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2020 TEORIA GERAL do PROCESSO Com comentários sobre a virada tecnológica no direito processual Dierle NUNES Alexandre BAHIA Flávio Quinaud PEDRON

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    TEORIA GERAL do PROCESSOCom comentários sobre a virada tecnológica no direito processual

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    2DESENVOLVIMENTO DOS MEIOS DE

    SOLUÇÃO DE CONFLITOS NA HISTÓRIA: DA AUTOTUTELA À JURISDIÇÃO E DA

    JURISDIÇÃO AO PROCESSO

    2.1. DA AUTOTUTELA À JURISDIÇÃO

    A jurisdição tradicionalmente é tratada pela doutrina como um poder-dever, substitutivo das partes, de aplicação do direito objetivo ao caso concreto (seguindo os ensinamentos de Chiovenda) ou então como a atividade de justa composição da lide (seguindo Carnelutti). Tratar-se--ia de um poder por ser manifestada pelos órgãos do Estado (juízes) e um dever porque a jurisdição é inafastável (art. 5º, XXXV, CRFB/88), de modo que o Judiciário possui função de exercê-la, resolvendo qualquer conflito desde que provocado.

    É vista assim como um dos meios de resolução de conflitos, como também o são a autotutela e a autocomposição em suas diversas espécies (por exemplo, viabilizada mediante as técnicas de mediação e conciliação).

    Com a autotutela ocorre a resolução do conflito mediante o exercício da violência privada, a composição do litígio pela própria ação dos envolvidos. O mais forte se impõe ao mais fraco. Sua utilização se tornou excepcional e somente autorizada quando a lei o permitir, em face do surgimento da

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    Jurisdição, ainda no Direito Romano, avocando para o poder dominante a resolução dos conflitos e proibindo os cidadãos e instituições de se valerem de meios coercitivos próprios. Exemplos de viabilidade de seu uso na atua-lidade podem ser encontrados na legítima defesa do Direito Penal – art. 23, CP – no desforço incontinente nas ações possessórias – art. 1210, § 1º, CC – e recentemente, na peculiar autorização de indisponibilidade patrocinada pela Fazenda Pública para recebimento de dívidas fiscais.1

    Já na autocomposição não existe a sujeição forçada de qualquer das partes mas uma resolução do conflito de modo negociado. São três as formas de autocomposição:

    a) a renúncia à pretensão de direito material (art. 487, III “c”, CPC): negócio jurídico unilateral, não receptício (isto é, que não deman-da manifestação da outra parte), de voluntariamente declarar que não possui mais interesse naquele direito. O exercício dessa renún-cia à pretensão independe da anuência da parte contrária, em face de seu nítido benefício pela ação da parte renunciante. Pode ocor-rer dentro ou fora de um processo.

    b) o reconhecimento jurídico do pedido (art. 487, III, “a”, CPC): ocorre normalmente em um processo, quando a parte ré se subme-te à pretensão material do autor sem contrapor ao seu direito.

    c) a transação (art. 487, III, “b”, CPC): é a realização de acordo entre as partes mediante concessões recíprocas, ou seja, ambas as par-tes (dentro ou fora do processo) aceitam ceder em alguma medida frente às suas pretensões originais, chegando-se a um denomina-dor comum. Seu modo de obtenção mais recorrente se dá mediante o emprego de mediações ou conciliações.

    1. A Lei n. 13.606/2018 alterou a Lei n. 10.522/2002 e introduziu um novo art. 20-B do seguinte teor: “Inscrito o crédito em dívida ativa da União, o devedor será notificado para, em até cinco dias, efetuar o pagamento do valor atualizado monetariamente, acrescido de juros, multa e demais encargos nela indicados. § 1º A notificação será expedida por via eletrônica ou postal para o endereço do devedor e será considerada entregue depois de decorridos quinze dias da respectiva expedição. § 2º Presume-se válida a notificação expedida para o endereço informado pelo contribuinte ou responsável à Fazenda Pública. § 3º Não pago o débito no prazo fixado no caput deste artigo, a Fazenda Pública poderá: I - comunicar a inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos servi-ços de proteção ao crédito e congêneres; e II - averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis.” O inciso II ora transcrito permite que a Fazenda Pública administrativamente promova a indisponibilidade de bens de seus devedores. Pende, no entanto, uma potencial discussão de incons-titucionalidade no dispositivo por permissão de medida tão gravosa pela via extrajudicial. No entanto, há de se notar uma tendência de utilização de meios extrajudiciais bastante truculentos para cobrança de dívidas, tanto no Brasil quanto no exterior. A verificação de viabilidade normativa da adoção desses instrumentos em prol da eficiência é que necessita ser discutida de modo bastante cuidadoso.

  • Cap. 2 • DESENVOLVIMENTO DOS MEIOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS NA HISTÓRIA

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    No entanto, com o advento da Jurisdição, surgiu, como já dito, o veto para que as partes resolvam seus conflitos de modo coercitivo mediante suas próprias forças, criando-se o dever do Estado de resolver os conflitos aplicando o direito.

