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CLAUDIO ROBERTO PERASSOLI JÚNIOR DOS FUNDAMENTOS DE PEIRCE À HIPERMÍDIA: UM PANORAMA SEMIÓTICO INTERPRETATIVO DA SÉRIE TELEVISA GLEE ASSIS 2011

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CLAUDIO ROBERTO PERASSOLI JÚNIOR

DOS FUNDAMENTOS DE PEIRCE À HIPERMÍDIA: UM PANORAMA

SEMIÓTICO INTERPRETATIVO DA SÉRIE TELEVISA GLEE

ASSIS

2011

CLAUDIO ROBERTO PERASSOLI JÚNIOR

DOS FUNDAMENTOS DE PEIRCE À HIPERMÍDIA: UM PANORAMA

SEMIÓTICO INTERPRETATIVO DA SÉRIE TELEVISA GLEE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao

Instituto Municipal de Ensino Superior de Assis –

IMESA e à Fundação Educacional do Município de

Assis – FEMA como requisito parcial para a obtenção

do título de Bacharel em Jornalismo.

Orientadora: Profª. Dr.ª Alcioni Galdino Vieira.

ASSIS

2011

BANCA AVALIADORA

ORIENTADORA:_________________________________________________________

Dr.ª Alcioni Galdino Vieira

ANALISADOR (1):______________________________________________________

Dr.ª. Márcia Valéria Seródio Carbone

DEDICATÓRIA

Àqueles que se perpetuam pelo tempo

apenas através de duas forças: a da palavra

e a do amor.

AGRADECIMENTO

Quero agradecer, primeiramente, apenas o dom da vida que me foi concedido.

Deus, o destino, como quiserem chamar esta força maior, que me concedeu a

oportunidade de existir, de poder conhecer novas pessoas, lugares, e poder traçar,

por meu arbítrio, a caminhada em busca de minha felicidade.

A minha família, pela força, modelo, dedicação e criação, que me forneceram a base

para eu me tornar o homem que quero ser. Meu pai, o único homem exemplo de

carinho e atenção. Minha mãe, a singular guerreira de Atenas. Minha irmã, a

pequena mulher pelo amor e laço incondicional de amizade que corre, não só pelas

veias físicas e biológicas, mas por toda a vida.

A todas as pessoas que partilharam comigo desde o começo da caminhada, que se

tornou difícil e conturbada, como qualquer trajeto em que devemos lutar por nossos

sonhos. Os que ficaram pelo caminho ou escolheram outras vias, os que ainda de

alguma maneira permanecem comigo, os que mesmo não fisicamente estiveram

presentes, todas as pessoas que de algum modo fizeram com que eu crescesse,

amadurecesse e aprendesse que sempre há mais, nesta vida, para se desejar.

Aos colegas de turmas pelas quais já passei e tive a oportunidade de estudar junto.

Desde o começo e durante os diversos novos inícios, pessoas que sempre me

acolheram bem, respeitaram minha opinião e me proporcionaram novas

perspectivas.

A minha orientadora, pelo incentivo e carinho prestados. Pelas palavras de

motivação e reconhecimento de um potencial que eu mesmo não acreditava. A

todos os professores por mostrarem os caminhos a serem, ou não, seguidos.

Às pessoas com as quais trabalhei, estagiei, que com as dificuldades, batalhas e

vitórias, apoiaram e conseguiram, de alguma maneira, fazer de mim um profissional

melhor, e mais do que isso, me mostraram que sonhos se renovam.

Não parem de acreditar.

“A arte deve antes de tudo e em primeiro

lugar embelezar a vida, portanto fazer com

que nós próprios nos tornemos suportáveis

e, se possível, agradáveis uns aos outros”.

Friedrich Nietzsche

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo principal analisar a série norte-americana Glee pela

visão da semiótica interpretativa de Umberto Eco, tomando-se como instrumentos de

descrição os fundamentos iniciais feitos por Charles Sanders Pierce, as implicações

na área da ciência cognitiva, bem como as teorias elaboradas pelo autor italiano

sobre o Leitor Modelo e a obra aberta. Sendo assim, este trabalho apresenta um

panorama da semiótica interpretativa e suas implicações em uma narrativa

hipermidiática televisiva.

Palavras-chave: Semiótica; Interpretação; Cognição; Hipermídia; Glee; Signo

RIASSUNTO

Questo lavoro si propone ad analizzare principalmente la serie americana Glee dal

punto di vista della semiotica interpretativa di Umberto Eco, utilizzando come

strumenti la descrizione iniziale dei fondamenti di Charles Sanders Pierce, le

implicazioni nel campo delle scienze cognitive, così come le teorie preparate

dall'autore italiano sul Lettore Modello e sull‟opera aperta. Pertanto, questo

documento presenta una panoramica della semiotica interpretativa e le sue

implicazioni in una narrativa ipermediale televisiva.

Parole chiave: Semiotica; Interpretazione; Cognizione; Ipermedia; Glee; Signo

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 01................................................................................................................ 65

Figura 02................................................................................................................ 65

Figura 03................................................................................................................ 65

Figura 04................................................................................................................ 65

Figura 05................................................................................................................ 67

Figura 06................................................................................................................ 68

Figura 07................................................................................................................ 68

Figura 08................................................................................................................ 73

Figura 09................................................................................................................73

Figura 10................................................................................................................ 73

Figura 11................................................................................................................ 74

Figura 12................................................................................................................ 74

Figura 13................................................................................................................ 75

Figura 14................................................................................................................ 76

Figura 15................................................................................................................ 76

Figura 16................................................................................................................ 76

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................... 11

CAPÍTULO 1: SIGNO E LINGUAGEM.................................................................. 15

1.1 Semiótica........................................................................................................ 15

1.2 As três categorias do universo e o signo........................................................ 18

1.3 Cognição......................................................................................................... 26

CAPÍTULO 2: ECO, SEMIÓTICA INTERPRETATIVA E O LEITOR MODELO.... 34

CAPÍTULO 3: ANÁLISE SEMIÓTICA DE GLEE................................................... 47

3.1Glee, a série...................................................................................................... 47

3.2 Escolha de repertório e preocupação com o real............................................ 51

3.3 Sobre a narrativa hipermidiática......................................................................53

3.4 Os losers estereótipos hipertextuais................................................................57

3.5 O signo Mercedes Jones, a quase-líder..........................................................63

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 83

REFERÊNCIAS..................................................................................................... 86

11

INTRODUÇÃO

Uma das ficções televisivas mais exitosas de todos os tempos, o seriado norte-

americano Glee é seguido por milhões de telespectadores do mundo todo desde a

sua estréia, em 2009.

Glee é uma série no estilo musical produzida pela rede americana Fox. A trama se

desenvolve no colégio William McKingley, focando os integrantes de um coral

conhecido como Clube Glee. O episódio de estréia foi ao ar logo após o renomado

reality show American Idol, em 19 de maio de 2009. Mas a primeira temporada só

teve início a partir de setembro do mesmo ano, em transmissões semanais

consecutivas. O formato foi criado por Ryan Murphy, Brad Falchuk e Ian Brennan, e

em princípio foi previsto como um filme ao invés de uma série de televisão. Ressalta-

se que a Fox, quinze horas após receber o roteiro, já solicitou um piloto da série.

Murphy, o principal responsável por Glee, atribui isso, em parte, ao sucesso do

musical American Idol na emissora.

A série converteu-se, já no ano de sua estréia, em um dos produtos televisivos de

maior destaque na atualidade, tanto pelo sucesso de audiência (aproximadamente

dez milhões de espectadores em média na primeira temporada) como de crítica

(ganhador de três Emmys e um Globo de Ouro, entre outros prêmios).

Assim, este projeto tem o objetivo de estudar o seriado Glee a partir da perspectiva

da semiótica. Tanto do ponto de vista das personagens, como do conteúdo e da

estética e do estilo narrativo. Trata-se de analisar os aspectos que fazem de Glee

um fenômeno midiático contemporâneo, sendo considerado assim um manifesto da

cultura pop. Pela narrativa que apresenta-se dinâmica, seja pelos recursos de

enredo, seja pelo número de problemáticas devido ao número de personagens; pela

trilha sonora bem escolhida, o mesmo que ocorre com a edição e produção do

programa; pela escalação do elenco e equipe envolvida, que parecem estar em

constante sintonia, Glee se tornou não apenas um sucesso de público, mas uma

homenagem à cultura pop.

12

Certamente, Glee configura-se como um seriado televisivo com características

bastante singulares. Tendo como pano de fundo o gênero musical, mistura comédia

e drama, oferecendo todo um leque de estímulos que vão desde o puramente físico,

tais como relaxamento e liberação de tensão, próprios da música e do riso, até

psicológicos, como, por exemplo, projeção de sentimentos ou sublimação

emocional, típicos da ficção. Assim, e por intermédio de um formato ágil e dinâmico,

leva o público a viajar por um modelo de mundo romantizado, com alta dose

emocional e foco nos conflitos de relacionamentos humanos no cotidiano, típicos da

sociedade atual. Isto está explícito nos enredos de suas personagens. Ao mesmo

tempo, ocorre um tipo de fenômeno paradoxal em que o raro, o diferente e o

marginal se converteram em personalidades extremamente populares.

Glee é uma espécie de contraponto em uma mídia carregada de enfoques sobre

violência ou ciência-ficção. Seus pontos culminantes não necessariamente cabem à

narrativa em si, e sim ao seu repertório de canções que compõem esse musical.

Seus traços mais significativos é a presença dessa matriz da linguagem, como

especifica Lucia Santaella (2001). A relação de narrativa verbal-visual com a trilha

sonora tem importante significado e traça os rumos de toda a história.

Em relação à audiência, a série foi concebida como um programa familiar que possa

atrair tanto adultos como jovens, com personagens adultos de igual prestígio ao dos

protagonistas adolescentes. Por ser um produto, um trabalho bem delimitado e

composto, Glee tem fãs mais novos, que consomem suas produções posteriores,

como músicas e coletâneas, e também pessoas de idade mais elevada, por abordar

assuntos como homofobia, bullying, inclusão social, entre outros.

Assim, com a fundamentação teórica de Peirce, que instituiu os estudos da semiose,

do estudo destes efeitos nas matrizes do pensamento de Santaella, dos conceitos

iniciais sobre a ciência cognitiva e da semiótica interpretativa de Umberto Eco, quer

se desenvolver um trabalho semiótico, da análise do signo e suas inferências

notadas em Glee, a série, na construção desta narrativa, objetivando assim expor

através da semiótica como este processo de comunicação é constituído, servindo de

molde de roteiro e experimentação prática para outrem. Diante uma série bem

sucedida, com uma estrutura diversificada que começa a tomar sinais expressivos

de repetição, há a necessidade de se mapear semioticamente estes novos signos,

para melhor compreender o processo de interpretação na mente das pessoas.

13

Assim, este estudo objetiva centralmente levantar teorias para enriquecerem o

entendimento do signo Glee, precisamente para analisá-lo, já que quando ignoradas

ou mal compreendidas as bases fenomenológicas, corre-se o risco de tomar a

semiótica como uma mera terminologia especial, mas o que não é o caso, pois serve

para compreender melhor os efeitos interpretativos realizados pela mente, e como

este processo de interpretação inicia, da estrutura central do signo, constituído por

um “representamen, objeto e interpretante” (NÖTH, 2003, p. 65) até o processo

cognitivo que permite as relações e referências hipermidiáticas, que a série propõe.

Para melhor exposição e análise da peça, divide-se este trabalho em três partes:

onde serão levantadas as teorias que servirão de instrumentos para estudo; onde

será exposto todo contexto recorrente à série televisa Glee, como enredo, alguns

personagens e referências à cultura da música, do pop; e o trabalho em si de

manuseio das teorias aplicando-as na cena escolhida.

Para a parte teórica, escolheu-se trabalhar com a semiótica desenvolvida pelo

americano Charles Sanders Peirce, descrita pelo estudioso Winfried Nöth, em sua

base triádica do signo, segmentadas nos três níveis de apreensão de conhecimento:

primeiridade, secundidade e terceiridade. Após isto, serão demonstrado o interior do

signo e seus constituintes internos, formando mais uma tríade na teoria peirceana,

dando mais enfoque no produto da interpretação, ou seja, o interpretante final e seu

contínuo processo de atualização de conteúdo, chamado também pelo americano de

semiose ilimitada.

Derivada deste fundamento, a semiótica interpretativa de Umberto Eco vem em

consonância a esta fundamentação ilimitada do processo de aquisição de

informação, onde toda atividade relacionada ao processo comunicativo deve-se ao

intérprete, ao leitor, a quem decodifica o signo. Destes conceitos, chega-se a teoria

do Leitor Modelo, onde Eco defende a idéia de que “il testo è un meccanismo pigro

(economico) che vive sul plusvalore di senso introdottovi dal destinatario”1 (ECO,

1979, p. 52). Através destes conceitos, além das considerações acerca de

hipermídia e hipertextualidade, propõe-se a análise da série Glee, especificamente

de duas cenas em que todas estas teorias postas possam ser evidenciadas,

1 Tradução nossa, a partir do italiano: “O texto é um mecanismo preguiçoso (econômico) que vive sobre os

excedentes de sentido introduzidos pelo destinatário”.

14

resultando na comprovação do objetivo central deste trabalho: compreender através

de um retrato prático as teorias semióticas dos autores em discussão, para melhor

desenvolvimento e compreensão de material comunicativo, melhorando o potencial

interpretativo de uma obra.

Em suma, quer-se destacar, através de ferramentas de análise da teoria peirceana

de Semiótica, como Glee, a série, visa uma interpretação total de seu enredo,

fazendo referências à cultura pop, com o uso da hipertextualidade, criando

personagens estereotipados, tendência forte encontrada nas bem sucedidas

narrativas televisas norte-americanas atuais. Roteiristas e produtores destas séries

parecem reconhecer o que Eco chamou de Leitor Modelo, compreendendo os três

níveis de interpretação e assimilação de conhecimento, descritos no estudo da

semiose por Peirce.

15

CAPÍTULO 1

SIGNO E LINGUAGEM

1.1 Semiótica

A semiótica é a ciência responsável pelo estudo dos signos e linguagens, levando-

se em consideração o processo significativo, ou seja, o fenômeno de produção de

significado nas diversas linguagens humanas, chamado de semiose. Como ciência,

a semiótica se instaurou recentemente, ainda em processo de estudo, descobertas e

investigações, ainda mais por ser uma área do conhecimento que o principal

material de manuseio para análise é a linguagem, sempre em constante evolução.

Muitos estudiosos da área divergem quanto à definição específica do termo. Alguns

defendem que a semiótica apenas deveria se ocupar da comunicação humana; já

para a escola de Greimas, que se recusa a defini-la como teoria dos signos, esta

seria uma teoria da significação. Em linhas gerais, como Winfried Nöth (2003, p. 17)

expõe: “a semiótica é a ciência dos signos e dos processos significativos (semiose)

na natureza e na cultura”, pertencente tanto às ciências naturais quanto às ciências

humanas. O Dicionário de Semiótica de Greimas e Coutés a define da seguinte

maneira:

A teoria semiótica deve apresentar-se inicialmente como o que ela é, ou seja, como uma teoria da significação. Sua primeira preocupação será, pois, explicitar, sob forma de construção conceptual, as condições da apreensão e da produção do sentido (GREIMAS; COUTÉS, 1979, p. 415).

Para compreender melhor este quadro de definição e por ser uma ciência plural, que

está presente nas diversas áreas do conhecimento – humana, biológica, exata -,

recorre-se então à origem da sua definição. Na história da medicina, mais

precisamente com o médico grego Galeno de Pérgamo (139-199), a semiótica

16

aparece como sendo parte da medicina, em específico, a área de diagnóstico de

doenças. Já no século XVIII, a literatura médica dividia o termo sem(e)iologia em

três ramos de investigação, em Nöth (2003, p. 19): “a anamnéstica, estudo da

história médica do paciente; a diagnóstica, estudo dos sintomas atuais das doenças;

e prognóstica, que trata das predições e projeções do desenvolvimento futuro das

doenças”.

A partir da tradição médica, a semiótica começou a se desenvolver como o estudo

que atualmente é realizado, e, assim, na história da filosofia, foram adotadas

diversas denominações para o termo. A etimologia vem do grego semeîon, que

significa „signo‟, e também sema, traduzido por „sinal‟ ou, igualitariamente, „signo‟.

Durante todo este período, a semiótica foi designada, muitas vezes não objetivando

a mesma esfera de conhecimento que hoje é conhecida, como semiologia,

semântica, sematologia, semasiologia, semologia, entre outros.

Muitos dos verbetes, no passar dos anos, ganharam referência em outras áreas,

como semântica e semasiologia que se referem ao estudo das significações da

lingüística; e outros entraram em desuso ou foram melhor adaptados. Porém

semiologia se tornou o maior rival terminológico da semiótica, o que aconteceu no

último século com o advento da lingüística de Ferdinand de Saussure, continuada

por Louis Hjelmslev e Roland Barthes. “Sob essas influências, semiologia

permaneceu durante muito tempo como termo preferido nos países românicos,

enquanto autores anglófonos e alemães preferiram o termo semiótica”. (NÖTH,

2003, p. 23).

Porém, muitos estudiosos começaram a distinguir conceitualmente ambas, o que

derivou na definição introduzida por Hjelmslev, depois adotada por Greimas, na qual

semiótica é um sistema de signos com estruturas hierárquicas análogas à

linguagem, como a língua, um código de trânsito, arte, música, ao passo que

semiologia é a teoria geral, a metalíngua. A rivalidade entre as duas definições foi

encerrada oficialmente em 1969, pela Associação Internacional de Semiótica, por

iniciativa de Roman Jakobson, adotando “semiótica como termo geral do território de

investigações nas tradições da semiologia e da semiótica geral” (NÖTH, 2003, p.

24).

17

No livro Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce (2003), Winfried Nöth dispõe

assim das definições específicas de semiótica e seu próprio estudo no século XIX e

XX, mais propriamente do trabalho realizado por Charles Sanders Peirce, um dos

fundadores da semiótica geral moderna, nascido nos Estados Unidos da América.

Seu ponto de partida, de acordo com sua obra, é de que as cognições, as idéias e

até o homem são essencialmente entidades semióticas, ou seja:

O homem denota qualquer objeto de sua atenção num momento dado. Conota o que conhece ou sente sobre o objeto e é também a encarnação desta forma ou espécie inteligível; o seu interpretante é a memória futura dessa cognição, o seu „eu‟ futuro ou uma outra pessoa à qual se dirige, ou uma frase que escreve, ou um filho que tem (PEIRCE, 1931-58, 7.591).

Desta maneira, se ocupando do estudo do processo de construção de significados,

Peirce defende a idéia de que todo o mundo é permeado de signos, se estes não o

compõem exclusivamente, o que é chamada de visão pansemiótica do universo.

Como esclarece Lúcia Santaella, autora semioticista brasileira, em Matrizes da

Linguagem e Pensamento: sonora, visual e verbal:

Qualquer coisa que substitui uma outra coisa para algum intérprete é uma representação ou signo. (...) um retrato representa uma dada pessoa para a concepção do seu reconhecimento por alguém, um catavento representa a direção do vento para a concepção daquele que assim o entende (SANTAELLA, 2009, p. 31).

A semiótica, então, para Peirce, permeia todo o universo e convívio humano, e deve

ser estudada por todos os interessados nas demais ciências, devido ao seu teor

lógico, teoria desenvolvida pelo mesmo. O filósofo americano defende assim o

esquema lógico, quase matemático, para compreensão destes processos

significativos, criando uma tricotomia e dividindo os tipos de signos, o que na época

de Aristóteles foram encontradas evidências em conseguir distinguir um modelo de

categorias que pudessem conter a multiplicidade dos fenômenos do mundo.

