divergência e conciliação_ cinema e memória da luta armada no brasil.pdf

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    Cinmas dAmrique latine21 | 2013:Cinma et politique

    Divergncia e conciliao:cinema e memria da luta armadano Brasil

    FERNANDOSELIPRANDY

    p. 68-79

    Traduction(s) :

    Divergence et conciliation: cinma et mmoire de la lutte arme au Brsil

    Rsums

    PortugusFranaisO melodrama histrico O que isso, companheiro? (Bruno Barreto, 1997) e o documentrio

    Hrcules 56 (Silvio Da-Rin, 2006) adotam gneros cinematogrficos distintos na construo deverses antagnicas sobre o sequestro do embai xador dos EUA no Brasil, promovido pela lutaarmada revolucionria em 1969. Porm, de lado a lado, as opes estti cas identificveis nosfilmes conotam um encerramento do passado que no deixa de indicar certa convergncia arespeito do presente brasileiro de conciliao democrtica, quando permanece a impunidade

    de torturadores e assassinos.Le mlodrame historique O que isso, companheiro? (Bruno Barreto, 1997) et le documentaire

    Hrcules 56 (Silvio Da-Rin, 2006) adoptent des genres cinmatographiques distincts dans laconstruction de versions antagoniques de lenlvement de lambassadeur des tats-Unis auBrsil, perptr par la lutte arme rvolutionnaire en 1969. Pourtant, mis cte cte, les choixesthtiques identifiables dans les films dnotent un verrouil-lage du pass qui nest pas sansindiquer une certaine convergence au sujet de lactuelle conciliation dmocratique au Brsil,alors que les tortionnaires et assassins restent impunis.

    Entres dindex

    Mots-cls : lutte arme, dictature, cinma, documentaire, mlodrame, mmoirePalavras chaves : luta armada, ditadura, cinema, documentrio, melodrama, memria

    Texte intgral

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    A evidncia e as verses: fotografia oficial do embarque de presos polticos trocados peloembaixador em 1969.

    Um fato histrico, dois filmes, muitas polmicas. As obras aqui analisadasmobilizam as tenses estticas entre fico e documentrio no embate que travamacerca da memria da luta armada durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Em O que isso, companheiro?(Bruno Barreto, 1997) eHrcules 56(Silvio Da-Rin, 2006), o mesmo acontecimento retratado, respectivamente, pelas lentes domelodrama de matriz hollywoodiana e de certa vertente do documentarismo deentrevista contemporneo. Em ambos, o discurso testemunhal a matriz das imagens.O sequestro do embaixador dos EUA, Charles Burke Elbrick ao guerrilheirarealizada pelo Movimento Revolucionrio 8 de Outubro (MR-8) e pela Ao LibertadoraNacional (ALN), em setembro de 1969, com o objetivo imediato de libertar presos

    polticos e romper a censura imposta pelos militares o fato passado que est nocerne da disputa de memria entre os gneros cinematogrficos. Distanciados de quaseuma dcada, os filmes propem vises do evento que, para alm das diferenas formais,ancoram-se em conjunturas relativamente distintas.

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    Adaptao para as telas do best-sellertestemunhal homnimo de Fernando Gabeirapublicado em 1979, O que isso, companheiro?foi lanado nos cinemas brasileiros emmaio de 1997, em pleno momento da cinematografia nacional que se convencionouchamar de Retomada. A realizao contava com um elenco ilustre, composto tantopor atores ligados teledramaturgia brasileira quanto por intrpretes estrangeiros comcerto trnsito em Hollywood. Com linguagem vinculada aos cnones do cinemaindustrial norte-americano, a pelcula obteve significativo sucesso de pblico. Ao

    mesmo tempo, porm, arregimentou uma legio de detratores, principalmente entreaqueles que viveram mais ou menos de perto a experincia encenada em suas imagens.Em 1998, concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

    2

    Lanado nos cinemas em maio de 2007,Hrcules 56foi acolhido por grande parte dacrtica como a devida resposta documental s polmicas ficcionalizaes da histria deO que isso, companheiro?. Em termos formais, o filme se vincula a uma fortetendncia do documentrio de entrevista contemporneo no Brasil. Suas imagenstrazem os rostos e as vozes das principais testemunhas do evento: de um lado, narememorao coletiva das lideranas do sequestro de outro, nos depoimentosindividuais dos presos polticos libertados em troca de Elbrick. O documentrio revelaainda um precioso material de arquivo, exibindo muitas imagens de poca at ento

    inditas no Brasil.

