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CDD: 869.899.673 DA RUPTURA À CONSOLIDAÇÃO: UM ESBOÇO DO PERCURSO LITERÁRIO ANGOLANO DE 1948 A 1975 FROM THE RUPTURE TO THE CONSOLIDATION: A SKETCH OF THE ROAD TAKEN BY THE ANGOLAN LITERATURE FROM 1948 TO 1975 Donizeth Aparecido dos Santos 1 1 Autor para contato: Faculdade de Telêmaco Borba - FATEB,Telêmaco Borba, PR, Brasil; (43) 3429-1946; e-mail: [email protected] Recebido para publicação em 15/02/2006 Aceito para publicação em 02/10/2006 RESUMO Este artigo traz um esboço do percurso literário angolano entre 1948, ano em que surge o Movimento Vamos Descobrir Angola, e 1975, quando acontece a independência política angolana e é criada a União dos Escritores Angolanos (UEA). Esse período da literatura angolana se enquadra na 3ª fase de desenvolvimento da literatura produzida por povos colonizados, descrita por Frantz Fanon (1963) como “fase revolucionaria/nacionalista”, na qual há uma ruptura com os padrões estéticos e temáticos da literatura metropolitana. Após o início da ruptura em 1948, começa a surgir em Angola uma literatura alicerçada nos valores culturais africanos e angolanos. Num primeiro momento (década de 50), as inovações aparecem apenas na poesia, estendendo-se à prosa na década seguinte (60), até atingirem sua plenitude na década de 70, após a criação da UEA, quando a literatura angolana é consolidada. Outro fator importante nesse percurso de 27 anos é o papel desempenhado pelos movi- mentos culturais, agremiações e editoras que, mesmo sob o olhar vigilante do poder colonial, contribuem decisivamente para a formação da literatura angolana. Palavras-chave: literatura angolana; Movimento Vamos Descobrir Angola; Casa dos Estudantes do Império; União dos Escritores Angolanos; literatura pós-colonial ABSTRACT This paper aims to make a sketch of the road taken by the Angolan Literature from 1948 – when the “Let’s Discover Angola Movement” appears - to 1975, when the Angolan Independence is won and the Union of the Angolan Writers (UAW) is founded. This period of the Angolan literature fits the 3 rd . phase of the development of the literature produced by colonized people, described by Franz Publ. UEPG Ci. Hum., Ci. Soc. Apl., Ling., Letras e Artes, Ponta Grossa, 15 (1) 31-42, jun. 2007

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CDD: 869.899.673

DA RUPTURA À CONSOLIDAÇÃO: UM ESBOÇO DOPERCURSO LITERÁRIO ANGOLANO DE 1948 A 1975

FROM THE RUPTURE TO THE CONSOLIDATION:A SKETCH OF THE ROAD TAKEN BY THE ANGOLAN

LITERATURE FROM 1948 TO 1975

Donizeth Aparecido dos Santos1

1 Autor para contato: Faculdade de Telêmaco Borba - FATEB,Telêmaco Borba, PR,Brasil; (43) 3429-1946; e-mail: [email protected]

Recebido para publicação em 15/02/2006Aceito para publicação em 02/10/2006

RESUMO

Este artigo traz um esboço do percurso literário angolano entre 1948, ano emque surge o Movimento Vamos Descobrir Angola, e 1975, quando acontece aindependência política angolana e é criada a União dos Escritores Angolanos (UEA).Esse período da literatura angolana se enquadra na 3ª fase de desenvolvimento daliteratura produzida por povos colonizados, descrita por Frantz Fanon (1963) como“fase revolucionaria/nacionalista”, na qual há uma ruptura com os padrões estéticose temáticos da literatura metropolitana. Após o início da ruptura em 1948, começa asurgir em Angola uma literatura alicerçada nos valores culturais africanos e angolanos.Num primeiro momento (década de 50), as inovações aparecem apenas na poesia,estendendo-se à prosa na década seguinte (60), até atingirem sua plenitude na décadade 70, após a criação da UEA, quando a literatura angolana é consolidada. Outrofator importante nesse percurso de 27 anos é o papel desempenhado pelos movi-mentos culturais, agremiações e editoras que, mesmo sob o olhar vigilante do podercolonial, contribuem decisivamente para a formação da literatura angolana.

Palavras-chave: literatura angolana; Movimento Vamos Descobrir Angola; Casados Estudantes do Império; União dos Escritores Angolanos; literatura pós-colonial

ABSTRACT

This paper aims to make a sketch of the road taken by the Angolan Literaturefrom 1948 – when the “Let’s Discover Angola Movement” appears - to 1975,when the Angolan Independence is won and the Union of the Angolan Writers(UAW) is founded. This period of the Angolan literature fits the 3rd. phase of thedevelopment of the literature produced by colonized people, described by Franz

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32Fanon (1963) as “the revolutionary/nationalist phase”, in which there is a rupturewith the esthetic and thematic standards of the metropolitan literature. Right afterthis rupture, in 1948, there begins to appear a sort of literature founded on Africanand Angolan cultural values. At first, in the 1950s, the innovation can be detected inpoetry only, extending to prose in the following decade, the 1960s, and then reachingits summit in the 1970s, after the foundation of UAW, when the Angolan literature isconsolidated. Another important factor in this 27-year process is the role played bythe cultural movements, associations and publishers that, even under the powerfulcolonialist surveillance, decisively contribute to the formation of the Angolan literature.

