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Notas do Subsolo Fidor Dostoivski
Ttulo original: Zapski iz pdpolja Traduo:
Maria Aparecida Botelho Pereira Soares
SINOPSE:
Escrito na cabeceira de morte de sua primeira mulher, numa situao de aguda
necessidade financeira, Memrias do subsolo condensa um dos momentos mais
importantes da literatura ocidental, reunindo vrios temas que reaparecero mais tarde
nos ltimos grandes romances do escritor russo. Aqui ressoa a voz do homem do
subsolo, o personagem-narrador que, fora de paradoxos, investe ferozmente contra
tudo e contra todos - contra a cincia e contra a superstio, contra o progresso e contra
o atraso, contra a razo e a desrazo; mas investe, acima de tudo, contra o solo da
prpria conscincia, criando uma narrativa mpar, de altssima voltagem potica, que se
afirma e se nega a si mesma sucessivamente. No por acaso que muitos acabaram
vendo neste livro uma prefigurao das idias de Freud acerca do inconsciente.
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Nota do tradutor
Ao iniciar a traduo das Notas do subsolo, de Dostoivski, deparei-me com o
problema da adequao estilstica. Essa obra bastante conhecida e dela j h entre ns
e em Portugal vrias tradues. No decorrer do trabalho, fui descobrindo que o enfoque
da maioria das tradues de que tive conhecimento no estava de acordo com alguns
detalhes caractersticos e fundamentais dessa obra. Notei, por exemplo, que as tradues
em estilo grandioso, pomposo, via de regra atenuam a veia cmica de Dostoivski, que
no escreveu um texto sisudo, para ser lido como uma obra religiosa, um texto sagrado,
algo para ser reverenciado e respeitado, e sim um texto com humor, provocativo e
desafiador, para gerar polmica e controvrsias. Fui percebendo, tambm, a funo da
prpria linguagem na construo desse texto. Trata-se de uma novela escrita do princpio
ao fim na primeira pessoa do singular, pretensamente pelo protagonista-narrador. No se
conhece muita coisa desse personagem, a no ser o que ele mesmo diz a respeito de si
prprio. Nem ao menos o seu nome nos revelado. Deduz-se que ele era oriundo da
nobreza empobrecida ou da nascente classe mdia, no-nobre.
A obra, estruturalmente, constituda de duas partes com funes bem diferentes.
Na primeira parte, Dostoivski utiliza a novela como um espao em que discute as idias
correntes no seu tempo a respeito de poltica, filosofia, sociedade, movimentos sociais,
polemizando com as diversas tendncias que fervilhavam na Rssia na segunda metade
do sculo XIX e com as muitas idias em voga que eram importadas da Europa Ocidental
e a que ele, como eslavfilo, se opunha. Nessa primeira parte, ainda, ele desenha as
caractersticas desse protagonista-narrador, atravs de suas reminiscncias e auto-
anlises.
Na segunda parte, ele narra episdios da vida do seu heri, ou anti-heri, ou
paradoxista, como ele mesmo se qualifica no final do livro. A ele mostra na prtica aquilo
que o narrador diz de si prprio na primeira parte. Com relao linguagem, existe uma
diferena marcante entre os estilos dessas duas partes, mas um aspecto que comum s
duas a larga utilizao de elementos dos registros informais (linguagem popular,
informal falada, palavras depreciativas, alm de diminutivos, aumentativos, repeties,
hesitaes, utilizao de frases feitas e ditados populares, marcadores discursivos e
conservacionais), pois o narrador escreve todo o livro na primeira pessoa e conversa com
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uns certos senhores, que ora podem ser leitores comuns, ora parecem ser seus
adversrios nos campos poltico e social.
Porm, no se pode caracterizar a linguagem empregada como sendo a realizao
de um texto integralmente num desses registros, ou variantes. A variante predominante
a formal culta na primeira parte e a formal culta mesclada com coloquial culto
(especialmente nos dilogos) na segunda parte, como era comum na prosa do sculo XIX
na Rssia (e tambm no Brasil).
Na primeira parte, h uma forte influncia do estilo e sobretudo do lxico da prosa
publicstica, um gnero muito cultivado na Rssia no sculo XIX. A atividade editorial era
intensa nessa poca, havendo grande quantidade de jornais e revistas de diferentes
tendncias e matizes polticos. Fidor Dostoivski e seu irmo Mikhail foram eles prprios
donos de duas revistas, Epokha (poca) e Vrmia (Tempo).
O personagem-narrador polemiza com inmeras personalidades do seu sculo,
russos e estrangeiros, como Kant, Darwin, os socialistas utpicos franceses e russos,
escritores e intelectuais russos do campo revolucionrio democrtico, entre outros. Seu
tom agressivo, hostil e provocativo, o que atestado por um grande nmero de palavras
injuriosas e de conotao negativa, utilizadas contra seus adversrios ideolgicos e
tambm contra si mesmo, pois ele quer provar que possui todos aqueles defeitos como
uma conseqncia natural de ter crescido naquela sociedade.
Existem ainda elementos nessa primeira parte que caracterizam o personagem do
ponto de vista de sua mente bastante perturbada. Para acentuar tal caracterstica, muitas
frases so obscuras, repetitivas, sobrecarregadas por uma srie de marcadores de
dilogo e textuais, advrbios e partculas modais que se enfileiram de uma forma que em
portugus ns estamos acostumados a evitar, de acordo com nossas regras de boa
redao. Em alguns casos optei por no eliminar simplesmente alguns desses advrbios,
palavras modais e marcadores e conservei tanto quanto possvel a inteno do autor,
mesmo que em portugus soe um pouco estranho ou pesado.
Na segunda parte, o estilo predominante j outro. Aqui, na maior parte, j no se
trata de um duelo verbal com interlocutores imaginrios, mas sim de narrativas de trs
episdios da vida do narrador. Com exceo do incio, no tem muito lugar o estilo
jornalstico e aparece a tcnica narrativa do prprio Dostoivski, seu talento como escritor.
O estilo elegante, mas simples, e esto presentes em grande quantidade elementos da
linguagem informal e coloquial, o que eu procurei recriar no portugus, sem me afastar da
norma culta, como era comum no sculo XIX.
interessante o que o prprio Dostoivski diz a respeito de sua novela. Em carta
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ao irmo, de 20 de maro de 1864, ele escreveu: Dei incio novela [...]. bem mais
difcil de escrever do que eu pensava. Contudo absolutamente necessrio que ela saia
boa, eu preciso pessoalmente disso. Pelo seu tom ela demasiadamente estranha, e o
tom rspido e hostil: pode ser que no agrade; conseqentemente, necessrio que a
poesia suavize e suporte tudo. Essas palavras de Dostoivski explicam a particularidade
da estrutura dessa novela e o contraste entre a linguagem da primeira e da segunda
partes.
Maria Aparecida Botelho Pereira Soares
Referncias:
1. F. M. Dostoivski, Sobrnie Sotchinnii (Coletnea de obras), T. IV.
Gossudrstvennoie Izdtelstvo Khudjestvennoi Literatry, Moskv, 1956 (com notas de I.
Z. Srman).
2. Sobrnie Sotchinnii v 15-ti tomakh I (Coletnea de obras em 15 volumes), T.4.
L., Naka, 1989 (Com notas referentes ao volume 4 de A. V. Arkhpova, N. F. Budnova e
Ie. I. Kiko).
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Parte I
O subsolo[1]
1
Sou um homem doente... Sou mau. No tenho atrativos. Acho que sofro do fgado.
Alis, no entendo bulhufas da minha doena e no sei com certeza o que que me di.
No me trato, nunca me tratei, embora respeite os mdicos e a medicina. Alm de tudo,
sou supersticioso ao extremo; bem, o bastante para respeitar a medicina. (Tenho
instruo suficiente para no ser supersticioso, mas sou.) No, senhores, se no quero
me tratar de raiva. Isso os senhores provavelmente no compreendem. Que assim seja,
mas eu compreendo. Certamente, no poderia explicar a quem exatamente eu atinjo,
nesse caso, com a minha raiva; sei perfeitamente que, no me tratando, no posso
prejudicar os mdicos; sei perfeitamente bem que, com isso, prejudico somente a mim e a
mais ningum. Mesmo assim, se no me trato, de raiva. Se o fgado di, que doa ainda
mais.
Faz muito tempo que vivo assim uns vinte anos. Agora estou com quarenta.
Antes eu trabalhava no servio pblico, mas agora no trabalho mais. Fui um funcionrio
cruel. Era grosseiro e encontrava prazer nisso. J que no aceitava propinas, devia me
recompensar ao menos dessa maneira. (Isso foi um gracejo infeliz, mas no vou apag-
lo. Eu o escrevi pensando que ia sair algo muito espirituoso, mas agora, quando constatei
que, de maneira infame, estava apenas querendo me vangloriar, de propsito no vou
apagar.) Quando os solicitantes se aproximavam da minha mesa para pedir uma
informao, eu rangia os dentes para eles e sentia um prazer infinito quando conseguia
contrariar algum. Quase sempre conseguia. Na maior parte, era gente tmida, como so
de hbito os solicitantes. Mas, entre os almofadinhas, particularmente eu no podia
suportar um certo oficial. Ele no queria de modo algum submeter-se e fazia tinir seu
sabre de maneira asquerosa. Por causa desse sabre, ns estivemos em guerra durante
um ano e meio. Ganhei, finalmente. Ele parou com os tinidos. Alis, isso se passou ainda
na minha mocidade. Mas sabem os senhores em que consistia o ponto principal da minha
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raiva? A questo toda, a minha maior canalhice, se resumia a que a todo momento, at no
instante do dio mais intenso, eu percebia, envergonhado, que no s no era mau, como
no era nem mesmo uma pessoa enfurecida, apenas assustava pardais sem nenhum
propsito e com isso me divertia. Minha boca espumava, mas se me trouxessem um
brinquedinho ou um chazinho com acar, na certa eu me acalmaria. Ficaria at
enternecido, embora depois, provavelmente, rangeria os dentes para mim mesmo e, de
vergonha, passaria alguns meses com insnia. Esse o meu jeito de ser.
Eu menti antes, quando disse que era um funcionrio cruel. Menti de raiva. Apenas
me divertia com os solicitantes e o oficial, mas no fundo nunca me tornei mau.
Constantemente observava em mim uma enorme quantidade de elementos contrrios a
isso. Sentia-os fervilhar dentro de mim. Sabia que em toda a minha vida eles fervilharam
dentro de mim e ansiavam por sair, mas eu no deixava. No deixava, de propsito no
os soltava. Eles me torturavam ao ponto de me dar vergonha; at convulses eu tinha por
causa deles e finalmente fiquei farto. Como fiquei farto! No lhes parece que agora
estou me arrependendo de alguma coisa diante dos senhores, que estou a lhes pedir
perdo? Estou certo de que parece... Alis, asseguro-lhes que para mim tanto faz, se isso
assim lhes parece...