18

1.2 As três categorias do universo e o signo

Primeiramente, antes de entrar exatamente no ramo da fenomenologia da semiótica,

ou seja, a lógica com que os signos atuam sobre a percepção do ser humano, deve-

se dar ênfase para a categorização desenvolvida por Peirce. Dos acontecimentos no

universo físico ao representativo, virtual, o filósofo americano conseguiu dividir em

uma tríade todos os processos comunicativos existentes, seja do pensamento ou da

natureza: a primeiridade, a secundidade e a terceiridade.

Toda a obra de Peirce está alicerçada nestas categorias, e sua doutrina dos signos

também é inteiramente baseada neste conhecimento fenomenológico. Assim,

primeiridade é a categoria do sentimento imediato e presente das coisas, sem

nenhuma relação com outros fenômenos do mundo. Na definição de Peirce, “é o

modo de ser daquilo que é tal como é, positivamente e sem referência a outra coisa

qualquer, sem reflexão, da mera possibilidade, da liberdade, do imediato, da

qualidade ainda não distinguida e da independência” (1931-58, 8.328). Como

Santaella expõe:

[...] a primeiridade ou mônada é o começo, correspondendo às noções de acaso, indeterminação, vagueza, indefinição, possibilidade, originalidade irresponsável e livre, espontaneidade, frescor, potencialidade, presentidade, imediaticidade, qualidade, sentimento (SANTAELLA, 2009, p. 36).

A secundidade, iniciada quando um fenômeno primeiro é relacionado a um segundo

qualquer, é “a categoria da comparação, da ação, do fato, da realidade e da

experiência no tempo e no espaço”, ou seja, é a relação, a compulsão, o efeito, a

ação-reação. Em um processo comunicativo, é a parte que corresponde à recepção

da matéria comunicativa em início de processo fenomenológico, começando a

adquirir significado, o que acontece apenas através da relação primária com o outro.

Por sua vez, terceiridade “é a categoria da mediação, do hábito, da memória, da

continuidade, da síntese, da comunicação, da representação, da semiose e dos

19

signos” (1.337), como define Peirce em Collected Papers (1931-58). Em outras

palavras, refere-se aos acontecimentos de criação de carga significativa, quando

realmente há união dos dois primeiros processos: da imagem estática, com

potencialidade comunicativa, unida a um segundo acontecimento, a recepção do

primeiro, que produz uma terceira ação, esta sendo da categoria da terceiridade, da

interpretação, da cognição.

Tendo definidos estes conceitos e, se o universo do signo é “território legítimo da

semiótica, esta já tem início dentro da própria fenomenologia, ou mais precisamente,

a terceira categoria fenomenológica já é uma categoria semiótica” (SANTAELLA,

2009, p. 36). Por assim dizer, é na terceiridade que há a adição de sentido, de

produção final de interpretação em um processo comunicativo, o que objetiva

exatamente na própria criação de significado, a partir de um ou de uma composição

de signos.

Em uma definição mais abrangente, por Peirce, signo é qualquer coisa ou espécie,

podendo estar no universo físico ou no mundo do pensamento – corporificado a uma

idéia de qualquer forma, objetivado ou passível de interpretação de eventos

posteriores –, que por sua vez carrega um teor significativo, sendo determinada por

uma idéia, proposição, lei, contexto existente.

Para melhor elucidar, cita-se exemplo: Uma garota está conversando com alguém e

ruboriza. O fato de ela ficar vermelha. O vermelho do rosto da menina é o signo,

transmitido natural e fisicamente. Seu caráter representativo, ou seja, o significado

do rubor, seu por quê, apenas pode ser definido através do contexto, da situação.

A transmissão de significado foi feita biologicamente, através do sinal corpóreo da

garota. A sua vermelhidão criou, assim, um sentido na mente de quem notou,

levando-se em consideração a inserção cultural e social, que pode estabelecer

relações entre sentidos e cores: vergonha, raiva, nervosismo extremo. A união de

outros signos, como o franzir da testa, a dilatação da pupila etc. podem definir

especificadamente o sentido final na mente do receptor, o que, novamente reitera-

se, somente acontece definida idéia imersa, em determinada situação.

A base, então, do signo é uma relação triádica entre três elementos, dentre os quais,

no caso, um deve ser do fenômeno da primeiridade, outro de secundidade e o último

de terceiridade. Entre as definições de signo que são encontradas em toda a

20

literatura científica, Peirce apresenta aquela que parece mais completa, para

exemplificar a aplicação nas categorias por ele desenvolvidas:

Um signo ou representamen, é tudo aquilo que, sob um certo aspecto ou medida, está para alguém em lugar de algo. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo mais desenvolvido. Chamo este signo que ele cria o interpretante do primeiro signo. O signo está no lugar de algo, seu objeto. Está no lugar desse objeto, porém, não em todos os seus aspectos, mas apenas com referência a uma espécie de idéia (PEIRCE, 1931-58, 2.228).

A relação do signo com seus três componentes, o representamen, o objeto e o

interpretante, é a relevância principal no estudo peirceano, sendo assim o signo não

apenas uma classe de objetos, mas a sua função, como ele age na semiose. Desta

maneira, O signo tem sua existência não materialmente, mesmo fazendo referências

a coisas do universo físico, mas na mente do receptor. Assim, como objetivo de

Peirce para definir a semiótica, a ação do signo, a semiose, é o centro de seu

estudo.

Faz-se necessário, em todo decorrer deste estudo, levantar o básico do esquema

lógico de Peirce, para de fato, dar-se início à análise da peça, o que inclui a

descrição deste minucioso trabalho sobre a produção mental de significado. Como já

exposto, o signo possui três constituintes, que Peirce reconheceu em suas

estruturas, algumas espécies ainda mais definidas, no que tange a sua atuação na

semiose.

O representamen, ou signo, é o nome peirceano do “objeto perceptível” (PEIRCE,

1931-58, 2.230), que serve como signo para o receptor, e também definido por

outros termos, como símbolo (Ogden; Richards, 1923), significante (Saussure, 1916)

ou expressão (Hjelmslev, 1943). Assim, segundo Peirce, o representamen é o

veículo que traz para a mente algo de fora, é a materialidade do signo.

De acordo com Santaella:

[...] para se entender o que é o objeto do signo, é preciso considerar que o signo não ocorre no vazio. Ele está enraizado num vastíssimo mundo de relações com outros signos, com tudo aquilo que muito amplamente chamamos de realidade. Ele está inserido, de modo direto ou indireto, no universo físico interagindo com outros existentes (SANTAELLA, 2009, p. 45)

21

A ênfase dada por Santaella no relacionamento do signo, evidenciando o interior

infinito de sua semiose, é importante quando se define o objeto do signo, o qual

“corresponde ao referente, à coisa (prágma) ou ao denotatum em outros modelos do

signo, numa correspondência que é só aproximativa (NÖTH, 2003, p. 67). Em outras

palavras, enquanto o representamen é a parte realmente física do signo, o objeto é a

sua referência, o conceito, seja ele do conhecimento perceptivo do mundo, uma

coisa material, seja ele da natureza ou pensamento, como uma mera entidade

mental.

“O signo pode apenas representar o objeto e falar sobre ele; não pode proporcionar

familiaridade ou reconhecimento desse objeto (...) O objeto do signo pressupõe uma

familiaridade a fim de veicular alguma informação ulterior sobre ele” (PEIRCE, 1931-

58, 2.331), como expõe Peirce, que em linhas gerais define o objeto como a parte

integrante da semiose, o que se concentra no plano posterior da estrutura da

mensagem. Tomando-se o exemplo dado da garota que ruboriza, o rosto que fica

vermelho seria, então, o representamen. Seu objeto, ou seja, a parte materializada

do mundo, sua conexão, o início do processo comunicativo, é a referência externa à

estrutura, sendo assim, o que se refere ao mundo exterior, no caso, o vermelho

como sinal de raiva, de vergonha, de exaltação sentimental.

A teoria peirceana de signo reconhece duas espécies de objeto, o imediato e o

mediato, o estático e o dinâmico. O objeto imediato é o objeto dentro do signo, como

ele mesmo é representado, sendo uma representação mental de um objeto, que ele

exista ou não. Já o mediato, o dinâmico, se situa fora do signo, o que realmente

realiza a atribuição de sentido ao interpretante, indicado apenas durante a semiose,

como discorre Peirce: “aquilo que, pela natureza das coisas, o signo não pode

exprimir e só pode indicar, deixando para o intérprete descobri-lo por experiência

colateral” (PEIRCE, 1931-58, 8.314)

Assim, o objeto imediato é a representação instantânea, a potencialidade semiótica

do representamen em primeiro contato, enquanto o dinâmico é sua aplicação, sua

referência pós leitura do signo e evocação de sentido, como melhor define Santaella:

22

[...] o objeto imediato funciona como um indicador do recorte que o intérprete faz ou deve fazer no contexto, objeto dinâmico, que determina o signo. O objeto dinâmico é sempre infinitamente mais amplo do que o signo. O objeto imediato, interno ao signo, quer dizer, a maneira como aquele signo particular sugere, indica ou representa o objeto que está fora dele é que estabelece os limites do objeto dinâmico (SANTAELLA, 2009, p. 45).

Sintetizando, o objeto imediato é o recorte específico, modo através do qual um

objeto dinâmico, fora do signo, é referido, denotado, indicado ou sugerido pelo signo,

o representante, produzindo assim o terceiro elemento desta tríade, o interpretante.

A definição peirceana deste constituinte é de próprio resultado significante, ou seja,

o efeito do signo, sendo algo concreto, como uma ação, ou algo criado na mente do

intérprete, como um apelo emocional.

Santaella esclarece que, para haver semiose, para um signo funcionar, a presença

do interpretante é fundamental. Logicamente, se a semiose é o estudo da

fenomenologia do signo, da produção de sentido, seja qual for a natureza desta,

então o interpretante deve existir, já que é a parte em que ocorre a absorção, a

compreensão do significado daquele processo. O interpretante, então, é o resultado

do processo comunicativo, o qual sempre objetiva produção de significado.

Para melhor visualizar estas definições sobre as espécies de objeto, retoma-se o

exemplo citado acima da garota que ruboriza a frente de alguém, onde o

avermelhamento de sua pele seria assim o signo, o representamen, a parte real,

física. Para reconhecer as subdivisões de objeto presentes nesta situação, faz-se

necessário dividir em dois momentos, como nos estudos de Peirce. O objeto

imediato, a referência no simples recorte inicial, sem nenhuma interferência

cognitiva, ou seja, de apreensão e elaboração de um próprio significado. No caso,

como não especificado o contexto em que ambos estão, o objeto imediato é

realmente a primeira impressão do sinal comunicativo, assim, o rubor da garota, a

vermelhidão. Assim, pode ser expressão de raiva, vergonha, estresse, pertencendo

ao nível da lei, sendo inicialmente uma convenção da linguagem, por estrutura

cultural de absorção de conhecimento, relacionando o vermelho da pele a

sentimentos como estes, e não a sentidos como felicidade, paz e angústia, por

exemplo.

Já o objeto mediato deste processo, embasado no recorte contextual, leva em

consideração a referência fora do signo em si, ou seja, se a cor vermelha pode

23

significar diversos sentimentos, ele na sua dinâmica, mediado através da semiose,

especifica o referente, atribuindo assim uma indicação atualizada do objeto. Desta

forma, e ao introduzir a informação que, antes do rubor, a garota conversava com

um rapaz sobre sentimentos, mais precisamente os seus, e recebeu assim um

elogio, há agora a presença de um campo de atuação deste signo, o que apresenta

então o objeto dinâmico, a referência externa ao próprio signo, o simples sinal de

indicação corpórea, devido a abordagem emocional da conversa.

Em suma, o objeto imediato atua no campo do próprio signo, do próprio

representamen, e internamente a este, enquanto o mediato atua fora do mesmo,

apontando situacionalmente ao que se refere, iniciando o processo de cognição, de

entendimento devido às circunstâncias, da produção de interpretante, de material

sígnico bruto convertido em significado.

De acordo com o efeito do signo sobre a mente do intérprete e em conformidade

com seu sistema triádico, Peirce chegou em três classes maiores de interpretantes.

A primeira categoria é o interpretante imediato, sendo este o que o signo está apto a

produzir como efeito, ou seja, o potencial ainda não atualizado do signo, isto é, sem

que tenha encontrado um intérprete, ou algum que haja meios de decifrá-lo. A

potencialidade de comunicação do signo em primeira instância, antes que ele

chegue a um intérprete, o contato com o objeto estático, a regra geral, absoluta,

peculiar.

A segunda classe é do interpretante mediato, que corresponde ao efeito direto

realmente produzido por um signo sobre um intérprete. Além disso, como Peirce dá

ênfase: “aquilo que é experimentado em cada ato de interpretação e é diferente, em

cada ato, do efeito que qualquer outro poderia produzir” (PEIRCE, 1931-58, 8.184).

Discutir-se-á melhor sobre o interpretante dinâmico posteriormente, quando

novamente forem atribuídas novas categorizações especificamente para cada

reação que este interpretante produz no leitor, aquele que está decifrando um texto,

sendo este verbal ou não-verbal, físico ou mental.

Por fim, a terceira categoria, o interpretante final, está ligada ao processo

comunicativo em sua totalidade, onde se é regulado através do hábito, ou seja, pela

condução, continuidade, regularidade em que o intérprete está acostumado a

decifrar toda a mensagem. Está inter-relacionado também ao processo evolutivo da

24

semiose, ou seja, da ação infinita de construção de significado, onde a cada leitura,

a cada absorção de conhecimento, o intérprete se habilita a uma nova derivação no

intérprete final.

Neste ponto, deve dar-se importância em destacar as palavras de Santaella, sobre o

interpretante final:

[...] que é o efeito que o signo produziria em qualquer mente, se a semiose fosse levada suficiente longe, isto é, se fosse possível que o signo pudesse produzir todos os interpretantes dinâmicos de modo exaustivo e final. Uma vez que isso não é possível, o interpretante final está sempre em progresso, num processo evolutivo infinito, pois cada um de nós, intérpretes particulares, apenas capazes de produzir interpretantes dinâmicos singulares, falíveis e provisórios, não estamos nunca em condições de dizer que um interpretante já tenha esgotado todas as possibilidades interpretativas de um signo, constituindo-se no seu interpretante final (SANTAELLA, 2009, p. 49)

Adiante deste trabalho, esta definição para o interpretante final será unida à teoria

semiótica interpretativa de Umberto Eco (1979) e sua definição de Leitor Modelo,

onde, o potencial de um texto, de um signo, está também e primordialmente nos

instrumentos mentais que um indivíduo possui para desconstrução e remontagem de

conteúdo e interpretação. Neste nível dos interpretantes é que ocorre, nesta

dissertação, a definição da primeira vertente essencial para a análise proposta

adiante: o interpretante final é infinito em sua função na semiose, sendo assim

agente passivo, onde o leitor, o intérprete, se faz presente ativamente em toda a

relação.

Posteriormente, serão retomados estes fundamentos, quando discutidos a cognição

e a semiótica interpretativa de Eco. Aqui ainda se faz necessário elencar os três

tipos, então, de interpretante dinâmico, citados acima também pela pesquisadora

brasileira. Dentro da categoria do interpretante mediato, ou seja, do efeito sobre o

intérprete, foram subdivididos outros três pontos, sempre retomando a função tríade

de Peirce: interpretante emocional, energético e lógico.

O signo pode produzir em seu leitor qualidade estritamente do sentimento, o

interpretante emocional. Pode também produzir também curiosidade em relação a

sua proveniência, uma tendência ao movimento, à reação imediata, o interpretante

energético. Ou como, por último, produzir um esforço mental do intérprete, através

25

de guias de raciocínio lógico, fazendo com que ele transpareça o interpretante

lógico.

Para, assim, finalizar este primeiro momento, retoma-se o exemplo da garota que

ruborizou diante um rapaz que a elogiou. Destacou-se, anteriormente, o

representamen (a vermelhidão do rosto) e os objetos, tanto imediato quanto

dinâmico, no contexto da semiose referida. Assim, cabe localizar os interpretantes

deste processo.

Como o interpretante é o resultado da semiose, então se podem traçar três níveis,

ainda subdivididos, de interpretação. A primeira, do interpretante imediato, realmente

é a conclusão instantânea da vermelhidão na pele, independente da realidade, ou

seja, vergonha, raiva, estresse e, até mesmo, uma picada de inseto. A última

hipótese pode ser aceita, apenas neste estrato, pela natureza da interpretação

imediata ao ver o rosto da garota e a mancha avermelhada.

Em seguida, especificamos então o interpretante dinâmico e suas três subdivisões: o

interpretante emocional é aquele que produz na mente do intérprete,

primordialmente ou exclusivamente, um apelo sentimental, que no caso seria a

compreensão do garoto que, de alguma forma, a jovem sentiu vergonha, por ela

sentir o mesmo, por ela ser tímida, ainda mais que houve um sinal corpóreo natural

para o mesmo. Em seguida, o interpretante energético, que destaca a reação após

decodificar o signo como, por exemplo, o garoto continuar abordando-a, sondando-a

diante da comoção da mesma, já que, caso ele não notasse rubor do rosto da

garota, poderia parar a conversa por não haver sinal de interesse dela.

Por último, o interpretante lógico. Ao ficar vermelha, a garota significou comoção, de

alguma maneira. No raciocínio lógico, se a jovem de alguma maneira sentiu algo,

logo, para o rapaz, sinal de que possa haver algo também, criando nele um apelo

em, inicialmente, descobrir por que do rubor. O que é notório é a presença destes

interpretantes em toda a semiose, havendo sim uma possível mudança de ênfase, o

que muitas vezes depende somente da forma de recepção do intérprete, da sua

capacidade de cognição, já que este último nível, o interpretante é pertencente ao

mundo exterior, e não internamente ao signo e sua estrutura.

Todos estes três constituintes podem e devem estar presentes para a construção do

interpretante final, porém em alguns casos, a necessidade de quem comunica, de

26

quem produz o signo, é fazer um apelo diferenciado. Como uma propaganda que,

normalmente, faz-se uma construção ativa na mente do intérprete, sugerindo ações,

como comprar, beber, viajar, enfatizando o interpretante energético. Em outros

casos, a publicidade para conquistar a audiência aposta em um caráter mais

sentimental, envolvendo o público, o que nota-se um enfoque maior na produção

emotiva do leitor. Já uma equação matemática, que é um signo também, não tem o

mesmo apelo emotivo, porém sua estrutura lógica vem emersa, o que pode

acarretar também uma ação por parte de quem decodifica, se este estiver apto a

compreender e resolver a sentença, ou seja, ativando um interpretante lógico.

Peirce ainda continua a categorização da semiose, classificando os signos de

acordo com as combinações entre seus constituintes. Na presente monografia não

será discorrido sobre estas classes, como o quali-signo, sin-signo, legi-signo, ícone,

índice, símbolo, rema, dicente e argumento, primeiramente porque, pelo objetivo

deste estudo, que é reconhecer o processo de semiose, suas indicações estruturais,

não há a necessidade de aprofundamento. Secundariamente, o estudo desta

aplicação externa, ou seja, de como os elementos do processo significativo

funcionam dentro do texto que será proposto, é o cerne desta monografia, tendo em

vista a teoria do leitor modelo, proposta por Eco.

1.3 Cognição

A autora e pesquisadora brasileira também expõe um dos pontos fundamentais que

serão, daqui debatidos: “o interpretante não é um simples evento, mas um processo

evolutivo” (SANTAELLA, 2009, p. 47). Esta assertiva é de fundamental reflexão, que,

em linhas gerais, quer tornar claro o perfil constante de interpretação, ou seja, o

potencial interpretativo não finalizado de um processo comunicativo, de um texto, de

uma narrativa, de um signo. Como Peirce concluiu, o signo não é um processo

comum, tendo em vista a própria semiose, que em sua definição, deduz esta

circularidade dos eventos significativos, resultando todo interpretante a geração de

27

sentido, que conseqüentemente pode acarretar reações, desde mentais a físicas,

criando um ciclo ilimitado de hermenêutica.

