ditadura do lattes

Upload: aline-fonseca

Post on 03-Nov-2015

212 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

ditadura do Lattes

TRANSCRIPT

  • 6

    Produo e produtividade no meio acadmico.

    A ditadura do Lattes e a Universidade contempornea

    Joo Fbio Bertonha*

    O Lattes como um dolo, que exige ser alimentado todo dia. No me recordo quem me disse esta frase, mas ela perfeita para indicar o clima imperante em parte da Universidade pblica hoje. Diga em parte e pblica, porque uma parcela razovel dos docentes na Universidade pblica no est realmente preocupada com estas questes (j que muitos tm estabilidade no emprego e, portanto, se no querem concorrer em editais e por bolsas, esto tranqilos) e porque, na Universidade privada, a produo e a produtividade, normalmente, se medem em horas de aula dadas, o que modifica substancialmente os termos do problema.

    No obstante, para setores importantes da Universidade, o Lattes se tornou uma quase obsesso. E no para menos. Afinal, ainda que a subjetividade e conexes polticas ou sociais continuem a ser de suma importncia no ambiente acadmico (como, alis, em toda a sociedade), o Lattes e suas tabelas de produo (artigos, livros, orientaes, comunicaes, etc.) um dos elementos chave para seleo para bolsas, editais de pesquisa, etc. Hoje, alm disso, o Lattes serve como uma espcie de Orkut dos intelectuais, permitindo que todo mundo conhea a vida acadmica dos outros e, portanto, ele uma vitrine que todos querem embelezar e aumentar.

    Muitas pessoas simplesmente trabalham e produzem muito e, portanto, tem o Lattes encorpado. A presso pelos nmeros, contudo, tem sido to intensa que muitos artifcios tm sido utilizados para ampli-los. Tendo participado j em inmeros comits de avaliao, j me deparei com casos no mnimo bizarros, como pessoas que apresentam um estgio no exterior de uma semana como ps-doutorado ou que publicam um texto num site e o apresentam como livro. Ou, ainda, que transformam um evento local em internacional simplesmente colocando esta palavra no ttulo. Em geral, contudo, o que se faz publicar sem parar, em anais de eventos (que agora esto todos sendo transformados em livros), revistas e tambm atravs de editoras que esto se especializando em atender esta demanda. O problema que se publica muito material que nem sempre valeria a pena ser publicado.

    Tambm comeam a se introduzir mtodos comuns nas exatas, como fazer um membro de uma equipe citar a todos quando de alguma publicao, o que permite, por exemplo,

    * Doutor em Histria pela Universidade Estadual de Campinas e professor de Histria na Universidade Estadual de Maring/PR.

  • 7

    que alguns doutorandos tenham dezenas de artigos publicados ou que um professor possa apresentar centenas.

    Nem todos estes artifcios so ilegais ou mal intencionados (pois o Lattes abre margem a muitas interpretaes), mas esto presentes e indicam como a presso pelos nmeros se instalou com fora na Universidade, levando a uma parania geral em publicar sem parar. Publish or perish, seguindo o modelo dos Estados Unidos.

    fcil fazer uma avaliao de que isso ocorreu simplesmente por causa da ascenso do liberalismo, da vitria da ideologia neoliberal no mundo e etc. A meu ver, h sim uma relao entre estas questes. A Universidade faz parte da sociedade maior e, se vivemos um contexto de vitria dos ideais de produtividade e produo como valor absoluto, como isso no afetaria os professores universitrios? Se lembrarmos ainda que nosso papel de guias da sociedade no parece mais ter tanto apelo e que muitos dos ideais polticos e sociais que norteavam alguns dos intelectuais do passado desapareceram, o refgio na produtividade sem fim parece razovel para dar sentido profisso.

    Mas talvez a questo seja mais simples do que parece e reflita a prpria melhoria da Universidade brasileira nos ltimos anos. Houve uma expanso nos quadros e, especialmente, nos quadros titulados. Agora, h mais profissionais, todos ansiosos, como em qualquer ofcio, para demonstrarem suas habilidades. Com este aumento exponencial do nmero de pesquisadores, a demanda por bolsas, recursos, editais e etc. se ampliou tanto que as agncias financiadoras tiveram que encontrar algum caminho para decidir quem receberia o que.