No apenas no consegui tornar-me cruel, como tambm no consegui me tornar
nada: nem mau, nem bom, nem canalha, nem homem honrado, nem heri, nem inseto.
Agora vivo no meu canto, provocando a mim mesmo com a desculpa rancorosa e intil de
que o homem inteligente no pode seriamente se tornar nada, apenas o tolo o faz. Sim,
senhores, o homem do sculo XIX que possui inteligncia tem obrigao moral de ser
uma pessoa sem carter; j um homem com carter, um homem de ao, de
preferncia um ser limitado. Essa a minha convico aos quarenta anos. Tenho agora
quarenta. E quarenta anos toda uma vida, a velhice mais avanada. Depois dos
quarenta indecoroso viver, vulgar, imoral! Quem vive alm dos quarenta? Respondam-
me sincera e honestamente. Pois vou lhes dizer quem vive: os tolos e os canalhas. Direi
isso na cara de todos os ancios, dos ancios respeitveis, perfumados e de cabelos
brancos! Direi isso na cara de todo mundo! Tenho direito de dizer isso porque eu mesmo
vou viver at os sessenta. At os setenta! At os oitenta! Esperem! Deixem-me tomar
flego!
Acaso os senhores esto pensando que quero faz-los rir? Enganaram-se tambm
quanto a isso. No sou absolutamente esse sujeito brincalho que os senhores imaginam,
ou que talvez os senhores imaginem. Alis, se os senhores, irritados com toda esta
tagarelice (e j senti que esto irritados), inventarem de me perguntar: quem o senhor
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exatamente? eu lhes responderei: sou um assessor colegial[2]. Eu tinha esse emprego para ter alguma coisa para comer (mas somente para isso) e quando, no ano passado,
um dos meus parentes distantes deixou-me seis mil rublos no seu testamento,
imediatamente me aposentei e mudei para este canto. Meu quarto detestvel, nojento e
fica quase fora da cidade. J vivia aqui antes, mas agora me instalei definitivamente.
Minha criada uma mulher da aldeia, velha, raivosa devido ignorncia e, alm de tudo,
tem um fedor insuportvel. Dizem que o clima de Petersburgo est se tornando prejudicial
para mim e que, com os recursos insignificantes de que disponho, muito caro viver aqui.
Sei de tudo isso melhor do que esses conselheiros e protetores experientes e sbios. Mas
permaneo em Petersburgo; no vou sair de Petersburgo! No vou sair porque... Ora!
No faz diferena nenhuma se vou sair ou no.
Mas sobre o que um homem de bem pode falar com mais satisfao?
Resposta: sobre si mesmo.
Ento, vou falar sobre mim.
2
Agora desejo lhes contar, queiram ou no ouvir, por que no consegui me tornar
nem ao menos um inseto. Afirmo-lhes solenemente que muitas vezes quis tornar-me um
inseto. Mas nem isso mereci. Asseguro-lhes que ter uma conscincia exagerada uma
doena, verdadeira e completa doena. Para o dia-a-dia do ser humano seria mais do que
suficiente a conscincia do homem comum, ou seja, a metade ou um quarto menor do
que a poro que toca a cada pessoa evoluda do nosso infeliz sculo XIX que, ainda por
cima, tem a infelicidade excepcional de morar em Petersburgo, a cidade mais abstrata e
premeditada de todo o globo terrestre. (H cidades premeditadas e no-premeditadas.)
Seria inteiramente suficiente, por exemplo, uma conscincia igual dos assim chamados
indivduos e homens de ao diretos. Aposto que os senhores esto pensando que
estou escrevendo tudo isso por gabolice, para fazer graa s custas dos homens de ao,
e esto pensando ainda que, num gracejo de pssimo gosto, fao tinir meu sabre, como o
meu oficial. Mas, senhores, quem pode se gabar de suas prprias doenas e ainda us-
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las para fazer pilhria?
Alis, que estou dizendo? isso que todos fazem: vangloriar-se de suas doenas,
e fao-o, talvez, mais do que todo mundo. No vamos discutir; minha objeo absurda.
Apesar de tudo, estou firmemente convencido de que no s a conscincia em alto grau
uma doena, como tambm o qualquer conscincia. Insisto nisso. Deixemos isso de
lado por um minuto. Respondam-me o seguinte: por que motivo, nos exatos minutos em
que eu era mais capaz de perceber todas as sutilezas de tudo o que belo e sublime[3], como se costumava dizer aqui numa certa poca, como que propositalmente eu no as
percebia e cometia atos to indecorosos, atos tais que... bem, resumindo, atos que talvez
todos pratiquem, mas que, como que de propsito, aconteciam comigo exatamente no
momento em que eu mais tinha conscincia de que no se deve absolutamente pratic-
los? Quanto mais conscincia eu tinha do bem e de todo esse belo e sublime, mais
afundava no meu lodo e mais capaz me tornava de atolar-me nele completamente. Mas a
caracterstica mais importante era que parecia que no era por acaso que isso acontecia
comigo, que era para ser assim mesmo. Como se isso fosse o meu estado mais normal e
de maneira nenhuma uma doena ou avaria, o que, finalmente, tirou-me a vontade de
lutar contra esse defeito. O resultado disso foi que por pouco no acreditei (ou talvez
tenha mesmo acreditado) que esse seria meu estado normal. E, no incio, bem no
comecinho, quanto sofrimento passei nessa luta! No acreditava que o mesmo acontecia
com as outras pessoas e por isso escondi isso comigo, como um segredo, durante toda a
vida. Sentia vergonha ( at possvel que ainda sinta); chegava ao ponto de sentir uma
satisfaozinha secreta, anormal, sordidazinha, ao voltar para o meu canto, numa
daquelas noites repugnantes de Petersburgo, e insistentemente perceber que naquele dia
novamente fizera uma canalhice, que novamente o que tinha sido feito no poderia ser
desfeito. E l dentro, secretamente, me remoer, me retalhar e me sugar, at que a
amargura se transformava, finalmente, numa doura infame e maldita e, finalmente, num
deleite srio e decisivo! Sim, num deleite, num deleite! Insisto nisso. Foi por isso que
toquei nesse assunto e ainda quero saber com certeza: outras pessoas costumam ter tais
deleites? Explico-lhes: o deleite aqui derivava precisamente da conscincia
excessivamente clara de minha humilhao; de que voc sente que j chegou ao
derradeiro limite; que isso detestvel, mas tambm, que outra coisa impossvel; que
voc j no tem sada, j no pode mudar. Mesmo se ainda restasse tempo e f para se
transformar em algo diferente, provavelmente voc mesmo no iria querer se transformar;
e, se quisesse, ainda assim no faria nada, porque talvez no houvesse no que se
transformar. Mas o principal e o fim derradeiro que tudo isso transcorre de acordo com
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as leis normais e bsicas da conscincia amplificada e pela inrcia derivada diretamente
dessas leis e, conseqentemente, nesse caso no s no possvel transformar-se,
como simplesmente no se pode fazer nada. Por exemplo, resulta o seguinte em
conseqncia da conscincia amplificada: voc est certo em ser um patife, como se
fosse consolo para um patife se ele mesmo j percebe que realmente um patife. Mas
basta de... Ora, falei pelos cotovelos e o que expliquei? Como se explica o deleite nesse
caso? Mas hei de explicar-me! Irei at o fim! Foi para isso que peguei a pena...
Sou, por exemplo, uma pessoa com um amor-prprio exagerado. Sou desconfiado
e ressentido, como um corcunda ou um ano, embora, verdade seja dita, houvesse
momentos em que, se me dessem uma bofetada, eu talvez ficasse alegre at com isso.
Estou falando srio: provavelmente eu conseguiria, a tambm, achar um certo tipo de
prazer; sem dvida, o prazer do desespero, mas no desespero que acontecem os
prazeres mais intensos, especialmente quando voc j percebe muito fortemente que sua
situao no tem sada. E quando ocorre a bofetada, a ento voc fica esmagado pela
percepo de que o trituraram at virar pasta. O mais importante que, por mais que se
reflita a respeito, de qualquer maneira resulta que eu sempre sou o principal culpado de
tudo e, o que mais lastimvel, sou culpado sem culpa e de acordo com as leis da
natureza, por assim dizer. Sou culpado, em primeiro lugar, porque sou mais inteligente do
que todos os que me rodeiam. (Sempre me considerei mais inteligente do que todos os
que me rodeiam e, s vezes podem crer? at disso me envergonhava. Pelo menos,
toda a vida eu andei olhando para o lado e nunca conseguia olhar diretamente nos olhos
das pessoas.) Sou, finalmente, culpado porque, mesmo se houvesse em mim
generosidade, meus tormentos seriam maiores por perceber toda a sua inutilidade. Pois
eu provavelmente no conseguiria usar minha generosidade para nada: nem para
perdoar, porque o ofensor pode ter-me golpeado de acordo com as leis da natureza, e as
leis da natureza no podem ser perdoadas; nem para esquecer, porque, mesmo que seja
pelas leis da natureza, insultuoso do mesmo jeito. Finalmente, at se eu no quisesse
ser de maneira alguma generoso e, ao contrrio, desejasse me vingar do meu ofensor, eu
no conseguiria me vingar de nada e de ningum, porque provavelmente no me decidiria
a fazer o que quer que fosse, mesmo se pudesse. E por que no me decidiria? Sobre isso
quero dizer duas palavras em separado.
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3
Como que procedem as pessoas que sabem se vingar e, de maneira geral, fazer
prevalecer seus direitos? Quando elas so tomadas, digamos, pelo sentimento de
vingana, no permanece mais nada no seu ser alm desse sentimento. Um cavalheiro
desse tipo lana-se diretamente ao seu objetivo, como um touro enfurecido, abaixando os
chifres, e talvez s um muro possa det-lo. (Alis, diante de um muro, tais cavalheiros, ou
seja, os indivduos e homens de ao diretos, se do por vencidos e nisso so sinceros.
