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  • Notas do Subsolo Fidor Dostoivski

    Ttulo original: Zapski iz pdpolja Traduo:

    Maria Aparecida Botelho Pereira Soares

    SINOPSE:

    Escrito na cabeceira de morte de sua primeira mulher, numa situao de aguda

    necessidade financeira, Memrias do subsolo condensa um dos momentos mais

    importantes da literatura ocidental, reunindo vrios temas que reaparecero mais tarde

    nos ltimos grandes romances do escritor russo. Aqui ressoa a voz do homem do

    subsolo, o personagem-narrador que, fora de paradoxos, investe ferozmente contra

    tudo e contra todos - contra a cincia e contra a superstio, contra o progresso e contra

    o atraso, contra a razo e a desrazo; mas investe, acima de tudo, contra o solo da

    prpria conscincia, criando uma narrativa mpar, de altssima voltagem potica, que se

    afirma e se nega a si mesma sucessivamente. No por acaso que muitos acabaram

    vendo neste livro uma prefigurao das idias de Freud acerca do inconsciente.

  • Nota do tradutor

    Ao iniciar a traduo das Notas do subsolo, de Dostoivski, deparei-me com o

    problema da adequao estilstica. Essa obra bastante conhecida e dela j h entre ns

    e em Portugal vrias tradues. No decorrer do trabalho, fui descobrindo que o enfoque

    da maioria das tradues de que tive conhecimento no estava de acordo com alguns

    detalhes caractersticos e fundamentais dessa obra. Notei, por exemplo, que as tradues

    em estilo grandioso, pomposo, via de regra atenuam a veia cmica de Dostoivski, que

    no escreveu um texto sisudo, para ser lido como uma obra religiosa, um texto sagrado,

    algo para ser reverenciado e respeitado, e sim um texto com humor, provocativo e

    desafiador, para gerar polmica e controvrsias. Fui percebendo, tambm, a funo da

    prpria linguagem na construo desse texto. Trata-se de uma novela escrita do princpio

    ao fim na primeira pessoa do singular, pretensamente pelo protagonista-narrador. No se

    conhece muita coisa desse personagem, a no ser o que ele mesmo diz a respeito de si

    prprio. Nem ao menos o seu nome nos revelado. Deduz-se que ele era oriundo da

    nobreza empobrecida ou da nascente classe mdia, no-nobre.

    A obra, estruturalmente, constituda de duas partes com funes bem diferentes.

    Na primeira parte, Dostoivski utiliza a novela como um espao em que discute as idias

    correntes no seu tempo a respeito de poltica, filosofia, sociedade, movimentos sociais,

    polemizando com as diversas tendncias que fervilhavam na Rssia na segunda metade

    do sculo XIX e com as muitas idias em voga que eram importadas da Europa Ocidental

    e a que ele, como eslavfilo, se opunha. Nessa primeira parte, ainda, ele desenha as

    caractersticas desse protagonista-narrador, atravs de suas reminiscncias e auto-

    anlises.

    Na segunda parte, ele narra episdios da vida do seu heri, ou anti-heri, ou

    paradoxista, como ele mesmo se qualifica no final do livro. A ele mostra na prtica aquilo

    que o narrador diz de si prprio na primeira parte. Com relao linguagem, existe uma

    diferena marcante entre os estilos dessas duas partes, mas um aspecto que comum s

    duas a larga utilizao de elementos dos registros informais (linguagem popular,

    informal falada, palavras depreciativas, alm de diminutivos, aumentativos, repeties,

    hesitaes, utilizao de frases feitas e ditados populares, marcadores discursivos e

    conservacionais), pois o narrador escreve todo o livro na primeira pessoa e conversa com

  • uns certos senhores, que ora podem ser leitores comuns, ora parecem ser seus

    adversrios nos campos poltico e social.