Como cada signo cria um interpretante que, por sua vez, é representamen de um

novo signo, de acordo com esta dinâmica, a semiose resulta em uma série de

interpretantes sucessivos, não há nenhum primeiro nem último signo. Esta idéia

defende que o pensar sempre procede na forma de um diálogo, entre várias fases

do ego, de maneira que sendo dialógico, se compõe essencialmente de signos.

Assim, como cada pensamento tem de dirigir-se a outro, o processo contínuo de

semiose, ou pensamento, só pode ser interrompido, mas nunca realmente finalizado.

Portanto, a semiose possui este caráter ilimitado, tendo em vista a sempre criação

de interpretante gerado na comunicação, que produz assim um signo, que deriva

outro interpretante e assim sucessivamente. A idéia da semiose ilimitada que ocorre

na forma de um diálogo permanente assemelha-se, em certos aspectos, a uma

circularidade hermenêutica no processo dialógico entre o eu e o outro, onde o eu se

torna o outro e o outro em eu, e assim por diante.

Além disso, o repertório de signos, ao menos em nível de vocabulário, é limitado e,

por isso, temos que, no processo da semiose verbal, recorrer a signos anteriormente

empregados. A hermenêutica, de acordo definição do Dicionário de Semiótica, por

Greimas e Courtés, designa:

[...] geralmente a interpretação, no sentido corrente e não semiótico, de textos essencialmente filosóficos e religiosos. Trata-se de uma disciplina relativamente vizinha à semiótica (de que freqüentemente toma bom número de elementos) na medida em que, como diz P. Ricoeur, ela articula uma teoria geral do sentido com uma teoria geral do texto. [...] o domínio de seu exercício é mais específico e, por outro lado, que ela põe em jogo a relação do texto com o referente, atendo-se muito particularmente aos dados extralingüísticos dos discursos e às condições de sua produção e de sua leitura. [...] faz intervir o contexto sócio-histórico, incluindo-se nele o da compreensão atual, e tenta – por esse jogo complexo – depreender os sentidos recebíveis: pressupõe assim uma posição filosófica da referência como critério de avaliação (GREIMAS; COURTÉS, 1979, p. 215)

Como exposto, a hermenêutica então, para análise, utiliza-se de instrumentos

semióticos, porém com um objeto de trabalho específico: o texto enquanto

desencadeador de mensagens, de interpretações e, assim, de comunicação. Para

esta teoria, no processo de leitura, o sentido global nunca se desenvolve

28

simplesmente a partir da compreensão seqüencial de elementos que já tenham um

sentido precedente ao texto ou que existam independentemente dele. As palavras –

os elementos do texto – formam os seus sentidos antes da leitura sintática que é

puramente estrutural, ou seja, muitas vezes com base nos preconceitos e idéias

referentes ao entendimento global.

Exemplo disto é a delimitação de temas que pode ser feita quando nota-se a

estrutura de um poema, como amor, amizade, dor, angústia, lírica, havendo um

sentido global antes da leitura em si. Outro exemplo é a mudança da interpretação

de um texto trocando o título, alterando também o sentido. O processo de

interpretação não é, portanto,

[...] um processo que começa com signos autônomos e sentidos independentes para seguir até o mais alto nível do sentido global. O sentido elementar já contém traços do sentido global. Porém aí aparece a circularidade, uma vez que o sentido global também não pode existir sem os sentidos elementares (NÖTH, 2003, p. 73).

Desta maneira, a semiótica peirceana se assemelha com a teoria da circularidade

hermenêutica, onde a produção de significado apenas pode acontecer através de

um processo dialógico, de troca de signos e sua cognição, ou seja, da sua

interpretação e reação a ela, tendo em vista contexto por ela referido ou inserido.

Este dialogismo é circular, como descreve a semiótica de Peirce, onde o eu, que

produz o signo, e o outro, aquele que recebe e interpreta, invertendo de posição,

hora se tornando ativamente participantes do processo de produção de significado,

hora sendo passivamente sugestionados à ação, e assim por diante.

Para melhor embasamento teórico, aqui se deve traçar um pequeno panorama

sobre a ciência da cognição, que tem como objetivo o estudo da comunicação e seu

processo de compreensão na mente humana, previamente descritas pela semiótica

peirceana. Na filosofia de Peirce, a tríade tradicional da mente corresponde às suas

três categorias de primeiridade, secundidade e terceiridade.

O sentimento pertence à primeiridade, a categoria do imediato e das qualidades ainda não diferenciadas. A volição pertence à secundidade, categoria da interação diádica entre o eu e o outro (um primeiro e outro

29

segundo). A cognição pertence à terceiridade, categoria da comunicação da representação (NÖTH, 2003, p. 128).

O representamen, percebido na sua imediacidade, pertence ao sentimento, e aquilo

no lugar do qual ele está, o objeto, é um outro diferente do eu original e está sujeito

à mediação. A idéia que o representamen origina é o seu interpretante, que também

resulta numa atividade cognitiva, sendo assim seu objetivo, já que todo processo

comunicativo prevê compreensão e apreensão de significado, impulsionando uma

reação mental ou física.

Portanto, a cognição é um elemento constitutivo no processo do signo triádico, tal

como Peirce define o processo em que o signo tem um efeito cognitivo no seu

intérprete. Mas a semiose não pode ser reduzida à cognição, já que esta pressupõe

a percepção, um processo triádico gerado na consciência do observador a partir de

um nível de sentimento imediato ainda indiferenciado, no qual ele é meramente a

qualidade de um signo mental. Assim, está enraizada junto ao sentimento

(primeiridade) e à volição (secundidade), nesta moldura semiótica, a cognição é

parte de uma cadeia infinita de semiose ilimitada, de acordo com a qual ela é

determinada por uma cognição prévia na mente do intérprete. As cognições são,

conseqüentemente, laços na rede semiótica ilimitada que tem suas fundações no

princípio de que “todo pensamento é um signo, que deve atingir a um outro, deve

determinar algum outro, visto que essa é a essência de um signo” (PEIRCE, 1931-

58, 5.253).

Desta maneira, a ciência cognitiva e seu paradigma não são opostos à semiótica,

mas sim uma de suas vertentes. Como exposto anteriormente, enquanto o estudo

dos signos se prende a um conceito estrutural geral da produção de significado, seja

ele mental, físico, material, interno ou externo ao ser humano, a cognição, por ter

embasamento tanto da psicologia quanto da filosofia, se detêm no estudo destes

processos na mente, ou seja, de como a percepção (o sentimento) se torna, ao ser

mediado, em informação, ação, reação do ser humano, gerando cognição, em

outras palavras, a aquisição de conhecimento e seus processos mentais.

Vale ressaltar que a semiótica não é menos diversificada quanto às correntes de

estudo dos sistemas sígnicos e, nesse contexto, nem todos seus paradigmas

tradicionais são igualmente compatíveis com as visões mantidas pelos cognitivistas.

30

O modelo saussureano, diádico do signo, é em sua essência conflituoso com as

suposições básicas da ciência cognitiva, pelo:

[...] coração dos nossos sistemas conceituais estar diretamente fundado na percepção, no movimento corporal e na experiência de caráter físico e social [...] e não seria endossada pelos semioticistas da tradição diádica do signo que vai de Saussure, via Hjemslev, até Greimas (NÖTH, 2003, p. 131).

Já a semiótica na tradição do signo triádico peirceano, ao contrário, não é apenas

compatível com a hipótese de a linguagem ser cognitivamente motivada, como

também é capaz de fornecer moldura teórica apropriada para esse princípio. A

cognição funciona então, primariamente, como um interpretante de um signo, o que

Peirce também define como o pensamento ou idéia, criada na mente do intérprete

de um signo. Assim, ainda em fundamentos peirceanos, a cognição é somente

possível através de signos, já que o interpretante de um representamen também

funciona, ele mesmo, como um signo.

O autor norte-americano ainda salienta que o signo criado na mente do intérprete é

um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido, que apenas é

absorvido e compreendido através deste processo de cognição, transformando o

interpretante final em um signo, onde suas qualidades por si só traduzem todo seu

conteúdo, fundamento postulado por Peirce como iconicidade. Ícone é um signo cuja

qualidade significante provém meramente da sua qualidade, ou seja, cujos adjetivos

são semelhantes às do objeto, e excitam sensações análogas na mente para a qual

é uma semelhança. Completa Eco (1976, p. 204): “similaridade não diz respeito à

relação entre imagem e objeto, mas entre imagem e um conteúdo previamente

compactuado pela cultura”.

Em outras palavras, a interpretação total de um signo apenas é possível porque a

mente transforma todos os processos de significação em ícones, modelos mentais,

para que a absorção de informação e resposta da mesma seja de forma rápida.

Exemplo do uso desta palavra no cotidiano é a referência a artistas-ícones: ícones

do rock moderno internacional seria Guns‟n‟Roses; ícone da música black/soul dos

anos 1960 seria Ray Charles; ícone da natação brasileira moderna, César Cielo.

Nenhum dos citados não necessitou de algum levantamento de adjetivos para os

31

mesmo, bastando apenas sua imagem, sua referência, para a mente conseguir

traduzir em qualidades que remetem, excitam, levam o intérprete à concepção do

mesmo.

Unindo semanticamente, agrupando o absorvido em temas, é que a mente

consegue atribuir significação a um interpretante final e armazená-lo para posterior

utilização. Porém, como Eco salienta, esta similaridade entre a imagem e a

qualidade, determinando o ícone, não é feita de maneira aleatória, e sim em um

pacto cultural, que determina a interpretação final e o modelo de cognição. Mais

adiante será exposto, mais detalhadamente, como o autor italiano tende a afirmar

que uma semiose apenas se dá por completo se, no interpretante final, haver a

influência do contexto, da cultura, ou seja, se o leitor está apto àquela codificação,

de acordo com seu conhecimento de mundo.

Por enquanto, define-se ainda aqui os modelos mentais, descritos na ciência da

cognição, que utilizam os preceitos semióticos triádicos para desenvolvimento da

teoria. Desta maneira, a cognição, a interpretação realmente final de um processo

comunicativo, apenas se dá com a representação mental de todo o esquema

semiótico anterior, e possíveis implicações futuras, em outras palavras, a mente

resume em um signo apenas todas semioses existentes, organizando as

informações em uma espécie de etiquetas.

“A ciência cognitiva, assim, investiga significados como representações mentais e

descreve a compreensão como um processo de construção de modelos mentais”

(2003, p. 135), como melhor define Nöth. Cada pensamento, ou representação

cognitiva, é da natureza do signo, sendo, na nomenclatura de Peirce, sinônimos, já

que representamen é a parte representada da idéia do signo, o material, seja ele

mental ou físico. Uma representação é, antes de tudo, algo que está no lugar de

outra coisa, sendo um modelo da coisa ou coisas que ele está no lugar.

Posto isto, deve-se salientar a importância dos modelos mentais no processo de

cognição como mediadores de informação, ou seja, reconhecer na representação a

sua função mediata entre o externo e o interno àquela cultura, domínio. Modelos

mentais parecem oferecer um meio de mediação entre as diferentes formas de

conhecimento, sendo uma representação de uma área limitada da realidade,

32

daquele intérprete, em um formato que permite a simulação interna de processos

externos de tal forma que permita compreensão.

Retoma-se, então, o exemplo já citado anteriormente da garota que ruboriza diante o

elogio do rapaz. Para assimilar o conteúdo e armazená-lo, a mente do rapaz

classificou assim a situação, atribuindo qualidades para aquele dado momento, para

aquele interpretante final. Independentemente de sua reação naquele instante, o

modelo mental que o rapaz, ao retomar esta semiose, este processo comunicativo,

apenas invoca é do rosto vermelho da garota, ou algo que naquele instante lhe

chamasse mais atenção, escolhendo apenas um atributo de todo o contexto, de todo

o esquema interno significativo, para posterior uso e recordação.

Este não é um esquema finito, ou seja, não possui limites para agregar ou retomar o

conteúdo iniciado, no caso quando ela ruborizou inicialmente, mas sim um modelo

mental que permanece no eixo do pensamento, desta vez não como interpretante,

mas sim como um ícone, um adjetivo que auxilie nas próximas experiências

comunicativas. Em síntese, para o garoto futuramente recordar, fisicamente ou

mentalmente, da cena com a jovem, apenas irá evocar conceitos-situações-

palavras-chave, como “rosto vermelho”, “garota bonita”, “vergonha da garota”, ao

invés de descrever situação, clima, sentimento vividos na semiose dada como

exemplo, passando novamente por todo o processo significativo de apreensão de

representamen até interpretação final, e posterior cognição e mutação até o icônico

modelo mental.

Assim, o inicial interpretante, ao se tornar ícone ou um signo exclusivamente

qualitativo, não deixa o processo semiótico, permanece ainda na mente modular,

podendo vir a interferir proximamente, mas como um signo único, sem a

necessidade de se retomar todo o contexto, o diálogo, as expressões faciais etc. que

estavam, ou estão, presentes nele. Estes pontos teóricos sobre a cognição e seu

funcionamento serão de grande valia no próximo tópico de estudo sobre a Semiótica

Interpretativa de Umberto Eco, por aproximar a noção de interpretante final com

processo cognitivo, gerando uma semiótica com enfoque no intérprete.

Antes disto, devem-se expor as considerações finais sobre a ciência cognitiva, sobre

a perspectiva semiótica de Peirce. Como exposto, podem-se, de maneira sintética,

definir três implicações semióticas no estudo cognitivo, como expõe Nöth (2003):

33

[...] o interpretante do signo está sempre presente em uma rede de cognições prévias (e futuras) ou elementos do conhecimento. [...] Uma vez que os modelos mentais são formados como resultado de cognições previamente memorizadas, estes servem da mesma maneira como dados dos quais derivam-se novos interpretantes. [...] A terceira implicação refere-se ao fato de os esquemas (mentais) serem um conjunto de relações que o intérprete acredita estar normalmente entre os constituintes de um conceito (2003, p. 139)

Por fim, estas três postulações implicam, resumidamente, em definir a função

essencial do signo que é estabelecer um hábito, ou uma regra geral, de acordo com

a qual eles agirão numa dada ocasião. Como retratado anteriormente, o signo

permanece sempre em movimento, sendo decifrado inicialmente o interpretante final

pela mente e, depois, armazenado em forma de representamen novamente e assim

consecutivamente. Porém o intérprete deve estar assim apto para compreensão,

sendo condicionado a acionar o conteúdo interpretante da semiose, como estar em

conformidade com o contexto, com a cultura. Assim, o signo habitua o intérprete a

decodificá-lo de uma maneira específica, estando este não em uma posição passiva

em relação ao processo comunicativo, mas sim ativo, pois ele quem detêm as

faculdades mentais e noção cultural para compreensão do significado. O que, assim,

deriva a teoria interpretativa semiótica, onde esta última implicação sobre a cognição

destaca-se: o determinante hábito do intérprete.

34

CAPÍTULO 2

ECO, SEMIÓTICA INTERPRETATIVA E O LEITOR MODELO

De acordo com a última implicação semiótica na área da ciência cognitiva, os

modelos mentais, formados posteriormente decodificação do signo, são um conjunto

de relações que o intérprete acredita estar em conformidade com os outros que

partilham daquela semiose. As categorias semióticas mais próximas associadas a

este aspecto dos esquemas são as do hábito e da generalização. Ambas as

categorias são centrais para a semiose como processo cognitivo, pois hábitos e

regras “são o resultado do uso do signo e o pré-requisito das inferências necessárias

na interpretação do signo” (NÖTH, 2003, p. 140).

Peirce ao se referir ao interpretante final, normal, último, definia na realidade a

categoria do hábito, ou seja, à fase final no processo de interpretação semiótica, na

qual a cognição formada na mente do intérprete estabelece um hábito, uma

tendência “certa de comportar-se de maneira similar sob circunstâncias similares no

futuro” (PEIRCE, 1931-58, 5.487). Neste estágio, o signo preenche a mesma função

de um esquema da cognição, apontando tanto para o passado (memória), quanto

para o futuro (interpretação habitual), no processo de semiose, o que ajuda a definir

que a sua natureza é como a da memória, que recebe as transmissões da memória

passada e transfere parte dela para a memória futura.

Este fundamento sobre signo, unido ao conhecimento cognitivo da mente, auxiliam

no que tange a compreensão dos fenômenos comunicativos, quanto à produção de

signos, sua composição interna e sua implicação externa. A sua definição, desde os

iniciais apontamentos sobre semiótica de Peirce até a união do sujeito cognitivo,

traça um caminho pelo qual se deve percorrer para o objetivo deste trabalho. Para

conseguir sustentar a idéia que o intérprete possui uma posição ativa na leitura de

qualquer signo, é necessário traçar este caminho por dentro da estrutura do estudo

da significação até as mais contemporâneas descrições cognitivas.

Nota-se, então, que o signo tornou-se de um simples esquema matemático a um

quase-objeto materializado pela mente em forma de ícones, facilitando a absorção

35

de novas informações e o acesso às mesmas. Baseado nestes fundamentos de

Peirce, Umberto Eco então desenvolveu seus estudos, criando a teoria da semiótica

interpretativa, do modelo de conhecimento enciclopédico e do leitor modelo,

sucessores nos estudos cognitivos semióticos.

Para Eco, mais importante que o caminho traçado desde a semiose de Peirce até a

ciência da cognição é o leitor, o intérprete, como protagonista no processo de

criação e decodificação de significado. Se o signo interpretante se torna material da

cognição, sendo então cíclico, sempre retomado e reproduzido, levando-se em

consideração o preceito de que “os interpretantes fazem surgir um signo mais

desenvolvido e são auxiliados neste processo pelos vários modos de conhecimento

possível” (NÖTH, 2003, p. 138), então único passível de ação direta sobre estes é o

próprio interpretante, sua visão de mundo, hábitos (na maneira em decodificar as

diferentes formas, representações de signo) e cultura por ele vivida.

Umberto Eco, autor italiano, publicou em 1962 a “Obra Aberta”, trabalho que foi

considerado pré-semiótico, mas já figurava no seu desenvolvimento a estética da

recepção, que vem ser melhor afirmado com o “Tratado de Semiótica Geral”, de

1975, onde procurou um modo sistemático de delimitar o campo e os métodos da

semiótica, embasado nos fundamentos de Peirce, Hjelmslev e Greimas. Em uma

primeira fase, Eco recebeu grande influência do estruturalismo de Saussure, do

modelo diádico do signo, porém a partir dos anos setenta, com os fundamentos da

obra peirceana, começa a desenvolver pesquisa no âmbito do paradigma cognitivo-

interpretativo, ou seja, havendo como material filosófico as bases triádicas da

formação de significado, passando pela cognição e apreensão sígnica.

Desta maneira, Eco desenvolveu sua pesquisa na área da Semiótica Interpretativa

seguindo a mesmo raciocínio realizado anteriormente, como o estudo do signo e

significado, levando-se em consideração a tríade de Peirce e seus efeitos quanto

produção na mente do intérprete, e também da absorção e compreensão do signo,

transformado no processo cognitivo em signo icônico para melhor armazenamento e

acesso mental. Unindo-se os dois conceitos, nota-se que o enfoque dado pelo autor

italiano em sua pesquisa é da interpretação na semiose, ou seja, o foco principal da

sua semiótica seria, não o conceito de signo e sua estrutura, mas a presença ativa

do intérprete, do leitor, do nível do interpretante e suas referências.