Para eles, o muro no significa desvio, como, por exemplo, para ns, seres pensantes e,
conseqentemente, inertes; no um pretexto para voltar atrs, pretexto em que pessoas
como ns geralmente no acreditam, mas que sempre ficam muito felizes quando o
encontram. No, com toda sinceridade que eles se do por vencidos. O muro possui
para eles algo que acalma, que soluciona a situao do ponto de vista moral, e
definitivo; talvez at possua algo mstico... Mas, sobre o muro, falarei mais tarde.) Bem,
senhores, esse homem direto que eu considero o homem normal, verdadeiro, do jeito
que sua terna me a natureza gostaria de v-lo quando carinhosamente o criou na
Terra. Invejo tal homem at a minha ltima gota de fel. Ele um imbecil,
indiscutivelmente, mas pode ser que o homem normal deva ser mesmo imbecil, quem
sabe? Pode ser que isso seja at muito bonito. E estou tanto mais convencido dessa, por
assim dizer, suposio, que se, por exemplo, tomarmos a anttese do homem normal, ou
seja, um homem de conscincia amplificada, que naturalmente no surgiu no seio da
natureza, mas numa proveta (isso j quase misticismo, senhores, mas suspeito disso
tambm), esse homem de proveta s vezes vai dobrar-se tanto diante de sua anttese
que, com toda a sua conscincia amplificada, honestamente vai se considerar um
camundongo, e no um homem. Um camundongo de conscincia intensificada, que seja,
mas de qualquer forma um camundongo; porm, temos a tambm um homem e,
conseqentemente, tudo o mais. E o principal que ele mesmo que se considera um
camundongo, ningum lhe pede que o faa; esse um ponto importante. Vamos dar uma
olhada nesse camundongo em ao. Suponhamos, por exemplo, que ele se sinta tambm
ofendido (e quase sempre se sente) e que tambm deseje se vingar. Vai acumular em si
mais dio do que lhomme de la nature et de la verit[4]. A vontadezinha repugnante, vil,
de causar ao ofensor um mal equivalente ofensa recebida, talvez fique corroendo dentro
dele mais do que no homme de la nature et de la verit, porque este, com sua estupidez
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inata, acha que sua vingana simplesmente justia. J o camundongo, devido
conscincia intensificada, no reconhece justia nesse caso. E chega, finalmente, coisa
em si, ao prprio ato de vingana. O infeliz camundongo, alm da sujeira inicial, j
conseguiu mergulhar em um monte de outras sujeiras na forma de perguntas e dvidas; a
uma nica questo acrescentou tantas outras no respondidas que, independentemente
de sua vontade, vai juntando-se ao seu redor uma gosma repugnante e fatal, uma lama
ftida, formada por suas dvidas, preocupaes e, finalmente, de cusparadas que ele
recebe dos homens de ao, postados solenemente em torno dele na qualidade de juzes
e ditadores, e que, com suas possantes goelas, riem dele s gargalhadas. evidente que
s lhe resta fazer um gesto de pouco caso com a patinha e desistir e, com um sorriso
falso de desprezo, que no convence nem a ele prprio, esgueirar-se vergonhosamente
para o seu buraquinho. L no seu subsolo abjeto, ftido, nosso camundongo, humilhado,
abatido e ridicularizado, rapidamente mergulha num rancor frio, peonhento e,
principalmente, perptuo. No decorrer de quarenta anos ele vai ficar lembrando a ofensa
sofrida, at nos ltimos e mais vergonhosos detalhes, cada vez acrescentando por conta
prpria pormenores ainda mais vergonhosos, caoando perversamente de si mesmo e
provocando-se com a prpria fantasia. Ele mesmo se envergonhar da sua fantasia, mas,
mesmo assim, de tudo se lembrar, passar tudo em revista, inventar um monte de
histrias fantsticas sobre si mesmo, com a desculpa de que elas poderiam tambm ter
acontecido, e no perdoar coisa alguma. Talvez d incio sua vingana, mas
esporadicamente, com bobaginhas, escondido atrs do fogo, incgnito, sem acreditar
nem no seu direito de vingar-se, nem no xito de sua vingana, e sabendo de antemo
que, em todas as suas tentativas de vingar-se, ele mesmo vai sofrer cem vezes mais do
que aquele que pretende atingir, e este provavelmente nem se coar. No seu leito de
morte ir lembrar-se de tudo novamente, com os juros que se acumularam todo esse
tempo e... Mas precisamente nesse frio e asqueroso estado de semidesespero e
semicrena, nesse consciente e angustiado sepultamento em vida de si mesmo no
subsolo durante quarenta anos, nessa falta de sada de sua situao, que ele mesmo se
empenhara em criar e que , contudo, duvidosa, em todo esse veneno de desejos no
satisfeitos que ele engoliu, em toda essa febre de vacilaes, de resolues tomadas para
toda a vida e dos arrependimentos que sobrevm novamente um minuto depois a que
se encerra a essncia daquele estranho deleite de que eu falava anteriormente. to sutil
esse deleite, to impossvel s vezes de se perceber, que pessoas um pouquinho
limitadas, ou at mesmo pessoas simplesmente com nervos fortes, no entendero nada
dele. possvel que tambm no vo entender, os senhores acrescentaro por sua
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conta, abrindo um sorriso, aqueles que nunca levaram uma bofetada e, desse modo,
delicadamente insinuaro que na minha vida eu talvez tenha tido essa experincia e por
isso que falo como conhecedor. Aposto que pensam assim. Mas tranqilizem-se,
senhores, no recebi bofetadas, embora me seja totalmente indiferente o que os senhores
pensem sobre isso. Eu mesmo, possivelmente, ainda me arrependo de ter distribudo
poucas bofetadas na minha vida. Mas basta, no vou dizer mais nem uma palavra sobre
esse assunto que tanto interessa aos senhores!
Vou prosseguir, falando calmamente das pessoas com nervos fortes que no
compreendem a tal sutileza dos deleites. Esses senhores, em alguns casos, por exemplo,
embora berrem como touros a plenos pulmes, embora, admitamos, isso at lhes traga
imensa honra, o fato que, como eu j disse, diante da impossibilidade eles
imediatamente ficam resignados. A impossibilidade o mesmo que um muro de pedra?
Mas que tipo de muro de pedra? Bem, evidentemente, so as leis da natureza, as
concluses das cincias naturais, a matemtica. Se algum lhe prova, por exemplo, que
voc descende do macaco, no adianta fazer caretas, aceite-o. Se lhe provam que, na
realidade, uma gotinha de sua prpria gordura deve ser-lhe mais cara do que cem mil
semelhantes seus, e que nesse resultado sero resolvidos finalmente todos os assim
chamados deveres e virtudes, bem como os demais delrios e preconceitos, aceite
tambm, no h o que se possa fazer, pois dois mais dois so quatro isso
matemtica. Tente objetar!
Perdo, senhores, ho de lhes gritar, impossvel rebelar-se: trata-se de dois e
dois so quatro! A natureza no lhes pede licena, no se importa com seus desejos e
nem se suas leis lhes agradam ou no. Os senhores devem aceit-la tal como e,
conseqentemente, todos os seus resultados tambm. Um muro, portanto, mesmo um
muro... etc. etc. meu Deus! Que tenho a ver com as leis da natureza e com a
aritmtica, se essas leis e dois e dois so quatro, por alguma razo, no me agradam?
Evidentemente, no quebrarei esse muro com a testa, se realmente no tiver foras para
isso, mas nem assim vou resignar-me somente porque encontrei um muro e no tive
foras para romp-lo.
Como se tal muro de pedra fosse de fato um alvio e contivesse uma palavra que
fosse para o mundo, unicamente por ele ser dois mais dois so quatro. , cmulo do
absurdo! Muito melhor compreender tudo, perceber tudo, todas as impossibilidades e
muros de pedra; no se resignar diante de nenhuma dessas impossibilidades e muros de
pedra, se isso lhe repugna; atravs das mais inevitveis combinaes lgicas, chegar s
concluses mais abominveis sobre o eterno tema de que at desse muro de pedra voc
-
de certa forma o prprio culpado, embora esteja perfeitamente claro e evidente que
voc no culpado, e, em conseqncia disso, rangendo os dentes impotente e calado,
ficar paralisado numa inrcia voluptuosa, vendo em seus devaneios que na realidade
voc nem tem algum de quem possa ter raiva; que no se encontra o objeto e que talvez
nunca seja encontrado, que aqui existe uma fraude, um embuste, uma trapaa, existe
simplesmente algo intragvel no se sabe o que, no se sabe quem, mas que, apesar
de todas essas incgnitas e embustes, doloroso para voc, e quanto mais
desconhecido, mais doloroso !
4
Ha, ha, ha! Depois disso, o senhor sentir prazer at numa dor de dente!
exclamaro rindo os senhores.
E por que no? Existe mesmo prazer numa dor de dentes responderei. Um
ms inteiro me doeram os dentes; sei o que isso. Nessa situao, lgico, a pessoa
no se enfurece em silncio, e sim pe-se a gemer. Mas tais gemidos no so sinceros,
so gemidos sarcsticos, e no sarcasmo que est a coisa toda. nesses gemidos que
se expressa o prazer do sofredor; se ele no sentisse prazer com isso, no gemeria. Este
um bom exemplo, senhores, vou desenvolv-lo. Nesses gemidos se expressa, em
primeiro lugar, toda a inutilidade de sua dor, humilhante para a nossa conscincia; toda a
legitimidade das leis da natureza, de que os senhores, certamente, podem fazer pouco
caso, mas em conseqncia da qual os senhores sofrem, ao passo que ela no. Eles
expressam a percepo de que impossvel encontrar para os senhores um inimigo, mas
a dor est l; a percepo de que os senhores, apesar de todos os Wagenheim[5], so inteiramente escravos de seus dentes; de que, se algum quiser, seus dentes deixaro de
doer; do contrrio, doero por mais trs meses. E, finalmente, se os senhores ainda no
aceitaram e continuam a protestar, s lhes resta, para seu consolo, surrar-se ou bater
mais forte com os punhos na sua parede, e rigorosamente mais nada. Pois bem, dessas
ofensas sangrentas, dessas caoadas annimas, que se origina, por fim, um deleite que
s vezes chega ao mais alto grau de voluptuosidade. Eu lhes peo, senhores, que,
-
quando tiverem oportunidade, ouam com ateno os gemidos do homem culto do sculo
XIX sofrendo de dor de dente, l pelo segundo ou terceiro dia do seu sofrimento, quando
ele j comea a gemer de maneira diferente de como gemia no primeiro dia, isto , no
geme apenas porque lhe doem os dentes; ele no geme como um campons grosseiro
qualquer, e sim como um homem que foi atingido pelo desenvolvimento e pela civilizao
europia, um homem que renegou seu solo e as razes populares[6], como agora se diz. Seus gemidos tornam-se detestveis, grosseiramente raivosos, e continuam por vrios
dias e noites. Mas ele mesmo sabe que os gemidos no tero utilidade alguma; sabe
melhor do que ningum que em vo que ele tortura e irrita a si e aos demais; sabe que
at a platia que ele quer impressionar e toda a sua famlia j sentem repulsa ao ouvi-lo
gemer, no acreditam nem um pouquinho na sua sinceridade e esto convencidas de que
ele poderia gemer de outra maneira, mais simples, sem tremer a voz e sem bancar o
original, de que ele est fazendo palhaada de raiva, por pura maldade. Pois bem, a
volpia est precisamente em todas essas tomadas de conscincia e nessas
indignidades. Estou incomodando todos vocs, arrebentando seus coraes, no deixo
ningum dormir. Pois ento no durmam, sintam tambm minuto a minuto que meus
dentes esto doendo. J no sou mais para vocs o heri que antes quis parecer, sou
simplesmente um homenzinho desprezvel, um chenapan[7]. Que seja! Estou muito
contente porque vocs me entenderam. Vocs acham terrvel ouvir meus infames
gemidos? Pois que seja terrvel; e agora, para vocs, vou emitir uns garganteios ainda
mais terrveis... Ainda no entenderam, senhores? No; pelo visto, necessrio
desenvolver-se e adquirir conscincia de maneira mais profunda e completa para
compreender todos os meandros dessa volpia. Esto rindo? Fico feliz, senhores.
