ditadura: desmesura do poder ou (des)medida democrática?

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Ditadura: desmesura do poder ou (des)medida democrática? Nildo AVELINO Eis, portanto, o que eu digo ser justo sempre, em todas as cidades sem exceção: o vantajoso para o governo estabelecido. É ele que tem o poder e, para quem raciocina corretamente, em todos os lugares, o justo é sempre a mesma coisa, a vantagem do mais forte. Platão A República (IV a.C.). Introdução O espectro de Trasímaco ronda a democracia. Talvez ele jamais a tenha abandonado: dois mil e quatrocentos anos de imaginação política não foram capazes de afastar seu prognóstico segundo o qual a justiça é o direito do mais forte. Nem mesmo a genialidade de Rousseau foi capaz de conjurar esse velho fantasma. Quando o filósofo genebrino alertava os homens de sua época sobre a letalidade do governo e o incontornável emprego da força contra os governados, reconhecia tratar-se de um vício inevitável do Estado que não cessa de destruí-lo. E, ao que parece, a história política dos últimos duzentos e cinquenta anos, até os dias atuais, dá razão a Rousseau. Afinal, como explicar que em meio ao marco do quinquagésimo aniversário do golpe civil- militar a democracia brasileira tenha adotado práticas ditatoriais cujo precedente encontra-se apenas em seu passado militar?

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In: Nildo Avelino, Telma Dias Fernandes, Ana Montoia (org.). Ditaduras: a desmesura do poder (memória, história, política). São Paulo: Intermeios, 2015, pp. 285-315.

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  • Ditadura: desmesura do poder ou (des)medida democrtica?

    Nildo Avelino

    Eis, portanto, o que eu digo ser justo sempre, em todas as cidades sem exceo: o vantajoso para o governo estabelecido. ele que tem o poder e, para quem raciocina corretamente, em todos os lugares, o justo sempre a mesma coisa, a vantagem do mais forte.

    PlatoA Repblica (IV a.C.).

    Introduo

    O espectro de Trasmaco ronda a democracia. Talvez ele jamais a tenha abandonado: dois mil e quatrocentos anos de imaginao poltica no foram capazes de afastar seu prognstico segundo o qual a justia o direito do mais forte. Nem mesmo a genialidade de Rousseau foi capaz de conjurar esse velho fantasma. Quando o filsofo genebrino alertava os homens de sua poca sobre a letalidade do governo e o incontornvel emprego da fora contra os governados, reconhecia tratar-se de um vcio inevitvel do Estado que no cessa de destru-lo. E, ao que parece, a histria poltica dos ltimos duzentos e cinquenta anos, at os dias atuais, d razo a Rousseau. Afinal, como explicar que em meio ao marco do quinquagsimo aniversrio do golpe civil-militar a democracia brasileira tenha adotado prticas ditatoriais cujo precedente encontra-se apenas em seu passado militar?

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    A suspenso de direitos democrticos tais como os de reunio, de expresso e de manifestao; o recurso contra a sociedade civil, depois de dcadas, da famigerada Lei de Segurana Nacional; a evidente articulao entre os poderes executivo, legislativo e judicirio na represso e condenao de manifestantes com o intuito de enquadr-los em desejosos projetos de lei antiterrorismo. Alm da virulenta represso governamental que tem se abatido sobre os manifestantes no Brasil e tambm no mundo1 , cujo ato mais recente foi a priso preventiva de jovens cariocas e paulistas sob a acusao de formao de quadrilha.

    um cenrio bastante familiar aos chamados anos de chumbo, o que levaria a pensar em um retrocesso democrtico nos dias atuais. Mas, e se o que se tem assistido no for retrocesso? Se, ao contrrio, tais fatos decorressem da prpria marcha da democracia, do seu avano; da sua demonstrao de vigor; de excesso democrtico? Eis uma questo que se tornou improvvel. Aps a terceira onda democrtica que varreu o mundo a partir dos anos 1970, a democracia tornou-se um valor inquestionvel, uma espcie de nova religio. Porm, e se a nossa poca sofresse de democracia? Se fosse preciso, ao contrrio, desdemocratizar nossas sociedades?

    Intocvel, a democracia segue impensvel. No entanto, ela possui sua razo. E para desvendar seu mistrio e compreender seus paradoxos, ser preciso questionar a racionalidade que a constitui. Mouffe pontuou um deles: seu carter conflitivo irredutvel a qualquer consenso.2 Seria preciso, entretanto, apontar outro, mais precisamente aquele que Derrida chamou de dimenso suicidria: o estranho paradoxo segundo o qual as democracias modernas se defendem e se conservam limitando-se e morrendo como democracia. Para se defender e conservar enquanto democracia, o poder democrtico

    1. No momento em que escrevo essas linhas, centenas de manifestantes desafiam, no estado americano de Missouri, o toque de recolher do governador Jay Nixon para protestar contra o assassinato de Michael Brown, jovem negro de 18 anos, morto por um policial branco com seis tiros quando, ao que parece, mantinha suas mos ao alto. Da o slogan dos protestos: hands up, dont shoot (mos ao alto, no atire).

    2. Cf. C. Mouffe. The Democratic Paradox. Nova Iorque: Verso, 2000.

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    obrigado a adotar medidas no democrticas, isto , ditatoriais e autoritrias. Com isso, a democracia se destri medida que se preserva. Segundo Derrida, essa dimenso suicidria no somente o que constitui a singularidade histrica da democracia, mas tambm sua condio de possibilidade:

    [...] pretendendo lanar-se em guerra contra o eixo do mal,

    contra os inimigos da liberdade e contra os assassinos da

    democracia, [o governo democrtico] deve inevitavelmente e

    indiscutivelmente restringir, em seu prprio pas, as liberdades

    ditas democrticas ou o exerccio do direito, aumentando os

    poderes de inquisio, policiais etc., sem que ningum, sem

    que nenhum democrata possa efetivamente se opor, somente

    lamentar tal ou tal abuso no uso a priori abusivo da fora por meio da qual uma democracia se defende contra seus inimigos,

    defende-se ela mesma dela mesma, contra seus potenciais

    inimigos. Ela deve assemelhar-se a eles, corromper-se e ameaar

    a si mesma para se proteger contra suas ameaas.3

    Para combater os inimigos das liberdades democrticas, a democracia dever se transformar no contrrio que rejeita e no oposto que recusa: nesse momento, a ditadura torna-se sua melhor (des)medida. Esse aspecto foi acertadamente descrito por Roberto Esposito como paradigma da imunizao, uma espcie de proteo negativa por meio da qual um corpo se salva, se conserva e se protege assumindo uma condio que, entretanto, o nega e o reduz: [...] a imunizao do corpo poltico funciona introduzindo no seu interior um fragmento da mesma substncia patognica da qual o quer proteger e que, assim, bloqueia e contraria o seu desenvolvimento natural.4 Ao se autoimunizar contra seus inimigos, a democracia encontra na ditadura um procedimento profiltico eficaz. Compreende-se que, depois

    3. J. Derrida. Voyous. Deux essais sur la raison. Paris: Galile, 2003, pp. 64-65.4. R. Esposito. Bios. Biopolitica e filosofia. Tr. pt. M. Freitas da Costa. Lisboa: Edies

    70, 2010, pp. 74-75.

  • 288 ditaduras: a desmesura do poder

    de tudo, seria preciso dar razo a Trasmaco, quando respondeu a Scrates que a imagem representativa da funo governamental no a do mdico e seu paciente, mas a do boieiro e seus bois.5

    Mas, afinal, por que razo a razo de Trasmaco persiste em acompanhar a prtica poltica ocidental como sua sombra? Antes de defender a consolidao das instituies democrticas, mais do que pretender corrigir a democracia e almejar a consolidao de suas instituies, seria preciso perguntar como e por que se produz esse paradoxo segundo o qual as nossas democracias engendram no seu prprio interior as formas da sua prpria aniquilao. Como e por que a democracia gera por si mesma a ditadura? Questionar, enfim, em que medida o kratos entendido como fora e poder da demo-kratia morfolgica e qualitativamente distinto do kratos da auto-kratia, isto , da ditadura.