Key words: angolan literature; Let´s Discover Angola Movement; Students´Houseof the Empire; Union of the Angola Writers; pos-colonial literature

Introdução

De acordo com Thomas Bonnici (2000, p.13),a emergência e o desenvolvimento de literaturas depovos colonizados dependem de dois fatores: “das eta-pas de conscientização nacional e da asserção de se-rem diferentes.” Na primeira etapa, a literatura produ-zida na colônia é escrita pelos próprios colonizadores,na segunda, é escrita pelos nativos mas apresenta umatotal dependência em relação ao modelo literário dopaís colonizador, e na terceira, há a ruptura com omodelo literário e com a dependência cultural do paíscolonizador. Bonnici, utilizando-se de exemplos das li-teraturas africanas de língua inglesa, descreve minuci-osamente essas três fases de desenvolvimento das lite-raturas pós-coloniais:

A primeira etapa envolve textos literários pro-duzidos por representantes do poder colonizador (vi-ajantes, administradores, soldados e esposas de ad-ministradores coloniais). Tais textos e reportagens, comdetalhes sobre costumes, fauna, flora e língua, dão ên-fase à metrópole em detrimento da colônia; privilegiamo centro em detrimento da periferia. /.../

A segunda etapa envolve textos literários escritossob supervisão imperial por nativos que recebe-ram sua educação na metrópole e que se sentiamgratificados em poder escrever na língua do eu-ropeu (não há consciência de ela ser também docolonizador). /.../Embora muitos dos temas (cul-

tura mais antiga do que a européia, a brutalidadedo sistema colonial, a riqueza de seus costumes,leis, cantos e provérbios) abordados por essesautores estivessem carregados de subversão, semdúvida não podiam e não queriam perceber essapotencialidade. /.../A terceira etapa envolve uma gama de textos, apartir de certo grau de diferenciação, até uma to-tal ruptura com os padrões emanados da metró-pole. Evidentemente, essas literaturas dependiamda ab-rogação do poder restritivo e da apropria-ção da linguagem/escrita para fins diferentes da-queles para os quais outrora foram usados. (2000,p.13-14)

A literatura angolana escrita em língua portugue-sa, sendo um produto derivado “das seqüelas docolonialismo” (Laranjeira 1985, p.10) europeu, nãofoge a essa regra. A sua primeira etapa de desenvolvi-mento engloba tudo o que foi produzido em Angola esobre Angola no período anterior a 18491, a segundaenvolve os textos produzidos a partir da publicação deEspontaneidades da minha alma, de José da SilvaMaia Ferreira, em 1849, indo até a véspera da criaçãodo Movimento Vamos Descobrir Angola em 1948, e aterceira começa com a eclosão desse movimento cul-tural que fará surgir em Angola uma literatura de natu-reza africana, livre da dependência da metrópole. Apartir desse movimento, segundo Pires Laranjeira (Ibid.,p.12) “a fase da bofetada no gosto do público de lín-gua portuguesa”, que vai até a independência política

1 A maioria dos críticos consideram a obra Espontaneidades da minha alma, de José da Silva Maia Ferreira, como o marco inicial da literaturaangolana, ignorando a produção anterior à sua publicação. Pires Laranjeira (1995), por exemplo, considera essa produção antecedente como escassosfragmentos de uma atividade literária de pouca importância, isolados num período de mais de três séculos.

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33em 1975, quando é fundada a União dos EscritoresAngolanos (UEA).

Essa terceira etapa de desenvolvimento de lite-raturas pós-coloniais descrita por Bonnici, coincidecom a terceira fase do processo de conscientizaçãodo intelectual nativo concebido por Frantz Fanon(1963) como a “fase de luta”, na qual “o intelectualnativo, após ter entranhado com o povo e no povo,começa a inflamar o povo... torna-se o despertadordo povo” (Fanon apud Bonnic, Op. cit., p. 27)

O Movimento Vamos Descobrir Angola: aruptura

Em 1948, quando jovens estudantes angolanos,conscientizados de que pouco ou nada sabiam sobre asua terra, lançaram o grito “Vamos descobrir Angola”,começou a mais importante fase da literatura angola-na. Foi o rito de passagem para a angolanidade: o es-tágio inicial de uma literatura moderna que começava areivindicar a sua maioridade. Foi o momento de ruptu-ra com os padrões estéticos que haviam moldado umséculo do fazer literário em Angola, em favor de umcaminho delineado pela africanidade e angolanidade,que seriam suportes da reivindicação de uma naçãolivre do domínio colonial. Foi o início da fase crucialpela qual passam as literaturas de povos colonizadosde que Fanon (Op. cit.) nos fala, de que somente apartir dela é possível falar de uma literatura verdadei-ramente nacional. Foi o momento em que a palavraliterária transformou-se em arma de combate.

Segundo Carlos Ervedosa (1979), angolanosnegros, brancos e mestiços iniciaram em 1948, emLuanda, o movimento cultural Vamos Descobrir An-gola, tendo em mente o estudo da terra em que nasce-ram e que tanto amavam, e que, no entanto, mal co-nheciam. Esses rapazes, totalmente assimilados à cul-tura européia, eram ex-alunos do liceu Salvador Cor-reia, que por um motivo ou por outro não puderam ir àmetrópole em busca de uma formação universitária.Eles haviam estudado toda a cultura portuguesa e sa-biam tudo sobre o país colonizador: a geografia, o cli-ma, a fauna, a flora, a literatura e as tradições culturais;ao mesmo tempo em que desconheciam Angola quase

completamente. Pouco sabiam sobre os afluentes doKuanza (o principal rio angolano) e as diversas etniasangolanas e suas tradições, e nada sobre a rainhaNzinga ou o rei Ngola.

Albert Memmi (1989, p.95), ao comentar essaprática colonialista de educar o colonizado na culturado colonizador, afirma que a criança “que tem a opor-tunidade de ser acolhida em uma escola, não será porela nacionalmente salva: a memória que lhe formam nãoé a de seu povo. A história que lhe contam não é asua”, ressalvando que a maior parte das crianças colo-nizadas está na rua. Salvato Trigo, fazendo eco aMemmi, acrescenta que a escola foi uma instituição degrande utilidade para o regime colonial:

Na escola, procurava-se dominar espiritualmenteos colonizados pelo apagamento dos seus valoresculturais e civilizacionais, pelo banimento da sualíngua, pela niilificação da sua história. Impunha-se outros valores estranhos à África, exigindo-seduma forma absoluta, a obediência à cultura e àcivilização européias que a escola colonial defen-dia e divulgava. (198-, p.148)

O escritor angolano Jofre Rocha (1997, p.221)observa que nesse período em Angola a política deassimilação cultural do poder colonial “visava acimade tudo domesticar e despersonalizar o homem ango-lano, procurando levá-lo a renegar os seus valores, assuas crenças, a sua fé, menosprezando o seu própriouniverso cultural”. Esse procedimento do governo por-tuguês vai de encontro à observação de Frantz Fanonsobre a violência do colonialismo em relação às tradi-ções culturais do colonizado: “O colonialismo não secontenta apenas em manter um povo em suas garras eem esvaziar o cérebro do nativo de qualquer forma econteúdo. Por uma espécie de lógica perversa, ele sevolta para o passado do povo, e o distorce, o desfigu-ra e o destrói” (Fanon, op. cit., p.192).