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    Prope-se aqui uma anlise comparativa dos filmes, que possuem um dilogoevidente. Mas no se trata de estipular uma valorao pautada pela medida damanipulao da fico ou da autenticidade do documentrio. A fronteira que separa Oque isso, companheiro? eHrcules 56 no est exatamente em uma suposta baliza da

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    Ameaa guerrilheira: Jonas intimida o refm Elbrick em O que isso, companheiro?

    (Brasil, 1997), de Bruno Barreto.

    A virtude sequestrada: o diplomata no cativeiro em O que isso, companheiro? (Brsil,1997), de Bruno Barreto

    maior ou menor distoro. As relaes entre representao e referente que osdiferenciam so muito mais intrincadas, e tal complexidade s pode ser vislumbradacaso se abandone a premissa da aferio da fidelidade em benefcio da tomada daprpria distino entre os gneros e suas tenses como objetos de reflexo.

    De incio, sero descritos os principais sentidos das representaes da luta armadaem uma e outra obra. Da surgiro as divergncias entre as verses da memria. Por

    ltimo, ficaro indicadas certas implicaes das opes estticas dos filmes quanto aossignificados atribudos quele passado. A problematizao das representaes dahistria no cinema volta-se, no fim, para a crtica da referencialidade atual lugar eobjeto ltimo desta anlise comparativa. No fundo, busca-se compreender algo sobre ospossveis nexos entre certas configuraes encerradas da memria, seja na fico ou no

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    Imagens divergentes do passado:desculpao versus monumentalizao

    Bruno Barreto

    documentrio, e o presente de conciliao democrtica no Brasil.

    As verses da histria apresentadas em cada um dos filmes so claramente

    divergentes. O que isso, companheiro?estabelece uma imagem do passado vinculadaao que Paul Ricur j chamou de memria desculpao. 1Mobilizando os artifcios dadecupagem clssica e os clichs melodramticos, a obra constri uma representao decunho negacionista, algo que fica evidente no perfil dos personagens.

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    Jonas (vivido pelo ator Matheus Nachtergaele), comandante da ao e nicoguerrilheiro de origem proletria, caracterizado com uma brutalidade excessiva. Ele truculento, desleal, ameaa a todos de morte, inclusive Elbrick e os prprioscompanheiros, e arma intrigas no interior do grupo. Em suma, ele o verdadeiro vilodo filme, a encarnao do perigo vermelho comunista. O personagem do torturador,ao contrrio, tem seu retrato nuanado. Henrique (interpretado por Marco Ricca)tortura, mas sofre constantes crises de conscincia. Ele est sempre angustiado, padece

    de insnia, confessa sua bela esposa que tem pesadelos com o mundo de cabea parabaixo. Mesmo assim, cumpre sua misso de modo profissional e cauteloso, sentindo-semesmo injustiado. Afinal, fica implcito, ele est sacrificando a prpria inocncia emprol do restabelecimento da harmonia social.

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    O desequilbrio entre o excesso de Jonas e a nuance de Henrique indica sentidos queesto para alm de uma suposta equivalncia das vilanias de dois demnios. Se omelodrama o modo do excesso,2 significativo que em O que isso, companheiro?anuance esteja situada no personagem do torturador. No fundo, o contraste entre oguerrilheiro desmesuradamente brutal e o algoz matizado sugere que o mal encarnadoem Jonas tem maior peso do que o mal personificado em Henrique. A tortura teria sidoum remdio amargo, sim, mas um mal menor diante do mal maior, a hiperblica

    ameaa revolucionria. Nesse antagonismo assimtrico, a perspectiva moral domelodrama serve ao revisionismo histrico que atenua e inverte culpabilidades.