    Porm, no se pode caracterizar a linguagem empregada como sendo a realizao

    de um texto integralmente num desses registros, ou variantes. A variante predominante

    a formal culta na primeira parte e a formal culta mesclada com coloquial culto

    (especialmente nos dilogos) na segunda parte, como era comum na prosa do sculo XIX

    na Rssia (e tambm no Brasil).

    Na primeira parte, h uma forte influncia do estilo e sobretudo do lxico da prosa

    publicstica, um gnero muito cultivado na Rssia no sculo XIX. A atividade editorial era

    intensa nessa poca, havendo grande quantidade de jornais e revistas de diferentes

    tendncias e matizes polticos. Fidor Dostoivski e seu irmo Mikhail foram eles prprios

    donos de duas revistas, Epokha (poca) e Vrmia (Tempo).

    O personagem-narrador polemiza com inmeras personalidades do seu sculo,

    russos e estrangeiros, como Kant, Darwin, os socialistas utpicos franceses e russos,

    escritores e intelectuais russos do campo revolucionrio democrtico, entre outros. Seu

    tom agressivo, hostil e provocativo, o que atestado por um grande nmero de palavras

    injuriosas e de conotao negativa, utilizadas contra seus adversrios ideolgicos e

    tambm contra si mesmo, pois ele quer provar que possui todos aqueles defeitos como

    uma conseqncia natural de ter crescido naquela sociedade.

    Existem ainda elementos nessa primeira parte que caracterizam o personagem do

    ponto de vista de sua mente bastante perturbada. Para acentuar tal caracterstica, muitas

    frases so obscuras, repetitivas, sobrecarregadas por uma srie de marcadores de

    dilogo e textuais, advrbios e partculas modais que se enfileiram de uma forma que em

    portugus ns estamos acostumados a evitar, de acordo com nossas regras de boa

    redao. Em alguns casos optei por no eliminar simplesmente alguns desses advrbios,

    palavras modais e marcadores e conservei tanto quanto possvel a inteno do autor,

    mesmo que em portugus soe um pouco estranho ou pesado.

    Na segunda parte, o estilo predominante j outro. Aqui, na maior parte, j no se

    trata de um duelo verbal com interlocutores imaginrios, mas sim de narrativas de trs

    episdios da vida do narrador. Com exceo do incio, no tem muito lugar o estilo

    jornalstico e aparece a tcnica narrativa do prprio Dostoivski, seu talento como escritor.

    O estilo elegante, mas simples, e esto presentes em grande quantidade elementos da

    linguagem informal e coloquial, o que eu procurei recriar no portugus, sem me afastar da

    norma culta, como era comum no sculo XIX.

    interessante o que o prprio Dostoivski diz a respeito de sua novela. Em carta

  • ao irmo, de 20 de maro de 1864, ele escreveu: Dei incio novela [...]. bem mais

    difcil de escrever do que eu pensava. Contudo absolutamente necessrio que ela saia

    boa, eu preciso pessoalmente disso. Pelo seu tom ela demasiadamente estranha, e o

    tom rspido e hostil: pode ser que no agrade; conseqentemente, necessrio que a

    poesia suavize e suporte tudo. Essas palavras de Dostoivski explicam a particularidade

    da estrutura dessa novela e o contraste entre a linguagem da primeira e da segunda

    partes.

    Maria Aparecida Botelho Pereira Soares

    Referncias:

    1. F. M. Dostoivski, Sobrnie Sotchinnii (Coletnea de obras), T. IV.

    Gossudrstvennoie Izdtelstvo Khudjestvennoi Literatry, Moskv, 1956 (com notas de I.

    Z. Srman).

    2. Sobrnie Sotchinnii v 15-ti tomakh I (Coletnea de obras em 15 volumes), T.4.

    L., Naka, 1989 (Com notas referentes ao volume 4 de A. V. Arkhpova, N. F. Budnova e

    Ie. I. Kiko).

  • Parte I

    O subsolo[1]

    1

    Sou um homem doente... Sou mau. No tenho atrativos. Acho que sofro do fgado.

