do rio ao mar – impressões do brasil
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Livro do Turista Aprendiz com as produções dos alunos do Módulo II do projeto. Participaram da publicação 20 alunos que se destacaram nas oficinas da primeira etapa do projeto, ocorridas em 2014 nas Bibliotecas Parque do Alemão, Estadual, de Manguinhos e da Rocinha.TRANSCRIPT
PROJETO TURISTA APRENDIZ
Praga Conexões
1a edição
Rio de Janeiro
2015
Do Rio ao marI m p r e s s õ e s d o B r a s i l
Do Rio ao mar: Impressões do Brasil© Praga Conexões © Turista Aprendiz
CoordenaçãoMaria Pereira
Consultoria e organizaçãoRoberto TaddeiIsabel Ostrower
P 436r Pereira, Maria
Do Rio ao mar: Impressões do Brasil. / Maria Pereira (Org.) – Rio de Janeiro: Praga Conexões, 2015.
Inclui Bibliografia, Projeto Gráfico
ISBN 978-85-69208-00-6
1. Poesia. 2. Literatura Juvenil. 3. Literatura Brasileira. I. Pereira, Maria. II. Título.
CDD - 22.ed. – 869.91
Orientação Textos Alice SoutoFlávio MelloGuilherme GonçalvesRafael Zacca
Textos Bruna AlvesBruno Lima Caroline Rodrigues Davi NascimentoDouglas de Paulo Emely Helen Estefani Basilo
Fabrícia MelloGabriel LeonneGabriel Mação Guilherme CunhaJuliana Lourenço Karen CamposLuana Batista
Lucas Silva Robson CascianoThainar XavierThamires Bonifácio Valeska Angelo
RevisãoHeyk Pimenta
Projeto gráfico e capaFernando Timba
Dentro das variadas maneiras de se definir o que é Cultura, a dimensão
antropológica vem ganhando cada vez mais força nas políticas públicas,
oferecendo uma compreensão que vai bem além daquilo que é produzi-
do por indivíduos ou coletivos, reforçando a interação e a modelagem de
identidades e de diferenças.
O projeto Turista Aprendiz utilizou com maestria conceitos e instru-
mentos baseados nesta dimensão, ampliando a reflexão de jovens sobre os
possíveis modos de existência e de convivência.
Este era o objetivo central do eixo de Formação do Favela Criativa,
programa da Secretaria de Estado de Cultura, da qual este projeto faz par-
te: além de disponibilizar ferramentas fundamentais para a sustentabilida-
de de empreendimentos e projetos culturais, contribuir para a qualificação
da formação cultural e artística de jovens de diversos territórios. Com o
Turista Aprendiz, eles viveram a incrível experiência de ser estrangeiros no
próprio país, dando um novo sentido para as suas raízes.
Assim, o projeto torna-se um importante resultado de um dos programas
mais arrojados e transformadores da Secretaria, o que nos traz imensa alegria.
Eva Doris Rosental Secretária de Estado de Cultura
Vera Schroeder Superintendente da Leitura e do Conhecimento
Por acreditar que o trabalho cultural e educativo, apesar de apre-
sentar resultados no longo prazo, é sem dúvida a ação mais eficaz
para cristalizar o comportamento do cidadão, é um grande prazer
para a Light fazer parte do Programa Favela Criativa, em parceria
com a Secretaria de Estado de Cultura, ANEEL e o Banco Intera-
mericano de Desenvolvimento - BID.
Composto por um conjunto de projetos, o Programa Favela Cria-
tiva oferece formação artística e especialização em gestão cultural a
jovens de 20 favelas do Rio de Janeiro e estabelece canais de diálogo
entre eles, possíveis parceiros e patrocinadores potenciais, e também
fomenta a reflexão sobre a cidadania e sustentabilidade através da
Cultura, beneficiando três mil pessoas de forma direta e 40 mil, de
forma indireta.
E certamente o Turista Aprendiz atingiu esse objetivo, ampliando
as referências culturais dos jovens, desenvolvendo suas habilidades de
expressão e reflexão sobre seu papel na sociedade.
Equipe Light
Sumário
10, Apresentação, Maria Pereira, Roberto Taddei e Isabel Ostrower
14, Prefácio Carlito Azevedo
26, Fabrícia MelloRelato Lírico
34, Davi NascimentoCéu; Lembrança; Noite em Sagarana
38, Luana BatistaCaminhos do Norte
44, Bruna AlvesRegião do Pajeú; Umbuzeiro; Oh, senhor!
53, Guilherme CunhaAbismo; Hematita: Procura-se: em verso ou prosa; Caligem
61, Gabriel LeonneTortura de Classe; Borborema; O menino que aprendeu a mandar beijos para o céu
73, Robson CascianoÁrvore da lembrança
79, Karen CamposNos pés das pedras-vidas
89, Valeska AngeloDois Irmãos – parte I, II e III; Dabucuri
97, Thamires BonifácioTerror à beira rio
101, Juliana LourençoOs quatro gatos
116, Gabriel MaçãoO Mbaêtata
123, Thainar XavierO homem do coração de pedra
137, Estefani BasiloProjeto Luz
152, Caroline RodriguesDo tambor ao mar
158, Emely HelenOxente
160, Lucas SilvaOlho d’água; Coração de folhas; Cerrado Seco
163, Bruno LimaUma história para lembrar
169, Douglas de PauloUma Aventura em Manaus, conhecendo o desconhecido
173, Sobre os autores
178, Agradecimentos
10 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Apresentação
Vinte jovens cariocas partiram em viagens para as regiões Norte,
Nordeste e Centro-Oeste do país em janeiro de 2015. O objetivo era
visitar cidades muito distantes do Rio de Janeiro, abrir-se ao choque
cultural e experimentar um deslocamento etnográfico para, a partir
dessa vivência, produzir textos não ficcionais, poéticos, ou criar his-
tórias ficcionais que ecoassem a viagem.
Antes, porém, todos eles participaram de um semestre de aulas
e oficinas de criação literária ao longo de 2014, dentro da primeira
fase do Projeto Turista Aprendiz, realizado nas Bibliotecas Parque de
Manguinhos, Rocinha, Alemão e Estadual, que integra o Programa
Favela Criativa.
Bruna Alves, Gabriel Leonne, Estefani Basilo, Emely Helen e
Fernanda Vidal viajaram para cidades dos estados de Pernambuco e
Paraíba, capitaneados por Flávio Mello, também professor do grupo
no primeiro módulo do curso. Conheceram seus mercados e feiras
livres, museus de arte popular, praias, rodas de ciranda e capoeira.
Participaram também de oficinas de ritmos e de recitais de poesia,
interagindo com artistas da região.
11Apresentação
Davi Nascimento, Guilherme Cunha, Karen Campos, Lucas Silva
e Thainar Xavier fizeram um percurso que chamaram de O coração
do Brasil é vasto, passando por Brasília, onde entraram em contato
com coletivos de jovens artistas e percorreram trilhas da Chapada
dos Veadeiros, em Goiás. Depois, em Sagarana, distrito de Minas
Gerais, mergulharam no universo que marcou a obra de Guimarães
Rosa, participando de festas de Folia de Reis, conhecendo as veredas
da região e as histórias dos sertanejos. A aventura foi conduzida por
Maria Pereira, coordenadora do Turista Aprendiz.
Bruno Lima, Caroline Rodrigues, Juliana Lourenço, Luana Ba-
tista e Robson Casciano seguiram a rota Do reggae ao batidão, ao
lado do educador Guilherme Gonçalves, que já acompanhava parte
dos alunos desde a Oficina ministrada na Biblioteca Parque de Man-
guinhos. Na capital do Maranhão, conheceram pontos de cultura,
museus, trabalhos de confecção de instrumentos musicais e dan-
çaram o tambor de crioula, expressão de matriz afro-brasileira que
compõe nosso patrimônio imaterial. Em Barreirinhas, visitaram os
Lençóis Maranhenses e depois seguiram para Belém, onde foram
recebidos por um coletivo de teatro. Finalizaram a viagem na Ilha de
Marajó onde, hospedados numa vila de pescadores, sentiram a força
dos búfalos brasileiros e aprenderam a dançar o carimbó.
12 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Fabrícia Mello, Gabriel Mação, Douglas de Paulo, Thamires Bo-
nifácio e Valeska Angelo escolheram viajar para a Amazônia, no ro-
teiro Raízes indígenas e o canto das águas, conduzido pela educadora
e também produtora do Projeto, Alice Souto. Encharcado de chuva
e navegando por imensos rios, o grupo percorreu Manaus, participou
de saraus com poetas da região e, depois de uma longa travessia pelo
Rio Madeira, chegou finalmente a Porto Velho.
Nessas viagens etnográficas, os jovens passaram por uma forma-
ção sólida, sendo desafiados a conviver com diferentes grupos sociais
e confrontar suas percepções sobre o Brasil.
Neste livro, coleção dos textos produzidos após as viagens, esses
jovens autores partilham as marcas de uma jornada inédita em seus
contos, poemas e relatos, e nos fazem reencontrar o turista aprendiz
Mário de Andrade. Não apenas no registro etnográfico, mas, prin-
cipalmente, na exploração do choque cultural como redefinidor de
nossa própria identidade, elaborada aqui a partir da narrativa em gê-
neros diversos.
Qual é o Brasil que surge a partir do contato entre adolescen-
tes de comunidades do Rio de Janeiro com conterrâneos nas regiões
mais distantes do território nacional? Quais são, afinal, as narrativas
que começam a se desenhar neste início de século 21 entre jovens
13Apresentação
brasileiros e que precisamos conhecer para participar deste enigma
chamado nação?
É este o convite que fazemos aos leitores deste livro, que se abram
aos universos apresentados aqui, ficcionais ou não, como registros de
um país ao mesmo tempo sonhado e esquecido. E, assim como nas
viagens de Mário de Andrade, que o exercício da alteridade fortaleça
nossa capacidade de enxergar, no outro, aquilo que também somos
ou esperamos ser.
Isabel Ostrower
Maria Pereira
Roberto Taddei
(Idealizadores do Projeto Turista Aprendiz)
14 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Prefácio
Ao terminar a leitura deste extraordinário livro que reúne poe-
mas, contos e narrativas de novíssimos escritores do Rio de Janei-
ro, livro que nos leva a visitar lugares tão distantes e de nomes tão
belos, lugares reais, como São José do Egito, Catarata dos Couros,
Cachoeira das Jibóias ou a comunidade ribeirinha de São João do
Tupé; livro que nos faz experimentar sabores tão especiais como o do
taperebá, do camu-camu, do tambaqui assado e do jaraqui frito; que
nos confronta com retirantes, manauaras, pajés, e até com o lendário
Mbaêtata; que nos faz dançar com tantos ritmos, do reggae ao tam-
bor de crioula; enfim, ao terminar a leitura deste extraordinário livro,
é impossível não exclamar: o Brasil ficou mais perto de todos nós,
ficou maior, ficou mais nosso.
A literatura sempre foi a arte de transformar desvantagem em
vantagem, o longe em perto, o impossível em corriqueiro. Muito an-
tes da invenção do avião, ela, a literatura, nos fazia voar em tapetes
mágicos, viajar no tempo e no espaço, sempre alimentando o nosso
sonho de conhecer o que não conhecíamos, de entender o extraordi-
nário, tocar o intocável. E tudo isso para ampliar a vida, negar suas
insuficiências, conhecer suas potencialidades, contribuir para que
15Prefácio
floresçam todas as flores do possível, que ainda vivem só como se-
mente enterrada no jardim do impossível.
Quando um grupo de escritores e poetas, como esses aqui reu-
nidos, se dispõe a viajar para além de si, turistas aprendizes, nôma-
des do coração, olhando, registrando, conhecendo, enriquecendo sua
capacidade crítica e inventiva com novas cores, novos sabores, no-
vas relações humanas, a literatura passa a, além de instruir e divertir,
cumprir sua missão mais secreta: transformar.
Como o próprio nome do projeto que o gerou sugere, Turista
Aprendiz, Do Rio ao mar - impressões do Brasil é um livro cheio de
trajetos, itinerários, errâncias, dos mais longos aos mais curtos. Dos
mais velozes, como a incrível perseguição entre cães e gatos de “Os
quatro gatos”, de Juliana Lourenço, um texto cheio de tensão e sus-
pense pelas ruas e vielas de São Luís do Maranhão, aos mais lentos,
vertiginosamente lentos, como a viagem de barco pelo Rio Madeira,
no Amazonas, narrada por Fabrícia Mello em “Relato lírico”, que
retrata tão bem e sem máscaras o desejo e as dificuldades do processo
sempre necessário de encontro com o “outro”, com o diferente.
Este é um livro cheio de brasileiros. O poeta Mário de Andra-
de, cujo livro Turista aprendiz inspirou o projeto que originou esse
novo livro, certa noite, estando em casa, em São Paulo, teve uma
16 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
espécie de “iluminação profana” que descreveu belissimamente no
poema “Descobrimento”:
DESCOBRIMENTO
Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.
Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro
de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu
Este livro também é cheio de brasileiros que nem todos nós, com
suas histórias, suas vidas. Vidas que conhecemos um pouco mais agora,
graças ao fenômeno da literatura e da imaginação, que diminuem as
17Prefácio
longas distâncias de um país tão imenso, graças ao olhar atento e ao
verbo ágil e seguro desses novos mestres-aprendizes da narrativa.
É assim que no excepcional conto “Caminhos do norte”, de Luana
Batista, somos apresentados a um personagem que narra em primeira
pessoa suas aventuras pela Ilha de Marajó para pagar uma dívida. A
jovem Luana se põe no lugar do personagem, organiza uma narrativa
em monólogo com mestria absoluta, cede sua voz a este personagem
de modo tão vivo e natural, que é como se ele estivesse na nossa frente,
conversando com a gente, contando sua vida. “Esse homem é brasileiro
que nem eu”. E agora faz tão parte da gente quanto aquele outro bra-
sileiro lá do Norte, pálido e magro, do poema de Mário de Andrade.
É assim também que no conto “Região do Pajeú”, de Bruna Alves,
de intensa simpatia social, nos deparamos com uma família fugindo
da seca, da dor, num calvário que termina em conquista e poesia.
Todos os membros dessa família são brasileiros, como nós. E uma de
suas poucas posses, a vaca Jurema, só realça essa atmosfera de falta e
escassez. Se como já se disse, somos humanos e nada do que é huma-
no nos é estranho, nós somos um pouco essa família fugindo de tudo
o que impede a vida de brotar.
Deixando um pouco em segundo plano a questão social, mas sem
esquecê-la, e privilegiando o aspecto psicológico, também de intenso
18 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
valor literário, “Abismo”, de Guilherme Cunha, parece ser o texto
que mais empenho colocou na criação e fixação de um personagem:
Ema. Uma mulher tão rica de tensões internas e valor dramático que
é quase maior que sua história, quase do tamanho de todos os muitos
fenômenos naturais que a cercam e abraçam. “Sou errante e um passo
em falso me faz feliz”, diz Guilherme Cunha em outro de seus textos,
definindo muito de sua poética.
Guilherme Cunha trabalha na fronteira entre a prosa e o poema,
de modo que talvez seja interessante ressaltar aqui, agora, os autores
que escolheram a poesia, ou foram escolhidos por ela, para sua ex-
pressão particular. O que ainda nos coloca sob o generoso descortinar
do mundo realizado por Mário de Andrade, que é tanto o prosador
genial de romances como Macunaíma e Amar, verbo intransitivo,
como o poderoso poeta de Paulicéia desvairada e Clã do Jaboti.
Davi Nascimento é o poeta do cosmos e dos elementos. Em Bra-
sília, mais que qualquer outra coisa, ele vê o céu, uma boca enorme
que ameaça comer tudo; sua poesia fala dos raios, do vento e da água.
Não perde de vista o homem, mas é o seu ambiente, o planeta e sua
circunstância cheia de luz e mistério (“sons que se diluem / no escuro
do sertão”) que acendem nele a chama do poema.
19Prefácio
Em seus poemas e na prosa de “O menino que aprendeu a man-
dar beijo para o céu”, Gabriel Leonne gira o radar poético para o ou-
tro extremo: em lugar da dimensão cósmica de Davi, ressalta aqui o
cotidiano feito de violência e injustiça: “Invadiram minha casa /Re-
viraram meu armário / Dizendo “cadê a porra da droga?” /Ajoelhei
implorando pela vida”. Açude, feijão roxo, colheita de milho, uma
exuberante proliferação de frutas e o real do semiárido nordestino
são alguns dos elementos concretos que sustentam sua poesia.
Uma mescla de narrativa cotidiana com alto lirismo é o que nos
traz a poesia de Valeska Angelo. Sua viagem pelo rio, pelas popula-
ções ribeirinhas, é feita de recorte de vozes, de imagens, de citações
literárias (Iracema, de José de Alencar, e Macunaíma, de Mário de
Andrade, fazem parte desse recorte). Com uma rica sonoridade, esses
poemas atingem o ponto alto na tematização lírica e política da cor
negra no poema “Dabucuri”: “Da mesma forma que no céu negro
/ dentro da água escura / lembrei do meu nego / Estou debaixo da
água / Um zumbido / Zumbi dos Palmares / Aqui ele é de cor parda”.
Emelly Helen realiza no poema “Oxente” uma aproximação brus-
ca e de alta voltagem poética entre a atividade de plantar, colher e
preparar a refeição, com a escrita e a leitura de poesia. Com olhos
atentos para o que vê, e ouvidos abertos para o que escuta, a poeta
20 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
atua como uma câmera e um gravador ao mesmo tempo. Seus versos
fluem como cinema. Nisso, seus poemas, aparentemente tão diferen-
tes da produção de Lucas Silva, com ela se assemelha. Pois também
Lucas Silva fala da criação que vem da terra semeada e da criação que
vem da mente dos poetas, mas enquanto na poesia de Emelly o que
ressalta é a alegria, dos versos de Lucas o que sobressai é o espanto,
ele escreve poemas que buscam reproduzir o grande espanto diante
da magia e do mistério da criação. Para ele o coração é “Tambor /
Máquina de vida / Fonte de mistérios”.
De grande sofisticação literária, usando recursos complexos para
falar do tempo, da memória, da viagem e da descoberta, é o conto
“Árvore da lembrança”, de Robson Casciano. Cheia de referências
míticas, essa narrativa envolve índios, totens, vida selvagem, a flo-
resta, a figura do antropólogo, e esses elementos surgem aos nossos
olhos enriquecidos por uma espécie de confusão mental do narrador,
o que dá, kafkianamente, grande qualidade literária ao texto. A perda
de contorno exato das coisas significa aqui, paradoxalmente, um ga-
nho de sentidos possíveis para tudo.
Karen Campos, em “Nos pés das pedras-vidas”, desenvolve vários
níveis narrativos. Ela começa analisando a narrativa jornalística sen-
sacionalista, daí salta energicamente para um nível narrativo antagô-
21Prefácio
nico ao do jornal popular: o poema. “Morro, como as ondas da jiboia
/ nos pés das pedras-vidas. / Renasço como o dia, / reconstruindo.
/ Me refazendo / somente para ti, Sertão.” Por fim, desenvolve uma
espécie de imitação da narrativa oral em volta da fogueira, narrativa
com todos os toques hiperbólicos típicos da tradição oral.
Também Thamires Bonifácio, no conto “Terror à beira rio”, se
utiliza de recursos narrativos tradicionais, que já são apresentados
na primeira linha: “Na cidade de Javé, no baixo Rio Madeira, muito
se fala de um acontecimento que até hoje aterroriza as famílias.” E
passa-se daí à história. Como em outros textos do livro, aqui a morte
de uma jovem é o motor da história. Como se vê, muitos desses no-
víssimos escritores de Do Rio ao mar – impressões do Brasil, não só
se deixaram influenciar pelas paisagens e lugares visitados, mas tra-
zem profundamente arraigados um modo de fazer literatura que tem
longa tradição no nordeste, das narrativas orais às histórias de cordel.
Uma das mais curiosas experiências apresentadas neste livro traz
a assinatura de Gabriel Mação, trata-se do texto: “O Mbaêtata”.
Aqui se vai, num salto sem escalas, do depoimento pessoal (inclusive
utilizando os nomes dos companheiros de viagem do projeto Tu-
rista Aprendiz) ao lance surreal e mágico (como a aparição do Boi-
tatá, o Mbaêtata do título), que impõe um desfecho originalíssimo
22 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
ao enredo. Não menos surreal é a narrativa, quase cinematográfica
pela precisão das imagens, de Thainar Xavier, “O homem do coração
de pedra”. Tratando um tema sério, o mais sério de todos os temas,
aquele que William Shakespeare resumiu na preciosa fórmula “ser
ou não ser?”, Thainar construiu um verdadeiro poema em prosa cheio
de detalhes e delicadezas sobre a pulsão de vida e a pulsão de morte.
“Projeto luz”, de Estefani Basilo, é outro texto que chega ao limite
da auto-ficção. Também construído como depoimento direto da via-
gem do grupo ao estado de Pernambuco, o texto de Estefani põe em
cena os outros turistas da equipe, Bruna Alves, Gabriel Leonne, Emely
Helen, Fernanda Vidal além do professor orientador. Porém, o recurso
da narrativa dentro da narrativa nos coloca em contato com um drama
cotidiano em dois tempos, um presente e um passado, da personagem
Leninha, uma brasileira como nós, para recordar o já citado poema de
Mário de Andrade. Aqui não se sabe em momento algum, ao contrário
do texto de Thainar, quando se passa da realidade para a ficção.
“Do tambor ao mar”, de Caroline Rodrigues, é um daqueles tex-
tos, citados no início desse prefácio, montados sobre trajetos, itine-
rários e velocidades. Uma rodoviária, uma casa no litoral, uma festa
típica, um caso de confronto entre aqueles que Mário de Andrade
chamava de “os donos da vida” e os que apenas a tentam viver, e outra
23Prefácio
viagem, dessa vez no tempo, confrontando duas visões do mundo,
dois instantes e um desejo. Neste conto se pode ler uma frase que
talvez seja representativa de toda a aventura do Turista Aprendiz: “o
Brasil não tem distância quando se trata de paixão.”
Também uma história de paixão, mas centrada no universo juve-
nil, é o que lemos em “Uma história para lembrar”, de Bruno Lima.
Relato que troca o final feliz pelo final aberto, sugestivo. Como aber-
tas ainda estão as estradas todas, pelo país e pela vida, para estes
jovens autores.
E muitos deles se encontram na narrativa que fecha o volume,
“Uma Aventura em Manaus, conhecendo o desconhecido”, de Dou-
glas de Paulo. Aqui estamos de novo em território amazonense, com
tudo o que isso supõe de pés d’água, chuva de meteoros, esplendor
cósmico enfim: “No caminho, vimos um arco-íris pela janela direita
do ônibus. Do lado esquerdo, o sol se punha e o céu era alaranjado.
Chegamos a Ponta Negra no finalzinho do dia. Dava para ver diver-
sos tons rosados, avermelhados, azulados e um pouco da mistura de
azul escuro com preto. Era a noite chegando.” Não se podia pedir
final melhor para essa aventura que nos levou a correr com cães e
gatos pelo Maranhão, molhar os pés em Sagarana, dançar na Ilha de
Marajó, fugir da seca do Pajeú, entrar no açude, brilhar como hema-
24 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
tita em Alto Paraíso, pendurar bandeirinhas em Borborema, sentar
à beira do Rio Preguiça (Maranhão), ouvir histórias de velhos no
sertão mineiro, aprender a belíssima palavra “dabucuri”, revisitar cri-
mes na região do Rio Madeira, desaparecer goela adentro do Boitatá,
contemplar o voo das araras azuis de Catarata dos Couros, receber a
benção do sol Recife, questionar o amor num cais de São Luis, ouvir
poetas em São José do Egito, mirar o mistério da vida num olho
d’água, navegar de voadeiras ao encontro de pajés.
No início desse prefácio anunciei que o Brasil tinha ficado mais
perto, maior, mais nosso. Do Rio ao mar – impressões do Brasil, fru-
to do projeto Turista Aprendiz, reunindo uns poucos jovens e uma
série de mestres empenhados, dá em grande medida a ideia de toda
a potencialidade contida nesta terra.