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    Os jovens guerrilheiros de classe mdia oriundos do movimento estudantilencontram-se em outro nvel da escala moral do filme. Abandona-se nesse caso oterreno das culpas rumo ao estabelecimento das inocncias. Diferentemente de Jonas (ocomunista proletrio autntico), os jovens militantes so apresentados como crianassonhadoras cuja ingenuidade teria levado ao equvoco do engajamento armado. Entreesses personagens, abundam os clichs da puerilidade: h a filha preterida que buscarefgio nas organizaes clandestinas, o f de gibis de bangue-bangue que deseja viversuas prprias aventuras armadas, o fanfarro que cai justamente pelo excesso deautoconfiana. O que isso, companheiro?tenta enquadrar o gesto de ruptura de toda

    uma gerao na caricatura melodramtica. Ao sugerir que a guerrilha no passou deuma peripcia juvenil, o filme apaga os contornos polticos daquela entrega ao projetorevolucionrio. A utopia ento imediatamente atrelada ao lugar-comummelodramtico da inocncia equivocada. Nesse prisma, a violncia da tortura serviriacomo uma espcie de castigo apto a purgar o equvoco daquelas crianas. O prpriogesto de sonhar torna-se mera inocncia e perde, assim, toda a historicidade.

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    O que isso, companheiro?

    A sociedade brasileira tambm representada na chave da inocncia em O que isso,

    companheiro?Mas a sua inocncia de outra natureza, ela est um patamar acima naescala moral do melodrama, pois no carrega a mcula do equvoco das armas. No quese refere ao povo em geral, o filme mobiliza o tpos da inocncia desprotegida, como sea sociedade naquele perodo fosse mera vtima vulnervel em meio ao fogo cruzado dosdois demnios. Tudo o que os brasileiros de bem queriam era dormir um sonotranquilo. emblemtica nesse sentido a cena em que a esposa do torturador, espciede donzela vestida de baby-doll, ouve falar pela primeira vez sobre a existncia detortura no pas com a divulgao do manifesto dos militantes pela televiso. J emoutras passagens do filme, h cidados annimos cujo papel mais ativo, sempredelatando os guerrilheiros represso. Contudo, mesmo a no se abandona o campoda inocncia, pois, seguindo a lgica geral da narrativa, a delao no significa

    colaboracionismo, mas simplesmente a escolha do lado certo da histria. Em O que isso, companheiro?, quando desperta de seu sono inocente, a sociedade opta por ficarao lado de Henrique, colocando-se como parceira do agente da ordem no combate aomal maior da guerrilha.

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    Por fim, situado no pice da escala moral melodramtica, h o personagem dodiplomata norte-americano (interpretado por Alan Arkin). Mesmo aviltado pelosequestro, sua performance segue digna, magnnima e serena. Os enquadramentosdedicados ao embaixador trazem sempre a conotao da elevao, da luz eclipsadapelas trevas. Mais do que um personagem, Elbrick o arqutipo do virtuoso liberal, osmbolo do bem no filme. Sua captura pelos guerrilheiros, portanto, significa asupresso da harmonia natural do mundo cabe lembrar neste ponto a imagem do

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    Silvio Da-Rin

    mundo de cabea para baixo, sempre repetida pelo torturador. A encenao dosequestro de Elbrick a representao de um tempo no qual a virtude esteve cativa.Naquele perodo, o mundo estava de cabea para baixo, o smbolo do bem estavasequestrado. E, assim, a pelcula sugere que o conflito ocorrido naquele hiato foi merosurto, excrescncia histrica estranha a uma ordem natural equilibrada em que a

    violncia no tem lugar, na qual a luta aberrao. No passado encenado, breve desviona linha do tempo, aquilo que Elbrick representa esteve suprimido pela ao do malmaior comunista e de seus seguidores equivocados. Naquele intervalo, principalmente

    pelo excesso do operrio-guerrilheiro Jonas, esteve sequestrada a harmonia de ummundo cuja ordem liberal no inclui a luta de classes.

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    Testemunho coletivo: rememorao das lideranas do sequestro em Hrcules 56 (Brasil,

    2006), de Silvio Da-Rin.