    O monopólio da jurisdição estatal, que é uma das características da centralização do Poder e da Violência do Estado Moderno, eliminou até recentemente – ou minimizou ao máximo – aquelas outras formas de re-solução de conflitos. Apenas a atuação do Estado-juiz era, em regra, aceita como legítima, visando pôr fim às ações privadas de “justiça com as próprias mãos” e quaisquer outras ordens coletivas, tradicionais ou comunitárias de resolução de conflitos tachadas de retrógradas ou pré-modernas2.

    Esse quadro permaneceu praticamente intocado até que, na 2ª metade do século XX, o crescimento da demanda jurisdicional fez com que fosse repensado o monopólio de jurisdição estatal e, então, fossem pensadas e/ou retomadas formas não estatais de resolução de conflitos. Nesse sentido há valorização das formas de autocomposição como meios de se desafogar o Poder Judiciário, como será exposto na sequência.

    Perceba-se que, após a Segunda Grande Guerra, os tipos de litigiosida-des se alteraram e o papel que a Jurisdição passou a exercer foi tornando o conceito clássico insuficiente na medida em que começaram a ingressar no Judiciário, exemplificativamente, demandas envolvendo a busca de direitos de minorias (como no caso norte-americano em que se modificou o enten-dimento e percepção do direito de igualdade entre brancos e negros – caso Brown vs. Board of Education of Topeka de 1954/1955), em clara função contramajoritária, e se ampliou a defesa de uma função garantística que tal poder deveria exercer.

    Em iguais termos, se dimensionou o uso de processos coletivos para defesa de categorias/grupos mediante o patrocínio de direitos por legiti-mados. Um exemplo atual é o das demandas coletivas patrocinadas pelo Ministério Público em prol dos afetados pelo rompimento da Barragem de Fundão em Mariana-MG3.

    2. Sobre isso cf. BAHIA, Alexandre. Recursos extraordinários no STF e no STJ: conflito entre interesses público e privado. 2.ª ed. Curitiba: Juruá, 2016. Cap. 1.2.

    3. Sobre o caso e a discussão quanto às soluções processuais que vêm sendo propostas, ver: VERSOS. Textos para Discussão – Poemas. Rompimento da Barragem de Fundão Dossiê TAC Governança, vol. 2, n. 1, 2018. Disponível em: . LOSEKANN, Cristina; MAYORGA, Cláudia (orgs.). Desastre na Bacia do Rio Doce: desafios para a universidade e para instituições estatais. Rio de Janeiro: Fólio Digital, 2018.

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    Percebe-se, assim, desde já, a insuficiência do conceito tradicional de jurisdição, a partir da Segunda Grande Guerra, apesar da literatura jurídica insistir em sua manutenção, a despeito das alterações brutais do papel dessa função desde então.

    De qualquer forma, vale a pena destacarmos que, qualquer que seja o modelo de jurisdição adotado nos dias de hoje, esta deverá ser lida a partir da Constituição, de maneira que toda jurisdição, seja ou não estatal, será sempre uma jurisdição constitucional. No que toca ao Judiciário, isso implica, em que, países como o Brasil nos quais há o controle difuso de constitucionalidade das leis, todo juiz, de qualquer grau – bem como qual-quer outro órgão responsável por resolver litígios –, tem o compromisso de fazer valer a Constituição e, logo, os direitos fundamentais (art. 5º, § 1º – CR/88).4 Além disso, em face dos arts. 4º, II e 5º, §§ 2º e 3º da Cons-tituição, eles também deverão levar sempre em conta os direitos humanos previstos em Tratados e Convenções Internacionais – fazendo o que vem sendo chamado de “controle de convencionalidade”.5

    2.2. DA GRÉCIA ANTIGA AOS NOSSOS DIAS

    O objetivo aqui não é uma reconstrução exaustiva do que foi a ju-risdição em tempos pré-modernos – a uma que desbordaria dos objetivos do presente, a duas que afirmar-se jurisdição, processo e ação em qualquer tempo antes da Modernidade e da invenção do Estado apenas pode ser feito por analogias e aproximações, sob pena de se cometer anacronismos. Quando o processo decorrente do Renascimento e da redescoberta do Di-reito Romano alçou este a dogma do que deveria ser o direito tentou-se apagar mil anos de história (referentes à Idade Média) e ligar os pontos entre o Direito Romano Clássico e a Modernidade através do uso da razão.

    Práticas e institutos clássicos foram trazidos à Modernidade como se fosse possível fazê-los valer em uma época totalmente diversa e sem o necessário esforço de “fusão de horizontes” (Gadamer/Koseleck – conforme

    4. CURI, Ivan Guerios; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Processo Constitucional Contemporâneo. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra, v. LXXXV, pp. 343-374, 2009.

    5. Cf. HITTERS, Juan Carlos. Control de constitucionalidad y control de convencionalidad. Comparación (Criterios fijados por la Corte Interamericana de Derechos Humanos). Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 26, n. 1, pp. 8-9, jan./jun. 2010; MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer. Reflexiones sobre el control difuso de convencionalidad (a la luz del Caso Cabrera García y Montiel Flores vs. México). Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 27, n. 1, jan./jun. 2011; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

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    buscando respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos e, desde que, não se mostre como um cavalo de tróia para os mesmos, de modo a fragilizá-los em prol de quem possui superioridade econômica e informacional.