Naturalmente, minhas piadas so de mau gosto, irregulares, incompreensveis e denotam
minha falta de autoconfiana. Mas isso porque eu mesmo no me respeito. Por acaso
um homem com conscincia pode ter algum respeito prprio?
-
5
Bom, mas ser possvel, ser possvel que um homem possa ter um mnimo de
respeito prprio depois de ter tentado buscar prazer at mesmo no sentimento da prpria
humilhao? No falo isso agora por causa de algum arrependimento meloso. Mesmo
porque, em geral, eu no suportava dizer: Perdoe-me, paizinho, no vou mais fazer isso
no porque no fosse capaz de dizer isso, mas, pelo contrrio, talvez mesmo porque eu
fosse capaz at demais de faz-lo. Como se fosse de propsito, s vezes me metia em
certas situaes nas quais nem de longe eu era culpado. No havia baixeza maior.
Nessas ocasies eu me comovia, me arrependia, derramava lgrimas e, claro,
enganava a mim mesmo, apesar de no estar fingindo nem um pouco. Era o corao que
de certa maneira agia a de modo vil... Nesse caso, no se poderia culpar nem mesmo as
leis da natureza, embora elas tenham toda a vida me ofendido, mais do que tudo. D asco
recordar tudo isso, como era asqueroso tambm naquela poca. Pois aps no mais que
um minuto eu costumava perceber com dio que tudo aquilo era mentira, uma mentira
repulsiva e pomposa, todos aqueles arrependimentos, enternecimentos e promessas de
regenerao. Os senhores perguntaro: para que eu me mutilava e me torturava dessa
maneira? Resposta: porque era muito chato ficar sentado de braos cruzados, e ento
entregava-me a essas extravagncias. a pura verdade. Observem-se melhor, senhores,
e vero que assim. Eu fantasiava peripcias e criava uma vida para mim, ao menos
para viver, de alguma forma. Quantas vezes eu ficava ofendido, sem nenhum motivo real,
simplesmente porque queria? E sabia que havia me sentido insultado sem razo, que
havia bancado o ofendido, mas levava a coisa a tal ponto que no final ficava realmente
ofendido. Toda a vida, algo me atraa para fazer essas esquisitices, a tal ponto que, afinal,
perdi o domnio sobre mim mesmo. Noutra ocasio, quis a qualquer custo apaixonar-me,
duas vezes at. E sofri, senhores, asseguro-lhes. No fundo, a pessoa no acredita que
est sofrendo, quer fazer uma pilhria sobre o assunto, mas, apesar disso, eu sofria, e era
um sofrimento verdadeiro, real; sentia cimes, ficava fora de mim... E tudo isso por tdio,
senhores, tudo por tdio; fui esmagado pela inrcia. Pois o produto direto, imediato e
legtimo da conscincia a inrcia, isto , o ficar-sentado-de-braos-cruzados
-
conscientemente. J mencionei isso antes. Repito, repito insistentemente: todos os
indivduos e homens de ao diretos so ativos precisamente porque so obtusos e
limitados. Como isso se explica? Da seguinte maneira: em conseqncia de sua
tacanhez, tomam os motivos mais prximos e secundrios como se fossem os motivos
originais e, assim, eles se convencem mais rpida e facilmente do que as outras pessoas
de que encontraram um fundamento irrefutvel para a sua causa, e ento ficam
tranqilos. Isso o mais importante. Pois, para se comear a agir, preciso que antes se
esteja completamente calmo e totalmente livre de dvidas. E como eu, por exemplo, me
tranqilizaria? Onde esto os meus motivos originais, nos quais me apoiaria? Onde esto
os fundamentos? De onde vou tir-los? Fao uma ginstica mental e, em conseqncia,
cada motivo original imediatamente arrasta atrs de si outro, ainda mais original, e vai por
a afora, at o infinito. Essa precisamente a essncia de toda conscincia e reflexo.
Portanto, novamente j estamos falando das leis da natureza. E, finalmente, qual o
resultado? O mesmo, ora. Lembrem-se: h pouco falei sobre a vingana (os senhores, na
certa, no se aprofundaram no assunto). O que eu disse foi: o homem se vinga porque
acha que est fazendo justia. Isso significa que ele encontrou o motivo original, o
fundamento, ou seja: a justia. Disso decorre que ele est tranqilo de todos os lados e
conseqentemente, efetua sua vingana tranqila e eficiente, pois est convencido de
que executa uma ao honesta e justa. De minha parte, no vejo nisso nenhuma justia,
no encontro nenhuma virtude e, por conseguinte, se resolvo me vingar, unicamente por
maldade. A raiva poderia, claro, suplantar tudo, todas as minhas dvidas e poderia com
pleno xito servir de motivo original, precisamente porque ela no o motivo. Mas que
fazer se nem mesmo tenho raiva? (Eu comecei, h pouco, falando exatamente disso.) A
minha maldade, novamente em conseqncia dessas malditas leis da conscincia, est
sujeita decomposio qumica. Quando voc olha, o objeto j volatilizou, os motivos
evaporaram, impossvel encontrar o culpado, a ofensa deixa de ser ofensa e passa a
ser uma fatalidade, algo como uma dor de dente, em que no h culpados. Ento, o que
resta aquela mesma sada esmurrar com mais dor ainda o muro. E voc desiste de
sua vingana porque no encontrou um motivo original. Mas tente abraar com paixo e
cegamente o seu sentimento, sem reflexo, sem buscar o motivo original, afastando a
conscincia pelo menos temporariamente; sinta dio ou amor, nem que seja para no
ficar sentado de braos cruzados. No mais tardar, depois de amanh voc comear a
sentir desprezo por si mesmo, por ter-se enganado conscientemente. O resultado disso:
uma bolha de sabo e a inrcia. Ah, senhores, pode ser que eu me considere um homem
inteligente simplesmente porque em toda a minha vida nada consegui comear nem
-
terminar. Est bem, est bem. Eu sou um tagarela, um tagarela inofensivo e enfadonho,
como todos ns. Mas que se h de fazer se o nico e evidente destino de todo homem
inteligente tagarelar, ou seja, dedicar-se propositalmente a conversas para boi dormir?
6
Ah, se eu no fizesse nada unicamente por preguia! Meu Deus, como eu me
respeitaria! E me respeitaria precisamente porque teria a capacidade de possuir ao
menos a preguia; pelo menos eu teria uma caracterstica quase positiva, que eu mesmo
teria a certeza de possuir. Pergunta: quem ele? Resposta: um preguioso. Seria mais do
que agradvel ouvir tal coisa a meu respeito. Mostraria que fui definido positivamente, que
h o que dizer sobre mim. Um preguioso! isto de fato um ttulo, uma funo, uma
carreira, senhores. No brinquem com isso, a pura verdade. Eu seria, ento, por direito,
membro do clube mais importante, e minha nica ocupao seria passar todo o tempo me
respeitando. Conheci um senhor que toda a sua vida se orgulhou de ser entendido em
Laffittes[8]. Para ele, isso era uma vantagem e uma qualidade positiva, e nunca duvidava de si mesmo. Morreu com a conscincia no apenas tranqila, mas at mesmo triunfante,
e com toda razo. Eu poderia escolher uma carreira: preguioso e comilo, mas no um
comilo qualquer, e sim um que tivesse sensibilidade para tudo que belo e sublime. Que
lhes parece? Sonho com isso h muito tempo. O tal belo e sublime pesa muito na minha
nuca agora, aos quarenta anos, mas naquela poca seria diferente! Eu teria encontrado
imediatamente uma atividade correspondente, como brindar a tudo que belo e sublime.
No perderia nenhuma oportunidade de comear por verter uma lgrima dentro da minha
taa e depois beb-la sade de tudo que belo e sublime. Eu transformaria tudo que h
no mundo em belo e sublime, encontraria o belo e o sublime at mesmo nas coisas mais
horrveis, nas piores e mais indiscutveis porcarias. Ficaria lacrimoso como uma esponja
molhada. Um pintor, por exemplo, pintou um quadro de Gay[9]. Imediatamente eu beberia sade do pintor que pintou o quadro de Gay, porque amaria tudo que belo e sublime.
Um autor escreveu como apraz a cada um[10] e imediatamente eu beberia sade de cada um, porque amaria tudo que belo e sublime. Exigiria respeito por isso,
-
perseguiria quem no me respeitasse. Viveria tranqilo, morreria solenemente ah!,
como seria formidvel, uma verdadeira maravilha! Arrumaria uma bela pana, um queixo
triplo, um nariz vermelho, e todos os que cruzassem comigo diriam: Eis um homem de
mrito! Isto que um homem de verdade!. Digam os senhores o que quiserem, mas
superagradvel ouvir coisas assim neste nosso sculo to negativo.