    Para esse problema, a soluo apresentada pela teoria do Estado de direito mostra-se inadequada por algumas razes. Em primeiro lugar, trata-se de uma questo que no se coloca para a teoria do Estado de direito. O problema decisivo dessa teoria foi descrito por Hans Kelsen como sendo o de saber, a partir de um sistema de normas, se a submisso do indivduo opera-se com ou contra a sua vontade, com ou sem o seu consentimento. A diferena entre essas duas formas de submisso, imposta ou consentida, seria o que constitui, segundo Kelsen, a diferena entre democracia e autocracia.6 Em segundo lugar, para a teoria do Estado de direito, Estado e Direito so idnticos entre si. verdade que o Estado uma organizao poltica que se exprime por meio de uma ordem coercitiva. Todavia, diz Kelsen, o elemento propriamente poltico dessa ordem consiste no fato de a coero ser regulada pelo Direito. Portanto, enquanto organizao poltica o Estado

    5. Semelhante a Trasmaco, o anarquista russo Bakunin afirmou que o Estado representa o povo como Saturno representava seus filhos, medida que os devorava. Cf. M. Bakunin. Oeuvres, tome VI. Paris: P. V. Stock diteur, 1913, p. 323. Disponvel em : . Consultado em: set. 2014.

    6. H. Kelsen. Teoria pura do direito. Tr. Joo B. Machado. So Paulo: Martins Fontes, 2012, pp. 309ss.

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    no nada mais do que ordem jurdica. Assim, o Estado sem Direito se torna impensvel. Alm disso, a prpria expresso Estado de direito seria em si um pleonasmo que tem apenas a finalidade de distinguir um tipo especial de Estado que condizente com a democracia e com a segurana jurdica dos indivduos. Em terceiro lugar, e consequentemente, o exerccio do poder do Estado de direito no nem pode ser simples manifestao de fora. verdade que o poder estatal sempre se manifesta atravs de meios especficos colocados disposio do governo: delegacias e prises, polcia e exrcito, guardas e soldados, balas e fuzis. Mas todos esses meios, diz Kelsen, so objetos inanimados que somente se tornam instrumentos de poder quando utilizados de acordo com as ordens do governo e segundo as normas que os regulamentam. Logo, conclui Kelsen, o poder do Estado no uma fora ou instncia mstica que esteja escondida detrs do Estado ou do seu Direito. Ele no seno a eficcia da ordem jurdica.7

    Foi desse modo que a teoria do Estado de direito apressou-se em plantar a promessa da liberdade e da igualdade no corao da democracia. Mas o fez, como observou Nancy, considerando o fato de que a prpria palavra formada por um sufixo que reenvia violncia e a uma fora dominadora enquanto kratos. Diferente das palavras formadas pelo sufixo que remete no para uma fora dominadora, mas para um princpio fundador, tais como oligarquia, hierarquia, anarquia, palavras cujo sufixo remete para a arch como princpio e fundamento a minoria (oligos) o princpio da oligarquia, o sagrado (hieros) da hierarquia, e o princpio da anarquia no ter princpio , a democracia, ao contrrio, no remete para princpio algum porque implica fora, mais precisamente a fora do nmero.8 Mesmo supondo uma condio na qual a quantidade se transforma em qualidade, como argumenta Rousseau a propsito do sufrgio, tal transformao um efeito psicolgico que no altera a natureza do objeto, apenas afeta a percepo do sujeito: uma alterao da percepo em relao ao

    7. Ibidem, p. 321.8. J.-L. Nancy. Dmocratie finie et infinie. In: G. Agamben et al. Dmocratie, dans

    quel tat? Paris: La fabrique, 2009, p. 84.

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    uso da fora que seria precisamente a principal tarefa da perspectiva jurdica. Considerando o argumento de Carl Schmitt, sem obviamente concordar com suas concluses, as justificativas da esfera jurdica operam precisamente atravs de fora persuasiva que seria responsvel por impedir de o Estado figurar como um magnum latrocinium. Se isso ocorre, deve-se ao fato do termo poder suscitar um instante de respeito reconhecvel [...] que torna possvel fazer do direito um gnero de poder e de lhe conferir uma superioridade consciente.9

    O argumento de Schmitt j havia sido sustentado muito antes por Proudhon. Aps assistir atnito a primeira revoluo popular da histria restaurar, pelo sufrgio direto, a monarquia constitucional de Lus Bonaparte, Proudhon fez, em 1849, o seguinte questionamento em seu jornal La voix du Peuple:

    O que o governo? Qual seu princpio, seu objeto, seu direito?

    Esse , sem dvida, o primeiro questionamento que se faz ao

    poltico. Muito bem, sobre esse questionamento, aparentemente

    simples, cuja soluo parece to fcil, apenas a f pode responder.

    A filosofia to incapaz de demonstrar o governo como de

    provar Deus. A autoridade, como a divindade, no matria de

    saber; , insisto, matria de f.10

    A reflexo de Proudhon pode figurar, talvez, como precursora dos importantes estudos de Teologia Poltica surgidos na primeira metade do sculo XX especialmente com Marc Bloch, Ernst Kantorowicz e Walter Benjamin. Em todo caso, Proudhon foi seguramente o primeiro a reinscrever o problema do governo, do poder poltico, do kratos, no interior da tradio crtica kantiana acerca das condies de possibilidade. Aquilo que Kant havia feito com Deus, Proudhon fez

    9. C. Schmitt. La valeur de ltat et la signification de lindividu. Tr. fr. Sandrine Baume. Genebra: Droz, 2003, p. 79.

    10. P.-J. Proudhon. Las confesiones de un revolucionario: para servir a la historia de la revolucin de febrero de 1848. Tr. es. Diego A. de Santilln. Buenos Aires: Americalee, 1947, p. 11.

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    em relao ao poder. Assim, em vez de perguntar o que o poder, o anarquista francs questionou: Por que acreditamos no governo? Do que procede na sociedade humana essa ideia de autoridade, de poder; essa fico de uma pessoa superior chamada Estado? Como se produz essa fico? Como se desenvolve? Qual a lei da sua evoluo, qual sua economia?11 A questo assim colocada permitiria perceber que, mais do que se opor, o direito integra a economia do poder; ele um gnero de poder, um tipo de kratos. O primeiro magistrado, diz Proudhon, foi um chefe de armas.12

    Consequentemente, no seria a legalidade o que funda o poder, mas, ao contrrio, o poder que funda sua prpria legalidade. Georges Bataille defendeu a ideia segundo a qual para ser poder um poder precisa produzir a concentrao de duas foras diferenciais: a fora militar e a fora do sagrado. Somente aps se institucionalizar, concentrando potncia blica e potncia religiosa, um poder ser capaz de criar fora de polcia e foras armadas. A fora armada sem um poder [...] que a utilize no teria outro sentido ou possibilidade de aplicao que a fora de um vulco.13 Para Schmitt precisamente a concentrao da fora do sagrado no que consiste a funo do direito: Para retomar uma expresso de Santo Agostinho, o direito para o Estado: origo, informatio, beatitudo [origem, concepo, felicidade]. [...] O conceito de Estado recebe assim, em relao ao direito, uma posio estritamente anloga a que o conceito de Deus recebe [...] em relao tica.14

    Portanto, ao contrrio do que afirma a teoria do Estado de direito, o direito no substitui nem simplesmente submete a fora armada do poder, mas justape a ela a fora de outro poder: a fora do sagrado, isto , do direito. Entretanto, a dualidade de foras concentradas permanece irredutvel e o termo utilizado para nomear o tipo de poder que resultou do monoplio e da centralizao dessa

    11. Ibidem, p. 15.12. P.-J. Proudhon. La guerre et la paix. Tome premier. Antony: Tops/Trinquier, 1998, p.

    119.13. G. Bataille. Le pouvoir. In: D. Hollier. Le Collge de sociologie (1937-1939). Paris:

    Gallimard, 1995, p. 180.14. Schmitt, op. cit., 2003, pp. 101-102.

  • 292 ditaduras: a desmesura do poder

    dupla concentrao de fora foi Soberania: um tipo de poder que, como observou Hobbes, no simples fora punitiva, mas que utiliza a fora punitiva com a certeza de que ningum sair em socorro do punido.15 A Soberania, o maior de todos os poderes, tem sido definida, de Hobbes a Rousseau, como um poder de vida e de morte cuja aplicabilidade atravessou indiferentemente todos os regimes polticos do ocidente, das monarquias absolutistas at s atuais democracias liberais. a esse poder que, na modernidade, o sufixo da democracia remete.

