dissertditadura civil militar na região sul gaúcha ação marÃlia silveira final
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
Instituto de Cincia HumanasPrograma de Ps-Graduao em Histria
Dissertao
Ditadura Civil Militar na Regio Sul Gacha :Militncias e Rotas de Exlio
Marlia Brando Amaro da Silveira
Pelotas, 2014
http://www.ufpel.tche.br/ -
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Marlia Brando Amaro da Silveira
Ditadura Civil Militar na Regio Sul GachaMilitncias e Rotas de Exlio
Dissertao apresentada ao Programade Ps-Graduao em Histria, daUniversidade Federal de Pelotas, comorequisito parcial obteno do ttulo de
Mestre em Cincias Humanas.
Orientador: Prof. Dr. Edgar vila Gandra
Pelotas, 2014
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Marlia Brando Amaro da Silveira
Ditadura Civil Militar na Regio Sul Gacha : Militncias e Rotas de Exlio
Dissertao aprovada, como requisito parcial, para obteno do grau de Mestre em Histria,Programa de Ps-Graduao em Histria, da Universidade Federal de Pelotas.
Data da Defesa: 15 de abril de 2014.
Banca examinadora:
Prof. Dr. Edgar vila Gandra, Doutor em Histria pela Universidade Federal do Rio Grandedo Sul (2004).
Prof. Dr. Enrique Serra Padrs, Doutorado em Histria pela Universidade Federal do Rio Grandedo Sul (2005).
Prof. Dr. Renato da Silva Della Vechia, Doutorado em Cincia Poltica pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (2011)
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Dedico este trabalho,
junto ao de Concluso de Curso,
todos os que lutam
por uma sociedade mais justa.
E para todos os que lutaram para que minha gerao
s conhecesse a ditadura civil militar
estudando o passado.
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Nanci, Eduardo, Camilo, Briza, Digo, Marcelo, Mathias, os pequenos Sabastinho
e Agathinha e todo o pessoal.
Agradeo aos companheiros e muito queridos amigos, que me
acompanharam durante esses anos de universidade. Seguiremos em novas lutas,
lado a lado, porque nunca deixaremos de acreditar em uma universidade pblica,
gratuita, de qualidade, democrtica e socialmente referenciada e, muito mais que
isso, em uma sociedade que ser justa e solidria. Trarei a coragem de cada um
de vocs como exemplo para a vida. Obrigada aos que me ensinam: Landa e
demais lutadores da Casa do Estudante, Law, Dani, Hercules, rika, Allan,
Camila, Fernanda, Tzuzy, Dani Conte e povo de POA, Lua, Vika, Luza e o D.A da
Letras e todos os queridos do Germinal e demais organizaes. Tambm aocompa, transcritor, corretor e astrnomo Jordo. Obrigada em especial aos que
nos representam: Antnio Cruz, Fabiane Tejada, Sergio Christino e, mais uma
vez, a sempre Pr-Rainha, Rosane Brando.
Um agradecimento especial ao Renato Della Vechia, Alessandra
Gasparotto e Enrique Padrs por terem to pacientemente colaborado no meu
processo de aprendizagem. Por esses tenho confessa admirao pelo jeito
sempre fraterno de ensinar e pela forma com que exercem suas atividadesdocentes, preocupados com as demandas da sociedade.
Agradeo aos queridos colegas, amigos e orientadores, pela
conversas srias e por aquelas em mesa de bar, pelas discusses sobre Histria
e sobre a vida, o universo e tudo mais. Muito desse trabalho tem um pouco de
cada um. Aproveito para agradecer aos novos colegas desse caminho que se
apresenta: obrigada pela cooperao, pelo trabalho em grupo e pelas produtivas
e divertidas conversas.Agradeo ao corpo docente do Mestrado em Histria, como um todo,
por sua dedicao e pelos espaos de discusso. Agradeo com carinho ao
professor Adhemar, que me acompanha desde o comeo das minhas pesquisas,
que, junto a outros caros exemplos, sempre me cativaram com suas formas
singulares de serem colegas educadores e, em especial, ao meu orientador, prof.
Edgar Gandra, pela solicitude, conselhos e colaborao que tanto enriqueceram
meu trabalho. Agradeo, ainda, aos alunos do curso de Cincias Sociais, pelo
fraterno dilogo com a inexperiente professora.
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Agradeo CAPS por fomentar a presente pesquisa e s entidades
mantenedoras de arquivos que tornaram o trabalho possvel, em especial
solicitude da pesquisadora Ananda Simes.
Finalizo expressando meu agradecimento aos entrevistados, por
terem to gentilmente dedicado seu tempo a conversar com a pesquisadora, mas
acima de tudo, por terem lutado por uma sociedade mais justa e conquistado o
fim da ditadura civil militar no pas.
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Resumo
No presente trabalho intenta-se trazer novos elementos sobre apesquisa em ditadura civil militar focando um tema cuja produo ainda muito
escassa. Prope-se explorar a forma como o perodo expressou-se, no que
remete ao Rio Grande do Sul, em cidades do interior onde percebemos uma
grande particularidade: a organizao das rotas de exlio. Delimitaremos o
presente trabalho s atividades de oposio ditadura civil militar nas cidades de
interior e de fronteira, considerando as principais atividades de oposio e,
tambm, a represso, os apoios ao golpe, dentre diversas particularidades. Focar-se-, mais especificamente, na organizao das rotas de exlio, atividade peculiar
que envolveu diversos grupos em solidariedade para garantir a vida de militantes
procurados e, tambm, para a organizao da militncia no exlio. A principal
fonte ser a memria, tanto dos organizadores das atividades, quanto dos
transladados para fora do pas. Deter-se- o perodo compreendido entre o ano
do golpe at o incio dos anos de 1970, em que os grupos de resistncia foram
duramente combatidos e se encontravam bastante desarticulados.
Palavras Chave:Ditadura Civil Militar; Ditadura Civil Militar no Rio
Grande do Sul; Cidades de interior e de Fronteira; Rotas de Exlio.
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Abstract
The present paper attempts to bring new elements to civil-military
dictatorship research focusing at a topic which production is yet scarse. It isproposed to explore the way, concerning the Rio Grande do Sul state, which the
period was expressed in the countryside cities and we can point it out a certain
particularity: the organization of the exile's routes. Therefore, we'll limit the present
paper to the opposing activities against the civil-military dictatorship at the
contryside and boundary cities accounting opposing activities, repression, the
coup support, among many other particularities. However, it will focus on the
establishment of the exile's routes, singular activity which envolved many groupsin symphaty to ensure the life of the wanted militants and, also, to the militancy
arrengement at the exile. The main source will be the memory from both -
activities organizers and exileds. It will concentrate on the period counting from the
year of the takeover until the early 1970s in which resistance groups were starkly
fought and could be found very disarticulated.
Key-words: Civil-military dictatorship; civil-military dictatorship in RioGrande do Sul; contryside and boundary cities; exile's routes
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Lista de Sigla
9 RI9 Regimento de InfantariaAI ou AI-1 - Ato Institucional n 1, de 9 de abril de 1964
AI-5 - Ato Institucional n 5, de 13 de dezembro de 1968
ANCUR - Alto Comissariado das Naes Unidas para Refugiados
APAo Popular
ARENAAliana Renovadora Nacional
CFDP - Comisso dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos Polticos
CNV - Comisso Nacional da VerdadeDC - Delegacia de Costumes
DOPSDepartamento de Ordem Poltica e Social
EMBRAPAEmpresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria
FAPFederao Acadmica Pelotense
FARP - Frente de Ao Revolucionria Popular
ICH / UFPel - Instituto de Cincia Humanas / Universidade Federal de Pelotas
ID/3Infantaria Divisionada 3IPEAS - Instituto de Pesquisas e Experimentao Agropecuria do Sul
IPMInqurito Policial Militar
JECJuventude Estudantil Crist
JUCJuventude Universitria Crist
MDBMovimento Democrtico Brasileiro
OAB - Ordem dos Advogados do Brasil
PCBPartido Comunista Brasileiro
PCBRPartido Comunista Brasileiro Revolucionrio
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PCdoBPartido Comunista do Brasil
PRPartido Republicano
PSDPartido Social Democrtico
PTBPartido Trabalhista Brasileiro
SEC - Secretaria de Educao e Cultura
SNI - Servio Nacional de Inteligncia
SOPS - Seo de Ordem Poltica e Social
TFP - Tradio, Famlia e Propriedade
UCPel - Universidade Catlica de Pelotas
UEEUnio Estadual de Estudantes (Rio Grande do Sul)
UFPel - Universidade Federal de PelotasUFRGSUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
UGESUnio Gacha de Estudantes Secundaristas
UNE - Unio Nacional de Estudantes
UPESUnio Pelotense de Estudantes Secundaristas
URGS - Universidade do Rio Grande do Sul, atual UFRGS
MASTER - Movimento dos Agricultores Sem Terra
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Sumrio
APRESENTAO ............................................................................................... 13
1. INTRODUO - DITADURA CIVIL MILITAR NA REGIO SUL GACHA:
CONSIDERAES A CERCA DO TEMA E DA METODOLOGIA ..................... 161.1. Debates e Demandas na Sociedade: ...................................................... 201.2. Histria e Ditadura Civil Militar: ............................................................... 311.3. Histria Oral, Memria e Ditadura Civil Militar: ........................................ 381.4. A Produo Acadmica Sobre o Rio Grande do Sul: .............................. 47
2. PANORAMA DAS CIDADES DO INTERIOR DO ESTADO ............................ 52
2.1. Resistncia ao Golpe e Ditadura Civil Militar em Cidades de Interior ..... 542.2. Apoio ao Golpe e Ditadura Civil Militar e Represso aos Opositores ...... 612.3. Resistncia e Represso Durante a Ditadura Civil Militar nas Cidades de
Pequeno Porte e no Campo ........................................................................... 703. AS PECULIARIDADES DAS CIDADES GACHAS DE FRONTEIRA E AORGANIZAO DAS ROTAS DE EXLIO .......................................................... 76
3.1. Consideraes Tericas de Nosso Tema ................................................ 783.2. Rotas, Esquemas. De exlio, de Sada, de Entrada. O Que EstamosAnalisando? .................................................................................................... 843.3. Consideraes Histricas e Geogrficas ................................................. 883.4. Como Eram Organizadas as Rotas de Exlio? ........................................ 933.5. Rotas de Exlio e Represso ................................................................. 1253.6. Como Eram Compreendidas as Rotas de Exlio Pela Oposio
Ditadura? ...................................................................................................... 1324. CONSIDERAES FINAIS: .......................................................................... 135
LISTA DE FONTES ........................................................................................... 141
REFERNCIAS .................................................................................................. 144
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Apresentao
A presente pesquisa tem como marco inicial a formulao do
Trabalho de Concluso de Curso de Licenciatura em Histria, pela Universidade
Federal de Pelotas, no ano de 2010. Detectando como lacuna na produo
historiogrfica o impacto do golpe e ditadura civil militar nas cidades de interior,
cujas caractersticas prprias foram negligenciadas em prol de uma indevida
generalizao de experincias referenciadas nos grandes centros, me dispus,
poca, a investigar a militncia de oposio ditadura civil militar na cidade de
Pelotas -RS.