    Alis, no entendo bulhufas da minha doena e no sei com certeza o que que me di.

    No me trato, nunca me tratei, embora respeite os mdicos e a medicina. Alm de tudo,

    sou supersticioso ao extremo; bem, o bastante para respeitar a medicina. (Tenho

    instruo suficiente para no ser supersticioso, mas sou.) No, senhores, se no quero

    me tratar de raiva. Isso os senhores provavelmente no compreendem. Que assim seja,

    mas eu compreendo. Certamente, no poderia explicar a quem exatamente eu atinjo,

    nesse caso, com a minha raiva; sei perfeitamente que, no me tratando, no posso

    prejudicar os mdicos; sei perfeitamente bem que, com isso, prejudico somente a mim e a

    mais ningum. Mesmo assim, se no me trato, de raiva. Se o fgado di, que doa ainda

    mais.

    Faz muito tempo que vivo assim uns vinte anos. Agora estou com quarenta.

    Antes eu trabalhava no servio pblico, mas agora no trabalho mais. Fui um funcionrio

    cruel. Era grosseiro e encontrava prazer nisso. J que no aceitava propinas, devia me

    recompensar ao menos dessa maneira. (Isso foi um gracejo infeliz, mas no vou apag-

    lo. Eu o escrevi pensando que ia sair algo muito espirituoso, mas agora, quando constatei

    que, de maneira infame, estava apenas querendo me vangloriar, de propsito no vou

    apagar.) Quando os solicitantes se aproximavam da minha mesa para pedir uma

    informao, eu rangia os dentes para eles e sentia um prazer infinito quando conseguia

    contrariar algum. Quase sempre conseguia. Na maior parte, era gente tmida, como so

    de hbito os solicitantes. Mas, entre os almofadinhas, particularmente eu no podia

    suportar um certo oficial. Ele no queria de modo algum submeter-se e fazia tinir seu

    sabre de maneira asquerosa. Por causa desse sabre, ns estivemos em guerra durante

    um ano e meio. Ganhei, finalmente. Ele parou com os tinidos. Alis, isso se passou ainda

    na minha mocidade. Mas sabem os senhores em que consistia o ponto principal da minha

  • raiva? A questo toda, a minha maior canalhice, se resumia a que a todo momento, at no

    instante do dio mais intenso, eu percebia, envergonhado, que no s no era mau, como

    no era nem mesmo uma pessoa enfurecida, apenas assustava pardais sem nenhum

    propsito e com isso me divertia. Minha boca espumava, mas se me trouxessem um

    brinquedinho ou um chazinho com acar, na certa eu me acalmaria. Ficaria at

    enternecido, embora depois, provavelmente, rangeria os dentes para mim mesmo e, de

    vergonha, passaria alguns meses com insnia. Esse o meu jeito de ser.

    Eu menti antes, quando disse que era um funcionrio cruel. Menti de raiva. Apenas

    me divertia com os solicitantes e o oficial, mas no fundo nunca me tornei mau.

    Constantemente observava em mim uma enorme quantidade de elementos contrrios a

    isso. Sentia-os fervilhar dentro de mim. Sabia que em toda a minha vida eles fervilharam

    dentro de mim e ansiavam por sair, mas eu no deixava. No deixava, de propsito no

    os soltava. Eles me torturavam ao ponto de me dar vergonha; at convulses eu tinha por

    causa deles e finalmente fiquei farto. Como fiquei farto! No lhes parece que agora

    estou me arrependendo de alguma coisa diante dos senhores, que estou a lhes pedir

    perdo? Estou certo de que parece... Alis, asseguro-lhes que para mim tanto faz, se isso

    assim lhes parece...

    No apenas no consegui tornar-me cruel, como tambm no consegui me tornar

    nada: nem mau, nem bom, nem canalha, nem homem honrado, nem heri, nem inseto.