    Hobbes tinha razo ao afirmar que o poder sempre o mesmo, sob todas as formas de governo; mas esqueceu de acrescentar: quando inscrito sob o signo da Soberania, uma inveno da nossa modernidade poltica. Na Antiguidade a coisa era diversa. Proudhon chamou ateno para o fato de que os cidados de Atenas nomeavam dez ou doze generais em tempos de guerra, cada um devendo revezar-se no exerccio do comando com durao mxima de um dia. Era um hbito, diz Proudhon, que pareceria hoje extremamente estranho, mas que a democracia ateniense no saberia suportar a ausncia [...]; assim, nos assuntos para os quais ns enviamos um embaixador, os antigos expediam uma companhia.16 Esse hbito de distribuio no estava circunscrito apenas prtica poltica, estendia-se tambm ao domnio do logos, isto , do pensamento. Como se sabe, os gregos definiam a democracia no somente como igualdade segundo o nmero, mas tambm segundo o mrito. De modo que, ao articular a isonomia com a isegoria, os gregos fizeram com que a igualdade comportasse diversas espcies desiguais de igualdade.17 Weber, por sua vez, descreveu o florescimento da instituio do podestade entre as cidades medievais. O podesta era, na grande maioria dos casos, um funcionrio eleito, chamado de outra comuna, que exercia a curto prazo o supremo

    15. T. Hobbes. Do cidado. Tr. Renato J. Ribeiro. So Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 104.

    16. P.-J. Proudhon. Du principe fdratif et de la ncessit de reconstituer le parti de la rvolution. Paris: E. Dentu, 1863, pp. 35-36. Disponvel em: . Consultado em: set. 2014.

    17. Derrida, op. cit., 2003, p. 75.

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    poder judicial.18 Todavia, para autorizar seu encargo, a comuna de origem exigia o envio de refns para garantir seu bom tratamento durante sua estada na comuna de destino; essa, por sua vez, substitua com frequncia a pessoa do podesta no apenas por princpio, mas deliberadamente.

    Ou seja, tanto nas democracias urbanas medievais quanto na democracia ateniense estava ausente esse tipo de poder Soberano definido por Bodin como absoluto e perptuo. E foi no dia em que a Modernidade inscreveu toda e qualquer prtica poltica sob o signo da Soberania que nasceu aquele paradoxo democrtico que tornou possvel, seno inevitvel, a ditadura como (des)medida democrtica autoimunitria. A passagem abaixo de Derrida esclarecedora:

    [...] a soberania sempre o momento de uma ditadura, mesmo

    se no se vive em regime de ditadura; a ditadura sempre a

    essncia da soberania na medida em que est ligada ao poder

    de dizer sob a forma do ditado, da prescrio, da ordem ou do

    diktat. Da dictatura romana na qual o dictator o magistrado supremo e extraordinrio [...] ditadura sob as formas modernas

    do Fhrer ou do Duce ou do paizinho dos pobres ou de no importa qual outro Papa Doc, mas tambm na figura da ditadura do proletariado, na ditadura em geral como poder que se exerce

    incondicionalmente sob a forma do diktat, da palavra final ou do veredito performativo que d ordens e que no presta contas

    a no ser a si mesmo (ipse), [...] essa ditadura, essa instncia ditatorial se exerce em toda parte, por toda parte onde existe

    soberania.19

    18. M. Weber. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva, v. 2. Tr. Regis Barbosa e Karen E. Barbosa. Braslia: UNB, 1999, p. 451.

    19. J. Derrida. Sminaire. La bte et le souverain, vol. I (2001-2002). Paris: Galile, 2008, pp. 102-103.

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    Dessa forma, para compreender o lugar da ditadura na nossa histria poltica, preciso, sobretudo, cessar de percorrer esse caminho que Daniel Aaro Reis chamou com razo de tranquilo, e que conduz a considerar quaisquer formas autoritrias como uma espcie de fora estranha e externa.20 Mas, sobretudo, se quisermos especialmente evitar seus eternos efeitos de repetio, preciso reconhecer, como sublinhou Balibar, que todas as formas de ditaduras at hoje conhecidas no foram nem so exteriores histria poltica das sociedades ocidentais. Ao contrrio, seria mais exato dizer que a ditadura que fornece a medida (desmesurada) do grau do antagonismo dos interesses e das foras presentes. Em suma, seria preciso reconhecer, finalmente, que a democracia moderna

    Estado de direito, mas tambm de polcia; Estado de integrao dos indivduos e dos grupos na comunidade de cidados,

    mas tambm Estado de excluso dos rebeldes, dos anormais,

    dos desviados e dos estrangeiros; Estado social, mas tambm

    Estado de classes organicamente associado ao mercado capitalista

    com suas implacveis leis de populao; Estado democrtico e

    civilizado, mas tambm Estado de potncia, de conquista colonial

    e imperial. De modo latente, e s vezes aberto, o extremismo no

    est somente s margens, est tambm no centro.21

    Em suma, no ao direito que preciso se reportar, mas histria, caso se queira reconhecer as formas ditatoriais que tm acompanhado a democracia moderna. Seria preciso substituir a explicao jurdica por outra que possibilite perceber as formas e as tcnicas efetivas por meio das quais o poder democrtico exerceu-se ao longo da histria, e no interior das quais foram gestadas muitas das instituies

    20. D. A. Reis. Ditadura e democracia no Brasil. Do golpe de 1964 Constituio de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 8.

    21. E. Balibar. Le Hobbes de Schmitt, le Schmitt de Hobbes (prface). In: C. Schmitt. Le Lviathan dans la doctrine de ltat de Thomas Hobbes. Sens et chec dun symbole politique. Tr. fr. Denis Trierweiler. Paris: ditions du Seuil, 2002, pp. 11-12.

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    democrticas que ainda so as nossas. Portanto, em vez de perguntar ao direito sobre o funcionamento da democracia, perceb-lo naquilo que, escapando-lhe, constrange-a a ser o oposto do que . Nessa perspectiva, o propsito desse estudo ser o de descrever, a partir da represso ao anarquismo no final do sculo XIX, a procedncia e o uso de tcnicas governamentais que foram em seguida transmitidas s ditaduras, e tambm legadas s democracias de nossos dias.

    Represso ao anarquismo e nascimento da polcia poltica

    Na histria poltica das sociedades ocidentais a represso ao anarquismo ocupa sem dvida um lugar de destaque, seja pelas suas propores, seja pelas tcnicas e instituies cuja origem se encontra a ela vinculadas. Um acontecimento importante que marcaria profundamente as relaes entre os Estados europeus foi a Conferncia Internacional pela Defesa Social contra os Anarquistas, ocorrida em novembro de 1898. Aps a morte da Imperatriz Elisabeth da ustria, assassinada em Genebra em 1898 pelo anarquista Luigi Lucheni, e do presidente americano McKinley, assassinado na cidade de Buffalo em 1901 pelo anarquista polaco Leon Czolgosz, os jornais alemes noticiaram alarmados que a sociedade dana sobre um vulco e um nmero verdadeiramente insignificante de fanticos sem escrpulos aterroriza toda a raa humana... O perigo para todos os pases enorme e urgente. Alguns anos mais tarde, o presidente Theodore Roosevelt, sucessor de McKinley, declarou que, comparada supresso da anarquia, toda outra questo mostra-se insignificante.22

    Foi nesse contexto que o primeiro ministro italiano Luigi Pelloux comunicou ao ministro da justia, em setembro de 1898, informaes sobre um vasto compl para atentar contra a vida de todos os chefes de Estado, em particular do Rei da Itlia, recomendando a necessidade de combater mais energicamente as associaes contrrias ordem do

    22. Citado em: R. B. Jensen. Daggers, rifles and dynamite: Anarchist Terrorism in nineteenth century Europe. Terrorism and Political Violence, Londres, vol. 16, n. 1, primavera, 2004, p. 117.

