
o passado de sua imagem e, no entanto, ela se enraza imediatamente em mim.
(BACHELARD, 1993, p. 2)
Neste amplo campo de reflexo, a geografia e a literatura se entrecruzam
como leituras possveis de uma recriao imaginria da realidade, que constroem e
do sentido ao mundo. Ao mesmo tempo em que se aproximam fico e realidade,
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http://www.cobra.pages.nom.br/ftm-fenomeno.html
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observam-se tambm suas diferenas e constata-se que as narrativas literrias, ge-
ogrficas e histricas so formas diferentes de percepo do real.
Nesse sentido, o texto literrio cria as condies de ampliar e lanar a cons-
truo de conhecimento, de maneira a formar novos conjuntos de idias, imbudas
da narrativa vivenciada e da objetividade buscada pela cincia, via a insero das
obras da literatura e da geografia. Uma interdisciplinaridade de conhecimentos fo-
menta a importncia do desenvolvimento e do amadurecimento da capacidade de se
ler o Pelourinho de diferentes pontos de vistas, sob diversos olhares.
O caminho terico e conceitual serve de aporte para novas discusses, no-
vas formas de leituras sobre o lugar. Pretende-se discutir o conceito de lugar luz
dos conceitos de Tuan, alm de construir-se um dilogo com outros tericos da Ge-
ografia, da Filosofia e da Antropologia, como norteadores do entendimento de como
se d esse sentimento dos moradores e turistas em relao ao Pelourinho.
As grandes cidades apresentam lugares e no-lugares. Segundo Aug, o lu-
gar se define por seu carter identitrio, histrico e relacional e um espao que no
pode se definir nem como identitrio, nem relacional, nem como histrico definir um
no-lugar. (AUG, 2003, p. 73). O ato potico que identifica a arte um dos dispo-
sitivos de retomada desse espao subjetivo da cidade.
A expresso lugares de memria foi criada pelo historiador francs Pierre
Nora (1993) que chama a ateno para as questes significativas das sociedades
modernas, com relao cultura contempornea, principalmente entre a conscincia
coletiva e entre a memria e a identidade.
Outros conceitos se somam a esse debate so o de memria e patrimnio.
Le Goff (1977) faz consideraes acerca do pensar e do conhecer, tendo como eixo
base a preocupao com a memria, impedindo que os acontecimentos se percam
no fluir do prprio tempo.
A experincia dos espaos estrutura os padres de identificao do sujeito
com o meio ambiente. Segundo Tuan (1983, p. 10), "experincia aprender, com-
preender; significa atuar sobre o espao e poder criar a partir dele". Portanto, ne-
cessrio que o processo cognitivo se desenvolva, atravs da percepo e da apre-
enso do espao, para que o indivduo possa conhec-lo e ter a conscincia da pos-
sibilidade de sua atuao sobre ele.
Neste contexto, acredita-se que o lugar expressa os significados e o sentido
da experincia vivida. Como o prprio autor enfatiza, quando afirma que o que co-
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mea como espao indiferenciado transforma-se em lugar medida que o conhe-
cemos melhor e o dotamos de valor. (TUAN, 1983, p. 6).
Para Relph (1976), o lugar no pode ser definido em termos de localizao,
e sim, na construo da identidade das pessoas, ou seja, quanto maior a relao
entre a pessoa e o lugar, maior a identidade entre eles. O autor destaca que na
experincia do lugar existe a sensao de pertencimento, da prpria vivncia pro-
longada, fundamental para a caracterizao do lugar.
Santos (2000) ressalta a importncia do estudo dos lugares para um verda-
deiro entendimento dos processos de produo e reproduo espacial. Seu
pensamento percorre dois caminhos bsicos: reflexes filosficas sobre a natureza
do espao geogrfico e a compreenso do mundo, a partir das experincias em
torno do vivido das pessoas, dando destaque categoria lugar.
O lugar no apenas um quadro de vida, mas um espao vivido, isto , de
experincia sempre renovada. (SANTOS, 2000, p. 114). Assim, o lugar, sob o ponto
de vista de mundo vivido, leva a anlise geogrfica a uma outra dimenso: a dos
objetos, das aes, das tcnicas e do tempo. Da advm a fora do lugar, pois ca-
da um deles tem sua histria, expressa no modo de viver das pessoas, de se orga-
nizar e de se pensar alternativas. Essa uma realidade tensa,... e onde a globaliza-
o e localizao, globalizao e fragmentao so termos de uma dialtica que se
refaz com freqncia (SANTOS, 1996, p. 252).
O conceito lugar passa a conduzir o entendimento da transformao da na-
tureza em produto cultural, por meio de valores, sentidos e sentimentos, gerados por
determinadas sociedades com o seu espao experienciado. Carlos (1994, p. 89)
ressalta que no lugar emerge a vida... Cada sujeito se situa num espao concreto e
real onde se reconhece ou se perde, usufrui e modifica, posto que o lugar tem usos
e sentidos em si. Tem a dimenso da vida.
Merleau-Ponty (1999, p. 328) sugere que o espao no o ambiente (real
ou lgico) em que as coisas se dispem, mas o meio pelo qual a posio das coisas
se torna possvel. Entende-se espao a partir da experincia do eu, do outro, com o
mundo vivido e no vivido. Para tanto necessria a percepo, que prpria de
cada um, pois perceber algo ter conscincia deste algo.
A importncia da nossa experincia em ver o mundo destacada por Mer-
leau Ponty (2000, p. 64), quando preconiza que ... ao mesmo tempo verdade que
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o mundo o que vemos e que, contudo, precisamos aprender a v-lo. Ento, reali-
dade o vivido.
Assim, Jorge Amado escreveu suas obras tendo por base a vida, sua per-
cepo e seu contexto. Desta forma, seus livros dialogam com o seu tempo. A
realidade foi a fonte permanente de sua fico, os personagens do romancista resul-
tam da soma de figuras que fazem parte da sua experincia de vida. (SANTOS,
1993, p. 35).