    Tal releitura da histria foi elaborada na segunda metade dos anos 1990, dcada dahegemonia poltico-econmica neoliberal no Brasil e alhures. O contraste com a

    imagem de um passado aberrante, quando o mundo estava de cabea para baixo,sugere que a conjuntura de produo do filme era o tempo em que a ordem (neo)liberalestava restabelecida no pas. Fica implcito que nos anos 1990 a anomalia histricadaquele conflito estava superada, portanto, estaria virada a pgina daquele passado.

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    O negacionismo de O que isso, companheiro? radical. Nele, no s as culpas soatenuadas e as inocncias estabelecidas pela distribuio dos papis sociais na escalada moralidade com exceo do comunista proletrio autntico, claro. Mais do queisso, o antagonismo crucial entre os polos do mal maior revolucionrio e do bemliberal cativo apresenta o passado conflituoso como anomalia, imagem que nega aprpria histria como palco de lutas. Nesse revisionismo melodramtico e conservador,em primeiro lugar, fica a ideia de que aquele perodo est encerrado superado notempo e fechado nas convenes do cinema industrial em segundo lugar, nelepredomina o julgamento moral do passado julgamento este enquadrado na gradesimplista de valores do melodrama. Enquanto isso, prossegue a ausncia de

    julgamentos dos torturadores no Brasil, algozes reais que talvez no tenham umaconscincia to pesada quanto a de seu retrato ficcional.

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    Hrcules 56 se prope a dar uma resposta a esses graves abusos da memria,reunindo para tanto os protagonistas da ao em suas imagens. Enfim surgia uma

    verso alternativa do sequestro, coletiva e, aspecto saudado por muitos, documental.De fato, a recepo crtica do filme, em geral, se pautou pela noo de que odocumentrio o gnero cinematogrfico mais apropriado representao da histria,e a comparao com a fico de O que isso, companheiro?seria uma amostra patentedisso. Sem ignorar as especificidades dos gneros, as consideraes a seguir partem dadesconfiana em relao ao pressuposto de uma maior propriedade do cinemadocumental na representao do passado. Mais do que aderir a uma verso da histria,a um gnero cinematogrfico ou a uma vertente da memria, pertinente assumir osriscos de problematiz-los em suas particularidades e em seus nexos com a atualidade.

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    SendoHrcules 56uma espcie de rplica a O que isso, companheiro?, presume-seque o documentrio se inclinaria a travar um dilogo frontal com aquela verso damemria que muitos, com razo, consideram impertinente. Fernando Gabeira, autor dorelato que serve de base para o melodrama, at hoje acusado pelos antigoscompanheiros de impostura testemunhal. Seu livro, apesar do sucesso editorial, gerou egera muitas polmicas, principalmente quanto ironia do texto e ao papel que o autoratribuiu a si mesmo na ao. Sob o argumento de que ele era um militante secundrio, odiretor deHrcules 56nem sequer convidou Gabeira para as entrevistas, ausncia quecausa estranheza nos espectadores mais desavisados. Na verdade, curioso que,embora tenha sido aclamado como um contrafilme, haja um absoluto silncio em

    Hrcules 56 quanto s verses de O que isso, companheiro?, seja o livro ou suaadaptao para o cinema.

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    A prpria forma do documentrio d indcios para se entender tal omisso em suaresposta. Em Hrcules 56, a pluralidade testemunhal, em grande medida, est aservio da montagem de uma totalidade narrativa na qual s no haveria lugar para aimpertinncia de O que isso, companheiro?. Muitas e diferentes vozes so ouvidas nodecorrer da pelcula (das lideranas, dos libertos, das imagens de arquivo), mas a

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    Desembarque dos libertos no Mxico (Hrcules 56).