  • 296 ditaduras: a desmesura do poder

    Estado.23 Nesse intuito, o governo italiano, pela iniciativa do ministro do exterior Napoleone Canevaro, convidou outros pases europeus a participarem de uma conferncia antianarquista promovida para assegurar um sistema repressivo em escala internacional. At a metade do ms de outubro, a maior parte dos pases da Europa havia confirmado presena. E a abertura da Conferncia Internacional pela defesa Social contra os Anarquistas, mais conhecida como Conferncia Antianarquista, ocorre no dia 24 de novembro de 1898, reunindo 54 delegaes de 21 naes europeias: Alemanha, Imprio Austro-Hngaro, Blgica, Bulgria, Dinamarca, Espanha, Frana, Inglaterra, Grcia, Itlia, Luxemburgo, Mnaco, Montenegro, Pases Baixos, Portugal, Romnia, Rssia, Srvia, Sucia, Noruega, Sua e Turquia. Foram tambm convidados os chefes da polcia nacional da Rssia, Frana, Blgica, e os chefes da polcia municipal de Berlim, Viena e Estocolmo.24

    A adeso da maioria das naes europeias conferncia denota a importncia desse acontecimento que coroou vinte e cinco anos de campanhas antianarquistas conduzidas por todos os regimes polticos da Europa. No perodo anterior Grande Guerra, os governos europeus, inicialmente num plano nacional, mas depois internacionalmente, empenharam-se para forjar armas que pudessem controlar e suprimir o que na poca foi percebido como o mais feroz e intratvel inimigo social, o terrorismo anarquista.25 Entretanto, os esforos repressivos orquestrados pelos governos da Europa produziam, frequentemente, um excesso de represso cujo efeito resultava em descontentamentos exacerbados que provocavam novas ondas de violncia. O que exigia um esforo em estabelecer contra o anarquismo medidas que no fossem meramente repressivas. Foram trs as medidas que a

    23. A. Mantovani. Errico Malatesta e la crisi di fine secolo. Dal processo di Ancona al regicidio. Tese (Laurea) - Universit degli Studi di Milano, Facolt di Lettere e Filosofia, Milo, 1988, p. 116.

    24. Ibidem, p. 123.25. R. B. Jensen. The International Anti-Anarchist Conference of 1898 and the Origins

    of Interpol. Journal of Contemporary History, Londres, vol. 16, n. 2, abr., 1981, p. 323.

  • 297nildo avelino | telma dias fernandes | ana montoia (orgs.)

    conferncia adotou com unanimidade: 1) caberia a cada nao ter sob controle seus prprios anarquistas; 2) o estabelecimento de um comit central para esse fim; e 3) a promoo de trocas de informaes entre as vrias agncias centrais.

    Alm disso, durante a realizao da conferncia, reuniu-se diversas vezes um comit secreto dos chefes de polcia. Conforme descreveu Jensen:

    Sir Howard Vicent, um dos representantes ingleses na conferncia

    e ex-diretor de investigaes criminais da Scotland Yard, admitiu

    que um dos maiores resultados obtidos desses encontros foi o

    acordo por parte das foras de polcia de diversos Estados da

    Europa central para a troca mensal de listas das expulses,

    contendo nomes e a razo da expulso.26

    Com relao extradio, a conferncia acordou a proposta dos alemes de no considerar os crimes anarquistas como polticos para finalidade de extradio; mas estariam sujeitos extradio os variados atos violentos tipicamente anarquistas, como a fabricao de bombas etc. Os conferencistas fizeram uso da famosa clusula belga do attentat, criada em 1856, aps o atentado sem sucesso contra Napoleo III. A clusula dispunha que no reputado crime poltico, nem fato conexo a semelhante crime, o atentado contra a pessoa do chefe de governo estrangeiro ou contra um membro de sua famlia, quando este atentado constitua fato de morte, assassinato ou envenenamento. Aps a conferncia de Roma, o contedo da clusula ganha validade universal.27

    A conferncia estabeleceu como sistema de identificao eficaz o chamado portrait parl (retrato falado), para ser utilizado de maneira

    26. Ibidem, pp. 331-332.27. No Brasil, Getlio Vargas reproduziu-o no art. 2, 2 do Decreto-lei n 394 de 28

    de abril de 1938. Hoje, ele consta ipsis verbis no artigo 77, 3 do atual Estatuto do Estrangeiro (Lei n 6.815 de 19 de agosto de 1980). A clusula do attentat foi um dos pontos polmicos da concesso de asilo ao italiano Cesare Battisti em 2007.

  • 298 ditaduras: a desmesura do poder

    uniforme em todos os pases. Foi o refinamento do velho mtodo de identificao antropomtrico, tambm conhecido como bertillonage, criado pelo oficial da polcia francesa Alphonse Bertillon, que consistia na classificao das medidas de vrias partes da cabea e do corpo, cor dos cabelos, dos olhos, da pele, presena de cicatrizes e tatuagens etc. J o retrato falado foi um sistema especialmente usado na apreenso de criminosos, funcionando com uma margem que vai de muitas at uma nica pea vital de informao para a identificao positiva de suspeitos, e que poderiam ser transmitidas por telefone ou telgrafo.28

    Entretanto, a herana mais significativa da conferncia antianarquista de Roma foi, como sugere Jensen, a organizao de uma instituio singular: a International Criminal Police Organization, Interpol. Ao promover o uso de modernas tcnicas de polcia, o congresso antianarquista encorajou a cooperao policial internacional.29 Passados apenas trs anos da conferncia de Roma, aps o assassinato do presidente americano McKinley, aumentam na Europa os esforos diplomticos para incrementar a cooperao policial internacional. A Rssia toma a iniciativa, solicitando com insistncia a retomada do programa da conferncia de Roma e despacha, juntamente com a Alemanha, um memorando para os governos da Europa e dos Estados Unidos. Em 14 de maro de 1904, dez pases assinam um protocolo secreto em So Petersburgo que, retomando sumariamente a pauta de 1898, procurou especificar procedimentos de expulso, convocar a criao de escritrios centrais antianarquistas em cada pas e, no geral, regularizar a comunicao interpolicial.30 Os pases que assinaram o Protocolo de So Petersburgo foram Alemanha, Imprio Austro-Hngaro, Dinamarca, Sucia, Noruega, Rssia, Romnia, Srvia, Bulgria e Turquia. Assim,

    28. Ibidem, pp. 332-333.29. Ibidem, p. 334.30. Ibidem, p. 337.

  • 299nildo avelino | telma dias fernandes | ana montoia (orgs.)

    [...] a Conferncia de Roma e o acordo de So Petersburgo so

    precedentes significativos para qualquer posterior organizao

    de polcia internacional. Pode at mesmo ser afirmado que o

    conclave de 1898 foi o indcio do primeiro esforo na recente

    histria da Europa para promover, oficialmente, uma ampla

    comunicao policial internacional e troca de informaes. As

    medidas estipuladas pelos protocolos de Roma e So Petersburgo

    foram os precursores de muito do que hoje a organizao da

    polcia em rede mundial, Interpol.31

    Entre represso e preveno: a Antropologia Criminal

    A conferncia antianarquista de Roma produziu efeitos amplos e duradouros de poder que, entretanto, foram frequentemente tidos como nulos em razo do quase absoluto desacordo entre seus participantes, decorrente das enormes diferenas entre os pases em matria de legislao criminal. Para Ven,32 o verdadeiro problema da conferncia foi constitudo por um pacto de extradio para suspeitos de anarquismo. Assim, excetuando a constituio de um aparato policial e repressivo no plano internacional, a conferncia encerra-se sem tomar outro acordo substancialmente poltico. Da, segundo Ven, seu insucesso. Alm disso, o xito em mbito exclusivamente repressivo e o fracasso poltico da conferncia foram atribudos incapacidade de estabelecer uma definio jurdico-legal do ato anarquista. o que se verifica na discusso em torno do programa da conferncia organizado nos seguintes temas:

    1 Estabelecer os dados que de fato caracterizem o ato anrquico,

    seja no que concerne ao indivduo, seja no que concerne sua

    obra; 2 Sugerir, em matria de legislao e de polcia, os meios

    mais adequados para reprimir a obra e a propaganda anrquica,

    sempre respeitando, bem entendido, a autonomia legislativa e

    31. Ibidem, p. 338.32. G. F. Ven. Il braccio della legge contro gli anarchici. Storia Illustrata, Milo,

    n. 191, 1973, p. 152.