Essa rica experincia permitiu apontar diversas caractersticas muito
especficas a municpios de interior e de fronteira, mas, principalmente, permitiu
perceber que essa regio teve papel protagonista em atividade peculiar de
oposio: o estabelecimento de rotas de exlio. Muito importante para as
organizaes de oposio ditadura em todo o pas, essa tarefa tambm
recebeu, como veremos, pouco estudo.
Motivada pela defasagem da produo, seja referente s cidades do
interior, seja s rotas de exlio, me dispus a propor o presente trabalho, no intuito
de deixar uma contribuio para o tema, ainda carente de novas pesquisas e
reflexes mais aprofundadas.
Intento considerar as peculiaridades das cidades de interior e defronteira no Estado do Rio Grande do Sul1, cuja dinmica indissocivel da
organizao das rotas de exlio. A presente pesquisa tratar, portanto, de estudar
a tarefa peculiar da militncia de oposio ao golpe e ditadura civil militar nas
cidades de interior e de fronteira, de organizao das rotas de exlio, abordando,
1Eventualmente se optar por referimos ao territrio, s caractersticas prprias dele ouaos seus habitantes por gacho(s). Embora essa palavra no se reduza ao territrio em
questo (podendo referir-se aos uruguaios ou argentinos), estaremos usando o termogacho como similar a sul-rio-grandense.
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para isso, diversos outros aspectos fundamentais para nossa discusso.
Tendo j recolhido uma serie de informaes e fontes em meu
trabalho de concluso de curso, pude, ainda, contar com a colaborao de
diversos militantes dos movimentos sociais - meio em que me insiro - para a
efetivao de contatos que possibilitaram uma maior complexificao das fontes
orais, centrais no trabalho.
Escolhi compartimentar o resultado desse perodo de pesquisa no
formato de quatro sesses, que, atravs de diferentes propostas, intentam
colaborar com a releitura e ampliao crtica do objeto de pesquisa em apreo.
Em nossa Introduo, Ditadura Civil Militar na Regio Sul Gacha:
consideraes a cerca do tema e da metodologia, faz-se a apresentao dotrabalho e das diversas consideraes que devemos ter em horizonte quando
trabalhamos com um tema ainda to vivo e controverso. Ponderaremos os
debates e reivindicaes da sociedade ante ao tema, a responsabilidade dos
pesquisadores e as contribuies que podemos deixar. H, tambm, a defesa de
algumas das opes metodolgicas e tericas, todavia, essas encontrem-se, por
opo narrativa, diludas ao longo do trabalho, sempre que se fez necessrio
introduzir ou retomar conceitos.No captulo que se segue, Panorama das Cidades do Interior do
Estado, o esforo foi traar consideraes que permitissem ter um quadro geral
das especificidades das cidades do interior do Rio Grande do Sul no perodo:
como a ditadura se expressou, atingiu militantes e a sociedade como um todo,
quais as declaraes e aes de apoio e repdio, como foi combatida, entre
outras questes.
Com uma grande dificuldade de encontrar bibliografia de suporte, foinecessrio construir um dilogo com os poucos trabalhos pertinentes ao tema,
complementando e problematizando com fontes disponveis, como matrias de
jornais e entrevistas. O intuito foi contemplar municpios de diferentes localidades
e atividades econmicas, alm das demais particularidades. Consideramos ainda
as diferenas existentes entre cidades de mdio e pequeno porte, tendo um
subcaptulo em especfico para tratar dessa ltima, considerando o porte de um
municpio como uma categoria que articula extenso territorial e densidade
demogrfica.
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1. Introduo - Ditadura Civil Militar na Regio Sul Gacha: consideraes a
cerca do tema e da metodologia
A pesquisa sobre Ditadura Civil Militar no Brasil atualmente pode ser
considerada de privilegiada produo, em certa medida, por ser mobilizadora da
opinio pblica e suscitar debates, no s no meio acadmico, mas na sociedade
como um todo, haja vista a demanda dos meios de comunicao, o relativo
sucesso de vendas de livros sobre o perodo2 e, tambm, as sucessivas
manifestaes pblicas de parcela da populao organizada.
Porm, essa produo centra-se na investigao sobre o eixo So
Paulo/ Rio de Janeiro ou, eventualmente, nas capitais de outros Estados. No
entanto, mais recentemente tm se questionado os limites de representatividade
dessa produo que tende a generalizar algumas experincias e no abranger
diferentes formas de mobilizao, luta, resistncia e represso. Percebe-se entre
os pesquisadores uma preocupao em abordar novos focos, para que a maior
complexificao nos possibilite entender as diversas formas com que a ditadura
civil militar se expressou e foi combatida no Brasil. Diversas iniciativas, dentro e
fora da academia, tm se voltado para uma pesquisa que busca novos temas.
Sobre o Rio Grande do Sul, podemos apontar algumas
peculiaridades que resultam em caractersticas especficas para o perodo de
ditadura civil militar. A localizao, por exemplo, que faz limite com Uruguai e
Argentina, cujos desdobramentos sero apontados ao longo do trabalho, sendo o
principal foco de nossa pesquisa a organizao de rotas de exlio atravs da
fronteira uruguaia.
2Em especial os que foram mais promovidos pela grande mdia: em uma semana, osdois primeiros livros da coleo de lio Gaspari, (Coleo As Iluses Armadas, So
Paulo: Companhia das Letras, 2002-2004) venderam cerca de 100 mil exemplares.Segundo.: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,lancamentos-literarios-recentes-se-dedicam-a-ditadura-militar-no-brasil,803015,0.htm.Acessado 01/11/2012.
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,lancamentos-literarios-recentes-se-dedicam-a-ditadura-militar-no-brasil,803015,0.htmhttp://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,lancamentos-literarios-recentes-se-dedicam-a-ditadura-militar-no-brasil,803015,0.htmhttp://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,lancamentos-literarios-recentes-se-dedicam-a-ditadura-militar-no-brasil,803015,0.htmhttp://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,lancamentos-literarios-recentes-se-dedicam-a-ditadura-militar-no-brasil,803015,0.htm -
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Tambm peculiar ao Estado o papel protagonista de articulador da
Campanha da Legalidade, que garantiu a posse do presidente Joo Goulart, em
1961 e postergou a iniciativa de golpe dos setores mais reacionrios do pas.
percebido, igualmente, um forte apelo s reformas de base. Constitua-se, ento,
um Estado marcado por diversas experincias de mobilizao legalista,
organizada em defesa do cumprimento de mandato do presidente Joo Goulart3.
Houve, portanto, uma importante organizao no Rio Grande do sul contra o
golpe militar em 1964 e, tambm, grandes expectativas de diversos setores da
populao na defesa do governo Jango.
J tendo sido constatadas, at mesmo atravs das memrias dos
militantes4, as tarefas especficas desenvolvidas no Rio Grande do Sul,especialmente as conexas ao interior e fronteira, ainda assim, o estudo dessas
peculiaridades no foi esgotado pela academia.
O objetivo desse trabalho ser o de pesquisar as atividades da
militncia de cidades do interior e de fronteira com o Uruguai, na organizao da
resistncia ao golpe e ditadura civil militar, dando nfase s atividades prprias
dessa regio, de organizao das rotas de exlio.
Como veremos, essas rotas no s garantiram salvaguardar a vidade muitas pessoas, como constituram-se, elas prprias, como uma forma de
oposio ditadura civil militar e como uma possibilidade para a organizao da
militncia e das lutas. Portanto, no s garantiu a integridade fsica de
perseguidos, como, tambm, permitiu, em certa medida, a reorganizao da
oposio fora do pas.
Devemos, no presente trabalho, ultrapassar a compreenso da
fronteira como constituda pelas cidades limtrofes do pas, incluindo tambmcidades cujas dinmicas prprias se inserem nas peculiaridades da regio e que
devem ser compreendidas como parte desse cenrio. Embora eventualmente seja
necessrio fazer meno nossa fronteira limtrofe, ou seja, aos nossos limites
polticos com os demais pases, a fronteiras deve ser compreendida como
3Essas peculiaridades aparecem, por exemplo, apontadas no prefcio da coleo:PADRS, Enrique et all (org.)A Ditadura de Segurana Nacional no Rio Grande do Sul(1964 - 1985): Histria e Memria. Vol. I-IV. POA: Corag, 2009.4
Por exemplo, como apontado no relato em Koutzii, Flvio. Trajetrias. In.: PADRS,Enrique; et all (org.).A Ditadura de Segurana Nacional no Rio Grande do Sul. Vol. III-Conexo Repressiva e Operao Condor. POA: CORAG, 2009, p.111.
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fronteira zona, onde ocorrem permanentes trocas (culturais, econmicas,
estatais...)5. Pretende-se, pois, uma vez que temos essa compreenso, inserir em
nossas anlises, mesmo que tangencialmente, essas trocas, ocorridas nesse
espao. Essa compreenso nos permite ainda, incluirmos em nossa pesquisa
cidades que no compe o limite do pas, mas, ainda assim, fazem parte desse
cenrio. Eventualmente, analisaremos ainda, cidades que fogem dessa
perspectiva, a fim de conseguirmos compor um cenrio do perodo e dialogar com
os acontecimentos de todo o Estado.
Pretende-se tambm questionar as dinmicas estabelecidas entre as
militncias das cidades, organizaes e exilados. Ainda, prope-se discutir a
relao entre as possibilidades de resistncia e represso aos militantes e, maisamplamente, a relao entre as especificidades da represso na fronteira e o
cotidiano da populao.