    Agora vivo no meu canto, provocando a mim mesmo com a desculpa rancorosa e intil de

    que o homem inteligente no pode seriamente se tornar nada, apenas o tolo o faz. Sim,

    senhores, o homem do sculo XIX que possui inteligncia tem obrigao moral de ser

    uma pessoa sem carter; j um homem com carter, um homem de ao, de

    preferncia um ser limitado. Essa a minha convico aos quarenta anos. Tenho agora

    quarenta. E quarenta anos toda uma vida, a velhice mais avanada. Depois dos

    quarenta indecoroso viver, vulgar, imoral! Quem vive alm dos quarenta? Respondam-

    me sincera e honestamente. Pois vou lhes dizer quem vive: os tolos e os canalhas. Direi

    isso na cara de todos os ancios, dos ancios respeitveis, perfumados e de cabelos

    brancos! Direi isso na cara de todo mundo! Tenho direito de dizer isso porque eu mesmo

    vou viver at os sessenta. At os setenta! At os oitenta! Esperem! Deixem-me tomar

    flego!

    Acaso os senhores esto pensando que quero faz-los rir? Enganaram-se tambm

    quanto a isso. No sou absolutamente esse sujeito brincalho que os senhores imaginam,

    ou que talvez os senhores imaginem. Alis, se os senhores, irritados com toda esta

    tagarelice (e j senti que esto irritados), inventarem de me perguntar: quem o senhor

  • exatamente? eu lhes responderei: sou um assessor colegial[2]. Eu tinha esse emprego para ter alguma coisa para comer (mas somente para isso) e quando, no ano passado,

    um dos meus parentes distantes deixou-me seis mil rublos no seu testamento,

    imediatamente me aposentei e mudei para este canto. Meu quarto detestvel, nojento e

    fica quase fora da cidade. J vivia aqui antes, mas agora me instalei definitivamente.

    Minha criada uma mulher da aldeia, velha, raivosa devido ignorncia e, alm de tudo,

    tem um fedor insuportvel. Dizem que o clima de Petersburgo est se tornando prejudicial

    para mim e que, com os recursos insignificantes de que disponho, muito caro viver aqui.

    Sei de tudo isso melhor do que esses conselheiros e protetores experientes e sbios. Mas

    permaneo em Petersburgo; no vou sair de Petersburgo! No vou sair porque... Ora!

    No faz diferena nenhuma se vou sair ou no.

    Mas sobre o que um homem de bem pode falar com mais satisfao?

    Resposta: sobre si mesmo.

    Ento, vou falar sobre mim.

    2

    Agora desejo lhes contar, queiram ou no ouvir, por que no consegui me tornar

    nem ao menos um inseto. Afirmo-lhes solenemente que muitas vezes quis tornar-me um

    inseto. Mas nem isso mereci. Asseguro-lhes que ter uma conscincia exagerada uma

    doena, verdadeira e completa doena. Para o dia-a-dia do ser humano seria mais do que

    suficiente a conscincia do homem comum, ou seja, a metade ou um quarto menor do

    que a poro que toca a cada pessoa evoluda do nosso infeliz sculo XIX que, ainda por

    cima, tem a infelicidade excepcional de morar em Petersburgo, a cidade mais abstrata e

    premeditada de todo o globo terrestre. (H cidades premeditadas e no-premeditadas.)

    Seria inteiramente suficiente, por exemplo, uma conscincia igual dos assim chamados

    indivduos e homens de ao diretos. Aposto que os senhores esto pensando que

    estou escrevendo tudo isso por gabolice, para fazer graa s custas dos homens de ao,

    e esto pensando ainda que, num gracejo de pssimo gosto, fao tinir meu sabre, como o

    meu oficial. Mas, senhores, quem pode se gabar de suas prprias doenas e ainda us-

  • las para fazer pilhria?

    Alis, que estou dizendo? isso que todos fazem: vangloriar-se de suas doenas,

    e fao-o, talvez, mais do que todo mundo. No vamos discutir; minha objeo absurda.