O professor Carlos Augusto de F. Monteiro realiza pesquisas procurando o
que chama de contedo geogrfico de criaes romanescas. Dentre suas obras,
destaca-se O Mapa e a Trama, na qual deixa bem claro que o mapa significa o
contexto estrutural de configurao espao-temporal, onde acontece o dinamismo
da ao trama, criada pelo escritor. Ressalta que os bons escritores, como teste-
munhos de seu tempo, captam eventos retratando os aspectos da condio humana
que tiveram lugar. (MONTEIRO, 2002, p. 86)
Ressaltam-se os trabalhos da Professora Lvia de Oliveira (2002), gegrafa,
pesquisadora e precursora na introduo e no desenvolvimento de pesquisas volta-
das percepo e cognio do meio ambiente. Desde a dcada de 1970, ela vem
divulgando e influenciando pesquisadores nas linhas de pesquisas voltadas per-
cepo e compreenso do homem em seu ambiente vivido.
As obras literrias constituem documentos desafiadores. Nelas, acham-se
textos que lem a cidade, pois so representaes do real, apropriadas pelos sujei-
tos. Para Le Goff (1994, p. 13), elas refletem no s as situaes concretas, mas
tambm um imaginrio de poder, da sociedade, do tempo, da justia. , enfim, con-
siderar a cidade na fala de seus moradores...
Le Goff (1977) foi o principal responsvel, nas ltimas dcadas, pela difuso
internacional da viso e valorizao da memria como categoria explicativa do social.
Vale aqui ressaltar a importncia da memria como elemento da identidade e de
pertencimento do morador ao seu lugar.
Assim, o Centro Histrico requalificado torna-se invivel para seus antigos
moradores, devido valorizao imobiliria, convertendo-se numa constante e cres-
cente tenso entre uma permanncia material estilizada e uma profunda ruptura so-
cial, tristemente acompanhada da impossibilidade da vida urbana que lhe dava sen-
tido.
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Um grande exemplo dessa alienao a falta de participao da populao
local do Pelourinho, at a sua 6. Etapa. Assim, para Oliveira, A. (2002, p. 15): A memria utilizada como pano de fundo foi a memria que sempre preva-leceu nos processos de preservao/conservao do nosso patrimnio his-trico, uma memria unitria/ centralizadora cujo objetivo foi privilegiar (...) a uma elite branca/ catlica/ culta sem a participao de mais ningum. (OLIVEIRA, A. 2002, p. 15)
Os espaos de poder ou dominantes so lugares dos homens lentos, que
teimam em no se adaptar nova ordem, que insistem em oferecer resistncia ao
modelo hegemnico, que so a melhor alternativa ao desenho global, apresentado
pelo capitalismo. Deixado ao quase exclusivo jogo do mercado, o espao vivido
consagra desigualdades e injustias e termina por ser, em sua maior parte, um es-
pao sem cidados. (SANTOS, 1997b, p. 43).
Milton Santos, ao discutir os imperativos econmicos da globalizao sobre
a geografia cultural das cidades, aponta a presena das contra-racionalidades, essa
fora que se baseia nas horizontalidades sociais e no cotidiano, como mundo da
heterogeneidade criadora. (SANTOS, 2000, p.127). Essas contra-racionalidades se
caracterizam pelos espaos das vivncias cotidianas, a despeito das foras globali-
zantes e homogeneizantes do capital.
Procedimentos Metodolgicos
Referindo-se "polifonia da cidade", Canevacci prope que uma maneira de
pensar e conhecer a cidade esto no objeto e no mtodo: ...significa que a cidade em geral e a comunicao urbana em particular comparam-se a um coro que canta com uma multiplicidade de vozes aut-nomas que se cruzam, relacionam-se, sobrepem-se umas s outras, iso-lam-se ou se contrastam; e tambm designa uma determinada escolha me-todolgica de dar voz a muitas vozes. (CANEVACCI, 1999, p. 18).
Na primeira fase, buscando compreender melhor o objeto de estudo, o Pe-
lourinho, foi realizado um levantamento bibliogrfico sobre a temtica, por meio de
fontes de consultas variadas, como artigos, jornais, livros, dissertaes e teses.
Paralelamente pesquisa bibliogrfica, foi desenvolvida uma pesquisa do-
cumental e cartogrfica em rgos pblicos, a exemplo do Instituto Histrico e Geo-
grfico da Bahia, Fundao Gregrio de Matos, Instituto Brasileiro de Geografia e
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Estatstica, Companhia de Desenvolvimento de Salvador e Instituto do Patrimnio
Artstico e Cultural.
Diante do objetivo proposto, optou-se por uma metodologia de carter quali-
tativo, mais apropriada realizao deste estudo, pois parte-se do pressuposto que
o lugar de memria aquele experienciado, dando quele lugar sentimentos e signi-
ficados. Utilizar-se- os conceitos e teorias desenvolvidas no mbito da geografia
humanstica e da percepo, bem como da fenomenologia. Trabalha-se a percep-
o, a partir de Merleau-Ponty, e, imaginao, a partir de Bachelard, entendendo o
lugar Pelourinho atravs das narrativas de Jorge Amado e da experincia dos seus
moradores.
Para Moraes e Costa (1987, p.29), o mtodo constitui o ponto de partida,
mas ele no deve ser visto como algo esttico e cristalizado; no deve ser uma ca-
misa-de-fora para o pesquisador.
A pesquisa qualitativa cobre diversas formas de investigao, ajudando a
compreender e descrever o significado dos fenmenos (ALVES FILHO, 2000) e co-
meou a ganhar espao reconhecido na Sociologia, na Antropologia e na Psicologia,
e, de acordo com Godoy (1995, p. 57-63), tem permitido a anlise de alguns aspec-
tos mais amplos de interesse da rea, objeto desta pesquisa.
Neste tipo de pesquisa, no existem regras precisas e passos a serem se-
guidos. O bom resultado da pesquisa depende de sensibilidade, intuio, bom senso
e experincia do pesquisador, pois, segundo Honrio (1997), "um estudo que en-
volve a obteno de dados sobre pessoas, lugares e processos interativos, pelo con-
tato direto do pesquisador com a situao estudada" e onde as dificuldades e os li-
mites da pesquisa, as contradies apresentadas, as consistncias ou inconsistn-
cias das respostas devem ser claramente explicitadas pelo pesquisador para que
outros pesquisadores analisem as concluses obtidas. (GOLDENBERG, 1999)
A preocupao, portanto, est no processo, e no simplesmente nos resul-
tados ou no seu produto. Com a utilizao da pesquisa qualitativa pode-se estudar
as inter-relaes das situaes, freqentemente invisveis para os observadores ex-
ternos. O interesse, sem dvida, verificar como um determinado fenmeno se ma-
nifesta nas atividades, nos procedimentos e nas interaes dirias, porque se acre-
dita que qualquer fenmeno pode ser melhor compreendido e observado no prprio
contexto em que ocorre e do qual faz parte.