    Neoliberalismo processual – Síntese das características

    a) preocupação predominante com a eficiência, gestão e produtividade em detrimento da correção; b) Captura das instituições - não se busca (e nem mesmo se assegura uma infraestrutura institucional) para o exercício socializador da prática decisória, mas somente a produtividade;c) se esvazia o papel formador das decisões, técnico e institucional, do processo, relegando sua estrutura problematizante a segundo plano; d) se busca uma aplicação massificante e em larga escala de provimentos; e) se busca a máxima sumarização da cognição e f ) o papel do juiz é fortalecido para o atendimento dos imperativos do mercado o que significa dizer que o aumento do papel judicial não busca nenhum objetivo de melhoria social.

    2.3.6. Democratização processualÉ a fase processual típica do atual constitucionalismo embasada no

    Estado Constitucional ou Democrático de Direito; na soberania do povo e nos direitos fundamentais; na participação ativa e responsável do Estado e dos cidadãos; na responsabilidade social; e na influência de todos os atores sociais na tomada das decisões.

    O denominado processualismo constitucional democrático parte dos macromodelos de estruturação do processualismo científico (libera-lismo processual e socialização processual) centrados em dogmas de protagonismo (das partes e advogados ou dos juízes) para demons-trar que estes não conseguiram resolver os problemas de eficiência e de legitimidade dos sistemas normativos (extremamente complexos) da atualidade. Há anos no Brasil vem se tentando empreender essa postura interpretativa no campo processual, que pretende ampliar o campo de análise da ciência processual para além do estudo dogmático ligado à legislação e propor uma análise macroestrutural do fenômeno processual.143

    143. Para uma análise mais panorâmica: NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2008. NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva: a litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas”

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    1A ATIVIDADE JURISDICIONAL

    1.1. CONCEITO E CONCEPÇÕES DE JURISDIÇÃO

    A função de dizer o direito (juris + dictio) face um litígio passou por muitas “mãos” na história ocidental. Antes que o Estado assumisse seu monopólio – ainda na fase imperial do Direito Romano – aquela com-petência passou por sacerdotes, reis, assembleias comunais, árbitros, etc. Mas essa não é uma história linear, eis que, mesmo quando a jurisdição passou a ser exclusiva do Estado ela se “espalhou” novamente, durante a Idade Média em um sem número de legitimados, públicos e privados – incluindo a Igreja Católica –, para, só com a Modernidade, retornar ao Estado e, mais recentemente, novamente ser franqueada a órgãos não estatais em conjunto com aquele. Tais meios não estatais foram tratados como “alternativos de resolução de conflitos” (Alternative Dispute Reso-lution – ADR) durante muito tempo mas, mais recentemente, a doutrina tem defendido que todos os meios de solução de conflitos sejam tratados como um leque de possibilidades para aqueles que procuram resolver seus litígios – algo que se tem chamado de “sistema multiportas”, como abordaremos mais à frente.

    Diz-se, tradicionalmente, da Jurisdição (estatal) que esta é a forma do Estado resolver litígios de forma imparcial e ele faz isso fazendo valer a sua vontade (que é a da norma jurídica) em substituição à vontade das

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    partes – já que estas não conseguiram se entender entre si.1 A jurisdição seria, pois, uma das manifestações da soberania do Estado, um poder que também é um dever, por força da Constituição (art. 5º, XXXV) e da norma (art. 140 – CPC/2015) que é exercido todas as vezes em que há um litígio e seus envolvidos acionam o Poder Judiciário.

    Um dos princípios da Jurisdição, como veremos, é que ela não atua ex officio – isto é, sem que haja provocação do ente responsável pela reso-lução do conflito – e que ela, então, apenas ocorre diante de “casos”, nunca de “teses”.2

    Outro conceito fundamental para o exercício da Jurisdição é que haja um litígio/lide, isto é, que à pretensão de alguém, corresponda a re-sistência de outrem, na clássica lição de Carnelutti:3 quando há interesses contrapostos isso pode ser resolvido através de um contrato, que faz com que interesses diversos produzam um resultado útil; no entanto, quando há um conflito para o qual as partes não conseguem perceber uma solu-ção, então este se transforma em um litígio no qual a pretensão a direito de um encontra resistência frente ao outro e, como não é dado às pessoas, em um Estado de Direito, fazer valer sua vontade pela sua própria força (a chamada autotutela, salvo hipóteses muito restritas previstas em lei, como tratamos na Parte 1), então os litigantes terão de procurar a solução por um terceiro não interessado (artigos 16 e 17, CPC/2015) – se à pretensão de um cede o outro não há litígio, mas composição de interesses, logo, não há necessidade de se movimentar a jurisdição.4

    Quando se diz que a jurisdição faz atuar a “vontade da norma” é pre-ciso nos aprofundarmos um pouco mais: em primeiro lugar, que a norma não possui vontade “em si mesma”. Ela é a estabilização de expectativas de comportamento, legítima porque feita através de um processo democrático

