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DO DIREITO ADQUIRIDO E SEUS ASPECTOS RELEVANTES NO SISTEMA
JURÍDICO BRASILEIRO
João Carlos Leal Júnior1
Natália Taves Pires2
Resumo: Verte acerca do direito adquirido, ressaltando sua origem histórica, contornos conceituais e hermenêutica doutrinária acerca de sua existência. Aborda suas teorias explicativas subjetivista e objetivista. Deságua nos princípios da irretroatividade e retroatividade da lei, com acentuada ênfase para o questionamento de previsão legal/constitucional de cada um dos mesmos. Aduz, ainda, sobre a diferenciação do direito adquirido com a denominada expectativa de direito. Posteriormente, trata da aplicação de lei processual nova a feitos já iniciados sob a égide de outro diploma de mesma natureza. Finalmente, trata do embate entre direito adquirido e poder constituinte, nas suas formas originária e derivada. Palavras-chave: Constituição. Direito adquirido. Irretroatividade. Lei de introdução ao Código Civil. Retroatividade
Sumário: 1 INTRODUÇÃO; 2 BREVE ESCORÇO HISTÓRICO; 3 CONTORNOS CONCEITUAIS; 4 AS TEORIAS SUBJETIVA E OBJETIVA; 5 OS PRINCÍPIOS DA IRRETROATIVIDADE E RETROATIVIDADE DA LEI E SUA INCIDÊNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO; 6 A IRRETROATIVIDADE NO DECRETO-LEI 4.657/42 E NA CONSTITUIÇÃO; 7 DIREITO ADQUIRIDO E EXPECTATIVA DE DIREITO; 8 DIREITO ADQUIRIDO E A NORMA DE NATUREZA PROCESSUAL; 9 O DIREITO ADQUIRIDO FRENTE A EMENDA CONSTITUCIONAL E NORMA CONSTITUCIONAL ORIGINÁRIA; 10 CONCLUSÕES
1 Discente de Direito e pesquisador da Universidade Estadual de Londrina; estagiário do Ministério Público Federal – Procuradoria da República em Londrina – PR. E-mail: [email protected] 2 Mestra em Direito pelo Centro Universitário Eurípides Soares da Rocha – Marília – SP; especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade de Direito da Alta Paulista – Tupã – SP; professora do Curso de Especialização em Direito Empresarial e pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina; advogada. E-mail: [email protected].
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1 INTRODUÇÃO É de notório conhecimento que as normas jurídicas detêm vida própria,
nascendo e incidindo nos casos concretos surgidos no decorrer de sua vigência, até que, por
determinado motivo, tenham esta cessada. Têm por gênese sua promulgação, começando a
vigorar, todavia, apenas a partir da publicação no Diário Oficial, fato que acarreta em sua
obrigatoriedade, finda a vacatio legis.
No que atina à cessação da aplicação de uma lei, isto é, ao término de sua
vigência, pode-se ter por termo final marco pré-determinado, como se verifica tanto em leis
excepcionais quanto em temporárias: a duração é, respectivamente, subordinada à
existência de dado evento ou a prazo certo. Pode, por outro lado, ter vigência
indeterminada, durando até que seja modificada ou revogada por outra.
A revogação é gênero do qual são espécies a derrogação e ab-rogação. A última
suprime integralmente a regra anterior, ao passo que a primeira inutiliza apenas parcela
dela. Pode, além disso, a revogação dar-se de forma expressa ou tácita. É expressa quando
indicar em seu texto a extinção da outra. A forma tácita evidencia-se quando houver
regulamentação, pela lei nova, da matéria tratada na antiga, desde que de forma
incompatível.
Nesse diapasão surge o questionamento quanto à aplicação da nova lei às
situações já constituídas. Pode o legislador, no corpo do novel diploma, estabelecer
disposições regulamentadoras da referida temática, resolvendo e evitando, portanto,
conflitos nesta seara. De outra banda, não existindo aludida regulamentação, impende que
se parta para a utilização de princípios norteadores, destacando-se, neste âmbito, o da
retroatividade e o da irretroatividade. Tais serão alvo de estudo na pesquisa em apreço,
conjunta e precipuamente com o direito adquirido. A matéria afeta aos aventados princípios
e instituto encontra-se incrustada na Constituição, bem assim em leis ordinárias.
É de salientar a complexidade do tema que verte, o qual já foi objeto de análise
por juristas da mais renomada estirpe, dentre os quais pode-se destacar o italiano Carlo
Gabba e o francês Roubier. De se salientar que as pesquisas sobre o referido instituto
foram, de forma lenta e gradual, consolidando-se ao longo dos tempos nos diversos
sistemas jurídicos existentes.
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Posto isso, em um primeiro momento, serão analisados aspectos históricos e
contornos conceituais do direito adquirido, sublinhando-se as teorias existentes acerca do
mesmo. Discorrer-se-á, ainda, quanto a similitude e diferenciação daquele com a
denominada expectativa de direito.
Ter-se-á, finalmente, como ponto culminante do feito sub examine a análise do
direito adquirido frente à Constituição Federal ulterior, assim como daquele em face de
emendas constitucionais, registrando-se que toda a pesquisa lastreia-se em doutrina
autorizada e de elevado renome.