36

No plano do estudo estrutural do signo, da sua organização e das suas possíveis

descrições, Eco chega a delinear um modelo semântico de instruções na forma de

enciclopédia; enquanto que na descrição e pesquisa sobre a atividade interpretativa,

o autor chegou a sua teoria da cooperação interpretativa, ambas aqui descritas para

efeito de posterior análise, tornando-se, agora, potencial teórico em evidência neste

trabalho.

O que na cognição é o processo de criação dos modelos mentais, etiquetas que o

cérebro armazena e organiza todos os signos já absorvidos pela mente, para Eco, é

determinado não por uma esquematização dicionarial, ou seja, atribuindo para

termos uma equivalência semelhante, através da sinonímia, antonímia, paráfrase,

entre outros. Por exemplo, para definir a palavra „homem‟, pela estrutura dicionarial,

deve-se atribuir verbetes e expressões como “humano”, “macho”, “oposto de

mulher”, “sexo masculino” etc.

Porém, ao notar limites nesta teoria, Eco chega a sustentar a necessidade de uma

análise com o cunho semântico enciclopédico.

Se Il modello dizionariale definisce Il termine ‘uomo’ come la somma di una serie di tratti (maschio + umano, ecc), Il modello enciclopedico pensa Il significato del termine come l’insieme di tutti gli interpretanti relativi al termine stesso. Pertanto il significato di ‘uomo’ comprenderà certamente alcuni tratti come ‘machio’, ‘adulto’, ‘umano’, ma anche i suoi aspetti anatomici (gambe, braccia, testa, ecc.), i suoi aspetti sociali (la sua capacità de interagire e di organizzarsi in gruppi), la sua dimensione psicologica, la storia della sua evoluzione, le illustrazioni che lo rappresentano, le fotografie, le pitture, i disegni a esso relativi (TRAINI, 2008, p. 254).

2

Enquanto o modelo dicionarial se preocupa no âmbito das informações lingüísticas,

ou seja, em nível estrutural da língua, o modelo enciclopédico se desenvolve na

dimensão mais complexa dos conhecimentos do mundo, o que resulta em uma

descrição mais abrangente externa à linguagem, que fazem parte do mundo. Ambas

2 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “Se o modelo dicionarial define o termo ‘homem’ como

uma série de características (macho + humano, etc), o modelo enciclopédico pensa o significado do termo

como a união de todos os interpretantes relativos ao mesmo termo. Portanto o significado de ‘homem’

compreenderá com certeza algumas qualidades como ‘macho’, ‘adulto’, ‘humano’, mas também os seus

aspectos anatômicos (pernas, braços, cabeça, etc), os seus aspectos sociais (a sua capacidade de interagir e de

se organizar em grupos), a sua dimensão psicológica, a história de sua evolução, as ilustrações que os

representam, as fotografias, as pinturas, os desenhos relativos a ele”.

37

vertentes de estudo sobre a forma de armazenamento e acesso da informação

cognitivamente, trabalhadas por Eco, foram desenvolvidas nos fundamentos sobre

signo que Peirce fundou. A primeira, estrutural, se ocupa no mesmo nível em que as

teorias peirceanas descreviam o signo, em esquemas que evidenciavam um

processo matemático, lógico, enquanto a segunda, da interpretação, toma em

particular o efeito do interpretante na mente, e posterior processo cognitivo, de

armazenamento de informação, e de semiose ilimitada.

Questa traduzione di un segno in un’altra expressione è appunto il processo di interpretazione. (...) Non c’è modo, nel processo di semiosi illimitada che Peirce descrive e fonda, di stabilire il significato di una espressione, e cioè di interpretare quella espressione, se non traducendola in altri segni (appartengano essi o no allo stesso sistema semiotico) (ECO, 1984, p. 107).

3

Como evidenciado, o semioticista italiano tende em todo o seu trabalho a

desenvolver teorias que levem em consideração essa troca significativa que ocorre

na cognição, a sua compreensão e abdução, trazendo em ascensão o perfil

interpretativo que um signo contém. Esta noção é importante por mostrar como os

processos semióticos, por meio da sua contínua atividade – pois são ilimitados, se

referem a um signo ou uma cadeia deles utilizando apenas uma representação, e

como estas referências influenciam no significado para o intérprete, conseguindo

interpretar, traduzir, devido experiências pessoais, cultura e contexto.

Assim, de acordo com os fundamentos de Eco, os interpretantes não dependem

apenas das representações mentais dos sujeitos, do enunciatário, mas sim dos

registros coletivamente compartilhados pela cultura, por pacto entre os envolvidos

no processo de comunicação. Desta forma, dicionalizar um processo que está em

constante aquisição de matéria significante, pela evolução natural de aquisição de

conhecimento, representa um estágio inicial da interpretação, daquele do imediato,

do interpretante estático, enquanto que a comunicação reside no terceiro nível, na

terceiridade, no interpretante final, sendo assim enfoque da obra de Eco.

3 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “Esta tradução de um signo em uma outra expressão é

exatamente o processo de interpretação (...) Não há modo, no processo de semiose ilimitada que Peirce

descreve e funda, de estabelecer o significado de uma expressão, isto é, de interpretar aquela expressão, se

não traduzindo-la em outros signos (estes pertencendo ou não do mesmo sistema semiótico)”.

38

A enciclopédia, então, representa o conjunto geral dos conhecimentos relativos ao

mundo, as quais estrutura é aberta e potencialmente ilimitada. Caindo a idéia de

definir o significado através de uma série de traços de natureza lingüística, entrando

em destaque o princípio de interpretação, se consolidando na hipótese de um

significado aberto, acessível, definido pelo nível lingüístico e pelas experiências do

mundo, porém:

[...] bisogna valutare nei diversi casi i livelli di possesso dell’enciclopedia, ovvero le enciclopedia paziali (di gruppo, di setta, etniche, e via dicendo). Dal punto de vista semiotico, dunque, l’enciclopedia è una sorta de ipotesi regolativa. [...] Eco sostiene che si possano dare rappresentazioni enciclopediche ‘locali’. Quando due persone comunicano, certamente attivano porzioni enciclopediche che consentono, in varia misura, la comprensione reciproca (TRAINI, 2008, p. 256).

4

Assim, como antes exposto por Nöth (2003, p. 139), “o interpretante do signo está

sempre presente em uma rede de cognições prévias (e futuras) ou elementos do

conhecimento”, em reflexão aos estudos do esquema triádico de Peirce, Eco deriva

em consonância a esta suposição, já que a apreensão de significado apenas

acontecerá se todos os comunicantes compartilharem, no plano do discurso, da

mesma situação enunciatária, do contexto, da história prévia partilhada. Como no

exemplo desenvolvido nesta monografia, o signo „rubor da garota‟ apenas poderá

ser compreensível por alguém que compartilhe do histórico, que conheça a relação

de ambos, que reconheçam os sentimentos dos envolvidos. Desta forma, a

interpretação apenas seria completamente realizada se houvesse conhecimento de

todo o contexto ali partilhado.

Desta forma, como melhor conclui Stefano Traini, estudioso italiano na área de

semiótica, em sua obra “Le Due Vie della Semiotica”:

[...] esercizio di interpretazione connotativa non può che concernere un’occorrenza segnica, un’occorrenza di comunicazione, non già un termine

4 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “precisa considerar, nos diversos casos os níveis de

domínio da enciclopédia, ou seja, as enciclopédias parciais (de grupo, de seita, étnicas, assim por diante). Do

ponto de vista semiótico, portanto, a enciclopédia é uma classe de pressupostos regulativa. [...] Eco afirma que

se podem dar representações enciclopédicas ‘locais’. Quando duas pessoas se comunicam, certamente ativam

porções enciclopédicas que consentem, em diferentes níveis, a compreensão recíproca”.

39

in astratto isolamento dal fluire della comunicazione; in tale esercizio si passa attraverso almeno due mosse interpretative: di cui la prima è obbligatoria per intendere l’occorrenza segnica come significante, mentre la seconda è esigita per la comprensione del segno in quanto inserito in un testo, in un contesto e un gioco comunicativo (TRAINI, 2008, p. 258).

5

Assim, como exposto por Traini, o objetivo de se estudar a interpretação, pela visão

semiótica, é de reconhecer que o processo interpretativo nada mais é que uma

assimilação de signo e sua reprodução, através dele próprio ou de outra

representação mais evoluída, em um processo comunicativo. Além disso, com a

teoria semiótica aplicada a esta esfera do intérprete, faz-se gerar reflexões acerca

do papel do leitor em uma semiose.

Em resumo, duas pessoas que se comunicam devem ativar porções enciclopédicas,

selecionar contextos, escolher propriedades semânticas e excluir outras, onde estes

apenas surgem devido à freqüência, à regularidade, ao hábito do intérprete em

traduzir estes sinais, levando-se em consideração a economia lingüística, onde o

pouco significa muito por agregarem-se novos domínios do conhecimento.

Exatamente por ter que representar o máximo no mínimo, os signos, com o objetivo

fundamental de serem decodificados, compreendidos, apenas são ativados através

da presença do intérprete, condicionado, habituado, capacitado em absorvê-lo.

A partir deste embasamento teórico, Eco focaliza atenções sobre os movimentos

interpretativos do destinatário, ou melhor, sobre a cooperação do destinatário na

interpretação de um texto – verbal ou não-verbal. Se o pressuposto de uma relação

comunicativa é que haja uma convergência sobre um modelo mental, uma porção

enciclopédica, “comunicare implica certamente cooperazione”6 (TRAINI, 2008, p.

264). Mas se de um lado a comunicação requer um esforço cooperativo, por outro

pede também um esforço estratégico, ou seja, compreender a estrutura, antecipar

uma certa tendência à interpretação, a um determinado comportamento e, assim,

adotar um rede estratégica.

5 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “exercício de interpretação conotativa não pode produzir

uma ocorrência sígnica sem uma ocorrência de comunicação e um termo em um abstrato isolamento que inicia

a comunicação; em tal exercício, se passa através pelo menos de duas direções interpretativas: as quais a

primeira é obrigatória para entender a ocorrência do sígnica como significante, enquanto a segunda é exigida

pela compreensão do signo, como quando inserido em um texto, em um contexto e um jogo comunicativo”.

6 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “comunicar implica certamente cooperação”.

40

O enfoque central aqui debatido não é mais o cunho organizacional da semiótica,

que precede a geração do texto, mesmo tendo por base estes fundamentos

estruturalistas, mas sim a recepção e interpretação do texto pela óptica do

destinatário. Eco, por fim, se concentra na relação texto-intérprete, onde texto se

compreende como qualquer manifestação sígnica, composta por artifícios verbais,

não-verbais, físicos ou mentais, e neste sentido provêm o centro da dinâmica teórica

sobre o Leitor Modelo de Eco: “un testo postula Il suo destinatario come condizione

indispensabile per la propria capacità comunicativa”7 (TRAINI, 2008, p. 264).

O ponto de partida de Eco é a constatação do fato de que um texto, um signo, é

sempre incompleto, preenchido por coisas não-ditas. Não-dito significa não

manifestado na superfície, no nível da expressão de Hjelmslev, o mesmo

representamen de Peirce, devendo assim ser atualizado de acordo com o contexto n

qual está inserido, o que exige em um texto a cooperação ativa e consciente da

parte do leitor. O intérprete que deve cooperar e fazer inferência para reconstruir

aquilo que não é expresso:

Il texto è intessuto di spazi bianchi, di interstizi da riempere, e chi lo ha emesso prevedeva che essi fossero riempiti e li ha lasciati bianchi per due ragione. Anzitutto perchè il testo è un meccanismo pigro (economico) che vive sul plusvalore di senso introdottovi dal destinatario, e solo in casi di estrema pignoleria, estrema preoccupazione didascalica, o estrema repressività il testo si complica di ridondanze e specificazione ulteriori [...]. E in secondo luogo perchè, via via che passa dalla funzione didascalica a quella estetica, un testo vuole lasciare al lettore l’iniziativa interpretativa, anche se di solito desidera essere interpretato con un margine sufficiente de univocità. Un testo vuole che qualcuno lo aiuti a funzionare (ECO, 1979, p. 52).

8

7 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “um texto exige o seu destinatário como condição

indispensável pela própria capacidade comunicativa”.

8 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “Um texto é entrelaçado de espaços em brancos, de

lacunas para preencher, e quem os inseriu previa que estes fossem preenchidos e os deixou em branco por

duas razões. Primeiramente porque o texto é um mecanismo preguiçoso (econômico) que vive sobre os

excedentes de sentido introduzidos pelo destinatário, e apenas em casos de extrema preguiça, extrema

preocupação didática ou extrema repressão, o texto se constitui de redundâncias e especificações anteriores

[...]. E em segundo lugar porque, longe da função didática até da estética, um texto quer deixar ao leitor a

iniciativa interpretativa, embora geralmente deseje ser interpretado com uma margem suficiente de

singularidade. Um texto quer que alguém o ajude a funcionar”.

41

Esses espaços em branco na própria construção de um texto, seja ele um composto

físico e verbal, apenas um gesto corpóreo ou um signo bruto mental, são

preenchidos, na leitura, através do hábito, pela constante construção e

desconstrução de significado. Um leitor não apenas analisa linearmente um texto,

como suas estruturas sintáticas, sua composição estratificada, mas aciona em sua

memória enciclopédica signos que se encaixam, por dedução, indução e absorção,

naqueles lugares, tornando aquele signo viável, construindo assim o significado.

Assim, um intérprete tem papel fundamental na semiose, já que sem ele não há

interpretação, não havendo assim validade, pois todos os signos devem significar,

como pressuposto inicial de Peirce. Desta maneira, o autor sígnico, provido de uma

dada cultura, uma dada bagagem de conhecimento de mundo, produz um texto,

uma imagem, um signo, aguardando a presença de um segundo, ou terceiros, que

absorvam e completem com suas experiências de mundo. Papel do emissor é

conseguir manter uma estratégia, um jogo comunicativo, ou seja, é habituar o

destinatário para decodificar a mensagem, o processo sígnico, de maneira

satisfatória, até alcançar o nível de máximo de interpretação, aquele que reside no

interpretante final, da tríade peirceana.

O destinatário, o intérprete, então deve se bastar da significação imediata que o

emissor propõe e, a partir de então, construir o significado, levando-se em

consideração as particularidades estruturais de todo o signo, as conexões propostas

pelos objetos (mediato e imediato, em Peirce), e o hábito interpretativo proposto. Ou

seja, considerando no caso um texto verbal e físico como um signo, o autor deixa,

propositalmente, evidências, lacunas, signos, figuras de linguagem, para indicar

outros signos, outras inferências no texto, podendo apenas o leitor conseguir

distinguir e compreender o texto em sua totalidade, através do seu hábito em extrair

estas informações – no caso, na freqüência da leitura e percepção de um estilo, de

uma proposição no plano da estrutura, de indicações extra textuais costumeiras – e

de sua cultura. Nada adiantaria uma comunicação entre um texto produzido por um

autor norte-americano e um leitor de nacionalidade brasileira sem nenhum

conhecimento de língua inglesa, pois assim a cultura, a visão de mundo, a noção

prévia, do destinatário é insuficiente para a decodificação, tanto na parte estrutural

lingüística, quanto na apreensão de sentido.

42

Outro exemplo que pode ser dado é o gesto que designa, na Itália, inconformidade,

dúvida, questionamento. A união de todas as pontas dos dedos, formando a mão

quase como se fosse uma trocha, com movimentos para trás e para frente,

repetidamente, faz significar entre os cidadãos italianos, provenientes desta cultura

ou conscientes da existência do mesmo. Ao ser realizado, o gesto pode encontrar

um destinatário que não domine esta informação, por conta não do signo que está

errado, nem do emissor que não soube significar suficientemente, mas do leitor que

não possui referências. A cognição, o processo interpretativo, pode ser suficiente

apenas através do contexto, da referência imediata, da realidade situacional, porém

o hábito, a memória de quem o decodificará tende a ser mais necessário na

semiose, na construção de significado em qualquer que seja o meio, a estrutura, a

forma do signo.

“Un testo è un prodotto la cui sorte interpretativa deve far parte del proprio

meccanismo generativo: generare un testo significa attuare una strategia di cui fan

parte le previsione delle mosse altrui – come d’altra parte ogni strategia”9 (ECO,

1979, p. 54), como assinala o pesquisador italiano. De acordo com o autor italiano,

cada vez que se constrói um texto, é necessária a figuração de um Leitor Modelo, ao

qual se atribuem uma série de competências, sendo ele não um leitor concreto, mas

uma estratégia textual. Assim, para organizar a própria estratégia textual, um autor

deve referir-se a uma cadeia de competências que dão conteúdo, significado, ás

expressões que ele usa, sendo o Leitor Modelo, portanto, capaz de cooperar pela

atualização textual, como o próprio criador do signo infere e refere-se.

Eco sublinha que um Leitor Modelo não é apenas um target, um público-alvo, ou

seja, com um objetivo passivo diante ao signo, mas prever este modelo significa,

antes de tudo, construir-lo, procurando habituar os leitores a um estilo, educando-os

a interpretar seus textos, de certa maneira. Em suma, o Leitor Modelo de Eco seria o

intérprete, construído pelo próprio autor, capaz de extrair toda a carga significativa

de um texto, incluindo o que está linearmente disposto e o que não é exposto,

costumeiramente orientado, acostumado àquela montagem e compreensão

significativa.

9 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “Um texto é um produto o qual seu potencial

interpretativa deve fazer parte do próprio mecanismo gerativo: criar um texto significa aplicar uma estratégia

da qual fazem parte as previsões das atividades de um outro – como cada estratégia.”

43

No ponto de vista semiótico, esta circularidade na criação, decodificação e retomada

de signos, mensagens, textos, habitua o intérprete a desconstruir o signo de uma

maneira específica, estando a função sígnica, de criação de sentido, exclusivamente

no nível do interpretante final, ou seja, tem o leitor papel ativo na captação de

significado, sendo capacitado de notar as lacunas deixadas, propositalmente, pelo

autor, preenchendo-as com signos já interpretados, associando-os aos modelos

mentais mais apropriados, auxiliado pelo costume deste uso, pela competência

adquirida, pela cultura. Quando um espectador, sem nenhum conhecimento prévio

do contexto, sem qualquer entendimento daquela cultura, assiste a cena entre a

garota que ruboriza e o rapaz, não será capaz de interpretar a mensagem, o signo, o

texto, podendo até deduzir, através de carga cognitiva própria. O Leitor Modelo

desta situação utilizada como exemplo seria alguém consciente dos sentimentos dos

jovens, atualizado com referências culturais que façam os signos corporais tomarem

significado que corresponda ao acontecimento e, primordialmente, habituado àquela

análise. Se um leitor desconhecer o fato de que a garota possui, hipoteticamente a

fins de exemplificação, uma postura firme e rígida, que não é facilmente influenciada

através dos sentimentos, e então ela fica vermelha, o significado final será diferente,

promovendo até reações diversas. O Leitor Modelo desta semiose deve preencher

as lacunas, interpretar os signos, de acordo com o que ele possui de conhecimento

de mundo, referido internamente na comunicação pelo próprio autor.

Trazendo para a nomenclatura de Peirce, o interpretante final, composto pela união

do imediato com os mediatos, é o sentido completo expresso por aquele signo. Para

derivar o interpretante final, o leitor deve então juntar a representação com as

referências internas do texto – seja ele linear, como sua construção, da captação

imediata do referido, seja ele externo ao signo, cabendo o intérprete em mediar a

vinculação das referências –, o que por fim resulta na interpretação em três níveis:

do sentimento, da reação e da lógica. Estes três eixos auxiliam na aproximação do

cognitivo com as lacunas deixadas pelo autor, cabendo à mente e seu hábito

decodificarem o signo, chegando ao interpretante final. É embasado nesta dinâmica

da significação peirceana, na ciência cognitiva e na teoria do Leitor Modelo, que este

trabalho se propõe quanto referencial teórico para a análise da peça.