    1. THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. v. I. 58. ed. RJ: Forense, 2017. pp. 104-106.2. BAHIA, Alexandre. Recursos Extraordinários no STF e no STJ. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2016, pp. 39 e 224-225.3. CADIET, Löic; NORMAND, Jacques; MAKKI, Soraya Amrani. Théorie Générale du Procès. 2. ed. Paris: PUF,

    2010. p. 410.4. CARNELUTTI, Francesco. Instituições do processo civil. v. I. Campinas: Servanda, 1999. Cf., e.g.: “APELAÇÃO

    CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. EMISSÃO DE NOTAS FISCAIS E LIBERAÇÃO DO SISTEMA. OBJETIVO CONSEGUIDO EM FACE DE LIMINAR. PRETENSÃO QUE NÃO FOI RESISTIDA. EXTINÇÃO DO PROCESSO PELA PERDA SUPERVENIENTE DE OBJETO. 1. Para haver processo útil, deve preexistir conflito de interesses, que, quando qualificado por pretensão resistida, é lide. 2. De qualquer sorte, é certo que, depois de inau-gurado um processo regular e válido, não se perdeu o objeto demandado, mas notou-se sua voluntária satisfação, o que serve para retirar a qualificação de “pretensão resistida” do conflito de interesses, o que acaba por extinguir a existência da lide, que é a maior justificante do interesse processual. 3. Apelação Cível provida. Processo extinto sem resolução do mérito. (...)” (TJPR, AC: 6522245 PR 0652224-5, 5ª Câm. Cív., Rel. Des. Rosene Arão de C. Pereira, j. 25.05.2010).

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    no qual aqueles a que ela se submetem se reconhecem como coautores da mesma.5 Essa norma nada diz/quer sobre situações/pessoas, sendo, jus-tamente, geral e abstrata. É a atividade desenvolvida no processo, com a reconstrução dos eventos que formam a lide e a reconstrução do próprio ordenamento que irão determinar a forma como a norma será aplicada. Ademais, sempre é bom lembrar que as normas, ao serem redigidas, são pensadas para uma/algumas situações. No entanto, a realidade é muito mais complexa e, logo, os sujeitos do processo, ao debaterem sobre o caso, terão questões que não foram “pensadas” por quem formulou a norma, exigindo, assim, um exercício hermenêutico no qual normas prima facie aplicáveis (normas mas também precedentes, Súmulas, etc.) deverão ser confrontadas com o caso concreto para se determinar qual a correta para o caso e o sentido que a mesma terá.6

    Por fim, ainda sobre a “atuação da vontade da norma”, é preciso lembrar que a forma como se aplica o Direito para a resolução de conflitos no Brasil vem mudando sob vários aspectos. Um deles que é bom mencionar aqui é que, ao lado das normas jurídicas vêm surgindo outras “fontes” do direito com alguma autonomia – ainda que decorrentes daquelas. Precedentes, Súmulas (vinculantes ou não), decisões com efeito vinculante, repercus-são geral ou dadas em certos recursos repetitivos, decisões em incidentes como o IRDR (Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas) são hoje imprescindíveis à atividade jurisdicional. Se antes serviam apenas como complemento, hoje qualquer provimento passa por esses outros elementos. O CPC/2015, ciente da mudança, criou um microssistema para tratar dos precedentes (lato senso) e Súmulas – particularmente os arts. 926 e 927, mas também o § 1º do art. 489 e outros – para tentar dimensionar corretamente a forma como eles devem ser utilizados. À atividade jurisdicional de “dizer o direito” não corresponde apenas o confronto de leis a casos mas também daqueles outros elementos. Isso não tornou a atividade mais simples, como pensaram alguns no passado; ao contrário, ela ficou muito mais complexa:

    5. HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. Madrid: Trotta, 1998.

    6. No sentido dado por GÜNTHER, Klaus. Uma concepção normativa de coerência para uma teoria discursiva da argumentação jurídica. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n. 6, pp. 85-102, 2000. Ver também: BAHIA, Alexandre. A Interpretação Jurídica no Estado Democrático de Direito: contribuição a partir da teoria do discurso de Jürgen Habermas. In: CATTONI, Marcelo (coord.). Jurisdição e hermenêutica cons-titucional. BH: Mandamentos, 2004, pp. 301-357. PEDRON, Flávio Quinaud. A contribuição e os limites da teoria de Klaus Günther: a distinção entre discursos de justificação e discursos de aplicação como fundamento para uma reconstrução da função jurisdicional. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais. v. 2. n. 6. abr./jun. 2008. pp. 109-125.