Não hesito em dizer que a literatura brasileira também chegou
mais perto de nós, também ficou maior e também ficou mais nossa,
graças a esses novíssimos autores. Se de algum modo consegui des-
pertar a curiosidade dos leitores para esse livro, estou recompensado.
Agora é assumir o seu lugar à mesa, longa mesa brasileira de tantos
sabores ainda por descobrir, e mergulhar os cinco sentidos na leitura.
Carlito Azevedo
26 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Fabrícia Mello
Relato Lírico
Os Turistas nas alturas...
Cortando as nuvens, atravessando os estados brasileiros, seguimos
nós, os aprendizes, perdendo nossa naturalidade carioca e nos me-
tamorfoseando manauaras, dispostos a nos entranharmos nas expe-
riências e mergulhar na imensidão negra que foi capaz de sensibilizar
os poetas e fazer transbordar de amores até o mais desatento ao som
do uhaa! Por cima dos banzeiros, ao gosto do taperebá e deslumbra-
dos com a paisagem que a natureza tratou de esculpir, seguimos, via-
jando com o corpo, a mente e os sentidos, seguimos nós, aprendizes,
à caça de novas experiências e com a bagagem cheia de curiosidade...
Acelera Diego!
Chegamos em Manaus perdidos do Rio de Janeiro, do horário e do
nosso guia, Diego, que tinha a incrível missão de nos guiar pelas aven-
turas que nos aguardavam pelos rios, pelas matas e construções arquite-
tônicas, pelos pratos tradicionais, pelos ônibus que sempre nos causaram
muito sono, pelos vocabulários e pelas histórias... Mas Diego sempre
27Fabricia Mello
chegava atrasado, acredito que propositalmente, afinal, essa condição au-
mentava muito nossa ansiedade. Foi assim que esperamos quase todas as
manhãs por ele, aguçados, e ele chegava no mesmo ritmo do barco que
nos transportou a Rondônia, mas isso já é uma outra história.
Sorvete de quê?
O sorvete, ah, o sorvete! Nossos paladares se atentaram aos pri-
meiros sabores peculiares amazonenses. Senhores, cogitem a pos-
sibilidade de experimentar uma dessas delícias, mas, por favor, não
idealizem nada comum, nenhum sabor tradicional, nada de morango
ou chocolate... Pensem no Cupuaçu, Açaí verdadeiro, Tucumã das
estrelas, Buriti, Camu-camu ou uma tapioca diferente, transforma-
dos em sorvetes da massa, um sabor incrível e forte, nada leve.
A tecnologia já chegou por aqui...
Aquele estereótipo de índio que todos acreditam, de um ser com
cocar e uma lança na mão, pronto a matar quem se arrisca a entrar
em sua mata, ainda existe sim. Contou-nos um senhor no barco que
uma dona chamada Maria morava sozinha na mata próxima a uma
tribo indígena e presenciou um evento em que os índios se juntaram
para matar um homem branco, que entrou na mata e se relacionou
com uma índia, mataram o cujo a pauladas...
28 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Mas felizmente aquela não foi a tribo que conhecemos. Visitamos
uma tribo “civilizada”, que por apenas dez reais por pessoa concordou
em mostrar os seus rituais. Mas senhores, não sejam apressados e
nem tirem conclusões precipitadas, esse dinheiro era apenas para a
manutenção da oca, afinal toda casa tem seus custos. Assistimos ao
curioso ritual de recepção. Alguns possuíam até Facebook, isso mes-
mo! Os índios, ou pelo menos boa parte deles, também começaram
a desfrutar da tecnologia atual, eles não são mais os mesmos que Ca-
bral encontrou por aqui. Isso é bom, pois se naquela época tivessem
acesso a esses meios, não teriam sido enganados tão facilmente...
Dois irmãos e uma mesma velocidade:
No quarto dia de viagem seguimos para o barco e, pelo rio Ma-
deira, que por dentro de sua lama esconde algumas ferinhas que po-
dem devorar algum corajoso que ouse imergir em sua tranquilidade,
fomos guiados.
Talvez, senhores, este seja o capítulo mais extensivo do relato, o
resultado do tédio e de inúmeros sentimentos diferentes que se con-
trariavam e se anulavam durante a estadia no barco.
O barco, que se chamava “Dois irmãos”, era bem velhaco e capenga.
Durante a viagem fez inúmeras paradas indesejáveis, que nos deixa-
29Fabricia Mello
vam sempre impacientes. Ele era grande, com três andares, o piso de
uma madeira antiga e esburacada, a pintura já estava lá pelo fim e os
banheiros tão sujos que às vezes chegavam a ser assustadores. Pelo teto,
espalhava-se uma quantidade insuficiente de salva-vidas. No primeiro
andar ficavam os mantimentos, no segundo, muitas redes estendidas
e os camarotes, no terceiro havia um ponto de distração, o salão onde
acontecia a manifestação da música popular brega amazonense.
Na calada da noite, às margens do Madeira, casebres foram se
destacando em toda sua simplicidade e despertando dúvidas de
como alguém tinha a tamanha coragem de morar na beira do rio
tendo como vizinhos cobras, corujas e jacarés, e ainda usando como
meio de iluminação o velho lampião...
Já na hora de dormir, bichos resolveram nos amedrontar. Em ple-
na noite era como se estivessem recorrendo ao lugar que era deles por
direito, besouros e baratas voadoras estacionaram na pia do banheiro
impedindo o trâmite, uma lacraia completamente envolvida nos len-
çóis nos arrancaram gritos...
A lentidão da travessia era agonizante e, por isso, dou um conse-
lho a qualquer turista que pense em fazer esse roteiro: Pense muito
bem! Principalmente se for algum morador de cidade grande acostu-
mado com o ritmo acelerado da vida, ou então alguém que sofra de
30 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
síndrome do pânico... Para os senhores terem uma fagulha de ideia,
ficamos em um barco grande de três andares, porém com a veloci-
dade de uma formiga. Durante o percurso, outro barco da mesma
proporção passou por nós e as pessoas a bordo nos acenaram com
tom irônico nas faces, além de deixar escapar muitas gargalhadas.
Parecíamos atração turística, pela nossa tamanha vagarosidade.
Uma casa flutuante atravessou o rio de uma margem à outra, com
o dobro da nossa velocidade e, para nos deixar ainda mais pasmos, as
canoas, isso mesmo!, as canoas ficavam a perder de vista de tão rápidas.
Já não bastava toda essa lentidão, o barco parou. Algo de errado
no motor fez com que a viagem não pudesse mais continuar, fomos
tomados por desespero, era inacreditável o que acontecia...
Ficamos parados próximo a um matagal que nos separou por me-
tros da imensa floresta que moldava os arredores do rio. Os mosquitos,
aquelas pestes, queriam nos devorar e a água barrenta não dava nem
para arriscar um mergulho. Disseram alguns curiosos que apenas à
noitinha iríamos retornar à lentidão do barco. E o que nos restou?
Esperar... Esperar... Esperar... Enquanto para muitos o dia foi
corrido, para nós, os turistas aprendizes, passou bem devagarinho.
Como essa gente manauara suporta encarar uma trajetória dessas
com tanta tranquilidade? Será que só turistas se sentem aflitos assim?
31Fabricia Mello
Mais tarde o barco retornou à sua funcionalidade em uma lentidão
tão severa que eu estava esperando o momento em que também os
ribeirinhos iriam rir de nós.
No meio de uma boa prosa, um bicho estranho invadiu o camarote
e interrompeu a conversa... Por alguns segundos nos entreolhamos para
observar a reação alheia. Quando um de nós se espantou, todos, num pulo
de desespero, saíram correndo gritando: Acho que é um rato! Todos do
barco se alarmaram e subiram para suas redes. Por instantes foi o maior
auê... Até que um senhor gritou: - É um pequeno inseto, sem desespero!
Na terceira noite, quando me ajeitava para deitar e a música brega
já ia diminuindo de volume, um som perseverante de buzina come-
çou a soar por todo barco, a luz ia e voltava e os passageiros se pu-
seram à beira do barco perguntando-se: O quê há? Eu gelei, tremi e
tentei não me concentrar naqueles burburinhos, mas era inevitável
pois, segundos depois, o barco parou e veio a notícia: vamos ancorar!
Tem uma forte chuva chegando por aí, se continuarmos já era... É
melhor não arriscar. E a tempestade foi diminuindo, até que cessou.
32 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Boto, traz a alegria de volta!
Olho para o rio Madeira, o clima hoje está meio fúnebre, céu cin-
zento e um interminável chuvisco parece afetar todos os passageiros,
alguns se jogam em suas redes, outros se juntam aos amigos para
participar de algum joguinho sem graça. Olhaaa, o boto!!! Alguém
grita. Arrisco-me a assisti-lo e a contemplar o pulo de uma criaturi-
nha feliz que talvez possa me contagiar. Mas ele parece fugir de vista,
pula lá longe, próximo às margens. Quando eu já ia desistindo, ele me
presenteia com o ar de sua graça...
Gotas de desespero:
Dentro do bendito barco passamos a maior parte dos problemas
de choque cultural. No penúltimo dia, já no finzinho da tarde, uma
forte tempestade nos atingiu, no meio do percurso as águas começa-
ram a entrar pelos cantos, as lonas tiveram que ser esticadas a fim de
conter a rajada. A imagem que se via era o branco da chuva tentando
ofuscar a bela paisagem que a essa altura já havia me enjoado. Feliz-
mente a tempestade logo cessou...
“Deus ouviu minhas preces”.
33Fabricia Mello
O encontro das águas:
Formado a partir dos afluentes Gabriel, Thamires, Alice, Fabrícia,
Valeska e Douglas, somos o “Rio Amazonas”. Agora, senhores, nossa
junção acontecerá no encontro das águas. Se acaso um dia passar por
lá e observar aquele encontro, não se esqueça: somos nós, os turistas
aprendizes, nos reunindo novamente!
34 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Davi Nascimento
Céu
Que boca é o céu
Que ameaça comer Brasília
Tudo cabe no céu da boca
As hélices e turbinas
Cabem os prédios
As torres de TV
Cabem todas as igrejas
O céu comeria
Cada peça do avião
Retorcendo com a língua
Cada cabo de carga
A língua desse céu
Ora ou outra se pinta como
A língua das crianças
Rosa quando não laranja
Roxo quando não vermelho
Sempre áspero e sem forma
35Davi Nascimento
A boca devoradora
Paira sobre as cabeças
Ignoramos a ameaça em silêncio
Dizem que por vezes Brasília
Fica mais próxima da garganta
Ainda mais próxima do que a noite
E tudo termina em raio
No bater dos dentes
36 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Lembrança
Toques líquidos do sino de vento
O som do sino de vento transpassa
O vidro a pedra e se derrama por toda casa
Permeia o espaço como o anjo transpassa
Os campos as árvores as ruas os prédios
E sopra nos meus ouvidos o mesmo líquido
A mesma água
37Davi Nascimento
Noite em Sagarana
Todo sono em Sagarana
É castanha do cerrado
As rosas pendem
De tão escuro
O mato molha nossos pés
Notívagos
Convites que o vento sussurra
Máquinas em galpões
Calado mistério que jaz
Em cada grão de arroz
Cada fibra de algodão
Líquidos nossos passos
Fincadas à sombra
Garras de onças
Cortam o silêncio
Lunar
O voo da coruja
E dos morcegos
Sons que se diluem
No escuro do sertão
38 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Luana Batista
Caminhos do norte
Então, você quer ouvir minha história... Companheiro, eu cresci na
periferia de São Luís do Maranhão, num lugar chamado Bairrinho.
A maioria das pessoas pobres de lá tem problemas em casa, e comigo
não foi diferente não, sabe? Papai era usuário de cocaína desde que
me lembro e nossa família estava na dureza. Lá nessa área acontecem
muitos roubos, nos noticiários não se fala noutra coisa. Eu nunca tinha
pensado em me envolver naquilo, pois apesar das dificuldades, eu via
longe, e corria atrás de ser uma pessoa digna e instruída.
Minha melhor lembrança de São Luís é o reggae. O reggae acal-
ma, vem da cultura africana e de lugares de sofrimento. Lá no bair-
ro tinha um grupinho que sempre me convidava pros descaminhos.
Eram tempos duros lá em casa, naquela semana meu pai tinha che-
gado muito machucado por conta das dívidas. A gente sabia que era
um aviso de que o pior estava para acontecer. Isso assustava muito a
gente, sabe? Mamãe chorava a noite inteira, no cantinho dela. Na-
quela situação eu me vi obrigado a fazer o que nunca pensei... Eu
pensava sozinho: o que é o certo a fazer? Eu sabia o que tinha de
39Luana Batista
fazer, mas não era o certo. Foi assim que eu me vi procurando o tal
grupo. Marcamos o assalto numa loja de eletrodomésticos lá perto
mesmo. Com o dinheiro do roubo, eu pagaria todas as dívidas do
meu pai e não deixaria ele morrer, estava preparado para o que fosse.
No dia combinado, eu e mais quatro seguimos para a loja, eu fiquei
na porta de vigia enquanto os outros anunciaram o assalto. Os pen-
samentos seguiam em minha cabeça: o que estou fazendo aqui? E
essa arma? Não quero matar ninguém, só quero salvar uma vida, uma
família, parece até irônico...
Era tanta adrenalina que ainda hoje parece um sonho, eu lembro
de pouco. Sei que na hora de ir embora, demos de cara com a polícia,
que tinha sido acionada. Os outros deram no pé com o dinheiro,
mas foram pegos e presos, eu soube depois... Eu consegui escapar,
me meti numa feirinha de rua, joguei a arma fora, tomei um ônibus
qualquer e fui sem rumo nem direção. A única coisa que tinha em
mente era que não voltaria. Eu tive muita vergonha. Fui parar no
porto e dormi numa canoa. Eu estava decidido a fugir e a conseguir
esse dinheiro por meu pai.
Fiquei um tempo pelo porto. De dia eu tirava um troco carre-
gando mercadoria e de noite, dormia por lá. Certa vez, eu tive uma
conversa com um canoeiro que dormia estacionado na doca e des-
40 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
cobri que ele trabalhava na Ilha de Marajó. Ele me ofereceu uma
oportunidade pra trabalhar no porto da Ilha. Tinha até um lugar pra
ficar. Era a minha chance, a oportunidade pra juntar um dinheiro. A
viagem seria longa e o trabalho puxado. Trabalho de estivador, dizia
ele. Eu não tinha nada a perder.
Chegando pelo rio, vi as docas e a costa da Ilha onde faria meu
novo começo. Estava sozinho e sem minha família, mas otimista. Es-
perava não demorar tanto aqui. O trabalho era pesado mesmo. Com
o tempo, aprendi a pescar e larguei o porto, que não dava dinheiro.
Agora eu ficava na feira e na pescaria. Já conhecia o local, me dava
com as pessoas. Era bem diferente do meu bairro, gostei demais des-
se lugar. Mas eu não estava em paz, tinha o meu objetivo. Enquanto
trabalhava, pensava somente nisso.
Nesta época, depois de um tempo numa pousada barata para tra-
balhadores do porto, morei com uma família de pescadores numa
dessas casinhas de madeira na beira do mar. Eles foram muito bons
pra mim. Estar junto ao mar me acalmava, e por alguns instantes os
pensamentos ruins sobre meu pai iam com as águas. Após o trabalho,
eu costumava voltar para a casinha, descansar um pouco e ir à praia
fazer uma boa caminhada. Terminava contemplando o fim de tarde e
dando um mergulho para garantir minha higiene mental. As pessoas
41Luana Batista
eram quietas e muito humildes. Eram como os búfalos que andam
por aqui, que são fortes para carregar o peso, mas parecem sempre
mansos. E assim as semanas seguiram...
O dinheiro que eu ganhava era pouco, mas sobrava para juntar, e isto
me confortava. Telefonei para os meus pais, mas não contei onde estava.
Disse que quando eu juntasse o dinheiro, voltaria. Meu pai não foi mais
ameaçado, mas sua dívida ainda existia, e a tensão era constante.
No mais, morar na Ilha não foi difícil. Os costumes foram sendo
incorporados em mim. Quase sem perceber fui me tornando um tí-
pico morador. Por mais que a gente trabalhasse, a preguiça fazia parte
do clima, e o tempo corria diferente. Fiz novas amizades num centro
comunitário perto da minha casa, onde encontrei o pessoal animado
do carimbó. Quis entrar para o grupo, e eles me receberam bem.
Além de distração, pensei que a dança poderia me dar um rumo, uma
nova perspectiva das coisas.
Entre essas pessoas conheci alguém especial, uma moça de olhar
sereno, sorriso doce. Me encantei logo de cara e parecia que ela tam-
bém gostava de mim. Nas aulas de dança, era sempre meu par e me
ensinava os passos com paciência e delicadeza. Eu não faltava ne-
nhuma aula, só pra ver aquele anjo, que dançando parecia voar. Um
dia, depois da aula, eu a chamei pra dar uma volta pela Ilha. A gente
42 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
conversou timidamente, tomamos água de coco e nos beijamos. De-
pois ficamos juntos e, desde esse dia até hoje, nunca faltou coco nem
beijo pra gente, eu e minha Chiquinha.
Mas como eu te dizia, teve uma tarde que o porto estava cheio e apa-
receu um trabalho arriscado. O povo precisava se alimentar, faltava peixe
e um temporal se anunciava, com cada trovão... Eu precisava do dinheiro
e fui pro mar junto com um companheiro. Nosso barco era pequeno e
velho, mas assim mesmo a gente foi. Enquanto esperava a rede, pensan-
do no meu anjo, o céu escureceu. O barco sacolejava sobre o mar agitado.
Nos afastamos da praia e eu não conseguia enxergar mais nada. Então
uma onda alta levantou o barco e o virou. Num segundo, parei no fundo
do mar, desnorteado. Nadei buscando a superfície na escuridão. Ondas
grandes bateram em mim com força, eu bebi muita água. Quando pude
respirar, abri os olhos e não vi mais o barco. Não podia mais voltar.
Fechei os olhos e pensei por um momento: e se me entrego, se me
deixo morrer, aqui, agora... Mas na minha cabeça passaram meus pais,
passou Chiquinha e meus sonhos mal começados. Tirei forças disso e
comecei a nadar sem parar. Recuperando o fôlego, pude enxergar uma
pequena luz. Nadei naquela direção, até sentir meus pés encostarem na
areia. Andei um pouco e me joguei na areia seca, meus braços estavam
tão pesados e o cansaço tão grande que cheguei a pensar que era uma
43Luana Batista
miragem. Depois, fui acordado pelos pescadores locais e levado para
um posto médico. Nosso barquinho também estava lá, pois a maré
havia baixado. Meu companheiro estava internado, mas sobreviveu
também. Ele foi resgatado por um dos barcos da praia.
Depois deste acidente, decidi voltar a São Luís para tentar sal-
var minha família. Meu anjo me esperou em Marajó. Ao chegar no
Bairrinho, nem passei em casa, fui direto para o traficante negociar a
dívida de meu pai. Lá, coloquei minhas economias na mesa e contei
minha história, de um modo mais resumido que esse que te conto
agora. Ele me disse que estava tudo resolvido, que a dívida já não
existia, que tinha sido paga e que meu pai tinha deixado a cocaína.
Fui correndo para casa e confirmei o que tinha ouvido. Meu pai
disse que a minha luta o inspirou na sua mudança, e que estava se
tratando em uma clínica, por vontade própria. E que pagou sua dí-
vida com os rendimentos da vendinha. Daí eu voltei, companheiro, e
construí esse lugarzinho que você vê aqui.
No final de tudo, penso que foi o amor que me trouxe pra cá. Aqui
eu o encontrei, e sou eternamente grato por isso. Tudo na minha vida
veio desse mar, de onde eu vim.
Essa é mais ou menos a minha história. E então, o que o senhor
vai comer?
44 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Bruna Alves
Região do Pajeú
Eu era um menino franzino e orelhudo, que morava no sertão de
Pernambuco com meus pais. Filho único, fazia o que queria quando
eles estavam cuidando do sítio, trabalhando. Subia no pé de umbu,
catava seriguela, montava nas cabritinhas, esbanjava e explorava tudo
o que tinha ao meu alcance.
Um dia, fui até o açude me refrescar, como sempre fazia, e vi que
estava secando. De pé eu tremulei... Se-can-do?! Mil coisas se passa-
ram em minha mente, uma mente de menino com 12 anos, que não
sabia fazer outra coisa além de merendar na escola. Logo depois, vi
um bezerro morrer. Sua mãe não tinha mais leite.
Vi os olhos de minha mãe molhados mesmo sem ter o que beber
nem poder catar o milho que não vingou. Não chovia há anos. Ela
não ganhava nem o do pão, porque não tinha onde colher e nem o
que colher. O cafezal estava seco.
Se-co! Cheio de mato, queimado de sol. O dono das terras cagava
pra nós, agricultores. Nós que cuidávamos de sua terra. Mas ele tinha
outras, tinha água e morava no litoral.
45Bruna Alves
Minha família vinha de uma longa linhagem de retirantes. Pobres
que dependiam de facão, macaxeira e fogão a lenha. Éramos retiran-
tes sem ter o que fazer com o gado morrendo, as cabras desfalecendo,
nem borboletas havia mais na minha cozinha.
Arrumamos nossas trouxas e fomos embora, nós, duas cabras e
nossa vaca, que se chamava Jurema e carregava três tonéis de água na
carroça. Fomos embora!
Papai, mamãe e eu.
Na metade do outro dia já estávamos a 20,7 km em direção ao
Norte.
Passamos por Brejinho.
Continuamos...
Sabe do que eu tive medo? Do frio, do vento naquela estrada de
terra à noite, do breu que era estarmos sozinhos no sertão. Passaram-
se dias... Não tomava banho há meio mês. Comida? Comia os tatus e
passarinhos que papai caçava para não ter que matar as cabritas. Elas
davam-nos o leite, que faz bem para os ossos, fortalece!
Jurema carregava as trouxas e mamãe não aguentava mais andar,
sentia dor em tudo e por todos. Para dormir tínhamos dois lençóis e
uma lona. Eu me divertia. Eles diziam que estávamos de férias. Mas
com o passar das noites e as dificuldades em encontrar o que comer,
46 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
percebi que estávamos a milhas de casa. Na verdade, eu vi que a nossa
casa agora era onde encontrássemos água!
As pernas foram fraquejando, a mente foi enlouquecendo debaixo
de um sol de 45º e um frio de 12º de noite. Já estava cansado! Mamãe
não se aguentava de dor e Deus não me aguentava de tanto ouvir pe-
dir proteção para que não fosse atacado por nenhum bicho selvagem.
A água acabou! Outra vez...
No meio da noite vi papai cavar com uma pazinha de pedreiro um
poço no barro seco para esperar juntar água. Estávamos perto de uma
estrada conhecida dele. Disse que seus pais também já tinham parado
ali. Lembrou-se que em seu tempo também havia porcos selvagens.
Ele os temia, pois suas presas mais fáceis e indefesas eram os retirantes.
“Eram porcos com presas enormes que tinham cara de malvados”,
disse meu pai.
Eu, já assustado, ouvi um uivo bem de longe. Acho que naquele
momento só pensava em não ser comido por nenhum lobo, porco
selvagem, lobisomem, ou sei lá. Minha mãe nada falava, mas estava
sentindo o mesmo. Do nada, percebemos que o poço estava enchen-
do, estava mesmo funcionando.
No dia seguinte acordamos mais uma vez com o barulho do sini-
nho de Jurema, que comia capim. Andamos mais um pouco e logo
47Bruna Alves
percebemos no horizonte uma margem de casas, talvez... Sei lá! Nós
andávamos a passos de formiga, né... Não tínhamos mais o que fazer
quando eu percebi uma cruz. Ela só podia ter vindo de Deus, nosso
Pai. Era uma igreja singela e amarela como ouro, gritei meus pais e
Jurema. As cabritinhas, que estavam amarradas, vieram também!
– Painho e Mainha, ói lá longe. Aquilo lá é uma igreja, num é?
Minha mãe chegou a chorar: “Deus ouviu minhas preces.”
Meu pai disse: “Depois de mais de 200 km, tava na hora de
achar uma cidadezinha que prestasse. Tenho fé que lá tem o que a
gente precisa.”