Em linhas gerais, uma semiose, um processo de comunicação, apenas será válida

devido ao potencial interpretativo do destinatário e dos espaços em branco no texto

44

contidos, ou seja, dos signos não visíveis, mas capazes de apreensão e

compreensão, em face o conhecimento de mundo e cultura compartilhados pelos

envolvidos. Além disso, prescreve Peirce, que um signo, mesmo quando decifrado e

armazenado pela mente, está em constante atualização e ação, tendo em vista o

princípio da semiose ilimitada, do processo de comunicação que pode ser pausado,

mas nunca finalizado. É, resumidamente, com estes alicerces teóricos que será

apresentada a análise da peça, com o objetivo de analisar a estrutura do signo

empregado e sua interpretação final junto ao referente Leitor Modelo.

Nos fundamentos de circularidade hermenêutica, do signo ativo diante de um leitor

ativo, que seja habituado a decifrá-lo, carregando informações e produzindo novos

sentidos, Eco sustenta a existência da dicotomia uso/interpretação, tendo em vista

as teorias acima expostas. A posição do desconstrucionalismo, ou seja, da análise

estrutural de representamen, objetos e interpretantes, além dos tipos de signos,

limita a idéia que a interpretação seja algo fechado na criação do próprio texto, o que

o autor italiano refuta. De acordo com ele, esta dicotomia entre o hábito do signo, na

mente de um intérprete, e o produto final significativo têm correlação, assim, com a

indução que o autor propõe, seja explicitamente ou através das lacunas sígnicas.

Assim, propor uma tendência à interpretação, um hábito, por parte do autor, é

pressupor uma intenção comunicativa, além da própria estrutura (lógico), do efeito

inicial (emocional) e reação (energético). Assim, Eco distinguiu, em consonância aos

preceitos triádicos do signo de Peirce, três tipos de intenção comunicativa: Intentio

auctoris, operis e lectoris. O Intentio auctoris o que se nota é a vontade do autor

empírico; no Intentio operis, o texto quer expressar um referimento aos próprios

sistemas de significação e à própria coerência textual; e, por fim, no Intentio lectoris,

o destinatário faz das referências do texto sua base para a semiose, de acordo com

suas crenças, cultura, pulsão, desejos. Desta maneira, em um nível mais aplicado

ao lingüístico, a interpretação apenas se faz valer através, primeiramente, da

intenção da obra em comunicar, e depois do conhecimento e instrumentos dispostos

pelo leitor, a intenção do leitor, em consonância aos pontos que o autor ou destacou,

ou implicitamente reconheceu, ou em alguma parte da obra reafirmou, reconstruindo

o signo por ele proposto.

Ao ler um poema, podem-se identificar as diversas intenções do texto. Sua intentio

operis, referente à estrutura da obra, é de apresentar uma construção lírica,

45

apresentando rimas, versos, estrofes, ou seja, a intenção do texto em significar, o

primeiro plano referente à estrutura. Em seguida, no nível da referência, a intentio

auctoris seria o sentido geral encontrado durante o texto, bem como dos

instrumentos utilizados por ele para construção, como figuras de linguagem

(metáfora, assonância, rimas), desconstrução do poema, referências internas e

externas ao conteúdo (intertextualidade e hipertextualidade), caracterizando o

potencial interpretativo que o emissor pode dar, pura e simplesmente através da

obra. E, por último, a intentio lectoris, recorrente ao terceiro nível, da interpretação

final, do hábito, do costume, que se refere ao potencial que o próprio leitor possui e

sua articulação interna sígnica, ou seja, da compreensão e reconhecimento das

figuras de linguagem utilizadas, sua interpretação interna e sua relação com o

contexto; da união entre o que está implícito na forma de intertexto ou apenas

retomado, baseado na predisposição da economia que a própria língua exige etc.,

apenas possíveis pela visão de mundo e conhecimento adquirido do intérprete.

Em síntese, o processo comunicativo, que assim visa a interpretação, apenas se

torna completo, com todas suas potencialidades intencionais significantes, através

do uso, do hábito do leitor em decodificar, desprender o sentido do texto,

apresentando este apenas indicações de sentido, sejam elas explícitas, sejam elas

implícitas tanto na sua estrutura, conteúdo e construção. Desta maneira, um texto

apenas cumpre totalmente seu papel em se fazer significar pela intenção

comunicativa que propõe o autor, o texto e a visão de mundo que o destinatário

possui, criando um horizonte de expectativas em relação a uma obra.

Pode-se concluir que um texto, mesmo propondo as mesmas lacunas significativas,

atingirá destinatários diferentes, o que resulta em interpretações diversas,

concebendo a idéia de que cada indivíduo do mundo possui um conhecimento

diferenciado da realidade que o cerca, sendo isto definido pela inserção cultural,

hábito e experiências vividas. Assim, mesmo havendo um plano de expectativas em

relação à carga significante de um texto, ou como em definição o próprio Leitor

Modelo, a interpretação depende da força a qual o leitor, parte ativa deste processo,

implica na leitura, acessando todos os modelos mentais já absorvidos

cognitivamente, o que em outras palavras quer dizer que o processo interpretativo

necessita de um intérprete, mas cada leitura realizada de um texto, de um signo,

46

derivará resultantes diversos, tendo em vista a diferença entre cultura, experiência

de vida e mundo.

47

CAPÍTULO 3

ANÁLISE SEMIÓTICA DE GLEE

Os fundamentos teóricos levantados durante esta monografia já são suficientes para

propor a análise da obra, do texto em si. Através dos preceitos de Peirce de

construção/desconstrução do signo; do conhecimento dos processos cognitivos e

como se produz modelos mentais; do chamado modelo enciclopédico de Eco, que

gera a teoria sobre o Leitor Modelo e seu processo de interpretação, por

potencialidade, é que se desenvolve a análise da peça em questão: uma cena da

série norte-americana Glee, em formato de musical.

Por intermédio dos postulados semióticos, propõe-se uma descrição dos fenômenos

de criação de sentido realizados na obra televisa, seja de maneira primária, através

da própria história; seja de maneira secundária, evocando o conhecimento do

recorte realizado, em consonância com o objeto representado e sua materialidade;

ou de maneira terciária, através das experiências já absorvidas dos leitores-

telespectadores e do hábito de encontrar e extrair significado, proposto pelos

criadores e produtores do seriado, sendo seu produto interpretativo variante de

acordo com o interpretante e seu conhecimento de mundo.

A seguir expõe-se, então, sobre o seriado musical Glee, seu processo de criação e

produção, seus personagens, dando assim material para posterior análise semiótica,

tendo em vista a teoria de Eco e a estrutura do signo de Peirce.

3.1 Glee, a série

A série do gênero comédia/musical Glee é, provavelmente, o mais radical exemplo

do pioneirismo da TV sobre o cinema. Criada por Ryan Murphy, Brad Falchuk e Ian

Brennan, era tida até o seu lançamento como um projeto potencialmente inviável,

48

primeiramente idealizado para se tornar um filme. A história conta os esforços do

professor de espanhol Will Schuester (Matthew Morrison) em reerguer o coral da

escola William McKinley em Lima, Ohio, chamado de "Glee Club" (Clube do Coral,

Clube Glee), que no passado foi motivo de grande orgulho para todos os alunos da

instituição. No entanto, a escola não possui, atualmente, recursos para sustentar o

coral, que a princípio só atrai os alunos pouco populares e estigmatizados.

Desengonçados e sem brilho aparente, os losers (perdedores em Inglês), como são

conhecidos esses alunos, estavam fadados, normalmente, a humilhações diárias.

Acharam, porém, em meio a um ambiente torneado por uma hierarquia previamente

estabelecida, uma forma de conquistar seu próprio espaço e de realçar suas

próprias particularidades.

Entre o grupo de rejeitados, estão: Rachel Berry (Lea Michele), figura da

protagonista que seria perfeita, inteligente, romântica e talentosa, mas que se

apresenta com uma imagem de egoísta, insegura, invejosa e articulosa; Finn

Hudson (Cory Monteith), garoto bonito e popular do colégio McKinley, jogador de

futebol americano, que destoa das outras imagens de protagonistas homens, sendo

assim um garoto sem iniciativa, confuso quanto seu lugar no colégio e vulnerável; e

Kurt Hummel (Chris Colfer), jovem homossexual assumido na pequena cidade de

Lima, esperto, determinado, que se anula socialmente para proteger seu viúvo pai e

sofre com bullying e homofobia. Assim como esses, outros alunos do colégio que se

sentem desajustados de alguma forma acham o Clube Glee como saída, refúgio

para seus medos, frustrações e problemas.

Glee, narrativa áudio-visual, que mescla estas histórias com referências da cultura

pop e música, é resultado do esforço de Ryan Murphy, Brad Falchuk e Ian Brennan.

O projeto original foi idealizado por Ian, aspirante de ator de uma pequena cidade no

interior dos Estados Unidos que se tornaria roteirista anos mais tarde. O então

intérprete começou a escrever seu primeiro roteiro: um filme baseado nas suas

próprias experiências na escola e sobre o coral do colégio. “Muito do que você vê

em Glee – Sandy descontando nos alunos, o bullying, as ovadas – vêm direto da

vida de Ian” (BALSER; GARDNER, 2011, p. 22), como exposto em Glee: não deixe

de acreditar (2011), da editora Rai.

Mas não apenas na vida de Ian que estão as inspirações para a história do seriado.

Outro roteirista e mente por trás de Glee, Brad Falchuk em 2008 foi diagnosticado

49

com má formação de uma veia na espinha dorsal, conhecida como hemangioma.

Operado, o também personal trainer, ficou meses em uma cadeira de rodas, o que

foi catalisado para a criação do personagem de Kevin McHale (Artie Abrams na

história), abordando as questões sobre deficiência física, acessibilidade e

preconceitos que advêm destas situações.

Porém, são de Ryan Murphy, criador, roteirista e diretor de diversos sucessos de

crítica e público, as características mais peculiares de Glee. Formado em

Jornalismo, Murphy trabalhou por meio do showbizz americano, como nos

conhecidos Los Angeles Times, New York Daily News e Entertainment Weekly nas

seções de entretenimento. Começou como roteirista no final dos anos 90, e seu

último sucesso foi a série Nip/Tuck. Com humor negro, tom cínico e crítica ferrenha à

cultura contemporânea, o seriado rendeu 100 episódios desde sua estréia em 22 de

julho de 2003, e contava a história de dois cirurgiões plásticos, Dr. Sean McNamara

e Dr. Christian Troy, que tinham uma clínica, onde atendiam fazendo a pergunta

“Diga-me, o que você não gosta em você?”. A partir de então, traçava-se a linha de

que todas as pessoas procuram superar as inseguranças adolescentes, fazendo

Nip/Tuck “um seriado repulsivo e vívido, explora o lado feio da beleza, da saúde, da

cirurgia plástica” (BALSER; GARDNER, 2011, p. 18).

Com um Globo de Ouro de Melhor Série Dramática de 2005 em mãos, Ryan Murphy

foi contratado pela 20th Century Fox Television. Como marca de seu trabalho,

carregou para sua obra posterior a crítica sutil, o lado sombrio da sociedade:

“Apesar dos finais emocionantes e felizes, Glee é salpicado de humor negro e

observações cínicas. „Eu queria fazer uma série que fosse muito emocionante e

gentil. (...) Mas não se engane. Ela ainda é crítica” (BALSER; GARDNER, 2011, p.

23).

Em 2008, Ian Brennan, Brad Falchuk e Ryan Murphy apresentaram o projeto para a

Fox, escolheram o elenco, reuniram a equipe e, um ano depois, no dia 19 de maio

de 2009, foi ao ar o episódio piloto, logo após da final do American Idol, reality show

de grande sucesso no EUA. A estratégia rendeu para Glee a audiência de 9,62

milhões de telespectadores e críticas de jornalistas da área do entretenimento:

[...] Entertainment Weekly escreveu: ‘[Glee] é muito bom – muito engraçado, tão pulsante, com personagens vibrantes – que derruba qualquer tipo de

50

ressalva que você pudesse ter. Glee não irá para até que conquiste você completamente‟. O Los Angeles Times concordou: „O único problema de verdade com Glee, a nova série de comédia e musical da Fox, que estréia hoje à noite, é que os espectadores terão de esperar quatro meses inteiros para assistir o próximo episódio‟ (BALSER; GARDNER, 2011, p. 24).

Para uma série do gênero musical, o sucesso alcançado apenas com o episódio

piloto foi grande, garantindo previamente para Glee o pacote de 13 novos episódios

e a confirmação de uma segunda temporada, mal lançada a primeira. Além disso, o

seriado causou movimentações nas redes sociais, já que os vídeos com as

apresentações musicais do programa piloto se tornaram hits na web, bem como a

versão de “Don’t stop believin‟”, música original da banda Journey, cantada pelo

coral New Directions na estreia. No iTunes, plataforma da Apple para

compartilhamento e compra de músicas digitais legalmente, a música que se

tornaria tema da própria série foi baixada 177 mil vezes, conquistando o segundo

lugar no ranking de downloads mundiais.

Desta maneira, os produtores e executivos viram a oportunidade de Glee também se

tornar diversos produtos, rendendo lucros com a marca. O público já havia

demonstrado que a série tinha potencial para explorar as diversas mídias,

transformando-o em subprodutos: CDs, músicas digitais, DVDs das temporadas,

livros, turnês ao vivo etc. Quando Glee retornou em 9 de setembro de 2009, o

segundo episódio inédito foi o recordista de audiência das estréias de seriados

daquela temporada e manteve a média de 8 a 10 milhões de espectadores por

episódio.

Em dezembro de 2009, com 13 episódios exibidos, apenas a metade da primeira

temporada, mais de quatro milhões de músicas da série foram baixadas, tornando-

se, assim, um fenômeno da cultura pop e do consumo:

A primeira trilha sonora, Glee: The Music, Volume 1, começou em quarto lugar na Billboard Hot 200 quando foi lançada, em 3 de novembro de 2009, e recebeu o disco de ouro antes do fim do ano. O elenco de Glee tinha 25 músicas na Billboard Hot 100 em 2009, uma realização superada apenas pelos Beatles, que tiveram 31 músicas na lista, em 1964 (BALSER; GARDNER, 2011, p. 26).

51

Esses números são uma mostra da dimensão mercadológica alcançada pela série

Glee.

3.2 Escolha de repertório e preocupação com o real

Diante desse cenário, Glee se tornou assim um grande sucesso, por haver diversas

tramas e histórias que alcançam os mais variados públicos. As músicas escolhidas,

o elenco escalado, as participações especiais e os temas dos episódios, tudo

auxiliou para que a série se tornasse uma sensação da cultura pop. A sua produção,

desde roteiro até finalização das músicas, faz com que o seu sucesso seja devido

aos esforços e investimentos realizados. “De acordo com o New York Times, cada

episódio de Glee leva dez dias para ser filmado e custa mais de 3 milhões de

dólares. São três dias a mais e 50% mais caro que o custo normal de uma série do

horário nobre” (BALSER; GARDNER, 2011, p. 27).

O cuidado com a história, com a abordagem, com a escolha da trilha sonora, faz

com que Glee seja o grande sucesso que se apresenta. O roteiro, escrito

basicamente pelo trio Ryan Murphy, Ian Brennan e Brad Falchuk, é apresentado ao

elenco, ensaiado, e as sugestões apresentadas após primeira reunião começam a

designar os traços principais da narrativa. Toda a equipe auxilia no texto, nas

músicas, no futuro dos personagens, havendo o aval final de Murphy, sendo ele a

grande força motriz.

As canções utilizadas no musical são propostas pelo próprio criador da série,

funcionando como um grande bando de dados para músicas. “Não é só ter uma

longa lista mental de músicas que faz de Ryan tão especial, mas a visão que ele tem

para jogar todos os tipos de músicas na mistura” (BALSER; GARDNER, 2011, p.

29). Além disso, todos os atores são encorajados a palpitar, trazendo suas próprias

experiências de vida, como o caso de “Bust Your Windows” e “Ride Wit Me”,

incluídas nos episódios depois de ouvidas no set de gravação.

52

Desta maneira, o processo de criação de um episódio de Glee possui diversas

fases, porém nenhuma fechada, agregando sempre novas percepções e

interpretações do roteiro original. Para um melhor aproveitamento e abordagem das

histórias, como exposto no livro Glee – não deixe de acreditar:

Nós vamos conhecer a história e a cena primeiro e normalmente sabemos: „Ah, a música que precisa entrar aqui é tal‟, explica Brad. Ryan concorda: primeiro vem a história, e as músicas vêm em segundo lugar. „Brad, Ian e eu escrevemos o programa, escrevemos todas as falas e, antes de tudo, o que nós fazemos é pensar qual vai ser o tema daquele episódio. O que os personagens estarão fazendo?‟, diz Ryan (BALSER; GARDNER, 2011, p. 29).

Licenças de reprodução adquiridas, o elenco se encaminha para os estúdios de

gravação de áudio, com produtores musicais e professores de canto para

aperfeiçoamento, tendo em vista que alguns dos atores nunca trabalhou no ramo

das músicas. Por falar em licença de uso, grande parte dos artistas se recusou, de

início, a liberar suas canções para a Glee, o que viria posteriormente a mudar:

“Conforme (...) se tornava cada vez mais popular, adquirir os direitos foi ficando mais

fácil, com artistas como Rihanna, Beyoncé e Madonna oferecendo catálogos por

valores reduzidos de licença” (BALSER; GARDNER, 2011, p. 30).

A escolha da trilha para o musical deve ser eclética, porém conhecida, seja por

grande parte da população, seja por um grupo de pessoas que gostem

especificamente de um artista ou gênero musical. Assim, com todos estes detalhes,

a produção se preocupa com detalhes que, em outros musicais, podem fazer com

que haja uma quebra de veracidade, como as cenas de dança e canto, onde

tradicionalmente neste gênero, há uma suspensão da incredulidade, como o fato das

pessoas começarem a cantar e dançar ao acaso, suspendendo a narrativa. Como

expõe Ryan Murphy, as regras para as apresentações dos alunos do New

Directions:

[...] então teremos três regras: será feito (quando) estiverem no palco ensaiando ou se apresentando, ou (quando) estiverem na sala de ensaios, ou se estiverem em algum tipo de fantasia que tenha sido localizada no palco, e você consegue perceber que eles estavam ensaiando na cabeça deles, ou se apresentando no auditório o tempo todo‟. E em terceiro lugar, a música tem de combinar com a série tanto no estilo quanto no tema. Cada

53

episódio é centrado em um tema importante, e as músicas são selecionadas para reforçar esse tema, adicionando profundidade e complexidade às narrativas da série (BALSER; GARDNER, 2011, p. 31-32).

Assim, notória é a preocupação da equipe de produção e roteiristas quanto ao

conteúdo que será transmitido em Glee. Toda a união entre narrativa, música e

dança deve ser feita com cuidado nos detalhes que façam a diferença, quanto à

continuidade, e que haja o acréscimo proposital de significado, agregando ao enredo

o musical de forma proposital, verossímil e real, como se o personagem envolvido

na cena pareça querer significar exatamente o exposto, ou apenas acrescente

sentido para as ações que estão em torno daquele núcleo. Ou seja, a preocupação

quanto ao que se irá significar da preparação do texto, escolha de repertório até os

últimos momentos no set de gravação e edição.

3.3 Sobre a narrativa hipermidiática

“O digital fez algo que ninguém esperava: tornou a televisão muito mais narrativa. O

roteiro para séries de televisão jamais foi tão narrativo e tão interligado.”, assim

expôs Cannito (2010, p.18). As narrativas televisas durante certo tempo passaram a

ser vistas como algo que, com a chegada da internet, se extinguiria pouco a pouco.