    Apesar de tudo, estou firmemente convencido de que no s a conscincia em alto grau

    uma doena, como tambm o qualquer conscincia. Insisto nisso. Deixemos isso de

    lado por um minuto. Respondam-me o seguinte: por que motivo, nos exatos minutos em

    que eu era mais capaz de perceber todas as sutilezas de tudo o que belo e sublime[3], como se costumava dizer aqui numa certa poca, como que propositalmente eu no as

    percebia e cometia atos to indecorosos, atos tais que... bem, resumindo, atos que talvez

    todos pratiquem, mas que, como que de propsito, aconteciam comigo exatamente no

    momento em que eu mais tinha conscincia de que no se deve absolutamente pratic-

    los? Quanto mais conscincia eu tinha do bem e de todo esse belo e sublime, mais

    afundava no meu lodo e mais capaz me tornava de atolar-me nele completamente. Mas a

    caracterstica mais importante era que parecia que no era por acaso que isso acontecia

    comigo, que era para ser assim mesmo. Como se isso fosse o meu estado mais normal e

    de maneira nenhuma uma doena ou avaria, o que, finalmente, tirou-me a vontade de

    lutar contra esse defeito. O resultado disso foi que por pouco no acreditei (ou talvez

    tenha mesmo acreditado) que esse seria meu estado normal. E, no incio, bem no

    comecinho, quanto sofrimento passei nessa luta! No acreditava que o mesmo acontecia

    com as outras pessoas e por isso escondi isso comigo, como um segredo, durante toda a

    vida. Sentia vergonha ( at possvel que ainda sinta); chegava ao ponto de sentir uma

    satisfaozinha secreta, anormal, sordidazinha, ao voltar para o meu canto, numa

    daquelas noites repugnantes de Petersburgo, e insistentemente perceber que naquele dia

    novamente fizera uma canalhice, que novamente o que tinha sido feito no poderia ser

    desfeito. E l dentro, secretamente, me remoer, me retalhar e me sugar, at que a

    amargura se transformava, finalmente, numa doura infame e maldita e, finalmente, num

    deleite srio e decisivo! Sim, num deleite, num deleite! Insisto nisso. Foi por isso que

    toquei nesse assunto e ainda quero saber com certeza: outras pessoas costumam ter tais

    deleites? Explico-lhes: o deleite aqui derivava precisamente da conscincia

    excessivamente clara de minha humilhao; de que voc sente que j chegou ao

    derradeiro limite; que isso detestvel, mas tambm, que outra coisa impossvel; que

    voc j no tem sada, j no pode mudar. Mesmo se ainda restasse tempo e f para se

    transformar em algo diferente, provavelmente voc mesmo no iria querer se transformar;

    e, se quisesse, ainda assim no faria nada, porque talvez no houvesse no que se

    transformar. Mas o principal e o fim derradeiro que tudo isso transcorre de acordo com

  • as leis normais e bsicas da conscincia amplificada e pela inrcia derivada diretamente

    dessas leis e, conseqentemente, nesse caso no s no possvel transformar-se,

    como simplesmente no se pode fazer nada. Por exemplo, resulta o seguinte em

    conseqncia da conscincia amplificada: voc est certo em ser um patife, como se

    fosse consolo para um patife se ele mesmo j percebe que realmente um patife. Mas

    basta de... Ora, falei pelos cotovelos e o que expliquei? Como se explica o deleite nesse

    caso? Mas hei de explicar-me! Irei at o fim! Foi para isso que peguei a pena...

    Sou, por exemplo, uma pessoa com um amor-prprio exagerado. Sou desconfiado

    e ressentido, como um corcunda ou um ano, embora, verdade seja dita, houvesse

    momentos em que, se me dessem uma bofetada, eu talvez ficasse alegre at com isso.