    edio faz todo um esforo para construir uma espcie de montagem paralela entre osncleos testemunhais. A palavra dos entrevistados fragmentada e articulada emfuno da progresso linear do relato, desde a descrio da conjuntura de poca,passando pelo planejamento, execuo e desfecho do sequestro, culminando com o

    balano de seus sentidos histricos. O corte impaciente das falas de cada ncleotestemunhal estipula um paralelismo guiado por essa linearidade, e a fora doenunciado flmico acaba se sobrepondo diversidade das vozes dos indivduos. Assimmobilizada, a pluralidade tende a induzir o espectador a ver no filme todas as pontas

    da histria.Tal artifcio esttico muito comum em certa vertente do documentarismo deentrevista contemporneo. Nesse caso especfico, a ambio de uma verso total traz aproposta tcita ou seja, silenciosa de substituio/supresso da memriaimpertinente (e individual) ligada a O que isso, companheiro?. Pois essa memria, emltima instncia, estaria voltada ao consenso nacional. O intento legtimo, mas aprpria conjugao entre a omisso da resposta e a esttica coesa aponta um problema.

    Afinal, ao deixar a impertinncia de fora de sua totalidade, o documentrio acabaestreitando o espao do dissenso. No fim, no se trata de uma polmica direta, capaz deabrir novos sentidos para a memria da luta armada. O antagonismo silencioso de

    Hrcules 56 no chegaria a empreender uma crtica efetiva da memria, mas sim aconcorrncia entre uma memria total e uma memria impertinente. Seu impulsoesttico coeso plena expressaria, no fundo, o esforo de substituio de um consenso.

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    O vis da coeso perceptvel tambm no balano daquela experincia apresentadano documentrio. No final do filme, h uma sequncia dedicada s avaliaesautocrticas das testemunhas sobre os sentidos histricos do sequestro, momento emque as discordncias de opinio ficam evidentes. No grupo entrevistado, h aqueles queconcluem pelo desastre da ao alguns valorizam o sacrifcio do engajamento outros,ainda, destacam o legado positivo da luta. Os indivduos manifestam claramente

    julgamentos variados sobre a ao e a militncia armada em geral, ressaltando tambmo sectarismo que marcava as esquerdas nos anos 1960 e 1970. Mas a edio dodocumentrio se esfora para distensionar essas divergncias, aplainando eventuaispolmicas. A articulao das falas vai atenuando o peso das afirmaes mais diretas daderrota da guerrilha no Brasil, apontada como consequncia do acirramento darepresso que sobreveio logo aps o sequestro. Muitos concluem que a aodesencadeou o massacre das esquerdas, mas a dinmica da justaposio dosdepoimentos culmina sempre na enunciao do sentido geral positivo da experincia.Nota-se nesse segmento final uma frico entre montagem documentria etestemunhos, um atrito entre a edio e as falas que tende superao dos dissensospolticos e autocrticos. verdade que as divergncias so dadas a ver, que estoinscritas no horizonte aberto de leitura do documentrio. Mas, pelo impulsoprogramtico dessa sequncia, fica ao espectador a sugesto de certa unidade da lutapassada.

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    Antigos dirigentes dos grupos armados MR-8 e ALN reunidos no documentrio Hrcules

    56(Brsil, 2006), de Silvio Da-Rin.

    Arquivo Gregrio Bezerra, Hrcules 56.

    A atenuao progressiva das discordncias autocrticas e do peso da derrota doprojeto revolucionrio conduz ideia de que aquela luta levou a um Brasil muito

    melhor hoje, como diz uma das principais testemunhas, no por acaso encerrando odocumentrio. O rumo da narrativa ganha clareza, a edio no apenas engendra aconvergncia de lutas dspares como tambm as faz confluir na trilha de uma teleologiademocrtica que no escapa ao anacronismo. Aplainadas as tenses, todo e qualquerato passado de luta submetido ao impulso de construo de um sentido comum cujodesfecho o presente. Ocorre a um deslocamento teleolgico importante: pelamontagem flmica dos enunciados, o que era luta revolucionria torna-se resistnciademocrtica3. Como se aquela gerao tivesse sonhado apenas com a volta danormalidade institucional. Como se o horizonte da utopia de ontem fosse a democraciahoje existente no Brasil. A edio deHrcules 56 acaba diluindo a potncia do dissensoda autocrtica testemunhal das esquerdas. Fica dissolvida tambm a complexidade

    daquelas lutas, restando para o espectador a indicao de que a conjuntura atual era oobjetivo do engajamento passado.