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Com base na realizao das entrevistas com moradores da rea pesquisa-
da, busca-se explicitar quais as relaes afetivas que estes mantm com o Pelouri-
nho. Assim, a partir das representaes individuais dos moradores, chega-se a uma
representao coletiva. Significa, antes, descrever os fatos tais como so vividos, ou
seja, tal como so concretamente revelados na experincia. Ouvir as narrativas sig-
nifica entrar em contato com os fragmentos do passado para ter sentido o presente.
Os dados primrios, sendo dados que nunca foram coletados, so obtidos
normalmente a partir de pessoas, atravs de suas opinies e decises, so impor-
tantes determinao do mtodo pelo qual o pesquisador ir chegar pessoa en-
trevistada, metodologia de formulao das perguntas e forma como sero regis-
tradas as respostas. (LIVINGSTONE, 1982, p. 13).
Neste estudo, utilizou-se a entrevista pessoal e a observao. O roteiro de
entrevista fornecer o entendimento do espao do Pelourinho, enquanto lugar de
memria, assim como suas diferentes formas de ocupao. A construo de carto-
gramas permitiu, por sua vez, a visualizao das ruas, e tambm de seus diferentes
usos ao longo do tempo.
Concebe-se o trabalho de campo como um instrumento de anlise geogrfi-
ca que permite o reconhecimento, compreenso e interpretao do espao do Pe-
lourinho, enquanto realidade. Benjamin (1994) faz uma importante considerao so-
bre a memria na relao da cultura, por intermdio das vivncias dos seus cida-
dos, e realiza uma narrativa delineada por suas experincias histricas e culturais.
Os dados secundrios, por sua vez, so dados que j foram colhidos para um
outro propsito, segundo Nickels (1999, p. 92). Mas, embora os dados secundrios
tenham sido coletados para outra finalidade, eles foram muito teis para o propsito
deste estudo, alm de se constiturem fontes mais rpidas, econmicas e de fcil a-
cesso.
No enfoque qualitativo, de acordo com Trivinos (1987), pode-se usar a entre-
vista estruturada, ou fechada, a semi-estruturada e a entrevista livre ou aberta. A
entrevista semi-estruturada, utilizada neste estudo, valoriza a presena do investiga-
dor e, ao mesmo tempo, oferece todas as perspectivas possveis para que o infor-
mante, seguindo a linha do seu pensamento e de suas experincias, alcance a liber-
dade e a espontaneidade necessrias, mas enriquecendo a investigao e partici-
pando na elaborao do contedo da pesquisa, mas mantendo-se no foco colocado
pelo pesquisador.
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Pode-se entender entrevista semi-estruturada, de acordo com Trivios (apud
LA BANCA, 2001, p. 65-66), "como aquela que parte de certos questionamentos b-
sicos, apoiados em teorias e hipteses, que interessam pesquisa e que, em segui-
da, oferecem amplo campo de interrogativas", ou como aquela que, de acordo com
Richardson (1985), permite obter certas informaes do entrevistado, os fatos que
ele conhece ou do seu comportamento, conhecer a sua opinio, explorar suas ativi-
dades e motivaes e identificar a sua capacitao, bem como a sua formao.
O roteiro de entrevistas, Apndices A, B e C, composto de questes fecha-
das e abertas. O roteiro das entrevistas requer muita preparao do pesquisador e o
ajuda a no perder o foco e a lembrar sobre as informaes que deviam ser coleta-
das em funo de sua relevncia para o estudo e para os objetivos focados.
Na pesquisa qualitativa no existe uma preocupao extenuante com a de-
terminao precisa do tamanho da populao investigada ou com a amostra retirada
desta. A preocupao maior com a representatividade da amostra e no com a
quantificao desta. Neste tipo de pesquisa, Trivios (1987, p.132) afirma que se
procura uma espcie de representatividade do grupo maior dos sujeitos que partici-
paro no estudo.
A amostra de 20 moradores entrevistados, de diferentes faixas etrias, g-
nero e situao socioeconmica, considerando-se preferencialmente aqueles que j
moram no CHS h mais de 20 anos, alm de representantes dos rgos pblicos,
IPAC e CONDER, e dos 80 turistas, dos quais 40 nacionais e 40 estrangeiros, foi
selecionada atravs de amostragem no probabilstica. Na viso de Smara (1997,
p. 70), ela selecionada por critrios subjetivos do pesquisador, de acordo com sua
experincia e com objetivo do estudo.
Aplica-se este tipo de amostragem em pesquisas exploratrios ou qualitati-
vos, como este estudo. Os entrevistados includos foram considerados pela pesqui-
sadora como tpicos da populao, apesar de no ser possvel se fazer afirmaes
assertivas e conclusivas sobre a populao em estudo (MATTAR, 1999, p. 272). As-
sim, na perspectiva de Silva e Menezes (2001, p. 32), foram escolhidos casos para
a amostra que representem o bom julgamento da populao/universo.
O objetivo destas entrevistas, com estes pblicos, apresentar uma reflexo
sobre a importncia do lugar e do modo como ele percebido e sentido. A discus-
so terica, at aqui, tentou enfatizar o lugar que considera as imagens construdas,
atravs das experincias vividas, revelando suas representaes sobre aquele lugar.
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A quantidade de entrevistados baseou-se na consistncia dos dados obti-
dos, nas entrevistas pessoais e, portanto, foi representativa da populao. Com esta
amostra acredita-se que foram alcanados os objetivos propostos neste estudo.
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CAPTULO I: PELOURINHO: LUGAR DE HISTRIA
Estudar o imaginrio de uma sociedade ir ao fundo da sua conscincia e da sua evoluo histrica. (Jacques Le Goff, O imaginrio medieval).
1.1 Ocupao inicial e expanso
Na era moderna, tudo visivelmente passa rpido, assim como ... o dia des-
faz o trabalho da noite, no se consegue captar tudo o que se v, sente e ouve.