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    se nenhuma norma fala por si e nem encerra automaticamente a solução de casos, igualmente precedentes (lato senso) e Súmulas não o fazem.7

    A função jurisdicional pressupõe que o órgão responsável por dar a solução (ou conduzir os litigantes à solução, no caso de mediação) seja imparcial, desinteressado (na solução do litígio a favor de um/outro) e, pois, equidistante aos litigantes.8 Apenas haverá observância aos princípios processuais, particularmente ao devido processo legal, se o julgador (árbitro, mediador, conciliador) tiver aquelas qualidades. Por isso a Constituição estabelece a estrutura e garantias do Judiciário, garantias das partes e prin-cípios como o já citado devido processo legal mas também o princípio da legalidade, etc. Dessa forma o órgão judicial (ou particular) responsável pelo caso deve ser previamente constituído por lei e, sendo ele pertencente à estrutura do Judiciário, a parte não pode “escolher” qual julgador irá tomar seu caso – ou o foro é de juiz único, e, logo, não há escolha, ou, havendo mais de um, é feito um sorteio (chamado de “distribuição”); ademais, é também a lei que prevê que caso o juiz escolhido tenha alguma causa objetiva que afete sua imparcialidade naquele caso, deve ser substituído – são os casos de suspeição e de impedimento (arts. 144-148 – CPC/2015).

    A jurisdição estatal (ou não estatal, mas delegada pelo Estado a par-tir da norma) é um poder mas também um dever que decorre do direito constitucional de ação – art. 5º, XXXV – que, portanto, como direito fundamental, funciona como “trunfo” contra questões de política9 que pretendam limitá-la/anulá-la a partir de justificativas metajurídicas, como “excesso de trabalho”, “lentidão do Judiciário”, “Justiça em Números”, “uso excessivo de recursos”, etc. Esse dever não se encerra em qualquer resposta; ao contrário, deve, sempre preferencialmente, visar uma resposta de mérito – isto é, aquela que soluciona o litígio.

    Nesse sentido, o art. 4º do CPC/2015 que confere às partes o direito à solução integral do litígio em prazo razoável (incluída aí, eventualmente, atividade satisfativa), princípio a partir do qual certas formalidades legais ou criadas pelos Tribunais não poderão (em regra) pôr fim ao processo antes que se chegue àquele objetivo. Antes do atual CPC/2015, por exem-

    7. BAHIA, Alexandre. Recursos Extraordinários no STF e no STJ. cit. Caps. 3 e 4. BAHIA, Alexandre. As súmulas vinculantes e a nova escola da exegese. Revista de Processo. v. 206. abr. 2012. pp. 359-379.

    8. Percebam que falamos em “imparcialidade” e não “neutralidade”, uma que vez que o mito da neutralidade há muito foi superado. Requerer imparcialidade implica, além das garantias legais, que o órgão julgador leve a sério o contraditório substantivo (arts. 7º-10) e a fundamentação das decisões (art. 489, §§ 1º e 2º).

    9. DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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    plo, um Recurso Extraordinário ao STF poderia ser extinto sem que fosse efetivamente julgado o caso porque o recorrente se esqueceu de juntar comprovante de tempestividade (isto é, comprovante de que o recurso foi interposto dentro do prazo) ou se o comprovante juntado estivesse bor-rado. Agora, ocorrendo questões como essas o Tribunal deverá dar prazo para que a parte corrija o defeito – art. 932, parágrafo único c/c art. 1.029, § 3º – CPC/2015.

    Tradicionalmente também se diz que a jurisdição é um poder-dever de “tutelar” (defender) os direitos materiais violados ou sob ameaça de violação.10 No entanto, desde a perspectiva da concepção constitucional de processo aqui utilizada (cf. Parte 1), é preciso, de uma vez, superar-se tais conceitos. A ideia de “tutela de direitos” ainda parte de uma visão socializadora do processo que supõe protagonismo do juiz e uma quase “menoridade” das partes em litígio: ora, nem as partes e nem seus direitos precisam ser “tutelados” pelo juiz (ou quem exerça a jurisdição). O que se pretende com o exercício da Jurisdição é um provimento e não uma tutela. A partir disso podem ser pensados vários provimentos diferentes que a Jurisdição pode visar: dar a certeza quanto à existência/inexistência de um direito (função declarativa); proteger um direito contra uma ameaça de lesão (função preventiva/inibitória); reparar uma lesão já ocorrida restaurando as partes, tanto quanto possível, ao “status quo ante” ou convertendo o dano em prestação pecuniária (função condenatória/sancionatória); constituir ou desconstituir uma situação jurídica (função constitutiva).

    1.2. ESCOPOS (FINALIDADES) DA JURISDIÇÃO

    No Brasil há uma linha teórica dominante que aponta escopos (fina-lidades) jurídicas e metajurídicas para a Jurisdição.

    O escopo jurídico seria o de aplicar o direito: juris + dictio (dizer o direito), isto é, resolver casos (com suas particularidades) que são apresen-tados ao Judiciário aplicando-se a norma jurídica, geral e abstrata.

    Os escopos metajurídicos seriam as finalidades sociais, políticas e econô-micas de aplicação do direito, que partiria da capacidade do juiz (protago-nista) de verificar quais seriam os impactos sociais, políticos e econômicos de determinada decisão. Para essa linha teórica seriam necessários juízes

    10. THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. v. I. cit. p. 107. MARINONI, Luiz G. Técnica Processual e Tutela dos Direitos. 2. ed. SP: RT, 2008.