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    Conciliao no presente democrtico:disputas de uma histria encerrada

    Embora justa e legtima, essa celebrao do legado da guerrilha carrega umproblema. Em primeiro lugar, porque a releitura institucionalizante da lutarevolucionria j um paradoxo em si. Afinal, aquela luta buscava inaugurar outraordem, alvo muito maior do que um simples retorno democracia institucional. Mais

    ainda, essa releitura tende a uma monumentalizao dos atos passados satisfeita comos rumos da democracia presente. Percebe-se certo tom apotetico em Hrcules 56,discreto, verdade, mas que se revela no desfecho do Brasil muito melhor hoje e,significativamente, na cano que encerra o documentrio, cujos versos proclamam queo Rio de Janeiro continua lindo4. O filmefoi realizado na metade dos anos 2000, apsa vitria eleitoral de Lula pelo Partido dos Trabalhadores (PT), em 2002. Nessaconjuntura poltica, sua releitura positiva e democratizante da guerrilha no deixa desugerir um triunfo tardio das esquerdas. Como se, com o xito do operrio nas urnas,finalmente a resistncia democrtica e no a luta revolucionria tivesse triunfado.Com isso, aquela luta incisiva acaba se transformando em algo distante no longocaminho rumo vitria institucional das esquerdas brasileiras. No presente

    democrtico, os gestos de ruptura de ontem tornam-se relquias longnquas de umtempo extinto. O monumento, em si vlido, carrega nesses termos o risco de servircomo uma pedra sobre o passado. Isso quando a luta por justia ainda est incompletano Brasil. Sob a forma do documentrio coeso e unvoco, o monumento, no fundo,parece satisfeito com os limites da democracia institucional brasileira.

    20

    Nota-se que, apesar dos problemas apontados em cada um dos filmes, elesapresentam uma oposio fundamental entre a memria desculpadora e a memriamonumentalizante. A diferena radical. De um lado, est o abuso do revisionismonegacionista de O que isso companheiro?: nele, as culpas so atenuadas e invertidas,as inocncias so estabelecidas e aquela histria de conflito vista como anomalia. Deoutro, est a celebrao simultnea do passado e do presente deHrcules 56: a, muito

    longe dos abusos da memria, o problema ocorre quando a luta incisiva se torna umarelquia. O combate ao negacionismo e a homenagem guerrilha so tarefas que odocumentrio assumiu de modo legtimo importante deixar clara essa opinio. Mash uma contradio quando o imperativo de condenao dos torturadores fica de forado monumento.

    21

    A distncia ideolgica entre as duas verses nunca pode ser desconsiderada, masambas possuem um aspecto que, sem jamais as tornar equivalentes, indica umparalelismo no distanciamento. Para alm dos evidentes antagonismos, os filmesassumem, de parte a parte, formas estticas portadoras de um impulso univocidadenarrativa e teleolgica. De um lado, esto os cnones da fico hollywoodiana

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    Notes

    1Ricur Paul,A memria, a histria, o esquecimento,Campinas, Editora da Unicamp, 2007.

    2 Cf. Brooks Peter, Melodramatic Imagination: Balzac, Henry James, Melodrama, and theMode of Excess, New Haven, London, Yale University Press, 1995 Xavier Ismail, O Olhar e acena: melodrama, Hollywood, Cinema Novo e Nelson Rodrigues, So Paulo, Cosac & Naify,2003.

    3Cf. Reis Filho, Daniel Aaro Ridenti, Marcelo S Motta, Rodrigo Patto, O golpe e a ditaduramilitar, quarenta anos depois (1964-2004),Bauru, Edusc, 2004.

    4Trata-se deAquele abrao, cano de 1969 composta por Gilberto Gil, no filme em nova verso,interpretada por Jards Macal.

    Table des illustrations

    Titre A evidncia e as verses: fotografia oficial do embarque de presos

    polticos trocados pelo embaixador em 1969.

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    Fichierimage/jpeg, 168k

    Titre Ameaa guerrilheira: Jonas intimida o refm Elbrick em O que isso,

    companheiro?(Brasil, 1997), de Bruno Barreto.