Para superar essa ignorância em relação ao meioem que viviam, os integrantes do Movimento VamosDescobrir Angola propunham uma redescoberta dosvalores culturais angolanos sufocados pela assimilaçãocultural. O ensaísta Mário de Andrade, um dos princi-pais intelectuais angolanos do período e também dahistória da literatura angolana, comenta a formulaçãoteórica e estética do movimento feita pelo seu líder, o

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34poeta Viriato da Cruz:

“O movimento”, escreveu ele mais tarde, “deve-ria retomar, mas sobretudo com outros métodos,o espírito combativo dos escritores dos fins doséculo XIX e dos princípios do actual. Esse movi-mento combatia o respeito exagerado pelos valo-res culturais do Ocidente (muitos dos quais cadu-cos); incitava os jovens a redescobrir Angola emtodos os seus aspectos através dum trabalhocolectivo organizado; exortava a produzir-se parao povo; solicitava-se o estudo das modernas cor-rentes culturais estrangeiras, mas com o fim derepensar e nacionalizar as suas criações positivase válidas, exigia a expressão dos interesses popu-lares e da autêntica natureza africana, mas semque se fizesse nenhuma concessão à sede deexotismo colonialista. Tudo deveria basear-se nocenso estético, na inteligência, na vontade e narazão africanas”.(Andrade, 1975, p.6)

Propondo olhar para Angola de modo aconhecê-la por inteiro, e aproveitando-se as boas con-tribuições deixadas por Cordeiro da Matta, AlfredoTroni e os jornalistas-escritores do início do séculoXX, o movimento não descartava o conhecimento dascorrentes culturais estrangeiras em voga e propunhautilizá-las como um meio de rever e nacionalizar suasproduções alicerçadas nas tradições culturais ango-lanas e voltadas ao povo angolano, num processo queentre outras coisas consistia na “deseuropeização dapalavra européia”, conforme afirmação de CostaAndrade (1980, p.34); processo este muito pareci-do com o antropofagismo proposto pelo brasileiroOswald de Andrade. Sobre essa possível influência,Carlos Ervedosa (Op. cit., p.105) afirma que essesjovens intelectuais que lançavam suas vozes num gri-to coletivo, “sabiam muito bem o que fora o movi-mento modernista brasileiro de 22. Até eles haviachegado, nítido, o grito do Ipiranga das artes e le-tras brasileiras”. Salvato Trigo também observa a in-fluência do Modernismo brasileiro sobre o movimen-to literário angolano:

Terá sido o modernismo brasileiro um dos movi-mentos literários estrangeiros que mais incentivoprestou a esses jovens, sequiosos de produziremuma literatura capaz de traduzir correctamente

as ansiedades, as inquietudes, os problemas gra-ves com que a sua terra se debatia. (1977, p.151)

A partir do Movimento Vamos Descobrir An-gola, segundo Ervedosa (Op. cit.), começava a germi-nar uma literatura que seria a expressão dos sentimen-tos e o veículo das aspirações angolanas. Em 1950,esse movimento transformou-se no Movimento dosNovos Intelectuais de Angola (MNIA), adquirindo umcaráter quase exclusivamente literário:

O Movimento dos Novos Intelectuais de Angolafoi essencialmente um movimento de poetas, vi-rados para o seu povo e utilizando nas produçõesuma simbologia que a própria terra exuberante-mente oferece. O vermelho revolucionário daspapoilas dos trigais europeus, encontraram-no, ospoetas angolanos nas pétalas de fogo das acácias,e a cantada singeleza das violetas, na humildadedos “beijos-de-mulata” que crescem pelos baldi-os ao acaso. Os seus poemas trazem o aromavariado e estonteante da selva, o colorido dos po-entes africanos, o sabor agridoce dos seus frutose a musicalidade nostálgica da marimba. Mas vêmtambém palpitantes de vida, com o cheiro verda-deiro dos homens que trabalham, o gosto salgadodas suas lágrimas de desespero e a certeza ina-balável na madrugada que sempre raia para anun-ciar o novo dia.Assim, os novos poetas foram cantando, com vozprópria, a terra angolana e as suas gentes.(Ervedosa, op. cit., p.107)

Essa definição do Movimento dos Novos In-telectuais de Angola e a formulação teórica do seuantecessor Vamos Descobrir Angola feita por Viriatoda Cruz vão de encontro aos indícios apontados porFanon para a reestruturação da cultura nacional:

a) o escritor ou intelectual tem necessidade dever e compreender claramente o povo (o objetode sua poética), através de um processo de auto-imersão cultural; b) a ação da luta maior da liber-tação nacional, o que implica que cultura nacio-nal deve estar a serviço da libertação nacional; c)o escritor ou intelectual nacionalista deve se pre-ocupar com o passado a fim de que se abra ofuturo, que é um convite à ação e a base para aesperança. (Fanon apud Bonnic, op. cit., p.29)

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35A Casa dos Estudantes do Império (CEI): a rup-

tura continuaParalelamente ao Movimento Vamos Descobrir

Angola, os estudantes que tiveram a possibilidade deconcluir seus estudos na metrópole após o término doliceu em Luanda, ao chegarem lá, entraram em contatocom as idéias libertárias e as modernas correntes lite-rárias em voga na Europa, como o Renascimento Ne-gro norte-americano e a Negritude francófona, ambosde ideologia pan-africanista, e também com o Neo-realismo português e o Modernismo brasileiro. Essasdescobertas intelectuais seriam as principais respon-sáveis pela mudança de direção e postura político-cul-tural que eles sofreriam.