Andamos até a cidade. Ao chegar na igreja e conversar com o
Padre Cícero, que tomava conta da paróquia, meu pai contou a nossa
história e ganhou um pedacinho de terra deles. Lá conseguiríamos
nos reerguer e fazer da nossa lona um barraco, quem sabe do barraco
uma casa de sopapo e futuramente uma de tijolos e alvenaria.
Meu pai, emocionado com um sorriso de orelha a orelha, olhou
para minha mãe e disse: “Estamos no Rio Grande do Norte, ao norte
de São José, na região de Jucurutu. Acho que agora conseguimos nos
virar por alguns meses. Tem escola, água e muito serviço pra nós. De
fome a gente não vai morrer e menos ainda de sede, o Padre disse que
podemos construir uma cisterna como a da igreja e usar pra irrigar as
48 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
plantas, tomar banho e dar de beber à Jurema e às cabritinhas. Vamos
criar João aqui!”
Eu já estava de banho tomado e preparado para a missa. Era do-
mingo e Deus queria falar comigo - sempre fui devoto de nossa mãe,
Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré. E sei que quando avistei
aquela cruz lá no alto era para eu crescer aqui. Jucurutu não tinha
muita coisa a oferecer, mas eu sabia que ia ser ótimo nossa estadia.
Durante a missa, agradeci à minha Mãe Nossa Senhora e pedi que
viesse muita chuva para irrigar toda a região e o Pajeú também. Para
que pudéssemos plantar, logo naquela semana, e recomeçar do zero.
Após a missa, agradecemos novamente ao Padre Cícero e fomos para
o nosso barraco.
Ao chegar no terreno atrás da igreja, percebemos que havia uma
plantação de palma e, no cantinho, um mandacaru sem espinho que
estava florindo. Sorrimos daquela situação e fomos descansar, pois o
dia seguinte seria longo.
Em uma semana já fui à escola. Ficava na mesma paróquia que
nos recebeu tão bem. Era completamente diferente da escola que
frequentava quando morava em Pernambuco. Tinha água, merenda e
gente que sempre tentava ajudar nossa família. Era um paraíso perto
do sertão.
49Bruna Alves
Mas eu sentia falta de uma coisa só...
Não tinha glosa, não tinha repentista e nem tinha cordelista na
nova escola. Então, eu recitava e declamava alguns versos que apren-
di lá no Pajeú:
“Cajueiro abaixa a galha
que eu quero chupar caju
menina traga a cachaça
que eu quero tomar Pitu
menina diga a seu pai
que eu quero casar com tu.”
Logo fiz colegas e amigos. Pude curtir minha juventude nova-
mente e aproveitar a água do rio que banhava Jucurutu com minhas
novas amizades.
Cresci. Terminei meus estudos e logo quis mais, muito mais. Meus
pais estavam bem por lá. Tinham tudo o que pediram a Deus. Mas
eu queria mais que água, comida e horta, mais que vaca e cabra pra
cuidar. Eu queria desenvolver minha língua, meus conhecimentos
sobre os lugares, principalmente sobre o sertão e a cultura nordestina.
Eu escrevia sobre tudo, tudo o que eu imaginava ser, viver futuras
aventuras, conhecer novos costumes, tudo, tudo. Estava louco pra ir
para a faculdade.
50 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Me inscrevi no vestibular. Fiz e passei. Me inscrevi para Letras
e passei, para Agronomia e passei. Então eu fui viver. Fui morar, es-
tudar e trabalhar para o lado de outra cidade. Quando dei por mim
estava morando na Paraíba, declamando poesia nos cafés de João
Pessoa e escrevendo livretos. Hoje, participo de projetos patrocina-
dos pela Secretaria de Cultura de Campina Grande, dou aula na
graduação de Literatura e publico contos como este.
51Bruna Alves
Umbuzeiro
Eu e um umbuzeiro
Conheci um nordeste inteiro
Comi comida com tempero
E peguei cabra na mão
Eu e o sertão
Vi a caatinga, a seca e o molhado
Cheguei a suar um bocado
Até num açude entrei
Me molhei
Me banhei
com a água que o boi lambeu
Fui eu e a Paraíba
Fui eu e o Pernambuco
Fui eu e a Bahia
Fui eu e Deus
No meu sertão
52 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Oh Senhor!
Tenha paciência com essa juventude
Que tem nojinho de entrar no açude
Sabia que tem quem beba dessa água?
Não. Não é do seu interesse!
Se o nordestino bebe ou come
o problema é dele.
Mas se o carioca deixa de lavar a mão
é problema do mundo.
Então ...?
Não. Não é!
Meu caro, todo esforço é muito suado
E zoado pelo povo desunido da minha terra
Mas o que eu posso fazer sozinho?
Não é muito, mas sei que o que é escrito
É lido e o que é visto sempre existiu!
53Guilherme Cunha
Guilherme Cunha
Abismo
Crepúsculo. Ema já podia ver o céu se transformando com o pôr
do sol que gradativamente descia sobre as nuvens. Estava na hora,
o poente era o convite para que esse momento seguisse num ritmo
poético. Ela estava pronta, podia sentir a água em seus pés, carregan-
do-a para o abismo que estava a poucos metros. As forças das águas
atuavam em suas canelas, às vezes contrárias ao fluxo, às vezes em
direção ao destino. Em passos curtos, Ema caminhava. Enquanto
isso, o vento lhe contava ao pé do ouvido seus próprios segredos. Ela
podia ouvir, vindo das profundezas de seu consciente, uma música
quase esquecida, abafada. Olhando ao seu redor, podia ver nas mar-
gens do rio em que caminhava, árvores de troncos solitários erguidos
num convite ao abraço. Neles se viam faces que estampavam sorrisos
enormes e faziam escorrer lágrimas de seiva. Ema continuava cami-
nhando enquanto borboletas dançavam e tocavam amigavelmente
as palmas de suas mãos. No momento em que as delicadas libélulas,
que repousavam nas pedras que estavam no caminho, levantaram voo
para que Ema pudesse passar, ela olhou para baixo e viu um semblan-
54 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
te na água: era o seu rosto... Não aquele que vira no espelho assim
que acordara pela manhã, mas seu rosto quando tinha dez anos. Ema
sorriu, pois estava usando o batom vermelho de sua mãe, que sempre
a proibiu de usar. Levou as pontas dos dedos aos seus lábios, tocando
-os. Estavam quentes e macios. Olhou então para seu corpo e estava
usando o vestido que ganhara para sua primeira apresentação de balé.
Os pássaros cantavam uma melodia em tons precisos, similares ao de
um piano, e Ema rodopiava sobre as águas. Tentava recordar-se da
coreografia de sua primeira apresentação de balé e, de alguma manei-
ra, realizava-a com perfeição, como se não controlasse suas articula-
ções. As borboletas se confundiam com as pétalas das flores que eram
sopradas pelo vento, ambas participavam com Ema de sua dança.
Em ritmos leves, continuava a caminhar sobre as pequenas pedras
da água. Com corpo e alma em sincronia. De repente, a melodia dos
pássaros foi cortada pelo estrondo de um trovão. Ema olhou para as
nuvens negras no céu e, ao fundo deste cenário medonho, também
podia ver clarões que a cada pestanejada davam vida a uma imagem
que Ema ainda não conseguia distinguir. Sobre as águas continuou,
mesmo com a tempestade. A correnteza que atuava sobre suas pernas
agora parecia mais forte, como se quisesse atraí-la às pressas para o
seu destino final. Já não se via flores, já não se via mais cor. Tudo era
55Guilherme Cunha
cinza em Ema, seu vestido de balé se transformara em trapos velhos
que sua mãe guardava no porão. E com a agitação das águas, Ema já
não conseguia mais enxergar seu rosto sobre as pedras. O clarão no-
vamente apareceu no céu, e desta vez Ema pôde enxergar a silhueta
que se estampava atrás das nuvens. Pôde ver, então, duas mãos que só
se uniam com muita dificuldade, como se de alguma forma estives-
sem sendo obrigadas a se separar. Nos dedos de uma das mãos, pôde
ver, claramente, o anel que tinha ganhado de seu primeiro amor. O
anel que usava desde a primeira vez que fora posto em seu dedo. O
“para sempre” esculpido brilhava com a luminosidade dos raios. Uma
daquelas mãos, que unidas estavam sobre os céus, era de Ema. A ou-
tra portava também um anel, e Ema percebeu que era a mão delicada,
de dedos finos, de seu primeiro. Ele que viveu momentos intensos ao
lado de Ema, mas que também viveu momentos fora de si. Ele que
preenchia vazios com insanidade e loucura. Ele que correspondia um
amor de forma facciosa. Ele que deixava infinitas feridas no coração
de Ema, que sempre se recompunham involuntariamente. Ele que,
com suas perplexidades, completava as incertezas que ela suportava.
Passaram momentos tão reais e ao mesmo tempo tão superficiais
que, para Ema, o sentimento entre os dois era impreciso. Mas tal
imprecisão fazia crescer cada vez mais afeição por esta pessoa, que
56 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
oferecia não um simples romance, mas a vertigem das margens de
um abismo. E agora já não passavam de lembranças. Seu amor já
não era mais presente, nem futuro. Só a assombrava com um passado
que Ema tentava esquecer. Ele se foi, de uma forma tão... Injusta. E
agora os relâmpagos e nuvens negras se transformaram no sol laranja
de fim de tarde de que ele tanto gostava. Ema continuou a caminhar.
Já não via, não ouvia e nem sentia. Ema já estava prestes a chegar ao
abismo, a vibração da queda d’água se fazia sentir nas suas entranhas.
Tudo ao seu redor deixava de ser mágico, eram apenas árvores por
árvores, pedras por pedras, Ema por Ema. De alguma forma, Ema
não conseguia mais ver seu corpo, como se estivesse e também não
estivesse ali em sua pluralidade. Finalmente, Ema deu seu último
passo antes de não ter mais passos para dar. Estava na beira de tudo.
Imóvel, de olhos bem fechados, por alguns instantes. Com a cabeça
erguida, sem olhar para baixo. No fundo de sua mente, podia ouvir,
crescendo, aquela composição, antes abafada, dos porões da memó-
ria. Tomou coragem, inclinou sua cabeça para baixo, e aos poucos
foi abrindo os olhos. ABRIU. A trilha sonora cessou. Ema estava
perplexa, pois não via o que imaginara. Não avistava a queda d’agua.
Não avistava natureza. Não havia vista. Ema percebeu que embaixo
dos seus pés só havia carros, trânsito, ruas, pessoas e pessoas, andan-
57Guilherme Cunha
do, correndo. Ao seu redor, prédios, arranha-céus, guindastes. Ema
já não sentia mais a brisa de antes, e o som dos pássaros que antes
cantarolavam era agora barulho de buzinas e obras. Tudo era plano
piloto disforme, o concreto da capital. Ema não entendia porque o
abismo que imaginava já não era o que via, porque sua vida não saíra
como o planejado, porque tantos problemas e preocupações, porque
seu amor não estava ao seu lado, porque uma voz em sua cabeça a
todo tempo narrava tudo que via, ouvia, fazia, sentia e pensava. Eram
muitas dúvidas. Mas Ema não tinha tempo, estava na hora, o sol já
estava se pondo, transitando, convidando-a.
Foi como a primeira vez quando o viu, ele que sempre se despedia
com um convite, dizia: “Me encontre no pôr do sol”. Seu amor era o
abismo, a que Ema, finalmente, se entregou.
58 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
hematita
Pedras expostas em formato de cachimbo e fumaça. O antro-
pólogo nos propunha uma oferta: Das preciosas, seis seriam nossas
por um preço especial. Mas ainda tínhamos que comer, e os recur-
sos eram limitados, quase escassos. Voltamos logo (falamos). Sem
compromisso, jantamos. Com os trocados restantes, retornamos às
compras. Escolham a que brilhar para cada um (falou). E, para mim,
brilhou, naquela noite em Alto Paraíso, hematita.
“hematita: auxilia na circulação do sangue e reumatismo. Melhora a
autoestima.”
59Guilherme Cunha
Procura-se: em verso ou prosa
Turistas desconhecidos com ânsia de criação são flagrados em di-
versos pontos de Brasília cometendo calúnias. Boatos procedem ao
fato de que o grupo foi flagrado subindo os blocos do Teatro Muni-
cipal, num feito totalmente imprudente e que desrespeita a arquite-
tura de Niemeyer. Não satisfeitos com tal ato, a quadrilha também
foi vista desmazeladamente em mergulhos no Pontão do Lago Sul,
onde os banhistas são proibidos. Testemunhas, que almoçavam la-
gostas nas margens do lago ou que estavam de passagem em suas
lanchas, relataram que o grupo não só mergulhou como também pe-
gou pororocas como se estivessem na Praia de Ipanema. Uma guia
do Congresso Nacional ainda prestou queixa para a polícia local ale-
gando que os mesmos tentavam entrar de penetra em uma das visitas
guiadas. Os turistas seguem desaparecidos.
60 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Caligem
Eu gosto da sensação de andar no escuro. Não sinto medo, sinto a
explosão na minha mente. Quando ligo a lanterna, me guio por um
feixe de luz que ilumina o caminho de terra à minha frente e que me
dá a segurança de que uma finalidade existe em algum ponto desta
diretriz retilínea, mesmo que ainda não seja hábil para alcançar esta
realidade. Ainda assim, ouço diversos sons que, num simples mo-
vimento, desmistificam a imagem que a priori enxergo às cegas em
meu inconsciente. Porém, não me contento. Quando a desligo, pos-
so sentir além dos limites que meus sentidos me reservam, que não
satisfazem minha conduta moral. Despoluo o céu que me designa
milhares de constelações e estrelas céleres. Vejo muito além do que
fótons elétricos podem me proporcionar. Posso pressupor infinitudes
quando não distingo os planos a guiar-me próprio. Sou errante e um
passo em falso me faz feliz.
61Gabriel Leonne
Gabriel Leonne
Tortura de classe
Invadiram minha casa
Reviraram meu armário
Dizendo “cadê a porra da droga?”
Ajoelhei implorando pela vida
Gritos e lamentos não cessavam
As crianças só choravam
Fui arrastado para o beco
Mergulharam minha cabeça na água,
Me encostaram o fio desencapado.
“Coloca o saco no infeliz!”
Acordei com tapa na cara,
Mas o pesadelo nunca acabava
Sob o bute preto suplicava piedade
E reafirmava, “sou um trabalhador”.
62 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Depois das marcas da injustiça
Disseram: “Vaza vagabundo
Tu é mais um favelado”.
Saí desorientado, ensanguentado
As lágrimas iam me lavando.
Entrei no meu barraco
E abracei a todos desesperado.
Respirando mais aliviado
Agora fico sentado no banco
Aguardando o próximo esculacho.
63Gabriel Leonne
Borborema
Grande terra redonda
Vida terrena de rua
Fecundo solo seco
Que com o sereno
A morte se esverdeia
Terreiro com rachaduras de pés
Sinal de trabalho duro
Boca sedenta falando poesia
Até o açude vai
Caminhando em cantoria
Na semeadura do brejo
Lanço fava branca, orelha de vó
Feijão roxo e guandu
Todos na cova da vida
Planto o milho em janeiro
Para colher em São João
Maracujá, acerola, mamão
64 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
não preocupam
Porque da feira nunca desaparecerão.
De janeiro a abril
No semiárido nordestino
Desta formosura só sai uma brasileira
A seriguela filha do caju
Quem a acompanha é estrangeira.
A jaca indiana suculenta
E a manga verde amarela
Quem na folia olha seu rodado
Diz que é baiana sua forma bela.
A graviola entra no carnaval
Com sua forra carnuda
Falsa espinhuda!
Balançando no pé até julho.
O abacate, a pitomba
A cada dia de carnaval
65Gabriel Leonne
São foliões diferentes
Ora garrafinha ora redondo.
O cajá e a jabuticaba
Nunca chegam a tempo da folia
Ficam sempre rezando
Com São João, Toinho e Pedro
Pendurando as bandeirinhas
E acendendo a fogueira.
Menina caseira envergonhada
É a goiaba rosada
Chega na feira em agosto
Passa pela fruteira
E volta em outubro para casa.
São Chico talhando em angico
Abre a colheita do Sabiá;
Laranja, aroeira e limão
Já montando a árvore de Natal
Decorando com pitanga e pinhão.
66 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
O menino que aprendeu
a mandar beijos para o céu
Numa cidade no Nordeste brasileiro, zona de labuta, semiárida e
de mata branca, vivia alegremente, numa casinha bem humilde mas
espaçosa, um menino cuja graça era Turmalino, moleque arteiro e
sagaz, que morava com seu pai e sua avó.
Passava o dia brincando na beira do açude, mergulhava, rolava
na lama da margem, montava nas ovelhas, cabras, bodes, e em tudo
que andava e divertia, corria, corria e corria mais, imitava os pássaros
durante todo alvorecer.
Seu pai, Jandir, boiadeiro de sexta geração, dominava uma ma-
nada como ninguém, exímio cavaleiro. Como pai dedicado que era,
ensinou Mali, chamado assim em sua casa, como lidar com todas as
intempéries da profissão.
Vovó Inhá era uma cabocla que se desdobrava para fazer as von-
tades do moleque. Uma vó que dava gosto de ficar perto. Passava o
dia inteirinho cuidando dos serviços de casa. Quando ia ao quintal,
colocava seu chapeuzinho de palha com três fuxicos na aba, olhava
a plantação e regava, dia sim, dia não, seus milhos, mandiocas, favas,
feijão, verduras e legumes plantados no barranco perto do casebre.
Ela é quem tomava conta de tudo quando Jandir tinha que transferir
67Gabriel Leonne
a boiada de região. O tempo em que ele ficava longe de casa era gran-
de, pois tinha que cruzar todo o latifúndio da família para encontrar
pastos saudáveis.
De suas viagens, Jandir sempre trazia grandes histórias: um jacaré
que aparecia para dar um oi, uma cobra peçonhenta no meio do gado.
Sem contar que, quando alguns dos boiadeiros deixavam a retaguarda
e a onça surgia e pegava um boi, toda a manada se debandava e para
reestabelecer a ordem só com muita experiência e jogo de cintura.
Mali se sentava na varanda com seu pai depois dessas longas viagens.
Ele era um menino curioso e adorava prosear. No fim das histórias, vi-
nha com aquelas invenções de menino arteiro que se acha homem feito,
falando pelos cotovelos sobre as atitudes corajosas que tinha em seu dia
a dia de brincadeiras. O pai ria... Ria de montão daquelas mitologias.
Todas as noites vovó Inhá contava uma das histórias que ouvira
de sua mãe, descendente da tribo dos tabajaras, e o menino dormia
com ar de sonhador.
Logo ao acordar, Mali levantava e corria por toda a casa a gritar:
– Bom dia! Bom dia! Papai, vem tomar café!
Jandir, que estava sempre pelo terreiro conversando com seus
primos e amigos de trabalho, ouvia a doce voz e ia depressa para a
cozinha. Chegando, dava um abraço em seu filho e o levantava, em
68 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
seguida um beijo na testa de sua mãe. Então, o café era servido para
Jandir, e com leite para Mali. Pãozinho fresquinho e broa, feitos no
fogão a lenha do quintal, brotavam na mesa das mãos da velha cabo-
cla. Assim transcorriam as poucas manhãs em que o pai de Mali não
estava viajando.
Mas, não demorava muito, o moleque arteiro, com seu cabelo de
fogo e suas pintinhas amorenadas na maçã do rosto, ia se embrenhar
na mata dizendo que era um dos personagens indianistas da história
de sua avó. Sempre com uma vara de pau na mão, desbravava aquele
mesmo local.
Por ser tão inventivo, criou um espaço por entre o bambuzal onde
realizava brincadeiras autênticas, sozinho, ou melhor, com seu potinho
de palha cheio de louva-a-deus. Criava cabaninhas com a galhada do
chão; com o barro vermelho, pequenos morros como o que sua avó
plantava; com as linhas de tricô de Inhá, fazia varinhas de pescar; mas
nunca conseguia encher o seu buraquinho no chão, porque a água era
sugada rapidamente pela terra esturricada. Seu brinquedo preferido
era um caminhãozinho de madeira que o pai trouxera da feira de Ca-
ruaru, com suas quatro rodas vermelhas e um barbante amarrado em
sua frente, ele era puxado vigorosamente pelo menino, que subia nos
piores lugares, só para ver como o caminhãozinho se saía.
69Gabriel Leonne
Não existia nada que impedisse o moleque de abrir um sorriso de
ponta a ponta, mesmo quando vovó Inhá não o levava ao ensaio de
maracatu. Mali ficou durante uma manhã inteira quebrando bambu
com pedra dizendo que era para fazer a lança de caboclo do mara-
catu. Inhá era uma baiana do movimento, ou simplesmente dama do
passo, e não deixava de participar dos ensaios. Começara a levar Mali
para ver a festa, com o acordo dele se comportar e ficar quietinho
durante a reunião e também com a promessa de comprar, na volta
para casa, um doce de abóbora, que o menino adorava, na tendinha
do seu Maneco.
Mali, apesar de toda sua simpatia, era um menino muito tímido
para falar com adultos estranhos na rua. Em certo momento do ma-
racatu, ele entrou na ala das baianas e se meteu por entre os panos
coloridos da saia de sua avó. Ela percebeu logo e ficou impressionada
com a peripécia do moleque. Mirou-o com olhar de esporro, mas não
demorou muito para cair na risada. Antes que vovó Inhá falasse algo,
Mali se mandou com a criançada, fazendo brincadeiras de rua.
No fim de toda folia estava a carroça do Bastião, compadre e em-
pregado de Jandir, esperando Inhá e seu neto que cambaleava de tão
cansado. Naquela noite, Inhá se despediu das amigas e caminhou
gritando por Mali, que logo apareceu e deram as mãos, continua-
70 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
ram os dois caminhando pela Rua Calunga. Quando chegaram na
altura da tendinha do seu Maneco, Mali puxou o braço de sua avó e
apontou para a venda. Inhá já sabia o que o moleque queria, era o seu
doce predileto. Ela pegou sua bolsinha, decorada com ponto cruz que
ela mesma fez, puxou algumas moedas, e pediu para ele apanhar um
doce de abóbora e um de batata para Jandir, enquanto aproveitava
para pegar um quilo de sal.
Maneco adorava quando eles passavam por ali, afinal Jandir era
seu fornecedor e amigo de bar.
Inhá pagou os doces e o quilo de sal, agradeceu a Maneco e dese-
jou boa vendagem. Na saída estava Bastião, aguardando os dois, que
subiram na carroça e debandaram para o sítio.
Já em casa, o moleque deixou o doce de batata de seu pai numa
caixinha de madeira que ficava na mesa da cozinha. Sua avó foi es-
quentar a água para o banho. Sem perder tempo, Mali sentou na
porta de entrada olhando para o quintal e começou a abrir seu doce,
maravilhado, e comeu vagarosamente para que demorasse a acabar.
Enquanto comia não conseguia pensar em nada, a não ser no sabor.
Quando terminou, ficou muito pensativo... Sua avó estranhou o si-
lêncio e seguiu para onde ele estava. Viu o menino de cabeça baixa,
ajoelhou com dificuldades, levantou a sua cabeça e viu que uma lá-
71Gabriel Leonne
grima escorria. Inhá deu um forte abraço e perguntou o que havia
acontecido para ele estar tão sentido. O menino não sabia o que di-
zer, apenas miava tristonho. Até que depois de uma longa conversa
ele desabafou:
– Vovó, eu não sei o que acontece comigo. O meu amigo fala uma
palavra que eu não tenho para quem falar, por isso eu fico triste.
Inhá, experiente que só, já sabia do que se tratava e pensava na
resposta. No entanto, ela perguntou:
– Ocê sabe que vó sempre vai estar ao seu lado. O que te deixa
triste?
– Eu... Eu... Não encontrei mainha. Meu amigo falou que toda
mãe ia tá no maracatu, mas não encontrei a minha.
– Ocê sempre está com a sua, por isso não encontrou.
O menino parou de chorar e continuou escutando sua avó:
– Bote sua mão no peito e sinta. Tá vendo aquela estrela lá no céu?
Aquela! A mais brilhante. Então, sua mãe mora lá e quando anoitece
ela acende o fogo só procê consegui olhá a estrela, que brilha... Bri-
lha.... Como uma Turmalina colorida.
O menino abriu um sorriso tão grande, e pensou alto:
– Mainha liga a estrela só pra mim...?