2 BREVE ESCORÇO HISTÓRICO
O inciso XXXVI do artigo 5o da atual Carta Magna brasileira, o qual confere
proteção à trilogia direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, não é inovação
nos textos constitucionais, considerando-se que referido amparo fez-se expressamente
presente no corpo de todas as Constituições brasileiras, com exceção da de 1937.
A Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro3, promulgada no ano de 1942,
em sua redação original, declarava, no artigo 6o, ter a lei em vigor “efeito imediato e geral”,
não atingindo, “entretanto, salvo disposição expressa em contrário, as situações jurídicas
definitivamente constituídas e a execução do ato jurídico perfeito.”
Nota-se, assim, pelo exame da redação transcrita, como se observará a
posteriori, a adesão do legislador à teoria objetivista, uma vez que a idéia central desta
doutrina é o princípio tempus regit actum.
Posteriormente, tal dispositivo foi modificado pela Lei nº 3.238, de 1º de agosto
de 1957, diante da Constituição de 1946, fazendo resultar em novo caput para o artigo 6º,
com a seguinte redação: “a Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato
jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”. Igualmente, acrescentou parágrafos
ao presente dispositivo, tal como o 2º, relevante para o estudo em tela, e que define direitos
adquiridos os que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, assim como aqueles cujo
começo de exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio
de outrem. Desta feita, percebe-se, neste ponto, a adoção da teoria subjetivista, que tem
como pontífice Carlo Francesco Gabba.
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3 CONTORNOS CONCEITUAIS
Preliminarmente, antes de se tentar conceituar o instituto objeto de estudo da
pesquisa em apreço, torna-se imprescindível saber seu significado etimológico. Direito
adquirido deriva de acquisitus, do verbo latino acquirere, que significa adquirir, alcançar,
obter (SILVA, 2005). Destarte, adquirido quer dizer obtido, já conseguido, incorporado. Na
lição de Plácido e Silva (2005), direito adquirido, portanto, significa o direito que já se
incorporou ao patrimônio da pessoa, que a ela já pertence. Constitui um bem que deve ser
juridicamente protegido contra qualquer ataque exterior de quem quer que ouse ofendê-lo
ou turbá-lo.
Sem embargo de tais considerações, é cediço que houve grandes polêmicas para
que se conseguisse elaborar uma correta conceituação para o referido instituto. Somente é
possível conceituar direito adquirido por meio dos ensinamentos de Gabba, o qual é
seguido por parcela doutrinária de peso, utilizando-se, esta, dos elementos caracterizadores
por ele mencionados a fim de, também, alcançar uma definição.
Carlo Francesco Gabba (1898) entende, assim, como direito adquirido aquele
que atenda aos seguintes requisitos:
a) originar-se de fato idôneo a produzi-lo, em virtude de lei vigente no momento em que
aquele teve lugar, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da
atuação de uma lei nova a respeito do mesmo;
b) nos termos da aludida lei, sob a égide da qual o fato ocorreu, passar, o mencionado
direito, naquele momento, a pertencer ao patrimônio de quem o adquiriu.
O egrégio autor, ponderando acerca dos elementos integrantes do conceito por
ele formulado, esclarece que, no que concerne ao termo direito, este diz respeito ao direito
subjetivo, ou seja, ao jus concreto, aquele proveniente da verificação do fato pressuposto
pela lei.
Atinente ao direito como elemento do patrimônio, avalia Gabba (1898) que,
para um direito ser julgado adquirido, sua concretude não é suficiente; imprescindível é,
ainda, que tenha se tornado parcela do patrimônio particular, já que existem vários direitos
que não integram o patrimônio de quem o possui. Por derradeiro, quanto aos fatos
aquisitivos, entende o estudioso que os direitos pertencentes aos indivíduos sempre se
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fazem adquirir por intermédio de fatos. Assim, deve haver a demonstração de que a
hipótese legal verificou-se em favor de dada pessoa, por meio de fato ocorrido, sob pena de
ser considerar inexistir direito adquirido, sequer direito concreto, mas apenas possibilidade
de direito.
Manifestamente garantido pela Constituição Cidadã de 1988, o direito já
adquirido não será prejudicado por lei posterior.
Como antes averbado, a Lei de Introdução ao Código Civil, no parágrafo 2o de
seu artigo 6º, elucida que se reputam adquiridos os direitos que o seu titular, ou alguém por
ele, possa exercer, tal como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou
condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. Pode-se dizer, assim, que o
direito adquirido tem o condão de impedir a perda daquilo conquistado anteriormente: daí,
exsurge a segurança jurídica. Mas, para ocorrer tal proteção, é preciso que o titular do
direito o adquira, ou esteja vivenciando determinada situação jurídica, para que esta seja
conservada após o surgimento de nova lei e não cause a perda desse benefício.
José Afonso da Silva (2005) ratifica o entendimento de se lançar mão do
conceito de direito subjetivo para melhor compreensão de direito adquirido. Este é um
direito exercitável segundo a vontade do titular e exigível na via jurisdicional quando seu
exercício é obstado pelo sujeito obrigado à prestação correspondente. Assim, se o citado
direito é exercido, prestado de forma devida, tornou-se situação jurídica consumada.