A partir de então, também sofreram um pro-cesso de conscientização e começaram a descobrir suasorigens africanas, percebendo a opressão que recaiasobre eles, sobretudo em seus irmãos de raça nas co-lônias. Pires Laranjeira comenta essa descoberta deidentidade e da realidade africana pelos africanos cul-tos:

Os africanos que conseguem estudar e atingir umcerto nível de consciência social, mesmo benefi-ciando de algumas benesses da cidade de betão,tem tendência a sentir-se identificados com amassa da população que vegeta e sobrevive porentre inúmeras dificuldades. A raça, o grupo étni-co, cor da pele, funcionam como um sinal de alar-me do que eles, nas mesmas condições poderiamter sofrido na carne. Ao descobrirem que igno-ram quase tudo sobre a cultura e os costumes dosseus semelhantes, sentir-se-ão como autênticosestrangeiros na sua terra e verdadeiros intrusosnas metrópoles européias, onde vestem a pele dosseus patrícios das colônias. Escrevendo por catarsee revolta, irão descobrir a África profunda, que écomo quem diz, a raça e a etnia como factores decultura, identidade e afirmação. O tema étnico,nesse renascimento representa para os africanosa busca mirífica de consistência das raízes, daorigem, de um específico tronco da árvore da vida.(1995a, p.414)

Após a descoberta das origens, os estudantesangolanos juntamente com estudantes oriundos de ou-tras colônias portuguesas assumiram a direção da Casados Estudantes do Império (CEI), órgão de apoio aos

estudantes ultramarinos fundado em 1945 em Lisboa,abrindo posteriormente uma delegação também emCoimbra, e que até então, segundo o escritor angola-no Jofre Rocha (Op. cit., p.222), seguia uma orienta-ção de total subordinação aos interesses do governofascista português. A partir do controle dessaagremiação, transformam-na numa base de atividadesculturais com alto teor anti-colonial.

Esse despertar coletivo da consciência angola-na, que atingiu simultaneamente a colônia e a metrópo-le em razão do constante intercâmbio de informaçõesque o Movimento Vamos Descobrir Angola mantinhacom a Casa dos Estudantes do Império (CEI), foi umaconseqüência direta dos ventos favoráveis às reivindi-cações de liberdade, gerados pelo término da Segun-da Guerra Mundial com a derrota dos regimes autori-tários, que criaram condições para o início do proces-so de descolonização das colônias européias na Áfricae na Ásia. David Mestre e Amável Fernandes confir-mam algumas das nossas palavras:

Esta ruptura, um verdadeiro corte histórico-lite-rário, e também um epifenómeno da influênciamarxista após a Segunda Guerra Mundial e, noplano literário, uma conseqüência da divulgaçãoda estética neo-realista, entroncada na correnteamericana da “Black Consciousness” que vemde Melvile a Langston Hughes, a Aimé Césaire ea outros.(1982, p.9)

Desse modo, segundo Ervedosa (Op. cit.,p.105), assistiu-se entre o final dos anos 40 e o iníciodos anos 50 ao desenvolvimento de um fenômeno lite-rário original no âmbito das literaturas africanas de ex-pressão portuguesa, levado a cabo por jovens intelec-tuais angolanos espalhados por Luanda, Coimbra eLisboa. Os principais nomes dessa geração, que ficouconhecida como a “geração de Mensagem”, foramViriato da Cruz, António Jacinto, António Cardoso, Agos-tinho Neto e Mário Pinto de Andrade.

A década de 50

O MNIA e a CEI foram responsáveis pelas prin-cipais publicações poéticas na década de 50. De acor-

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36do com Jofre Rocha (Op. cit.), a atividade editorial daCEI “desempenhou papel de primordial importânciana divulgação dos autores angolanos silenciados pelabarreira da censura e contribuiu de forma decisiva parachamar a atenção do mundo para os dramas que An-gola vivia”. Em 1948 a CEI de Lisboa publicou o bo-letim literário Mensagem, enquanto que a de Coimbrapublicou o similar Meridiano. Dois anos depois (1950),O MNIA publicou a Antologia dos novos poetas deAngola, um modesto caderno artesanal contendo po-emas de António Jacinto, Viriato da Cruz e Mauríciode Almeida Gomes. E no ano seguinte, através doDepartamento Cultural da Associação dos Naturais deAngola (ANANGOLA), o movimento publicou a re-vista Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola,cujo projeto vasto e ambicioso, era, a urgência de

criar e levar a Cultura de Angola além fronteiras,na voz altissonante dos nossos poetas e escrito-res; na paleta e no cinzel seguro dos nossos artis-tas plásticos; ao som dos acordes triunfais da nossamúsica que os nossos músicos e compositores irãobuscar aos férteis motivos que a nossa Terra, gran-de e maravilhosa, lhes oferece. (Ferreira, 1987a,p. 8)

De acordo com Manuel Ferreira (1987b), essarevista foi a porta-voz do MNIA, traduzindo-o em to-das as esferas culturais, e apesar de não ter cumpridotodos os seus objetivos em razão de sua efêmera exis-tência abriu caminhos novos, principalmente ao contoe à poesia, sendo que em suas páginas se definem al-gumas das linhas mais importantes da nova poesia an-golana.

Mas como era de se esperar, as autoridadescoloniais não permitiram que a revista de conteúdo anti-colonial ultrapassasse a segunda edição, decretandotambém o fim do movimento (MNIA) que a conce-beu. No entanto, a sua missão estava cumprida: a po-esia de Angola estava criada. No dizer de Mário deAndrade (Op. cit., p.7) “a geração da Mensagem en-toou, com efeito, o novo canto da angolanidade”, eatravés, sobretudo, dos poemas de Viriato da Cruz,António Jacinto e Agostinho Neto nasceu a literaturaangolana moderna. Segundo Ervedosa (OP. cit.,p.125), muitos dos poemas publicados em Mensagem

circularam clandestinamente durante anos pelas mãosdos jovens angolanos, que os copiavam e declamavamnas suas reuniões privadas.