– Sim, só procê. Me dê um abraço e vamo entrá pra banhá.
72 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Os dois se levantaram, se abraçaram e quando Inhá ia fechar a
porta, Mali olhou as estrelas mais uma vez. Eles ficaram parados até
vovó falar que estava na hora de ir. Mali colocou uma mão no coração
e com a outra mandou um beijo para o céu.
Eles entraram e Inhá fechou a porta.
73Robson Casciano
Robson Casciano
Árvore da lembrança
Sento-me às margens do Rio Preguiça, que não me transmite essa
sensação, mas sim contemplação. As árvores emparelhadas por toda
a imensidão compõem uma paisagem única. Pelo estado da madeira,
talvez meu barco não suporte mais do que alguns dias, mas há de me
aguentar, decidido que estou a seguir o convite das águas. Pulei delica-
damente para a sua popa, a fim de não prejudicar as emendas feitas à mi-
nha navegação. A correnteza me trouxe um galho grande, espesso, com
um trevo de quatro folhas na ponta. Decidi que este seria meu remo.
Mexo com o galho para frente e para trás tentando movimentar a
embarcação, mas está acordoada, então a solto – e a acalento. Começo
então minha viagem ao tempo desconhecido. Busco uma árvore que
revelará o meu passado e meu destino, e sei que estou perto. Passo por
dentro de um canal e alcanço os bancos de areia, onde faço questão de
saltar. A solidão destas pequenas ilhas é como a minha, elas e eu estamos
perdidos no tempo.
Esqueço às vezes minhas preocupações para observar os pássaros
cruzarem o céu azul, gorjeando feito a canção do Danúbio da Orquestra
74 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
de Viena. Na pequena ilha, encontro um cupuaçuzeiro, que me traz um
sentimento azedo. Mesmo assim, o pego e separo a casca dura de cor
castanho-escuro do fruto, e o levo até minha boca. As sementes brancas,
as cuspo. “Tão duro quanto isso somente a minha realidade, e meu medo
de saborear os fragmentos ácidos em minha memória”, penso comigo.
Avanço vagarosamente, com medo de perder a trilha. Sempre que
passo por alguma árvore deixo uma fitinha de Nossa Senhora da Apa-
recida, para reconhecer o meu caminho. Passo agora perto de um Farol,
que cogito visitar, mas opto por não ir. Se eu me distraio um pouco meu
passado ficará no fundo desse rio para sempre. Sigo para o norte e chego
até a pororoca, onde o rio corre depressa para o encontro das águas. Es-
tou tão longe da vila que só me restam duas fitinhas. Não ouso ir adiante,
mantenho-me fora do alcance do mar violento. Paro meu barco contra
uma rocha lodosa, grande. O lugar me parece familiar. Minha cabeça
começa a ficar confusa, como se entrasse em um turbilhão. Então me
recordo daquela noite: estava frio, escuro como um breu, partíamos de
volta para casa em um barco, quando batemos em algo e, neste momen-
to, estava eu na proa. O impacto imediatamente me jogou para fora e caí
de cabeça em uma rocha. Antes de perder a consciência, havia alguém
gritando por mim, mas o rosto era escuro, como se faltasse luz na me-
mória, ocultando-me esta peça do quebra-cabeça.
75Robson Casciano
Não tenho tempo de me recuperar desta lembrança, tenho de
continuar, e estou tão cansada... Recuo um pouco para seguir as fitinhas
e ter a segurança de que poderei retornar ao píer, todavia meu cérebro
me prega peças e atribui lembranças a lugares por onde não passei. A
memória é a última coisa em que posso confiar. Ponho-me a pensar com
o rosto mirado para as águas, que dizem ser o espelho da alma. O espe-
lho reflete meu rosto com uma interrogação. De onde vem a esperança
de que encontrarei minha alma naquela árvore?
Entro pela floresta, seguindo a intuição, que é meu único norte neste
momento. Ouço barulho de mato sendo levemente pisado, seguido por
um grunhido baixo. Esta sensação eu já havia conhecido antes. Lembro-
me de uma caça, um índio trajava tanga, tinha um cordão com presas,
uma lança e um arco e flecha nas costas. Sobre o seu corpo, uma tinta
verde parecia camuflá-lo. Havia também um homem branco carregando
uma câmera fotográfica, estávamos correndo no meio de uma flores-
ta junto de uma presença assassina, a lança foi arremessada contra essa
presença, que foi silenciada após um urro. Lembro de pensarmos que
tínhamos vencido, mas, sorrateiramente, saltou sobre o homem bran-
co a cria do animal ferido que, sedenta, desviou-se das flechas que lhe
disparavam e prosseguiu com sucessivos ataques a jugular do índio. Sua
silhueta deixava transparecer sua fúria. Depois, seguiu em minha dire-
76 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
ção e me encarou durante um longo instante e seguiu seu caminho. Sua
face escurecia conforme retrocedia, deixando somente a mim e os corpos
largados ao chão.
Diante desta visão brutal, questiono-me sobre quem era o “homem
branco”, pois ele estava presente em outra memória, mas não consigo
ver seu rosto. Começo a conectar as peças e me lembro vagamente de
uma foto enterrada sob uma árvore. Uma árvore que era, para mim, um
totem. Recordo de tirar aquela foto, onde ele parecia feliz ao centro de
uma roda de índios.
Durante este lapso, segui a corrente do rio, e agora tenho em minha
frente um píer antigo. Ao pisar nas madeiras velhas, elas rangem. Ando
por alguns minutos e chego num acampamento de casas de bambu, que
parece uma aldeia abandonada. Forço a porta de uma cabana, que se
abre. Entro em uma sala repleta de teias de aranha e formigas. Encontro
ao centro uma escultura colorida, feita artesanalmente, com formato de
cabeça de onça.
Fuxico outras cabanas e descubro que nelas existem objetos como
este, que eu reconheço serem totens. Representam espíritos da nature-
za. Cada pessoa tem seu espírito ligado a um totem, que o fortalece e
o protege, mas que também tem influência sobre seu comportamento.
Rebuscando meus objetivos, lembro-me da tal foto soterrada, e volto até
77Robson Casciano
a primeira cabana. Algo tinha me levado até ela, talvez o próprio totem.
Cavo com minhas próprias mãos a terra embaixo do chão de madeira e
encontro a fotografia.
Lembro-me então que antes daquela caça de trágico final, a tribo
estava reunida para um rito de passagem, todos rodavam, cantavam e
murmuravam palavras. Homens e mulheres mostravam suas vergonhas
a todos, e a única coisa que lhes cobria o corpo era a tinta vermelha. No
centro da roda estava o homem branco, o mesmo da caçada. Resolvi
fotografar, quando finalmente recuperei a consciência de que aquele que
estava ao centro era o meu pai, mas ainda não sabia o porquê de estar-
mos ali. Esta era a foto que eu buscava. Meu pai com os índios, que já
não estão mais aqui. Junto da foto há uma carta, onde está escrito: “Os
exploradores querem este território por sua riqueza natural e mão de
obra barata. Para terem a percepção de tal grandeza com os próprios
olhos, eles querem a sua ajuda, mesmo sabendo que você é um antropó-
logo, e não um bandeirante. ”
Olho pela janela da cabana e vejo o grande açaizeiro de quase vinte
metros que eu via no escuro de minhas lembranças. Sim, eu me lem-
bro de tudo... Quantas manhãs eu passei debaixo desta árvore, junto das
crianças índias, enquanto meu pai fazia sua pesquisa na tribo. Meu pai e
o índio foram as vítimas daquele filhote de onça que vingava o seu cria-
78 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
dor. Ele me deixou viver como se dissesse “estamos quites”. Depois disso,
fui adotada pelos índios que me deram como talismã o totem da onça.
Disseram-me que havia uma ligação entre nós, já que eu sobrevivi a seu
ataque na floresta. Depois a tribo foi expulsa pelos exploradores. Houve
uma luta. Eu caí no rio ferida e fui arrastada pela correnteza, até bater
com a cabeça em uma rocha e perder a consciência. Quem gritava por
mim, na minha queda, era meu pai pajé adotivo, sendo levado embora
pelos homens armados. Não posso descrever como tais memórias me
fazem sofrer, chego a pensar que preferia não as ter recuperado.
Retorno ao rio e não encontro meu barco. Estou sozinha e longe de
tudo. Olho para as águas e me vejo claramente. Tenho olhos de onça
ferida, que me ajudarão a encontrar meu caminho.
79Karen Campos
Karen Campos
Nos pés das pedras-vidas
O Sensacionalismo não é um gênero jornalístico novo. Em
1946, findado o Estado Novo, Francisco Clementino, diretor do
Jornal do Commercio, enviou Pedro Simas Oliveira à pequena
cidade de Sagarana, noroeste de Minas Gerais, para investigar o
caso de uma moça que fora enterrada viva. Diz o diário de Simas
que, chegando à cidade, o jornalista encontrou uma feira de ali-
mentos, onde buscou suas primeiras informações. Teria sido ali
que encontrou um contador de histórias, já em idade avançada.
Ao entrevistá-lo sobre o caso da enterrada viva, Simas foi convi-
dado para saber mais sobre essa história à moda antiga – à noite,
diante de uma fogueira, junto a outros ouvintes. Antes, porém,
o contador o levaria até a casa da falecida. Os papéis contam de
uma casa abandonada. Pedro pôde entrar sozinho e vasculhou
cada canto, em busca de alguma pista concreta. Entrou no quar-
to que provavelmente era o da moça, tudo estava no lugar. Uma
estante com livros no canto esquerdo, a cama bem feita. Do lado
80 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
da estante, uma escrivaninha que tinha sido totalmente vascu-
lhada. Muitos papéis foram postos em cima da cama, entre eles
uma carta com o poema que ora se reproduz:
Morro, como as ondas da jiboia
nos pés das pedras-vidas.
Renasço como o dia,
reconstruindo.
Me refazendo
somente para ti, Sertão.
Mais uma vez,
o barro, vermelho sangue.
Sangue da terra
Sangue dos meus.
Quero de volta,
umedecer a pele
sentir o corpo pulsar
viver.
E mais uma vez.
Morrer!
81Karen Campos
Essa carta foi encontrada junto aos papéis do jornalista, que
morreu no mesmo ano, três semanas depois de voltar da viagem.
A matéria não foi publicada. O Jornal do Commercio conside-
rou que o material encontrado era insuficiente e desinteressante.
Segue abaixo um dos relatos transcritos pelo jornalista Pedro
Simas Oliveira a respeito da noite na fogueira. Está datado de
21 de abril de 1946. Exatos 30 dias antes da morte do autor.
Nele, quatro moradores conversam.
Noite da Fogueira
Virgílio: Como dizia procês, era início do dia aqui mesmo,
nas redondezas de Sagarana, perto do riachinho, que a menina
Sara morreu de amor...
Enésio: Calma moço, cê tá contando tudo adiantado! Essa
estória correu sozinha todos os cantos dessa cidade. Era começo
do dia em Sagarana e o sol já cantava na cabeça da gente. O
galo berrava despertando quem tinha de despertar. A brisa fina
trazia o leve cheiro de mata fresca, recém moiada. As águas do
correguinho que passava lá embaixo, estava tudo quente, àquela
hora da manhã! O dia ia ser...
Virgílio: Mas cabra, cê demora por demais, desenro...
82 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Enésio: Calma homi!.
Virgílio: Ia dizendo o quê?
Enésio: Que... Sara era o nome da moça, bonita até. De es-
trutura fina. Jeitosinha. E amava o meio irmão Homero. Moço
trabaiador, sabe? Morava com Sara, desde quando perdeu os
pais, num acidente, na Cachoeira das Jiboias. Mas essa é outra
história...
Virgílio: Meu Jesus... Só termina no raiá do dia!
Enésio: A moça tava lá, debruçada na janela, espiando o
moço no meio do pasto, que já cedinho tava tratando de arrumar
o carro de bois. Mais tarde naquele dia ia fazer uma entrega nos
meados de Arinos. Lá praquelas bandas. O dia tinha acabado
de clarear. Os bichos cantava um novo dia. Seu Lino, o pai de
Sara, decerto estava nas estradas, a caminho da cidade. Dona
Ema, mãe de Sara, parece que estava na cozinha, a modo de
preparar um lanche pro menino levar na viagem. Porém, cês não
sabe! Esse tal dia a moça Sara tinha separado para se confessar
ao moço. Um amor que guardava desdos tempos de menininha,
ainda debruçada na janela de sua casa miúda. Lembro que me
contaram que a moça estava lembrando de um tempo longe da-
quele. De quando eies dois passeavam nas beiras das veredas.
83Karen Campos
“A noite estava escura como um prego”. A nuvem pesada, apro-
ximava deies. Até que pegou. Por ora, continuaram na chuva,
correndo. Aproveitando do lamaçal de terra, misturada com foia,
chuva... Mas logo voltaram pra casa tincando. Moço! Chegaram
lá com os coração nas mão. Sentaram na varanda coberta e lá
desataram uma conversação serena. Sem os dois dá conta, foram
chegando perto, e mais perto até que... Os pai de Sara chegaram
da cidade.
Virgílio: Bem se sabe que naquele dia eies se apaixonaram!
Enésio: Ara! Dá pra calar essa matraca, Virgílio?
Virgílio: Ôxe, volta pra estória, homi! Para de dá xingo n’eu.
Enésio: Aí, a moça se desbruçô da janela. Foi andando na di-
reção do moço Homero. Com os nervos tremósos, tanto quanto
podia se estar. Ninguém sabia o que aconteceu. Só o que se sabe
é que a moça tinha uma maldição.
Lena: Não entendi, Tio Enésio! Ela já morreu? Acabou a
estória?
Virgílio: Calma moça, que ainda tem chão pra andar!
Enésio: A menina Sara foi andando junto da cerca. E quan-
do chegou perto do moço bambeou e caiu durinha. Com corpo
rijo. Homero pegou a moça nos braços e levou de volta pra casa.
84 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Na casa, a mãe andava pra cima e pra baixo. Não se sabia o que
fazer. Até que pediu pro moço pegar a carroça e buscar o pai e o
Dr. Emílio. E assim o moço fez. Cês carece de saber que a moça
tudo ouvia. Sentia tudo. Mas não podia mover nenhum lugar
do corpo. Não porque não queria! Não conseguia mesmo! O
pai de Sara chegou desmontado em lágrimas. Dr. Emílio tratou
logo de entrar e ver o acontecido. Ninguém acreditou que só
de olhar ele dissesse que a moça havia morrido. A própria quis
desmentir, mas não conseguia. O doutor examinou, daqui, dali,
e deu o veredito. Morta mesmo – era um mequetrefe. Nada se
sabia das coisas. Moço, Sagarana toda já sabia do acontecido.
Ô povo! Parece até que a notícia foi no vento! Dali a pouco, foi
chegando gente que nem se sabe donde. E depois de encher a
casinha, ficaram tudo debaixo das árvores. Cada pouco entrava
de vez em quando. De fato, não se fez conta da cabeçada de gen-
te que foi. Todos careciam de ver a bela moça, petrificada, igual
morta. Toda de branco. No centro da sala. O padre foi o último a
aparecer. Sisudo sempre. Para o gosto da mãe, anunciou o início
da leitura. Discursou um pequetito sermão, uma ave-maria, dois
padre-nosso. E foi, e ponto. O moço de tão abalado, coitado,
não teve sangue a modo de ficar ali. Subiu ao quarto da moça,
85Karen Campos
antes de tudo. E lá ficou, vendo na espreita as nuvens negras for-
mando no longe do céu. Adiante. Da janela viu saindo primeiro
Seu Lino. Logo mais atrás, Dona Conceição. Os seis primos
mais chegados levando a moça. E chorou mais ainda. Desviou
os olhos. Logo tornou a olhar. A comitiva vinha atrás. Aquele
tanto de gente, entoando uma ladainha. Uma tristeza só... O sol
foi coberto. E a nuvem negra chegou, escurecendo tudo. Mas
chuva não se via ainda. Caminhada durou pouco. A casa deis era
perto do cemitério, ali embaixo, ocês passaram perto, vindo pra
cá! Não ouviram nada?
Lena: Não mesmo. Pra falar a verdade, não seria de meu gosto!
Enésio: Aí, disseram, não se sabe quem, que a moça Sara,
quando criança, teve um troço desse. Enquanto brincava, na es-
cola. E, no mesmo dia, o seu Doutor, das bandas de Paracatu,
daquelas beiradas de lá, examinou a menina e disse que ela tinha
uma probleminha, mas que era só ficar de zoio nela. A moça,
coitada, ficou apagada um tempão. E, quando chegou em casa,
nada contou pra mãe.
Lena: Quantos anos ela tinha, tio?
Enésio: Moça, ela era pequetita, de dez anos... Em casa, su-
biu direto ao quarto. Escreveu uma cartinha, como fazia todos
86 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
os dias. Nada se sabe o que tinha nela. A moça escrevia que só.
Dormia com os papéis. Destacou a cartinha do diarinho e pôs
dentro da fronha. O moço Homero, ainda na janela. Triste que
só ele. Ficou mais um tempo e saiu, deitou na cama da moça e...
Cês num sabe! Contaram que quando ele pôs a cabeça no tra-
vesseiro, ouviu o barulhinho. Era a carta. Pegou e leu... A comi-
tiva, naquelas altura, já tinha dispersado. Cada qual prum lado.
Disseram que a coitada ouvia o choro do povo. As lamúria toda.
Lena: Mas como, tio? Ela não estava morta!
Enésio: Moça, dá pra ouvir sem resmungar? Aí, quando che-
garam no cemitério, nunca se viu despedida mais rápida. Foi
saindo um, dois, três. Quando se viu, só tinha os pais da moça.
Sozinhos. Tiveram d’enterrar a fia! A moça viva, lá dentro, res-
pirava tão fino. Quase não usava o ar. Lá dentro sofria. Não sei
como souberam, só sei que se sabe que tentava mexer o corpo,
gritar, e nada. Ouvia o som agoniante da terra, caindo e caindo.
E nada se podendo fazer. A coitada só tentava, tentava. Em vão.
O moço depois de ler a carta enlouqueceu. Andou de lá a cá.
Virou. Mexeu no papel. Riu. Chorou. E saiu ticado. Aturdido.
Foi atrás da casa, pegou a enxada, e voltou a correr, mais ainda.
87Karen Campos
Moço! O homi correu por demais! Chegando no pé do túmulo,
me parece...
Delina: Ô, Enésio, contando mentira pras visita de novo?
Enésio: Mentira uma merda, cê não tava com eu quando ouvi.
Delina: Nem era preciso! Gente, trouxe procês uns bolinho,
venham logo.
Virgílio: Deixa aí, muié, depois eis come!
Enésio: Então, gente, o moço Homero começou a cavar e
cavar... Aí logo Sara ouviu, menino, alguma coisa, e sentiu seu
corpo voltando aos poucos. Mexeu os dedos, e tudo foi voltando.
Aí a moça começou a se debater, gritar, e o moço ouviu. Moça!
Ele cavou o mais rápido possíve. Só que não adiantou muito não,
porque o barulho parou. E a moça morreu! A menina Sara tinha
dado seu último suspiro quando o moço abriu a cova... A dana-
da da chuva aproveitou a hora e desatinou a cair. Ali perdido, o
moço chorou, com a moça nos braços. E a noite ficou num escu-
ro que só vendo. Chuva caindo de jeito. Doía até lombo. Virava
e mexia um raio cortava o céu no meio. E o moço lá, caído no
chão. Aí, estava eu e a moçada em volta da fogueira, como hoje.
E, de repente, um vento frio passou, quase que apagando o fogo.
Deixou ele baixinho. Uma neblina veio chegando perto. Até que
88 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
ouvimos um som de lamento, que saía da mata de trás de nós,
igualzinho aqui. A diferença é que a casa ali acesa não tinha na-
queies tempos não. Moço! Um grito fino saiu da mata escura, e
de novo o vento frio, que dessa vez trouxe um papel plainando,
que caiu perto d’eu. Moço! Me meti num medo, mas fui espiar.
Pra quê? Quando peguei no danado do papel, tava escrito: De
Sara, para os meus queridos de Sagarana. Na hora senti um ar-
repio e taquei o troço pra queimar no fogo.
89Valeska Angelo
Valeska Angelo
Dois irmãos
Parte I
Ninguém pode mandar no que é dele!
– a mulher do barco disse
A índia tinha olhos de mel
Enquanto o barco desliza
tem um homem sorrindo para as matas
lembrando da sua virgem
a indiazinha dos olhos sem nome
da cor do rio madeira
Ninguém manda no homem
que fincou algumas madeiras
na beira do rio
Ah! Rio de Janeiro, ainda és cidade maravilhosa?
Desbravo as serpentes do mundo
serpenteando o rio
olhando tudo
quatro crianças prematuras
90 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
e uma senhora caduca
em frente ao grande teatro
maior que a jiboia
que se entrelaça em meus braços
dentro da rede
Um salto entre as estrelas
e um encontro em ponta negra
Uma lua
Entre o cinza e o negro
mais negro que o índio Macunaíma
mais preto que as meias do menino
que acaba uma rima
na rede do pesqueiro
Caboclo da Terra
de facão na mão
que matou um peixe
no Rio Solimão
91Valeska Angelo
Dois irmãos
Parte II
Entres as nuvens,
o inferno,
mais quente que o brega dessa gente,
se abre no horizonte
E nas matas
o mistério latente
entranhado
na raiz do solo sagrado
criado por entidade Tupi
Dessana
Criança santa
diz que gosta de mim
mas não me dá comida
Me sinto uma menina
A gente dessa terra
já conhece os botos
insetos
que sugam nosso sangue
92 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
enquanto um caboclo
dá o sangue pra cuidar do pulmão
Será que aqui o ar é mais puro?
Tão puras como essas crianças que
margeiam o rio
hoje a noite é breu
É Deus.
93Valeska Angelo
Dois irmãos
Parte III
Aflita
um ser que aos poucos me devora
Piranha do rio negro
chega forte
e lasca a madeira que me cobre
O sol quente
as águas barrentas
a saudade
Nunca serei viajante
enquanto houver meus pais
me esperando na esperança
Hoje sonhei com asfalto
o asfalto onde jaz viva uma plantinha.
Dois irmãos
é o que eu tenho agora
e no dia da minha ida
e em toda a minha vida
Porque em toda cidade há igrejas?
94 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Filhos e mais filhos
de tantos ribeirinhos
crentes na fé
carentes de quê?
A mesma carência escondida no asfalto
O suor é o mesmo
Procurando se livrar do sofrimento de ser o que sou
de ser quem sou
Nem no meio da mata
minha condição se afasta
As copas das árvores sussurram
Você é nada
Nada
95Valeska Angelo
Dabucuri
Faço uma busca
Procuro destroços
Ouço o som das águas
E a queda de um barco
alavancado por um banzeiro
vai quebrar
vai partir ao meio
Da mesma forma que no céu negro
dentro da água escura
lembrei do meu nego
Estou debaixo da água
Um zumbido
Zumbi dos Palmares
Aqui ele é de cor parda
Ohhdabucuri!
Ohhdabucuri!
Seja bem vindo a Manaós
dançando pra celebrar sua chegada
Pode entrar
Dança do ventre
Gerada do ventre
96 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Filha de algum Arigó
Bebeu leite da árvore
Seringueira
Nunca voltaram pra sua Terra Ceará.
Cortado pela linha do Equador
uma linha traçada na parede das casas
Dizendo até aonde a água chegou.
Por dentro das matas o que há?
Na margem ribeirinha
há uma mulher com uma dúzia de meninas.
Quero fugir
Próxima parada
Terra Arigóca
Lá eu vi gente cheia de vida
e um pouco soFrida
Lá nos galhos da castanheira
eu nunca me Kahlo.
No coração do meu Velho há um Porto
que serra as Madeiras
e me leva de novo
para as fronteiras de um povo
que ainda faz o mundo respirar
97Thamires Bonifácio
Thamires Bonifácio
Terror à beira rio
Na cidade de Javé, no baixo Rio Madeira, muito se fala de um acon-
tecimento que até hoje aterroriza as famílias. Moradores relatam com
tristeza a morte trágica de Ana Lídia, uma cunhã muito bonita que
faleceu nas águas do Rio Madeira. Devido a esse fato, muitas pessoas
têm evitado nadar na região do acidente, já que em dado momento do
dia o rio se torna violento. A questão é que nem todos os moradores
sabem dessa informação, tampouco do acidente, por isso muitos tu-
ristas insistem em dar mergulhos, no entanto... Nem sempre voltam.