Sob a ótica de Rizzardo (1995), se a pessoa não começou a exercer o direito,
não possui direito adquirido: tem apenas uma faculdade, uma capacidade não exercida. Por
via de conseqüência, goza de direito adquirido quem iniciou o ato de onde ele promanou.
Entretanto, esta exegese não é unânime. Defende, com acerto, a maioria da doutrina que a
pessoa não perde o direito porque não o exerceu antes da revogação da lei que o concedia,
ou antes do surgimento da lei nova dispondo uma situação manifestamente diversa.
Ressalte-se, assim, que ainda que o direito subjetivo não tenha sido exercido e
que advenha uma nova lei que disponha a situação em questão de forma outra, transforma-
se em direito adquirido, pois se tratava de direito exercitável e exigível conforme a vontade
de seu titular. Incorporou-se ao seu patrimônio para ser exercido quando melhor lhe
aprouver. Não pode, dessa forma, ser prejudicado por lei nova pela mera argüição de não
ter sido exercido anteriormente.
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Nesse diapasão, como se depreende do escólio de Carlos Maximiliano, trazido à
tona por Nelson Nery e Rosa Maria Nery (2003), constitui-se em definitivo desde que
aperfeiçoados os requisitos fático-legais para se integrar no patrimônio de seu titular antes
de adsurgir norma posterior em contrário, sendo irrelevante que tenha já sido exercitado ou
não.
Os festejados doutrinadores lecionam, ainda, serem requisitos para que um
direito seja reputado adquirido a existência de evento do qual, ou em razão do qual, faça-se
provir o direito, bem como de lei que faça do fato originar-se o direito (NERY JÚNIOR;
NERY, 2003).
Denota-se que o direito adquirido visa proteger o futuro, e não o passado,
proporcionando, então, segurança jurídica duradoura àquele beneficiado pelo direito.
Conforme ilustram Celso Bastos e Martins (BASTOS; MARTINS, 1989, p.192), o “direito
adquirido consiste na faculdade de continuar a extraírem-se efeitos de um ato contrário aos
previstos pela lei atualmente em vigor”, ou em continuar-se a gozar dos efeitos de uma lei
pretérita mesmo após sua revogação.
Não se pode deixar de lado a concepção de direito adquirido para o insigne
Limongi França4 (1982, p.204), profundo estudioso da matéria, que assevera ser aquele “a
conseqüência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo; conseqüência
que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer
antes da vigência da lei nova sobre o mesmo objeto”.
Segundo Caio Mário (PEREIRA, 1990), toda a construção legislativa da
atualidade está assentada na reverência ao direito adquirido em sentido amplo, ou seja, sob
suas três possíveis perspectiva. A primeira delas se apresenta como o ato jurídico perfeito,
que é o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se realizou. É o ato
plenamente constituído, com os seus requisitos cumpridos durante a pendência da lei sob
cujo império foi realizado, e que fica a cavaleiro da lei nova.
Já a segunda espécie diz respeito ao direito adquirido stricto sensu, abrangendo
os direitos que o seu titular, ou outrem, por ele, possa exercer, como aqueles em que o
início do exercício tenha termo e condições previamente fixados e estabelecidos,
inalteráveis ao arbítrio de terceiro. São aqueles direitos já incorporados de forma definitiva
ao patrimônio de seu titular, tanto os já realizados, como os que simplesmente dependem de
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um prazo para ser exercido, e ainda aqueles subordinados a uma condição inalterável ante a
vontade de outrem.
Como terceira perspectiva, a lei prevê a coisa julgada, ou seja, a decisão judicial
que não viabilize mais recurso, sendo princípio com efeito imediato, assentado de forma
que torna inatingível por lei posterior, material ou formal.
Inserido na Carta Magna, o inciso XXXVI, do artigo 5o, tem o precípuo
objetivo de dar segurança àqueles que participam das relações jurídicas, e certeza aos
direitos dali decorrentes. Assim, haveria gravíssima insegurança, a ameaçar os próprios
fundamentos da vida social, se atos jurídicos já praticados, dos quais resultaram direitos e
obrigações, pudessem ser colocados novamente em discussão face a possibilidade da
retroatividade das leis (FERREIRA FILHO, 1990).
4 AS TEORIAS SUBJETIVA E OBJETIVA
Diante do problema de determinar os efeitos da lei no tempo, ou seja, se esta
deve regular somente os fatos posteriores à sua vigência, ou também pode reger os
anteriores, duas grandes correntes de juristas apresentam-se. Uma delas adotava a teoria
subjetiva, em que a aplicação da lei nova somente ocorreria quanto aos fatos presentes e aos
futuros, com exclusão dos passados, tendo fundamento na sua irretroatividade. A outra
corrente era adepta à teoria objetiva, em que a lei nova era imposta, imediatamente, aos
fatos pretéritos e futuros, baseando-se na sua retroatividade.
Blondeau foi o expositor das primeiras idéias relativas à teoria subjetiva,
fundando sua doutrina na distinção entre o direito adquirido e as expectativas de direito de
um lado, e as faculdades jurídicas abstratas de outro lado. Posteriormente, Savigny deu
origem à sua teoria sobre os limites temporais das normas jurídicas.