No ano seguinte à proibição de Mensagem, oangolano Mário de Andrade e o santomense FranciscoJosé Tenreiro publicaram em Lisboa o caderno poesiasde poetas de Angola, Cabo Verde, Moçambique, SãoTomé e Príncipe e Guiné-Bissau. Segundo informaçãode Pires Laranjeira (1985, p.33), nos anos de 54 e 55,o Jornal de Angola publicou poemas de Viriato da Cruz,Alda Lara e Aires de Almeida Santos, e em 1956 foipublicado Poesias, de Mário António. Também em 1956foi criado o Movimento Popular de Libertação de An-gola (MPLA) ao qual, de imediato aderiram os intelec-tuais do país, muitos dos quais haviam pertencido à ex-tinta revista Mensagem.

A partir de 1957, o jornal Cultura, órgão daSociedade Cultural de Angola, volta a circular com umadiretriz editorial muito próxima à da Mensagem, carac-terizando-se como o herdeiro do legado deixado porela. O Jornal Cultura em sua segunda fase, denomina-do de Cultura II, circulou de 1957 a 1960, totalizandodoze números editados, nos quais foram publicados tex-tos de autores já conhecidos como Agostinho Neto,Antero de Abreu, Óscar Ribas, Mário António, AntónioCardoso e António Jacinto; e também de autores que apartir daquele periódico entrariam para a história da li-teratura angolana. Carlos Ervedosa (Op. cit., p.128) in-forma que através dele foram revelados os poetasArnaldo Santos (também contista), Costa Andrade, JoãoAbel, Manuel Lima, Henrique Guerra, Ernesto Lara Fi-lho; os contistas José Luandino Vieira, Mário Guerra,Hélder Neto; o etnólogo Henrique Abranches e oensaísta Adolfo Maria; além é claro do próprio CarlosErvedosa, que sobre essa nova geração angolana afir-ma:

Desmembrada e extinta a Mensagem, com as suasprincipais figuras engajadas na luta política, aber-ta ou clandestina, uma nova camada juvenil surgea preencher os lugares deixados vagos, prosse-guindo, especialmente na Sociedade Cultural deAngola, na Associação dos Naturais de Angola ena Casa dos Estudantes do Império, a tarefa deconsciencialização e unidade nacional através dacultura. (Ibid., p.126)

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37Pires Laranjeira faz uma observação sobre a

importância do compromisso cultural de Cultura II:

apresentava-se como um jornal cultural voltadopara a angolanidade, entendida num sentido maisamplo do que a da Mensagem, na medida em que,de facto, mostrava abertura aos vários quadrantesda sociedade angolana empenhados na desalie-nação, na instrução e na produção de uma culturaviva, baseada na tradição africana, sem descuraros contributos internacionais, como se vê pelasvariadas colaborações. (1995b, p.104)

O autor também afirma que o Neo-realismo eNegritude foram as duas principais tendências estéti-cas e ideológicas que nortearam as produções literári-as publicadas pelo periódico, ao mesmo tempo em queseus colaboradores recusavam os valores do luso-tropicalismo, e observa ainda que por baixo do proje-to visível da revista, que era propiciar meios para aexpressão literária e crítica da sociedade angolana,escondia-se um programa subterrâneo de cariz revo-lucionário, baseado na análise econômica e social.Abaixo um fragmento de um editorial da revista citadopelo autor:

Múltiplos e complexos são os problemas cultu-rais em Angola. Problemas que, tendo como base ques-tões econômicas e sociais, se ligam aos mais variadosproblemas da vida e dela são resultantes. Pode dizer-se que, enquanto estes problemas não foram resolvi-dos, toda a acção cultural há-de pecar por defeito.(apud., ibid., p.105).

Durante sua existência, o periódico manteve umaestreita sintonia com as atividades da CEI de Lisboa eCoimbra, inclusive, muitos de seus colaboradores per-tenciam a essa entidade.

Em 1959, a Sociedade Cultural de Angola rea-lizava em Luanda o primeiro colóquio sobre poesiaafricana, no qual entre as muitas questões discutidas,Mário António, em uma palestra, apresentou a primei-ra tentativa de classificação da poesia feita em Angola.Também em 1959 Carlos Ervedosa publicava Poetasangolanos. Mas, ao fim e ao cabo, conforme obser-vação de Ervesosa, que os movimentos literários sur-gidos em Angola até o final da década de 50, em tornode Mensagem e Cultura II, não conseguiram ultra-passar o seu meio intelectual e ganhar a projeção que

teriam mais tarde, devido à falta de uma editora quepublicasse seus livros e ao descaso dos grandes meiosde informação. Segundo ele, essa situação só mudariaa partir de 1958, quando a CEI inicia a Colecção au-tores ultramarinos.

A década de 60

Antes de abordarmos a literatura dos anos 60, énecessário falarmos da segunda fase da obra de Cas-tro Soromenho. Ao mesmo tempo em que o MNIA eos estudantes da CEI renovavam a poesia angolana,na prosa um importante passo era dado isoladamentepor Castro Soromenho. Em 1949 ele publicou Terramorta e iniciou uma nova fase em sua obra, elaboran-do uma literatura de caráter anti-colonial (amparadana corrente literária neo-realista), que acenava novoscaminhos para a prosa angolana. Na esteira de Terramorta, vieram depois Viragem (1957) e A chaga,publicado postumamente em 1970, formando a suacélebre trilogia em que “revela a sua consciencializaçãopolítica no seu tratamento das relações entre coloniza-dos e colonizadores” (Hamilton, 1981, p.61).

A transição da década de 50 para a de 60 foium período agitado em Angola, com muitas movimen-tações políticas em conseqüência da criação do MPLAem 1956. Muitos escritores pertencentes ao movimentoforam presos, acusados de atividades subversivas pelopoder colonial, e assim os anos 60 começaram emAngola com o assalto às prisões de Luanda em 4 defevereiro de 1961, levado a cabo pelo MPLA, na ten-tativa de libertar dirigentes que ali cumpriam pena. Oplano fracassou mas este fato ficou como o marco ini-cial da guerra de libertação nacional. Em contrapartida,o poder colonial revidou violentamente, tornando cadavez mais tensas a relação colonizador X colonizado.