Numa tarde de domingo, um grupo de turistas oriundo de uma
cidade do interior teve como programação visitar o tal lugar. Já estava
tarde e resolveram então armar acampamento, acenderam uma foguei-
ra e montaram a barraca. Foi quando ouviram um choro que soava
como um miar desafinado. Todos ficaram em desespero, pegaram lan-
ternas e seguiram até o local de onde vinha o som.
O miado os levou até uma clareira rodeada de árvores, onde se
esconderam atrás de uma castanheira esperando ouvir o ruído nova-
mente. O medo era aparente na face de cada membro do grupo. Não
98 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
demorou muito e apareceu uma sombra que, em silêncio, deslizou seu
corpo sobre o tronco de uma árvore até sentar-se sobre suas raízes. Fi-
caram imóveis observando-a durante um tempo. Ansiosos para saber
o que de fato era, o grupo foi se aproximando. A verdade é que, a cada
passo dado, a angústia aumentava assustadoramente.
Com lanternas em punho, iluminaram o vulto que, sob a intensa
luz, fez reluzir o rosto de uma jovem. Estava muito ferida, seminua,
aparentando ter sido atacada. Assustados, resolveram levá-la ao acam-
pamento para cuidá-la melhor. Próximo ao meio-dia, todos estavam
apreensivos, mas felizes por terem salvado uma vida. Quando come-
çaram a servir o almoço, perceberam que a barraca estava sendo aberta
e dela saindo a jovem que eles tinham acabado de resgatar. Ela tinha
baixa estatura e muitas escoriações, mas ainda assim continuava bonita.
Ela sorriu para todos e, a partir desse gesto carinhoso e afirmativo,
foi convidada a se sentar com eles, iniciando assim uma longa con-
versa. A moça revelou que lembrava-se de pouca coisa. Afirmou que
enquanto estava em casa, sozinha, um vizinho invadiu a sua residência
e a atacou violentamente. Ela conseguiu se livrar e mesmo com muito
medo conseguiu fugir. No entanto, veio a se perder ao longo do cami-
nho. Como estava há horas caminhando e sem se alimentar, sofreu um
desmaio e quando acordou estava no acampamento.
99Thamires Bonifácio
Todos se comoveram com a história. Mas como estavam muito
cansados, combinaram de ir à delegacia ao entardecer, depois que des-
cansassem um pouco. Horas depois, Carolina, uma integrante do gru-
po, acordou e se deu conta de que algo errado estava acontecendo. Ao
apalpar a cama ao lado, a encontrou vazia. A jovem que tinha sido salva
pelo grupo havia sumido.
Após horas caminhando pela beira do rio, Carolina avistou de lon-
ge a jovem ajoelhada diante da margem. As mãos estavam sob as águas,
sua palidez ainda era visível, mesmo com a pouca luz do entardecer, e
os cabelos lisos e negros cobriam seu rosto. Carolina ficou anestesiada
pelo horror ao ver a jovem vomitar pequenos peixes ainda vivos e hesi-
tou em chamá-la. Então, correu até o acampamento para pedir ajuda,
mas o tempo foi insuficiente.
Horas depois, já na madrugada, os amigos não tinham mais forças
para fazer orações. As equipes de busca e salvamento não davam mais
respostas. Caía uma forte chuva no local, os troncos desabavam nas
águas devido às fortes correntezas, o frio era intenso e todos desistiram
de esperar.
No dia seguinte, o grupo foi convidado a se apresentar na delega-
cia. Chegando lá, foram informados de que teriam que reconhecer um
corpo ou, pelo menos, o que restou dele. Ao verem as fotos, tiveram
100 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
certeza, era Carolina. Não fora um simples afogamento, depois das
buscas terem sido finalizadas, a polícia recebeu um chamado de pes-
cadores da região.
Quando chegaram ao local, se depararam com uma cena terrível.
Os peixes capturados tinham um enorme tamanho, o que costuma ser
fora do comum para aquela espécie de candiru, peixe típico da Amazô-
nia, e eles regurgitavam uma gordura amarela. Mais à frente, submerso
na beira do rio, se encontrava um corpo que claramente tinha servido
de alimento para os animais. Até então, o mistério fora resolvido, mas
onde estava a jovem resgatada?
Esta nunca foi encontrada, nem sequer seu nome as pessoas sa-
biam. Ela simplesmente desapareceu, mas a polícia informou que na-
quela semana não fora registrado nenhum desaparecimento.
O último caso que ocorreu nas mesmas circunstâncias foi o de Ana
Lídia, há alguns anos atrás. Também pouco se sabe sobre ela, tinha ca-
belos negros e sumiu de casa. Moradores disseram tê-la visto mergulhar
no rio com um vizinho. Seu corpo nunca foi encontrado e o vizinho
está foragido. Amigos e parentes da garota acreditam que seu fantasma
perambula na região e assusta banhistas, dizem que ela está em busca de
justiça. Mantenhamos expectativas. A polícia investiga a relação entre os
casos e, em nota, afirmou que o caso Ana Lídia será reaberto.
101Juliana Lourenço
Juliana Lourenço
Os quatro gatos
Certa noite, vinham descendo as ladeiras do Reviver dois pares
de gatos. Um gato malhado de branco, preto e laranja, um preto, um
cinza bem peludo e um laranja. Tudo vira-lata. Alguns com cara de
gato de madame (o Preto, o Cinza e o Laranja; o Malhado não, esse
tinha cara de vira-lata mesmo). Apesar de ser o menos interessante à
simples vista, o Malhado era o mais malandro. O Cinza era vaidoso
demais com seus pelos e bigode. O Laranja já era largado e mais
camarada que o anterior. O Preto era desconfiado e falava pouco,
mas era gente boa; e o Malhado era o mais extrovertido, descolado.
Era vira-lata com muito orgulho e dizia que os da sua raça têm um
pouco de todas as raças felinas, por isso se achava sortudo. “Viva a
miscigenação!”, ele dizia. De fato, vira-lata tem um pouco de tudo:
o formato da cabeça de um, os pelos de outro, o rabo assim, as patas
tal, tudo num só gato.
Os quatro amigos felinos iam distraidamente descendo a ladeira
lado a lado na rua larga. Quem visse, acharia inusitado. Sempre an-
davam tarde da noite para passar despercebidos, mas não tão tarde
102 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
a ponto de perder a agitação da Praça Nauro Machado. Com todo
aquele molejo que só os gatos e os brasileiros têm, desciam as ruas,
viravam esquinas e brincavam entre si. Apesar de fazer de tudo para
não chamar a atenção (o que era difícil, visto que eram muito ba-
rulhentos), uma senhora que estava na janela (como todos os dias)
os viu passar e comentou com o marido que estava dentro de casa
entretido com o futebol. Com uma voz aguda, gritou:
– Olha lá, Zé, a raça mais vagabunda que existe: os gatos! Sem-
pre de telhado em telhado, nunca fazendo nada pra agradar Nosso
Senhor Jesus Cristo! Dera eu ser gata e ficar assim, de bobeira! – os
gatos perceberam que o comentário era sobre eles e riram alto.
– Minha Senhora – começou o Cinza – apenas estamos curtindo
as sete vidas que Deus nos deu de bom grado. Se Ele quisesse que tra-
balhássemos, nos tinha feito burros ou humanos, ou coisa do gênero.
– Imagine que gata gorda e feia ela seria! – disparou o Laranja.
As piadas continuavam e a robusta senhora negra ficava cada vez
mais constrangida e furiosa.
– Zé, olha o que esses gatos filhos da puta tão falando de mim! Cê
num vai fazer nada não?!
Em resposta, ouviu-se de dentro da casa uma voz alta e rouca:
“Quem mandou mexer com os gatos?! Agora cala a boca e me deixa
103Juliana Lourenço
ver o jogo! Fecha essa janela!” Aos resmungos, a senhora entrou, mas
não sem antes mostrar o dedo do meio em riste para os gatos, que se
fingiram de ofendidos.
Virando a esquina, estava a Homero de Paz. Uma rua estreita com
casarões coloniais, altos, coloridos, com grandes janelas e portas, que
naquela hora da noite estavam fechadas. A rua fazia curvas suaves em
sua descida. A luz amarela que emanava dos postes lhe dava um ar
sombrio. Tudo parecia dormir ou jazer morto num leito amarelado.
Aquilo dava uma sensação estranha ao Cinza, que tentava tirar da
cabeça essa ideia mórbida. Logo se distraiu ao observar o parceiro
Laranja rasgando um saco de lixo por ter sentido um cheiro bom. O
Malhado olhava inquieto para o final da rua.
– Tô ouvindo passos... Tem alguém vindo.
Todos acompanharam seu olhar, esperando ansiosamente saber
quem virava a esquina. De repente, rompe-se no ar, lá embaixo, um
som de risadas. Eram os cachorros da vizinhança. Cinco grandes ca-
chorros, todos pitbulls muito mal encarados. O líder do bando se
chamava Brutos, um cachorro musculoso e esbelto. Bonito, o danado,
e mau. Tinha acabado de ganhar a cicatriz na cara que o deixara fa-
moso. Cicatriz que ia da testa passando pelo olho esquerdo. Brigou
feio com o líder anterior do bando. Disse que tinha se cansado de ser
104 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
subordinado e ia virar patrão, pois não tinha gênio para seguir ordens
de quem não sabia mandar. Estava de saco cheio de ver seus amigos
de bando sendo feitos de idiotas pelos gatos da vizinhança, decidiu
que isso mudaria quando tomasse posse.
Brutos ainda não tinha visto os gatos. Dois cachorros de cada
lado seu, e ele lá, no meio. Risonho e assustador como só um cachor-
ro com uma cicatriz gigante pode ser. Estavam bêbados e anima-
dos. Pareciam voltar do Reviver. “O negócio lá deve estar quente”,
comentou o Malhado, meio fora de contexto, por puro nervosismo.
Sentia o coração bater forte, num ritmo confuso e descompassado; a
frieza nas patas e a cabeça a fervilhar. Os amigos o olhavam nervosos
esperando uma reação. Nada.
– Puta merda, se virem a gente, vai dar encrenca! – disse o Laran-
ja, com a cara toda suja de molho.
– A noite tá bonita e boa demais para terminar com a gente apa-
nhando deles. Vamos passar batidos, correr o máximo que der. Acho
que em pelo menos duas quadras, eles deixam a gente em paz.
– Duas quadras? Malhado, duas quadras é demais! Quanto seria
isso em quilômetros? Ou melhor, quanto seria isso em ruas? – disse
o Laranja em protesto.
– Seriam umas cinco ruas contando com essa – ele falou obser-
105Juliana Lourenço
vando os cachorros subindo a rua sem os notar devido à evidente
embriaguez.
– Olha, eu estou a favor do Laranja – disse o Cinza que estava
cagado de medo.
De fato, eram cachorros bem grandes e nada amigáveis àqueles que
andavam por aquelas bandas. E a última coisa que aquela matilha queria
era topar com gatos arruaceiros que desciam das ruas de cima fazendo
baderna. Os gatos das ruas de cima nunca se deram com os cachorros
daquela região, mas aqueles quatro camaradas tinham histórias com tais
caninos, ou melhor, tinham diploma em fazer os coitados de otários.
O plano dos gatos parecia bom, e mais, que daria certo. Mas se
desse, não haveria história pra contar. Claro que deu errado. Quando
os cachorros chegaram no meio da rua, viram os gatos e ficou um
clima de “o que esses malditos estão fazendo aqui?”. Já, por parte
dos gatos, a sensação foi “pronto, danou-se!”. Os cachorros pareciam
não acreditar que os gatos tiveram a audácia de aparecer por aquelas
bandas, “a área deles”. Os gatos, por sua vez, estavam paralisados de
medo, sem ação e sem ter o que fazer senão correr (loucamente).
– Malhado, não tem outro jeito? – perguntou o Cinza com um
nervosismo notável.
– Não – disse o gato com o rosto impassível.
106 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
E de fato não tinha. A rua, apesar de longa, era estreita. Não era
possível escalar e nem entrar nos casarões, já que estavam completa-
mente trancados. Não havia qualquer espaço em que os gatos pudes-
sem se esconder. Os casarios eram todos coladinhos. A única via de
fuga estava bloqueada pelos cachorros.
Apesar do medo, o Preto foi o primeiro a correr. Ele deu o ponta-
pé em direção ao final da rua. Todos ficaram surpresos em ver aque-
le vulto preto avançando com tamanha velocidade. Era difícil até de
acompanhá-lo com os olhos de tão rápido que fugiu. Laranja disparou
logo depois, seguido pelo Malhado, e o Cinza foi o último. Ele não
corria bem. Era gato, mas não era ágil. Muitas vezes se questionava se
era de fato gato, pois suas habilidades de felino eram tão limitadas...
“Você só precisa fazer mais exercícios, praticar mais seus pulos e sua
corrida”, diziam os amigos do bando. Ele não dava ouvidos. Nasceu
mesmo para ficar no conforto de um bom lar, não nas ruas correndo
de cachorros babões e ranzinzas. Corria o mais rápido que suas patas
podiam aguentar. “Até que estou indo bem”, pensou. Não estava. O
braço-direito de Brutos, Hérico, estava bem atrás dele pronto para pe-
gá-lo quando ele cansasse, o que logo-logo iria acontecer.
Malhado era o único que segurava um pouco a corrida, saben-
do da limitação do amigo sedentário. Preto parecia um relâmpago.
107Juliana Lourenço
Cinza seguia o Malhado, que seguia o Laranja, que seguia o Preto
que, à frente, mostrava o caminho conforme as ruas surgiam. Nem
sabia mais onde estava. Olhava as ruas apavorado à procura de uma
localização. “Que diabo de rua é essa? Que beco é aquele? Pra onde
leva? Preciso de uma localização urgente!”, pensava com seus botões.
Preto foi subindo uma rua íngreme, sem suspeitar de que lugar era
aquele. No topo, alcançou uma praça que ficava no ponto mais alto
do Centro Histórico.
A Praça Alto Bragança era vazia. Não era uma área nobre, mas era
contemplada com algo que quanto mais perto do centro, mais se per-
dia: a tranquilidade. Tinha mesas daquelas em que os senhores jogam
xadrez ou dama nas tardes mornas. Bancos de madeira com os pés
pintados de verde escuro mostravam não serem novos, mas bem pre-
servados, o que permitia que as senhorinhas sentassem para conversar
sobre as futilidades diárias durante os crepúsculos quentes. Os postes
foram calculadamente postos ao redor da pracinha circular e perto das
ruas, de modo a iluminar tanto a praça quanto o seu entorno.
A “pracinha de cima” (como era chamada), apesar do diminutivo, era
na verdade o oposto. O que tornava aquele lugar especial era o que havia
no meio dele. No seu coração estava uma enorme árvore de Pau-Ferro
que ninguém sabia dizer como ou quando, mas cresceu forte e frondosa
108 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
bem ali. Diziam que antes de tudo aquilo se tornar uma grande ladeira,
a árvore podia ser avistada de longe no topo do morro. Quando o sol se
retirava para brilhar em outros cantos, deixava escorrer lentamente seus
raios por detrás dos telhados coloniais das casas antigas. A descida dos
raios produzia uma visão quase mágica da copa verde e alta da árvore,
iluminando cada folhinha de seus galhos. O vento as balançava, fazendo
as folhas farfalharem sobre os que se refrescavam debaixo delas.
No entanto, naquela ocasião em que os gatos corriam perigo, o
frondoso Pau-Ferro era apenas uma árvore enorme no meio de uma
praça vazia. Devido ao tamanho e à grande quantidade de folhas e
galhos, a luz não penetrava no interior da árvore, dando a ela um ar
de “assombrada”. Preto passou batido pela árvore, mas chegou a ver
o Laranja correr sobre ela na vertical e desaparecer dentro da copa
quase sem movê-la. Na mesma direção que a árvore estava, havia
uma rua. O gato seguiu direto e sumiu descendo a rua. O Malhado o
seguiu, mas não o Cinza.
O Cinza ficou atrás com Hérico no seu encalço. Ele estava longe
do restante do grupo, não fazia ideia de onde ir e perdeu os com-
panheiros de vista. Seguiu seus instintos, e estes (erroneamente) o
levaram para a rua da esquerda. Mas ele continuou a plenos pulmões
pensando consigo mesmo “esse cão não se cansa?”. Tudo que passava
109Juliana Lourenço
na cabeça do seu adversário era como apertar o pescoço gordo do
gato com a mandíbula, quando o pegasse.
Depois de um tempo, a sensação de que não aguentaria por muito
mais dominou-o. Cinza estava exausto e Hérico poderia estar também,
mas a exaustão não abalava seus músculos. Ele corria atrás do Cinza com a
língua grande e rosada para fora, tentando pegar o máximo de ar possível.
Tudo o que ambos ouviam eram as próprias respirações ofegantes e o bati-
mento forte dos corações cansados como um tambor contra os tímpanos.
A pressão fazia suas cabeças latejarem, os corpos pareciam em chamas.
Mas Cinza preferia correr a descobrir o que aconteceria se parasse. A rua
descia até onde a visão permitia. Estava quieta, toda a gente dormindo. De
repente, sem saber de onde, Hérico tirou fôlego para gritar.
– Rapaz! Ei, gato! Espero que esteja me ouvindo, – sentia a gar-
ganta queimar e a voz falhar – pois tô que não aguento mais. Faz
favor, vamos fazer um acordo.
Cinza estava muito assustado para dar ouvidos. “Não confio nos
da sua raça! Não tem acordo nenhum!”
– Nem eu na sua, rapaz! Mas vamos, me deixe lhe propor algo.
– Te ouço...
– Que tal desistirmos disso? Eu posso dizer pros meus compa-
nheiros que te matei e você e os da tua laia somem de lá.
110 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
– Não te creio... – aquilo parecia muito suspeito para ele, nunca
soubera de nenhum cachorro querendo fazer acordo com um gato.
– Olha, você está mesmo me irritando, mas eu estou tão exausto
que deixo de lado minha raiva só para poder ir para casa. Estou mui-
to bêbado, meu estômago está dando voltas, minha cabeça rodando,
meus olhos estão quase fechando, eu preciso dormir, comer algo. Es-
tou quase desmaiando e sei que você também. Vamos parar.
– Sei não...
– Então se você não quer trégua, mesmo que você escape de mim,
uma marca eu vou deixar, um pedaço do rabo faltando, uma pata
quebrada, um osso exposto. Garanto, não serei gentil quando eu te
pegar! – Aquilo fez o Cinza engolir a seco. Sentiu-se mole como
quem vai desmaiar e deixar as forças se esvaírem.
Os dois seguiram em marcha lenta e chegaram ao cais. Estava escuro,
a não ser por uma lâmpada que pendia num poste velho. A cena parecia
final de filme de terror onde o mocinho foge do monstro. O gato não
tinha para onde fugir. O Cais das Dores era apenas uma ponte onde em-
barcações de todos os tamanhos ficavam amarradas em volta. Naquela
noite, tudo o que se podia ver eram as águas escuras, frias e salgadas do
mar. Cinza foi correndo até o final da ponte sem notar que esta acabaria
e ele daria com a água. Quando notou, conteve os passos, mas o cachorro
111Juliana Lourenço
vinha logo atrás enlouquecido. Ou ele pulava, ou era abocanhado. Ele
não sabia nadar, Hérico sim. Com certeza morreria afogado. Que pobre
fim, não? Depois de tudo isso, morrer afogado. Depois de pensar por
um minuto, pulou. Sentiu a água gelada entrar-lhe pelas narinas e pela
boca sufocando-o. Sentiu-se pesado dentro d’água, como um saco de
batatas afundando. Com dificuldade extrema, tentou por a cabeça para
fora d’água, em vão. Bateu as patas tentando nadar, mas não servia. Viu
o cachorro no cais olhando-o se afogar com um sorriso malicioso no fo-
cinho. Depois de muito se debater, desistiu. Afundou solto, permitindo
o corpo tragar a água para os pulmões na procura por ar.
Sobre a ponte, Hérico olhava satisfeito o inimigo parar de se de-
bater. Soltou uma gargalhada alta e deu meia-volta, ansioso para avi-
sar os companheiros que pelo menos um tinha ido. Faltavam três.
Os dois gatos chegaram no Reviver fazendo a maior bagunça. O
lugar estava cheio, havia pessoas dançando, música ao vivo e muitas
mesas de bares nas calçadas. Quando os dois gatos passaram corren-
do e pulando em todos os lugares que podiam, seguidos por quatro
pittbuls que faziam o mesmo, o caos foi total. Era mesa pra lá, gen-
te caindo pra cá, bebidas ali, pessoas xingando aqui. Os gatos eram
muito rápidos e, por serem menores, não eram tão vistos, ao contrá-
rio dos cachorros que eram maiores e mais barulhentos (latiam his-
112 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
tericamente). Era um alvoroço só. Quando as pessoas os viam derru-
bando a mesa e as bebidas, ou elas próprias, batiam neles. Chutavam
com força, acompanhando os chutes com ofensas.
Os gatos cruzaram um grupo de rapazes que já estavam para lá
de altos, mas neles só roçaram os rabos. Os moços olharam os vultos
passarem por suas canelas e riram, mas quando foi a vez dos ca-
chorros passarem querendo pegar os gatos, não acharam graça. Os
dois gatos subiram em uma árvore alta que ali estava e negaram-se
a descer. Os cães se puseram ao redor da árvore, latindo para que os
gatos se rendessem. Os rapazes da mesa foram atrás dos pittbuls co-
brar satisfação. Um rapaz alto, de cabelos cacheados, ombros largos e
rosto comprido tomou a frente dizendo:
– Seu cachorro idiota, você derrubou minha bebida! – falou alto,
para todos ouvirem. Falou cuspindo, estava bêbado.
– Não se mete! – respondeu Brutos rosnando.
– Me meto sim! Você me deve uma bebida e vai me pagar, ou vai
ver só!
Nesse instante, o cão se afastou da árvore, deixando os amigos de
olho nos gatos e foi em direção ao rapaz ousado para olhar bem no
rosto dele. Era visível que o guri não tinha medo do bicho. Enquanto
Brutos se aproximava, ele não deu um passo para trás, nem tirou os
113Juliana Lourenço
olhos dele. Talvez fosse a bebida que o deixasse corajoso, mas nos
seus olhos havia um brilho lúcido.
– Você sabe com quem está falando? – perguntou Brutos em tom
ameaçador.
– Sim, com um saco de pulgas que se acha melhor do que eu.
– Não me chame assim, já matei um por muito menos que isso.
– Não tenho medo de você.
– Vejo que não.
Brutos foi com tudo abocanhar a perna do rapaz, mas este foi
mais rápido e chutou com força a boca aberta do cão, que caiu de
lado com a boca sangrando e dois dentes a menos. Sem esperar, o
garoto partiu pra cima do cão, que ainda estava se recuperando do
chute bem dado. Chutou-o mais seis vezes em vários lugares dife-
rentes. Para finalizar com chave de ouro, deu outro no focinho. Seus
companheiros, no primeiro chute, já tinham abandonado o líder, que
ficou sozinho caído no chão inconsciente. Os gatos surpresos e as-
sustados ainda estavam na árvore sem acreditar na cena.
Desceram desconfiados, ainda mais o Preto que, pelo fato de sua
coloração, sofria preconceito devido à superstição do povo. Aos pou-
cos o ambiente foi se acalmando. Os gatos saíram de coitadinhos e
ganharam mimos daquela gente inocente. Dali a pouco, chegou o
114 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Laranja que, depois de se safar um tempo na árvore, quis saber dos
amigos e seguiu seus rastos. Quando o sol estava anunciando sua
vinda, deixando o céu rosado, e todos estavam cansados e indo para
casa, os três parceiros se jogaram na calçada e puseram-se a recordar
como tinha sido a noite.
– Meu Deus, que noite foi essa? – comentou o Laranja, pensando
na corrida louca que dera.
Os amigos limitaram-se a concordar com a cabeça. Ficaram em
silêncio durante um tempo.
– E o Cinza? – disse o Malhado que, como um lampejo, lembrou
da imagem do companheiro ruim de briga e de corrida.
– Ele não estava atrás da gente? Deveria estar aqui! – falou o Preto.