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    2O DESENVOLVIMENTO DAS TEORIAS ACERCA DA NATUREZA JURÍDICA DO

    DIREITO DE AÇÃO

    2.1. AS TEORIAS DE MATRIZ CIVILISTA OU TEORIAS IMANENTISTAS

    Os civilistas foram os primeiros a se debruçarem sobre o estudo do direito de ação.

    Como consequência, esses teóricos acabaram por subordinar, como veremos, o direito de ação ao direito material, ao aplicar sobre tal instituto a lógica da Doutrina Privatista. Essa teoria se expandiu sendo aceita durante todo o século XIX na Europa, somente entrando em decadência efetiva após a conquista da autonomia da própria Ciência do Processo.1

    Basicamente, o que temos é a afirmação de uma identidade entre o direito material e o direito de ação, sendo ambos dois lados de uma mes-ma moeda, ou seja, como movimentos de um mesmo fenômeno jurídico.

    Com a lesão do direito material, surgia a possibilidade de exercício, em juízo, do direito de ação pelo titular daquele.

    1. ARRUDA ALVIM, José. Manual de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhe-cimento. 17. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 149.

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    Nesse sentido, dispunha o art. 75 do Código Civil de 1916, revogado: “Art. 75. A todo o direito corresponde uma ação, que o assegura” (sem cor-respondente no Código Civil vigente de 2002); e com isso, reproduzia o pensamento de Savigny, um dos principais expoentes dessa linha teórica.2

    Aqui há um problema que escapa a tal teoria e que é, na realidade, muito comum: a ação improcedente ou ação infundada, na expressão de Arruda Alvim.3 Ora, afinal não se consegue explicar sob sua lógica como fica a situação daquele que demanda contra um réu, mas tal sentença afirma que o pedido não tem fundamento em face deste, pois não houve a tão valorizada lesão ao direito material, que supostamente daria acesso e justificaria o exercício do direito de ação.

    Logo, não há como restringir exercício do direito de ação somente àquele que terá razão, afinal de contas, tal razão, que justifica a procedência do seu pedido somente será declarada ao final, e não no início do processo.

    2.2. A AUTONOMIA DO DIREITO DE AÇÃO: O DEBATE ENTRE ABS-TRAÇÃO E CONCRETUDE

    Paralela à aquisição de autonomia da Ciência do Processo, assistimos também à abstrativização do direito de ação.

    Um marco para o debate que conduziu a ideia de abstrativização do direito de ação foi a polêmica que se instaurou em Windscheid e Muther. Como leciona Bini de Mattos,4 Windscheid inicialmente faz uso da expressão alemã Anspruch para significar pretensão e, com isso, alterando o sentido assumido anteriormente por Savigny, que a igualara ao direito material.5 Mas a pretensão não é equivalente ao direito de acionar o Estado, por sua vez, a Klagerecht, configura-se como um direito de acionar diante do Estado o órgão jurisdicional, exigindo tutela jurídica.6 Assim, explica Chiovenda que

    2. THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. v. 1. 56. ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2015. p. 151.

    3. ARRUDA ALVIM, José. Manual de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhe-cimento. 17. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 149.

    4. BINI DE MATTOS, Bruno Ferreira. Processo e Prescrição Civil. Curitiba: Juruá, 2009. p. 22.5. Chiovenda (A ação no Sistema dos Direitos. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003, p.

    11) leciona que: “Windscheid afirma que o que nasce da lesão, por exemplo, do direito de propriedade não é o direito de acionar [Klagerecht], mas o direito, por exemplo à restituição da coisa contra o possuidor; e essa obrigação, como toda outra obrigação, somente se configura em direito de acionar enquanto não seja satisfeita”.

    6. CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no Sistema dos Direitos. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003, p. 13.

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    para Muther, o direito de acionar é um direito subjetivo público, distinto tanto quanto ao seu sujeito, quanto ao seu conteúdo.7

    Como preleciona Tarello:

    [Windscheid] Em um ensaio de direito romano procedia à “construção dogmática” da actio observando que a mesma nada mais seria que o direito metaforicamente em referência ao seu nascimento pela tutela concedida (ou prometida no édito) pelo pretor; que no caso dos direitos reais a actio seria o nome dado ao direito obrigacional (por ex. de restituição) que surge de uma violação; que o direito (subjetivo) como “senhoria sobre a vontade (dos outros)” (sobre a vontade do devedor, nos direitos obriga-cionais e nos direitos reais violados) se afirma como pretensão (Anspruch) nos confrontos do obrigado (ou contratado como tal); e que se deveria descer à construção civilística do direito real como viga da pretensão ou de outras obrigações. Imediatamente um outro civilista, Theodor Muther, abre uma polêmica inspirada provavelmente pela discussão sobre os direi-tos públicos subjetivos estimulados pelo livro de Karl Friedrick Wilhelm Gerber e pela tendência, no âmbito daquelas discussões, a ver no direito privado o pressuposto e o substrato de direito público (concebido este último em modo ainda novo); Muther se opõe a Windsheid ao afirmar que a actio seria um direito que corresponde a uma obrigação, daquele que ainda não é o devedor em reação ao direito subjetivo que se faz valer , mas sim do Estado que deve ofertar a tutela jurídica (no direito romano o pretor devia conceder a fórmula); a actio em face disso não seria uma nova veste de um direito subjetivo privado, mas sim um direito subjetivo público que possui como pressuposto o direito subjetivo privado; e tal direito subjetivo público nos confrontos com o réu consiste em coagi-lo para que cumpra as obrigações (de direito privado) (tradução livre)8.