Porém não é o que se percebe diante do quadro atual. Em poucos episódios, o

seriado norte-americano Glee, do criador Ryan Murphy, alcançou grande destaque

internacional de críticas e premiações.

De certa forma, Glee atingiu a todos os públicos envolvendo em seu roteiro uma

trilha sonora forte, fazendo com que uma série do estilo musical reerguesse o

mercado de narrativas televisivas por todo o mundo. De acordo com Cannito, no seu

livro „A televisão na era digital: interatividade, convergência e novos modelos de

negócio‟ (2010), as narrativas áudios-visuais têm crescido significativamente quanto

ao aspecto de roteiro e história proposta, e seus fãs continuam a acompanhá-las

ainda mais, pois a internet facilitou o acesso.

54

Além disso, Glee fez toda uma linha de produtos musicais, CDs, DVDs que

alcançaram altas posições na listas de mais vendidos nos EUA e Reino Unido, como

exposto anteriormente. Assim, na convergência de mídias que permeiam a série, por

dar destaque também ao produto musical além da narrativa, configurando-se não

um seriado multimidiático, mas hipermidiático. “Hipermídia permite aos usuários

controlar seu próprio consumo de um produto de mídia, selecionando palavras-

chave ou símbolos gráficos (os ícones)”, como explicam Straubhaar e LaRose

(2004, p.23).

Desta maneira, a série de Murphy converge à mídia „música‟ com a narrativa,

trabalhando-a de forma separada, para manusear, mexer de acordo com o roteiro.

Mas ao mesmo tempo, a união dos sentidos, de signos visuais e musicais, faz com

que esse trabalho seja inseparável, constituindo um único e singular signo. O

trabalho de análise a seguir não utilizará das matrizes do pensamento e linguagem,

descritas por Santaella, como visual, verbal e sonora, pelo objetivo principal desta

descrição, que é analisar de que maneira o signo completo Glee, da extração de seu

roteiro áudio-visual, com a criação detalhada de seus personagens, gera

interpretações diversas em seus leitores, através dos fundamentos de Eco sobre o

Leitor Modelo e seu horizonte de expectativas.

Porém, apenas para efeitos de elucidação, faz-se assim um parêntese para apenas

algumas considerações teóricas sobre Hipermídia, e subseqüente definição de

hipertexto. Necessário isto por ser um dos instrumentos que Ryan Murphy e sua

equipe utilizam para dar melhor credibilidade ao trabalho, sendo crível, verossímil o

suficiente e, primordialmente, na sua construção interna de seus personagens,

relações extratextuais e referências à cultura pop, fazem deste um seriado um

exemplo do que Eco, em sua teoria interpretativa semiótica, chamou de Leitor

Modelo.

Sistemas de comunicação interativos, baseados na tecnologia hipermídia têm como

característica principal a possibilidade de o consumo de produtos culturais ocorrer

de forma não-linear. Todo sistema hipermídia organiza-se sob uma estrutura

orientada à interconexão e integração do conhecimento: o autor deixa de ser o

centro do processo e caminha-se para métodos de comunicação participativa, em

que a matéria comunicativa torna-se apta para ser “vivenciada”. Desse modo, os

55

produtos culturais desenvolvidos sob a lógica da hipermidialidade estão próximos do

que Umberto Eco (2001) denomina como “obra aberta”.

Vannevar Bush, na década de 1940, e Theodor H. Nelson, nos anos 1960,

desenvolveram as bases da estruturação não-linear e da interconexão da

informação, assuntos que constituem conceitos chaves para o desenvolvimento do

conceito de interatividade na comunicação midiática.

Nelson (APUD CASTELLS, 2003, p. 28) define hipertexto como um conjunto de

blocos de texto interconectados por nexos, de modo a formar diferentes itinerários

para o usuário. Segundo o autor, a cultura mundial é um hipertexto implícito que a

tecnologia informática permite descobrir, explicitar e objetivar. Nelson acrescenta,

ainda, que no hipertexto a última palavra não existe, pois sempre há uma visão, uma

idéia, uma interpretação nova.

Segundo George P. Landow (1995, p. 16), um dos principais pesquisadores da

hipertextualidade, os nexos ou enlaces eletrônicos unem fragmentos de texto

internos ou externos à obra, criando um texto experimentado pelo leitor de forma

não-linear, ou seja, multilinear ou multi-sequencial.

Conceitualmente, o hipertexto pode utilizar suportes abertos (on-line) ou fechados

(off-line), e, desse modo, interconectar informações multimidiáticas. Um sistema

multimídia é constituído por um conjunto de informações representadas em múltiplas

matrizes da linguagem (texto, som, imagem estática ou em movimento etc.) e, após

sua codificação, registradas em suporte off-line como, por exemplo, o CD-ROM ou o

DVD. A leitura de um texto em suporte multimídia é conceitualmente não-linear,

ainda que o processo final de leitura quase sempre implique certa seqüencialidade

no acesso do usuário às informações. Isto porque o número de caminhos possíveis

de leitura está limitado ao previsto pelo autor da obra.

Assim, os sistemas hipermídia são baseados na soma das potencialidades do

hipertexto e da multimídia, com aplicação em um suporte aberto. Atualmente, tais

potencialidades convergem principalmente na Web, sendo absorvidas por todos os

meios e dispositivos digitais. Esses sistemas permitem interconectar e integrar

conjuntos de informação praticamente ilimitados, representados em múltiplas

matrizes da linguagem, as quais podem estar interconectadas. Ou seja, um texto

56

verbal pode remeter a um som, ou uma imagem pode conectar-se a uma base de

dados, por exemplo.

Roland Barthes postulou, no início dos anos 1970, um ideal de textualidade que

fundamentou o conceito contemporâneo de hipertexto e, conseqüentemente, de

hipermidialidade:

[...] penso em um texto formado por blocos de palavras (ou de imagens), eletronicamente unidos por múltiplos trajetos, correntes ou percursos dentro de uma textualidade aberta, eternamente inacabada. [...] um texto que precisa ser separado em blocos de significado antes desprezados por um processo de leitura limitada a percorrer a superfície textual, imperceptivelmente soldada pelo movimento das frases, o discurso fluido da narração e a naturalidade da linguagem convencional (BARTHES, 1992, p. 81).

Para Aristóteles, uma trama (o modo como são dispostos os elementos que formam

a história) bem construída deve descrever uma seqüência fixa, um princípio e um

final determinados, e uma magnitude definida da história. O conceito de

hipermidialidade rompe com esse tipo de pensamento. Alguns teóricos apontam que

a narrativa clássica (a estruturação da história numa trama linear) responde a

condicionantes culturais. Assim, a construção temporal da realidade e,

conseqüentemente, o auge das relações causais associam-se ao surgimento da

tipografia.

Conforme foi afirmado anteriormente, os produtos hipermidiáticos referem-se a um

paradigma ou modelo não-linear de estruturação da informação. Trata-se, portanto,

de uma maneira contrária às formas clássicas de organizar e transmitir o

conhecimento, de estruturar e narrar o texto. O conceito de hipermidialidade

pressupõe um tipo de usuário com acesso seletivo aos conjuntos de informação

dispostos em múltiplas linguagens interconectadas. Gosciola (2008, p. 142) aponta

as seguintes vantagens dos modelos não lineares nos processos de veiculação e

consumo de produtos culturais:

A pluralidade de conexões de um sistema hipermídia aumenta as possíveis

interações entre os componentes que o formam; paralelamente à integração,

produz-se um efeito contrário de isolamento que oferece aos fragmentos uma

autonomia sustentada na não dependência de um “antes” e um “depois”; a

57

hipermídia tem a capacidade de produzir fenômenos em escalas heterogêneas de

espaço e de tempo; diferentemente da narrativa linear, a hipermidialidade propicia

ao usuário integrar-se de uma maneira bem mais intuitiva ao processo de

interpretação, pois a estrutura é matéria significante por si mesma. Assim, por

exemplo, podem ser produzidas informações de relações semânticas, causais,

espaciais ou temporais entre os elementos que a formam; a estrutura e as relações

estabelecidas a partir da lógica da hipermidialidade se aproximam do modo como se

organizam e interconectam os neurônios humanos para desenvolver processos

cognitivos.

3.4 Os losers estereótipos hipertextuais

O composto de personagens que envolvem esta narrativa televisa norte-americana é

uma dos mais ricos e surpreendentes dos últimos tempos. Glee apresenta uma

grande variedade de temas, devido a esta pluralidade de papéis que permeiam a

trama, que vão desde bullying, aceitação, triângulos amorosos, acessibilidade de

deficientes físicos, homossexualismo e homossexualidade, até convívio e inserção

com a síndrome de Down, solução para doentes com transtorno obsessivo

compulsivo, racismo, inclusão social entre outros. A vasta gama de assuntos é

apresentada aos poucos, ao mesmo passo em que são conhecidos melhores os

próprios integrantes da escola William McKingley, quando o enlace dado ao episódio

faz referência ou envolve particularmente um deles.

Desta maneira, o número elevado de atores no elenco não faz com que a série

permeie na superficialidade com que desenvolve as histórias de cada um. Pelo

contrário, faz assim uma oportunidade de cada personagem de destacar no

momento certo da narrativa, elevando os que pareceriam coadjuvantes ou meros

figurantes ao nível de protagonistas, de personagens principais, devido ao enfoque

dado pelos roteiristas naquele contexto de episódios e no desenlace da história.

58

Neste momento do trabalho, levantam-se algumas das características dos

personagens „primários‟ da série, bem como algumas de suas apresentações,

conseguindo unir e destacar, desta forma, como exposto anteriormente, a

linearidade narrativa com o cunho emotivo que a música traz, levando-se em

consideração a construção deste elenco e seus desdobramentos quanto ao roteiro

de Glee. É necessário salientar que, para o presente trabalho, o material de estudo

não será especificamente a história da série, em seu teor textual, mas sim o todo, da

união da narrativa, da música, das inferências e referências que são feitas, ou seja,

tomando-se o produto final que chega aos telespectadores como signo único e

primordial, não analiticamente desenvolvendo determinados pontos ou matrizes da

linguagem, como em Santaella, verbal, sonora e visual. Desta maneira, toma-se

como análise não apenas a narrativa ou a seqüência de cenas, mas o próprio

roteiro, que inclui tanto a história, como a inserção de músicas e descrição de efeitos

de câmera e edição.

Com o enfoque nos losers (perdedores), Glee apostou na descrição de seus

personagens de forma estereotipada, já que permite assim uma melhor identificação

do público por familiaridade, por encontrar algum ponto em comum com o descrito.

Um grupo de jovens e adolescentes de Ohio, ou de qualquer outro lugar do mundo,

podem não se parecer tanto com os alunos do Glee Club, porém, como afirma Freire

Filho (2005):

o conceito de estereótipo refere-se a uma forma necessária de se organizar as informações recebidas e criar uma sensação de ordem. Entretanto, tal significado pressupõe que o estereótipo é equivalente a outros padrões mais amplos de tipificação e representação – necessários para que estruturemos e interpretemos experiências, eventos e objetos – e minimiza os efeitos de uma palavra que pode indicar diferentes formas de preconceito e idéias demasiadamente rasas (FREIRE FILHO, 2005, p. 18).

Assim, tipificando um grupo de estudantes, a série pode se valer ainda mais de seu

objetivo em criar um retrato sarcástico do ambiente escolar, podendo chegar mais

facilmente na absorção de informação pelos telespectadores. Este processo de

tornar-se estereótipo nada mais é que o processo de cognição, já descrito acima,

onde para melhor compreensão do material composto, transforma-o em um único

signo, dotado apenas de suas qualidades, o ícone.

59

A ampla circulação de imagens, idéias e representações estereotipadas é uma forte

característica de grande parte das séries juvenis norte-americanas lançadas

atualmente. Mesmo que a utilização de estereótipos seja a prática corrente em

muitas destas produções, o adicional de representações através de estratégias

como a sátira, a ironia, o exagero e a inversão de paradigmas também é praticado.

Estes elementos e seu uso estão presentes em toda a série Glee, fazendo assim da

narrativa audiovisual uma metalinguagem dos seus próprios clichês: da líder de

torcida bonita e grávida; do cadeirante nerd que nunca teve relacionamento

amoroso; da animadora de torcida loira e burra; da negra gorda que sempre está à

deriva; da vilã egocêntrica e individualista; da asiática com atitudes e tendências do

Ocidente.

Esta estereotipação funciona então em uma espécie de complemento da própria

narrativa, havendo assim uma flexibilidade quanto a essa representação icônica

dentro da série, o que se dá primordialmente pelo enredo, por se tratar de jovens,

sempre em constantes mudanças, mas que encontra respaldo no ameno trato que a

produção dá ao programa, como edição, montagem de cenas e, logicamente, à

presença da música. Nota-se isto pela matriz musical possuir esta vertente mais

emocional, no seu teor significativo, o que produz um efeito mais leve no

telespectador quando este presencia, no seriado, uma cena de tensão.

O mesmo ocorre com a construção de seus personagens, ainda mais quando se fala

de estereótipos. Exemplo disto em Glee é a personagem Rachel Berry, interpretada

por Lea Michele, que é a própria protagonista da história, a mocinha inteligente,

doce e romântica, imagem que normalmente é reconhecível por entre outras

narrativas, se tornando assim um clichê, um estereótipo. Porém, Berry para alcançar

seus objetivos, que é se tornar uma cantora da Broadway e ficar com o garoto mais

popular do colégio, não mede esforços, mostrando um lado articuloso, egoísta e

inconseqüente. Além disso, Rachel não é bem vista por entre seus colegas do coral,

exatamente pela união de suas qualidades, o que a incomoda pelo fato de sempre

sua liderança no New Directions estar ameaçada.

Criada por um casal de gays, Rachel tem como sonho participar de musicais da

Broadway, e se auto-referencia como uma estrela, “as estrelas são o meu tipo de

coisa [...] é uma metáfora, e as metáforas são importantes. Minhas estrelas

douradas são uma metáfora para eu ser uma estrela", descreve a mesma no

60

episódio piloto da série, no dia 19 de maio de 2009. Por ser desta maneira, Rachel

não possui muitos amigos no McKingley High, dividindo alguns dos seus poucos

momentos com Kurt Hummel e Mercedes Jones, além do seu par romântico, o

capitão do time de futebol americano Finn Hudson. Além disso, Rachel Berry possui,

pelo menos, um solo, um destaque musical, em cada episódio da série, o que a

torna realmente a líder do Glee Club.

Sendo uma versão de Rachel masculina, porém com roupas de grifes e

homossexual, Kurt Elizabeth Hummel, interpretado por Chris Colfer, é o único gay

assumido da escola onde a narrativa se desdobra. Órfão de mãe e com uma

delicada maneira de agir e se portar, Hummel é uma das mais fortes vozes do coral

e é alvo de bullying e preconceitos durante toda a série, principalmente por Dave

Karofsky, sendo até ameaçado de morte pelo próprio. Após descobrir o porquê da

extrema violência por parte de Karofsky, que tem dúvidas em cerca a sua

sexualidade também, Kurt se transfere de colégio, conhece Blaine Anderson e os

dois protagonizam o segundo beijo gay da série, sendo o primeiro entre a vítima e o

agressor de bullying, citado acima. Kurt é doce, sincero, luta bravamente por seus

ideais, sendo apenas impedido por conta do preconceito dos demais, enfrentado

com ajuda de seu pai Burt que reconhece a homossexualidade no filho e o aceita. O

sonho de Kurt é cantar na Broadway, como a amiga Rachel Berry.

No New Directions, tendo em vista toda a narrativa, os personagens Rachel Berry e

Kurt Hummel cantaram grande parte das canções de musicais da Broadway, como

de “My Fair Lady”, “Fame”, “Funny Girl” e “Cabaret”, além dos clássicos nas vozes

de Liza Minelli, Celine Dion e Barbra Streisand. Nota-se a semelhança quanto à

seleção de músicas para ambos os personagens, que destoam quanto à qualidade

nas performances do restante dos integrantes do Glee Club, sendo as duas vozes

que realmente se assemelham a estes exemplos tanto pelo estilo que cantam

quanto pela sua construção de personagem, notando-se uma filiação mais

específica entre as suas qualidades, linearmente descritas pela própria narrativa,

com a presença de referências externas ao texto, da cultura, da música,

caracterizando uma atividade hipertextual no centro criativo do seriado.

Nota-se, então, não apenas uma construção da narrativa com toques musicais, ou

seja, havendo suspensão da história para assim entrar o conteúdo musical, mas sim

em uma construção que seleciona tanto o discurso quanto a referência anterior e

61

posterior, como expõe Barthes, elementos “unidos por múltiplos trajetos, correntes

ou percursos dentro de uma textualidade aberta, eternamente inacabada” (1992, p.

81). Dessa forma, Glee não se prende apenas ao meio textual, somente à letra da

música escolhida para entrar naquele contexto, mas sim a todo emaranhado de

informações que esta pode trazer, como a personalidade do cantor original,

momento histórico inter correlacionado, ou seja, trazendo o perfil icônico da canção

escolhida, equiparando-se aos personagens da trama. O que leva-se a concluir que

a incorporação de canções em musicais nada mais é que um processo de diálogo,

de intertextualidade, entre a referência e a representação, salvas ocasiões onde

utilizam-se de músicas originais, próprias para compor a obra.

Melhor exemplo para a hipertextualidade em Glee, que permeia todos os meios de

significação possíveis da série, é a personagem vivida por Heather Morris, Brittany

Susan Pierce. Os telespectadores apenas conheceram a história da ex líder de

torcida Brittany no começo da segunda temporada, ao ar em 2010, pois inicialmente

a atriz não participava do elenco regular da série, sendo adicionada posteriormente.

Ótima dançarina e destaque no colégio, ao ingressar no coral, faz amizade com os

losers por não ser muito inteligente e descobrir, lidando de uma maneira até

ingênua, a sua bissexualidade. Inicialmente, entrou para o Clube do Coral com o

objetivo de espioná-los para a vilã Sue Sylvester, capitã das líderes, porém desiste e

começa um relacionamento com o nerd paraplégico Artie Abrams (Kevin McHale),

mesmo amando a também animadora de torcida, Santana Lopez (Naya Rivera). Sua

primeira música foi executada apenas no 24º episódio do seriado, durante a

segunda temporada.

Uma personagem bem elaborada e que poderia ser uma das mais pesadas da série,

em termos de drama, mas é apresentada de forma cômica e leve, que, de início, era

despretensiosa quanto aos seus rumos na narrativa. Brittany apenas começou a ser

melhor trabalhada na segunda temporada, quando os criadores adicionaram seu

sobrenome à trama, já que sua presença não era regular na série, exatamente no

segundo episódio, chamando-a de S. Pierce. Da união, forma-se a referência direta

ao sobrenome da cantora pop contemporânea, Britney Spears, inspiração para a

personalidade e qualidades da personagem.

Além disso, grande parte das conhecidas frases na mídia norte-americana, que

chegam através de vídeos no Youtube a abranger todo o mundo nos dias de hoje,

62

como bordões „It’s Britney, Bitch‟ (É a Britney, vadia), „Is this real life?‟ (Essa é a

realidade?) são feitas em relação a personagem, fazendo “O New York Daily News

até a chamou de „arma secreta de Glee‟” (BALSER & GARDNER, 2011, p. 61). O

sucesso da personagem e de toda a sua construção hipertextual pode ser

comprovada pela audiência do episódio „Britney/Brittany‟, ao ar no dia 28 de

setembro de 2010, com 13.51 milhões de telespectadores na América (dados

extraídos do Wikipedia), com participação especial da própria artista pop e

influência, Britney Spears.

Nota-se assim o poder hipertextual, dialógico da construção dos personagens em

Glee, que permeiam todos os níveis de significação possíveis da série, tanto no

campo textual - da união da letra da música e a narrativa; no campo das qualidades

- como o perfil icônico que a canção representa e também das referências internas

do seu conteúdo; e no campo externo – das inferências que o externo faz na série.