  • 300 ditaduras: a desmesura do poder

    administrativa de cada Estado; 3 Consagrar o princpio que

    todo ato anrquico, tendo os caracteres jurdicos de um delito,

    deve, como tal, e quaisquer que sejam os motivos e a forma, ser

    enquadrado nos efeitos teis dos tratados de extradio; 4

    Consagrar o duplo princpio de que cada Estado tem o direito e o

    dever de expulsar os anarquistas estrangeiros, encaminhando-os,

    observando as regras uniformes, vigilncia e eventualmente

    justia do Estado a que pertencem; 5 Estipular por engajamento

    mtuo a defesa de toda circulao de impressos anarquistas,

    bem como de toda publicidade apta, com ou sem inteno, a

    favorecer a propaganda anrquica.33

    Ao colocar em primeiro lugar o problema de estabelecer uma definio jurdico-legal do ato anarquista, o programa ressalta aquilo que constituiu uma tarefa urgente. E tratava-se de um problema fundamental, na medida em que nenhum parlamento ou corte da Europa havia definido claramente a questo. Assim, o Advogado Geral da corte de Mnaco, Hector de Rolland, props uma definio do ato anarquista descrevendo-o como a ao que tem por objetivo a destruio atravs de meios violentos de toda organizao social. Anarquista, portanto, era simplesmente quem cometia tal ao.34 Mas a questo, aparentemente simples, revelou-se imediatamente polmica e delicada. A delegao inglesa recusa resolutamente a definio, ao mesmo tempo em que declara intil qualquer tentativa de definio. Ns no perseguimos as opinies. Para ns, a nica questo esta: existe delito, sim ou no? Se o ato delituoso, tal como o assassinato ou seu incitamento, ele no se torna ainda mais pelo fato de ser anarquista.35 No obstante, dependia da definio da anarquia como ato delituoso a possibilidade jurdica de cada pas europeu subscrever a extradio dos exilados acusados de anarquismo.

    33. A. Mantovani, op. cit., 1988, pp. 124-125.34. Apud R. B. Jensen, op. cit., 1981, p. 327.35. Apud P. C. Masini. Storia degli anarchici italiani nellepoca degli attentati. Milo:

    Rizzoli Editore, 1981, pp. 123-124.

  • 301nildo avelino | telma dias fernandes | ana montoia (orgs.)

    Recusando a definio proposta pelo Advogado Geral de Mnaco, a delegao inglesa explicitou a contradio que ela comportava. A concepo que descrevia o anarquismo consistindo em atos de violncia contra qualquer organizao social poderia ser largamente aplicada tambm ao socialismo e a todo ato violento de revoluo, consistisse ele na substituio violenta de um parlamento por um reinado ou de um reinado por um parlamento. Ao saudar a proposta da conferncia, o jornal ingls The Economist retomava precisamente este aspecto. Afirmando que a defesa social contra os anarquistas dever absoluto dos governos, ponderava, entretanto, que a experincia ensina que essa defesa pode muito facilmente transformar-se em perseguio dos herticos conforme o credo das diversas escolas conservadoras e na condenao de qualquer ideia no favorvel ordem social atual.36 Porter tambm mostrou como a ideia de uma polcia poltica repugnava o liberalismo ingls da primeira metade do sculo XIX, que percebia na produo de leis e de agncias destinadas a reprimir a subverso um efeito verdadeiramente contraproducente.

    Provoca desgosto nas pessoas e, consequentemente, rebelio. Elas

    no seriam incomodadas no teriam nada com que se aborrecer

    se fossem (como os vitorianos costumavam colocar) livres.

    Essa era a resposta para o problema da subverso, que no era

    um problema genuno na viso dos meios vitorianos. Sistema e

    sociedade poltica eram mais bem defendidos paradoxalmente

    no havendo defesa alguma.37

    A melhor maneira de desacreditar movimentos de liberao, diziam os vitorianos, persuadir as pessoas de que elas so verdadeiramente livres, e a ausncia de uma diviso britnica de polcia poltica era um meio de mostr-lo e tambm um meio efetivamente legtimo e eficiente de controle social. O jornal Daily News, em 1858,

    36. Apud G. F. Ven, op. cit., 1973, p. 153.37. B. Porter. The Origins of the Vigilant State. The London Metropolitan Police Special

    Branch before the First World War. Londres: The Boydell Press, 1987, p. 3.

  • 302 ditaduras: a desmesura do poder

    chamava a polcia poltica de sistema repugnante para a verdadeira sensibilidade, sentimento e princpios de vida dos ingleses.38

    Existe no impasse da definio jurdico-legal do anarquismo uma dificuldade resultante da prpria matriz conceitual do liberalismo. Como afirmou Foucault, o exemplo aterrorizante dos suplcios ou a excluso pelo banimento no podiam mais bastar em uma sociedade na qual o exerccio do poder implicava uma tecnologia racional dos indivduos.39 Mas, de outro lado, a prpria morfologia do ato anarquista colocava a racionalidade jurdica da poca numa espcie de embarao, na medida em que no se enquadrava no modelo de infrao poltica existente: o compl para derrubar o governo e tomar o poder. As agitaes dos anarquistas no visavam tomar o poder nem substituir um governo a outro: o que eram, portanto, esses atentados violentos desinteressados a tal ponto de no se interessar pela tomada do poder?40

    Meu argumento que o impasse jurdico e o suposto insucesso poltico da Conferncia de Roma so reveladores de um fato importante na histria do Direito: o processo de psiquiatrizao da anarquia, iniciado na segunda metade do sculo XIX, e a famosa definio do criminoso nato.

    Foucault mostrou como, na nova legislao criminalista a partir do sculo XVIII, o crime comea a possuir uma natureza e o criminoso torna-se um ser natural caracterizado por sua criminalidade; um ser cuja conduta criminosa passa a ter uma inteligibilidade natural.41 Desse modo, a necessidade da sua punio passa a exigir um saber acerca da criminalidade que fosse ao mesmo tempo naturalista, e esse papel foi especialmente desempenhado pela antropologia criminal.

    38. Ibidem, p. 4.39. M. Foucault. A evoluo da noo de indivduo perigoso na Psiquiatria Legal

    do sculo XIX. In: M. B. da Motta (org.). Ditos e escritos vol. V: tica, sexualidade, poltica. Tr. br. Elisa Monteiro e Ins A. D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense, 2004, pp. 11-12.

    40. M. Foucault. Dits et crits, vol. II: 1976-1988. Paris: Gallimard, 2001, pp. 362-363.41. M. Foucault. Os anormais. Curso no Collge de France (1974-1975). Tr. br. Eduardo

    Brando. So Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 111 ss.

  • 303nildo avelino | telma dias fernandes | ana montoia (orgs.)

    Foi o que procurou fazer o clebre livro de Cesare Lombroso dedicado aos anarquistas ao afirmar neles a existncia de um tipo criminoso completo.42 Mas tambm de toda uma extensa produo mdico-legal que, observando o impasse judicirio na definio do ato anarquista, introduziu a personagem do anormal e estabeleceu atravs dela um princpio de classificao na lista geral dos crimes polticos.

    Para conferir a inteligibilidade necessria ao gesto desinteressado do atentado anarquista, a antropologia criminal substituiu a noo jurdica de responsabilidade pela noo mdico-legal de periculosidade, enfatizando que os rus que o direito reconhece como irresponsveis porque doentes, loucos, anormais, vtimas de impulsos irresistveis, so realmente os mais perigosos e demonstrando que aquilo que chamamos de pena no deve ser uma punio, mas um mecanismo de defesa da sociedade.43 Com a noo de periculosidade, a responsabilidade recai no sobre os atos cometidos, mas sobre o estado perigoso dos indivduos: aqueles que certa determinao congnita aumenta os riscos e as probabilidades de comportamento criminoso. Trata-se, portanto, no de reprimir atos, mas de normalizar sujeitos.

    A antropologia criminal forneceu para o Direito uma soluo para o problema repressivo. Deslocou o problema da definio ampla e ambgua do ato anarquista tal como apresentada na conferncia de Roma, a ao que tem por objetivo a destruio atravs de meios violentos de toda organizao social , para o procedimento preciso e cuidadoso de decifrao no sujeito da sua natureza perigosa. A nfase no ser mais sobre aquilo que se faz, mas sobre aquilo que se . Foi nessa direo que um artigo publicado em 1890 nos Archives de lAnthropologie Criminelle et des Sciences Pnales, escrito pelo psiclogo e criminalista francs Emmanuel Rgis, distinguiu os verdadeiros regicidas dos falsos regicidas.