Focaremos, portanto, nas rotas estabelecidas entre o Brasil e o
Uruguai, estabelecendo como local de nossa pesquisa, para isso, o Estado ao
extremo sul do pas, o Rio Grande do Sul. Mais especificamente, nos
debruaremos sobre trajetos estabelecidos atravs dos municpios de Pelotas ou
de Rio Grande em direo a Jaguaro ou Santa Vitria do Palmar e Chu (atento parte de Santa Vitria do Palmar, o municpio foi emancipado apenas em
1995) e, tambm, abordaremos experincia de passagem por meio s
propriedades rurais, podendo abarcar ainda outros municpios limtrofes, para
alm dos supracitados.
Deter-nos-emos ao perodo que se inicia em 1964, ano do golpe,
para entendermos as primeiras atividades de resistncia e as primeiras aes de
represso que resultaram na busca pelas passagens de exlio, at meados dadcada de 1970, perodo em que as organizaes de esquerda no pas se
desmantelaram ao mximo, devido forte represso resultante das polticas de
19686.
5O debate j bastante desenvolvido na Histria. Pode ser encontrado, ainda,sistematizado em PUCCI, Adriano Silva. O Estatuto da Fronteira Brasil/Uruguai. Braslia:FUNAG, 2010.6Sobre fragmentao da esquerda, ver: GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. SP:tica, 1987.
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Para melhor sistematizao de nosso conhecimento, apresento a
seguir mapa poltico atual do Rio Grande do Sul7, com as cidades que
estudaremos8.
7Que se difere do mapa poltico do perodo por conter cidades que, na poca, no eramindependentes. Proponho que se analise mapa atual pois as mudanas no interferemem nosso resultado e, considerando de forma didtica, possibilitam que melhor noslocalizemos. Marco, ainda, um caminho utilizado, como veremos, costeando o litoralcompreendido entre as praias do Cassino e do Hermenegildo.8Retirado e adaptado pela autora de
ftp://geoftp.ibge.gov.br/mapas_tematicos/politico/unidades_federacao/rs_politico.pdf.Acesso: 25/11/2013.
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1.1. Debates e Demandas na Sociedade 9:
Estando apresentado nosso objeto, devemos tecer diversas
consideraes que nortearo nosso estudo. Tema marcante da Histria do Tempo
Presente10 no Brasil, o estudo sobre Ditadura Civil Militar requer que
consideremos os debates e demandas sociais sobre o assunto, mantendo sempre
como horizonte de nossa pesquisa as preocupaes sobre o papel do historiador,
com especial cuidado a esse tema to caro e vivo atualmente. Neste momento
do texto, dedicaremos nossa ateno entendermos como o assunto discutidona sociedade, quais so suas demandas e as diversas (e divergentes) tomadas
de posio, para podermos entender qual o papel e responsabilidades do
historiador ao enfrentar esse tema. Para tanto, devemos retomar o fim da ditadura
civil militar e nosso perodo de repblica democrtica mais recente.
Temos que considerar, por exemplo, imprecises causadas por falta
de polticas de transio, que, entre outras funes, apuraria os acontecimentos.
Trabalhamos com vrios dados baseados em estimativas que destoam entre siconsideravelmente. Por exemplo, embora j seja possvel fazer algumas
aproximaes sobre dados de atingidos pelo perodo, ainda assim, apenas
chegaremos a dados mais precisos - mas, ainda assim, carentes de absoluta
preciso - aps o encerramento das atividades da Comisso Nacional da
Verdade, quase trs dcadas depois do fim do regime. Sabemos, entretanto, que
9Parte da discusso aqui apresentada, em especial sobre a criao da ComissoNacional da Verdade, foi enviada para publicao no I Congresso Internacional deDireitos Humanos: Emancipao e Ruptura, promovido pela UCS/ Caxias do Sul, em 29 a31 de agosto de 2012.10Termo refere-se histria mais atual, como resume Ferreira Para alguns trata-se doperodo que remonta ltima grande ruptura; para outros trata-se da poca em quevivemos e de que temos lembranas, ou da poca cujas testemunhas so vivas e podemsupervisionar o historiador e coloc-lo em cheque (FERREIRA, Marieta. Histria dotempo presente: desafios. Cultura Vozes, Petrpolis, v.94, n 3, p.111-124, maio/jun.,2000). Estamos compreendendo aqui como Histria do Tempo Presente pois trata-se deum perodo muito atual de nossa histria, certamente um grande marco, estando no sos protagonistas vivos (militantes de oposio ao perodo, familiares de mortos e
desaparecidos, tanto quanto militares e civis apoiadores do golpe), mas, tambm, por serum tema que influencia diretamente a gerao que sucede essa e que cobra, tambm,respostas.
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Apartada da discusso na sociedade e ignorando suas demandas,
nossa Lei de Anistia16, criada nesse contexto, embora, efetivamente, tenha tido
um saldo positivo para a militncia da poca, em longo prazo, serviu aos militares,
acima de tudo. Permitiu a volta dos exilados e a soltura de diversos presos
polticos, mas, mesmo tendo excludo dos anistiados os militantes que cometeram
os chamados crimes de sangue17, permite, at hoje, que se encubra os
torturadores, assassinos e sequestradores, que agiram em nome do Estado. A lei
ainda empecilho Justia e um dispositivo para apartar a sociedade do direito
Memria e Verdade sobre o perodo.
Essas reivindicaes, que cada vez mais ganham fora entre os
militantes de Direitos Humanos no Brasil - por Verdade, Memria e Justia-, sodireitos defendidos principalmente a partir do final da Segunda Guerra Mundial e
foram internacionalmente assegurados s sociedades que passaram por perodo
de conflito, principalmente atravs dos protocolos I e II de 1977, adicionais
Conveno de Genebra de 1943, tornados responsabilidade do Estado Brasileiro
a partir de decreto, em 199318.
Porm, com o intuito de deixar intocados os crimes cometidos
durante o perodo ditatorial, as leis que se seguiram, justificadas pelo mito dareconciliao nacional, promoveram a impunidade e instauram, no Brasil, o
silncio. Podemos falar, at um perodo muito recente, que em nosso pas e nos
vizinhos, tivemos aes estatais para o esquecimento. Conforme Padrs e
Gasparotto:
No caso das ditaduras do Cone Sul, a questo do esquecimentorelaciona-se a uma ao institucional de esquecimento organizadoe induzido, ou seja, de polticas estatais oficiais que impem adesmemria de cima para baixo. O desconhecimento de parte
de um passado, diante dos pactos de silncio oficiais e institudose da inacessibilidade das fontes, impedem a elaborao e seleode lembranas. O esquecimento um exerccio mental que,individualmente, funciona como uma espcie de filtro que permiterestringir certas lembranas ao essencial. Entretanto, oesquecimento organizado e induzido um fenmeno de controlesocial e de sonegao coletiva de um passado especfico, o que
16BRASIL. Lei n 6.683/1979.17Conforme BRASIL.Lei no6.683/1979,artigo 1, 2: Excetuam-se dos benefcios daanistia os que foram condenados pela prtica de crimes de terrorismo, assalto, sequestro
e atentado pessoal.18Tornados responsabilidade do Estado brasileiro atravs de: BRASIL, decreto n849/1993.
http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%206.683-1979?OpenDocumenthttp://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%206.683-1979?OpenDocumenthttp://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%206.683-1979?OpenDocumenthttp://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%206.683-1979?OpenDocumenthttp://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%206.683-1979?OpenDocument -
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impede a elaborao, consolidao e transmisso de umamemria e identidade comum19.
Portanto, se em um primeiro momento, a luta por anistia e fim da
ditadura civil militar envolveu uma parcela significativa da sociedade, aps, com
uma poltica institucional de esquecimento, essa discusso deixou as ruas e
passou a ser, por um longo perodo, uma reivindicao mais restrita aos familiares
dos mortos e desaparecidos ou aos militantes atingidos.
Pressionado por um grupo cada vez menor numericamente, as
aes do Estado para o perodo passaram a ser uma serie de medidas de
reparao, tratadas no mbito privado, bem longe de atender ao direto
Memria, Verdade e Justia, ou entend-los como direito de toda a sociedade.
Essas leis de reparao, alm de todas as suas restries, so,
ainda, tardias. O Estado reconheceu os desaparecidos polticos do perodo como
mortos apenas no governo Fernando Henrique Cardoso, com a Lei dos
Desaparecidos20, contemplando apenas 136 nomes. Apesar de finalmente o
Estado tomar para si a responsabilidade pelas agresses que cometeu contra
seus cidados, o nmero de desaparecidos pelo qual o Estado se responsabilizou
muito aqum do que se espera apurar atualmente na Comisso Nacional da
Verdade.
Foi, tambm, criada a Comisso de Mortos e Desaparecidos
Polticos, como ficou conhecida, para avaliar os pedidos de bitos e indenizaes,
igualmente previstos na lei. Essa comisso acabou por juntar muita informao,
diversas vezes publicizadas21. Todavia, a Lei dos Desaparecidos foi muito
criticada, por suas limitaes, algumas heranas da Lei de Anistia, mas tambm,
porque legava aos familiares dos desaparecidos o nus da prova da participaodo Estado no desaparecimento de seu parente, desresponsabilizando o Estado
por buscar e fornecer informaes.
19GASPAROTTO, Alessandra; PADRS, Enrique Serra. A Ditadura civil-militar em salade aula: desafios e compromissos com o resgate da histria recente e da memria. IN:BARROSO, Vera Lcia; PEREIRA, Nilton Mullet; BERGAMASCHI, Maria Aparecida;GEDOZ, Sirlei; PADRS, Enrique Serra. (Org.). Ensino de Histria- DesafiosContemporneos. Porto Alegre: EST, 2010.20BRASIL, Lei n 9.140/1995.21Acompanhe o sitehttp://www.desaparecidospoliticos.org.br/,organizado pelacomisso, junto ao Centro de Documentao Eremias Delizoicov.
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/http://www.desaparecidospoliticos.org.br/ -
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Tem-se tambm a criao da Comisso da Anistia22, que atua
analisando os pedidos dos atingidos pela ditadura civil militar. Para essa foram
encaminhados milhares de casos para apreciao e, deles, cerca de 35 mil foram
os anistiados, embora menos da metade tenham sido indenizados23.