    Estou falando srio: provavelmente eu conseguiria, a tambm, achar um certo tipo de

    prazer; sem dvida, o prazer do desespero, mas no desespero que acontecem os

    prazeres mais intensos, especialmente quando voc j percebe muito fortemente que sua

    situao no tem sada. E quando ocorre a bofetada, a ento voc fica esmagado pela

    percepo de que o trituraram at virar pasta. O mais importante que, por mais que se

    reflita a respeito, de qualquer maneira resulta que eu sempre sou o principal culpado de

    tudo e, o que mais lastimvel, sou culpado sem culpa e de acordo com as leis da

    natureza, por assim dizer. Sou culpado, em primeiro lugar, porque sou mais inteligente do

    que todos os que me rodeiam. (Sempre me considerei mais inteligente do que todos os

    que me rodeiam e, s vezes podem crer? at disso me envergonhava. Pelo menos,

    toda a vida eu andei olhando para o lado e nunca conseguia olhar diretamente nos olhos

    das pessoas.) Sou, finalmente, culpado porque, mesmo se houvesse em mim

    generosidade, meus tormentos seriam maiores por perceber toda a sua inutilidade. Pois

    eu provavelmente no conseguiria usar minha generosidade para nada: nem para

    perdoar, porque o ofensor pode ter-me golpeado de acordo com as leis da natureza, e as

    leis da natureza no podem ser perdoadas; nem para esquecer, porque, mesmo que seja

    pelas leis da natureza, insultuoso do mesmo jeito. Finalmente, at se eu no quisesse

    ser de maneira alguma generoso e, ao contrrio, desejasse me vingar do meu ofensor, eu

    no conseguiria me vingar de nada e de ningum, porque provavelmente no me decidiria

    a fazer o que quer que fosse, mesmo se pudesse. E por que no me decidiria? Sobre isso

    quero dizer duas palavras em separado.

  • 3

    Como que procedem as pessoas que sabem se vingar e, de maneira geral, fazer

    prevalecer seus direitos? Quando elas so tomadas, digamos, pelo sentimento de

    vingana, no permanece mais nada no seu ser alm desse sentimento. Um cavalheiro

    desse tipo lana-se diretamente ao seu objetivo, como um touro enfurecido, abaixando os

    chifres, e talvez s um muro possa det-lo. (Alis, diante de um muro, tais cavalheiros, ou

    seja, os indivduos e homens de ao diretos, se do por vencidos e nisso so sinceros.

    Para eles, o muro no significa desvio, como, por exemplo, para ns, seres pensantes e,

    conseqentemente, inertes; no um pretexto para voltar atrs, pretexto em que pessoas

    como ns geralmente no acreditam, mas que sempre ficam muito felizes quando o

    encontram. No, com toda sinceridade que eles se do por vencidos. O muro possui

    para eles algo que acalma, que soluciona a situao do ponto de vista moral, e

    definitivo; talvez at possua algo mstico... Mas, sobre o muro, falarei mais tarde.) Bem,

    senhores, esse homem direto que eu considero o homem normal, verdadeiro, do jeito

    que sua terna me a natureza gostaria de v-lo quando carinhosamente o criou na

    Terra. Invejo tal homem at a minha ltima gota de fel. Ele um imbecil,

    indiscutivelmente, mas pode ser que o homem normal deva ser mesmo imbecil, quem

    sabe? Pode ser que isso seja at muito bonito. E estou tanto mais convencido dessa, por

    assim dizer, suposio, que se, por exemplo, tomarmos a anttese do homem normal, ou

    seja, um homem de conscincia amplificada, que naturalmente no surgiu no seio da

    natureza, mas numa proveta (isso j quase misticismo, senhores, mas suspeito disso