7
Mas tudo isso no passa de sonhos dourados. Ah! Digam-me quem primeiro
declarou, quem primeiro proclamou que o homem s age mal porque no conhece seus
verdadeiros interesses e que, se lhe dessem instruo, se lhe abrissem os olhos para os
seus interesses verdadeiros e normais, ele deixaria de agir de modo srdido,
imediatamente se tornaria bom e nobre, porque, sendo esclarecido e entendendo suas
vantagens reais, veria justamente no bem a sua prpria vantagem?[11] E que, como sabido que nenhum homem capaz de agir conscientemente contra seus prprios
interesses, conseqentemente, por necessidade, digamos, ele passaria a fazer o bem?
criancinha pura e inocente! Em primeiro lugar, quando foi que, no decorrer de milnios, o
homem agiu movido apenas pelos prprios interesses? Que fazer com os milhes de
fatos que demonstram que conscientemente, isto , compreendendo perfeitamente suas
verdadeiras vantagens, pessoas deixaram-nas de lado e lanaram-se por outro caminho,
ao acaso, arriscando-se, sem que ningum ou nada as obrigasse a isso, como se
simplesmente no quisessem exatamente o caminho que lhes fora indicado e teimosa e
voluntariosamente abriram outro, mais difcil, absurdo, tateando no escuro quase s
cegas? Significa, pois, que para elas essa teimosia e esse voluntarismo eram de fato mais
agradveis do que qualquer vantagem pessoal... Ah, a vantagem! Que a vantagem? Os
senhores aceitariam a tarefa de determinar com absoluta preciso em que consiste a
vantagem para o ser humano? E se acontecer que, em alguns casos, para o homem a
vantagem no s possa, como tambm deva consistir, algumas vezes, em desejar para si
aquilo que ruim, e no o vantajoso? E, se isso possvel, se pode acontecer um caso
como este, ento a regra no vale nada. Que pensam os senhores: tais casos podem
-
acontecer? Podem rir, senhores, mas me respondam apenas: teriam sido determinadas
corretamente as vantagens humanas? No existiriam algumas que no se enquadraram e
nem poderiam enquadrar-se em nenhuma classificao? Pois os senhores, ao que eu
saiba, compuseram toda a sua lista de vantagens humanas fazendo uma mdia de
valores estatsticos e de frmulas da cincia econmica. De acordo com as suas
concluses, so elas o bem-estar, a riqueza, a liberdade, a tranqilidade, e assim por
diante. De modo que, por exemplo, o homem que clara e deliberadamente rejeitasse toda
essa lista seria, na sua opinio, e na minha tambm, claro, um obscurantista ou um ser
completamente louco, no isso? Mas vejam uma coisa espantosa: por que acontece
que todos esses estatsticos, esses sbios que tanto amam a humanidade, quando
enumeram as vantagens humanas sempre omitem uma delas? Nem a levam em conta da
maneira como deve ser levada, e disso depende toda a conta. No seria um mal to
grande se pegassem essa vantagem e a colocassem na lista. Mas a desgraa que essa
vantagem problemtica no se encaixa em nenhuma classificao. Eu, por exemplo,
tenho um amigo... Mas vejam s! Ele amigo dos senhores tambm; e de quem, de
quem ele no amigo?! Ao se preparar para realizar uma ao, esse senhor comear
por lhes explicar, de maneira clara e pomposa, como precisamente ele deve agir para
estar de acordo com as leis da razo e da verdade. Isto no tudo: ele falar aos
senhores com paixo e emoo sobre os interesses humanos normais e verdadeiros,
criticar com ironia os idiotas mopes que no entendem nem suas prprias vantagens,
nem o verdadeiro significado da virtude e, exatamente quinze minutos depois, sem que
haja qualquer motivo repentino e exterior, mas precisamente por alguma coisa interna que
mais forte do que todos os seus interesses, ele aprontar uma das suas, far
claramente o inverso do que dissera pouco antes: agir contra as leis da razo e contra
os prprios interesses, ou seja, contra tudo... Quero preveni-los de que meu amigo um
personagem coletivo, por isso um pouco difcil condenar s a ele. Mas a mesmo que
eu quero chegar, senhores. Ser que de fato no existe algo que seja mais caro a quase
todos os homens do que suas melhores vantagens, ou (para no destruir a lgica) aquela
mesma vantagem mais vantajosa (aquela que sistematicamente omitida, de que
falamos antes), que mais importante e mais vantajosa do que todas as outras vantagens
e que, para obt-la, o homem est sempre pronto, se necessrio, a afrontar qualquer lei,
ou seja, ir contra a razo, a honra, o sossego, o bem-estar numa palavra, contra todas
essas coisas maravilhosas e teis, apenas para alcanar essa vantagem mais vantajosa,
a primeira, que para ele mais cara do que tudo?
Mas continua sendo uma vantagem diro os senhores, interrompendo-me.
-
Permitam-me, ns vamos nos explicar, e a questo no se resume a um jogo de
palavras, e sim a que essa vantagem notvel justamente porque destri todas as
nossas classificaes e todos os sistemas que foram montados pelos amigos do gnero
humano. Resumindo: ela atrapalha tudo. Mas, antes de lhes dar o nome dessa vantagem,
quero comprometer-me pessoalmente e, por isso, insolentemente declaro que todos
esses maravilhosos sistemas, todas essas teorias que pretendem explicar para a
humanidade quais so seus interesses verdadeiros e normais, para que ela,
necessariamente almejando alcanar esses interesses, torne-se no mesmo instante boa e
nobre at o momento, na minha opinio, no passam de falsa lgica. isso mesmo,
senhores, falsa lgica. Afirmar que a renovao do gnero humano atravs do sistema de
suas prprias vantagens, bem, isso, para mim, quase a mesma coisa que... bem, quase
o mesmo que afirmar, seguindo Buckle[12], que o homem se abranda por influncia da civilizao e, em conseqncia, torna-se menos sanguinrio e menos inclinado a fazer
guerras. Parece que foi pela lgica que ele chegou a essa concluso. Mas o ser humano
to apaixonado pelo sistema e pela concluso abstrata, que capaz de fazer-se de
cego e surdo somente para justificar sua lgica. Por essa razo vou trazer um exemplo
que ilustra com muita clareza tudo isso. Olhem ao seu redor: sangue fluindo como rios e
ainda por cima com alegria, como se fosse champanhe! Isto, senhores, o sculo XIX,
sculo em que Buckle tambm viveu. Vejam Napoleo, tanto o Grande como o atual!
Vejam a Amrica do Norte, com sua unio perptua![13] Finalmente, vejam essa caricatura que Schleswig-Holstein![14] Em que a civilizao nos est abrandando? A civilizao desenvolve no homem apenas uma diversidade de sensaes... e nada mais.
E, graas ao desenvolvimento dessas sensaes, bem possvel que o homem acabe
por descobrir no derramamento de sangue um certo prazer. Isso j aconteceu. J notaram
que os sanguinrios mais refinados quase sempre tm sido os cavalheiros mais
civilizados, aos ps dos quais no chegam todos os tilas e Stenkas Rzin?[15] E que, se eles no chamam muita ateno, como tila e Stenka Rzin, justamente porque so
muito comuns e freqentes e j nos acostumamos a eles? Pelo menos se pode dizer que,
se o homem no se tornou mais sanguinrio com a civilizao, tornou-se, com certeza,
um sanguinrio pior, mais hediondo. Antes ele via no derramamento de sangue um modo
de fazer justia e com a conscincia tranqila massacrava aqueles que julgava merec-lo;
hoje, ainda que julguemos que derramar sangue seja uma torpeza, mesmo assim o
praticamos, e ainda mais do que no passado. O que pior? Decidam os senhores
mesmos. Dizem que Clepatra (desculpem se dou exemplo da histria de Roma), gostava
de fincar alfinetes de ouro nos seios de suas escravas e sentia prazer com seus gritos e
-
contores. Os senhores diriam que isso foi numa poca relativamente brbara; que
agora tambm vivemos numa poca brbara (relativamente, tambm), pois hoje tambm
se enfiam alfinetes; que tambm agora, embora o homem tenha aprendido, vez por outra,
a enxergar com mais clareza do que nos tempos da barbrie, ele est longe de ter
aprendido a proceder da maneira indicada pela razo e pela cincia. Porm, os senhores
esto firmemente convencidos de que ele se acostumar, quando alguns hbitos antigos,
ruins, tiverem desaparecido completamente, e quando o bom senso e a cincia tiverem
reeducado totalmente a natureza humana, direcionando-a para um estado normal. Os
senhores esto convencidos de que, ento, o homem deixar voluntariamente de errar, e
a contragosto, por assim dizer, no ir querer opor sua vontade aos seus interesses
normais. E mais: nesse tempo, dizem os senhores, a prpria cincia vai ensinar ao
homem (embora isso j seja um luxo, na minha opinio) que ele, na verdade, no possui
nem vontade, nem caprichos, que, por sinal, nunca os teve, e que ele mesmo no passa
de alguma coisa parecida com uma tecla de piano ou um pedal de rgo; e que, ainda por
cima, existem tambm as leis da natureza, de modo que, no importa o que ele faa, isso
no feito por sua vontade, e sim por si mesmo, seguindo as leis da natureza.
Conseqentemente, basta descobrir essas leis da natureza que o homem no ter mais
de responder pelos seus atos, e viver, para ele, ser extremamente fcil. Evidentemente,
todas as aes humanas sero calculadas matematicamente, de acordo com essas leis,
numa espcie de tbua de logaritmos, at 108.000, e sero inscritos nos calendrios; ou,
algo ainda melhor: surgiro algumas publicaes bem-intencionadas, do tipo dos atuais
dicionrios enciclopdicos, em que tudo estar to bem calculado e indicado, que no
mundo no haver mais nem aes nem aventuras.
Nesse tempo isso tudo os senhores que dizem , surgiro novas relaes
econmicas, que sero tambm completamente calculadas, e com preciso matemtica,
de modo que, num piscar de olhos, todo tipo de questes deixaro de existir,
precisamente porque algum j ter encontrado todo tipo de respostas para elas. E ento
ser construdo um palcio de cristal[16]. Ento... Bem, numa palavra: ento seremos visitados pelo pssaro azul. Evidentemente, no se pode garantir (isto j sou eu que estou
dizendo) que nesse tempo no ser, por exemplo, terrivelmente aborrecido (porque, o que
haver para fazer, se tudo estar distribudo numa tabela?), mas, em compensao, tudo
ser extremamente sensato. Evidentemente, o que no se inventar por puro tdio! Pois
alfinetes de ouro so fincados tambm por tdio, mas isso ainda no nada. O ruim
mesmo (novamente sou eu que estou dizendo) que pode at acontecer que as pessoas
vo se sentir felizes com os alfinetes de ouro. Pois o ser humano burro, de uma burrice
-
fenomenal. Ou melhor, ele no nem um pouco burro, mas em compensao ingrato.