Considerando que as aes amparadas na Lei dos Mortos e
Desaparecidos poderiam ser movidas exclusivamente por um familiar e, tambm,
que a Comisso da Anistia centra-se, sobretudo, em indenizaes, percebemos
que as medidas do Estado atendiam uma dvida perante aos atingidos,
individualmente, porm no visavam reparar sua dvida com a sociedade como
um todo.
Entretanto, ultimamente, no Brasil, cada vez mais os temas ligadosao perodo da ditadura civil militar tem voltado pauta na sociedade. Se
raramente no perodo anterior o tema chamou ateno, mesmo dentro da
academia, em 2004 - considerando que efemrides sempre causam um impacto
em eventos e, mesmo, na produo - pudemos notar que seminrios, palestras,
encontros, aconteceram em diversos lugares e foram sucesso de pblico, tanto
quanto o foram as publicaes, alm de ser um tema explorado por diversos
meios de comunicao, muito diferente do que poderamos diagnosticar paraperodos anteriores, em que os pesquisadores no eram to numerosos, nem
conseguiam mobilizar tanta ateno.
Percebemos, tambm, uma grande presso de rgos de Direitos
Humanos para que se apurem os fatos e um nmero mais expressivo de
pesquisadores do tema engajados, que tm participado de aes pblicas de
denncia. Um exemplo mais expressivo da atuao desses pesquisadores foi
participando da reivindicao pela abertura dos arquivos da ditadura, queganhou fora, sobretudo, no meio acadmico. Pauta finalmente atendida, como
veremos, pela lei que regulamenta o acesso informao pblica no Brasil24.
22Criada por: BRASIL. Medida Provisria n 2.151/2001. Destinada a apreciar pedidos deindenizao por pessoas impedidas de exercer atividades econmicas por motivospolticos. A Comisso da Anistia tambm realiza aes mais pblicas, como asCaravanas da Anistia - sesses itinerantes de apreciao de requerimentos dereparao. Porm seu foco a reparao pecuniria.23Dados at o ano de 2011, segundo MEZAROBBA, Glenda. Entre Reparaes, Meias
Verdades e Impunidade: o difcil rompimento com o legado da ditadura no Brasil. SUR:Revista Internacional de Direitos Humanos, So Paulo, v. 7, n. 13, dez. 2010.24Lei conhecida como Lei de Acesso Informao: BRASIL. Lei N 12.527/2011.
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Cada vez mais o tema move a discusso na sociedade, cria polmicas e
demandas ao Estado.
notvel, igualmente, a ao da Ordem dos Advogados do Brasil,
questionando o Supremo Tribunal Federal sobre a validade da Lei de Anistia.
Apesar de o supremo ter definido que no era seu papel tomar posio sobre a
demanda, o questionamento suscitou diversas polmicas que ainda produzem
impasses no mbito jurdico, propondo reinterpretaes e, mesmo, a anulao da
lei. Percebemos que, de forma geral, o judicirio brasileiro , ainda, muito
conservador.
O Brasil no obteve avanos significativos na rea criminal:
amparados na Lei de Anistia (muito embora apresente possveis brechas,diversas imprecises e inmeros questionamentos sobre validade e alcance)
nenhum dos crimes, mesmo considerados de lesa-humanidade, foram passveis
de punio.
Algumas foram, ainda, as tentativas de responsabilizar o Estado na
obteno de informao, averiguao dos acontecimentos e apurao de
culpados, principalmente pelos familiares dos mortos e desaparecidos polticos.
Aps esgotar as possibilidades via ao judicial dentro do pas, os familiares dedesaparecidos na regio do Araguaia recorreram Comisso Interamericana de
Direitos Humanos e, em 2010, aps julgamento na Corte Interamericana de
Direitos Humanos, o Brasil foi condenado. Segundo a deciso da Corte:
[...] Os representantes ressaltaram que, apesar de reconhecer arecente boa vontade do Estado brasileiro ao adotar medidas aesse respeito, principalmente a recuperao da memria dasvtimas da ditadura militar no pas, estas so insuficientes,inadequadas e no esto em consonncia com os parmetros
determinados pelo Sistema Interamericano em matria dereparao de graves violaes de direitos humanos.25[...] Declara, por unanimidade, que [...] 3. As disposies da Lei deAnistia brasileira que impedem a investigao e sano de gravesviolaes de direitos humanos so incompatveis com aConveno Americana26, carecem de efeitos jurdicos e nopodem seguir representando um obstculo para a investigaodos fatos do presente caso, nem para a identificao e puniodos responsveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante
25CORTE Interamericana de Direitos Humanos - Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha
do Araguaia) vs. Brasil Sentena de 24 de Novembro de 2010. P. 9326A Conveno Americana diz respeito ao tratado assinado pelo Brasil em 1992:BRASIL.Decreto N 678/1992.Nota da autora.
http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/DEC%20678-1992?OpenDocumenthttp://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/DEC%20678-1992?OpenDocument -
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impacto a respeito de outros casos de graves violaes de direitoshumanos consagrados na Conveno Americana ocorridos noBrasil.27
Mesmo as medidas que mais avanaram no Brasil foramconsideradas insuficientes, inadequadas. Das diversas medidas impostas pela
corte, que tratam tanto do direito justia quanto memria e verdade
(prevendo responsabilizao do Estado na apurao dos fatos e audincias
pblicas, por exemplo), foi imposto ao Brasil, entre outros, que procure os restos
mortais dos militantes e camponeses mortos nos confrontos da Guerrilha do
Araguaia, e, tambm, que se penalize os autores dos crimes de violaes graves
aos direitos humanos, pois, tendo cometido crimes de lesa-humanidade, nopoderiam ser acobertados por anistia ou qualquer outro dispositivo legal.
Torna-se, portanto, insustentvel para o pas manter sua posio de
no tratar o assunto, em prol da reconciliao nacional. Portanto, mais
recentemente, uma serie de medidas tm sido desenvolvidas, sendo a mais
expressiva e polmica, a criao da Comisso Nacional da Verdade, demanda
antiga das entidades de direitos humanos. Importante colocar que o processo de
elaborao da lei e da criao da Comisso Nacional da Verdade foi marcado poruma srie de disputas e controvrsias.
Em, 2008 a 11 Conferncia Nacional de Direitos Humanos aprovou
a proposta de criar uma Comisso da Verdade e da Justia. No entanto, na
elaborao do texto final do Programa Nacional de Direitos Humanos 3, lanado
em dezembro de 2009 pelo Governo Federal, o projeto sofreu alterao, e foi
retirado o termo justia, que afastou ainda mais do horizonte a possibilidade de
uma resposta penal aos envolvidos em crimes contra os Direitos Humanos.
Reafirmava-se no Brasil o propsito de se promover a reconciliao nacional ao
invs de, promover a consolidao da democracia, como propunham militantes
por Direitos Humanos, em manifesto28.
27CORTE Interamericana de Direitos Humanos - Caso Gomes Lund e outros (Guerrilhado Araguaia) vs. Brasil Sentena de 24 de Novembro de 2010. P. 114.28 Conforme Manifesto em favor da alterao de texto do PL 7.376/2010, amplamentedivulgado e que pode ser consultado em:http://carosamigos.terra.com.br/index/index.php/direto-dos-movimentos/888-movimentos-
e-sociedade-civil-exigem-alteracao-do-texto-da-comissao-da-verdade. Acessado em18/08/2012.
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H, evidentemente, desdobramentos da forma com que foi criada a
Comisso:
Tal conformao de foras implicou na retomada de discusses a
princpio superadas entre quem historicamente reivindica aformao dessa comisso, como, por exemplo, a retomada dadiscusso sobre a necessidade de investigaodos dois lados.Significou, tambm, uma maior limitao das possibilidades detrabalho da comisso - sendo, como vimos, a impossibilidade depenalizao dos responsveis o limite mais criticado por diversosmilitantes pelos direitos humanos. Temos, portanto, uma comissomais limitada em seus poderes e, alm disso, uma vez que retomadiscusses j superadas, tambm retardatria em darandamento em suas aes, urgentes em serem efetivadas, umavez que tem to curto prazo para realizar seus trabalhos29.
Vemos desenhados diversos limites que se pe no Brasil para
avanar em verdade e memria, porm, maiores so os para se avanar em
justia, todavia, devemos ressaltar que os resultados reais da CNV s se
desenhar melhor aps apresentao de seus trabalhos realizados, com seus
rumos ainda em disputa.
Outra mostra evidente de um maior engajamento de diversos
setores da sociedade e discusso em torno do tema a formao de diversos
Comits por Verdade, Memria e Justia - que, embora possa colaborar com a
CNV, no tem vnculos com o Estado brasileiro, pois se trata de uma iniciativa
civil.
Outra ao civil que ganhou bastante notoriedade foi a realizao,
em nosso pas, da experincia argentina dos ditos escrachos. Promovidos por
movimentos sociais ligados luta por Direitos Humanos, a principal ideia fazer
denncias e promover a condenao social, uma vez que negada a condenao
jurdica.Entre as diversas manifestaes da sociedade civil e, tambm, o
relativo sucesso do tema quando abordado pela grande mdia, podemos
considerar que o debate mobilizador da sociedade e causa uma forte disputa da
29SILVEIRA, Marlia; GASPAROTTO, Alessandra; VECHIA, Renato.A Criao da
Comisso Nacional da Verdade e a Luta por Verdade, Memria e Justia no Brasil.Espao Plural, Ano XIII, N 27, 2 Semestre 2012. P. 94.
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opinio pblica, o que explica a constante cobrana por polticas de memria, em
algum grau atendidas por programas como o Memrias Reveladas30.
tambm um avano que, conforme vimos, tenhamos superado os
entraves para o acesso informao, apoiados no direito assegurado pela
Constituio Federal, que prev que:
todos tm direito a receber dos rgos pblicos informaes deseu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, quesero prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade,ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindvel seguranada sociedade e do Estado31.