Foi através de Lassale, porém, com a idéia subjetiva do direito adquirido, que
surgiu uma teoria sistematizada, orgânica e profunda, encarando a retroatividade como que
ligada a dois postulados fundamentais, em que nenhuma lei poderia retroagir se atingisse
um indivíduo através de seus atos de vontade; ou, ainda, que toda lei poderia retroagir se o
tocasse fora dos seus atos de vontade (PEREIRA, 1990).
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Gabba, também adepto da teoria subjetivista, foi o mais relevante expoente da
mesma e criou a sua doutrina retomando a idéia de proteção aos direitos adquiridos, de
forma abrangente e com praticidade. Para o tratadista italiano, a lei nova não pode violar
direitos precedentemente adquiridos, mas quanto aos direitos de outra natureza, a lei deve
ser aplicada amplamente, tanto para relações jurídicas novas, como para conseqüências de
relações anteriores.
Noutro vértice, para a corrente objetivista, preconizadora da teoria das
situações jurídicas, cujo maior corifeu foi o francês Paul Roubier, o conflito de leis no
tempo soluciona-se por meio da identificação da lei vigente no momento em que os efeitos
dos fatos são produzidos (ALMEIDA, 2006). A doutrina de Roubier gira, essencialmente,
em torno da diferenciação entre efeito imediato e efeito retroativo da lei, sendo este a
aplicação da lei ao passado e aquele a aplicação da lei ao presente.
O limite da lei no tempo é demarcado pela idéia de situação jurídica constituída,
de forma objetiva, diferentemente da noção de direito adquirido utilizada na teoria
subjetivista. Aliás, na mesma esteira dos demais objetivistas, Roubier repele a teoria dos
direitos adquiridos. A situação jurídica decisivamente estabelecida apóia-se na lei sob cuja
égide se compôs, tanto nos seus efeitos presentes, como nos futuros.
Para o estudioso francês, é possível estabelecer três categorias de fatos: facta
praeterita, pendentia, e futura. Assim, se a intenção do legislador é de que os efeitos da lei
alcancem o passado, há retroatividade; se pretende que a mesma desenvolva seus efeitos em
relação aos facta pendentia, deve distinguir as partes anteriores à data da mudança de
legislação, que não poderiam ser atingidas sem retroatividade, das parcelas ulteriores, para
as quais a lei nova, se aplicada, necessariamente, surtirá efeito imediato. Quanto aos facta
futura jamais há retroatividade possível.
A teoria de Roubier consagra a imediatidade da lei, e é o que se adota no
Decreto-lei 4.657/42: a lei em vigor terá efeito imediato e geral.
Denota-se, então, que a Lei de Introdução ao Código Civil mescla, em seu bojo,
ambas as teorias subjetiva e objetiva a fim de tratar acerca da incidência da lei aos fatos
pretéritos, atuais e vindouros. Pelo princípio do tempus regit actum, a lei é imediata: a partir
de sua entrada em vigor, aplica-se a todas as situações existentes. Todavia, não deve atingir
a tríade direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, com vistas a respeitar a
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segurança jurídica, um dos fins buscados pelo direito, sob pena de sobeja ofensa ao
princípio da dignidade da pessoa humana, arrimo constitucional do ordenamento jurídico
brasileiro.
5 OS PRINCÍPIOS DA IRRETROATIVIDADE E RETROATIVIDAD E DA LEI E
SUA INCIDÊNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
A questão da irretroatividade das leis é demasiadamente tormentosa e
apresenta-se como conflito de leis no tempo.
Há dois aspectos na lei: o do espaço e do tempo, pois os fenômenos jurídicos
ocorrem em dados lugar e época. O estudo da lei no espaço situa-se na seara do Direito
Internacional Privado; por seu turno, o estudo da lei no tempo diz respeito ao Direito
Intertemporal.
Duguit entendeu que o estudo científico do problema da lei no tempo deve,
necessariamente, partir do próprio conceito de norma jurídica. A eficácia no tempo da
norma jurídica tem como princípio consagrado o da lex posteriori derogat priori. O tempo
é um dos pressupostos da norma jurídica.
A existência da lei não é eterna, mas depende, para sua alteração ou extinção,
de outra lei, revogadora ou modificadora de seu conteúdo. Enquanto isso não ocorre, a lei
em vigor tem vigência geral, plena e duradoura.
O ponto crucial, aqui, é o da irretroatividade como elemento de segurança da
ordem pública. Lassale afirmou que o binômio segurança-justiça protege os direitos
adquiridos. A lei nova não pode ferir os direitos adquiridos por lei anterior.
O sistema jurídico brasileiro sempre regeu-se constitucionalmente pelo
princípio da irretroatividade das leis, ocorrendo sua imposição ao juiz e ao legislador. Tal
princípio surgiu no direito brasileiro com a Constituição de 1824, em seu artigo 179, o qual
prescrevia que nenhuma lei seria estabelecida sem utilidade pública. Prosseguia que “sua
disposição não terá efeito retroativo”. O mesmo ocorreu na Constituição de 1891, que
vedava, no parágrafo 3o de seu artigo 11, aos Estados e à União prescrever leis retroativas.
Em 1934, a Carta Magna manteve tal princípio em seu artigo 113, parágrafo 3o. Já a
Constituição de 1937, consoante salientado anteriormente, não assegurou o princípio da
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irretroatividade, gerando um período de temerariedade, posto que inúmeras leis novas, com
caráter de retroatividade, surgiram em referido período.