No existe ser mais ingrato que ele. Eu, por exemplo, no me admiraria nada se, de
repente, sem nenhum motivo, em meio ao futuro bom senso geral, surgisse um cavalheiro
com um rosto nada nobre ou, melhor dizendo, com uma fisionomia retrgrada e
zombeteira e, de mos na cintura, dissesse a todos ns: e ento, senhores, que tal dar
um pontap em todo esse bom senso e mandar esses logaritmos para o diabo para que
possamos novamente viver segundo a nossa vontade idiota? E no acabaria nisso, pois o
mais lamentvel que ele certamente encontraria seguidores: assim o ser humano. E
tudo isso por um motivo insignificante que no valeria a pena mencionar: precisamente
pelo fato de que o homem, invariavelmente e em todo lugar, quem quer que ele seja,
sempre gostou de fazer o que quis, e no como mandam a razo e o interesse prprio;
ele, inclusive, pode querer algo contra seus prprios interesses, e s vezes at deve
indubitavelmente quer-lo (isto j idia minha). Sua vontade livre, um capricho seu,
mesmo que seja o capricho mais estranho, uma fantasia sua, exacerbada s vezes at a
loucura eis a vantagem que omitida, a vantagem mais vantajosa, que no se submete
a nenhuma classificao e que manda para o diabo constantemente todos os sistemas e
teorias. E de onde esses sabiches tiraram que o homem necessita no sei de que
vontade normal, virtuosa? De onde partiu essa sua idia de que o homem precisa ter
obrigatoriamente uma vontade sensatamente vantajosa? O que o homem precisa
somente de uma vontade independente, custe ela o que custar e no importa aonde
possa conduzir. Bom, essa vontade, o diabo conhece bem...
8
Ha, ha, ha! Mas tal vontade, no fundo, nem ao menos existe! interrompem-me
os senhores com uma gargalhada. Na nossa poca, a cincia j conseguiu dissecar a tal
ponto o homem, que j do nosso conhecimento que a vontade e o assim chamado livre-
arbtrio no passam de...
Um momento, senhores, eu mesmo queria comear dessa maneira. Confesso
que at me assustei. Um instante atrs por pouco eu no quis gritar que a vontade
-
depende sabe o diabo de que, coisa que, talvez, devamos agradecer a Deus, mas
lembrei-me da cincia e... me calei. E nesse instante os senhores comearam a falar.
Porque, de fato, bem, se algum dia encontrarem mesmo a frmula de todos os nossos
desejos e caprichos, ou seja, aquilo de que eles dependem, as leis segundo as quais eles
se produzem, como precisamente se espalham, que objetivos eles buscam num caso ou
noutro, etc., ou seja, se encontrarem uma verdadeira frmula matemtica a talvez o
homem imediatamente deixe de ter vontade e, digo mais, ele seguramente far isso.
Quem vai querer ter vontade de acordo com uma tabela? E ainda: no mesmo instante o
homem se transformar num pedal de rgo ou em algo no gnero; porque o que esse
homem sem desejos, sem vontade, sem seu prprio querer, seno um pedal de rgo?
Que acham disso? Examinemos as probabilidades: pode isso acontecer ou no?
Hum... concluem os senhores. Nossos desejos, na sua maioria, so
equivocados devido a uma avaliao errada das nossas vantagens. Se s vezes
queremos coisas absurdas, isso se deve ao fato de que nessa coisa absurda ns vemos,
por burrice nossa, um caminho mais curto para obtermos uma vantagem
antecipadamente presumida. Bem, quando tudo isso estiver explicado e exposto
numericamente no papel (o que perfeitamente possvel, porque indigno e sem sentido
crer antecipadamente que haja leis da natureza que o homem nunca descobrir), ento,
evidentemente, no existiro as chamadas vontades. Pois, se a vontade um dia coincidir
completamente com a razo, ns iremos raciocinar e no querer, propriamente, porque
impossvel, por exemplo, conservando a razo, desejar coisas sem sentido, indo, desse
modo, conscientemente contra a razo e desejando algo que nos prejudique... E, como
todos os desejos e raciocnios podero ser realmente calculados, pois algum dia sero
descobertas as leis do nosso assim chamado livre-arbtrio, ento, conseqentemente,
alm de anedotas, tambm ser possvel estabelecer-se algo como uma tabela, de tal
modo que ns realmente teremos desejos de acordo com essa tabela. Porque se, por
exemplo, um dia me provarem com clculos que se eu fiz um gesto obsceno com o dedo
para algum isso se deu precisamente porque no poderia deixar de faz-lo, e porque era
exatamente aquele dedo que eu deveria mostrar, ento o que restar de livre em mim,
especialmente se sou uma pessoa instruda e com um curso completo de cincia em
algum lugar? Pois nesse caso eu vou poder calcular antecipadamente toda a minha vida
futura por um perodo de trinta anos; em sntese, se isso for implantado, no nos restar
nada a fazer; de todo modo, teremos de aceitar. E, de maneira geral, devemos repetir
para ns mesmos sem descanso que, forosamente, num determinado minuto e em
certas condies, a natureza no pede a nossa opinio; que necessrio aceit-la tal
-
como ela , e no como ns a fantasiamos, e se, de fato, almejamos chegar a uma tabela
e a um calendrio e a... bem, nem que seja a um tubo de ensaio, ento, que se h de
fazer, preciso admitir tambm o tubo de ensaio! Seno ele mesmo se admitir, sem
esperar por sua aprovao...
Pois , senhores... Justamente neste ponto que eu me enrasquei! Perdoem-me
por ter filosofado dessa maneira, mas foram quarenta anos de subsolo! Permitam-me
fantasiar um pouco. Vejam os senhores: a razo uma coisa boa, sem dvida, mas razo
apenas razo e satisfaz apenas a capacidade racional do homem; j a vontade, esta a
manifestao da vida como um todo, ou melhor, de toda a vida humana, a incluindo-se a
razo e todas as formas de se coar. E, mesmo que a nossa vida parea s vezes bem
ruinzinha do ponto de vista acima, ela vida, apesar de tudo, e no apenas a extrao de
uma raiz quadrada. Eu, por exemplo, naturalmente quero viver para satisfazer toda a
minha capacidade de vida, e no para satisfazer apenas minha capacidade racional, ou
seja, talvez a vigsima parte de toda a minha capacidade de viver. Que sabe a razo? Ela
sabe apenas aquilo que conseguiu conhecer (outras coisas, provavelmente, nunca
saber; isso pode no consolar, mas por que no diz-lo?); j a natureza humana, esta
age como um todo, com tudo o que possui, seja consciente, seja inconsciente e, mesmo
mentindo, est vivendo. Desconfio de que os senhores esto olhando para mim com
pena; esto repetindo que impossvel um homem evoludo e esclarecido, em suma, um
homem do futuro, vir a querer conscientemente para si algo desvantajoso; que isso
matemtica. Concordo plenamente, de fato matemtica. Mas repito pela centsima vez:
h apenas um caso em que o homem capaz de, proposital e conscientemente, desejar
para si algo at mesmo nocivo, idiota, at mesmo idiotssimo, e precisamente quando
quer defender o direito de desejar para si mesmo algo idiotssimo e no ficar obrigado a
desejar para si apenas o que inteligente. Isso a suprema idiotice, isso um capricho
pessoal e, na verdade, senhores, pode ser o que de mais vantajoso haja na Terra para os
nossos semelhantes, principalmente em certos casos. E, particularmente, pode ser mais
vantajoso do que todas as vantagens, mesmo no caso de nos causar um mal indiscutvel
e de contradizer as concluses mais corretas de nossa razo quanto a vantagens
porque pelo menos conserva para ns o mais importante e o mais caro, ou seja, nossa
personalidade e nossa individualidade. Alguns afirmam que isso de fato o que mais
caro ao ser humano; a vontade pode, se assim o desejar, coincidir com a razo,
especialmente se no abusar desta e us-la com parcimnia; uma coisa til e s vezes
elogivel. Mas a vontade, muito freqentemente, e at mesmo na maior parte das vezes,
discorda completa e teimosamente da razo, e... e... Sabem os senhores que isso
-
tambm til e s vezes at elogivel? Senhores, admitamos que o homem no seja um
idiota. (Realmente no se pode afirmar que ele seja um idiota, pelo menos pela nica
razo de que, se ele fosse um idiota, quem ento seria inteligente?) Mas, se no um
idiota, ao menos monstruosamente ingrato. Penso at que a melhor definio para o
homem : um ser bpede e ingrato. Mas isso ainda no tudo, esse no o seu pior
defeito: seu defeito mais grave sua constante m conduta. Sim, constante, desde o
dilvio universal at o perodo schleswig-holsteiniano dos destinos da humanidade. A m
conduta e, por conseqncia, a falta de bom senso, pois h muito tempo se sabe que a
falta de bom senso resultado da m conduta. Tentem lanar uma olhada na histria da
humanidade; que vem os senhores? grandiosa? Talvez at seja grandiosa; qual no
ser, por exemplo, o valor de um Colosso de Rodes? No toa que o sr. Anaivski [17] nos informa que, na opinio de alguns, esse colosso foi obra humana, ao passo que, para
outros, ele foi criado pela prpria natureza. Os senhores acham a humanidade
multicolorida? V l, mesmo multicolorida; quanto valeria, por exemplo, a simples
descrio, em todos os sculos e em todos os povos, somente das fardas de gala de
militares e civis? E se acrescentarmos as fardas de servio, a ento de morrer. Nenhum
historiador resistiria tentao de faz-lo. Os senhores consideram a humanidade
montona? Talvez seja montona: brigas e mais brigas; brigavam antes, brigam agora
concordem comigo que isso montono at demais. Em suma, tudo se pode dizer da
histria universal, tudo que possa ocorrer imaginao mais perturbada. S uma coisa
no se pode dizer: que ela seja sensata. Os senhores engasgariam na primeira palavra. E
vejam at o que acontece volta e meia: constantemente aparecem na vida pessoas to
corretas e sensatas, to sbias e amantes do gnero humano que assumem como seu
objetivo de vida comportar-se da maneira mais correta e sensata possvel para, por assim
dizer, ser uma luz para os demais, provando para eles que possvel de fato viver neste
mundo de maneira correta e sensata. E da? Sabe-se que muitos desses amantes do
gnero humano, uns mais cedo, outros mais tarde, alguns j no fim da vida, traram a si
mesmos, dando margem a anedotas, algumas at bem obscenas. Agora pergunto-lhes: o
que se pode esperar do homem, sendo ele um ser dotado de caractersticas to
estranhas? Pois bem, cubram-no de todos os bens que h na Terra, mergulhem-no de
cabea na felicidade mais completa, de modo que somente borbulhas subam superfcie;
dem-lhe tal bem-estar econmico, de modo que no lhe reste nada mais a fazer, alm de
dormir, comer pes de mel e tratar de garantir a continuao da histria universal pois
os senhores vero que, mesmo assim, ele, o homem, por pura ingratido, por galhofa, h
de fazer besteira. Por em risco at os pes de mel e desejar intencionalmente o
-
absurdo mais prejudicial, a coisa, do ponto de vista econmico, mais sem p nem cabea,
unicamente para adicionar a toda essa sensatez positiva seu elemento fantstico
prejudicial. Ele desejar conservar consigo precisamente seus sonhos fantsticos, sua
estupidez mais torpe, com a finalidade de afirmar para si mesmo (como se isso fosse
mesmo absolutamente imprescindvel) que os homens continuam a ser homens, e no
teclas de piano, as quais, embora sejam tocadas pelas prprias mos das leis da
natureza, esto ameaadas de serem tocadas at chegar ao ponto em que, alm do
calendrio, no ser possvel desejar-se mais nada. Mas isto ainda no tudo: mesmo
que se constate que ele de fato uma tecla de piano, mesmo que isso lhe seja
demonstrado pelas cincias naturais e pela matemtica, nem assim ele criar juzo e
propositalmente far alguma coisa oposta, unicamente por ingratido; de fato, para impor
a sua vontade. E, no caso de no possuir os meios para isso, ele inventar a destruio e
o caos, inventar diversos sofrimentos e acabar por impor sua vontade! Ele lanar ao
mundo sua maldio e, como s o homem capaz de amaldioar (isso um privilgio
seu, o que ele tem de mais importante e que o distingue dos outros animais), talvez ele
consiga o que procura apenas com a maldio, ou seja, realmente talvez se convena de
que um homem, e no uma tecla de piano! Se os senhores disserem que tudo isso
tambm pode ser calculado pela tabela o caos, a treva, a maldio, de modo que a
mera possibilidade de clculo prvio pare tudo e a razo triunfe , ento nesse caso o
homem ficar propositalmente louco, para ficar privado da razo e defender sua opinio!