(BENJAMIN, 1996, p. 29). O filsofo Walter Benjamin revela a linguagem do seu
tempo e suas obras so uma amostra disso. A Paris do sculo XIX, que encanta
Benjamin, atravs de Baudelaire, a cidade da experincia urbana e o local dessa
imagem j no a praa pblica, mas as grandes e largas avenidas, os bulevares e
as galerias da cidade que sofrem o impacto da modernizao.
Porm, Benjamin acredita que a cidade do sculo XIX, ao lanar seu habi-
tante numa srie de rpidas e novas situaes, ameaa-lhe a capacidade de trans-
formar vivncia em experincia, onde o passado desaparece para atender as neces-
sidades do presente. Desta forma, a cidade descrita por Benjamin, Paris, o espao
destinado perda da individualidade e da tradio, entendida como experincia.
Uma boa parte da histria da cidade do Salvador, capital do estado da
Bahia, pode ser sentida ainda hoje ao se caminhar no Pelourinho, por suas ladeiras
e ruas, ao se reviver um pouco da sua histria. Assim, as obras de Jorge Amado
convidam a experienciar as ruas, as praas, os becos... numa relao privilegiada
entre a literatura, a geografia e a histria.
No largo do Pelourinho, onde o suplcio matava, no de dor, mas de vergo-nha, onde o sangue derramado deu cor s pedras da rua, onde a carne nua sangrava a vista de toda gente. Esta a praa citada pelo romancista Jor-ge Amado, como de muita grandeza, de muita beleza, de muito sofrimento, de muito amor. (ROCHA, 1994, p. 21-22).
O primeiro perodo da evoluo urbana da cidade estabelece-se entre sua
fundao em 1549, por Tom de Sousa, e a expanso inicial da capital em finais do
sculo XVI. A cidade foi erguida no alto de uma escarpa, caindo em forte declive at
a Bahia de Todos os Santos. A escolha do local obedeceu a uma lgica porturia e
defensiva.
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Tom%C3%A9_de_Sousa
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Contemplando a paisagem urbana de Salvador, as imagens contam histrias
e suscitam inmeras lembranas de uma cidade idealizada nos moldes medievais
de Lisboa, com suas ruas estreitas e curvas e dispostas, perpendicularmente, umas
s outras. Cresceu em dois planos (cidade alta e cidade baixa) e foi a primeira cida-
de planejada do Brasil. A cidade formou-se a partir da Praa do Palcio, hoje Praa
Municipal ou Praa Tom de Souza, conhecida como a mancha matriz da cidade
do Salvador. Ali eram concentradas todas as atividades da cidade: administrativa,
religiosa, residencial e comercial.
Silva e Pinheiro (1997, p. 3) complementam que a escolha do stio de difcil
topografia foi determinada principalmente pelo fator de defesa. Se por um lado
favoreceu, por outro, imps que a cidade fosse construda em dois planos. Nascia
a, a diviso de Salvador em cidades Baixa e Alta. Aproveitando-se desse
movimento natural, o urbanismo futuro erguer uma cidade de arte, considerada
como uma das mais belas paisagens do mundo.
Cordeiro (2003) reconstitui o traado urbanstico original de Salvador, uma
fortaleza erguida no sculo XVI, onde as ruas eram em linha reta. Inspirou-se no ur-
banismo renascentista, de forma que o traado da cidade reproduzia as propores
do corpo humano, conforme figura abaixo:
1. Cabea: numa evidncia do poder dos jesu-tas, a sede da congregao foi erguida no local equivalente cabea. Perto dali, hoje, fica o Pelourinho.
2. Corao: ali, ergueu-se a Praa da S, onde ficava a catedral, demolida na dcada de 1930.
3. Umbigo: a Praa Municipal concentrava o palcio do governador-geral, a sede do Poder Judicirio e a cadeia. Hoje, o local um esta-cionamento, prximo prefeitura.
Figura 4 Traado urbanstico de Salvador segundo Cordeiro Fonte: Infogrfico, rika Onodera.
Assim, os principais agentes de expanso foram a Igreja, atravs do seu ri-
gor, e o Estado, sobretudo no papel defensivo. O centro administrativo e econmico
da cidade, at o sculo XVII, era composto de dois bairros: o da S, que inclua a
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rea entre o Terreiro e quarteires adjacentes, e a Praa Castro Alves, e o Bairro da
Praia, que abrangia o trecho entre a Preguia e a Praa Cair, estendendo-se at o
Porto. A cidade j se havia expandido na direo norte, passando pelo Carmo, at o
Santo Antnio, que se caracterizavam como zonas residenciais. Na direo sul, ini-
ciava-se a expanso para os lados do So Bento.
Nos sculos XVI e XVII, Salvador j era a maior cidade europia fora da Eu-
ropa, lembra o historiador baiano Cid Teixeira (apud KLINKE, 1999, p. 2). A funo porturia tambm assume papel fundamental na economia da cidade, na exportao
da cana de acar e, mais tarde, do fumo e do ciclo da minerao do ouro, que tive-
ram importantes reflexos para o desenvolvimento da cidade. ... Era pelo mar que a
cidade se articulava com o mundo", compara Teixeira. Salvador, conclui, foi, desde o
primeiro instante, cosmopolita.
Tem-se, tambm, desde meados do sculo XVII, o Pelourinho, que era uma
rea possuidora de suntuosas construes religiosas e casas nobres. Ali residiam os
grandes comerciantes, senhores de engenho e altos funcionrios administrativos.
a partir deste momento, no sculo XVII, que Salvador comea a desempenhar o pa-
pel que caracterizar sua configurao urbana, o de metrpole regional e de capital
econmica do recncavo. (SANTOS, 1959, p. 36-37)
A maior herana da arquitetura colonial acontece durante o sculo XVIII, como
destacaram Silva e Pinheiro (1997, p. 10), morada de bares e senhores de engenho,
o bairro do Pelourinho atinge o seu apogeu. Assim revela um tempo lento em que os
homens e mulheres de posse circulavam, sem pressa, pelo labirinto de ruas e becos, ou
ficavam prosando as sombras das frondosas mangueiras dos quintais....
A primeira crise sofrida pela funo administrativa foi a relocalizao da capi-
tal do pas para o Rio de Janeiro em 1763. Salvador acaba de perder, neste momen-
to, segundo Santos (1959, p. 39), o lugar de primeira cidade da colnia, em vista a
transferncia de importantes servios e numerosos funcionrios.... Na segunda me-
tade do sculo XVIII e em fins do sculo XIX, vive e convive com a decadncia do
escravismo.