A partir da elaboração da carta política de 1946, houve a re-introdução da
irretroatividade como princípio de ordem constitucional.
As normas jurídicas, criadas para reger a vida em sociedade, têm a finalidade de
regular os atos dos indivíduos, bem como seus direitos e obrigações. Determinam os limites
que as pessoas tem de respeitar, a fim de conservarem seus direitos e possibilitando a
aquisição de outros que vão surgindo.
Assim, diante da evolução constante pela qual tem passado o mundo hodierno,
e levando-se em conta que a legislação é morosa para acompanhar tal progresso, necessário
se faz o surgimento de novos diplomas regulando matéria idêntica, ocasionando um
conflito temporal (eficácia da lei no tempo) na aplicação das mesmas. Esse conflito é
solucionado por normas reguladoras, que, conjuntamente, formam o direito intertemporal.
O período de império de uma lei, como cediço, tem início a partir de sua
entrada em vigor; assim, a lei passada regula situações antigas, ocorridas durante sua
vigência, e a lei nova surge para regular o presente e o futuro, até o eventual surgimento de
outra lei que a substitua.
O caráter da irretroatividade tem o condão de dar segurança às situações
jurídicas constituídas, evitando, dessarte, graves conseqüências que poderiam advir caso as
leis pudessem retroagir.
Como pontifica Theiler (1950, p.46), “retroagindo, a lei suprime as garantias
que a anterior assegurava ao indivíduo, dentro da ordem social preestabelecida, pois este,
embora tenha agido de acordo com a lei vigente, é surpreendido pela norma, podendo vir a
ser, inesperadamente, punido e prejudicado injustamente.”
É óbvio que há exceções, onde a lei poderá ser retroativa, alcançando fatos
passados.
Conforme Luiz da Cunha Gonçalves (1951, p.42), o princípio de que a lei só se
aplica para o futuro é equivalente ao disposto na primeira parte do artigo 8º do Código Civil
Português, em que “a lei não tem efeito retroactivo”. Contudo, o legislador pode, por
motivos imperiosos, dar a certas leis efeitos retroativos, mandando aplicá-las a situações
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jurídicas ou antijurídicas anteriores, ou aos efeitos, isto é, aos atos regulados por lei anterior
(GONÇALVES, 1951).
Vigora em nosso ordenamento jurídico o já aventado princípio lex posteriori
derogat priori, e, independente de qualquer preceito legal, o tempo é um dos pressupostos
da norma jurídica. A lei não tem existência eterna; depende, pois, de outra lei modificadora
ou revocatória. Assim, enquanto não ocorre sua transformação ou extinção, deve-se
assegurar, à lei em vigor, efeito imediato e geral (TENÓRIO, 1955).
França (1968, p.403) averba que a constante interferência das novéis leis “nas
relações entabuladas no regime da lei antiga geraria a mais astrusa instabilidade jurídica,
incompatível com a segurança que, ao contrário, o Direito deve propiciar aos cidadãos.”
6 A IRRETROATIVIDADE NO DECRETO-LEI 4.657/42 E NA C ONSTITUIÇÃO
Percebe-se que a disciplina jurídica dos efeitos temporais de lei nova é,
tradicionalmente, tratada no Brasil tanto em sede constitucional quanto em âmbito de lei
ordinária. Nesse aspecto, sabe-se que grande discussão é travada por entre doutrinadores
acerca de ser ou não correta a fixação, na Constituição, de princípio que consagre a
retroatividade, ou sua proscrição, das leis.
Na opinião de Cardozo (1995), a disciplina do fenômeno intertemporalidade
jurídica em esfera constitucional não necessita ser encarada como consagração cogente da
irretroatividade das leis. É perfeitamente crível, sem que haja ofensa ao princípio da
previsibilidade jurídica, sejam acolhidas diversas soluções para situações específicas, como
a possibilidade de retroatividade de um diploma legal, desde que ressalvados, ad exemplum,
os direitos adquiridos.
Consoante esclarecido, através da evolução histórica do Direito Intertemporal
brasileiro, colhe-se que, de fato, os efeitos da lei no tempo são articulados em patamar
constitucional assim como em domínio de legislação ordinária.
A doutrina diverge acerca do posicionamento de que o princípio da
irretroatividade, uma vez insculpido na Constituição, ocasionaria somente ofensa a seu
comando, já que a pressão de dadas circunstâncias culminaria em sua inobservância, como
já se verificou em ocasiões várias outrora (GONÇALVES, 1951). Há quem sustente, sob
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outro foco, que a garantia em tela é das mais importantes, sendo princípio comezinho,
necessariamente intrínseco a qualquer carta constitucional (FRANÇA, 1982).
Caio Mário da Silva Pereira (1990), tratando do tema, afirma que o princípio da
irretroatividade é, por vezes, assentado com caráter faticamente rijo, refletindo maior
extensão e profunda intensidade, de forma que não se destinaria apenas ao juiz (na
proibição de aplicar lei com efeito retro-operante), mas também, e principalmente, ao
legislador (sendo a ele vedada a criação de leis com caráter retroativo). O sistema de
constitucionalização, prega Pereira (1990), é o que encontra mais sólidas bases.