Temos ento a Lei de Acesso Informao32, que regulamenta a
consulta aos documentos pblicos. Embora no trate exclusivamente dos
arquivos da ditadura civil militar, mas, mais amplamente, de publicizar e dar
transparncia s aes do Estado, indiretamente, disponibiliza os arquivos da
ditadura, at ento em parte no disponveis para consulta, uma vez que retira
restrio documentao e s informaes relacionadas aos Direitos Humanos
no pas. Trata-se de mais um avano, pressionado por esse novo momento que o
Brasil experimenta, que permite mais amplamente a pesquisa no assunto,
entendendo as violaes cometidas poca como crimes contra toda asociedade e, portanto, tendo medidas reparatrias de carter pblico.
Deve-se, no entanto, fazer a ressalva de que os pesquisadores
ainda encontram muitos entraves, mesmo com a lei, para acessar os arquivos,
impostos, em boa medida, pelas prprias entidades mantenedoras, tambm pelas
sucessivas administraes que negligenciaram a conservao dessa
documentao, ou, mais, por decises de descarte desse material.
Mostrou-se, por exemplo, tarefa impossvel de concluso alocalizao do arquivo da 18 Regio do SOPS (Sees de Ordem Poltica e
Social, uma das sees do DOPS no interior do Estado). Essa regio inclua a
cidade de Pelotas como sede e abarcava tambm as cidades de Pedro Osrio,
30Projeto institucionalizado pela Casa Civil da Presidncia da Repblica um centro dedocumentao e informao sobre as dcadas de 1960 a 1980.31BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Inciso XXXIII, Captulo I.
1988.32BRASIL. Lei N. 12.527/2011.
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Piratini, Canguu e So Loureno do Sul. Embora tenha-se sido dirigido pedido de
localizao Brigada Militar, o paradeiro segue desconhecido.
Mais que isso, o arquivo do DOPS/RS foi incinerado em 1982.
Entretanto, os arquivos de dez das vinte e quatro sees foram encontrados e
hoje esto disponibilizados para consulta no Acervo de Luta Contra a Ditadura, no
Arquivo do Estado33. Esses arquivos foram consultados para nosso trabalho e
permitiram analisar aes repressivas especificamente coordenadas para o
controle da fronteira e o translado de materiais e militantes.
Vemos, portanto, que alguns avanos se desenham, principalmente
por verdade e memria, muito embora estando longe de permitir terminar nosso
processo de transio para uma democracia efetiva, includente e apartada deresqucios desse passado recente.
A inoperncia do Estado, principalmente no mbito da justia, tem
como reflexo um pas marcado pelo cotidiano desrespeito aos direitos humanos,
em um aparato repressivo que no se livrou das prticas de tortura (todavia no
mais aplicada como poltica de Estado), por exemplo. Alm disso, por no ter
efetuado uma reforma em importantes instituies, segundo Mezarobba, ainda
temos vrios legados presentes. Podemos citar o claro monoplio dos grandesmeios de comunicao em nosso pas, a represso a manifestaes, a
criminalizao dos movimentos sociais, e, justamente, o constante desrespeito
aos direitos humanos:
Se ainda h muito que fazer para o cumprimento efetivoespecialmente dos deveres de verdade e justia, tambmpermanece em aberto o dever do Estado brasileiro de reformarimportantes instituies, tornando-as democrticas e accountable.Ainda que no restem dvidas acerca de importantes avanos,
sobretudo nas reas social e econmica, registrados a partir daredemocratizao, segue precrio, por exemplo, o respeito aosdireitos civis, como atestam os no apenas altos, mas em algunscasos crescentes, ndices de violncia registrados. Evidnciatrgica disso que continua em uso, contra presos comuns, em
33So os SOPS sediados nas cidades de Alegrete, Cachoeira do Sul, Caxias do Sul,Cruz Alta, Erechim, Lajeado, Lagoa Vermelha, Osrio, Rio Grande e Santo ngelo. Paramais, consultar: FERNANDES, Ananda.Arquivos Repressivos da Polcia Poltica: o casodo Departamento de Ordem Poltica e Social do Rio Grande do Sul. In.: ALVES, Clarissa;PADRS, Enrique (ORG.). II Jornada de estudos sobre ditaduras e direitos humanos: h
40 anos dos golpes no Chile e no Uruguai (2 : 2013 : 24 a 27 abr.: Porto Alegre, RS).Anais [recurso eletrnico].Porto Alegre: CORAG, 2013.
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delegacias e presdios de todo o pas, o suplcio da tortura.34
Percebe-se, portanto, a atualidade da temtica na sociedade, que
demanda por respostas, motivando trabalhos acadmicos - como o nosso - a sesomarem no debate. tambm um indicativo de diversas preocupaes, como
veremos, de cunho terico, metodolgico - e at tico - que estaro no horizonte
de nossa pesquisa.
Devemos ter em horizonte que h uma serie de pontos que
necessitam definio, para alm de apenas a pesquisa em si, pois, ao contrrio
de alguns nichos da histria, nosso tema pode suscitar argumentos que
combatem a democracia e os direitos humanos e criminalizam posies etrajetrias, uma vez que, como vimos, h uma lacuna na elucidao do debate
perante a sociedade, que refletir em nossas preocupaes acadmicas.
34
MEZAROBBA, Glenda. Entre Reparaes, Meias Verdades e Impunidade: o difcilrompimento com o legado da ditadura no Brasil. SUR: Revista Internacional de DireitosHumanos, So Paulo, v. 7, n. 13, dez. 2010. P. 20.
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1.2. Histria e Ditadura Civil Militar:
Devemos nos deter um momento para entendermos a forma com
que esse tema, que, como vimos, est to presente na sociedade, se reflete na
academia. Devemos analisar como a nossa produo est sendo afetada pelas
discusses, geradas inclusive fora da academia e traarmos algumas
preocupaes que deve ter em mente o pesquisador.
Podemos, por exemplo, projetar que algumas imprecises sero
corrigidas aps a publicizao dos trabalhos da Comisso Nacional da Verdade,tanto quanto ser possvel que novos temas sejam abordados pela academia. O
importante trabalho de colher informaes, processar o enorme volume de
documentao recentemente posto consulta, colher um grande nmero de
depoimentos, organizar um acervo que ser disponvel - em parte, inclusive pela
internet - certamente dar maior subsdio aos pesquisadores, alm de possibilitar
que tenhamos dados mais concretos a respeito dos atingidos. Alm de termos
uma investigao mais sria por parte do Estado a respeito dos mortos emdecorrncia da Guerrilha do Araguaia, poderemos somar aos relatrios oficiais
tambm os camponeses atingidos pela represso, ou, mesmo, o extermnio
executado contra povos indgenas, em especial durante a construo da rodovia
transamaznica - dados que apenas recentemente tm sido trazido
conhecimento35.
Tambm podemos projetar o impacto da j referida nova Lei de
Acesso Informao. Segundo discorre Rodeghero, podemos perceber como aproduo acadmica adquiriu caractersticas especficas ao tentar superar os
35Enquanto o Dossi de Mortos e Desaparecidos Polticos no Brasil identifica 379atingidos (CFMDP. Dossi Ditadura: Mortos e Desaparecidos Polticos no Brasil (19651985). SP: Editora Oficial, 2009.), segundo tm-se divulgado na mdia, podemos somarao nmero de mortos mais de 1.000 camponeses, e cerca de 1.500 indgenas (segundodiversas notcias, como COSTA, Gilberto. Jornal Agncia Brasil. Braslia, 27/09/2012.Disponvel em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-27/sdh-identifica-cerca-de-12-mil-camponeses-mortos-e-desaparecidos-entre-1961-e-1988 acessado em
01/05/2013 e Site do MPF:http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/mpf-am-investiga-possiveis-violacoes-aos-direitos-humanos-de-povos-indigenas-tenharim-e-jiahui,acessado em 01/05/2013).
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-27/sdh-identifica-cerca-de-12-mil-camponeses-mortos-e-desaparecidos-entre-1961-e-1988http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-27/sdh-identifica-cerca-de-12-mil-camponeses-mortos-e-desaparecidos-entre-1961-e-1988http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/mpf-am-investiga-possiveis-violacoes-aos-direitos-humanos-de-povos-indigenas-tenharim-e-jiahuihttp://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/mpf-am-investiga-possiveis-violacoes-aos-direitos-humanos-de-povos-indigenas-tenharim-e-jiahuihttp://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/mpf-am-investiga-possiveis-violacoes-aos-direitos-humanos-de-povos-indigenas-tenharim-e-jiahuihttp://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/mpf-am-investiga-possiveis-violacoes-aos-direitos-humanos-de-povos-indigenas-tenharim-e-jiahuihttp://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/mpf-am-investiga-possiveis-violacoes-aos-direitos-humanos-de-povos-indigenas-tenharim-e-jiahuihttp://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/mpf-am-investiga-possiveis-violacoes-aos-direitos-humanos-de-povos-indigenas-tenharim-e-jiahuihttp://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-27/sdh-identifica-cerca-de-12-mil-camponeses-mortos-e-desaparecidos-entre-1961-e-1988http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-27/sdh-identifica-cerca-de-12-mil-camponeses-mortos-e-desaparecidos-entre-1961-e-1988 -
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entraves impostos pela dificuldade de acesso informao:
[...] no cotidiano da pesquisa histrica pesquisadores e estudantesde Histria tm descoberto novas fontes, abrindo portas paraestudos posteriores apesar da demora governamental na
liberao de arquivos: o que se v na busca de documentaogerada no mbito das universidades e do movimento estudantil;na busca de registros sobre o funcionamento das AuditoriasMilitares;na explorao de registros de atuao de advogados depresos polticos ou com pronturios do Presdio Central; napesquisa sobre rgos de imprensa alternativa;na elaborao dehistrias a partir de depoimentos oraisou, ainda, na constituiode acervos desses depoimentos; na anlise de monografiasescritas no seio da Academia da Brigada Militar; na consulta aosAnais da Assembleia Legislativa e das Cmaras de Vereadores;na busca de papis pessoais dos militantes junto a famlias demortos e desaparecidos; no acompanhamento da trajetria deintelectuais que se colocaram numa posio combativa; nocruzamento de diversas fontes para reconstituir um objetoparticular, etc. Estas descobertasno tiram a importncia de seinvestir na luta pela abertura de arquivos oficiais. Apenas mostramque a no abertura dos mesmos no tem sido razo forte osuficiente para inviabilizar a pesquisa36.
Para suprir a falta de arquivos, os historiadores que se debruaram
sobre o tema passaram a recorrer s diferentes fontes. Percebemos, ento, que
so vrias as pesquisas at aqui desenvolvidas e, com a abertura dos arquivos, atendncia , longo prazo, diversificar-se ainda mais a produo.