    A conclusão, tem-se pela percepção de que não se pode confundir o direito material lesado e o direito de ação. O último, por sua vez, subdividira-se em dois:

    (a) um direito titularizado pelo ofendido à tutela jurisdicional e, portanto, dirigido contra o Estado; e

    (b) um direito do próprio Estado de eliminar a lesão jurídica, voltando-se contra a parte causadora da lesão.

    7. CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no Sistema dos Direitos. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003. pp. 13-14.

    8. TARELLO, Giovanni. Dottrine del processo civile. Bologna: Mulino, 1989. pp. 35-36.

  • TEORIA GERAL DO PROCESSO – Dierle Nunes • Alexandre Bahia • Flávio Quinaud Pedron

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    Degenkolb e Plósz, avançando na discussão, irão afirmar que o direito de acionar deve ser compreendido como um direito subjetivo público, mas independente do direito material, uma vez que tal direito, inclusive, pre-existe à demanda, sendo por esta, na verdade, exercido.9 Assim, o direito de ação, agora, tornava-se um direito abstrato sem que, com isso, houvesse uma dependência do direito material.10

    Aqui, observa-se que o problema da teoria civilista foi solucionado: mesmo diante de uma sentença que negue a procedência do pedido do autor, não se pode negar que terá havido o exercício do direito de ação. O seu pressuposto, então, será a alegação de um interesse abstratamente protegido pelo Ordenamento Jurídico.

    A partir daí, pode-se dizer que a ação é um direito:

    (a) subjetivo;(b) público;(c) autônomo; e(d) abstrato

    Wach insurge-se contra a ideia de abstrativização do direito ação. Ele concorda com a tese da autonomia, mas advoga a tese de que o direito de ação deve ser entendido como concreto: pois a tutela jurisdicional buscada pela parte é condicionada a proteção concreta do seu interesse, de modo que somente pode-se falar em direito de ação para o titular que obtiver provimento final favorável à sua pretensão.11

    Com Tarello se percebe que:

    [...] Wach iniciou, a partir de 1885, a elaboração de uma nova construção dogmática de processo sobre as bases de uma enésima doutrina da ação civil: a mesma seria um direito autônomo devido ao particular nos confrontos do Estado, fundado sobre pressupostos substanciais de direito privado, e tendo por objeto a prestação por parte do Estado de um pronunciamento favorável. Colocar tal provimento “favorável” como objeto do direito “au-tônomo” de ação significava, claramente, pensar a sentença como atuação do direito substantivo objetivo (além do direito processual), a situação subjetiva do réu não aparece (como na construção de Degenkolb) como um dever, porque a única situação passiva qualificada é aquela do sucum-

    9. CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no Sistema dos Direitos. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003, p. 15.

    10. THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. v. 1. 56. ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2015, p. 152.

    11. MARCATO, Antônio Carlos. Procedimentos Especiais. 17. ed. São Paulo: Gen/Atlas, 2017. pp. 12-13.

  • Cap. 2 • O DESENVOLVIMENTO DAS TEORIAS ACERCA DA NATUREZA JURÍDICA DO DIREITO DE AÇÃO

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    bente (situação de sujeição). Assim construída a ação, a relação processual toma uma conformação diversa daquela teorizada por Bülow e Degenkolb: Wach de fato criticou a ideia que o processo fosse uma única relação de direito público (de três lados) formal e autônoma do direito substanti-vo, e sugeriu de distinguir duas relações diversas, uma entre as partes e outra entre elas e o juiz; a relação entre as partes e o juiz seria centrada sobre a pretensão à tutela jurídica (Rechtsshutzanspruch) ou pretensão a sentença favorável e pode muito bem não cobrir a atuação de um direito subjetivo nos confrontos de um (outro) particular, como por exemplo nos casos nos quais se faça valer puramente o interesse na existência ou inexistência de uma relação (ação declaratória): onde o interesse jurídico de agir não se confunde com o direito subjetivo (disciplinado pelo direito privado substantivo) mas seria uma entidade autônoma (disciplinada pelo direito processual) inerente à relação entre as partes e o juiz. Também na teoria de Wach o processo parece entendido “objetivamente” e a relação processual como “autônoma”: mas se trata de uma autonomia ambígua, realizada com a duplicação da posição subjetiva em duas figuras (direito subjetivo e interesse de agir).12

    Chiovenda, contudo, muito influenciado por Wach, no início do século XX, sustentará que a autonomia do direito de ação deve adquirir a forma de um direito potestativo. Isso porque para o autor italiano a “vontade concreta da lei” não depende do processo para se realizar, mas diante do descumprimento da lei, deve o processo fazer concreta a “vontade da lei”.13 A noção de direito potestativo é aqui importante, pois na teoria geral do direito, os direitos protestativos configuram-se sob a forma de um “poder” titularizado por alguém para “influir, com sua manifestação de vontade, sobre a condição jurídica de outro, sem o concurso da vontade deste”.14 O réu simplesmente deve se sujeitar ao poder titularizado pelo autor.