    tambm), esse homem de proveta s vezes vai dobrar-se tanto diante de sua anttese

    que, com toda a sua conscincia amplificada, honestamente vai se considerar um

    camundongo, e no um homem. Um camundongo de conscincia intensificada, que seja,

    mas de qualquer forma um camundongo; porm, temos a tambm um homem e,

    conseqentemente, tudo o mais. E o principal que ele mesmo que se considera um

    camundongo, ningum lhe pede que o faa; esse um ponto importante. Vamos dar uma

    olhada nesse camundongo em ao. Suponhamos, por exemplo, que ele se sinta tambm

    ofendido (e quase sempre se sente) e que tambm deseje se vingar. Vai acumular em si

    mais dio do que lhomme de la nature et de la verit[4]. A vontadezinha repugnante, vil,

    de causar ao ofensor um mal equivalente ofensa recebida, talvez fique corroendo dentro

    dele mais do que no homme de la nature et de la verit, porque este, com sua estupidez

  • inata, acha que sua vingana simplesmente justia. J o camundongo, devido

    conscincia intensificada, no reconhece justia nesse caso. E chega, finalmente, coisa

    em si, ao prprio ato de vingana. O infeliz camundongo, alm da sujeira inicial, j

    conseguiu mergulhar em um monte de outras sujeiras na forma de perguntas e dvidas; a

    uma nica questo acrescentou tantas outras no respondidas que, independentemente

    de sua vontade, vai juntando-se ao seu redor uma gosma repugnante e fatal, uma lama

    ftida, formada por suas dvidas, preocupaes e, finalmente, de cusparadas que ele

    recebe dos homens de ao, postados solenemente em torno dele na qualidade de juzes

    e ditadores, e que, com suas possantes goelas, riem dele s gargalhadas. evidente que

    s lhe resta fazer um gesto de pouco caso com a patinha e desistir e, com um sorriso

    falso de desprezo, que no convence nem a ele prprio, esgueirar-se vergonhosamente

    para o seu buraquinho. L no seu subsolo abjeto, ftido, nosso camundongo, humilhado,

    abatido e ridicularizado, rapidamente mergulha num rancor frio, peonhento e,

    principalmente, perptuo. No decorrer de quarenta anos ele vai ficar lembrando a ofensa

    sofrida, at nos ltimos e mais vergonhosos detalhes, cada vez acrescentando por conta

    prpria pormenores ainda mais vergonhosos, caoando perversamente de si mesmo e

    provocando-se com a prpria fantasia. Ele mesmo se envergonhar da sua fantasia, mas,

    mesmo assim, de tudo se lembrar, passar tudo em revista, inventar um monte de

    histrias fantsticas sobre si mesmo, com a desculpa de que elas poderiam tambm ter

    acontecido, e no perdoar coisa alguma. Talvez d incio sua vingana, mas

    esporadicamente, com bobaginhas, escondido atrs do fogo, incgnito, sem acreditar

    nem no seu direito de vingar-se, nem no xito de sua vingana, e sabendo de antemo

    que, em todas as suas tentativas de vingar-se, ele mesmo vai sofrer cem vezes mais do

    que aquele que pretende atingir, e este provavelmente nem se coar. No seu leito de

    morte ir lembrar-se de tudo novamente, com os juros que se acumularam todo esse

    tempo e... Mas precisamente nesse frio e asqueroso estado de semidesespero e

    semicrena, nesse consciente e angustiado sepultamento em vida de si mesmo no

    subsolo durante quarenta anos, nessa falta de sada de sua situao, que ele mesmo se

    empenhara em criar e que , contudo, duvidosa, em todo esse veneno de desejos no

    satisfeitos que ele engoliu, em toda essa febre de vacilaes, de resolues tomadas para

    toda a vida e dos arrependimentos que sobrevm novamente um minuto depois a que

    se encerra a essncia daquele estranho deleite de que eu falava anteriormente. to sutil

    esse deleite, to impossvel s vezes de se perceber, que pessoas um pouquinho

    limitadas, ou at mesmo pessoas simplesmente com nervos fortes, no entendero nada

    dele. possvel que tambm no vo entender, os senhores acrescentaro por sua

  • conta, abrindo um sorriso, aqueles que nunca levaram uma bofetada e, desse modo,