Uma grande fonte poder ser o material que ser disponibilizado
pela Comisso Nacional da Verdade, por exemplo. Evidentemente, necessrio
relativizar as expectativas que podem ser criadas com a nova lei, considerando
que, como j referenciado, os pesquisadores ainda enfrentam barreiras (no
oficiais) para acessar a fonte, dificultados, agora, no mais por recursos
jurdicos, mas, muitas vezes, pelas prprias instituies que abrigam os acervos,
alm da dificuldade de saber o real paradeiro - ou mesmo existncia - da fonte.
Quando tratamos de um tema to recente de nossa histria, torna-se
importante, tambm, refletir sobre as diversas consideraes tericas atualmente
discutidas no mbito da academia. Para alm da j superada discusso sobre a
legitimidade da Histria do Tempo Presente e do necessrio afastamento para
36RODEGHERO, Carla. Reflexes sobre histria e historiografia da ditadura militar: o
caso do Rio Grande do Sul. In: IX Encontro Estadual de Histria, 2008, POA. Vestgios doPassado: a histria e suas fontes. Anais IX Encontro Estadual de Histria. POA:ANPUHRS, 2008. v. 1. P. 6-7.
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uma perspectiva histrica, devemos considerar outras implicncias dessa
aproximao na produo.
Hobsbawm faz importantes consideraes em relao sua
experincia de escrita sobre o sculo XX37, que tm tantas questes em aberto,
conflitos a serem resolvidos e protagonistas ainda vivos, grande parte atuantes,
disputando as interpretaes do passado38, pois temos no Brasil ainda vivos os
reflexos da ditadura civil militar.
Assim como nos alerta Hobsbawm sobre os perigos da pouca
problematizao ao tratar sobre o nazismo, temos a mesma preocupao em
nossas discusses. Portanto, longe de ser uma "reabilitao de um sistema
infame"39, tratar o golpe como civil e militar, questionando a responsabilidade detodas as parcelas da populao e trazendo problematizaes s questes que
so sucessivas vezes retomadas na sociedade ver o perodo com a
complexidade que esse requer. Como Fico nos prope refletir:
A condenao do mal um trusmo; explica pouco. Por isso, importantedesmontar simplismos e esteretipos decorrentes dessa tendncianatural. Entretanto, a busca por explicaes complexas, refinadas,no pode ser confundida com o que poderamos chamar de
humanizao do algoz. Se todas as interpretaes sopossveis, o historiador deve legitimar a leitura da represso?Esse um dos riscos implcitos na atuao do historiador comoperito, mas compreender o passado no significa justific-lo40.
Cabe, portanto, ao historiador, longe de qualquer simplificao, fazer
um trabalho que esteja de acordo com a complexidade do assunto, de forma
responsvel, compreendendo o papel poltico que o historiador deve ter, em
nosso caso reforando os direitos humanos, a democracia e as lutas sociais no
pas.
necessrio tambm que historiadores proponham pesquisas que
dialoguem com os debates que esto sendo feitos na sociedade (como os vistos
at aqui), tentando colaborar com novas perspectivas.
37Quando discute os problemas que detectou ao escrever o livro: HOBSBAWM, Eric.AEra dos Extremos. SP: Companhia das Letras, 1995.38Como o prprio autor se identificou em HOBSBAWM, Eric. O Presente Como Histria.In.: __ Sobre Histria. SP: Companhia das Letras, 1998.39
Idem. P. 252.40FICO, Carlos.Histria do Tempo Presente, Eventos Traumticos e Arquivos Sensveis.VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 28, n 47. P .43-59, jan/jun 2012. P. 48.
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Muitos so os debates ainda vivos hoje e, cada vez mais, em
disputa, uma vez que volta pauta esse tema. Dando seguimento discusso,
problematiza Fico, sobre retomadas de polmicas at ento superadas, na
Comisso Nacional da Verdade:
Por exemplo, os debates sobre a Comisso da Verdade, no Brasil,tm suscitado a questo de que os dois lados deveriam serinvestigados. a mesma tese que, na Espanha, chamada deequivalencia e, na Argentina, de dos demonios, isto , aviolncia da represso comparar-se-ia violncia da esquerda.Por que esse argumento, aparentemente sbrio, falso? H umaresposta formal: as comisses da verdade so criadas para apurarcrimes cometidos pelo Estado, no por pessoas. Mais importante,entretanto, o seguinte: o Estado brasileiro, mesmo durante oregime autoritrio, poderia ter combatido a luta armada sem apelarpara a tortura e o extermnio. Alm disso, muitos ex-integrantes daluta armadaao menos os que sobreviveram j foram julgadose punidos.41
Podemos endossar os argumentos de Fico, afirmando que no s a
ditadura poderia acabar com a guerrilha urbana sem utilizar a prtica de tortura e
assassinato, como, ainda, devemos atentar que a violncia, a tortura, a priso, o
desaparecimento, no foram utilizados exclusivamente contra os guerrilheiros, ou
seja, no se tratou de combater violncia com violncia - o que, todavia, no se
justificaria e igualmente perverso e condenvel -, mas, tambm, contra crticos
ao governo, inclusive os que no participavam da luta armada, mesmo em
perodo anterior aos chamados anos de chumbo.
preciso expor, acima de tudo, que tratou-se de uma reao contra
a ditadura civil militar, cujas aes ganharam tons gradativamente mais
agressivos. Conforme nos alerta Foley e Edwards, ao estudarem associaes e
Civil Societys, essa , inclusive, uma caracterstica geral s sociedades que so
submetidas a Estados antidemocrticos:
Where the state is unresponsive, its institutions are undemocratic,or its democracy is ill designed to recognize and respond to citizendemands, the character of collective action will be decidedlydifferent than under a strong and democratic system. Citizens willfind their efforts to organize for civil ends frustrated by state policy- at some times actively repressed, at others simply ignored.Increasingly aggressive forms of civil association will pring up, andmore and more ordinary citizens will be driven into either activemilitancy against the state or self-protective apathy. Thebreakdown of the tutelary democracies and authoritarian states of
41Idem P. 48-49.
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Latin America in the 1970s and 1980s attests to what more thanone observer has euphemistically called "the dangers of excludingreformists from power." In such settings, all of civil life maybecome polarized, as Samuel P. Huntington pointed out long ago(though the solutions he advocated proved elusive); and evenPutnam's choral societies and bowling leagues - even nuns andbishops! - may become "subversive"42.
Onde o Estado indiferente, suas instituies soantidemocrticas, ou sua democracia fragilmente projetada parareconhecer e responder as demandas dos cidados, o carter daao coletiva vai ser decididamente diferente do que sob um fortesistema democrtico. Os cidados acharo seus esforos paraorganizaes de fins civis frustrados pela polcia do Estado - emalguns momentos ativamente reprimidos, em outros simplesmenteignorados. Gradativamente, formas mais agressivas de
associaes civis iro surgir e, cada vez mais, cidados comunssero levados ou para a militncia ativa contra o Estado ou parauma apatia auto protetora. A quebra da tutela democrtica e dosestados autoritrios na Amrica Latina nas dcadas de 1970 e1980 comprovam o que mais de um observador eufemicamentechamou de operigo de excluir os reformistas do poder.Nestescenrios, toda a vida civil pode tornar-se polarizada, como SamuelP. Huntington apontou h muito tempo (atravs de soluesdefendidas por ele, as quais revelaram-se evasivas); E at mesmoas sociedades de coral e as ligas de boliche de Putnam - atmesmo freiras e bispos! - podem tornar-se subversivos43
Esse trecho, alm de permitir que se questione o limite de nossa
democracia, que no responde s demandas da sociedade por Memria, Verdade
e Justia, expe, tambm, a necessidade de que se faa a diferenciao entre um
Estado que, acima de tudo, no pode atentar contra a vida de seus cidados e
uma sociedade que reage com uma oposio que, gradativamente (a depender
da poltica do Estado e da ao policial) torna-se cada vez mais agressiva.
H muito que as teses que defendem a dupla culpabilidade do golpe
so refutadas por diversos pesquisadores. So muitos os argumentos que
corroboram: seja por terem sido os legalistas os atingidos massivamente, em um
primeiro momento, ou porque parte significativa da esquerda defendia a
democracia - como a experincia chilena da via democrtica - ou, ainda, porque
parte desses militantes que partiram para a luta armada o fizeram aps esgotadas
todas as demais vias de resistncia, inclusive, referncias tericas para a
42
FOLEY, Michael; EDWARDS, Bob. The Paradox of Civil Society. Journal ofDemocracy, 1996. P. 0743Traduo da autora.
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esquerda de todo o mundo, defendiam que se esgotasse as possibilidades legais
de luta antes de um enfrentamento armado. Longe de defendermos que a
esquerda tenha prticas como sequestro ou qualquer uso de violncia, ainda
assim, necessrio que percebamos a diferena entre repressores e reprimidos.
Outra polmica, mais especfica ao meio acadmico, sobre a qual
devemos nos posicionarmos, diz respeito a compreendermos o papel que o
historiador poderia ter ao integrar a Comisso Nacional da Verdade. Essa
discusso, em especfico, deve ser aqui reassumida para que possamos discutir a
necessidade de se retomar, em qualquer pesquisa, o papel poltico do
pesquisador. Discusso que muitas vezes pouco explcita, porm, nos muito
cara, por estar ligada s nossas responsabilidades perante a sociedade.Primeiramente, o prprio sentido de verdadesignifica um problema
ao historiador, mas, se entendermo-lo como um termo que impele apurao dos
fatos, at ento negado s vtimas e sociedade e no como uma verdade
imposta e absoluta, podemos compreender que o historiador poderia desenvolver
trabalho nesses parmetros. Porm, diversos foram os profissionais que, sendo
referncia na pesquisa do tema, no souberam compreender a importncia de
historiadores na comisso44
.Ora, cabe retomar que o oficio do historiador no circunscrito
exclusivamente arquivos, p e escrita. Cabe retomar que o historiador deve ter
um comprometimento com a sociedade - o que, obviamente no inclui ignorar
fontes, deixar de fazer um trabalho crtico e, menos ainda, falsificar a histria . O
historiador tem um papel poltico, cujas delimitaes so sempre rediscutidas,
mas assumido, desde que deixamos de nos balizarmos pelo to antigo
historiscimo. Podemos, portanto, nos apropriarmos da reflexo proposta porRamirez, ao pensar a historiografia das ditaduras civis militares nos pases do
Cone Sul:
O ofcio de historiar se amarra s necessidades polticas e com otempo em que ele est inserido. Novos ares trouxeram novosproblemas, novas crticas a posturas tericas e metodolgicas quetinham se convertido em paradigmas, possibilitando assim quevoltssemos ao passado enxergando-o desde outrasperspectivas, a quais revelam novas facetas e ajudam a repensaras nossas velhas prticas. A histria do Tempo Presente e a
poltica, entrando pela janela, no tm efeitos ruins, ao contrrio,44Podemos citar, por exemplo, a posio do pesquisador Carlos Fico.