    42. C. Lombroso. Gli anarchici psicopatologia criminale dun ideale politico. Milo: Claudio Gallone Editore, 1998, p. 23.

    43. M. Foucault, op. cit., 2004, p. 18.

  • 304 ditaduras: a desmesura do poder

    Os verdadeiros regicidas so aqueles cujos atentados contra

    uma alta personalidade foi a consequncia direta e forada

    de um estado de esprito particular. Ao contrrio, os falsos

    regicidas so aqueles cujos atentados, mais aparentes que reais,

    foram puramente e simplesmente o fato do acaso, sem conexo

    imediata com um fundo de ideias. [...] Os primeiros querem

    destruir uma personagem importante e tudo neles converge para

    essa ideia; os outros dirigem-se a homens em relao aos quais

    na realidade no desejam nenhum mal, perseguindo unicamente

    reivindicaes pessoais.44

    Todavia, nessa objetivao do sujeito regicida, foi necessrio fazer ainda uma distino importante na medida em que, entre os verdadeiros regicidas, existem aqueles que so absolutamente loucos e agem como loucos. So delirantes vulgares [...]. E, exceto o fato de seu atentado torn-los subitamente clebres, no oferecem, na condio de doentes, qualquer interesse especial. Coisa muito diferente ocorre com esta outra categoria de regicida que forma uma classe verdadeiramente parte e merece um estudo particular. Os indivduos dos quais ela se compem so os regicidas puros, os regicidas-natos ou de temperamento. Portanto, a natureza desse regicida puro, nato, dessa categoria especial e merecedora de estudos particulares, que preciso determinar. Segundo Rgis, a primeira coisa que chama ateno nos regicidas que eles no so nem absolutamente sos de esprito, nem absolutamente alienados. [...] Em outros tempos seriam considerados como loucos lcidos ou razoveis, hoje so considerados desajustados [dsharmoniques] ou degenerados. Alm disso, possuem tendncias impulsivas de carter obsessivo e, acima de tudo, uma ausncia de equilbrio com aparncias intelectuais mais ou menos brilhantes, mas na realidade so anormais, incapazes de resistir s solicitaes que os convocam.45

    44. E. Rgis. Les rgicides dans lhistoire et dans le prsent. tude mdico-psychologique. In: A. Bournet et al. (org.). Archives de lAnthropologie Criminelle et des Sciences Pnales, tome cinquime. Paris: G. Masson, 1890, pp. 6 e 9.

    45. Ibidem, p. 10ss.

  • 305nildo avelino | telma dias fernandes | ana montoia (orgs.)

    Ao contrrio do sujeito louco, cuja loucura evidente aos olhos de todos e oferecida em espetculo no hospital, o verdadeiro regicida oculta-a sob as aparncias do equilbrio e da normalidade; ele esconde nas dobras de seu ser uma natureza degenerada que preciso decifrar: a verdade da loucura, ao dissimular-se no fundo do regicida puro, torna-o potencialmente perigoso, introduzindo a necessidade imperiosa de faz-la emergir, torn-la transparente, conhec-la. Por essa razo, fundamental demonstrar que a maioria dos verdadeiros regicidas pertenam classe dos degenerados. O que no significa que sejam fracos de esprito, mas desajustados ou desequilibrados. Em outras palavras, no so exatamente loucos,

    [...] so semiloucos em quem razo e loucura constituem um

    amlgama mais ou menos complexo. So desequilibrados, inteligentes na maior parte, mas de vontade fraca e de uma

    instabilidade mals; levam uma existncia flutuante e incoerente

    e executam mil tarefas diversas sem jamais se fixarem, at o dia

    em que seu temperamento mstico os fazem esposar com ardor

    a querela poltica ou religiosa da ocasio. Ento, eles se exaltam

    e chegam por uma iniciao mais ou menos longa a transformar

    ideias de partido em verdadeiros delrios. [...] Na sua forma

    habitual, esse delrio se traduz pela crena em uma misso a cumprir, devendo ser coroada pelo martrio.46

    A distino entre o regicida nato e o delirante vulgar torna-se decifrvel quando se procura reconstituir o encadeamento dos impulsos implicados nos atos de atentado. Segundo Rgis, o atentado entre os regicidas no resulta de impulsos sofridos e inconscientes tal como ocorre com certas formas de loucura. Ao contrrio, trata-se de um ato lgico, concebido com lucidez, longamente premeditado e preparado. Mas, no obstante, no fundo dessa lucidez de esprito e dessas aparncias de razo, encontram-se os traos de indivduos

    46. Ibidem, p. 18.

  • 306 ditaduras: a desmesura do poder

    doentes, desequilibrados, de vontade fraca, escravos de sua obsesso, penetrados por uma fora cega e fatal. Isso estabelece numerosos pontos de analogia entre regicidas e criminosos. Alm disso, diz Rgis, preciso lembrar

    [...] que o meio ambiente intervm para dar uma colorao

    especial s ideias mes do regicida conforme ao esprito e

    s tendncias da poca. Por isso sob os reis os regicidas eram

    sobretudo msticos religiosos, sob a revoluo e o imprio

    eram msticos patriotas agindo pela repblica e liberdade: por

    isso, enfim, no presente eles so sobretudo msticos polticos

    sonhando com socialismo e com anarquia. No h dvida que

    um certo nmero de anarquistas exaltados que passam hoje pelos tribunais fazem parte da espcie de regicidas. Em outros

    tempos eles foram religiosos, hoje eles so anarquistas, eis toda a diferena.47

    O Direito e a velha noo jurdica de responsabilidade tornaram-se impotentes para decifrar e revelar essa verdade escondida no fundo da natureza dos indivduos. O Direito positivo, com sua equao crime-punio, aparecia incapaz, sobretudo, de objetivar esse sujeito cujo crime contra a soberania estava envolto num estranho desinteresse pelo poder. a partir da antropologia criminal que se tem duas linhas de objetivao: a do crime e a do criminoso. Ao designar o criminoso como celerado, monstro, louco, anormal, desenha-se imediatamente um novo tratamento que lhe ser correlato. Ao mostrar os regicidas como desajustados ou degenerados hereditrios, de temperamento mstico que, penetrados por um delrio poltico ou religioso complicado por alucinaes, acreditando-se chamados ao duplo papel de justiceiros e de mrtires; ao objetiv-los como anormais, geralmente matoides ou semiloucos tornados criminosos pelo nico fato de serem doentes, ento, a partir disso, a concluso da descrio psiquitrica evidente, diz Rgis:

    47. Ibidem, p. 21ss.

  • 307nildo avelino | telma dias fernandes | ana montoia (orgs.)

    Quando o regicida manifestamente delirante e alucinado

    [...] no permitido hesitar e o internamento em um asilo de alienados a medida que se impe. De qualquer modo, isso

    que mais os angustia; um tratamento semelhante quebra seu

    orgulho pois ele considera vergonhoso ser tratado como louco:

    logo ele que se considera heri e mrtir.48

    A incapacidade do aparato jurdico-policial em definir o ato anarquista aparece de modo explcito tambm nas formulaes de uma personagem do cenrio poltico brasileiro, Rui Barbosa. Impressionado com o assassinato do rei da Itlia, Umberto Primo, pelo anarquista Gaetano Bresci,49 Barbosa escreve artigos contra o anarquismo a partir de agosto de 1900. Discorrendo sobre o perigo anarquista, afirma que entre os criminalistas o anarquismo ainda no encontrou amigos, como tem encontrado nos homens de letras, entre os sbios, entre os cultores dos estudos positivos. E Rui Barbosa diz que no so os juristas, tampouco

    [...] os penalistas clssicos, nem a escola jurdica, na Itlia e na

    Frana, mas a nova escola, a escola da antropologia criminal,

    a nica que se pronuncia pela irresponsabilidade das faanhas

    do anarquismo. No so juristas Lombroso, Laschi, Ferrero, o

    Dr. Rgis, todos esses escritores, que, nos ltimos tempos, tm

    consagrado epidemia do anarquismo, sob a sua forma de

    sangue, estudos especiais.50

    Impotncia do direito para definir o crime de anarquismo, mas consagrao da antropologia criminal como saber para determinao da punio pela definio da natureza monstruosa e anormal do crime.

    48. Ibidem, p. 32.49. Na noite de 29 de julho de 1900, o Rei Umberto Primo foi morto por um disparo no

    corao aps uma cerimnia na Villa Reale di Monza; o episdio ficou conhecido como a tragdia de Monza.