O sculo XIX conservava os limites que a cidade tinha no sculo anterior, o
cotidiano existente entre a Cidade Baixa e a Cidade Alta, como o de trabalhadores,
carregadores ambulantes, comerciantes... Assim, Mattoso (1992, p. 439) adverte que
todas as classes sociais se misturavam nas ladeiras da Conceio. Da Gameleira e,
a partir de 1871, no elevador levavam os trabalhadores at a parquia da S.
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Deve-se ressaltar, porm, que a limpeza e a conservao das ruas eram
precrias. Era comum abandonarem animais mortos nas ruas que ali apodreciam,
exalando fortes odores. Assim viviam os baianos, numa cidade ao mesmo tempo
dura e encantadora que se infligia muitos incmodos a seus habitantes, tambm
lhes proporcionava refgios amenos. (MATTOSO, 1992, p. 441-445)
Entre o final do sculo XIX e incio do sculo XX, caracteriza-se pela forma-
o de novos bairros, que se beneficiam dos novos transportes, possibilitando a ha-
bitao longe do centro.
O Professor Milton Santos, na obra intitulada O Centro da Cidade do Sal-
vador, descreve o Pelourinho como uma ladeira-praa, de forma irregular, rodeada
de edifcios do sc. XVIII e XIX, casas nobres de dois e trs andares que serviram
de residncias s famlias ricas, mas que hoje caram em runas. (Santos, 1959,
p. 165-166). Isto est representado na figura 5 abaixo:
Figura 5 Localizao do Pelourinho Fonte: Santos, 1959.
O Pelourinho sofre uma grande mudana quanto ao uso e ocupao do solo.
As famlias ricas que ali residiam comearam a migrar para o Corredor da Vitria,
Piedade, Nazar, e assim o Pelourinho foi perdendo as mais importantes famlias
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aristocrticas. A cidade v a sua populao multiplicar-se por cinco, como esclareci-
do por Santos (1959), pois tanto os progressos na agricultura, como a imigrao de
milhares de sertanejos, expulsos pelos ciclos de seca, vm contribuir para este au-
mento da populao.
No incio do sculo XX, Salvador, assim como muitas outras capitais brasilei-
ras, passa por um processo de modernizao, de grandes transformaes no seu cen-
tro, o que cria necessidade de alargamento das ruas.
No inverno de junho de 1934, foi demolida a Igreja da S, monumento ex-
pressivo da Bahia por sua importncia histrica, para dar lugar s novas exigncias
do transporte moderno. Na poca, o jovem escritor baiano Jorge Amado escreveu:
Diz a lenda que a Cidade do Salvador conta com 365 igrejas, uma para ca-da dia do ano. Talvez os que falem em 365 computem igrejas j desapare-cidas, mas que ainda vivem na memria do povo como a S ou antiga Igreja da Ajuda... Nunca se sabe o que verdade e o que lenda nesta cidade. No seu mistrio lrico e na trgica pobreza, a verdade e a lenda se confun-dem. (AMADO, 1997, p. 69)
Segundo Cid Teixeira (2006), a Companhia Linha Circular queria modificar o
trnsito de seus bondes, mas a Igreja da S estava no meio. Descreve a localizao
da Igreja da S, a fachada voltada para o mar, onde est a Cruz Cada, o corpo da
igreja atravessando tudo aquilo e os quarteires todos, porque no foi s a igreja
que foi derrubada, foi a igreja e todos os quarteires ao redor. E conclui que a
Companhia Linha Circular, fez a sua sede ali, onde est hoje a Coelba, aquele
prdio foi feito pela Circular para ser sua sede, tinha todo o empenho em derrubar e
patrocinou inclusive financeiramente, verdade.
Pinheiro tambm destaca que a cidade do Salvador modifica-se ao longo do
sculo XIX, adaptando-se ao novo modelo de vida imposto para a nova sociedade.
Assim ele ressalta: A S perde um pouco seu carter residencial, ao deixar espao
para instalao de um comrcio varejista, at ento concentrado na Cidade Baixa.
(PINHEIRO, 2002, p.193).
A figura 6, a seguir, apresenta a Praa da S depois de demolida a Igreja.
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Figura 6 - Praa da S, primeira verso depois de demolida a Igreja. Fonte: Fundao Gregrio de Matos, 2007.
O Pelourinho, a partir da dcada de 1930, tem, como marco do seu processo
de degradao, o deslocamento do meretrcio da Rua Carlos Gomes para o Maciel,
onde existia grande quantidade de prdios arruinados e abandonados. O cotidiano
do Pelourinho foi completamente modificado, passando a ser freqentado por uma
populao de baixa renda, chegando a registrar-se 154 pessoas residindo em um
nico imvel. (SILVA e BRAGA, 2000, p.1). Assim, proliferam as habitaes coleti-
vas por toda rea.
Desde a dcada de 1930, quando a atividade prostitucional se instalou no
Maciel, rea ao sul do Pelourinho, onde est concentrada a prostituio, fez surgir
uma srie de esteretipos que classificavam a rea como local de perigo e de mar-
ginais. Segundo o socilogo Gey Espinheira (2000, p. 20), a prostituta a forma de
resistncia desde o momento em que ultrapassou os limites da casa para ganhar o
espao pblico. E complementa: os homens que usufruam dessas mulheres se
sentiram ameaados por aquelas criaturas estranhas, que transgrediam fsica e so-
cialmente os limites da mulher. Eis a razo do estigma.
No seu livro Divergncia e prostituio: uma anlise sociolgica da comunida-
de prostitucional do Maciel (1974), Espinheira apresenta o estudo da realidade social
e econmica da prostituio e da comunidade localizada no bairro Maciel. Reflete
tambm sobre a concentrao da prostituio no Pelourinho pelo processo de degra-
dao da rea e pela ao da polcia. Como fica claro no Dirio de Notcias (1969):
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Homossexuais e prostitutas tero as suas cabeas raspadas mquina zero caso sejam flagradas a partir do dia 28 na prtica do trottoir em via pblica. A declarao foi do delegado Orlando Bacelar de Jogos e Costumes que j ini-ciou a represso ao vo das mariposas... ontem noite e recolheram deze-nove mulheres da vida... principalmente na Carlos Gomes, Terreiro de Jesus e Praa Cair. (apud ESPINHEIRA, 1974, p. 60).