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podem trazer um novo ar que renove nossa disciplina.45
A reflexo no estranha aos historiadores, mas precisa ser
sistematicamente retomada, principalmente quando tratamos com Histria doTempo Presente e temos um tema que cada vez mais gera discusses e
posicionamentos na sociedade. , portanto, fundamental ao historiador, e essa
a principal reflexo proposta por esse subcaptulo, ter claro seu papel e o papel
de sua pesquisa na sociedade.
45
RAMIREZ, Hernn.Poltica e Tempo Presente na Historiografia das Ditaduras do ConeSul da Amrica Latina. Revista Tempo e Argumento. Florianpolis, v. 4, n1. Jan/Jul,2012. P. 88.
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1.3. Histria Oral, Memria e Ditadura Civil Militar:
J consideramos previamente os vrios desafios que encontrar o
historiador ao tratar de nosso tema, tanto quanto, todo o cuidado e
responsabilidade perante as demandas sociais. Mas como responder s
perguntas que nos propomos estudar? Como veremos, so vrios os motivos
pelos quais optou-se investigarmos atravs da memria os nossos
questionamentos, utilizando-nos de memrias escritas e, principalmente, de
entrevistas. Portanto, cabe tambm, exercer uma reflexo a respeito da memriae da Histria Oral.
No nos deteremos aqui em fazer uma defesa da Histria Oral. J
consolidada na Histria e o debate que a descredibilita , cada vez mais,
superado. Cabe sim considerarmos as peculiaridades da Histria Oral para o
estudo da Ditadura Civil Militar e, mais detidamente, para nosso trabalho.
A Histria Oral tem significativos mritos, dos quais nos valeremos
para realizarmos nossas pesquisas. Refletindo sobre, Philippe Joutard, ressaltaque algumas caractersticas, por diversas vezes vistas como demritos da
Histria Oral, deve ser considerada, ao invs, atributos positivos. Frisa, tambm,
as principais contribuies dessa metodologia:
Os que contestam a fonte oral travam combates ultrapassados.Em contrapartida, como em todo fenmeno que atinge amaturidade, o risco de perda de vitalidade, de banalizao real.(...) preciso saber respeitar trs fidelidades inspirao original:ouvir a voz dos excludos e dos esquecidos; trazer luz as
realidades "indescritveis", quer dizer, aquelas que a escrita noconsegue transmitir; testemunhar as situaes de extremoabandono.46
Vemos ento que, alm de reafirmar a consolidao da Histria Oral
e ressaltar suas peculiaridades - mesmo as vistas como demrito - tomando-as
como positivas, o autor tambm levanta trs consideraes diretamente ligadas
ao nosso tema:
46
JOUTARD, Philippe. Desafios Histria Oral do Sculo XXI. In.: FERREIRA, Marietade Moraes (org.). Histria Oral: desafios para o sculo XXI. RJ: Editora Fiocruz/ Casa deOswaldo Cruz / CPDOC - Fundao Getlio Vargas, 2000. p. 33.
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1) Ouvir a voz dos excludos e esquecidos. Retomamos, ento,
que no Brasil, por muito tempo, vigorou uma poltica de esquecimentoimposta
pelo Estado. Mesmo hoje so raros os espaos pblicos dedicados memria ou,
mesmo, ao debate dos atingidos pela nossa ditadura. Os arquivos oficiais so,
ainda, de difcil acesso, nossa histria foi esvaziada de protagonistas. A prpria
Histria Oral se fortaleceu no Brasil em torno de nosso tema ainda no perodo (e
devido ao perodo) ditatorial47e, como vimos, a memria foi importante ferramenta
militante de denncia das atrocidades ocorridas.
Reforamos aqui os excludos e esquecidos, que geralmente no
aparecem em fontes mais convencionais e, que quando aparecem, muitas vezes
so tratados de forma pejorativa, distorcida ou secundria. Considerando nossocaso, h dificuldade em acessar as fontes oficiais que tratam dos articuladores
das rotas de exlio e de quem as utilizavam. Os meios de comunicao de massa
os tratavam, na maioria das vezes, como terroristas e apresentam uma verso
muito simplista do perodo. H, ainda, outras fontes que podem nos ajudar a
compreender essas rotas (como panfletos e jornais de esquerda do perodo), que
serviro de fonte secundria. Essas fontes, todavia, no representam nossos
investigados em primeira pessoa: suas vozes, pontos de vista, narrativas,experincias, impresses. Esse o papel da Histria Oral.
2) A Histria Oral deve, ainda Trazer luz as realidades
indescritveis e testemunhar as situaes de extremo abandono. O autor
exemplificou referenciando os perseguidos pelo nazismo. Ns podemos fazer
direta ligao com os perseguidos pelas ditaduras civis militares (mesmo que a
represso no seja o maior foco de nosso trabalho) e, tambm, com as
experincias advindas das incertezas do perodo, experimentadas por quemorganizava as rotas de sada e por quem as utilizava.
Ou seja, podemos constatar que a Histria Oral uma fonte
importante para nosso tema, como uma alternativa falta de arquivos oficiais,
mas, mais que isso, a Histria Oral que nos permite investigar os
47MEIHY, Jos Carlos. Desafios da Histria Oral Latino-Americana: O Caso do Brasil. In.
In.: FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). Histria Oral: desafios para o sculo XXI. RJ:Editora Fiocruz/ Casa de Oswaldo Cruz / CPDOC - Fundao Getlio Vargas, 2000: p.86.
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questionamentos propostos e se apresenta como mais adequada nossa
pesquisa.
Mas com o que estamos trabalhando, ento? Nossas fontes
principais so as entrevistas, mas, de forma mais geral, estamos trabalhando com
a memria dos militantes do perodo, incluindo, tambm, os livros de memrias.
Temos ento um problema: entre histria e memria, quais as
aproximaes, quais as diferenas, quais as nossas responsabilidades? Histria
e memria no so a mesmas coisa, esse debate bastante conhecido na
Histria. Temos que considerar que nossos entrevistados do-nos a narrativa de
seu entendimento sobre os fatos, que divergem entre si, podem ter
inconsistncias, lacunas, silncios. Essas so suas memrias, o que se escolheulembrar, esquecer, suas releituras do passado... A Histria trabalhar a partir
dessas memrias.
Para alguns pesquisadores, essa , na verdade, uma importante
contribuio do historiador. Segundo Jourtad historiadores acreditam que a
melhor homenagem que se pode prestar memria dos excludos transformar
sua memria em histria48.
claro que se pode questionar os limites de nossas entrevistas etrabalhar com Histria Oral pode ser visto como um pisar em ovos, tanto quanto
se pode questionar o uso dos livros de memrias, que, passando por um
processo um pouco diferenciado da entrevista, permite a elaborao e
reelaborao da memria e, por diversas vezes, a releitura do passado, durante a
escrita. Os autores que trabalham com as fonte, como Hall, nos alertam para
diversos perigos do uso "inocente" da fonte: algumas incoerncias cronolgicas
das entrevistas, a transferncia de opinies pessoais do presente para o passado,a pouca reflexo sobre a histria durante a entrevista49...
Temos que relembrar, porm, que todas as fontes tm seus vcios,
pontos de vista, etc. Como bem nos alerta Aspsia Camargo: [...] a histria oral
legtima como fonte porque no induz a mais erros do que outras fontes
48JOUTARD, Philippe. Desafios Histria Oral do Sculo XXI. In.: FERREIRA, Marietade Moraes (org.). Histria Oral: desafios para o sculo XXI. RJ: Editora Fiocruz/ Casa de
Oswaldo Cruz / CPDOC - Fundao Getlio Vargas, 2000, p. 3749HALL, Michael. Histria Oral: os Riscos da Inocncia. In.: CUNHA, Maria. O Direito Memria, Patrimnio Histrico e Cidadania. SP: DPH/SMC,1992.
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documentais e histricas50. Ou seja, o documento oral e a memria so
portadores de subjetividade, assim como qualquer outra fonte o . Desacreditar a
memria enquanto fonte descartar uma rica possibilidade de complexificar
nosso entendimento sobre o perodo estudado, deslegitimando uma das principais
formas de se fazer ouvir os excludos e esquecidos.
Por muito tempo se trabalhou essas memrias como verses
possveis para a histria e, at mesmo, essa expresso j vem sendo
questionada. Alberti Verena, uma das maiores referncias em Histria Oral no
pas, indica novos rumos para um problema que muito j vem incomodando
historiadores - como incomodou-me ao trabalhar com a fonte - superando a viso
de verso, ao pensar a3 edio do livro Manual de Histria Oral, que estavaprevisto para ser impresso ainda em 2013:
[...] estou tendendo a modificar o Manual de histria oral. Onde hverso,prefiro escrever entrevista,narrativaou relato.Comisso, quero evitar que se tome versocomo algo muito particular,como em Essa a minha verso dos fatos(frase que tambmtem um tom de reivindicao da verdade), ou ento como algomenor, suscetvel de erro, como em Ah,isso a verso dele!51[...] A entrevista de histria oral sem dvida contingente ummomento nico, com circunstncias nicas, que produz aquele
resultado nico, como ocorre com muitos documentos e fontes nahistria. Mas esse seu carter particular ao extremo, como soparticulares as cartas de Joel Rufino a seu filho, no impede quetomemos a entrevista de Justo Evangelista e as cartas de JoelRufino como documentos de uma realidade social, seja dasituao poltica, sob a ditadura, em 1973, seja do racismo noBrasil. Nesse sentido, dizer que a entrevista de Justo Evangelista uma verso dos fatos que ocorreram com ele pode acabardesviando nosso olhar daquilo que ela documenta e do que elaefetivamente : uma narrativa de experincias de vida produzidano contexto de uma entrevista de histria oral. E enquanto talque nos cabe analis-la.52
Percebe-se, portanto, que no s se deve superar as vises que
relegam a Histria Oral como puro subjetivismo sem comprometimento com o
fato, como essa autora tambm evidncia caractersticas positivas, prprias da
fonte.