Maria Luiza Mendonça (1996) aponta que a regra da não-retroatividade da lei
não pode ser absoluta, eis que, por vezes, levando-se em conta as exigências do bem
comum e o interesse social, necessita ser derrogada. Afirma, além disso, que, no Brasil,
consolidou-se, ao longo do tempo, o sistema da previsão constitucional expressa do
princípio da irretroatividade de tal sorte que legisladores e aplicadores do direito
vincularam-se a ele, restringindo-se, assim, os casos de retroação legal.
A Carta Magna brasileira, dissertam, com acerto, Bastos e Martins (1989), não
consagra o princípio da irretroatividade, nem implícita nem explicitamente. O princípio em
comento seria transcendente ao direito posto, integrando a categoria dos princípios gerais
do direito, e a Constituição, omissa quanto à matéria, optou pela proteção de certas
situações, autorizando-se, portanto, a retroação nos demais casos.
No mesmo diapasão, destaca-se o pensamento do constitucionalista José
Afonso da Silva (2005), para o qual o diploma constitucional pátrio vedou apenas a
retroatividade da lei penal, salvo quando beneficiar o réu, deixando averbados os mesmos
argumentos explicitados por Celso Bastos e Gandra Martins.
Desta forma, tem-se que as leis são feitas para reger situações verificadas no
momento em que tem iniciado sua vigência. Poderão retroagir quando assim estabelecerem,
devendo respeitar, muito embora, o direito adquirido, assim como o ato jurídico perfeito e a
coisa julgada.
7 DIREITO ADQUIRIDO E EXPECTATIVA DE DIREITO
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No que toca aos direitos adquiridos, conforme a doutrina clássica de Merlin,
Blondeau e Chabot, ressaltando-se a impossibilidade de a lei nova retroagir e atingir
aqueles, passa-se a distinguir a expectativa do direito e o direito adquirido propriamente
dito. A expectativa de direito, assim, consiste na mera probabilidade de efetivar um direito
que está sujeito a evento futuro; se tal inocorre, o citado direito não se consolidará.
A expectativa de direito é anterior à aquisição do mesmo: nunca pode ser
posterior a esta. Na lição de Bittar (1994), as simples expectativas de direitos são
consubstanciadas em meras possibilidades ou esperanças de aquisição de direitos, ou seja,
em situação que ainda não foram concretizadas.
Inúmeras teorias foram formuladas sobre o direito adquirido, tendo-se por certo
que a mais antiga é a que distingue os direitos adquiridos de suas expectativas, e que,
adotada por Coelho da Rocha, influenciou na redação do Código Civil português.
Afirmavam autores lusitanos que
os direitos adquiridos são os que nasceram de actos já exercidos; e os direitos que poderiam nascer da faculdade são expectativas. Ora, a lei nova não pode prejudicar os primeiros, mas pode impedir que os segundos sejam adquiridos. É uma modalidade desta teoria a que designa só por direito o direito adquirido e por interesse a mera expectativa (GONÇALVES, 1951, p.44).
Enquanto o direito adquirido é a conseqüência de um fato aquisitivo que se
realizou por inteiro, a expectativa de direito, que traduz uma simples esperança, resulta em
um fato aquisitivo incompleto (PEREIRA, 1990).
Na concepção de Limongi França (1968), considera-se que a expectativa de
direito supõe a existência de uma lei em que se funde. Por outro lado, a expectativa pode
considerar-se um direito em vias de, ou que pode, ser adquirido, pois já existe uma lei que a
estriba, e o direito adquirido é conseqüência legal.
Dessa forma, a diferença entre expectativa de direito e direito adquirido está na
existência, em relação a este, do fato aquisitivo específico, já configurado por completo.5
Ainda, para França, o conceito genérico de expectativa de direito deve se
antepor ao do direito adquirido, ou seja, expectativa de direito é a faculdade jurídica
abstrata ou em vias de se concretizar, cuja perfeição está na dependência de um requisito
legal ou de um fato aquisitivo específico. Trata-se, a expectativa, de uma espécie do gênero
facultas agendi (FRANÇA).
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Os direitos adquiridos, resultantes de fatos que ocorreram por completo em
conformidade com a lei antiga e ao tempo de sua vigência, e, conseqüentemente,
incorporaram-se de forma definitiva ao patrimônio de seu titular, não são atingidos pela
novel lei posterior, continuando, então, a ser regidos pela lei precedente, que estenderá sua
eficácia por tempo ulterior ao momento em que foi revogada. As expectativas de direito, ou
seja, determinadas situações aderentes ao indivíduo, oriundas de fato aquisitivo incompleto,
por outro lado, não sendo integradas definitivamente ao seu patrimônio, passam a ser
regidas pela lei nova, que irá discipliná-las a partir do instante em que começar a vigorar
(PEREIRA, 1990).
8 DIREITO ADQUIRIDO E A NORMA DE NATUREZA PROCESSUA L
Toda lei tem início e fim, sendo sua existência condicionada no tempo. A lei
prevê e regula o futuro, disciplinando, via de regra, situações, fatos ou procedimentos atuais
e posteriores.
Seguindo a Lei de Introdução ao Código Civil, a lei processual, por ser lei, não
incidiria sobre o direto adquirido. Dúvida brota, todavia, em relação a processos que se
encontram em caminho durante o nascimento de lei nova. Por isso, com vistas a dirimir
questões nesta seara, necessária seria a utilização de um dos três sistemas seguintes: da
unidade processual, das fases processuais e do isolamento dos atos processuais.