– Pois é! A última vez que o vi ele estava logo atrás de mim! Que
belos amigos somos, deixamos o gordo sem auxílio. Quem sabe onde
ele está agora?
– Aqui! – gritou o Cinza saindo detrás de um poste e causando
um enorme susto na gataria. Preto chegou a soltar um berro, para o
prazer de Cinza que seguia os amigos há um tempinho, com o plano
de assustá-los.
Ainda eletrizado, contou como as coisas se sucederam naquela noi-
te. Depois que Hérico foi embora, um senhor que morava ali perto do
115Juliana Lourenço
cais, numa casinha sobre palafitas, ouviu o barulho de algo se batendo.
Cinza já estava inconsciente quando foi retirado da água fria. Seu An-
tônio e sua senhora cuidaram do gato que passou o resto da noite lá,
recuperando-se. O velho contou que seus filhos, já crescidos, moravam
em lugares muito melhores que aquela casinha pobre e que, quando
insistiam em querer tirá-lo dali, ele respondia “Não, eu sou uma árvore
e aqui minha raiz se fixou.”. Era um homem estudado e inteligente,
apesar de extremamente humilde. Cinza aceitou um pote de leite e
se mandou. Chegou ao Reviver cheirando os rastros dos cães e gatos,
pedindo informação aos bêbados e a outras pessoas que naquela hora
do dia se dispersavam de volta a suas casas.
Cansados, os companheiros se despediram e cada qual foi catar
seu pedaço de chão para dormir. Antes de sumir na esquina, Cin-
za escutou o Malhado chamar-lhe e virou com os olhos amarelos e
grandes brilhando.
– Amanhã tem Tambor de Crioula, meu velho! Acho justo irmos
pra bagunçar mais um pouco.
Na noite seguinte, voltariam à sua rotina de eventos imprevisíveis.
Aquela sim, foi uma noite... Mas essa é outra história.
116 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Gabriel Mação
O Mbaêtata
Foi na madrugada do terceiro dia que tudo parou. Eu pensei que
seria legal, é verdade. No primeiro dia foi encantador, todo o verde, o
céu de várias cores, o rio imenso que parecia café com leite. Mas após
três dias no barco, tudo parecia chato, nada mais era novidade. O que
eu queria mesmo era um momento de aventura, que algo acontecesse
e fizesse com que todos pulassem de suas redes. E então, na madru-
gada, ninguém esperava por isso: as luzes se apagaram e o barco pa-
rou de navegar. A maioria das pessoas estava dormindo. Eu levantei
da minha rede e fui até cada um dos meus amigos, companheiros de
viagem. A luz do celular me ajudou a chegar até eles. Valeska, a poe-
sia ambulante, estava dormindo de boca aberta, como sempre, e nem
percebeu o acontecido. Ela tem uma enorme facilidade de escrever
poemas, por isso a chamo assim, poesia ambulante.
Douglas estava acordado e mergulhava cada vez mais fundo em
uma empolgada conversa com as senhoras da República Dominica-
na. Esse menino já conhecia metade dos tripulantes no primeiro dia
da viagem.
117Gabriel Mação
Chegou a vez de Alice, a capitã do grupo. Quando me aproximei,
pensei que estava acordada, mas dormia com uma máscara nos olhos,
que imitava os enormes olhos abertos de Carmen Miranda. Quase
morri de susto.
Havia ainda Fabrícia, “a mais corajosa do grupo”, mas me lembrei
que ela fora para o camarote, com medo dos insetos do Rio Madei-
ra. Só restava Thamires, que estava acordada com a cara emburrada.
Aproximei-me e perguntei:
– O que houve? Que cara é essa?
– Essa mulher aqui do lado não me deixa dormir, fica se debaten-
do igual um peixe boi – respondeu com uma cara...
Perguntei se ela sabia o que havia acontecido com o barco que
estava encostado na margem do rio. Thamires começou a andar até a
frente do barco e disse que ia perguntar ao capitão o porquê do barco
estar parado e da luz ter acabado.
– O combustível acabou, vamos ter que ficar de bubuia até ama-
nhã de manhã, quando um barquinho chega com gasolina – disse o
capitão com sotaque amazonense.
A hora demorava a passar, já eram duas da manhã e ficamos en-
costados na mureta do barco, Thamires e eu, admirando a escuridão
da floresta que nos cercava. A madrugada estava sem estrelas e o
118 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
único som era dos grilos que pareciam dar um baile de tão alto que
gritavam:
- Cricri, cricri, cricri...
Depois de um tempo ali parados, vimos uma luz meio alaranjada
que passou no meio da escuridão, na floresta. Foi como um reflexo
por entre as árvores. Thamires e eu nos entreolhamos com cara de
curiosidade e susto.
– Você viu aquilo? – perguntou ela.
– Claro que vi!
Ela caminhou para perto da escada que levava para a parte debai-
xo do barco.
– Onde você vai?
– Será que tem alguma possibilidade da gente ir atrás daquela
coisa?
Demorei um pouco para raciocinar. O que ela havia proposto?
Ela pensa que é Indiana Jones ou o quê pra sair entrando na floresta
atrás de uma luz voadora? Eu sei que não era algo comum, uma luz
muito diferente, parecia fogo, não era muito pequena a ponto de ser
um vagalume, mas também não era tão grande para ser um disco
voador.
– Thamires, você ficou louca? Não podemos descer do barco e sair
119Gabriel Mação
pela floresta, ainda mais a uma hora dessas.
– Eu sei que é arriscado, Gabriel, mas também sei que você está
louco por uma aventura, assim como eu, não é verdade?
– Bom, isso é verdade. Realmente não aguento mais o tédio neste
barco, já são três dias sem fazer nada, só vento, mato e água.
– Então, o que você está esperando? Vamos logo lá embaixo!
É... Ela me convenceu e lá fomos nós descendo as escadas com
cuidado para não fazer barulho. Por alguns instantes, não pude acre-
ditar no que estávamos fazendo, descer do barco a uma hora daquelas
seria a última coisa que eu faria, ainda mais no meio da Amazônia.
Era hora de pular para fora do barco.
– Você primeiro – disse Thamires.
–De jeito nenhum, primeiro as damas.
– Seu medroso!
Ploft! E lá se foi ela.
– Espere por mim!
Ploft! Consegui pular.
O mato estava molhado e em nossa frente não se via nada além
da escuridão.
– Thamires, você troxe a lanterna?
– Sim, a lanterna do celular.
120 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Click!
– Agora sim consigo ver alguma coisa.
À nossa frente algumas árvores bem altas pareciam muralhas,
e os grilos continuavam a fazer barulho. Começamos a andar para
dentro da mata.
– Pra onde será que aquela coisa foi?
– Não sei, Thamires. Acho que foi pra esquerda.
No caminho conversávamos baixinho sobre o que poderia ser a
luz que vimos:
– Será que foi o Curupira? – perguntei.
– Claro que não, Gabriel! Isso é só uma lenda.
– Ah, pode ser verdade, tanta gente fala nele. Talvez a Caipora ou
a Mãe-de-Ouro.
– Mãe-de-Ouro?! – perguntou Thamires com dois tons de sur-
presa a mais na voz.
– Sim, você nunca ouviu falar dela? Diz a lenda que a Mãe-de
-Ouro é uma mulher que se transforma em bola de fogo e fica voan-
do perto das jazidas de ouro para protegê-las dos ladrões – respondi
com um tom de erudição improvisada.
– Mas tem ouro por aqui?
– Não sei, talvez tenha. Mas e se for a Mula-Sem-Cabeça?
121Gabriel Mação
– Uma mulher que transou com um padre? Por que não foi o
padre quem virou mula?
– Ah, você sabe. Na época em que a lenda foi criada, a igreja cató-
lica dominava a população e o padre era uma espécie de santo. Então,
se alguém estava errado, com certeza não era a igreja – expliquei
para ela.
– Caipora, Curupira, Mãe-de-Ouro, Mula-Sem-Cabeça... O que
mais poderia ser a coisa que avistamos?
– MBAÊTATA! – disse uma voz grave e rouca atrás de nós.
– Ah...! Quem disse isso? – gritou Thamires.
– Desculpa ter assustado vocês - respondeu um homem alto e
moreno.
– Quem é o senhor? – perguntei.
– Rogério, moro ali na frente, numa casa perto do rio. E vocês ? O
que estão fazendo aqui?
– O combustível do nosso barco acabou, ficamos encostados ali na
margem. Aí vimos uma luz passar na floresta e resolvemos segui-la -
respondeu Thamires.
– Mas o que o senhor disse? Bata... – indaguei com curiosidade.
– Eu disse Mbaêtata.
– E o que é isso?
122 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
– Isso é a coisa que vocês viram. Mbaêtata é uma cobra maceta, no
lugar dos olhos tem duas bolas de fogo.
– O senhor está falando sério?
– Mas é claro, meu jovem! O que você acha que eu ia estar fazen-
do aqui fora a uma hora dessas?
Seu Rogério mostrou a espingarda.
– Pra que o senhor está atrás do Mbaêtata?
– Meus jovens, esse monstro está acabando com as minhas ga-
linhas. Só essa semana já se foram oito delas. Sem falar que se eu
capturar o bicho vou conseguir uma boa grana e ficar bem famoso
aqui no Amazonas.
– Thamires – comecei a falar – acho que já está na hora de voltar-
mos pro barco.
123Thainar Xavier
Thainar Xavier
O homem do coração de pedra
O sol estava a pino quando Alberto Onofre Ferreira da Concei-
ção, ou Dr. Onofre, como gostava de ser chamado por seus colegas do
Supremo Tribunal, caminhava em direção às Cataratas dos Couros.
O grupo de turistas à sua volta estava em êxtase, com unânimes ex-
pressões de contentamento e admiração diante da paisagem.
Pela trilha, uma pequena estrada de terra com pedras escorrega-
dias, a principal atração era a mata e a estranha fauna do cerrado.
Araras azuis voavam em direção ao infinito e as montanhas acen-
diam com os raios solares. Na chegada à nascente dos Couros, a água
translúcida formava uma piscina que escorregava por uma abertura e
despencava pelo paredão.
Onofre detestava tudo isso. Odiava ter que estar debaixo do sol
escaldante, odiava estar suando feito porco, odiava ter que sorrir para
essa gente. Aliás, ele não gostava de gente. A descida até a prainha foi
a mais sacrificante. Seu coração de pedra pesava mais de dez quilos.
Onofre se arrastava pelo caminho, humilhado. “Vou matar a Lucie-
the!”, pensou. “O que ela tem na cabeça? Sabe muito bem que eu
124 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
odeio essa coisa de natureza, por mim isso aqui já tinha se tornado
um condomínio de luxo!”
– Seu Onofre, tá tudo bem aí? – perguntou o guia.
Ele deu um breve aceno com a cabeça, com ar enfurecido, disfar-
çando um risinho no canto da boca. Nada iria atrapalhar seus planos.
Respirou fundo e prosseguiu. Depois de longos minutos, chegaram
até a segunda parte dos Couros. Uma enorme poça, rodeada de ro-
chas esculpidas pela força da água. O rio tinha um aspecto tranquilo,
mas sua correnteza parecia pronta para levar a alma dos marinheiros
de primeira viagem.
Os lábios de Onofre se curvaram num sorriso lúgubre. Eis o lugar
perfeito! Diminuiu o ritmo, deixando-se ficar para trás, e esperou até
que aquele terrível grupo de gente feliz desaparecesse de sua visão.
Retirou o par de tênis italiano que comprara recentemente, ajeitou-o
num canto perto de uma pedra, ao lado de sua pochete de couro pre-
ta e o bilhete que escrevera previamente para esta ocasião.
Onofre caminhou vagarosamente pelo rio, tomando cuidado para
não escorregar. Embora o clima continuasse quente, seu corpo já não
transpirava tanto. Seu coração fazia que ia explodir. Pesava, puxava
os ombros para dentro. Tinha de fazer um esforço tremendo. De
repente, seu corpo estremeceu diante da imagem mais terrivelmente
125Thainar Xavier
bela que já tinha visto. O rio desembocava num grande desfiladeiro.
“Deve ter pra lá de 20 metros. Isso é ótimo, será uma morte e
tanto. Já vejo a notícia nos principais jornais de Brasília, aqueles abu-
tres abomináveis! Espero que na eternidade eu não tenha que olhar
pra cara de nenhum deles. Aliás, quando eu me for, vou assombrar
minha ex-mulher pra sempre, aquela salafrária, ainda bem que não
vai herdar nada!”
A ideia de que a ex-mulher ficaria pobre lhe causou uma crise de
risos. Onofre ria fino e desritmado.
“Onofre, acalme-se. Você precisa se concentrar, talvez fosse bom
pensar em algumas últimas palavras. Uma oração talvez fosse pru-
dente nesta hora, afinal, você foi batizado. Então vamos lá, deve ser
fácil fazer isso... Rezar. Pai nosso que estais no céu...”
Seus olhos se abriram imediatamente. Sentia que não estava sozi-
nho, havia alguém se aproximando.
“Droga! Nem na hora da morte essas pessoas me deixam em paz!”
Ao se virar, tudo o que viu foi uma garotinha, que o encarava com
grandes olhos. Ergueu as sobrancelhas e resmungou alguma coisa
que parecia um xingamento. A menina não podia ouvir, estava dis-
tante, mas seu olhar de curiosidade lhe chamara a atenção. Por um
instante, Onofre sentiu que a menina sabia de tudo.
126 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
A menininha continuava parada na areia quando o guia chegou
com o grupo de turistas. Um homem parou ao lado dela e acompa-
nhou a direção do seu olhar.
Onofre se resignou a responder o cumprimento do homem, bu-
fando. “Tenho que esperar esse povo ir embora, não posso executar
meu plano na frente deles.”
O grupo resolveu dar uma pausa para o lanche. O guia, que apa-
rentava ser o pai da menina, era alto, magro e tinha os cabelos longos
em trança. A menininha mostrava o mesmo nariz e tamanho dos
olhos. Sua pele, da cor de canela, tinha um brilho dourado que ilu-
minava seu rostinho redondo. Ela piscou profundamente, querendo
enxergar melhor na claridade e buscar novamente o paradeiro de
Onofre. Avistando-o, sentou ao seu lado na beira do rio e lhe ofere-
ceu seu melhor sorriso.
– Oi – disse a menina timidamente.
– Olá – resmungou Onofre depois de um tempo, sem desviar o
olhar da cachoeira.
A garota não deixava de mirar o peito de Onofre. Tentava disfarçar,
mas sua curiosidade era maior. Volta e meia olhava para o rio, mas logo
retornava sua atenção para Onofre, pensando no que iria falar.
– Qual o seu nome?
127Thainar Xavier
– Não tenho nome – Onofre bufou, rabugento.
– O meu é Marguelli! O senhor é médico?
– Não, sou procurador da República.
– O que um procurador da República faz?
– Bom, eu... Isso não interessa, não é assunto pra criança.
Os dois ficaram em silêncio. A garota olhava para o rio e Onofre
praguejava mentalmente por ter que conversar com uma criança.
– Você tem quantos anos?
– Digamos que eu já fiz muitos aniversários.
– Eu já fiz dez aniversários – disse Marguelli empolgada, contan-
do os dedinhos das mãos.
“Aniversários demais”. Ele sentiu um leve rubor de irritação, que-
ria que aquela gente fosse logo embora, queria ficar sozinho e fazer
logo o que precisava.
– Por que o seu coração é assim?
Onofre sentiu como se tivesse levado um soco no estômago, a
menina lhe pegara tão desprevenido que começou a tossir, fingindo
um engasgo. Mas a falta de ar era verdadeira, sua garganta ardia e
sua cabeça latejava. Levantou-se depressa, pegou suas coisas e fugiu.
Correu toda a trilha com as mãos no peito, suportando o coração.
Naquele final de tarde, Onofre não conseguiu dormir depois do
128 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
pesadelo que o invadiu. Sonhara que seu coração engolia seu corpo,
transformando-o numa estátua de pedra. À noitinha, enquanto vi-
rava de um lado para o outro naquela cama barata, o telefone tocou.
Era sua irmã. Ele hesitou em atendê-la, mas as badaladas insistentes
do celular acabaram vencendo-o:
– E aí maninho, curtindo a viagem?
– Claro que não.
– POR QUÊ?! Você está num lugar MARAVILHOSO! – A voz
cheia de vida da irmã piorava a enxaqueca que lhe atormentava.
– Você sabe que eu não gosto de sair de casa, ainda mais para ficar
na natureza.
– Bebeto, deixe de ser mal humorado! Te dei essa viagem de pre-
sente, pra você relaxar.
– Eu não estou nem um pouco relaxado, Luciethe!
– Olha, por que você não dá uma volta, pensa um pouco na vida,
quem sabe até arruma uma namorada, você tá precisando.
Onofre desligou o telefone, não suportava mais a voz da irmã. Não
suportava o cheiro de mofo daquele quarto misturado com incenso
barato, precisava beber, precisava de um uísque escocês. Resolveu sair.
A lua iluminava a pequena cidade de Alto Paraíso, dando ao lugar
uma aura mística. Pelas ruas, jovens e velhos barbudos, hippongas do
129Thainar Xavier
melhor grau passeavam com seus cachorros de estimação. Os bares
estavam lotados de turistas eufóricos, mas os restaurantes quase to-
dos fechados.
Onofre procurou por seu uísque em cada bar, tudo que encontrava
era vinho e cerveja de má qualidade. Sentiu o estômago reclamar e se
deu conta de que não comia desde o café da manhã.
Foi até a lanchonete em frente à pracinha, deu uma olhada rápida
no cardápio, não gostou de nada. A atendente bonitinha, impaciente
com sua demora, sugeriu tapioca com pequi. Na falta de um sanduí-
che de mozzarella de búfalo com tomate seco, e simpático à beleza da
moça, acabou aceitando. Não conseguia parar de pensar na pergunta
que a garotinha fizera. “Por que o seu coração é assim?” Como ela
sabia? Estaria seu coração ficando aparente? Encarou seu peitoral no
espelho do bar. Enquanto afundava em pensamentos, a tapioca lhe
foi servida. Ele deu uma mordida despretensiosa e até que gostou,
“sabor estranho, certamente nobre”.
Com a barriga cheia, começava a achar que Alto Paraíso não era
de todo ruim, havia algo de agradável naquele lugar, talvez fosse a lua
cheia ou talvez tivessem colocado alguma coisa na tapioca. Onofre
não sabia... Mas a sensação era de paz. Seu coração ficara mais leve,
ele achou quase inacreditável. Por um instante uma faísca de espe-
130 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
rança se acendeu em seus olhos. Poderia haver uma cura para este
mal? Ele esboçava um leve sorriso, quando topou com um jovem alto,
moreno, meio sujo, que trazia enormes alargadores nas orelhas.
– Boa noite, txai. Tô sentindo uma vibração em você, shazam! Pô,
compra um cristal aí, pra dar uma força.
– Não, obrigado, já estou de partida.
– Pô, não vai não. Olha, vou fazer o seguinte: você leva duas pe-
dras que eu faço por quinze reais, fechou?
– Eu não tenho interesse em pedras.
– Fecho por dez, aí tu escolhe a que quiser.
– Ouça, rapaz, eu não vou comprar nenhuma pedra!
– Tá bom, txai, beleza, já entendi. Que a paz de Jah te acompanhe.
Onofre respondeu um xingamento tão feio que não será escri-
to aqui, saiu pisando fundo e bufando de raiva. Odiava vendedores
ambulantes, ainda mais os que fediam. Qual era a dificuldade dessas
pessoas em ouvir um não?
Entrou numa rua deserta onde a única luz vinha das três ou qua-
tro casas ao redor, viu um bar que parecia vazio no final da rua. Tinha
aparência um tanto diferente, com símbolos tribais esculpidos nas
paredes, iluminação de candelabros antigos, um espaço para medi-
tação. Na varanda, algumas mesas onde se reuniam uma jovem to-
131Thainar Xavier
cando violão, um senhor bebendo seu vinho e um artesão com suas
bijuterias.
– Boa noite – disse o artesão.
– O bar está fechado? – adiantou-se Onofre.
– Está. Mas pegue uma cadeira e beba conosco.
Onofre, na vontade de beber, assentiu, sentou-se perto do grupo e
logo ganhou uma taça. O artesão mostrava para o senhor sua caixa de
pedras. A cada gole de vinho, o senhor admirava um novo cristal. Ono-
fre tinha começado a se arrepender de ter parado naquele lugar. Que
vinho doce, detestável! Antes que pudesse se levantar, o artesão, um
chileno, tirou da caixa um de seus melhores cristais e entregou para ele.
– Veja, o cristal mais puro de Alto Paraíso. Tome, fique com você.
Sinto que você precisa dessa energia, che, vamos, pegue!
Ao tocar na pedra, Onofre sentiu uma força transpassar por seu
corpo. Não sabia explicar se isso era possível, a pouca luz não lhe
deixava enxergar nada que pudesse ser diferente. Perguntou quanto
custava a pedra, e o vendedor disse que era um presente. Achou es-
tranha a atitude dele, mas não questionou, não queria mesmo mexer
no bolso.
O grupo conversou durante um bom tempo, bebeu, e curtiu a
mulher tocando seu violão. Onofre ficou de observador embriagado.
132 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Algo estava acontecendo naquela noite, algo que Onofre não sabia ao
certo o que era. Sentiu seu coração de pedra estalar levemente dentro
do peito. O chileno o convidou para irem à casa de um amigo, havia
uma fogueira lá esta noite.
A casa tinha um enorme quintal. No centro, a fogueira acesa, ao
redor, bancos de madeira, cobertores estendidos pelo chão e muitas
almofadas. Tinham pelo menos vinte pessoas ali, uns contavam suas
histórias, outros tocavam instrumentos e outros apenas contempla-
vam as estrelas sob o calor aconchegante do fogo.
O anfitrião falava da magia de Alto Paraíso, seu discurso era belo
e impactante, suas palavras ecoavam pela mente de Onofre, como
uma profecia. “Alto Paraíso é só o início da transformação do mundo,
assim como as rochas estão se tornando cristais, esse também será
o caminho natural do homem. Você tem o poder de escolha, hoje
você pode escolher ter uma vida de amargura ou uma vida de perdão
e paz, você pode escolher ser uma rocha ou escolher o caminho da
purificação, sendo um cristal.”
Onofre reconheceu o anfitrião, era o guia, provável pai da Mar-
guelli. Aquela era a casa da Marguelli? Olhou para os lados procu-
rando a menininha. Ela estava do outro lado da fogueira, atenta ao
discurso do pai, fazia carinho num cachorro que estava deitado perto
133Thainar Xavier
dela. Onofre se lembrou do filho e de como ele gostava de cachorro.
Sentiu os olhos enchendo de água. Como sentia falta do seu filho!
Seu coração de pedra deu mais uma fisgada.
Na manhã seguinte, Onofre estava bem mais disposto, tomou o
suco verde oferecido pelo hotel e foi andar pela vizinhança. Cumpri-
mentava todos que via pela frente, fotografava as árvores, entrava nas
lojinhas, comprou até um presente para Luciethe.
Quando chegou à loja de produtos naturais, viu uma mulher com
os cabelos loiros presos num coque milimetricamente arrumado,
óculos escuros que cobriam quase todo o rosto, e vestido vermelho
gritante. Só podia ser Jezebel, sua ex-mulher. Onofre ficou tão sur-
preso em vê-la que pensou que fosse um espírito maligno que tinha
vindo atormentá-lo. Suas pernas começaram a tremer e sua cabeça
a latejar. Seus olhos assumiram um tom ameaçador e seu rosto ficou
roxo de tanta raiva. Antes que pudesse pensar, deu um passo para trás
e começou a correr. Tinha que sair dali, tinha que ir para um lugar
bem longe.
Seu coração estava mais pesado do que nunca, era muito difícil
carregá-lo. Mesmo assim, subiu uma encosta até chegar a um antigo
templo em ruínas. O mato cobria algumas das construções. Apesar
de estar deteriorado pelo tempo, o lugar possuía uma energia que o
134 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
distinguia dos outros parques.
Sentou no tronco de uma árvore que estava caído perto de uma
das construções. Sua respiração era ofegante, mas tentava se contro-
lar. Botou a mão nos bolsos procurando a carta que havia escrito para
a hora de sua despedida.