50CAMARGO, Aspsia. Apresentao da primeira edio. In: ALBERTI, Verena. Manualde histria oral. 2 ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. P.1351ALBERTI, Verena. De verso a narrativa no Manual de Histria Oral. In.: Histria
Oral, v. 15, n. 2, p. 159-166, jul.-dez. 2012. P. 163.52Idem. P. 165.
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Mas, ento, como deve proceder o pesquisador? O prprio autor
anteriormente referenciado, Joutard, nos indica o caminho a seguir: Se
quisermos tirar melhor partido da pesquisa oral e extrair toda sua riqueza, no
poderemos deixar de utilizar plenamente os procedimentos histricos53. Utilizar a
Histria Oral no um mero transcrever de fontes, como se essa guardasse a
verdade a ser revelada - assim como qualquer fonte no o . Nosso dever
compreendermos a memria como uma fonte com todas as suas peculiaridades e
submet-las aos mtodos prprios do fazer do historiador. O olhar crtico, sem
deslegitimar a fonte, deve estar sempre presente em nossa anlise.
Devemos, mais que isso, ressaltar os melhores aspectos dessa
fonte, incluindo os que, por muitos, so vistos como demrito. Como, com todasua experincia, nos alerta Portelli:
[...] se torna problemtico o conceito de verdade. Nosso problemano se limita a aliar nosso compromisso como historiador objetividade daquilo que realmente aconteceu [...] muitoaconteceu na mente dessas pessoas em termos de sentimentos,emoes, crenas, interpretaes - e, por esse motivo, at mesmoerros, invenes e mentiras constituem, sua maneira, reasonde se encontra a verdade [...] a constatao de que noestamos mais lidando com fatos concretos (e que falta nos
fazem!), mas com elementos mutveis, como subjetividade,memria e narrativas de histrias (...)54.
Como defende Portelli e pode ser percebido em diversas pesquisas,
so ricos os trabalhos que conseguem, mais do que ignorar, interpretar as falhas
de uma entrevista, com seus silncios, enganos...
Claro que, ainda, alguns trabalhos sobre Histria Oral podem
resultar negativamente. o caso de pesquisas que superdimensionam o papel da
memria, no conseguindo interpretar a fonte, seja por transcrev-la comoverdade absoluta, seja por no conseguir entend-la em suas sutilezase suas
entrelinhas.Em nosso trabalho deve-se ter cuidado pois muito dito sem ser
explicitado, o que prprio de quem trata de temas to presentes e ainda
polmicos, como vimos.
53JOUTARD, Philippe. Desafios Histria Oral do Sculo XXI. In.: FERREIRA, Marietade Moraes (org.). Histria Oral: desafios para o sculo XXI. RJ: Editora Fiocruz/ Casa deOswaldo Cruz / CPDOC - Fundao Getlio Vargas, 2000. P. 37.54PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexes sobre atica na histria oral. In: Revista Projeto Histria n 15. SP: PUC, 1997. P. 25.
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Retomando a discusso previamente apresentada, ainda nesse
captulo introdutrio55, no caso de nosso tema, a memria e a Histria Oral
tambm podem ser superdimensionados, considerando que, mais que em
Verdade e, muito mais que em Justia, em Memria que o Estado tem investido,
para tentar responder s demandas internas e externas ao pas. Ora, mesmo com
algumas medidas de memria (medidas recentes, portanto, h certa dificuldade
de medir seu alcance a logo prazo, faa-se essa ressalva), sem uma poltica sria
tambm para Justia (pois j estamos avanando tambm, em polticas para
Verdade), muito nos falta para uma verdadeira consolidao da democracia,
enquanto muito ainda persiste como herana de nossa Ditadura Civil Militar. Por
outro lado, no possvel pensar um processo de transio, sem que um dospilares seja as polticas de memria. Considero que esse debate final cabe
enquanto balizador dos limites da contribuio do historiador e da histria oral.
Dialoga com as preocupaes j previamente apresentadas e cabe ainda como
um apontamento das lacunas que nossa pesquisa deixa.
Portanto, para analisar nosso objeto, colhi 10 entrevistas, tentando
diversificar organizao de origem, cidades de atuao e experincias - embora
isso tenha se mostrado uma dificuldade56
. Tive acesso tambm s entrevistas dosSrs. Carlos Alberto Franck, Ari Costa e entrevistado que no ser identificado57,
gentilmente cedidas pelo pesquisador Prof. Dr. Renato da Silva Della Vechia e
pelo Ncleo de Documentao Histrica da UFPel, respectivamente.
As entrevistas por mim coletadas partiram da pergunta sobre como
comeou a militncia - que normalmente leva a uma reflexo do perodo de
infncia e adolescncia e das relaes familiares - questionando o cotidiano da
atuao poltica e as questes especficas da rota de exlio. O entrevistado foiconduzido a focar-se em nosso tema, sem ser desencorajado a somar narrativa
55Refiro-me s discusses apresentadas no subcaptulo Debates e Demandas naSociedade(P.19 - 28).56Algumas dessas fontes j haviam sido previamente colhidas e discutidas em meuTrabalho de Concluso do Curso de Licenciatura em Histria pela Universidade Federalde Pelotas (SILVEIRA, Marlia.A Resistncia ao Golpe e Ditadura Militar em Pelotas.UFPel, 2009. Trabalho de Concluso de Curso).57FRANK, Carlos Alberto.Sem Ttulo. Pelotas, 2001. Entrevista concedida Renato da
Silva Della Vechia, Entrevistado 01. Sem Titulo. Pelotas, _. Entrevista concedida Beatriz Ana Loner e COSTA, Ari. Sem Ttulo. Pelotas, 1992. Entrevista concedida MariaAmlia da Silveira e
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as leituras do perodo e o cenrio mais amplo. Primando por um procedimento
menos formal, com entrevistas que, por algumas vezes, mais lembram uma
conversa, tentou-se garantir um ambiente mais acolhedor para que o entrevistado
pudesse tratar do tema, muitas vezes bastante traumtico e de difcil narrativa.
O resultado foi mais de 750 minutos de entrevistas, com diversos
elementos que muito contribuem para o debate, todavia tambm se possa
perceber a dificuldade de se falar no tema, em que muitas coisas s podem ser
ditas com gravador desligado, especialmente para garantir a privacidade de
alguns dos envolvidos.
Essas entrevistas ficam, tambm, como contribuio para quebrar o
silncio, uma vez que todos os aportes nesse sentido ajudam a estabelecer umrumo uma democracia mais efetiva, pois necessrio que nunca esquea, que
nunca mais acontea58.
Foram consultados, tambm, as memrias dispostas em livros de
autobiografias sobre o perodo59:
A Guerrilha Brancaleone, que conta um pouco da trajetria do Sr.
Cludio Gutierrez, militante do colgio Jlio de Castilhos e da dissidncia do PCB.
Nesse livro possvel percebermos a atuao do movimento estudantil e,tambm, de militantes que no tinham uma atuao orgnica em alguma corrente.
Deu-nos importantes pistas para podermos problematizar a relao entre
militantes de diferentes vertentes do movimento e como se constitua as redes de
colaboradores de fora das organizaes. O autor deixa tambm como
contribuio para nosso estudo uma entrevista concedida para execuo do
presente trabalho, enriquecendo-nos ainda mais a pesquisa no campo.
Agora Eu..., autobiografia sobre as perseguies ao militarreformado Athaydes Rodrigues, militante do PR, apresenta um panorama da
cidade de Rio Grande. Seu relato possibilita a compreenso da atuao -
principalmente institucional - em cidades de interior e de fronteira, tanto quanto
58 Frase retomada diversas vezes por defensores dos Direitos Humanos no Brasil.59Respectivamente: GUTIRREZ, Cludio Antnio Weyne. A guerrilha Brancaleone.Porto Alegre: Proletra, 1999; RODRIGUES, Athaydes.Agora Eu... Pallotti: POA, 1980;FREI BETTO. Batismo de Sangue. RJ: Bertrand, 1987; VARGAS, ndio. Guerra Guerra,Dizia o Torturador. Rio de Janeiro: Codecri, 1981; SIRKIS, Alfredo. Os Carbonrios. So
Paulo: Global, 1994 e FERRER, Eliete (Org.). 68 a gerao que queria mudar o mundo:relatos. Braslia: Ministrio da Justia, Comisso de Anistia, 2011.
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exps aes repressivas contra esses militantes, j nos primeiros dias aps o
golpe. Em sua narrativa possvel explorar os dilemas impostos aos indivduos e
as diversas disputas e reacomodaes de foras nas cidades do interior.
Batismo de Sangue,memrias do militante organizador de rotas de
exlio e, tambm, perseguido poltico, Frei Beto. Partindo desse relato
percebemos as diversas disputas internas da igreja e como se configurava a
perseguio e o apoio. Contrastando com outros relatos podemos perceber as
peculiaridades das cidades de interior, to balizadas pelas discusses feitas
dentro da igreja. Percebemos tambm como se organizava o esquema de rotas,
suas diversas possibilidades e as relaes estabelecidas seus organizadores.
E, uma vez que ele mesmo procurou apoio para refugiar-se da represso, temos,tambm uma importante exposio da constituio das teias de solidariedade sob
a tica de quem as necessitou us-la, apesar de ter sido preso antes de cruzar a
fronteira.
Os Carbonrios narra as experincias desde o movimento estudantil
luta armada, de Alfredo Sirkis, militante da VPR. Essas memrias nos possibilita
discutir algumas opes postas para a juventude do perodo, tanto quanto
diversos mecanismos coercitivos ao movimento estudantil.68 a gerao que queria mudar o mundo: relatos publicao do
projeto Marcas da Memria, da Comisso de Anistia, esse livro rene 175 relatos
de militantes no combate ditadura civil militar, extrapolando o perodo de 1968 e
contando, ainda, com sees especficas sobre memrias do exlio. Partindo
principalmente d