    Dessa forma, algum critrio vivel teria realmente que ser encontrado e o numrico venceu no apenas pelo domnio dos ideais da produtividade como valor absoluto, como visto acima, mas tambm pelo fato de ser um critrio que pode ser manejado por softwares e programas de computador. Assim, Capes, CNPq, FAPESP, Fundao Araucria e outros tm uma maneira mais ou menos prtica de avaliar os pedidos de dezenas de milhares de pessoas ao mesmo tempo. Um clique e uma planilha elaborada, indicando se aquele pesquisador deve ser apoiado ou no.

    Assim, no me parece que estejamos diante de um compl neoliberal para transformar as Universidades em fbricas. O mtodo de avaliao por produo e por quantidade tambm uma forma prtica de resolver o dilema de avaliar os pedidos de uma comunidade acadmica cada vez maior e s reflete a vitria do modo capitalista de pensar, a meu ver, de forma indireta.

    Resta perguntar se essa vitria positiva ou negativa. Eu a vejo como negativa em alguns aspectos. Em primeiro lugar, a tenso por produzir sem parar s pode fazer mal aos envolvidos. Em segundo, estamos produzindo tanto papel impresso e CD-ROMs que mal conseguimos dar conta em ler uma mnima parte disto. Minha experincia nos ltimos anos indica que, cada vez que pesquisamos algum assunto, aparecem centenas ou milhares de referncias. Depois de filtradas, restam apenas umas poucas que valem a pena. A superproduo est, talvez, atrapalhando a produo do conhecimento, e no o contrrio.

    Depois, h uma presso para no publicar em veculos menores. Jornais, revistas eletrnicas acessadas por milhares de pessoas ao dia, revistas, livros para escolas e materiais desse tipo no tem um Qualis alto e, portanto, pouco significam nas avaliaes. O pesquisador fica sempre, portanto, diante do dilema de publicar numa

  • 8

    revista ultra-especializada, que lhe dar prestgio e pontos, mas que ningum quase vai ler, ou numa de amplo acesso publico, mas que no lhe trar reconhecimento e, pelo contrrio, far pessoas olharem para ele com desprezo nos corredores da Academia.

    bvio que se deve separar o joio do trigo. No faz sentido querer colocar num mesmo plano uma publicao numa revista especializada, na qual o artigo deve seguir rigoroso processo de produo e avaliao e, ao ser lido por um pblico seleto, far o conhecimento naquela rea avanar e um outro, publicado numa revista ou site aberto. Nestes veculos, o grau de exigncia menor e parece fundamental no querer igualar tudo. Contudo, se nos furtarmos de falar com o grande pblico, para que serviriam os intelectuais?

    Claro que o problema no unicamente nosso. O mercado brasileiro de conhecimento muito restrito e nem sempre h muito espao para exercermos nosso papel de especialistas em dados assuntos. Fico pasmo, alis, com o quanto difcil publicar livros no Brasil, pois, aparentemente, nada interessa s Editoras. E fico ainda mais pasmo quando, meses aps ter um livro recusado, vejo a mesma Editora publicar um livro semelhante traduzido de um original dos EUA e Europa. As vezes, penso at que, se mudasse meu nome para John Smith e publicasse primeiro no Primeiro Mundo, em ingls, as editoras do Brasil fariam fila para me traduzir... Um desabafo particular meu, mas que indica que nem sempre atingir o grande pblico fcil e que no s a ditadura do Lattes a culpada.

    Mas, enfim, o que fica claro que a ditadura numrica no exatamente positiva, pois inibe a produo de material para um pblico mais amplo, faz muita gente desvalorizar a atividade didtica e gera a produo de muita coisa intil. Contudo, o mais grave que, certamente, no o critrio mais isento e perfeito para julgar a capacidade de um pesquisador.