Para o primeiro, apesar de se desdobrar em uma série de atos diversos, o
processo apresenta unidade tal que somente poderia ser regulado por uma única lei, seja ela
a nova ou a velha, de modo que esta teria de se impor para não ocorrer a retroação da nova,
evitando-se, assim, causar prejuízos aos atos até sua vigência praticados (CINTRA;
GRINOVER; DINAMARCO, 1994).
Já para o das fases, distinguir-se-iam etapas processuais autônomas (como
postulatória, instrutória e decisória, verbi gratia), cada uma suscetível, de per si, de ser
disciplinada por uma lei distinta (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 1994).
Por derradeiro, no sistema do isolamento dos atos processuais a lei nova não
atingiria os atos já praticados, tampouco seus efeitos. Mas aplicar-se-ia aos atos futuros,
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sem limitações relativas às fases processuais. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO,
1994).
Dentre os três sistemas, o Código de Processo Civil brasileiro aderiu ao
terceiro, qual seja, o do isolamento dos atos processuais6. Seguiu a mesma linha o estatuto
processual penal brasileiro, que dita, em seu artigo 2º, que a “lei processual penal aplicar-
se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei
anterior”. Desta feita, em sendo o caso, recorrer-se-á a aplicação de leis diversas para cada
ato processual dentro de um mesmo processo, não acarretando, tal situação, em ofensa ao
direito adquirido.
9 O DIREITO ADQUIRIDO FRENTE A EMENDA CONSTITUCIONA L E NORMA
CONSTITUCIONAL ORIGINÁRIA
Debate a doutrina acerca da incidência de novo diploma constitucional, que
estabeleça ordem jurídica inovadora, sobre situações já consolidadas, como os direitos
adquiridos, e a possibilidade de afetação aos mesmos. Prevalece, nessa questão, a exegese
de que o direito adquirido não pode ser invocado perante nova Constituição, uma vez que,
como é cediço, o poder constituinte é autônomo, incondicionado, inicial e irrestrito
(HORTA, 1995). Não há como, portanto, impor-se limites ao mesmo.
A retroatividade não é vedada à norma constitucional advinda de poder
originário. Considerando-se seu caráter inicial, pode atingir fatos a ela anteriores. Diante
disto, é viável dar-lhes nuances diversas das existentes na ordem jurídica pretérita,
podendo, outrossim, pôr termo a direitos já adquiridos.
O texto constitucional, leciona Dantas (1997), é resultado de um hiato surgido
na ordem jurídica, de sorte que não se vincula a nenhum preceito jurídico-positivo que lhe
seja prévio, muito embora funcionem os valores sociais e o Direito Natural como elementos
balizadores ao exercício do Poder Constituinte. Ressalva o autor que a desconstituição de
direitos adquiridos deve, necessariamente, vir expressa, não podendo ser objeto de mera
dedução exegética7. Nesse sentido, sabe-se que a carta nova, via de regra, recepciona as leis
que com ela não guardem relação de incompatibilidade, situação que justificaria a referida
imperiosidade de explicitação das situações que devem ser atingidas.
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Merece registro o fato de que, nos tribunais, é pacífico o posicionamento
atinente à temática esmiuçada, consagrando, a Suprema Corte, a impossibilidade de
existência de direito adquirido contra preceito expresso da Lex Magna.
É diversa, todavia, a interpretação quanto às emendas constitucionais, criadas
pelo legislador no exercício do Poder de Reforma, o qual é autorizado pela própria
Constituição. É de simples constatação a assertiva de que as reformas constitucionais não
podem atingir o direito adquirido, já que a carta de 1988, averba, magistralmente, em seu
artigo 5º, inciso XXXVI, o direito adquirido como garantia individual. Ora, consoante
expressamente se constata do artigo 60, em seu § 4º, inciso IV, inviável é a proposta de
emenda que almeje abolir os direitos e garantias individuais. Assim, resta patenteada a
impossibilidade de criação de emenda constitucional buscando tolher direito adquirido.
Demais disso, o poder de reforma, diversamente do que se verifica no poder
originário, é limitado, devendo respeitar certos parâmetros, como as cláusulas pétreas
contidas no corpo constitucional8, sob pena de desnaturar seu conteúdo e formar, por via de
conseqüência, ordem jurídica diametralmente diversa.
Insta anotar, como apontado algures, que uma vez que direitos tenham sido
integrados ao patrimônio de alguém, atendidos os requisitos para serem encarados como
efetivamente adquiridos, passam a ser protegidos pela cláusula constitucional em comento,
sendo irrelevante que a vantagem não tenha sido exercida até então. Ademais, a norma
constitucional consagradora da intangibilidade do direito adquirido recai sobre toda espécie
normativa, impondo-se, desta feita, a qualquer dos atos estatais legislativos lato sensu,
incluindo-se, por obviedade, as emendas constitucionais.
A garantia de proteção ao direito adquirido, assim, afigurando-se meio de
segurança das relações jurídicas, não poderá ser abolida pelo Poder Constituinte
Reformador. Havendo emenda que acarrete afronte à projetada garantia, caberá ao
prejudicado buscar prestação jurisdicional em seu favor, hipótese em que se visualizará a
incidência do controle de constitucionalidade.