O Maciel era um exemplo das conseqncias do crescimento no planifica-
do das reas perifricas. Possua uma populao diversificada, uma concentrao
de prostitutas, traficantes de drogas, que conviviam com outros grupos como lava-
deiras e vendedores ambulantes. Os grupos familiares do Maciel isolavam-se numa
mesma habitao, escudados pela palavra famlia, escrita em lugar visvel, como
uma advertncia s pessoas.
O tempo e espao de Santos foram sempre a luta e o desejo de construir re-
almente a cidadania. Promove uma reflexo sobre o espao que aliena e o espao
da desalienao, quando afirma:
...existe uma ntima relao entre alienao moderna e a construo do es-pao do sujeito. Quando o homem se confronta com um espao que no a-judou a criar, cuja histria desconhece e cuja a memria lhe estranha, es-te lugar fonte de uma vigorosa alienao, uma vez que o entorno vivido lugar de interaes e trocas, matriz de um processo intelectual. (SANTOS, 1987b, p. 52)
Dessa convergncia entre espao e ao, estruturam-se manifestaes p-
blicas diversas, a partir dos significados que as pessoas atribuem a certos espaos
da cidade. Nesse espao comum, que cotidianamente trilhado, vo sendo cons-
trudas coletivamente as fronteiras simblicas que separam, aproximam, nivelam,
hierarquizam ou, numa palavra, ordenam as categorias e os grupos sociais em suas
mtuas relaes. (ARANTES, O. 2000, p.106).
O espao urbano resume uma longa histria de atividade social. Ele reflete
os diferentes ambientes culturais e as variadas estruturas econmicas que envolve-
ram a sua produo, que, no caso do Pelourinho, permaneceu por muito tempo, fa-
vorecendo a degradao da estrutura fsica e da organizao social da rea.
No sculo XX, o Pelourinho foi tombado pela UNESCO como Patrimnio da
Humanidade em funo da sua histria, beleza arquitetnica e caractersticas cultu-
rais. Para Miranda e Santos (2002, p. 37), um espao s chega situao de centro
histrico quando o tempo e a cultura do local deixam nele os seus vestgios atravs
das mudanas que se sucedem na sociedade, refletindo na sua morada.
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Em 1992, iniciou-se uma grande restaurao que tornou o Pelourinho uma rea
fortemente atrativa para turistas. Faz-se, ainda hoje, a requalificao fsica do Centro
Histrico de Salvador, ela que foi originalmente dividida em 10 etapas. Hoje, est-se na
7 etapa. Em anexo os mapas, contendo as seguintes etapas da requalificao: Anexo
A: 2 etapa; Anexo B: 3 etapa; Anexo C: 5 etapa e Anexo D: 6 etapa.
As cidades representam a memria da cultura e do desenvolvimento das
prticas de convivncias, pois para Rousseau (1986, p. 294), nossa existncia nada
mais do que uma sucesso de momentos percebidos atravs dos sentidos.
Nesse caso, o histrico e o atual so componentes simblicos que no inte-
ressam por si s, isolados. Eles tecem uma rede de relaes entre si, para dialogar
e memorizar a forma e o smbolo de tempos distantes. Santos (1978, p. 43) discorre
assim sobre o assunto: Deixado ao quase exclusivo jogo do mercado, o espao vi-
vido consagra desigualdades e injustias, e termina por ser, em sua maior parte, um
espao sem cidados.
1.2 Processo de Requalificao do CHS: o planejamento e as diver-sas etapas da implantao.
Os estudos dos processos de requalificao urbana tm ocupado um impor-
tante lugar na dinmica da compreenso das cidades, dada a freqncia e abran-
gncia que eles tm acontecido. Nas ltimas dcadas, este processo tem-se carac-
terizado por incorporarem a cultura como contedo diferenciador. A valorizao da
tradio e da cultura local tem sido muito mais evidenciada. Mas, o modelo difundido
no mundo o mesmo para realidades diferentes.
O Pelourinho passa de mero lugar indesejvel, reduto da degradao, do
abandono, a um lugar desejado, a partir de 1992, onde se deu incio ao processo de
requalificao do CHS, agora sob a forma de um embelezamento das fachadas e
como imagens a serem consumidas. Assim, a poltica de requalificao aposta no
desenvolvimento de um novo lugar, com novos valores e sociabilidades: cria-se uma
representao e percepo do lugar, assinalada pelo esprito de lugar.
O entendimento do patrimnio cultural como lugar, passa necessariamente
pelo exerccio da cidadania, pelas prticas cotidianas, pelos smbolos que do forma
identidade ao lugar. De acordo com Pinto (1995, p. 192), a verdadeira importncia
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dos processos de patrimonializao reside, no tanto na estratgia de conservao
das marcas arquitetnicas do passado, mas principalmente na recuperao mais
genuna da festa, a saber, a da celebrao coletiva em que todos so tendencial-
mente protagonistas.
Assim, a participao das pessoas envolvidas nos processos de reconheci-
mento patrimonial de importncia fundamental, levando em conta as diferentes
categorias em que um patrimnio concebido; deste modo que se pode chegar
mais perto daquilo que, de, fato seja representativo de um determinado grupo social.
Nora, no artigo Entre Memria e Histria: A problemtica dos lugares, pu-
blicado no Brasil em 1993, compreende-se o patrimnio cultural como um amplo e
diversificado conjunto de bens culturais que permite a cada segmento social apropri-
ar-se do passado, compondo imagens de sua identidade, quer individual ou coleti-
va. (NORA, 1993, p.10).
Para Prost (1997, p. 9), uma construo social, onde o elemento determi-
nante, que define o conceito de patrimnio, a sua capacidade de representar, sim-
bolicamente, uma identidade, o que implica o exame da relao memria / histria e
memria / preservao.
Em 1936, no governo de Getlio Vargas, o escritor Mrio de Andrade (apud
CANANI, 2005, p. 6) redigiu um projeto de lei que definia o patrimnio como todas
as obras de arte pura ou aplicada, popular ou erudita, nacional ou estrangeira, per-
tencentes aos poderes pblicos e a organismos sociais e a particulares nacionais, a
particulares estrangeiros, residentes no Brasil, dando incio aos debates sobre a
preservao do patrimnio cultural e artstico no Brasil.