    2.3. A TEORIA ECLÉTICA DE LIEBMAN2.3.1. Pressupostos teóricos

    Apesar da existência de inúmeras teorias para se explicar a ação, desde a imanentista (a todo direito material estaria imanente um direito

    12. TARELLO, Giovanni. Dottrine del processo civile. cit. pp. 40-41.13. CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no Sistema dos Direitos. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte:

    Líder, 2003.14. ARRUDA ALVIM, José. Manual de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhe-

    cimento. 17. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 152.

  • TEORIA GERAL DO PROCESSO – Dierle Nunes • Alexandre Bahia • Flávio Quinaud Pedron

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    Subjetivos Juiz: órgão investido de jurisdição.Parte: Capacidade de ser parte.

    De existênciaObjetivos Existência da de-

    manda

    P r e s s u p o s t o s processuais

    De validade

    Subjetivos Juiz: Competência e imparcialidade.Partes: Capacidade processual e capa-cidade postulatória

    Objetivos Intrínseco: respeito ao formalismo pro-cessual.Extrínseco: Ausên-cia de Perempção, litispendência, coi-sa julgada, conven-ção de arbitragem, entre outros.

    Não se pode ainda esquecer que a teoria da relação jurídica, em suas várias derivações, impõe às partes um papel coadjuvante, eis que a decisão deverá ser formada com, ou sem, o auxílio técnico do debate processual. Nessa perspectiva teórica, o procedimento representaria tão somente a manifestação extrínseca do processo, sua exteriorização através dos atos do processo, mas desprovido de finalidade. Seria uma ordem puramente formal imposta pelo fenômeno processual. O procedimento seria mera ex-teriorização do processo, destituído de finalidade.

    Ainda dentro do marco da teoria do processo como relação jurídica, Bülow procurou delinear uma categoria técnica por ele denominada “pres-supostos processuais”. No entendimento do próprio autor:

    Se o processo é, portanto, uma relação jurídica, apresenta-se na ciência processual problemas análogos aos que surgiram e foram resolvidos, a respeito das demais relações jurídicas. A exposição sobre uma relação ju-rídica deve dar, antes de tudo, uma resposta à questão relacionada com os

  • Cap. 4 • REGRAS E PRINCÍPIOS PROCESSUAIS CONSTITUCIONAIS (FUNDAMENTAIS) – MODALIDADES

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    É preciso que o objeto do processo fique bem claro e definido para que sobre ele possa o réu manifestar sua defesa. Daí porque, sendo o pedido do autor o objeto da causa, não pode o juiz decidir fora dele (extra petita), sob pena de surpreender o demandado e cercear-lhe a defesa, impedindo-lhe o exercício do pleno contraditório, da mesma forma, não pode julgar abaixo (citra ou infra petita), nem acima (ultra petita), dos limites da lide estabele-cidos pelo pedido do autor (art. 141 e art. 492, CPC/2015).

    Pontue-se que “os pedidos, no direito processual, devem ser interpre-tados estritamente, não podendo ser alargados para incluir, na condenação, aquilo que não foi seu objeto e não discutido no processo, sob pena de infringência ao princípio processual da congruência”.559

    Dicas:

    - A sentença extra petita é nula porque decide causa diferente da que foi posta em juízo.

    - Tal não ocorre com a sentença ultra petita, pois decide além do pedido, e que, em vez de ser anulada pelo tribunal, deverá apenas ser reduzida aos limites da pretensão posta em juízo.

    - A sentença citra ou infra petita pode ser corrigida por meio de embar-gos de declaração, cabendo ao juiz suprir a omissão: a sentença ultra ou extra petita não pode ser corrigida por embargos de declaração, mas só por apelação. Nesse sentido, confira-se art. 1022 e §1º do art. 489, CPC/2015.

    4.13.3. Princípio da oralidade

    Para a corrente atenuada, o princípio da oralidade significa que o procedimento cognitivo ou de conhecimento possui um “palco principal”, um momento culminante, qual seja, uma audiência oral (audiência de instrução e julgamento), na qual o magistrado ouvirá as testemunhas, as partes, e ocorrerão os debates orais. Esta parece ser a forma de acatamento do princípio da oralidade em boa parte dos sistemas processuais.

    Para que a oralidade obtenha todos os seus resultados, são adotados outros princípios técnicos, quais sejam: a) imediatidade da relação en-tre o juiz e as pessoas cujas declarações ele deva valorar; b) identidade

    559. BRASIL, STJ, EDcl no REsp nº 1161015/RS, 4 T, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, J. 19.10.2010, DJe 25.10.2010.