Este cenário da produção de sentido, da semiose em Glee, já se pode destacar

assim a tríade estabelecida por Peirce, primeiridade, secundidade e terceiridade.

Assim, neste processo de construção de sentido, ou seja, para melhor qualificar os

personagens de Glee, dando aspectos mais reais, que possam ser melhor

absorvidos pelos espectadores devida a proximidade icônica e estereotipada, novas

construções interagem ou dialogam com as anteriores, impregnadas no contexto

sócio-histórico-ideológico, as quais constituem um acervo dos sistemas de

referências, o que correspondem ao universo cognitivo e aos modelos mentais,

necessários para dar sentido ao mundo. Ainda cabe-se salientar que esta ação

interpretativa não depende apenas de um saber prévio destes recursos disponíveis,

mas de operações de construção de seus novos sentidos no processo comunicativo,

o que em outras palavras seria readequar aquele conteúdo significativo e orientá-lo

de uma determinada maneira que resulte na interpretação total, e não apenas na

noção de uma possível hipertextualidade ou dialogismo.

63

3.5 O signo Mercedes Jones, a quase-líder

Como demonstrados anteriormente, com explicação teórica, o conteúdo

hipermidiático/dialógico, ou os seus potenciais, em Glee, fazem uma reconstrução

no que centra as qualidades em referências externas à narrativa. A presença da

música, do texto, do visual, das referências internas e externas, da criação e

incorporação de informação e das inferências de outras mídias, como a internet, faz

com que a série seja rica quando se fala de uma obra aberta a interpretações, tendo

em vista esse caráter pluralista no próprio desenvolvimento da história e do roteiro

adaptado à televisão, criando uma margem de expectativas, tanto de consumo,

como de reações, medidas através dos rankings de audiência, de compra etc.

Com essa assertiva, pode-se afirmar que Glee, através de seu caráter dialógico,

necessário na construção desta narrativa hipermidiática, transforma ícones ou

referências da cultura pop mundial em signos igualmente qualitativos dentro da

própria história. Este trabalho de significação apenas é possível pelo hábito criado

pelos roteiristas e escritores do seriado nos telespectadores, ou seja, pelos preceitos

semióticos, apenas se dá todo significado à série através do costume interpretativo

que os leitores possuem dela, da forma com que os autores disponibilizam os signos

e sua contínua retomada, para melhor absorção, percepção e cognição.

“A natureza de um signo é como a da memória, que recebe as transmissões da

memória passada e transfere parte dela para a memória futura” (NÖTH, 2003, p.

140). Exemplo disso serão as cenas consideradas a seguir, com enfoque na

construção da personagem Mercedes Jones, vivida por Amber Riley, onde a teoria

exposta da constituição do signo de Peirce, da ciência cognitiva e dos conceitos de

Eco sobre a semiótica interpretativa será utilizada como instrumentos de análise,

derivando na ratificação deste potencial hipertextual da série de Ryan Murphy.

Mercedes Jones, na série Glee, é uma personagem negra, gorda, que sonha em ser

famosa pelo seu talento musical, sendo assim a típica garota sonhadora em busca

de se tornar uma diva (concepção de grande ícone da música e da cultura pop), se

portando como uma e exigindo o mesmo tipo de reconhecimento. Com um potente

vocal, Mercedes sempre foi deixada de lado nas escolhas para solos no New

64

Directions, sendo Rachel Berry a escolha preferida do diretor Will Schuester. O fato

sempre a revolta, por ela ser, como auto refere-se no episódio Piloto da série, “uma

Beyoncè, e não uma Kelly Rowland”, fazendo referência assim ao grupo de R&B,

vendedor de mais de 60 milhões de cópias de discos, Destiny‟s Child, fundado em

1997, com última formação composta por Beyoncé Knowles, Kelly Rowland e

Michelle Williams (dados extraídos do Wikipedia).

A rebeldia de Mercedes, a hostilidade com a qual ela impõe seu talento, vem pela

falta de oportunidade dada a ela de liderar o clube do coral, já que a amiga Rachel

sempre consegue o posto de comando, assemelhando-se a situação com o

destaque que Beyoncé sempre possuiu diante às outras integrantes. Assim, a

personagem interpretada por Amber Riley nunca quis estar como back vocal e,

deste modo, para impor respeito, faz uso de sua arma principal: seu talento evidente

para a música. É assim que Mercedes começa a série, na estréia dia 19 de maio de

2009, cantando a música “Respect” (Respeito, em inglês), originalmente produzida

por Otis Redding, em 1965, mas mais conhecida na cantora de Soul/R&B, Aretha

Franklin, em 1967.

Nota-se, assim, os seus primeiros traços que, já no primeiro episódio, faz uso da

expressão musical para interferir na narrativa, e a forma com que o autor deixa-a

pronta para que essa inserção de conteúdo seja compreensível, mesmo de maneira

indireta, com o trabalho de entrelaçamento de discursos da personagem. Mercedes,

desde o início, mostrou que gostaria de ter destaque em um grupo, que fosse

valorizado o seu talento, o que não acontece, pois é colocada em segundo plano,

atrás da sua amiga e concorrente Rachel Berry. Justifica-se, então, a escolha desta

personagem para análise neste estudo, já que seus discursos, musical e verbal,

estão em consonância desde a estréia da série, sendo assim, construída

previamente e desenvolvida, de acordo com os preceitos semióticos que se

pretendem explicitar na obra em questão.

Mercedes assim é um estereótipo da negra, gorda, com talento, porém sem

valorização. Para melhor exposição deste conceito da união do sonoro com o

textual, notório em obras do estilo musical, extrai-se uma das cenas do 13º episódio

da primeira temporada de Glee, „Sectionals‟. Neste episódio, os integrantes do coral

devem escolher, em reunião, a lista de canções que eles apresentarão na

competição das seccionais, onde Rachel toma a frente (Figura 01) e resolve fazer

65

um solo. Mercedes a interrompe e a questiona (Figura 2), novamente utilizando o

argumento que o seu talento é tão bom quanto da amiga, cantando “And I Am

Telling You I'm Not Going”, do musical da Broadway, Dreamgirls, de 1981.

(Figura 1: Rachel toma a frente) (Figura 2: Mercedes questiona Rachel)

Primeiramente, deve-se destacar a edição e montagem realizada para

contextualização e melhor mobilidade da matéria significativa, orientando-a de

acordo com o enfoque que lhe é necessário. Claro exemplo é dessa orientação do

discurso, levando-se em consideração que o teor original da música não aborda a

determinação de se alcançar o objetivo, nem a promessa de que todos irão gostar

do desempenho de Mercedes, como pode ser visto, com as ilustrações recorrentes à

cena (o mesmo trecho encontra-se na íntegra no CD, em anexo):

(Figuras 3 e 4: Mercedes canta And I Am Telling You I’m Not Going)

66

“And I am telling you

I’m not going

You're the best man I'll ever know

There's no way I can ever go

No, no, there's no way

No, no, no, no way I'm living without you

I’m not living without you

I don’t wanna be free

I’m staying

I’m staying

And you, and you... You're gonna love me

Tear down the mountains

Yell, scream, and shout like you can say what you want

I’m not walking out

Stop all the rivers, push, strike, and kill

I’m not gonna leave you

There's no way I will

And I am telling you

I’m not going

Oh, Im not living without you, not living without you

I dont wanna be free

Im staying, Im staying

And you, and you, and you

You're gonna love me

67

Love me... Love me... Love me”10

(Figura 5: Integrantes do coral aplaudem Mercedes pela apresentação)

A música „And I’m Telling You I’m Not Going‟ é original do musical Dreamgirls, onde

em seu contexto, é cantada pela personagem Effie White, cantora iniciante de R&B,

de um trio de garotas ficctício, The Dreams, ao seu agenciador e par romântico

Curtis Taylor Jr., devido ao fim do relacionamento profissional e sentimental entre

ambos. “A letra de „And I Am Telling You I'm Not Going‟, muitas vezes considerada a

música do show, descreve o amor de Effie por Curtis, ambos fortemente dedicados e

desafiadores. Ela se recusa que Curtis a deixe para trás, e ousadamente proclama-

lhe: „Eu vou ficar... E você vai me amar‟” (dados extraídos do Wikipedia). Esta

música foi originalmente interpretada por Jennifer Holliday, em 1981, sendo

regravada na adaptação do musical para o cinema com Jennifer Hudson, em 2006,

ganhadora do Oscar pelo papel, e sua versão tornou-se a música número 73 das

mais compradas no ano de 2007, de acordo com a Billboard americana. (Dados

extraídos do Wikipedia).

10

Tradução nossa, a partir de texto original em inglês: “E eu estou dizendo a você.../ Que não vou!/ Você é o

melhor homem/ que eu já conheci.../ Não há como eu ir embora.../ Não, não há como! Não, não, não há/ como

viver sem você!/ Eu não vou viver /sem você! / Eu não quero ser livre! / Eu vou ficar! /Eu vou ficar!! / E você, e

você... Você vai me amar! / Derrube as montanhas! / Grite, grite à vontade/ Você pode dizer/o que quiser/Eu

não vou embora! /Pare todos os rios/Empurre, derrube e mate! /Eu não te deixarei... /De modo algum/farei

isso... /E eu estou... /dizendo a você... /que não vou embora! /Não há como/viver sem você! /Eu não vou viver

sem você! /Eu não quero ser livre! /Eu vou ficar... eu vou ficar!! /E você... E você... E você... / Vocês vão me

amar! / Me ame... /Me ame!! / Me... Amem!”

68

Fora de seu contexto original, a música em si parece uma declaração de amor, onde

o eu-lírico faz promessas de conseguir mostrar o seu amor, e que deseja estar preso

àquele relacionamento. Sem um enfoque tão romântico, a série Glee, através de sua

personagem Mercedes, retoma a canção e, em um processo de re-significação,

acrescenta novo sentido para a música: a de batalhar por um sonho. Esta orientação

para determinada interpretação é o que Peirce, em sua teoria semiótica, chamou de

hábito, uso, costume, “uma tendência certa de comporta-se de maneira similar sob

circunstâncias similares no futuro” (PEIRCE, CP, 5.487). Assim, através desta

habilidade do autor em direcionar o material significante para sua melhor

compreensão para o contexto, o leitor começa a habituar-se a processos de

formação de sentido parecidos.

No caso, a orientação dada foi em relação da junção do texto musical com o texto

narrativo, proporcionando um discurso mais firme e emotivo, objetivo central de uma

obra como esta. Além disso, pode-se notar a edição que infere também sobre este

aspecto, dando atenção para cenas em que a palavra you (você, em inglês), no

começo da expressão „you gonna love me‟ (você vai me amar) era destacada

através da gesticulação da cantora e dos closes – plano cinematográfico que

designa a filmagem apenas de um ponto específico (Figuras 06 e 07), no caso, os

rosto - dos outros integrantes do coral, fazendo compreender que a música não se

refere a algo interno à personagem, mas sim externo, e que depende da aprovação

e aceitação dos outros.

(Figuras 06 e 07: Mercedes, ao cantar, aponta para os outros integrantes, envolvendo-os com a

gesticulação e a letra da música)

69

Aplaudida de pé, Mercedes não obteve a mesma sorte que Effie White. Em

Dreamgirls, a personagem, vivida na adaptação para o cinema por Jennifer Hudson,

buscava o mesmo reconhecimento por seu talento, mesmo estando na posição de

líder no trio formado por Deena Jones e Lorrell Robinson. Ao se destacarem no

cenário da música em 1962, ficticiamente, o grupo The Dreams começou a ser

agenciado por Curtis Taylor Jr., inicialmente era o envolvimento romântico de Effie,

que começa a se relacionar com a outra integrante do grupo, Deena Jones, vivida

por Beyoncé no cinema.

Effie perde, assim, seu destaque no grupo, mesmo sendo evidente para todos o seu

potencial maior para a música, alegado pelo próprio amado a falta de uma roupagem

mais nova e bonita à frente das The Dreams. Posta em segundo plano, em todos os

sentidos, Effie é expulsa do grupo, indo criar sua filha, fruto da relação entre ela e o

ex-agenciador, Taylor Jr., enquanto ela é substituída do grupo, sendo a partir de

então nomeado „Deena Jones and the Dreams‟. Da mesma forma, Mercedes é

impedida de tomar a frente do Glee club, sendo sempre escolhida a amiga e

também concorrente, Rachel, mesmo havendo um equilíbrio de talento, como

exposto na própria série.

Desta maneira, através da música „And I Am Telling You I'm Not Going‟, o autor

propõe, pela natureza deste musical também, um dialogismo entre a peça da

Broadway com a personagem Mercedes de Glee, inferindo-a significado semelhante

àquele reconhecido em Effie White, transformando-a assim em um ícone,

remetendo-se à busca pela liderança e ao reconhecimento de um talento. Desta

maneira, Ryan Murphy já utiliza de um signo, Effie, para construir sua personagem,

Mercedes, o que apenas será perceptível ao leitor que estiver além de habituado

com estes tipos de construção, mas também atualizado quanto ao signo de

referência, ou seja, que seu conhecimento de mundo alcance o horizonte de

expectativas que o autor possui da obra, em termos da semiótica de Eco.

Portanto, a série Glee utiliza-se de referências da cultura pop, do cinema, da música

em geral, para construir a narrativa, as ligações, as representações que lhe são

necessárias, configurando-se assim um efeito hipermidiático, como expõe Santaella:

“(...) (A hipermídia) não se limita à informação escrita, mas permite acrescentar aos

textos não apenas os mais diversos grafismos, mas também todas as espécies de

70

elementos audiovisuais. Assim, o termo hiper se reporta à estrutura complexa

alienar da informação“ (SANTAELLA, 2009, p. 24).

Antes do início da sua apresentação em „Secctionals‟, no 13º episódio da primeira

temporada, em 2009, Mercedes diz: “You know you always end up stealing the

spotlight!” (Você sabe que você sempre termina roubando o holofote, em inglês),

referindo-se à veroz necessidade de Rachel em chamar as atenções para si. Depois

de 33 episódios, ou seja, no segundo programa da terceira temporada, em 2011, a

mesma briga pelo destaque musical entre as duas faz Mercedes retomar

exatamente o seu discurso em „Secctionals‟.

Após duas temporadas, Glee manteve em sua estrutura e enredo as características

fundamentais de seus personagens, acrescentando a cada episódio alguma

informação referente àquele trabalhado. Durante quase duas temporadas, Mercedes

não conseguiu ainda seu papel de destaque, sendo até posta de lado na própria

narrativa, ganhando algumas apresentações, mas ainda como back vocal. Se tornar

a líder do New Directions não foi uma realidade alcançada por Mercedes, que então

se revoltou com a atitude de todos em preservarem Rachel na posição de principal,

tanto no coral quanto nos projetos de música paralelos na escola McKingley.

No terceiro episódio da terceira temporada de Glee, chamado „Asian F‟, Mercedes

se revolta contra a costumeira posição que Rachel ocupa como líder do coral, além

de se tornar oficialmente sua rival, questionando os valores que o professor Will

Schuester propaga e ainda sendo agressiva com os demais integrantes. O curioso

aqui é o fato de dois pontos deste destaque que Mercedes tem, tanto na primeira

quanto na terceira temporada, são referidos à palavra „spotlight‟ ou à expressão

americana „to steal the spotlight‟, que em português seria „roubar o holofote‟, „roubar

a cena‟, „desviar as atenções‟, conotativamente. Para, então, análise, segue a cena

do episódio número 47 do seriado, com Mercedes Jones cantando „Spotlight‟, e

respectiva letra da música (trecho também se encontra no CD, em anexo):

“Are you a man who loves and cherishes and cares for me?

Is that true? Is that true? Is that true?

Are you a guard in a prison maximum security?

71

Is that true? Is that true? Is that true?

Do we stay home all the time ‘cuz you want me to yourself?

Is that true? Is that true? Is that true?

Or am I locked away had a feeling that i'd find someone else

Is that true? Is that true? Is that true?

Well, I don't like living under your spotlight

Maybe if you treat me right

You won't have to worry

Oh, you oughta be ashamed of yourself

What the hell do you think you're doing?

Loving me, loving me… So wrong

Baby, all I do is try (Try)

To show you that you're mine (Mine)

One and only guy (Only guy)

No matter who may come along

Open your eyes ‘cuz baby, I don't lie

Well, I don't like living under your spotlight

Just because you think I might

Find somebody worthy

Well, I don't like living under your spotlight

Baby, if you treat me right

You won't have to worry

72

‘Cuz I don’t like”11

Assim, para então análise semiótica de Peirce toma-se como signo a Mercedes

Jones, na cena acima, cantando „Spotlight‟, para assim finalizar o trabalho proposto

e concluir com todos os conceitos elencados anteriormente. Com base na

fenomenologia descrita por Peirce, a absorção de significado, a interpretação, se dá

em três níveis do: a primeiridade, a secundidade e a terceiridade. Na cena, a

primeiridade seria o sentimento imediato, da primeira impressão, ou seja, seria a

percepção inicial de que a personagem Mercedes está cantando uma música que

fala sobre um relacionamento entre duas pessoas, conseguindo alcançar mais a

vertente emocional do intérprete, em outras palavras, sem a reflexão, posterior ao

sentimento. Isto é dito tendo como fundamento a mesma aplicação desta tríade na

no reconhecimento feito pela mente de uma nova informação, que reconhece três

estágios para a tal: do sentimento, da comparação interna (volição) e da cognição,

da experiência adquirida externamente, do hábito.

Assim, no que se refere à secundidade na cena proposta de Glee, seria da troca de

informação entre a cena em questão e toda a realidade interna da obra, o que

denota uma reflexão quanto ao assunto da série abordado para tal representação.

Em suma, com o reconhecimento da história que envolve Mercedes Jones e a

aplicação do seu discurso, seja musical ou meramente textual, cantando „Spotlight‟,

o leitor faz as conexões entre o que está sendo pronunciado pela personagem na

canção com a história de Mercedes, sempre à deriva, cedendo seu „holofote‟ para

outra pessoa, cansando-se desta situação.

11 Tradução nossa, a partir de texto original em inglês: “Você é um homem ama, / alimenta e cuida de mim? /

Isso é verdade, isso é verdade, isso é verdade? / Você é uma guarda na prisão/de segurança máxima? Isso é

verdade, isso é verdade, isso é verdade? / Ficamos em casa o tempo todo/porque me quer pra você? / Isso é

verdade, isso é verdade, isso é verdade? / Ou estou trancada porque posso/ ter vontade de encontrar outra

pessoa? / Isso é verdade? Isso é verdade? Isso é verdade? / Pois bem, eu não gosto/de viver sob seu holofote/

Talvez se me tratar bem... / Você não terá que se preocupar! / Não! Garoto, deveria se envergonhar de você/

Que diabos acha que está fazendo? / Me amando... / Me amando... / tão errado! / Querido, tudo o que faço / é

tentar... Para mostrar que você/é meu! Único homem... / Não importa/quem possa aparecer./ Abra seus olhos,

/ porque, querido, eu não gosto! / Porque eu não gosto/ De viver sob seu holofote! / Não, não! / Só porque

acha que eu possa/encontrar alguém que valha a pena/ Não, não... /Eu não gosto! / De viver sob seu holofote/

Talvez se me tratar bem... /Me tratar bem... / Você nunca precise se preocupar/ Eu não gosto!”

73

Assim, quando ela expressa “Are you a man who loves and cherishes and cares for

me?”, o leitor, em primeiridade, apenas capturará o conceito, a letra da música em

primeiro plano, o sentimento que ela passa, linearmente. Porém, em secundidade, o

intérprete conecta a história em volta de Mercedes e o que ela está cantando,

unindo assim, também, a segunda matriz do pensamento, como referido em

Santaella (2009), a visual. Os jogos de câmera, apontando que o discurso da

personagem é direcionado a um determinado integrante do Glee Club, como a

seguir:

“Are you a man who loves and cherishes and cares for me?