No entanto, apesar das dificuldades causadaspelos problemas políticos, o início dos anos 60 tam-bém foi caracterizado pelo aumento de publicações deautores angolanos. Nesse período foram publicadaspela Colecção autores ultramarinos da CEI obrasde Mário António, Arnaldo Santos, Viriato da Cruz,António Cardoso, Costa Andrade, Manuel Lima,Agostinho Neto, António Jacinto e Alexandre Daskálos,

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38e ainda a Antologia africana de expressão portu-guesa de Mário de Andrade (publicada em Argel), aantologia Poetas angolanos de Alfredo Margarido,100 Poemas de Mário António e Picada demarimbondo de Ernesto Lara Filho, enquanto que emAngola, após a interrupção da publicação de CulturaII, surgia na pequena cidade de Sá da Bandeira (atualLubango) as Edições Imbondeiro, que teriam um pa-pel de destaque no meio editorial angolano.

As Edições Imbondeiro publicaram as Notíciasde Imbomdeiro e Colecção Imbondeiro, Contos d’África (1961), Novos contos d’ África (1962), asantologias Makua, nº 1 (1962), nº 2 e 3 (1963), nº 4(1963) e nº 5-6 (1964), Antologia poética angolana(1963), e Imbondeiro gigante, e ainda organizaram oI Encontro de Escritores de Angola realizado na cida-de de Sá da Bandeira, de 19 a 27 de janeiro de 1963,que só não foi um grande sucesso, tanto na opinião deCarlos Ervedosa quanto de Pires Laranjeira, devidoao início da guerra colonial, que havia levado escrito-res angolanos para a guerrilha, a prisão ou ao exílio.

Passaram pelas páginas das publicações daImbondeiro nomes importantes da literatura angolanacomo Mário António, Agostinho Neto, Aires deAlmeida Santos, Alda Lara, Alexandre Dáskalos, Ál-varo Reis, Antero Abreu, António Cardoso, AntónioNeto, Arnaldo Santos e Alfredo Margarido. E mesmotendo o espaço de manobra que lhe permitia publicartextos das mais diversas correntes literárias existentesem Angola2, as Edições Imbondeiro não fugiram aodestino comum dos movimentos e periódicos anterio-res, e assim, em 1965, a PIDE decretava o encerra-mento de suas atividades.

Outro elemento importante no contexto históri-co da literatura angolana foi o prêmio literário MariaJosé Abrantes da Motta, atribuído anualmente em Lu-anda. Carlos Ervedosa (Op. cit., p.135) ressalta aimportância que ele teve no cenário cultural dos anos60, premiando autores como Mário António, JoséLuandino Vieira, Arnaldo Santos, Candido Velha, Ge-raldo Bessa Victor, João-Maria Vilanova, Rui Duartede Carvalho e o próprio Carlos Ervedosa.

A partir da radicalização do confronto armadoentre a metrópole e a colônia, a maioria dos escritores

engajados que conseguiram evitar a prisão fugiram eaderiram à guerrilha, e desse ponto em diante, “a lite-ratura reivindicativa dos anos 50 dava lugar à literaturade maquis” (Ervedosa, Ibid., p.138), pois com o acir-ramento da guerra colonial, inclusive com entrada deoutras forças, como a UPA (futura FNLA) e a UNITA,ocorreu o endurecimento do poder colonial, que atra-vés da sua polícia política (PIDE) encerrou as ativida-des das agremiações culturais, prendendo e ameaçan-do seus principais dirigentes. Desse modo, segundoErvedosa (Ibid., p.137), foram fechados em Luanda aSociedade Cultural de Angola, o Cine Clube de Luan-da e a Associação dos Naturais de Angola, enquantoque em Portugal, a CEI e a Sociedade Portuguesa deEscritores também tiveram suas atividades encerradas.

A partir dos anos 60, a literatura angolana entroudefinitivamente na terceira fase de desenvolvimento deuma literatura colonizada descrita por Fanon: a fase deluta ou revolucionária e nacionalista:

No decorrer dessa fase, um grande número dehomens e mulheres que antes não haviam pensa-do jamais em escrever uma obra literária, agoraque se encontram em situações excepcionais, naprisão, na guerrilha ou na véspera de serem exe-cutados, sentem a necessidade de expressar a suanação, de compor a frase que expresse ao povo,de converter-se em porta-vozes de uma nova re-alidade em ação.O intelectual colonizado se dará conta mais cedoou mais tarde, de que não se prova a nação com acultura, senão com a que se manifesta na luta queo povo realiza contra as forças de ocupação.(Fanon, Op. cit., p. 203-4)

Desse modo, muitos escritores angolanos imbu-ídos de um espírito nacionalista e revolucionário foramproduzindo suas obras nas celas das prisões coloniais,nos intervalos da guerrilha e no exílio, onde buscavamchamar a atenção para o drama angolano e apoio paraa luta anti-colonial.

A década de 60 também foi o período do de-senvolvimento da prosa em Angola. O conto revestidode africanidade adquiriu contornos verdadeiramenteangolanos pelas mãos de Arnaldo Santos, Mário Guerra

2 Segundo Pires Laranjeira (1995b), as Edições Imbondeiro, adotando uma tática editorial que punha lado a lado escritores reacionários (simpatizantesdo regime colonial) e escritores nacionalistas angolanos, conseguiram dar voz a muitos desses escritores silenciados.

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39(Benúdia), Henrique Abranches e José Luandino Vieira,enquanto que o romance, através desse último, ressur-giu revitalizado, dando sinais da independência do gê-nero em relação ao modelo metropolitano. Nesse pe-ríodo, as conquistas da poesia da década passada che-garam até a prosa.

Também foi nos anos 60 que José LuandinoVieira escreveu sua obra, cuja maior parte só seriapublicada na década seguinte. De acordo com PiresLaranjeira (1995b, p.120), apenas os livros de contosA Cidade e a infância (1960), Duas histórias depequenos burgueses (1961) e Luuanda (1964) fo-ram publicados nesse período. A vida verdadeira deDomingos Xavier; Nós, os do Makulussu,Macanduva; João Vêncio: os seus amores, e DonaAntónia de Sousa Neto & Eu, só foram publicadosposteriormente.

José Luandino Vieira, conforme afirmamos an-teriormente, foi o responsável pelo ressurgimento doromance angolano, gênero antes limitado à produçãoisolada de Castro Soromenho. Segundo Rita Chaves(1999, p.162), “é precisamente com a obra deLuandino que o romance alcança sua consolidação.Com ele, pode-se considerar que o gênero está for-mado”. Outro escritor a enveredar pelo romance nadécada de 60 foi o poeta Manuel dos Santos Lima,que teve o seu romance As sementes da liberdadepublicado no Brasil em 1965.