10 CONCLUSÕES
Em sede de considerações finais, pode-se apontar que o direito adquirido é
instituto que foi, a todo tempo, objeto de estudos doutrinários por diversos juristas ao redor
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do mundo. Essencial para a existência do Direito, encontra-se cunhado no corpo da atual
Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, bem como no interior do diploma
constitucional de 1988.
Colhe-se que, para que um direito seja reputado adquirido, deve,
necessariamente, ter decorrido de fato hábil a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no
qual aludido fato viu-se realizado, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha
apresentado antes da atuação de uma lei nova a seu respeito; deve, demais disso, nos termos
da lei sob a égide da qual se verificou o evento de onde se origina, ter passado,
imediatamente, a integrar o patrimônio de quem o adquiriu.
Quanto à incidência da lei e seus efeitos no tempo, haure-se a existência de
duas grandes correntes doutrinárias: a subjetiva e a objetiva. Para a primeira, lei nova não
pode violar direitos já adquiridos, mas seus efeitos, eventualmente, tocarão direitos de outra
natureza, sejam eles oriundos de relações jurídicas novas, ou conseqüências de relações
pretéritas. Para a segunda vertente, pregadora da teoria das situações jurídicas e da
imediatidade legal, o conflito de leis no tempo resolve-se por intermédio da identificação da
lei vigente no momento em que os efeitos dos fatos são produzidos. Não admitem, esta, os
chamados direitos adquiridos.
Verifica-se, no âmbito da legislação infraconstitucional, certa combinação de
ambas teorias objetiva e subjetiva, uma vez que é consagrada a imediatidade da lei,
ressalvados os direitos adquiridos em sentido lato, isto é, a tríade ato jurídico perfeito,
coisa julgada e direito adquirido stricto sensu, alvejando-se, assim, respeito à segurança
jurídica, o qual é um dos fins justificadores da existência do Direito. Outrossim, possível
ofensa a qualquer dos três precitados institutos ofenderia o princípio da dignidade da pessoa
humana, viga mestra da Constituição brasileira de 1988 e, portanto, pedra angular do
Estado brasileiro.
Restou demonstrado que a atual Lex suprema não determina a irretroatividade
da lei, fazendo-o apenas em matéria penal, ressalvados, muito embora, os casos em que
acarretar proficuidades ao réu. A Magna Carta vigente apenas assevera que a lei, encarada
lato sensu, jamais prejudicará o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito.
Afere-se, então, que é possível a edição de leis retroativas, desde que não prejudique os
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institutos retromencionados e que não sejam de matéria penal, exceto quando ocasionar
benefício ao acusado.
Percebeu-se, ainda, ser inviável a confusão de direito adquirido com a mera
expectativa de direito, consistindo esta em probabilidade de efetivação de direito que está
sujeito a evento futuro. Resulta ela fato aquisitivo incompleto, enquanto que o direito
adquirido é a conseqüência de um fato aquisitivo por inteiro realizado.
Quanto a eventual conflito de leis levantado em sede processual, segue-se o
chamado sistema do isolamento dos atos processuais, consagrado pelos codex processuais
pátrios, pelo qual a lei nova não atinge os atos já praticados, tampouco seus efeitos,
aplicando-se, porém, aos atos futuros.
No que respeita às normas de âmbito constitucional, é de fácil ilação que as
elaboradas por poder constituinte originário não devem acatamento a direito adquirido em
conjuntura jurídica precedente, considerando-se as características intrínsecas ao referido
poder, tais como autonomia, irrestrição e ilimitação. Por outro lado, diverso é o que ocorre
quando se trata de emenda constitucional, já que essa é elaborada por poder constituinte
derivado, o qual não pode ofender o núcleo pétreo do diploma constitucional.
Finalmente, tomando-se em conta que a proteção ao direito adquirido é cláusula
integrante da supracitada espécie, eventuais reformas ao conteúdo constitucional devem,
necessariamente, respeitar os direitos já adquiridos, sob pena de inconstitucionalidade.
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NOTAS 3 Decreto-Lei n. 4.657 de 04 de setembro de 1942. 4 O Professor Limongi dedicou longos anos da sua vida à pesquisa do assunto, publicando inúmeras obras a respeito. Apresenta um conceito completo e preciso, de grande alcance, sendo o mesmo reconhecido pelo Ministro Rosselli da Corte Italiana. 5 Nesse sentido: “direito adquirido é somente aquele que, tendo entrado para o patrimônio do indivíduo pode ser exercido por ele, ou por seu representante. Surge, então, de um fato jurídico que se realizou por inteiro e por completo, à sombra da lei então vigente. Quando lhe faltam alguns requisitos integrativos, ou resulta de um fato aquisitivo incompleto, tem-se uma simples expectativa de direito e não, ainda, um direito adquirido” RT 397/161. 6 Tal pode ser constatado a partir da consulta ao artigo 1.211, o qual prescreve que o aludido codex “regerá o processo civil em todo o território brasileiro. Ao entrar em vigor, suas disposições aplicar-se-ão desde logo aos processos pendentes.” 7 Nesta esteira, o artigo 17, caput, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título. ” 8 As quais são obra do Poder Constituinte Originário, ilimitado e incondicionado.
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