O Decreto-lei n. 25, de 30 de novembro de 1937, estabelecido pelo Servio
de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (SPHAN), define o patrimnio como sendo
o conjunto dos bens mveis e imveis existentes no pas e cuja conservao seja de
interesse pblico, quer por sua vinculao a fatos memorveis da histria do Brasil,
quer por seu excepcional valor arqueolgico ou etnogrfico, bibliogrfico ou artstico.
O Pelourinho, tombado em 1959 como Patrimnio Histrico e Nacional, no
consegue, apesar de reconhecida a sua importncia histrico-cultural, resistir ao
processo de esvaziamento e degradao intensiva, ocorrida a partir da dcada de
1930. importante ressaltar que a imensa concentrao de recursos financeiros
advindos com a implantao e operao da Petrobrs no Recncavo baiano produz
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conflitos entre os defensores do desenvolvimento e os da preservao, contudo no
interfere nas aes modernizadoras. (S, 2000, p. 93)
Cria-se assim, em 1968, a Fundao do Patrimnio Artstico e Cultural da
Bahia, atual IPAC Instituto do Patrimnio Artstico Cultural. Nota-se ainda nfase
em potencializar o patrimnio, enquanto produto de consumo cultural, incrementan-
do, assim, o to famoso e atual Turismo Cultural.2
A partir de 1983, o Municpio de Salvador, com base nos estudos do Plano
Diretor de Desenvolvimento Urbano PDDU, reconhece, atravs de lei especfica, a
figura do C.H., considerando-o uma rea sujeita a tratamento especial rea de
Proteo Cultural e Paisagstica.
Em 1985, o Pelourinho, declarado Patrimnio da Humanidade pela UNES-
CO, tem sua rea delimitada entre o Sodr e o Santo Antnio Alm do Carmo. Ape-
sar de seu imenso potencial gerador de riquezas, tornou-se desprezado, principal-
mente no decorrer das dcadas de 1970 e 1980, reduzindo os recursos da economia
e ocupado por uma populao cada vez mais empobrecida, com seus prdios em
total arruinamento por falta de conservao. (MIRANDA & SANTOS, 2002, p. 33).
Com a Constituio Federal de 1988, amplia-se a legislao relativa ao pa-
trimnio cultural, com a definio de novos instrumentos legais, entre os quais a
competncia de regulamentao e fiscalizao das prticas de preservao, atribu-
indo um papel mais significativo para o mbito da administrao municipal e a influ-
ncia popular nos processos. A participao da comunidade na preservao do pa-
trimnio cultural est prevista em lei para ocorrer de trs modos possveis: na apre-
sentao de projetos de lei, na fiscalizao de execuo de obras e na proteo do
bem, preservando-o.
Porm, todas as aes implementadas para preservao do patrimnio his-
trico do Pelourinho foram, at este perodo, pontuais e avulsas, no existindo uma
poltica eficaz e coerente para sua preservao. Isto tornou este lugar um espao
onde apenas os moradores, apesar de toda degradao, persistiam em viver.
Em 1991, o IPAC idealiza o documento definindo os objetivos do Plano de
Ao Integrada do Centro Histrico de Salvador que tem a inteno de compreen-
der o CHS como parte especial da cidade - testemunho do incio de sua histria -
propondo cuidado especial aos casares e aos servios e, sobretudo, a ateno 2 O turismo cultural se caracteriza por uma permanncia prolongada e um contato mais ntimo com
a comunidade, no intuito de aprofundar-se na experincia.
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com o habitante do Centro Histrico de Salvador, com seu desenvolvimento scio-
econmico e cultural. (IPAC, 1995).
O CHS tem uma rea de 76 hectares e est localizado geograficamente na
parte central da cidade de Salvador. J em seu extremo Oeste, termina na escar-
pa, o paredo natural da chamada falha de Salvador, que com altura mdia de 64
metros, levanta-se como anfiteatro a margear a Baa de Todos os Santos. (MIRAN-
DA & SANTOS, 2002, p. 28)
Em 1992, toda a rea foi inserida num grande projeto de reestruturao, inti-
tulado Projeto de Reforma e Recuperao do Centro Histrico de Salvador do Go-
verno do Estado, com os principais objetivos de:
Dotar o Centro Histrico do Salvador, atravs da ativao do ciclo econ-
mico, de condies efetivas para a manuteno dos bens e valores culturais de for-
ma contnua e eficaz;
Promover a recuperao e a restaurao fsica da rea do Centro Histrico
do Salvador, redefinindo sua funo em relao cidade e regio metropolitana;
Criar condies de desenvolvimento do potencial produtivo e da organiza-
o social da rea. (IPAC, 1995, p.18).
Em sua dissertao, intitulada O Lugar da Histria na Cidade Contempornea:
Revitalizao do Bairro Recife X Recuperao do Pelourinho, Vieira (2000) revela:
No incio de 1992, o Termo de Referncia e mais o projeto para interveno em dois quarteires, foram apresentados ao governo da Bahia. Passados apenas dois dias, o Governo do Estado aprovou todos os projetos relativos a quatro quarteires, mais do que o que havia sido apresentado, que com-poriam a primeira etapa da recuperao. Tal aprovao aconteceu sem ne-nhuma dificuldade de qualquer natureza ou discusso prvia. (VIEIRA, 2000, p.175)
O Projeto de Reforma e Recuperao do Centro Histrico de Salvador teve
como metodologias de interveno as seguintes tipologias: restaurao, recupera-
o funcional e estrutural, reconstruo, construo, conservao e urbanizao.
Com relao aos moradores, foram cadastrados e tiveram, s nos discursos, as se-
guintes opes: indenizao, relocao definitiva e relocao provisria. Tal inter-
veno estabelece uma nova configurao e um novo papel para a rea, como cen-
tro cultural da cidade.
As etapas da requalificao do Centro Histrico do Salvador j concludas ou
em andamento, so apresentadas a seguir:
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Quadro 1 - As etapas da Revitalizao do Centro Histrico de Salvador
Etapas do projeto
1 Etapa A primeira etapa das obras de recuperao do CHS foi concluda em maro de 1993, onde foram recuperados 89 imveis e quatro quarteires. Essa etapa teve como principal foco as entidades culturais, os servios de infra-estrutura bsica e comercial. Nessa etapa, 399 famlias receberam opo pela relocao dos imveis. Foram indenizados tambm 79 pequenos negcios.