“O que ela está fazendo aqui? Justo aqui! Essa mulher quer me
enlouquecer, maldita! Eu seria capaz de...”
Seus pensamentos foram interrompidos com a chegada de Mar-
guelli, que segurava um coelho com a pata machucada.
– Oi – disse a menina sorridente.
– O que está fazendo aqui sozinha?
– Vim procurar o Sr. Tomás – disse apontando para o coelho.
– O que houve com ele?
– Ele se machucou numa armadilha, tenho que fazer um curativo.
Quer me ajudar?
– Esse não é um bom momento... Por favor, gostaria de ficar so-
zinho agora.
Onofre olhou nos olhinhos de Marguelli e viu os olhos do seu filho.
– Tome, segure o Senhor Tomás – ela insistiu.
Marguelli colocou o coelho nos braços de Onofre, que segurava
o bicho de forma desajeitada. Ela, então, pegou em sua mochila um
135Thainar Xavier
vidro de mertiolate e atadura para enfaixar a pata do bicho. Em pou-
co tempo os dois tinham cuidado do animal, que parecia mais calmo.
Onofre continuava com o bichinho nos braços. Sem pensar, passou a
mão pela cabeça do Sr. Tomás. Seu coração de pedra pareceu ter sido
atingido por um raio. Dessa vez o estalo foi tão alto que olhou para
Marguelli, procurando testemunha.
– Seu Onofre, posso fazer uma pergunta? Por que seu coração é
assim?
– Marguelli... Eu não sei... Acho que ele é assim desde quando eu
era criança. Quando meu pai foi embora, depois minha mãe... E o
meu filho... Meu coração ficava mais duro a cada ano, a cada aniver-
sário não comemorado, a cada briga sem motivo...
A voz de Onofre fraquejava, ele tentava esconder as lágrimas que
escorriam pelo canto do olho. Eram muitas lembranças, lembranças
que ele evitara durante a vida toda, sentimentos que pesavam o seu
coração. A verdade é que seu coração era petrificado pelo acúmulo de
sentimentos nunca extravasados.
Marguelli abraçou Onofre como abraçava seu pai. O silêncio pai-
rava no ar trazendo uma paz que era sentida de longe. Tentou acari-
ciar seu coração, pegá-lo com suas mãozinhas. Onofre se lembrou da
profecia do pai de Marguelli. Sabia que era chegado o momento, ele
136 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
tinha de deixar a pedra para trás. A luz invadiu o seu coração como
uma flor que desabrocha no deserto.
Um leve tremor percorreu o parque. Marguelli mal podia acredi-
tar no que estava vendo. Afastou-se de Onofre para poder enxergar
direito. Pasmos diante do que estava acontecendo, viram o coração
do homem rachar por completo e começar a descascar. O cinza da
pedra dava lugar a um branco translúcido que se espalhava pelo peito
de Onofre feito um ribeirão de águas cristalinas. Sua pedra no cora-
ção virara um coração de cristal.
De volta a Brasília, ao procurar a carteira para pagar a corrida de
táxi, sentiu um pequeno volume no bolso. Pegou-o e, quando abriu
sua mão, deparou-se com o coração de cristal que o amigo chileno
lhe dera de presente.
137Estefani Basilo
Estefani Basilo
Projeto luz
O sol de Recife parecia nos dar bom dia com brilho e calor inten-
so. Era o mesmo sol, todos sabíamos, mas era diferente a sensação.
Era a primeira vez que estávamos ali e nossos corações estavam a mil.
O aeroporto era bem movimentado, do jeito que mostram os fil-
mes, lojas de diversos tipos se espalhavam pelo local.
O nosso professor Fábio, engraçado como sempre, veio com seu
sorriso gigante e seus sapatos mocassim. Por trás dos óculos de grau,
seus olhos escuros também estavam emocionados. Ele deixou que
andássemos pelo aeroporto, porém Emília, Nanda e eu continuáva-
mos sentadas, vigiando as malas.
Observei meus outros amigos se afastarem. Os cachos escuros de
Brum pulavam junto com sua animação. Já Bil mantinha o sorriso
branco no rosto, os olhos escuros diminuindo conforme o tamanho
de seu sorriso:
– O que vamos fazer depois daqui? – perguntei.
– Acho que alugar um carro e ir a João Pessoa – disse Emília com
as bochechas comprimidas pela risada.
138 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
– Por aí! – Nanda gargalhou, passando a mão nos cachos, rebeldes
como os meus.
Nanda sacudia meu braço violentamente para me acordar:
– Chegamos, Esther.
– Até que enfim! – sorriu Emília abrindo os braços e se espregui-
çando já do lado de fora do carro alugado, um Doblô.
Passei a mão no cabelo, na blusa rosa, na saia jeans e saí do carro.
O professor apertou a campainha e quem abriu foi uma moça, Alice,
ela tinha um olhar infantil. Na porta da casa nos deparamos com
outra mulher, já mais velha, loira e cheia de graça. Se chamava Nina.
– Oi meninos, que prazer. Sejam bem vindos – ela disse com jeito
doce.
A casa dela... Sem palavras! Era uma mansão na verdade. Na va-
randa havia duas espreguiçadeiras e uma piscina incrível em forma-
to arredondado. A casa era pintada de branco com acabamento em
madeira marrom. Na parte de cima tinha uma pequena sacada e no
muro uma namoradeira.
Entramos na sala sofisticada. Nina nos mostrou um quarto onde
139Estefani Basilo
poderíamos deixar as malas. Na parede tinha várias fotos, dois sofás-
camas e um armário branco.
Passamos quase todo aquele dia na piscina e depois conversando
com Nina.
No dia seguinte, a manhã foi calma e gentil, nós pudemos fazer
tudo ao nosso tempo. Porém já tínhamos atividades para mais tarde.
Iríamos almoçar na casa de dona Leninha, uma senhora de idade.
Leninha era um doce, como a maioria das senhorinhas que eu
conhecia. Parecia ter mais de 80 anos, se movia com dificuldade com
a ajuda de uma bengala de madeira. Ela era gordinha, tinha a pele
flácida e com marcas de sol, os cabelos de neve presos num coque no
alto da cabeça.
Joana, uma moça que trabalhava na casa, nos serviu água, senta-
mos na sala, prontos para conhecê-la mais. Ela foi muito pobre na
infância, e vivia com o pai e o irmão mais novo em Massaranduba,
até que aos 20 anos casou-se e foi morar com o finado marido em
João Pessoa. O único filho, Miguel, morava no Rio de Janeiro desde
os 27 anos.
140 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Na verdade, nem mesmo durante o almoço eu prestava atenção
no que Leninha falava. Eu observava mais os retratos espalhados
pela sala, cuja figura ressaltava uma mulher belíssima com roupas
escandalosas para a época, roupas que pareciam mais fantasias de
Rainha de Bateria.
Seria Leninha? E se fosse, ela estava nos escondendo algo? Por
quê?
O tempo passou devagar até que o nosso professor anunciou a
nossa partida. Todos se despediram de Leninha, eu não:
– Professor, posso ficar aqui?
Ele olhou como se já fosse negar, mas fez o contrário:
– Tudo bem. Nós vamos ficar na praia, te buscamos antes ou de-
pois do jantar?
– Depois! – disparei de imediato. Olhei para Leninha que sorriu
– depois do jantar.
Esperei que todos saíssem, junto com Joana, e sentei no chão de
frente para Leninha:
– Só sobrou você, criança. O que quer de mim? – perguntou se-
gurando minha mão.
– Quero saber sua história.
– Minha história? – ela riu e um olhar distante se fez – Na sua
141Estefani Basilo
idade, eu já era casada e tinha uma filha.
– Filha? Achei que tivesse casado aos 20 e que só tinha um filho.
Ela então esticou a mão e abriu a gavetinha da estante ao seu lado,
me entregou um porta-retrato branco e rosa com a foto de um bebê
deitado de vestidinho vermelho com sapatos e laços combinando,
com um sorriso encantador. Eu olhei para Leninha e logo ela come-
çou a falar com uma voz cansada e rouca:
Nasci em abril de 1928 e me chamo Helena Prado, mas desde que
me entendo por gente sou chamada de Leninha. Sempre tive uma
vida complicada, de família muito pobre, uma mãe falecida e um
irmão mais novo, eu fazia tudo dentro de casa desde pequena e meu
pai trabalhava para nos sustentar. Na época era difícil chegarmos no
científico.
Mas eu diria que minha vida começou mesmo em dezembro de
1944, quando aos 16 anos, tive uma filha e a chamei de Mariana.
Meu marido, Carlos, alguns anos mais velho, era um negro forte por
conta do trabalho pesado de pedreiro. Logo que engravidei, ele cons-
truiu uma casa pequena para morarmos os três juntos.
No ano seguinte, no mês do meu aniversário, fui sorteada e ga-
nhei uma cabra do Fundo Rotativo Solidário, que privilegiava um
jovem com uma cabritinha. A primeira cria fêmea eu deveria dar
142 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
a eles, para que outro jovem tivesse a oportunidade. Trabalhava em
casa lavando e passando para fora, e além disso eu fazia artesanato
de cadernos, o que mais me rendia lucro, principalmente em épocas
de volta às aulas.
Desde muito pequena sei desenhar, então eu desenhava o que as
crianças me pediam em cartolinas, que eu plastificava e se tornava a
capa. Folhas em quantidades diferentes recheavam o caderno.
No dia do meu aniversário, eu estava alimentando a cabra, que
batizei de Fine, quando Carlos chegou e me abraçou por trás:
– Feliz aniversário, meu amor.
– Obrigada de novo – sorri.
– E Mariana?
– Logo mais acorda para mamar.
– Eu trouxe um presente para você – ele tirou da calça jeans velha
dois papéis e me entregou.
Quando eu vi o que era, meu queixo caiu:
– Dois ingressos para assistir à Banda Eternal hoje à noite? Mas
meu amor, e as despesas?
– Andei economizando e seu pai me ajudou.
– Mas eu nem tenho o que vestir – resmunguei.
143Estefani Basilo
– Tenho certeza que sua amiga Ângela terá algo. Acha que seu pai
fica com nossa filha?
– Obrigado, Carlos. Eu te amo.
– Eu também te amo, e quero você bem bonita hoje à noite. Mas
agora eu preciso voltar ao trabalho, venho te buscar às 20 horas.
Eu usava um vestido vermelho de alcinhas tão apertado que dei-
xava meus seios saltados, e estava bem mais alta com os sapatos de
salto fino de Ângela. Eu não me arrumava assim desde o meu pri-
meiro encontro com Carlos, quando tinha apenas 15 anos.
Peguei Mariana nos braços no mesmo momento que Carlos ba-
teu na porta. Olhou-me de cima a baixo e disse:
– Ângela, estou com medo de perder minha esposa hoje.
– Bobo! – eu ri. – Só temos que deixar Mariana com meu pai
e irmão.
Foram mais de duas horas eletrizantes de show. Eu cheguei a tirar
os sapatos para pular e dançar com meu marido. Franci, o cantor da
banda, jogou rosas no fim do show, e consegui pegar uma. Quando
a banda saiu do palco, logo entrou outra, mas Carlos me puxou le-
vando-me para trás do palco, onde ficava o camarim de Franci. Não
eram muitas pessoas, já que a maioria ficou para ver a outra banda.
144 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Quase uma hora depois Franci apareceu rodeado de seguranças:
– Franci, um autógrafo, por favor! – berrei quase ultrapassando a
barra de segurança que passava do meu umbigo.
O segurança me barrou:
– Tira a mão da minha mulher – disse Carlos.
O pequeno confronto chamou atenção de Franci, que me olhou
e disse:
– Deixe o casal passar.
O segurança abriu passagem e mostrei a língua para ele feito
criança birrenta.
– Como se chama?
– Helena.
Franci me olhou de cima a baixo e me senti quase nua com aquele
vestido:
– Quase 1,70m, jovem, cabelos ondulados, olhos bonitos, sorriso
infantil e corpo de modelo – ele disse sorrindo.
Eu dei um passo para trás procurando Carlos, que apertou minha
mão:
– Desculpe se fui grosseiro. É que estou procurando uma dança-
rina e o seu perfil é perfeito. Se souber dançar, é claro.
– Eu sei dançar – respondi grosso.
145Estefani Basilo
– Se quiser, farei uma turnê de três meses pelo Brasil, faço con-
trato por esse tempo somente se quiser, depois te deixo aqui mesmo
em Massaranduba.
Eu comecei a sonhar. Eu como dançarina da Banda Eternal via-
jando pelo Brasil por três meses!
– Carlos! – olhei-o cheia de sonhos.
– Nem pensar! Você não vai ficar rebolando a bunda e se esfre-
gando nele. Esqueceu que você tem uma família?
– Eu disse que pago muito bem por mês? – instigou Franci.
– Carlos... – comecei, mas não soube terminar.
– Eu disse que não, Leninha.
– Bem, se ele mudar de ideia, nos vemos amanhã às 7 horas na
rodoviária. Leve os seus documentos – Franci pegou minha mão des-
caradamente e beijou.
Não deu nem tempo de dizer tchau, pois Carlos me arrastou para
longe dali.
Deitada na cama de barriga para cima eu deveria já estar dor-
mindo, mas era difícil com tudo aquilo na minha cabeça. Carlos me
abraçou e disse baixinho:
– Seu lugar é aqui Leninha, comigo e Mariana.
146 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
– Mas... – eu o olhei e sentei. – Vou ganhar um bom dinheiro e,
se soubermos investir podemos ter uma vida melhor.
– Eu disse NÃO, Helena!
Seu não foi tão firme que me assustou e acordou Mariana. Eu
levantei para pegá-la e, com ela aninhada em meus braços, disse:
– Eu vou Carlos. Você já deu a sua opinião.
– Você ainda é menor de idade.
– Mas eu tomo conta do meu próprio nariz.
Naquela noite não dormi, fui incapaz de pregar os olhos. Às 5
horas da manhã eu já estava de malas prontas. Chamei meu irmão
para me ajudar, eu ainda tinha que me despedir de meu velho pai e
ganhar a sua benção. Sabia que de nada adiantaria me despedir cor-
retamente de meu marido. E as minhas coisas já estavam no carro
velho emprestado do vizinho.
Cheguei à rodoviária exatamente às 7 horas. Franci e toda a ban-
da estavam lá esperando o seu ônibus particular. Franci me recebeu
com um beijo no rosto:
– Sabia que viria. Essa é sua filhinha? – perguntou mexendo com
a menina.
– Sim, Mariana – sorri. – Mas não se preocupe, meu irmão irá
levá-la.
147Estefani Basilo
– Venha comigo um minutinho – disse Franci me levando.
Entramos juntos no ônibus e ele pegou Mariana que sorriu e a
deitou no banco. Então bateu uma fotografia de minha filha sorrindo:
– Para levar durante a viagem – explicou.
Sorri agradecida.
E então foi só pé na estrada.
Os três meses da minha vida foram rolando pelos cantos mais
lindos do Brasil. Conheci Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e todo
lugar tinha seu jeito especial de me encantar.
Nosso tempo não parava, Franci parecia querer só a minha aten-
ção, quase sempre me agarrando pela cintura ou atrapalhando minha
coreografia para dançar comigo nos shows.
Quando já estávamos subindo de novo para o nordeste, hospe-
dados em um hotel, todos saíram para comemorar, mas eu não quis,
preferi ficar em casa e acabei escrevendo para minha família. Foi
neste dia que me dei conta das verdadeiras intenções de Franci. Ele
bateu na porta do quarto e entrou sem esperar resposta.
– Muitas saudades da tua filha?
– Muitas – eu sorri – Talvez eu perca mesmo o marido quando
voltar.
– Então você terá a mim – disse colocando a mão na minha perna.
148 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Eu me levantei e fui até a cozinha pegar água. Ofereci a Franci,
mas ele apenas sorriu, eu o ignorei. Terminei de beber água e ele se
levantou e tirou o copo de minha mão, então me beijou. Eu fiquei tão
surpresa que não soube o que fazer. Deixei-me ser beijada por aquele
segundo, quando ele se afastou, eu disse:
– Não repita isso. Eu sou casada e amo meu marido de corpo e alma.
Franci sorriu, passou a mão nos cabelos e disse:
– Um dia você vai me pedir esse beijo, Helena – e saiu.
Desde esse dia Franci mudou comigo. Ao invés de me agarrar e
me elogiar, ele dizia que eu fazia tudo errado e me desprezava. Franci
passou a me maltratar. Tive que aguentar por mais um mês, afinal,
contrato é contrato.
Quando meu último dia na Banda Eternal chegou, já estávamos
em Campina Grande. Como o show só seria a noite, dava tempo
suficiente de ir à casa. Mas quando cheguei logo dei falta de tudo, da
cabra, das galinhas, de Carlos e muito da minha filha. Chamei por
Carlos, mas não houve resposta.
Ninguém pode imaginar como fiquei. Disse para mim mesma
que Carlos nunca seria capaz. Mas a confirmação veio quando che-
guei à casa de meu pai:
149Estefani Basilo
– Eles se foram, Leninha – disse meu pai quase chorando. – Car-
los nunca aceitou sua decisão, mas nunca imaginei algo assim. Ele
vendeu a cabra e todas as galinhas. Há um mês, ele não deixou a
menina aqui no horário de seu trabalho, então entendemos tudo.
– Polícia! – disse como súplica, como se chamasse o próprio Deus.
– Já demos queixa. Mas disseram que como você os deixou e Car-
los é o pai biológico da menina, pouco podem fazer – disse meu
irmão.
Meu pai me aninhou em seus braços e naquele momento quis
voltar a ser menina e caber em seu colo por inteiro, ou quem sabe
voltar ao ventre de minha mãe.
No dia seguinte, após o almoço, nos arrumamos e fomos à praia
do Jacaré. O sol deixou nossas fotos em tom alaranjado, numa beleza
sem igual, porque ali era especial, o sol começava a se deitar, e a mú-
sica suave que saía da flauta do músico no barco se levantava, assim
como a lua.
Sem nada para fazer à noite em casa, fiquei de bobeira deitada na
150 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
cama. Quando me deu sede, fui até a cozinha para pegar água, mas
logo que entrei percebi um clima tenso no pessoal sentado à mesa,
todos com cara de defunto. Inclusive Nina e Alice:
– Ai gente, o que foi? – perguntei.
– Esther... – começou o professor incapaz de terminar.
- Esther, querida, Dona Leninha faleceu esta tarde – disse Nina.
Na hora perdi a vontade de beber água e de fazer qualquer coisa.
Eu queria só dormir. Dormir e poder sonhar com Leninha. Naque-
le momento, qualquer lembrança dela ficou embaçada, coberta pela
fina camada de lágrima que se formava nos meus olhos.
Acordei com muito frio. Sem abrir os olhos procurei o lençol,
mas encontraram primeiro do que eu e me cobriram. Abri os olhos,
Emília e Nanda estavam lá, velando meu sono:
– Você está bem? – perguntou Emília me fazendo cafuné.
Neguei e funguei para não chorar.
– Vai ficar tudo bem.
– Eu sei. É que ela só teve tempo de me contar sua história.
– Talvez era só o que ela precisava.
Suspirei como se o ar pudesse limpar a minha dor, mas não lim-
pou. Então perguntei:
– Como souberam?
151Estefani Basilo
– Joana ligou. Foi ver Dona Leninha de manhã e ela já estava pas-
sando mal, à tarde, ela acabou parando no hospital com insuficiência
respiratória.
As meninas não entenderam o meu sentimento por ela, e nunca
iriam entender. Do mesmo jeito que só poderia imaginar a dor de
Leninha quem fosse mãe.
152 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Caroline Rodrigues
Do tambor ao mar
Foi uma longa viagem da rodoviária de São Luís até a casa onde eu
seria acolhida. Talvez porque pesassem em meu corpo as doze horas de
estrada, a falta de sono e o jejum, que cortei com um café com leite e
bastante açúcar antes de tomar o ônibus municipal. Da janela, meus olhos
seguiram as casas e os lugares de comércio, sempre coloridos, obedecendo
um padrão harmônico. Meu pensamento entrava pelas portas enormes e
os janelões espalhados. Pessoas iam e voltavam tornando a cidade viva por
toda a tarde, ao contrário da noite, que eu veria deserta e obscura.
Quando cheguei ao litoral, a tarde acabava de cair e poucas tra-
vessas eram iluminadas. Eu as cruzei depressa, tomada por uma sen-
sação de medo e mistério. São Luís me recebeu com frieza, as cores
do dia se apagaram e as portas e janelas fecharam seus cadeados.
Chegando ao instituto ComoVer, fui recebida pela Darcy, respon-
sável pelas atividades do lugar. Dalva, sua filha, também esperava-
me à porta, e chamou-me para entrar com um longo abraço. Nossa
empatia foi imediata, talvez por termos a mesma idade, os mesmos
sonhos de dançarina, os mesmos calos.
153Caroline Rodrigues
– Como foi de viagem, Helena? Animada para dançar amanhã?
Aceita uma xícara de café com pão?
– Tudo bem, agora que cheguei! Estou ansiosa!
Conversamos um pouco e nos retiramos. Estendi minha es-
teira de dormir no quarto, junto das outras meninas, Dalva entre elas.
Ali tive um sonho estranho, no qual corria pela noite deserta de São
Luís carregando uma tocha na mão. No sonho, eu sabia que estava
sendo perseguida por um leão branco, e que o fogo que eu carregava
era a única maneira de me defender. Um tambor tocava ao fundo,
e eu o buscava. Acordei suada e contei o sonho a Dalva, que tinha
insônia, mesmo depois de dançar a noite toda.
Pela manhã, chegando ao Reviver, fizemos nosso cortejo até o
Larguinho. Foi tempo de cozinhar todos os preparativos, que tam-
bém triscamos. A caracterização das dançarinas estava pronta, as
saias rodadas, tecidas e estampas à mão. Experimentamos as blusas
rendadas, flores, colares, pulseiras, torças. Assim que o dia escu-
receu no Larguinho, os tocadores começaram a afinar o couro da
parelha em frente à fogueira. Armamos nossa roda e o fogo foi
aproveitado para as tochas que iluminavam o entorno. Em seguida,
os instrumentos foram arrastados pelos tocadores, que estavam nus
da cintura para cima.
154 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
A animação foi feita pelo canto puxado pelos homens e o som da
parelha. O coro se levantou em louvor aos santos protetores. Após pedir
proteção, passamos ao canto festejando o povo negro. Nele, a roda se
formou conforme as dançantes se apresentavam individualmente, cum-
primentando os tocadores. Acompanhamos o ritmo com palmas, ani-
mando-o com gritos. As cinturas giravam para brincar as umbigadas e
pungar, convidando os que compõem a roda para entrar na dança. Três
tambores tocavam, o crivador, o meião e o roncador. Dalva, entusias-
mada, veio com sua marcação de passo na minha direção. Arriscamos
passos livres e variados, seguindo o compasso cada vez mais veloz dos
tocadores. A chama das tochas dançava acompanhando nossa cintura.
De repente, a iluminação revelou sombras se aproximando. O
tambor parou. Da direção do Palácio dos Leões, sete homens bran-
cos sugiram da escuridão. Seu chefe se apresentou questionando:
– Como ousam festejar na minha propriedade?
– Estamos fora da sua residência! Podemos festejar na Avenida
Pedro II!
– Ordeno que essa zoeira acabe agora mesmo! Não aceito festan-
ça de negros na minha propriedade!
– Se sente superior por ser filho do coronel? Você não dá ordens,
não somos escravos!
155Caroline Rodrigues
– Homens, acabem com tudo!
Diante daquela confusão, percebia que os olhos dele estavam fixados
em mim, e me perguntava por que aquele homem extremamente rude
me trazia uma sensação estranha. Por que estaria me olhando? Me reparei
retribuindo os olhares, mas logo desviei. Senti vontade de pôr um ponto
final nesse pensamento. Perguntei a Darcy quem era aquele homem.
– Esse é Chico, da família Cavalcante, são conhecidos por sua
riqueza, abusando do poder com violência na região...
Como ordenado pelo Sr. Cavalcante, os homens atacaram os
nossos com pauladas. Para nos proteger, estes usaram golpes de ca-
poeira, que lhes davam grande vantagem sobre os brancos. Mesmo
durante a confusão, continuamos com o ritmo dos tambores. O suor
escorria, saias rodopiavam para um lado e para o outro. Os tocadores
não pararam, batendo no couro com a mesma força com que os pés
saltavam na roda de capoeira que se formava. Gritos e palmas acom-
panhavam os compassos da melodia, dando força para quem estava
lutando, protegendo nossa festança.