Eu creio nisso, respondo por isso, porque toda a questo humana, creio, resume-se, na
realidade, em o homem provar constantemente para si mesmo que ele um homem, e
no uma tecla! Ainda que arriscando sua pele, ele tentar prov-lo; ainda que se
comporte como um troglodita, ele tentar prov-lo. E, depois disso, como no pecar, como
no se felicitar por ainda no existirem tais coisas, e a vontade, por enquanto, depender
s Deus sabe de qu...
Os senhores gritam-me (se que ainda me concedem a honra de gritar comigo)
que ningum est me tirando a vontade; que todo o esforo que fazem para, de alguma
forma, conseguir que a minha vontade espontaneamente, por si mesma, passe a coincidir
com meus interesses normais, com as leis da natureza e com a aritmtica.
Mas que nada, senhores! Que vontade prpria vai existir quando chegarmos s
tabelas e aritmtica, quando s houver dois e dois so quatro? Dois mais dois sero
sempre quatro, mesmo sem a minha vontade. Ser que vontade prpria desse tipo pode
existir?
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9
Senhores, evidentemente estou brincando, e eu prprio sei que minhas
brincadeiras no so muito felizes; entretanto, nem tudo deve ser interpretado como
brincadeira. Talvez eu graceje rangendo os dentes. Tenho, senhores, algumas questes
que me atormentam; resolvam-nas para mim. Por exemplo, os senhores querem fazer
com que o homem desaprenda hbitos antigos e desejam corrigir sua vontade, de acordo
com as exigncias da cincia e do bom senso. Mas como os senhores sabem que no s
possvel como tambm necessrio mudar assim o homem? De onde os senhores
tiraram essa concluso de que to necessrio corrigir a vontade humana? Em suma,
por que os senhores sabem que tal correo ser benfica ao homem? E, se para dizer
tudo, por que os senhores tm tanta certeza de que realmente sempre vantajoso para o
homem e constitui uma lei para toda a humanidade no contradizer as vantagens
verdadeiras, normais, aquelas garantidas por argumentos da razo e da aritmtica? Pois,
por enquanto, isso apenas uma suposio dos senhores. Admitamos que isso seja uma
lei da lgica, mas possvel que no seja absolutamente uma lei da humanidade. Os
senhores pensam, talvez, que estou louco? Permitam-me explicar-me. Admito: o homem
, acima de tudo, um animal que constri, condenado a buscar conscientemente um
objetivo e exercer a arte da engenharia, ou seja, a abrir caminho para si mesmo
incessante e eternamente, no importando aonde esse caminho o leve. Mas eis que, vez
por outra, ele tem vontade de se desviar para um lado, talvez precisamente porque ele
esteja condenado a abrir esse caminho, e tambm talvez porque, por mais idiota que
geralmente seja o homem direto, de ao, s vezes ele pensa que aquele caminho, na
realidade, quase sempre leva no importa aonde, o mais importante no para onde ele
leva, e sim que ele continue a levar, a fim de que a criana bem-comportada, fazendo
pouco caso da arte da engenharia, no se entregue ociosidade destrutiva, que, como
sabido, a me de todos os vcios. O homem gosta de criar e de abrir caminhos, isto
indiscutvel. Mas por que ele tambm ama com paixo a destruio e o caos? Digam-me,
por favor! Entretanto, eu mesmo quero dizer duas palavras parte sobre isso. No
poderia ser, talvez, que ele ame tanto a destruio e o caos (bem, indiscutvel que ele
-
s vezes gosta muito, no h dvida) porque ele mesmo, instintivamente, teme atingir o
objetivo e concluir o edifcio que estava construindo? Como os senhores podem saber?
Talvez ele ame o edifcio somente de longe e no o ame de perto; talvez ele ame apenas
o ato de constru-lo, e no viver nele, abandonando-o depois aos animaux domestiques,
como formigas, carneiros, etc. Vejam como as formigas tm um gosto completamente
diferente. Elas tm edifcios extraordinrios, indestrutveis para os sculos: os
formigueiros.
As venerveis formigas comearam com um formigueiro e terminaro tambm,
provavelmente, com um formigueiro, o que muito honra sua constncia e sua natureza
positiva. Mas o homem um ser inconstante e pouco honesto e, talvez, semelhana do
jogador de xadrez, goste apenas do processo de procurar atingir um objetivo, e no do
objetivo em si. E quem sabe? No se pode garantir, mas talvez todo o objetivo a que o
homem se dirige na Terra se resuma a esse processo constante de buscar conquistar ou,
em outras palavras, prpria vida, e no ao objetivo exatamente, o qual, evidentemente,
no deve passar de dois e dois so quatro, ou seja, uma frmula, e dois e dois so quatro
j no vida, senhores, mas o comeo da morte. Pelo menos, o homem sempre teve um
certo temor desse dois e dois so quatro, e eu at agora tenho. Suponhamos que o
homem no faa outra coisa alm de procurar esse dois e dois so quatro, atravessando
oceanos, sacrificando a vida nessa busca, mas sou capaz de jurar que ele tem medo de
encontr-lo realmente. Porque ele sente que, assim que o encontrar, no haver mais
nada para procurar. Os trabalhadores, ao trmino do trabalho, pelo menos recebem seu
dinheiro e podem ir para o botequim e depois podem acabar na delegacia e tm, assim,
ocupao para a semana. Mas o homem para onde ir? Pelo menos, sempre se nota que
ele fica um pouco sem jeito quando consegue atingir algum desses objetivos. Ele ama o
processo de conseguir, mas atingir mesmo, nem tanto, e isso, claro est, terrivelmente
engraado. Em uma palavra, o homem constitudo de modo cmico; em tudo isso, pelo
visto, h um jogo de palavras. Mas dois e dois so quatro , de qualquer modo, uma coisa
extremamente insuportvel. Dois e dois so quatro, na minha opinio, pura insolncia.
Dois e dois so quatro olha para voc com ar petulante, fica no meio do seu caminho com
as mos na cintura e cospe pro lado. Concordo que dois e dois so quatro uma coisa
excelente; porm, se para elogiar tudo, ento dois e dois so cinco s vezes tambm
uma coisinha bem encantadora.
E por que os senhores esto assim to firme e solenemente convencidos de que
apenas o que normal e positivo, ou seja, o bem-estar, vantajoso para o homem? A
razo no estar cometendo um erro quanto s vantagens? Quem sabe o homem ame
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no apenas o bem-estar? Quem sabe ele ame igualmente o sofrimento? Quem sabe o
sofrimento para ele to vantajoso quanto o bem-estar? O homem, s vezes, ama o
sofrimento de maneira terrvel, apaixonada; isso um fato. Para isso no h necessidade
de consultar a histria universal. Perguntem a si mesmos, se que os senhores so
homens e viveram nem que seja um pouco. Quanto minha opinio pessoal, penso que
amar apenas o bem-estar , de certo modo, at indecente. Seja isso bom ou no, o fato
que, s vezes, quebrar alguma coisa tambm muito agradvel. No estou propriamente
defendendo o sofrimento e nem o bem-estar. Estou defendendo... o meu capricho, e que
ele me seja garantido, quando necessrio. O sofrimento no admitido, por exemplo, nos
vaudeviles, sei disso. No palcio de cristal, ele at impensvel: o sofrimento dvida,
negao e que palcio de cristal seria esse, do qual possvel duvidar? Entretanto,
estou convencido de que o homem nunca renunciar ao sofrimento verdadeiro, isto ,
destruio e ao caos. O sofrimento a nica causa da conscincia. E, embora eu tenha
declarado no incio que, na minha opinio, a conscincia a maior infelicidade para o
homem, eu sei que o homem ama a conscincia e no a trocar por satisfao alguma. A
conscincia, por exemplo, infinitamente superior ao dois mais dois. Depois do dois mais
dois, evidentemente no restar nada, no s para se fazer, como at mesmo para se
conhecer. A nica coisa que ento ser possvel ser trancar os cinco sentidos e
mergulhar na contemplao. Com a conscincia chega-se ao mesmo resultado, ou seja,
tambm no haver nada para fazer, mas pelo menos ser possvel surrar a si mesmo de
vez em quando, e isso anima um pouco, apesar dos pesares. Embora seja uma coisa
retrgrada, ainda melhor do que nada.
10
Os senhores acreditam no edifcio de cristal, para sempre indestrutvel, ou seja,
acreditam num edifcio ao qual ningum poder mostrar a lngua mesmo s escondidas,
nem fazer-lhe uma figa com a mo no bolso. Bom, eu tenho medo desse edifcio, talvez
porque ele seja de cristal e indestrutvel atravs dos sculos e porque no ser possvel
mostrar-lhe a lngua nem s escondidas.
-
Vejam os senhores: se em vez de um palcio houver um galinheiro, e se comear a
chover, talvez eu suba no galinheiro para no me molhar, mas nem assim vou achar que o
galinheiro um palcio, s por gratido por ele ter-me protegido da chuva. Os senhores
esto rindo e dizendo que num caso como esse tanto faz um palcio como um galinheiro.
Sim, respondo eu, se o nico objetivo de viver fosse no se molhar.