    50. R. Barbosa. O divrcio e o anarchismo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1933, pp. 56-57.

  • 308 ditaduras: a desmesura do poder

    Para Rui Barbosa, na medida em que o anarquismo se configura como verdadeira ditese social, a dificuldade de combat-lo est na correta distribuio de sua represso, num regime que seja ao mesmo tempo severo e humano. No artigo intitulado Reprimir, mas prevenir, o autor identifica no anarquismo uma impulso funesta e monstruosa, uma patologia do esprito humano. Assim, como ocorre com toda patologia do esprito, e em respeito humanidade do enfermo, o que se aconselha o tratamento dos hospitais. O tratamento do hospital, diz Rui Barbosa, concede a essa sociedade o irrenuncivel exame da psicologia do criminoso.51

    Defesa Social: uma nova racionalidade democrtica

    No processo de psiquiatrizao da anarquia e das desordens sociais, a partir do sculo XIX percebe-se um pano de fundo constitudo pelo impasse e pela dificuldade efetiva do direito em estabelecer uma represso que fosse ao mesmo tempo severa e humana, em outras palavras, que levasse em conta no apenas a humanidade do criminoso, mas que evitasse fazer sociedade o mal irreparvel de asselvaj-la, retrocedendo moral da vingana.52 Nesse sentido, em vez de promover simplesmente a represso dos atos, tratou-se de estabelecer uma teraputica dos espritos. Torna-se necessrio decifrar na alma o mal que se oculta sob as formas do bem e revelar no fundo do sujeito a natureza do seu ser. Nesse momento, desenha-se a curiosa personagem do monstro e do anormal. Por meio dela, a antropologia criminal no apenas toma as manifestaes anarquistas como criminosas, mas tambm insere a inteligibilidade de suas aes no interior da velha alegoria do homem da floresta:

    51. Ibidem, pp. 67 ss.52. Idem.

  • 309nildo avelino | telma dias fernandes | ana montoia (orgs.)

    a luta do homem selvagem pela vida, do homem primitivo, sem

    respeito aos direitos alheios, eis o princpio que invocam todos

    os criminosos, o princpio selvagem e brutal da fora absoluta,

    da fora triunfante, da negao do direito e da liberdade,

    em virtude do qual, cada vez mais e de modo mais ou menos

    consciente, agem todos os ladres, todos os larpios, todos

    esses que lesam seus semelhantes nas suas pessoas e bens [...].

    o princpio dos povos brbaros e aquele de todos os bandidos,

    bandidos coroados ou simples indivduos: a fora prima sobre

    o direito. Princpio pelo qual, na cegueira do instinto, o animal

    obedece, impelido pela fome, a devorar seres mais fracos que ele,

    a negao da justia, da sociedade humana, do direito.53

    Nessa trama, o problema repressivo recentrado. Os juristas tentaram, sem sucesso, definir o crime de anarquismo utilizando a velha noo jurdica de responsabilidade que estabelecia a equao crime-punio; a antropologia criminal, com xito absoluto, inseriu o anarquista nesse grande processo de normalizao das desordens sociais pelo projeto de defesa social delineado no final do sculo XIX, ao estabelecer no mais a equao dos atos, mas a objetivao dos sujeitos e a decifrao da sua natureza. Adolphe Prins, na primeira metade do sculo XX, insistiu em que, se verdade que a concepo da defesa social, completamente diferente da concepo clssica da pena e muito mais ampla que essa ltima, pode ser concebida independentemente do estado de responsabilidade, no entanto, no possvel jamais conceb-la independentemente do estado psquico do indivduo.54 Desse modo, se a doutrina da responsabilidade apoia-se na hiptese de um homem normal dotado de uma vontade inteligente e livre, a hiptese da defesa social a do homem anormal, do indivduo que

    53. A. Brard. Les hommes et les thories de lAnarchie. In: A. Bournet et al. (org.). Archives de lAnthropologie Criminelle et des Sciences Pnales, tome septime. Paris: G. Masson, 1892, pp. 614-615.

    54. A. Prins. La dfense sociale et les transformations du droit pnal. Bruxelas: Misch et Thron, 1910, p. 15.

  • 310 ditaduras: a desmesura do poder

    nunca est conforme, desde o irregular, o excntrico, o indisciplinado, o bomio, o vagabundo em busca de aventuras, at o insuficiente mental e moral, at o manaco, at o alienado ou o idiota profundo.55

    Essa extenso dos comportamentos desviantes apenas o reverso de um fenmeno estrutural. Um dos aspectos da vida nas democracias modernas, dizem os novos juristas, foi o aumento do nmero de acidentes pelo desenvolvimento do maquinismo e da atividade industrial e a consequente extenso da legalidade e do direito para milhares de criaturas que anteriormente no gozavam de proteo jurdica. Com isso, a criminalidade deixa de ter a raridade de outrora para tornar-se uma das formas da vida social moderna. Da a necessidade de perceber como entre o homem honrado que faz o bem por amor ao bem e o criminoso que faz o mal por desejo do mal existe uma dilatada zona de mltiplos matizes56 dos quais no se deve descuidar e cuja variedade, fluidez e complexidade a frmula geral e simplificadora da noo de responsabilidade incapaz de apreender.

    Aquilo que quero fazer ou no fazer depende do meu carter,

    e meu carter depende de circunstncias sobre as quais no

    tenho nenhum poder; encontra-se submetido, sobretudo em

    sua formao inicial, a fatores dos quais no disponho. Jamais

    podemos considerar em seu conjunto as condies dessa

    formao primeira; jamais podemos representarmo-nos o

    agregado primitivo dos pensamentos, dos sentimentos, das

    vontades, das inumerveis foras psquicas, morais, fsicas, que

    se entrecruzaram, se confundem, se penetram e se fundem para

    compor uma individualidade.57

    Ser preciso remontar ao encadeamento lgico dos estados sucessivos que motivaram a ao para extrair dela seu segredo. Nesse processo, o ato em si importa pouco para a defesa social, uma vez

    55. Ibidem, p. 19.56. Ibidem, p. 24.57. Ibidem, p. 39.

  • 311nildo avelino | telma dias fernandes | ana montoia (orgs.)

    que, no fundo, no reflete outra coisa seno a apario momentnea das paixes na superfcie do mundo, a exploso efmera do desejo criminoso. Mas desse momento de lampejo preciso refazer o elo das energias longnquas, cujas vibraes se propagam como os raios luminosos que em noite estrelada ferem o olhar mesmo aps ter-se extinguido o astro do qual emanam.58 O problema agora, mais complexo, menos a represso dos atos do que a conteno dos riscos. Um juiz que condenasse uma dona de casa por ter infringido as prescries sobre a conservao da via pblica, diz Prins, certamente asseguraria a limpeza e a livre circulao; mas o faria sem investigar se essa mulher excntrica, negligente, indisciplinada ou rebelde e se age intencionalmente ou no.59

    A escola jurdica da defesa social tornou possvel o restabelecimento do Direito sem a exigncia de provar a culpa, colocando em prtica o que certamente foi uma das invenes mais importante das sociedades de controle (ou sociedades de segurana, segundo Foucault). Desde o sculo XVIII, como mostrou o filsofo, fbrica e crcere foram duas instituies permeveis uma outra pela disciplina dos corpos, distribuio espacial, controle e composio das foras.60 Ocorre, no entanto, neste comeo do sculo XIX, outra simbiose, que estaria destinada a perdurar at nossa atualidade: a noo de risco. Prins percebeu como a legislao bismarckiana em matria de acidentes de trabalho fez nascer a ideia de risco profissional. Com esta noo, no era mais preciso estabelecer a culpa do patro ou do operrio: bastava comprovar o acidente para que a lei regulasse imediatamente o clculo de uma indenizao. Essa tcnica securitria transferida do direito trabalhista para o direito civil substituiu, no novo Direito alemo, a teoria da Culpahaftung pela teoria da Causahaftung.61 A tcnica securitria no direito trabalhista buscou

    58. Ibidem, p. 40.59. Ibidem, p. 60.60. M. Foucault. Vigiar e punir. Nascimento da priso. 22 ed., tr. Raquel Ramalhete.

    Petroplis: Vozes, 2000.61. A. Prins, op. cit., 1910, p. 63.