2 Etapa Nesta etapa foram recuperados 47 imveis de dois quarteires. As a-es realizadas foram centradas nas escolas, nas lojas e nos albergues e pousa-das. Foram indenizados 176 moradores, 16 famlias foram relocadas e 19 micro-empresas tiveram compensaes para mudar. As obras foram concludas em no-vembro de 1993.
3 Etapa Concluda em maro de 1994, foram recuperados 58 imveis de trs quarteires. Essa etapa teve como ocupao o comrcio. Saram da rea 374 famlias e 58 pequenos negcios receberam indenizao. No houve, nessa e-tapa, opo de relocao.
4 Etapa Foram recuperados 149 imveis de sete quarteires. Teve como o-cupao principal instalao de grandes joalherias, recuperao de igrejas e o estacionamento de um edifcio-garagem. Estima-se que foram relocadas cerca de 1.018 famlias.
5 Etapa Interveno em dois quarteires na rea da Praa da S e restaura-o de 48 imveis.
6 Etapa Diversos quarteires localizados nas ruas do Passo, do Carmo e Largo do Pelourinho, alm da fachada do antigo Cinema Excelsior e a Praa da S.
7 Etapa Est em andamento, com previso de intervenes em oito quartei-res, 130 imveis e sete imveis tombados. Localizada nas imediaes da La-deira da Praa, Rua So Francisco e Monte Alverne. Nesta etapa, o Governo contar com recursos do Programa Monumenta e da Caixa Econmica Federal que financiar a implementao de habitaes nos imveis.
Fonte: CONDER, 2007.
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Figura 7 Mapa da Requalificao do Centro Histrico. Fonte: Base Cartogrfica 1992 CONDER. Elaborao e mapeamento preliminar: Ana Rosa Iberti e Helosa Arajo.
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Segundo o Instituto do Patrimnio Artstico e Cultural do Estado da Bahia (I-
PAC), a retirada dos moradores foi justa e necessria; cerca de 350 famlias foram
indenizadas, com valores entre 5 e 10 salrios, para desocupar as residncias, ape-
sar de no serem proprietrias. (ZANIRATO, 2004, p. 8) A sada dos moradores era
necessria mediante alegaes de que a populao moradora era incompatvel pa-
ra o desenvolvimento do turismo e a preservao dos imveis. Segundo o rgo, a
preservao no poderia ser feita pelos antigos moradores medida que se trata-
vam de pessoas sem condies econmico-culturais de conserv-lo". (ZANIRATO,
2004, p. 8).
O relato de Maria Adriana Almeida de Castro, ex-diretora do IPAC na poca,
valida os discursos como o da estigmatizao dos moradores do Pelourinho, pois
considera que as intervenes e as modificaes foram positivas, quando afirma: O Pelourinho em si uma obra de arte. Com a revitalizao essa arte ficou mais visvel, mais concreta. Com a sua revitalizao a partir de 1992, deixou de ser reduto de marginais e prostitutas e passou a ser freqentada pela sociedade local e turistas atrados pela efervescncia cultural. (CASTRO, 2004, p. 3)
O empobrecimento do Pelourinho, conseqncia da Restaurao, ficou ca-
racterizado por Silva (1995, p. 1) ao assim retratar: A restaurao provocou, de acordo com a professora, mudanas na estrutu-ra social e econmica do lugar. No h mais espao para os antigos comer-ciantes e moradores. Com indenizaes de R% 150 a R$ 300, alguns deles foram parar na rua. Devia haver uma ao mais humana na sada desse pessoal. Eles moravam num local insalubre, mas pelo menos tinham um te-to, afirma. Ela faz uma autocrtica e crtica tambm para os profissionais li-berais que nada fizeram para evitar essa situao.
De fato, a requalificao do CHS voltou-se para um tipo de turismo e negou
aos moradores o direito ao usufruto da cidade, uma vez que as aes no se volta-
ram para a incluso dos habitantes. A ao do IPAC, ao considerar os moradores
do local pouco cultos, para apresentarem qualquer contribuio efetiva, impossibili-
tou-o de compreender que o patrimnio cultural muito mais do que edificaes.
(ZANIRATO, 2004, p. 9)
Ressalta-se que muitos moradores desenvolviam trabalhos qualificados de
baixa remunerao, como vendedores de acaraj, pintores plsticos, msicos, sa-
pateiros, mestres de capoeira, dentre tantos outros. O fato de terem escolhido este
local degradado para viverem deve-se centralidade da rea e aos baixos aluguis.
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Muita polmica j foi gerada com este Programa, em especial, no tocante
segregao social. Neste sentido, Brito (apud MARTINS, 2004, p.1) questiona com
relao ao Decreto nmero 8.218/02, autorizando a desapropriao dos imveis da
7 etapa: a primeira vez que ouo dizer que desapropriaes so feitas com pes-
soas dentro dos imveis. Com relao ao Decreto-Lei de Desapropriao 3.365/41,
o ato de desapropriar imveis para destin-los a uma outra pessoa viola as regras
deste decreto.
Grande parte da populao do Pelourinho, 95%, j o deixou. Os legtimos
moradores s estaro, no futuro, nas fotos de postais. De acordo com Uriarte (apud
CASTRO, 2004, p. 3), a recuperao do Pelourinho foi a interveno autoritria,
elitista, centralizada e segregadora. No teor do trabalho, concertos que os governos
adotam como proteo, preservao, restaurao, revalorizao ou reabilitao so
postos em xeque.
Todos esses questionamentos a respeito da relocao dos moradores do
CHS acontecem, pois no houve uma preocupao em reduzir as diferenas sociais.
Focou-se, simplesmente, a expulso desses moradores de classes sociais menos
favorecidas, para que ocorresse uma valorizao desta rea, elegendo o turismo
como sua principal vertente econmica.
A preservao do patrimnio o elo entre o passado e o presente e permite
conhecer a cultura, despertando o sentimento de identidade. A memria, por sua
vez, assegura a reproduo social, age na construo cultural e na formao da i-
magem individual e coletiva. Le