Is that true? Is that true? Is that true?

Are you a guard in a prison maximum security?

Is that true? Is that true? Is that true?

(Figura 08) (Figura 09)

(Figura 10)

74

Do we stay home all the time ‘cuz you want me to yourself?

Is that true? Is that true? Is that true?

Or am I locked away had a feeling that i'd find someone else

Is that true? Is that true? Is that true?”

Foco dado pela câmera com closes e zoom (aproximação) no Professor Will

Schuester (Figura 08), sua relação próxima com Rachel Berry (Figura 09) e algumas

vezes filmando as reações de Mercedes (Figura 10).

(Figura 11) (Figura 12)

“Well, I don't like living under your spotlight

Maybe if you treat me right

You won't have to worry”

Neste trecho, nota-se o movimento das câmeras em torno de Rachel (Figura 11) e

Mercedes que canta diretamente para a colega de coral (Figura 12).

75

(Figura 13)

“Oh, you oughta be ashamed of yourself

What the hell do you think you're doing?

Loving me, loving me… So wrong

Baby, all I do is try (Try)

To show you that you're mine (Mine)

One and only guy (Only guy)

No matter who may come along

Open your eyes ‘cuz baby, I don't lie”

Muda-se o ambiente da sala do coral para o palco de audição (Figura 13) das

seletivas para o musical do colégio, onde Mercedes se apresenta, gesticula

firmemente, impondo o reconhecimento que não lhe foi dado, apenas almejando

tentar até conseguir seu objetivo. Nesta cena, algumas partes da música mostram a

presença de seu namorado Marcus, que a impulsionou a assumir a liderança, sendo

mais competitiva.

76

(Figura 14) (Figura 15)

(Figura 16)

“Well, I don't like living under your spotlight

Just because you think I might

Find somebody worthy

Well, I don't like living under your spotlight

Baby, if you treat me right

You won't have to worry

‘Cuz I don’t like”

Nesta sequência final, Rachel surge nos bastidores (Figura 14), de braços cruzados,

com ar preocupado, assistindo a apresentação da concorrente (Figura 15). Um

jurado vibra com a apresentação de Mercedes, enquanto a mesma continua sendo

assistida pela rival, que parece se assustar com a força apresentada por Jones e se

77

sentir, assim, ameaçada na posição de principal no musical da escola. No final,

Mercedes é muito aplaudida (Figura 16).

Desta maneira, seguindo este simples roteiro, nota-se o caminho em que um

intérprete faz quando se fala do nível da secundidade, que sugere a reflexão interna

dos componentes da narrativa, do enlace dos personagens e suas referidas

histórias. Já a terceiridade, como em Peirce, refere-se ao processo final

interpretante, onde o leitor retoma conteúdos, signos, conhecimentos anteriormente

adquiridos, para melhor absorção da informação. Este processo em Glee foi

especificado anteriormente quando foi apresentada a cena em que Mercedes canta

a música da Broadway, referindo-se assim à hipertextualidade do seriado. Uma obra

hipermidiática, como é a produção de Ryan Murphy, sugere efeitos de terceiridade,

já que neste nível estão as correlações inter e hipertextuais, ou seja, do

conhecimento, das ligações, do hábito, do externo.

„Spotlight‟ foi lançada em 10 de junho de 2008, na voz de Jennifer Hudson, a mesma

atriz que fez a adaptação para o cinema de Dreamgirls. A canção alcançou o

primeiro lugar em vendas na categoria R&B do ano de 2008 na Billboard, além de

conseguir o 24º lugar de vendas nos Estados Unidos da América, sendo indicada

duas vezes ao Grammy, um dos maiores prêmios de música no mundo (Dados

extraídos do Wikipedia). A mesma cantora que representou o papel de Effie White,

referência feita no 13º episódio da primeira temporada, serve de diálogo novamente,

mas desta vez a construção exige tanto conhecimento de mundo, que abranja essa

informação sobre a atriz/cantora, quanto um prévio sobre a série, que possa

compreender os signos já absorvidos e atualizá-los, ou retomar aqueles ainda não

sorvidos por falta de material interpretativo e decodificá-los, então.

Deste modo, chega-se ao ponto em que se é feita necessária a descrição dos

componentes de um signo, na visão de Peirce, para melhor averiguação do

comportamento do signo „Mercedes canta Spotlight‟, e seu assim processo de

formação de significado em um intérprete. Primeiramente, pela descrição peirceana,

o signo era composto por um representamen, dois objetos e três interpretantes. O

representamen é a própria representação, o reconhecimento à primeira vista,

relativo ao físico, o que denota na cena de Glee, a própria personagem Mercedes

cantando a música „Spotlight‟, sendo assim, é a parte material do signo em análise.

78

O objeto imediato, para Peirce, é “objeto dentro do signo”, onde dentro de Glee

corresponde à própria estrutura do enredo, da narrativa, à própria Mercedes

cantando, em sua relação interna com a história. Já objeto dinâmico, é a realidade

que realiza a atribuição do signo à sua representação, “o que pela natureza das

coisas, o signo não pode exprimir e só pode indicar, deixando para o intérprete

descobri-lo por experiência colateral” (PEIRCE, CP, 8.314), o que na prática designa

a correlação que há entre a personagem em análise com a do musical Dreamgirls,

Effie White, ou seja, a música atribuída, „Spotlight‟ faz essa conexão, já que por ela

há o reconhecimento desta proximidade, desta potencialidade de inter-relação dos

textos. Se outra música fosse cantada por Mercedes, que não tivesse conexão

alguma com Jennifer Hudson, Dreamgirls, ou que isso não fosse sugerido

previamente no decorrer das temporadas, a mesma carga significativa não seria

compreendida, devido à ausência deste „conector‟ de realidades.

Posteriormente, na desconstrução do signo por Peirce, tem-se os três tipos de

interpretantes, tendo apenas um categorização interna subseqüente. O interpretante

imediato, nesta concepção de semiótica, é o produto do intérprete em contato

primário, instantâneo com o signo, neste caso, contato com o objeto imediato, que

resultará em uma interpretação no nível textual, do discurso primário, da

compreensão da união do que Mercedes e seu namorado conversavam antes do

início da música, até nas suas falas ao final. Este nível da interpretação é o imediato,

aquele que corresponde às primeiras impressões daquela leitura.

Em seguida, têm-se três categorias do interpretante dinâmico. O interpretante

dinâmico emocional é o produto no intérprete de apenas qualidade sentimentais,

designando na mente do leitor resultados com enfoque na emoção, como quando ao

ver Mercedes cantar, de alguma maneira, seja através do seu potencial vocal, seja

através da música que remete a algum sentimento, seja pela própria vontade

evidente da personagem em querer ser líder, uma pessoa se emocione, chore, vibre,

se anime com a sua apresentação. Este interpretante ao nível da emoção produz

assim sentimentos, comoção em quem assiste Mercedes cantando.

Já o interpretante energético é aquele produz no leitor o anseio, a curiosidade, o

incentivo a alguma ação. Na cena de Glee em análise, o interpretante dinâmico

energético produziria no intérprete assim o incitamento a alguma ação referente à

cena, como procurar a letra da música „Spotlight‟ na internet, conhecer melhor a

79

cantora original, partilhar daquela cena com os usuários de redes sociais, ou como

apenas colocar a música novamente e querer cantar junto. Deste modo, o

interpretante energético incita na pessoa uma ação referente aos seus objetos, ou

apenas estimula uma curiosidade em relação a algum ponto não bem

compreendido, ou algum signo não bem decodificado.

Por último, o interpretante dinâmico lógico da série são as considerações em seu

teor racional, que induz conclusões em relação a pressuposições, argumentos e

conclusões. Assim, Mercedes está incomodada, então canta uma música onde

mostra mais seu descontentamento em dividir os „holofotes‟ com outra pessoa, logo

ela está enfurecida, se colocando como rival de Rachel Berry. Através das

suposições, pode-se chegar a uma conclusão lógica, racional, extraindo-se a sua

argumentação inicial.

Por fim, tem-se o último interpretante, o final. Como define Santaella (2009): “é o

efeito que o signo produziria em qualquer mente, se a semiose fosse levada

suficiente longe” (2009, p. 49), ou seja, é o produto final interpretativo da união de

todos os interpretantes, tanto imediatos como mediatos, aplicando em Glee, seria a

idéia final de que Mercedes cantou „Spotlight‟ para expressar seu ressentimento

diante a situação. Porém, neste último nível, é que ocorre a união das referências e

inferências de outros signos, como a união do signo „Mercedes cantando „And I’m

Telling You I’m Not Going‟, que refere-se diretamente à personagem Effie White,

com o signo „Música Spotlight, originalmente cantada por Jennifer Hudson, atriz que

viveu Effie White no cinema‟, e demais alusões externas ao signo, ou seja, fora do

signo „Mercedes cantando em Glee‟ e sua construção narrativa.

Deste ponto, destaca-se o potencial do interpretante final em face do seu intérprete,

ou como melhor, este último componente do signo de Peirce em relação ao

conhecimento de mundo que o leitor possui, ou das suas diversas e limitadas

possibilidades de interpretação, tendo em vista os preceitos de Santaella (2009), já

expostos anteriormente: “cada um de nós, intérpretes particulares, apenas capazes

de produzir interpretantes dinâmicos singulares, falíveis e provisórios, não estamos

nunca em condições de dizer que um interpretante já tenha esgotado todas as

possibilidades interpretativas de um signo, constituindo-se no seu interpretante final”

(2009, p. 49).

80

Enfim, nota-se o processo da semiose ilimitada descrita por Peirce, mas melhor

desenvolvida por Umberto Eco com auxílio da ciência cognitiva, onde a interpretação

final de um texto apenas será realmente total ao ser atualizado, através do hábito

incitado pelo autor em decodificar signos da mesma maneira; ou de uma nova

referência lhe dada, fazendo com que sejam adicionados outros sentidos; ou da

retomada de determinados signos não bem explorados, havendo assim criação de

um novo significado ou evoluindo-se o anterior.

É o que ocorre em Glee. O Leitor Modelo, explicitado por Eco, que é nada mais que

um horizonte de expectativas interpretativas do autor em relação ao leitor, possui,

pelo seu caráter hipermidiático, diversos signos que o compõe, derivando em uma

narrativa cheia de referências. Assim, o leitor modelo na série poderia ser aquele

com visão de que a música „Spotlight‟ faz referência à atriz Jennifer Hudson, que por

sua vez remete à personagem do musical Effie White, comparação qualitativa

realizada pela própria Mercedes, no enredo. Desta maneira, traça-se a possível

expectativa do autor Ryan Murphy em armar uma rede de informação complexa que

una signos, que contenham outros, que por sua vez se conectam em mais outros e

assim por diante, caracterizando nada mais que uma função hipertextual, e, por

assim dizer, hipermidiática.

Aqui, destaca-se um ponto referente à escolha das músicas para a série. Na cena

em análise, os produtores, roteiristas e autores poderiam inserir outras canções, com

a mesma temática, até mais explícita do que a usada, porém a seleção da música

não deveria ser casual, como expõe:

Nós vamos conhecer a história e a cena primeiro e normalmente sabemos: „Ah, a música que precisa entrar aqui é tal‟, explica Brad. Ryan concorda: primeiro vem a história, e as músicas vêm em segundo lugar (BALSER & GARDNER, 2011, p. 29).

Outra canção qualquer falaria melhor de resigno e busca pela atenção, porém foram

escolhidas exatamente da mesma cantora, que está marcada na cultura do cinema e

dos musicais com as qualidades da referida Mercedes, levando-se em consideração

que durante toda a seqüência de episódios, Jones não obteve um solo em que

cantasse como líder, mas sempre como alguém que quer conquistar esta posição.

81

Deste modo, e com as teorias da semiótica interpretativa de Eco, nota-se que a

intencionalidade neste caso é mais importante que a causalidade, do fato, da

coincidência pelo acaso. O conceito do leitor modelo da semiótica pressupõe

intenção comunicativa, como desenvolvido por Eco, seqüencialmente: da intenção

do autor; da intenção textual e de suas estruturas e correlações internas e; intenção

do leitor, onde o destinatário faz as referências do texto com o seu conteúdo

externo, tendo em vista suas crenças, cultura, necessidade. Assim, o leitor tem o

papel de preencher os espaços em brancos intencionais, as lacunas significativas

dos textos, descritas também pelo autor italiano, com o conhecimento de mundo que

este possui.

É intencional a presença do signo Jennifer Hudson, através do signo „Mercedes

cantando Spotlight‟, devido à necessidade em ativar o signo previamente absorvido

pela cognição e transformado em modelo mental, como designa a ciência cognitiva.

O modelo mental que faz inferência e é acessado pela memória para atualizar o

signo em questão é, por exemplo, a apresentação anterior, na primeira temporada,

de “And I’m Telling You I’m Not Going”; as falas da própria Mercedes quando auto

refere-se como uma Beyoncé e não uma Kelly Rowland. Estes modelos mentais já

absorvidos e compreendidos pela mente são acessados quando o intérprete depara-

se com o novo signo, quando o mesmo possuir capacidade em potencial, ou seja,

ter conhecimento para poder unir todas as informações, que de maneira econômica,

são deixadas por entre a narrativa.

Para concluir, retoma-se então do fundamento de Eco, que reflete em toda esta

aplicação prática sobre a série Glee, ou em qualquer outra obra. “Il testo è un

meccanismo pigro (economico) che vive sul plusvalore di senso introdottovi dal

destinatario, [...]. Un testo vuole che qualcuno lo aiuti a funzionare”12 (ECO, 1979, p.

52). Por fim, é necessário destacar esse caráter ativo que o leitor possui sobre o

texto, atualizando os signos nele presentes ou retomando esquemas mentais já

absorvidos, para assim reconhecer um nível de interpretação acima do imediato,

mas também um horizonte de expectativas de um autor que deixa lacunas

significativas durante a obra, para que haja a então cooperação comunicativa e,

12

Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “o texto é um mecanismo preguiçoso (econômico) que

vive sobre os excedentes de sentido introduzidos pelo destinatário, [...]. Um texto quer que alguém o ajude a

funcionar”.

82

assim, designando um processo de semiose ilimitada, pois cada intérprete

compreenderá de modos diferentes, de acordo com o seu conhecimento e visão de

mundo.

83

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desta maneira, nota-se em Glee toda a fenomenologia descrita de Peirce até Eco,

passando pelas estruturas do signo, modelos mentais e cognição, semiótica

interpretativa e leitor modelo, como propostos na parte teórica deste trabalho. Assim,

em resumo, finaliza-se a aplicação prática na cena em questão da série Glee,

retomando-se os preceitos e concluindo a análise.

A semiótica, assim, para Peirce, permeia todo o universo e convívio humano, e deve

ser estudada por todos os interessados nas demais ciências, devido ao seu teor

lógico. O filósofo americano defende assim um esquema quase matemático, para

compreensão destes processos significativos, criando uma tricotomia e dividindo os

tipos de signos. A base, então, do signo é uma relação tríadica entre três elementos,

os quais no caso um deve ser do fenômeno da primeiridade, outro de secundidade e

o último de terceiridade, sendo seus constituintes, o representamen, ou signo, o

nome peirceano do “objeto perceptível” (PEIRCE, 1931-58, 2.230), que serve como

signo para o receptor. O seu objeto, dividido em objeto imediato que, é o recorte

específico, modo através do qual o seu objeto dinâmico, fora do signo, é referido,

denotado, indicado ou sugerido, produzindo assim o terceiro elemento desta tríade,

o interpretante.

De acordo com o efeito do signo sobre a mente do intérprete e em conformidade

com seu sistema triádico, Peirce chegou em três classes maiores de interpretantes.

O interpretante imediato, o interpretante mediato, e o interpretante final, este último

está ligada ao processo comunicativo em sua totalidade, onde se é regulado através

do hábito, ou seja, pela condução, continuidade, regularidade em que o intérprete

está acostumado a decifrar toda a mensagem.

Como Peirce concluiu, o signo não é um processo comum, tendo em vista a própria

semiose, que em sua definição, deduz esta circularidade dos eventos significativos,

resultando todo interpretante a geração de sentido, que conseqüentemente pode

acarretar reações, desde mentais a físicas, criando um ciclo ilimitado de

hermenêutica. Isto para Eco, mais importante que o caminho traçado desde a

semiose de Peirce até a ciência da cognição é o leitor, o intérprete, como

protagonista no processo de criação e decodificação de significado. Se o signo

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interpretante se torna material da cognição, sendo então cíclico, sempre retomado e

reproduzido, levando-se em consideração o preceito de que “os interpretantes fazem

surgir um signo mais desenvolvido e são auxiliados neste processo pelos vários

modos de conhecimento possível”

Assim, o papel do emissor destas novas narrativas é conseguir manter uma

estratégia, um jogo comunicativo, ou seja, é habituar o destinatário para decodificar

a mensagem, o processo sígnico, de maneira satisfatória, até alcançar o nível de

máximo de interpretação, aquele que reside no interpretante final, da tríade

peirceana.

Em suma, uma semiose, um processo de comunicação, apenas será válida devido

ao potencial interpretativo do destinatário e dos espaços em branco no texto

contidos, ou seja, dos signos não visíveis, mas capazes de apreensão e

compreensão, em face o conhecimento de mundo e cultura compartilhados pelos

envolvidos. Um signo, mesmo quando decifrado e armazenado pela mente, está em

constante atualização e ação, tendo em vista o princípio da semiose ilimitada, do

processo de comunicação que pode ser pausado, mas nunca finalizado. É,

resumidamente, com estes alicerces teóricos que será apresentada a análise da

peça, com o objetivo de analisar a estrutura do signo empregado e sua interpretação

final junto ao referente Leitor Modelo.

Assim, depois dos postulados teóricos, foi proposta uma descrição dos fenômenos

de criação de sentido realizados na obra televisa Glee, seja de maneira primária,

através da própria história; seja de maneira secundária, evocando o conhecimento

do recorte realizado, em consonância com o objeto representado e sua

materialidade; ou de maneira terciária, através das experiências já absorvidas dos

leitores-telespectadores e do hábito de encontrar e extrair significado, proposto pelos

criadores e produtores do seriado, sendo seu produto interpretativo variante de

acordo com o interpretante e seu conhecimento de mundo.

Por fim, foi destacado através das cenas em questão, mais precisamente no

segundo estudo, a tipologia utilizada pelos estudiosos e pesquisadores acima

citados serviu assim para enriquecer o entendimento da atuação do signo sobre um

leitor, em suas diversas hipóteses. Assim, os criadores da série Glee, dentre eles

Ryan Murphy, visam uma interpretação total de seu enredo, que, nos fundamentos

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hipertextuais, auxilia tanto na retomada como na criação de material significativa,

reconhecendo assim o Leitor Modelo e os níveis de interpretação de uma obra ou

signo, fazendo da série em análise um grande emaranhado de informações externas

e internas ao roteiro, caracterizando uma narrativa hipermidiática.

Este é um esboço inicial de uma análise mais completa e complexa, porém serve de

base para possível desenvolvimento de estudos, nas mais diversas linhas teóricas e

abordagens, como o estudo mais minucioso entre a dinâmica semiótica

interpretativa e a teoria da recepção; o mapeamento do consumo, tendo em vista o

caráter hipermidiático da série; a descrição detalhada do processo de construção da

linguagem e do pensamento, em Glee, levando-se em consideração as matrizes

sonora, visual e verbal, descritas por Santaella; a construção dos personagens em

face da cultura pop e as demais referências realizadas. O que torna o presente

trabalho apenas início de uma pesquisa mais detalhada e específica, tendo em vista

o caráter abrangente, intertextual, metalingüístico da semiótica.

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