  • 312 ditaduras: a desmesura do poder

    cessar a violncia dos conflitos entre patres e operrios. O sistema de seguros colocado em funcionamento apresentava a exigncia dos direitos independentemente da reorganizao da sociedade, tornando suficiente a reparao dos sofrimentos ocasionais. Assim,

    [...] o operrio acidentado, doente ou desempregado no

    exigia mais justia diante dos tribunais ou em praa pblica.

    Faz valer seus direitos perante instncias administrativas que,

    aps examinarem o fundamento da sua demanda, paga-lhe

    indenizaes predeterminadas. No proclamando a injustia

    da sua condio que o operrio poder beneficiar-se do direito

    social, mas na qualidade de membro da sociedade, na medida

    em que ela garante a solidariedade de todos.62

    J no mbito do direito penal, a noo de risco encontrou uma aplicao igualmente profcua: tornou-se o novo ngulo pelo qual passou a ser considerada a individualidade moral do culpado. Lombroso, por exemplo, afirmou a existncia na sociedade de certos indivduos com necessidade de admirar e entusiasmar-se pelo martrio, e de se fazerem mrtir; que possuem um certo gosto pela perseguio e acreditam-se vtimas da prepotncia e malvadeza humana.

    Escolhem seu partido poltico revelia dos perigos que esse

    representa, como certos alpinistas escolhem para escalada a

    montanha cujos precipcios so os mais profundos e os cumes

    mais inacessveis. Para eles no existe melhor excitamento do

    que as teorias anarquistas [...]. E nada mais perigoso que dar s suas fantasias um cadver justiado. Vaillant condenado se torna

    mrtir; a sua tumba lugar de peregrinao contnua; a lenda

    comea, cresce, floresce, alimentada por uma chuva de sangue.63

    62. J. Donzelot. Linvention du social. Essai sur le dclin des passions politiques. Paris: ditions du Seuil, 1994, p. 138.

    63. C. Lombroso, op. cit., 1998, pp. 95-96.

  • 313nildo avelino | telma dias fernandes | ana montoia (orgs.)

    Esta disposio explica como a anarquia, que antes recrutava os seus heris entre os candidatos galera, hoje os encontra entre os indivduos honestos. De Ravachol, que dinamitava em silncio e na discrio para assegurar a fuga, chega-se a Vaillant e a Henry, que atiram suas bombas na absoluta certeza de serem presos; ou Caserio, que usa o punhal sem qualquer possibilidade de escapar guilhotina. Enfim, do homem que comete o atentado, diremos assim, annimo, chegamos ao homem que friamente d sua vida pela morte de um homem odiado, e comete o atentado sabendo de antemo que sua cabea est naquele momento perdida.64 Quanto maior o fanatismo poltico e a honestidade do autor do atentado, mais este se torna indiferente s consequncias do seu ato. Tomar gosto pelo sacrifcio e cometer o seu delito a todo custo. Por isso a plvora, o fogo e a guilhotina de nada adiantam contra a hidra anarquista, pelo contrrio, aumentam pela excitao aos perigos e ao martrio o vigor de seus fanticos. Seria preciso usar da astcia e da habilidade, nunca excitando contra si mesmos propsitos violentos, mas sempre procurando usar nas relaes de poltica interna, o quanto mais possvel, a fora moral: sensatez, calma e frieza, sem recorrer cegamente, to logo o perigo se mostre, ao terror e guilhotina que produzem os mrtires e excitam no partido que se quer destruir o esprito de luta e de resistncia.65

    Foi este princpio de diferenciao reivindicado pela escola da defesa social que permitiu ao direito penal aprimorar o problema repressivo. Ocupa-se da natureza do indivduo, no da cota de vontade que intervm no seu ato ou da quantidade de punio correspondente, com o objetivo de conjugar severidade e benevolncia na medida concreta da necessidade social; medida concreta, por sua vez, que se relaciona com o estado psquico permanente do delinquente.66 Foi essa justa medida que indicou as vantagens polticas dos manicmios. O envio para l dos epilticos ou histricos seria uma medida mais prtica, especialmente na Frana onde o ridculo assassina. Porque os

    64. Ibidem, p. 97.65. Ibidem, p. 100.66. A. Prins, op. cit., 1910, p. 71.

  • 314 ditaduras: a desmesura do poder

    mrtires so venerados e dos loucos se ri e um homem ridculo no jamais perigoso.67

    Sobre o anarquista foi constitudo o discurso do monstro poltico e do anormal no final do sculo XIX e comeo do sculo XX, por uma razo fcil de apreender. Ao estabelecer a diferenciao entre os reformadores sociais, a antropologia criminal afirmou que os anarquistas no sonham nem em melhorar nem em reformar; sonham em destruir; enquanto as outras escolas propem um ideal social mais ou menos realizvel, os anarquistas ignoram absolutamente aquilo que propem fazer: o que querem destruir, e destruir por todos os meios possveis, o roubo, a pilhagem, o assassinato, o incndio.68 Da conclui-se: todos os crimes de direito comum erigidos em sistema de combate, eis a anarquia!,69 nada mais que a revolta de bandidos de direito comum contra a lei.70 Entretanto, no se trata de qualquer criminoso, mas do criminel fin-de-sicle que lana mo das descobertas da qumica moderna pistola, dinamite, nitroglicerina e assassina em nome de ideais da modernidade solidariedade, liberdade, igualdade. Este indivduo, incapaz de se integrar ao recente mundo industrial, que odeia a moral, renega as leis, comporta-se de maneira extravagante, exagerada e desequilibrada, teve seu carter observado e estudado numa riqueza de detalhes e mincias. Foi preciso revelar nessa personagem a natureza do crime e o fundo da conduta criminosa, e para isso desenvolveu-se e se estabeleceu sobre uma populao de operrios, essas fezes da misria europeia,71 esse viveiro da epilepsia e do histerismo,72 toda uma vigilncia prxima e meticulosa, e um policiamento exaustivo.

    Mas seria um erro ver nisso simplesmente represso: foi antes uma fina tecnologia de governo das condutas que emergiu a partir precisamente da figura exorbitante do anormal.

    67. C. Lombroso, op. cit., 1998, p. 100.68. A. Brard, op. cit., 1892, p. 616.69. Ibidem, p. 625.70. Ibidem, p. 630.71. R. Barbosa, op. cit., 1933, p. 55.72. Ibidem, p. 80.

  • 315nildo avelino | telma dias fernandes | ana montoia (orgs.)

    Degenerados, insuficientes, incompletos, anormais profundos,

    mostram-se como perigosos quando se convertem em criminosos.

    Porm, mesmo fora da criminalidade constituem uma ameaa

    para si mesmos e os demais, visto que entregues as suas prprias

    foras so incapazes de seguir uma vida regular e tornam-se

    tanto mais inquietos quanto mais jovens so e mais abandonados

    esto. O Estado no pode ficar indiferente a eles e deix-los

    iniciativa privada. Ainda nessa esfera obrigado a garantir a

    ordem social. Ento, a defesa social se manifesta na sua forma

    mais elevada e mais fecunda: j no a represso, a proteo e

    a assistncia.73

    O anarquista criminel fin-de-sicle constituiu o objeto pelo qual o discurso psiquitrico efetuou um processo de diferenciao na economia das condutas da populao operria que produziu novas tcnicas de governo. Introduziu, certamente, efeitos negativos de excluso como a expulso de estrangeiros; mas produziu igualmente tambm no Brasil efeitos positivos de incluso da populao operria no interior de diversos mecanismos de controle, sobretudo a partir do governo Vargas, tais como a fbrica normalizada pelo Ministrio do Trabalho e outras estratgias de normalizao a carteira de trabalho, a lei de sindicalizao, a lei de frias etc. A esse propsito, seria preciso perceber igualmente as continuidades existentes entre, de um lado, os discursos do Sr. Rui Barbosa e, de outro, esses milhares de relatrios de polcia elaborados ao longo de quase sessenta anos de existncia dos diversos DEOPS, desde sua criao em 1924, at sua extino em 1983. Relatrios que tiveram dentro do sistema judicirio para os quais foram elaborados efeitos de verdade e de poder cuja permanncia ainda est longe de ser apagada. Entre as velhas estratgias de represso ao anarquismo e as novas instituies e (des)medidas democrticas de regulao social, existe mais do que simples semelhana: talvez tenham constitudo suas condies de possibilidade.

    73. A. Prins, op. cit., 1910, p. 73.