Mas o que fazer se meti na minha cabea que vivo no somente para isso e que,
se vou viver, quero que seja num palcio? Isso o meu desejo, a minha vontade. Os
senhores s a arrancaro de mim quando tiverem modificado os meus desejos. Bem,
faam a transformao, seduzam-me com outra coisa, dem-me outro ideal. Mas, por ora,
no confundirei o galinheiro com um palcio. Admito at que o palcio de cristal seja uma
quimera, que ele no esteja previsto pelas leis da natureza e que eu o inventei apenas
devido minha prpria burrice e a alguns hbitos antigos, irracionais, prprios da nossa
gerao. Mas no me importa se ele no est previsto. No d na mesma se ele existe
nos meus desejos, ou melhor, existe enquanto existem meus desejos? Os senhores
talvez estejam rindo novamente? Riam vontade; aceito qualquer caoada. Mesmo
assim, no direi que estou saciado se tenho fome; mesmo assim, sei que no me
contentarei com um meio-termo, com um zero peridico constante, unicamente porque ele
existe em decorrncia das leis da natureza e existe realmente. No aceitarei como triunfo
de meus desejos um grande edifcio com apartamentos para moradores pobres com
contrato por mil anos e, para qualquer eventualidade, com a placa do dentista Wagenheim
na entrada. Destruam meus desejos, apaguem meus ideais, mostrem-me alguma coisa
melhor, e serei seu seguidor. Talvez os senhores digam que no vale a pena meter-se
comigo; nesse caso, posso responder-lhes da mesma forma. Estamos argumentando
seriamente, mas, se no quiserem conceder-me sua ateno, no hei de me humilhar.
Tenho meu subsolo.
Por enquanto ainda estou vivo e tenho desejos e que minha mo seque se eu
colocar um tijolinho que seja nesse edifcio![18] No dem ateno ao fato de que h pouco renunciei ao palcio de cristal unicamente porque no ser possvel mostrar-lhe a
lngua. E de maneira nenhuma eu disse isso porque goste de mostrar a minha lngua.
Talvez eu tenha ficado irritado somente porque, dentre todos os seus edifcios, at agora
no h nenhum ao qual no se possa no mostr-la. Pelo contrrio, por pura gratido eu
deixaria que me cortassem a lngua, se as coisas se arranjassem de tal maneira que eu
mesmo no tivesse mais vontade de mostr-la. No tenho nada a ver se isso no
possvel e preciso contentar-se com os apartamentos. Mas por que fui formado com tais
desejos? Ser possvel que tenha sido somente para concluir que toda a minha
-
conformao no passa de uma brincadeira de mau gosto? Ser possvel que todo o
objetivo no passe disso? No acredito.
E, ademais, saibam de uma coisa: estou convencido de que preciso manter
esses tipos do subsolo rdea curta. Embora eles possam passar quarenta anos calados
no subsolo, se conseguem sair para a claridade, ficam falando, falando, falando...
11
Concluso final, senhores: melhor no fazer nada! melhor a inrcia consciente!
Pois, ento, viva o subsolo! Apesar de eu ter dito que invejo o homem normal at a minha
ltima gota de fel, nas condies em que o vejo, no quero ser ele. (Embora no pare de
invej-lo; no, no, o subsolo, em todo caso, mais vantajoso!) Ao menos, l possvel...
Ah! Estou mentindo agora tambm! Porque eu mesmo sei, como dois mais dois, que o
melhor no o subsolo, mas outra coisa diferente, completamente diferente, pela qual eu
anseio, mas que jamais encontrarei! Que v para o diabo o subsolo!
Seria melhor at mesmo o seguinte: que eu mesmo acreditasse, ao menos um
pouquinho, no que acabo de escrever. Juro aos senhores que no acredito em uma
palavra sequer de tudo o que rabisquei at aqui! Ou melhor, eu acredito, talvez, mas, ao
mesmo tempo, no sei por que, sinto e desconfio que estou mentindo desbragadamente.
Ento, por que o senhor escreveu tudo isso? dizem-me os senhores.
E se eu os deixasse presos por quarenta anos, sem nada para fazer, e, passado
esse tempo, eu fosse visit-los no seu subsolo para verificar o ponto a que chegaram?
admissvel deixar um homem sozinho e sem ocupao durante quarenta anos?
Mas isso no tambm vergonhoso, no humilhante?! talvez os senhores me
digam, balanando a cabea com desprezo. O senhor tem sede de viver e ao mesmo
tempo tenta resolver problemas vitais com uma barafunda lgica. E como so
impertinentes e insolentes seus disparates e, ao mesmo tempo, como o senhor tem
medo! O senhor diz absurdos e fica contente com eles; diz coisas insolentes, mas est o
tempo todo com medo por causa delas e pede desculpas. O senhor afirma no ter medo
de nada e, ao mesmo tempo, busca nossa aprovao. O senhor afirma que range os
-
dentes e, ao mesmo tempo, fica fazendo graa para nos divertir. O senhor sabe que seus
gracejos no so nada espirituosos, mas, ao que parece, est muito satisfeito com a sua
qualidade literria. Talvez o senhor tenha sofrido realmente algumas vezes, mas o senhor
no respeita nem um pouco o prprio sofrimento. H alguma verdade no que diz, mas o
senhor no tem pudor; pela vaidade mais mesquinha, o senhor fica exibindo sua verdade,
no pelourinho, na feira... O senhor quer realmente dizer algo, mas, por medo, esconde
sua ltima palavra, porque no tem coragem para proferi-la, e o que possui apenas uma
insolncia covarde. O senhor se vangloria de ter conscincia, mas s o que faz vacilar,
porque, embora sua inteligncia funcione, seu corao est obscurecido pela depravao,
e, sem um corao puro, impossvel uma conscincia completa e justa. E como o
senhor importuno, insistente e afetado! Mentira, mentira, mentira!
Claro est que essas palavras dos senhores fui eu mesmo que acabei de inventar.
Elas tambm vieram do subsolo. Durante quarenta anos seguidos fiquei escutando pela
fresta as palavras que os senhores diziam. Eu mesmo as inventei, pois somente isso era
possvel inventar. natural que eu as tenha aprendido de cor e que elas tenham adquirido
forma literria...
Mas, ser possvel, ser possvel que os senhores sejam to crdulos e imaginem
que eu v imprimir tudo isso e ainda lhes dar para ler? E eis ainda uma questo que
preciso resolver: para que, na verdade, eu os chamo de senhores, para que dirijo-me
aos senhores, como se de fato estivesse dirigindo-me a leitores? Confisses, como as
que tenho a inteno de comear a narrar, no se publicam nem se do a outros para que
leiam. Eu, pelo menos, no sou uma pessoa to segura e nem acho que isso seja
necessrio. Mas vejam os senhores: veio-me cabea uma fantasia e, custe o que
custar, desejo realiz-la. Vou dizer-lhes do que se trata.
Entre as recordaes de cada pessoa, h coisas que ela no conta para qualquer
um, somente para os amigos. H tambm aquelas que ela no conta nem para os
amigos, somente para si mesma, e isso secretamente. Mas, finalmente, h tambm
aquelas que o indivduo tem medo de revelar at para si mesmo, e um homem respeitvel
tem tais coisas acumuladas em grande quantidade. E pode ser at mesmo assim: quanto
mais respeitvel ele , mais coisas desse tipo ele tem acumuladas. Eu, pelo menos, s
recentemente tomei coragem para recordar algumas das minhas aventuras passadas, as
quais at agora tinha evitado com uma certa inquietao. E agora, quando no s
recordei, como at me decidi a escrev-las, agora exatamente quero tirar a prova:
possvel algum ser inteiramente sincero consigo mesmo e no temer toda a verdade? A
propsito: Heine[19] afirma que quase impossvel existirem autobiografias sinceras,
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porque na certa o ser humano mentir, falando de si mesmo. Na opinio dele, por
exemplo, Rousseau sem dvida mentiu sobre si mesmo em suas Confisses e fez isso
at deliberadamente, por vaidade. Estou convencido de que Heine est certo; entendo
perfeitamente como, s vezes, algum pode confessar uma srie de crimes por pura
vaidade e percebo at muito bem de que tipo pode ser essa vaidade. Mas Heine
comentava sobre uma pessoa que fez uma confisso pblica. No meu caso, escrevo s
para mim, e declaro de uma vez por todas que, se escrevo como se me dirigisse a
leitores, unicamente por exibicionismo, e porque desse modo me mais fcil escrever.
Isso apenas forma, uma forma vazia, eu nunca terei leitores. J havia declarado isso...
No quero que nada me cerceie na redao de minhas notas. No vou estabelecer
ordem nem sistema. Escreverei tudo o que me vier memria. Mas, por exemplo, algum
poderia implicar com o que eu disse e me perguntar: se o senhor realmente no conta
com leitores, ento por que est agora fazendo tratos consigo mesmo e, ainda por cima,
por escrito, dizendo que no vai introduzir nenhuma ordem ou sistema, que vai escrever
aquilo de que se lembrar, etc.? Por que est dando explicaes? Por que est se
desculpando?
Esperem, j vou responder.
H, neste caso, toda uma psicologia. Talvez, inclusive, eu seja simplesmente
covarde. Pode ser tambm que eu imagine de propsito um pblico na minha frente para
me comportar mais decentemente enquanto escrevo. Pode haver umas mil razes.
Mas eis ainda uma questo: para que e por que eu, de fato, desejo escrever? Se
no para um pblico, ento no seria possvel guardar tudo na memria, sem pr no
papel?
Certamente, senhores. Mas no papel ficar, de certo modo, mais solene. O papel
inspira respeito, serei mais exigente comigo mesmo, o estilo lucrar. Alm disso,
escrevendo, talvez eu sinta de fato alvio. Neste momento, por exemplo, uma recordao
antiqssima me oprime. Ela me veio memria com nitidez h alguns dias e desde ento
no me larga, como uma melodia aborrecida que no sai da cabea. Entretanto,
necessrio livrar-me dela. Tenho centenas de recordaes desse tipo, mas de vez em
quando alguma se destaca das outras e comea a me afligir. Por alguma razo, creio que,
escrevendo-a, conseguirei livrar-me dela. Por que no tentar?
Finalmente: sinto-me entediado, pois fico o tempo todo sem fazer nada. O ato de
anotar , de certo modo, um trabalho. Dizem que o homem se torna bom e honesto com o
trabalho. Bom, pelo menos, eis a uma chance.
Agora est caindo uma neve quase molhada, amarela, turva. Ontem caiu tambm,
-
nos dias anteriores tambm. Creio que foi por causa da neve molhada que me lembrei da
anedota que agora no quer desgrudar-se de mim. Ento, que isso se transforme numa
novela sobre a neve molhada.
[1] . Tanto o autor das Notas como elas prprias so, evidentemente, fictcios. Entretanto, pessoas como o autor destas Notas no s podem como devem existir na nossa
sociedade, se levarmos em conta as circunstncias em que ela de modo geral se formou.
Meu propsito foi trazer perante o pblico, com mais destaque que o habitual, um dos
personagens tpicos