Chico não entrou na briga. Seus homens perdiam a luta e aban-
donavam seus cassetetes de madeira. Alguns foram derrubados no
chão da avenida em frente ao palácio. Aos poucos, os capangas foram
desistindo e escaparam. Chico permaneceu, me olhando. Fui tomada
156 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
pelo impulso de fugir daquela cena, agarrei uma tocha e corri em
direção à praia. Atravessei a fachada do palácio e vi acima de mim a
estátua branca do leão. Cheguei a pensar que ela saltaria sobre meu
corpo. Finalmente, pus os meus pés no mar.
Eu conhecia aquele homem, do tempo em que ele esteve embar-
cado na Vila do Pesqueiro, de onde vim. Ele tentava se aproximar de
mim, me agradar. Eu tinha medo dele, sei como são os navegadores.
Um dia, ele foi embora e me deixou uma carta, que eu li e atirei no
mar. E lá estava eu no mesmo mar, e sabendo que ele viria até mim.
Eu segurava minha tocha quando vi sua sombra se aproximar. Na-
quele momento, lembrei-me do sonho e um arrepio percorreu meu
corpo. Ele me perguntou se eu tinha lido a carta.
– A carta em que você dizia “o Brasil não tem distância quando
se trata de paixão.” Nem seu destino você me disse, só me deixou a
esperança de um novo amor, lembranças e um rastro no mar, que não
fiz questão de seguir!
– Eu era muito jovem, sempre estive aos mandos do meu pai. Per-
dão se te causei tamanho desconforto, não foi minha intenção. Eu quis
voltar pra te ver, mas tenho minhas responsabilidades aqui. Você sem-
pre vagou por minha mente por todo esse tempo, por mais que não
tenhamos nos encontrado. O destino nos deu uma segunda chance.
157Caroline Rodrigues
Por mais clichê que soassem, as palavras dele mexeram comigo.
Que estranha coincidência aquele sonho e este encontro, logo aqui
nesta cidade, para onde vim sem olhar para trás e sem intenções de
voltar. Minhas pernas ficaram trêmulas e a tocha se apagou enquanto
as ondas batiam em nós.
158 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Emely Helen
Oxente
Arroz? Feijão?
O que é isso?
É impressionante
Como alguns simples caroços,
Temperados, fazem uma refeição boa
Enchem o estômago e o coração
De qualquer pessoa
Agricultores?
O que é isso?
São jovens
Dedicados àquilo que gostam
Semeando, semeando
Cidade da poesia?
Onde é isso?
159Emely Helen
São José do Egito
É a casa dos poetas
Tudo falado é agora
Acordado ou dormindo
Para recitar não tem hora
Paraíba?
O que me diz sobre isso?
Quem tem a visão de seca
Deve se impressionar
Com o tanto de água
Que tem por lá
E não é só de água não
Também tem suas praias
Suas paisagens, manias
Costumes, gírias
E seu jeito paraibano de ser
“Oxentemainha”
Vamos comigo conhecer
160 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Lucas Silva
Olho d’água
Terra mágica
Pura de criação
Brota a vida de vida
A suavidade é uma mera lágrima que escorre
Faz crescer um mundo
Que de pouco a pouco se
Forma
Pura forma
Beleza sem fim
E o seu dom me transborda
Em plenitude...
161Lucas Silva
Coração de folhas
Suas veias fazem correr
Brotos
Vida
Transformada em saber
(Você e o conhecido mais desconhecido)
Onde o coração que pulsa
Não sangra
Chora sem lágrimas
Bate como
Tambor
Máquina de vida
Fonte de mistérios
162 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Cerrado seco
Virgem
verde sangue
mistérios da vida
grilo
salvo
moradia
água que corre pra cima
para quando estiver preso
sem saída
Borboletas azuis.
163Bruno Lima
Bruno Lima
Uma história para lembrar
Esta história começa com um garoto que chamaremos de Alex e
que, com seus onze anos, já tinha sua cota de problemas. De segunda
a sexta-feira era possível avistar um grupo correndo atrás de um úni-
co garoto de pernas finas, que com facilidade cortava as ruas de São
Luiz, dissolvendo o bando perseguidor de rua em rua. Não era um
garoto popular, isso era perceptível a todos que passassem em frente
ao portão da escola quando o sinal batesse. Era o que menos sabia
lutar, era perseguido, e as brigas vinham a ele como a montanha para
Maomé. Como você pode perceber, Alex era um garoto-problema.
Alex também tinha amigos. Júlia e André andavam com ele, e
participavam de suas aventuras. Júlia era uma menina tímida, que só
saía por incentivo de sua mãe, que a encorajava a brincar com os vi-
zinhos. André era o típico dono da bola, um garoto animado e cheio
de si, até ouvir os gritos de sua mãe chamando para dentro de casa,
com apelidos que deixavam sua cara corada.
Eram só os três, e isso era o máximo que a vida oferecia a Alex.
Até que ele ouviu boatos de que alguém estava para se mudar para
164 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
as redondezas. Um dia, em uma destas confusões, Alex se viu en-
curralado e preso por cinco garotos em um beco sem saída, prestes a
levar uma surra. Mas ele, orgulhoso, respirou fundo, jogou a mochila
para o lado e tentou abrir caminho derrubando um dos membros
do grupo. Foi ele que encontrou o chão, onde os cinco chutaram-no
covardemente. Alex não gritava, não pedia ajuda, apenas ficava em
silêncio esperando aquilo acabar. No meio desta selvageria, uma pes-
soa entrou na sua frente para protegê-lo dos trogloditas mirins. Ela
disse algumas coisas, que Alex não ouviu por estar confuso, com o
pensamento voado. Quando ele “voltou” à consciência, viu os agres-
sores indo embora, debochando dele.
Olhou depois para a garota de olhos claros e cabelos longos que
o destino lhe enviou. Ela perguntou se Alex estava bem, mas ele,
envergonhado, correu dali segurando o choro. No caminho, lembrou
que não agradeceu à menina que, além de muito bonita, arriscou-se
por ele. Ele não tinha sequer o nome dela. As cenas se repetiam na
sua cabeça, os golpes, a menina, e ele tentava voltar a si enquanto
rumava para casa.
Chegando à casa, Alex reparou que tinha esquecido sua mochila
naquela rua sem saída. A esta altura, voltar lá para buscá-la estava
fora de cogitação. A menor possibilidade de topar com aqueles cinco
165Bruno Lima
de novo o apavorava. Perder a mochila era, para ele, o menor de seus
problemas. Sua mãe, preocupada com os episódios da vida de Alex,
passou remédio em seus machucados e mandou que ficasse fora de
confusões, em vez de colecioná-las.
Tempos depois, a campainha da casa de Alex tocou. Ele assistia
à TV quando, gritado por sua mãe, viu a garota que há dias o tinha
salvado. Ela acenou para ele com a mochila em mãos, pronta para
lhe entregar. Disseram “oi” um para o outro e Alex pegou a mochila.
– Você esqueceu isso lá. Toma, é sua.
– Obrigado, mas como descobriu onde eu moro?
– Perguntei à Júlia e ela me disse.
– À Júlia?
– Sim, somos vizinhas agora. Prazer, meu nome é Carol, e o seu?
A impressão repentina da beleza de Carol lhe tirou a atenção por
um segundo, fazendo com que ele demorasse a responder o próprio
nome e, consequentemente, ficasse com cara de idiota na frente dela.
– É... Alex.
– Tá, até mais, a gente se vê.
Ele começou a visitar a casa da Júlia todos os dias com o intuito
de ver Carol mais uma vez. E se viam. Juntos, não se comportavam
como na companhia de outros amigos. Havia entre eles um senti-
166 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
mento novo. Não brincavam muito e conversavam horas seguidas, a
ponto de a família dela, toda vez que via Alex chegar, chamá-la para
dentro de casa, com o objetivo de afastá-los. Porém, quanto mais
tentavam, mais os dois ficavam próximos.
Alex e Carol contavam um ao outro sobre tudo. Eram amigos
inseparáveis. Carol costumava dizer que amigo como ele só existia
um na vida, e Alex também a elogiava enquanto acariciava os cabe-
los dela sobre seu colo. Certa vez, seus olhares se encontraram e o
silêncio tomou os dois. Aproximaram-se um pouco. Por impulso, ela
o beijou. Os dois nunca souberam o quanto o beijo durou. Permane-
ceram mais um tempo mudos, olhando fixo um para o outro, até que
Carol, envergonhada, virou-se para ir embora. Alex a segurou pela
mão e, com uma voz trêmula, sussurrou:
– Quer namorar comigo?
– Hahã, quer dizer, sim – ela disse, antes de beijá-lo na bochecha
e ir embora.
– Nos vemos!
Eles se divertiam juntos, mas só se aproximavam mais quando
estavam escondidos de seus pais, já que estes não aceitavam o rela-
cionamento por uma razão que nem eles mesmos sabiam. Mas isso
não mais importava para o casal. Ficaram especialistas em improvisar
167Bruno Lima
“esconderijos” para namorar. Alex aprendia muito com ela, com o
jeito dela ver as coisas, mesmo sendo de sua idade.
Três anos se passaram e o namoro escondido continuava. Apesar
de todos na rua saberem, os pais deles permaneciam na ignorância.
Alex via Carol todo dia. Mas parecia que sua sorte estava mudando.
Após três dias sem encontrá-la, foi até a rua dela mas, para sua
surpresa, viu a família carregando malas para o carro. A irmã mais
velha de Carol o notou e se aproximou.
– Estamos nos mudando, meu pai conseguiu uma oportunida-
de no Rio de Janeiro. Carol está muito triste de se afastar de você,
passou os últimos dias fechada no quarto. Disse pra mim que se te
encontrasse seria pior.
Em poucos segundos, o coração de Alex acelerou e congelou.
– Agora vai embora, antes que meus pais te vejam! Ela disse que
vai te escrever. Quem sabe vocês não se encontram aqui ou no Rio.
Alex buscou o olhar de Carol na sua janela, e o encontrou. Os
dois miraram um ao outro com os olhos embaçados. Tão novo como
aquele sentimento era a perda. Na vida as coisas vêm e vão, agora
ele sabia disso. Foi embora chutando objetos pelo caminho, olhando
para baixo. Melhor apanhar do que viver isso, pensou num instante
de descontração.
168 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Esta história foi há muito tempo. Depois disso, Alex apanhou
algumas outras vezes dos garotos. Carol, ele não viu mais. Como
dizem por aí, virou história. Nem todas as histórias têm final feliz. O
que importa é terem uma palavra dizendo: continua...
169Douglas de Paulo
Douglas de Paulo
Uma Aventura em Manaus,
conhecendo o desconhecido
Turistas Aprendizes... Nós somos, fomos e seremos. Junto com
os amigos Gabriel, Valeska, Fabrícia, Thamires e Alice, embarcamos
para a aventura de passarmos dez dias conhecendo e explorando a
Amazônia. Começamos no dia dezesseis de janeiro de dois mil e
quinze, quando aterrissamos em Manaus. Logo pudemos sentir o
clima úmido da cidade. De repente, quando menos esperávamos, fo-
mos surpreendidos por um baita pé d’água, uma chuva de meteoros,
com pingos gigantes que pareciam furar nossa pele. Inundados por
tanta chuva, conseguimos encontrar nosso guia, Diego, morador de
Manaus, que ficou encarregado de apresentá-la a nós.
Começamos pela visita a Ponta Negra. No caminho, vimos um
arco-íris pela janela direita do ônibus. Do lado esquerdo, o sol se pu-
nha e o céu era alaranjado. Chegamos a Ponta Negra no finalzinho
do dia. Dava para ver diversos tons rosados, avermelhados, azulados
e um pouco da mistura de azul escuro com preto. Era a noite che-
gando.
170 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Avistamos o Rio Negro e então chegamos mais perto. Segundos
depois, passou um vendedor com uma bacia na cabeça, cheia de
saquinhos com banana frita. É isso mesmo, banana, e o gosto era
bem parecido com as batatas chips que comemos. Não aguentamos
de ansiedade e entramos no rio de água morna e cor escura. Ao
olharmos debaixo d´água, víamos tudo negro, como se nossos olhos
estivessem vendados.
Também conhecemos o histórico Teatro Amazonas, com suas co-
lunas que formam uma lira, e que nos impressionou pela acústica e
beleza. Em cada coluna, um escudo grafado carregava nomes de mú-
sicos e artistas como Beethoven e Shakespeare, entre outros. No topo
das colunas, um céu com imagens de dança, teatro, tristeza e alegria.
O salão, com assentos bem vermelhos, parecia repleto de morangos
maduros diante de um palco onde a arte fazia festa.
Não pudemos deixar de visitar também o Tambaqui de Banda,
um restaurante onde experimentamos a comida regional. Comemos
tambaqui assado, pacu e o famoso jaraqui frito. Como diz o ditado:
“quem come jaraqui, não sai mais dali.”
Continuamos nossa aventura pela Praia da Lua, que recebe as
águas mornas do Rio Negro. Tomamos dois banhos ao mesmo tem-
po, numa mistura de quente e frio, pois chovia na hora em que está-
171Douglas de Paulo
vamos mergulhando e nossos corpos piravam com uma sensação que
nem mesmo sei explicar.
Visitamos também a comunidade ribeirinha São João do Tupé.
Foi preciso pegar uma voadeira para chegar ao local. Voadeira, para
quem não conhece, é um barco pequeno onde cabem cerca de oito
pessoas, incluindo o piloto, e que, pulando devido ao banzeiro do rio,
viaja rápido e parece que vai nos derrubar a qualquer momento, com
bastante vento na cara e muita adrenalina.
Conhecemos o pajé da aldeia, chamado Kissibi, e seu filho Regi-
naldo. As casas da comunidade eram de madeira e algumas de tijolos.
Havia uma enorme oca e ao lado uma árvore cheia de Urucum, fruto
que eles usam para tingir o corpo. Reginaldo nos mostrou como se
faz a tinta: abre-se a planta, esfrega-se os dedos nas sementes e de-
pois aplica-se a tintura na pele. Quanto mais maduro estiver o fruto,
mais vermelha será a tinta.
O pajé então pediu para que sentássemos, pois iria começar a
fazer um ritual de inicialização. Ele nos mostrou seus instrumentos,
fez algumas danças, e nos chamou para participar. Foi como se tivés-
semos crescido no local.
Voltando para a voadeira, Regis e o pajé nos contaram histórias da
região. Eles têm celulares modernos, com redes sociais, fazem conta-
to com o exterior, e o pajé Kissibi já tinha até visitado a França.
172 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Nossa última parada foi novamente em Manaus, para participar-
mos de um sarau na Livraria Valer. Lá conhecemos os artistas lo-
cais Lucinha Cabral, Dori Carvalho e Tenório Teles. Devo destacar
que Lucinha parecia ter engolido um passarinho, quiçá um tuiuiú da
Amazônia, pois fazia sons inexplicáveis com a boca.
173Sobre os autores
Sobre os autores
Bruna Alves
Bruna tem 20 anos, é moradora da Zona Norte do Rio de Janeiro
e estuda no município de Duque de Caxias (Baixada Fluminense).
Cursou o Turista Aprendiz na Biblioteca Parque do Alemão.
Bruno Lima
Bruno tem 18 anos, estuda no Colégio Estadual Compositor
Luiz Carlos da Vila e mora em Manguinhos. Foi aluno do Turista
Aprendiz na Biblioteca Parque de seu bairro.
Caroline Rodrigues
Caroline tem 16 anos, mora com os pais na comunidade da Roci-
nha e está na 2a série do Ensino Médio. Cursou a Oficina na Biblio-
teca Parque da Rocinha.
Davi Nascimento
Davi tem 17 anos, mora em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.
Acaba de concluir o Ensino Médio na Escola Municipal Thomas Mann.
Sua formação no Turista Aprendiz foi na Biblioteca Parque Estadual.
174 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Douglas de Paulo
Douglas tem 19 anos, é estudante, nasceu e cresceu em Niterói,
mas mora atualmente na comunidade da Rocinha onde cursou a
Oficina na Biblioteca Parque local.
Emely Helen
Emely está com 15 anos e acaba de concluir o Ensino Funda-
mental na Escola Municipal João Barbalho. Fez a Oficina Turista
Aprendiz na Biblioteca Parque do Alemão.
Estefani Basilo
Estefani tem 17 anos, mora em Ramos e está iniciando a 2a sé-
rie do Ensino Médio no Colégio Estadual Jornalista Tim Lopes,
no Complexo do Alemão. Cursou o Turista Aprendiz na Biblioteca
Parque da mesma comunidade.
Fabrícia Mello
Fabrícia tem 18 anos, mora no bairro de Santa Cruz, zona oeste
carioca, e estuda no Colégio Estadual Erich Walter Heine. Cursou o
Turista Aprendiz na comunidade da Rocinha.
175Sobre os autores
Gabriel Leonne
Gabriel tem 18 anos, vive com sua família na zona oeste do Rio
de Janeiro. Cursa o Ensino Médio na FAETEC, mas acaba de passar
para Jornalismo na PUC-Rio. Fez o Turista Aprendiz na Biblioteca
Parque do Alemão.
Gabriel Mação
Gabriel Mação tem 19 anos e mora na zona norte do Rio de Janeiro.
Cursou o Turista Aprendiz na Biblioteca Parque de Manguinhos.
Guilherme Cunha
Guilherme tem 18 anos, mora na Tijuca, concluiu o Ensino Mé-
dio no Colégio Pedro II e entrou para o curso de Estudos de Mídia
na Universidade Federal Fluminense. Participou da Oficina na Bi-
blioteca Parque Estadual.
Juliana Lourenço
Juliana mora em Inhaúma, zona norte do Rio, tem 17 anos e faz o
Ensino Médio no Colégio Estadual Compositor Luiz Carlos da Vila.
Foi aluna do Turista Aprendiz na Biblioteca Parque de Manguinhos.
176 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Karen Campos
Karen tem 20 anos, mora na Cidade de Deus, zona oeste do Rio
de Janeiro. Está empenhada no cursinho pré-vestibular para entrar
para a faculdade de Letras. Cursou o Turista Aprendiz na Biblioteca
Parque Estadual.
Luana Batista
Luana tem 19 anos, nasceu em Niterói, mas mora na comunidade
da Rocinha desde pequena. Faz parte do Grupo de Break Conscien-
te da Rocinha (GBCR) e cursou o Turista Aprendiz no seu bairro.
Lucas Silva
Lucas cresceu em Nilópolis, município da Baixada Fluminense,
mas hoje mora em Paquetá (ilha da Baía de Guanabara – RJ). Tem
16 anos e estuda no Centro Educacional Ebenezer. Participou da
Oficina na Biblioteca Parque Estadual.
Robson Casciano
Robson tem 17 anos, é violinista, toca na Escola de Música da
Rocinha e estuda no Colégio Estadual André Maurois. Morador da
Rocinha, cursou a Oficina na Biblioteca Parque de sua comunidade.
177Agradecimentos
Thainar Xavier
Thainar tem 19 anos e mora em Realengo. Acaba de se formar na
FAETEC e ingressar na faculdade de Serviço Social da UFRJ. Foi
aluna do Turista Aprendiz na Biblioteca Parque Estadual.
Thamires Bonifácio
Thamires tem 15 anos, mora em Bonsucesso e estuda no Colégio
de Aplicação da UFRJ. Cursou a Oficina na Biblioteca Parque de
Manguinhos.
Valeska Angelo
Valeska tem 18 anos, mora na zona norte do Rio de Janeiro e aca-
ba de se formar no Colégio Estadual Mato Grosso. Cursou o Turista
Aprendiz na Biblioteca Parque de Manguinhos.
178 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Agradecimentos
Agradecemos imensamente a solidariedade das instituições que
nos acolheram durante as viagens pelo estado do Rio de Janeiro e
pelo país. Sem o apoio desta rede e a receptividade de seus produ-
tores, coordenadores e jovens atendidos, o Projeto Turista Aprendiz
seria inviável.
ASPTA – Agricultura Familiar e Agroecologia (Campina Grande – PB)
Associação Beneficente Arcanjo Gabryel (Penedo – RJ)
Associação das mulheres do Pesqueiro (Ilha de Marajó – PA)
ASSORAC Raízes da Cultura (Campina Grande – PB)
Casa de Cultura Arigóca (Porto Velho – RO)
Casa de Cultura Manoel Gonçalves de Souza Portugal (Rio Claro – RJ)
Casa do Coletivo Dirigível (Belém – PA)
CDDH – Centro de Defesa dos Direitos Humanos (Petrópolis - RJ)
Ciep 465 Dr Amilcar Pereira da Silva (Quissamã – RJ)
Colégio e Curso Eximius (Araruama – RJ)
CRESERTÃO (Sagarana – MG)
Ecovilinha (Alto Paraíso – GO)
179Agradecimentos
Escola Estadual Augusto Meshick (Petrópolis – RJ)
Fora do Eixo
Instituto Manaós (Manaus – AM)
Jovens de Expressão (Ceilândia – DF)
Laborarte (São Luiz – MA)
Mau Mau Galeria (Recife – PE)
Movimento Cultural Supernova (São Sebastião – DF)
PIM – Programa Integração pela Música (Vassouras – RJ)
Ponto de Cultura “Arte nos lençóis” (São Luiz – MA)
Ponto de Cultura Aprendendo a Construir Arte e Cultura (São Luiz – MA)
Ponto de Cultura Lumiar (Lumiar – RJ)
Pousada Serra da Bocaina (Paraty – RJ)
Prefeitura de Rio Claro (Rio Claro – RJ)
Quilombo do Campinho (Paraty – RJ)
Sarau Café e Prosa ( João Pessoa – PB)
Secretaria municipal de educação de Manaus (Manaus – AM)
Secretaria municipal de educação de Quissamã (Quissamã – RJ)
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Massaranduba (Massaranduba – PB)
Sobrado Cultura Rural (São Pedro da Serra – RJ)
180 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Aos nossos anfitriões pelas cidades do estado do Rio de Janeiro e
do país, e aos escritores e artistas que gentilmente aceitaram trocar
conosco durante esta jornada, seremos eternamente gratos. Guarda-
mos, com respeito e admiração, a convivência maravilhosa e as se-
mentinhas que plantaram nos turistas aprendizes.
Alex Varella
Ana Cristina Ribeiro
Andrea Alves
Ângela Melim
Antônio Cícero
Antônio Marinho
Aziel Lima
Bruno Borja
Bruno dos Santos
Bruno Gaudêncio
Carlito Azevedo
Creuza Barbosa
Cris Penante
Diego Batista Gama
Dori Carvalho
Écio Salles
Elizeu Braga
Erick Moraes
Flavia Avla
Gonçalo Ferreira da Silva
Gustavo Praça
Heyk Pimenta
Isaac Mendes
Ivan Anjo Diniz
Jesse Andarilho
José Renato Vianna
Keila dos Santos
Lana Almendra
Leize Maciel
Leninha
181Agradecimentos
Lucinha Cabral
Luiz Filho Igbá
Luiza Borba
Manoel Belizário
Márcio Calixto
Matheus Mineiro
Michelle Azevedo
Ovídio Poli Junior
Patrícia Azevedo
Paulo Dagomé & família
Pedro Lago
Ramón Rivera
Rafael Bacelar
Raphael Vidal
Regina Mourão
Ricardo Chacal
Steven Bates
Suzy Lopes
Tenório Telles
Virgílio
Zelma Rabelo
Zezito Freire
Waldeci
Waldir Júnior
182 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil
Por fim, agradecemos à maravilhosa equipe que construiu essa
primeira edição do Projeto. Estamos juntos e misturados até o final!
Alexandre Aquino
Alice Souto
Clarissa Calado
Eduardo Lamas
Fernanda Schnoor
Fernando Timba
Flávio Mello
Guilherme Gonçalves
Glenda Albuquerque
Janete Farias
Julia Barreto
Marcelo Castañeda
Patrícia Azevedo
Paulo Almeida
Rafael Zacca
Ricardo Mölnar
Simone Vieira
Valeska Angelo
Rio de Janeiro, abril de 2015