No mesmo período, Mário António, dedican-do-se a prosa, publicou Crônica da cidade estranha(1964) e Terra no fim de semana (1965), estabele-cendo-se, na opinião de Hamilton (Op. cit., p.134),“como um cronista da burguesia mestiça de Luanda,retratando personagens que andam às cegas à procurade um sentido por detrás da sua existência ambígua”,deixando transparecer na maioria de seus contos umapreocupação com os níveis psicológicos do mestiço,dependentes da sua acomodação ao seu estado socialsob o regime colonialista. Comentando a situaçãodesconfortável a que a obra de Mário António foilançada naquele período, relegada às margens da ver-dadeira literatura angolana, observa que o escritor, “emparte por causa das circunstâncias e das suas opções,produziu obras de ficção contemplativas que artísticae historicamente são relevantes de toda uma proble-mática contida na realidade objectiva da Angola colo-

nial” (Hamilton, ibid., p.136).Russell Hamilton também destaca na década de

60 o nome de Domingos Van-Dúnem, descendente deuma tradicional família angolana e um anti-colonialistaconvicto nesse período, que devido às suas posiçõesfirmes acabou sendo preso pelo regime colonial. Van-Dúnem escreveu em 1957 Uma história singular, umconto que apesar de ser publicado somente nos anos70 não ficou desconhecido na época de sua concep-ção, devido ao autor distribuir cópias datilografadasaos amigos e interessados. Hamilton destaca Van-Dúnem, principalmente, pelo resgate da tradição cri-oulo-quimbundo que o escritor efetua através desseconto.

Na mesma época em que Russell Hamilton ob-serva esse ressurgimento crioulo-quimbundo, CarlosErvedosa (Op. cit.) identifica um outro ressurgimento:o da literatura exótica, o que no conturbado contextoangolano, agravado pela sangrenta guerra pela inde-pendência, pode ser interpretado como uma ofensivacolonial frente à literatura anti-colonial tida como umadas armas de combate do MPLA, cujos quadros decomando, em sua maioria eram ocupados por intelec-tuais. Essa investida cultural metropolitana permitia, deacordo com Hamilton (Op. cit.), certas expressõesculturais africanas, visando com este procedimentoenfraquecer um dos mais importantes meios de resis-tência que era a reivindicação cultural.

A década de 70

A pequena abertura no plano cultural, iniciada apartir da morte do ditador António Salazar em 1968(mas o regime fascista teve continuação com MarceloCaetano), fez com que a década de 70 se iniciassecom certo grau de liberdade. Muitos dos escritoresque tinham sido condenados a longos anos de prisãodeixaram o cárcere nesse início de década e Angolapassou a condição de estado português. Desse modo,nesses poucos anos que antecederam a independên-cia, houve um reavivamento da atividade literária emAngola. Uma das molas propulsoras desse ressurgi-mento literário foi a criação em 1971, do suplementoliterário Artes e Letras, do jornal A Província de

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40Angola, dirigido por Carlos Ervedosa.

Pires Laranjeira (1995b, p.134) lembra que naspáginas culturais de A Província de Angola, no su-plemento literário do Diário de Luanda e na revistaPrisma, procurava-se exercer uma crítica alusiva àgenuína literatura angolana e punia-se tudo quanto eraliteratura de fraca qualidade, colonialista ou oportunis-ta, procurando apontar ao leitor a autêntica leitura.Também nesse período, segundo Carlos Ervedosa (Op.cit., p.150), um concurso literário promovido por umacervejaria premiou as obras Bom dia, de João Abel,Crônica do gheto, de David Mestre, e Auto de na-tal, de Domingos Van-Dúnem, enquanto que em Lobitoiniciava-se a edição dos Cadernos Capricórnios, quedariam oportunidade aos novos escritores angolanosde publicarem seus escritos, e Russell Hamilton (Op.cit., p.150) acrescenta a essa lista as revistas de artese letras Convivium (1970-71), Vector (1971-72) eNoite e Dia (1970). Esta última, uma revista comerci-al direcionada à pequena sociedade de consumo, con-tava com Domingos Van-Dúnem entre os seus cola-boradores, com a coluna Folclore e Tradição.

Dentre as obras literárias relevantes surgidas naprimeira metade da década de 70, a poesia conti-nuou sendo o principal gênero cultivado enquanto quea crítica literária começou a nascer no território an-golano, através das obras de David Mestre, Críticaliterária em Angola: resenha histórica e situaçãoactual (1971) e de Carlos Ervedosa, Itinerário daliteratura angolana (1972). Nesse curto período asprincipais obras publicadas foram: As mulheres(1970), Pai Ramos (1971) e Irmã humanidade(1973), de Jorge Macedo; Auto de natal (1972), deDomingos Van-Dúnem; A Última narrativa de VavóKiala (1973) e Resignação (1974), de ArtistidesVan-Dúnem; Mestre Tamoda (1974), de UanhengaXitu; Vinte canções para Ximinha (1971), de João-Maria Vilanova; Chão de Oferta (1972), de RuyDuarte de Carvalho; Tempo de cicio (1973), de JofreRocha; Crónica do ghetto (1973), de David Mes-tre; A onda (1973) e Regresso adiado (1973), deManuel Rui; Bom Dia (1971) e Nome de mulher(1973), de João Abel; A vida verdadeira de Do-mingos Xavier (1974), Velhas estórias (1974), Noantigamente, na vida (1974) e Nós, os do

Makulusssu (1975), de José Luandino Vieira; e asérie poética Kuzuela (1973), de David Mestre eLusiário António Chifuchi, teve três números edita-dos, nos quais publicaram-se poemas de escritoresangolanos, portugueses, moçambicanos e euro-afri-canos.