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    Titre A virtude sequestrada: o diplomata no cativeiro em O que isso,companheiro? (Brsil, 1997), de Bruno Barreto

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    Titre Bruno Barreto

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    Fichieri ma e / e 1 00k

    associados aos clichs melodramticos. De outro, as convenes do documentrio deentrevista contemporneo. Ou seja, mesmo seguindo vias estticas e ideolgicasdistintas, O que isso, companheiro? e Hrcules 56 esto vinculados a formascinematogrficas coesas e unvocas. Por meio delas, sugerem implicitamente que suasrespectivas conjunturas so a resoluo definitiva dos eventos retratados. Nomelodrama, pela refutao da anomalia da luta no presente da ordem neoliberal. Nodocumentrio, pela celebrao da insero institucional das esquerdas como aculminncia das lutas antigas. Nos dois casos, o presente sempre o pice da histria

    que pe fim ao passado.Aqui se toca o ncleo da questo. No filme e no contrafilme, as imagens do passadoautoritrio so divergentes, mas os vetores narrativos de ambos apontam para umaconvergncia das leituras cinematogrficas do presente democrticocomo apogeu dalinha do tempo. Na fico ou no documentrio, a univocidade esttica encerra opassado. Seja nos anos 1990 ou 2000, elege-se a democracia institucional existente nopas como o grande desfecho teleolgico daqueles eventos. As disputas, portanto, sedo em torno da imagem de uma histria vista como encerrada.

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    O olhar crtico do historiador para o cinema no pode abandonar o horizonte dareferencialidade. Imerso em seu presente, ele busca ento o significado histrico desseencerramento das representaes: os embates de O que isso, companheiro?eHrcules

    56 ficam encapsulados no mbito das imagens cinematogrficas da memria no hentre os filmes uma divergncia substantiva sobre a realidade da conciliaodemocrtica brasileira. As formas cinematogrficas adotadas em gneros distintosamarram todos os fios da trama histrica e, assim, o avano crtico sobre a atualidade

    bloqueado pelas barreiras das convenes da coerncia. O dissenso acaba restrito aocampo das representaes, ficando mantida uma distncia segura em relao ao fatoda impunidade de assassinos e torturadores no Brasil.

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    Titre O que isso, companheiro?

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    Fichierimage/jpeg, 88k

    Titre Silvio Da-Rin

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    Fichierimage/jpeg, 148k

    Titre Testemunho coletivo: rememorao das lideranas do sequestro em

    Hrcules 56(Brasil, 2006), de Silvio Da-Rin.

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    Titre Desembarque dos libertos no Mxico (Hrcules 56).

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    Titre Antigos dirigentes dos grupos armados MR-8 e ALN reunidos no

    documentrio Hrcules 56(Brsil, 2006), de Silvio Da-Rin.URL https://reader009.{domain}/reader009/html5/0327/5ab97154ee318/5ab97161ccad1.jpg

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    Titre Arquivo Gregrio Bezerra, Hrcules 56.

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    Pour citer cet article

    Rfrence papier

    Fernando Seliprandy, Divergncia e conciliao: cinema e memria da luta armada noBrasil , Cinmas dAmrique latine, 21 | 2013, 68-79.

    Rfrence lectro nique

    Fernando Seliprandy, Divergncia e conciliao: cinema e memria da luta armada no

    Brasil , Cinmas dAmrique latine[En ligne], 21 | 2013, mis en ligne le 14 avril 2014,consult le 03 j uillet 2 016. URL : http://cinelatino.revues.org/221

    Auteur

    Fernando Seliprandy

    Mestre em Histria Social pela Universidade de So Paulo (USP), Brasil, onde tambm se

    graduou em Histria. Pesquisa as relaes entre cinema, memria e histria, com nfase nasrepresentaes cinematogrficas da luta armada no Brasil. Publicou o artigo Instruesdocumentarizantes no filme O que isso, companheiro? no livro Histria e Documentrio(Rio

    de Janeiro, Editora FGV, 2012), alm de outros textos em congressos nacionais einternacionais. Participa do grupo de pesquisa CNPq Histria e Audiovisual: circularidades e

    formas de comunicao. Colabora com o blog Espiralados (espiralado.wordpress.com).

    Droits dauteur

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