    Pensemos, por exemplo, em Einstein e no seu ano miraculoso, 1905. Em dois ou trs artigos, ele mudou o panorama da fsica moderna. Talvez, se estivesse sendo avaliado pelo Lattes naquele ano, ficasse para trs frente a vrios outros que produziram mais, mas com muito menos impacto. E, por impacto, no quero dizer simplesmente ser citado (o que um bom indicador, mas no absoluto), mas trazer algo realmente novo para o seu campo de estudos.

    Assim, possvel pensar em um historiador ou cientista poltico que produzir uma montanha de papel na sua vida, mas cujo trabalho poucos conhecem ou que pouco importa e outro que produziu apenas um livro ou artigo, o qual mudou o nosso entendimento do mundo. O numrico no , dessa forma, um critrio muito confivel para medir capacidade.

    No entanto, fico na dvida se um critrio to irrelevante assim. Em geral, e j descontando as excees de praxe, os maiores currculos em termos numricos tambm refletem uma obra que, coletivamente, das mais relevantes. Um autor que publicou 200 artigos certamente no ter a todos com a mesma qualidade ou impacto, mas o conjunto provavelmente ser de importncia. Um que publicou apenas cinco sem ser um Einstein certamente ter colaborado menos no seu campo de estudos do que o primeiro.

    Depois, se o critrio numrico cair, o que faremos? Se eliminssemos os Lattes e a avaliao numrica, o que colocaramos no lugar? Podemos pensar num mtodo democrtico, pelo qual todos os pedidos de recursos e bolsas receberiam os mesmos

  • 9

    valores, dividindo rigorosamente o dinheiro disponvel pelos solicitantes. Mas seria este justo ou vlido? Premiar os profissionais, e so muitos, que usufruem de salrios pagos pelos impostos de todos para ficar num eterno dolce far niente o caminho correto para superar a ditadura da produo? Eis uma questo que merece ser pensada.

    Em resumo, no estou nem um pouco de acordo com o sistema de quantificar as pessoas via tabelas e planilhas numricas e fica mais do que claro que tal sistema no capta realmente a essncia do pesquisador. Dessa forma, acredito que devemos e podemos encontrar maneiras de melhorar o sistema de avaliao que temos, saindo dessa quantificao sem fim.

    O problema que quaisquer melhoras (avaliao por pares, por comits, etc.) para captar a qualidade da produo ao lado da quantidade demandariam um trabalho infinito. Como seria possvel organizar comits para avaliar dezenas de milhares de propostas num Edital Universal do CNPq, por exemplo?

    Depois, um dos principais e tradicionais problemas da mquina pblica brasileira que os favorecidos so sempre os amigos do rei. No vivemos numa sociedade cem por cento meritocrtica e a Universidade tambm no o , e um sistema objetivo, quantitativo, permite, pelo menos, um critrio minimamente razovel para definir as coisas ou, no mnimo, para questionar um julgamento. Sistemas como o Lattes so um avano no sentido de tornar pblicas as informaes e permitir questionamentos de decises. Talvez, no futuro, seja possvel conceber um sistema melhor, menos imune a erros e interpretaes diversas e que permita, atravs de algum mecanismo automatizado, avaliar melhor um pesquisador do que o atual. Mas o Lattes de hoje um avano, e no um retrocesso.

    Em resumo, concordo que quantificar simplesmente no resolve a questo e que quantidade no significa qualidade. Tambm estou de acordo que acabamos produzindo montanhas de textos que, provavelmente, no serviro para nada e nos estressando simplesmente para ascender na carreira e acumular pontinhos. Tudo isso merece ser revisto em favor de uma anlise mais pormenorizada do que fazer cincia, escrever e colaborar com a sociedade. Agora, se a alternativa a no existncia de avaliao do que se faz com o dinheiro pblico, a questo muda de figura. Prefiro a Universidade cheia de pesquisadores produtivos (ainda que boa parte do que produzem s sirva para pontuar currculo) do que de pessoas pouco interessadas na sua prpria profisso e na sociedade que os sustenta.