Mas, apesar do grande número de publicaçõesdo período, segundo Hamilton (Op. Cit.., p.154), am-parando-se nas palavras de Jofre Rocha, esses pri-meiros anos da década de 70 eram um horror de si-lêncio. Essa opinião é compartilhada por Pires La-ranjeira ao interpretar Tempo de cicio como tempode sussurrar, ou seja, o único meio de se comunicarnum ambiente repressivo. No entanto, a Revoluçãodos Cravos, em abril de 1974, ecoou em Angola tra-zendo promissores ares de liberdade, provocando aquebra do silêncio imposto pelo antigo regime, o queocasionou “uma onda de reedições de poemas e con-tos, e no Artes e Letras de A Província de Angola,apareceram artigos celebrando, escritores, rein-terpretando o passado e prognosticando o futuro dascolónias rumo à sua independência” (Hamilton, ibid.,p.157). O crítico também observa que em dezembrode 1974 foi editado um único número de Ngoma:Revista Angolense de Literatura, que apesar de suaefemeridade teve um papel relevante no desenvolvi-mento da literatura angolana, Colaboram nesse nú-mero João-Maria Vilanova, Jorge Macedo, AristidesVan-Dúnem, Arnaldo Santos, Domingos Van-Dúnem,José Luandino Vieira e Jofre Rocha.

Às vésperas da independência política, em se-tembro de 1975, sob a organização do poeta AntónioCardoso, estreava no Diário de Luanda um novosuplemento cultural denominado Resistência. Dessemodo, sendo o poeta um ex-preso político e mem-bro do MPLA, estavam os intelectuais do movimen-to revolucionário, na visão de Hamilton (Ibid.), a apo-derarem-se definitivamente dos meios de produção epropagação cultural. Nessa página literária foram pu-blicados poemas, contos e ensaios de escritores an-golanos, moçambicanos, cabo-verdianos, guineenses,são-tomenses e escritores progressistas de outras na-cionalidades, desde que se situassem na “perspectivahumanizante e científica que postulava o fim, da ex-ploração do homem pelo homem” (Id., ibid.).

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41A criação da União dos Escritores Angolanos (UEA): a consolidação

A independência política chegou à meia-noite dodia 11 de novembro de 1975 e com ela mudou-se opanorama da cultura angolana. Como já é sabido, omovimento de libertação nacional angolano, concebidoa partir de movimentos culturais, contava com a presen-ça de escritores entre os principais fundadores e líderes.Escritores que deram sua contribuição das mais varia-das formas possíveis: no front da batalha comandandotropas, produzindo na prisão obras literárias de mensa-gem anti-colonial que pudessem conscientizar e encora-jar os angolanos, ou no exílio, chamando a atenção domundo para o drama angolano. Desse modo, é naturalque uma das primeiras medidas tomadas pelo governodo MPLA ao assumir o poder, constituindo como pre-sidente da república o poeta Agostinho Neto, fosse acriação de um órgão editorial que pudesse viabilizar apublicação de inúmeras obras escritas durante o perío-do colonial. Assim nasceu a União dos Escritores An-golanos (UEA) em 10 de dezembro de 1975, um mêsapós a independência angolana. Na opinião de Hamil-ton (Ibid., p.167-8), a proclamação da UEA, num cli-ma civil-militar ainda instável, “é testemunho vivo dopapel que o escritor e a literatura desempenhavam nanova sociedade em formação”.

Russell Hamilton (Ibid., p.168-9) observa queos dirigentes do MPLA, a começar pelo próprio poe-ta-presidente, cientes do papel significativo que a lite-ratura pode desempenhar na árdua tarefa da unifica-ção nacional, apressaram-se a concretizar bases paraa produção literária em Angola. Desse modo, a UEA,de 1976 a 1979, editou cinqüenta e dois livros, onzelivros de bolso, e vinte quatro cadernos, totalizando798.040 exemplares.

É importante salientar novamente que grandeparte das obras publicadas pela UEA nesse períodoforam escritas no início dos anos 70 ou nas décadasanteriores durante a guerrilha, o exílio ou a prisão, comoforam os casos de Sagrada esperança, de AgostinhoNeto, As aventuras de Ngunga, de Pepetela, e asobras de José Luandino Vieira. Essa avalanche de pu-blicações promovidas pela UEA, trazendo à luz obrasinéditas ou não de grandes escritores angolanos e tam-bém figuras importantes do movimento de libertação

nacional, teve um papel essencial na consolidação daliteratura angolana. Conforme a afirmação de PiresLaranjeira (1995b, p.165), “a divulgação dos inéditosde José Luandino Vieira, Pepetela, Uanhenga Xitu eoutros contribuiu decisivamente para a confirmação deAngola como a maior força literária dos cinco paísesemergentes”.

Conclusão

A partir desse primeiro momento da UEA, des-sa febre editorial que resgatou inúmeras obras literári-as caladas pelo regime colonial, a literatura angolanaem liberdade seguiria outros rumos, tornando-se maisheterogênea e abrigando em seu bojo diferentes ten-dências estéticas. Muitos outros escritores surgiram noperíodo pós-independência e foram se juntar aos jácitados anteriormente no cânone literário angolano.Dentre eles, podemos citar, com a ajuda de Pires La-ranjeira (Ibid.) e Russell Hamilton (Op. cit.), os nomesde José Eduardo Agualusa, João Melo, Jorge Macedo,Garcia Bires, Adriano Botelho de Vasconcelos, JoãoMaimona, J. A. S. Lopito Feijó K., E. Bonavena, JoséLuís Mendonça, Paula Tavares, Luís Kanjimbo, CarlosFerreira, António Fonseca, Lisa Cristel, Victor Jorge,Luís Elias Queta, Rui Augusto, Ana de Santana, Fra-gata de Moraes, Roderick Neohne, Conceição Cris-tóvão, Cristóvão Neto, Fernando Couto, CarlosFerreira, António Jorge Monteiro dos Santos, FernandoMonteiro, Samuel de Sousa, Rui Bueti, Otaviano Cor-reia, Rosário Marcelino, Maria do Carmo e ManuelPedro Pacavira.

Desse modo, com a independência política deAngola e a criação da UEA em 1975 completa-se operíodo de ruptura da literatura angolana, iniciado como Movimento Vamos Descobrir Angola em 1948. Apósesse período de luta e maturação, a literatura angolanapode se considerar consolidada e adulta, apesar demuito jovem.

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