    delicadamente insinuaro que na minha vida eu talvez tenha tido essa experincia e por

    isso que falo como conhecedor. Aposto que pensam assim. Mas tranqilizem-se,

    senhores, no recebi bofetadas, embora me seja totalmente indiferente o que os senhores

    pensem sobre isso. Eu mesmo, possivelmente, ainda me arrependo de ter distribudo

    poucas bofetadas na minha vida. Mas basta, no vou dizer mais nem uma palavra sobre

    esse assunto que tanto interessa aos senhores!

    Vou prosseguir, falando calmamente das pessoas com nervos fortes que no

    compreendem a tal sutileza dos deleites. Esses senhores, em alguns casos, por exemplo,

    embora berrem como touros a plenos pulmes, embora, admitamos, isso at lhes traga

    imensa honra, o fato que, como eu j disse, diante da impossibilidade eles

    imediatamente ficam resignados. A impossibilidade o mesmo que um muro de pedra?

    Mas que tipo de muro de pedra? Bem, evidentemente, so as leis da natureza, as

    concluses das cincias naturais, a matemtica. Se algum lhe prova, por exemplo, que

    voc descende do macaco, no adianta fazer caretas, aceite-o. Se lhe provam que, na

    realidade, uma gotinha de sua prpria gordura deve ser-lhe mais cara do que cem mil

    semelhantes seus, e que nesse resultado sero resolvidos finalmente todos os assim

    chamados deveres e virtudes, bem como os demais delrios e preconceitos, aceite

    tambm, no h o que se possa fazer, pois dois mais dois so quatro isso

    matemtica. Tente objetar!

    Perdo, senhores, ho de lhes gritar, impossvel rebelar-se: trata-se de dois e

    dois so quatro! A natureza no lhes pede licena, no se importa com seus desejos e

    nem se suas leis lhes agradam ou no. Os senhores devem aceit-la tal como e,

    conseqentemente, todos os seus resultados tambm. Um muro, portanto, mesmo um

    muro... etc. etc. meu Deus! Que tenho a ver com as leis da natureza e com a

    aritmtica, se essas leis e dois e dois so quatro, por alguma razo, no me agradam?

    Evidentemente, no quebrarei esse muro com a testa, se realmente no tiver foras para

    isso, mas nem assim vou resignar-me somente porque encontrei um muro e no tive

    foras para romp-lo.

    Como se tal muro de pedra fosse de fato um alvio e contivesse uma palavra que

    fosse para o mundo, unicamente por ele ser dois mais dois so quatro. , cmulo do

    absurdo! Muito melhor compreender tudo, perceber tudo, todas as impossibilidades e

    muros de pedra; no se resignar diante de nenhuma dessas impossibilidades e muros de

    pedra, se isso lhe repugna; atravs das mais inevitveis combinaes lgicas, chegar s

    concluses mais abominveis sobre o eterno tema de que at desse muro de pedra voc

  • de certa forma o prprio culpado, embora esteja perfeitamente claro e evidente que

    voc no culpado, e, em conseqncia disso, rangendo os dentes impotente e calado,

    ficar paralisado numa inrcia voluptuosa, vendo em seus devaneios que na realidade

    voc nem tem algum de quem possa ter raiva; que no se encontra o objeto e que talvez

    nunca seja encontrado, que aqui existe uma fraude, um embuste, uma trapaa, existe

    simplesmente algo intragvel no se sabe o que, no se sabe quem, mas que, apesar

    de todas essas incgnitas e embustes, doloroso para voc, e quanto mais

    desconhecido, mais doloroso !

    4

    Ha, ha, ha! Depois disso, o senhor sentir prazer at numa dor de dente!

    exclamaro rindo os senhores.

    E por que no? Existe mesmo prazer numa dor de dentes responderei. Um

    ms inteiro me doeram os dentes; sei o que isso. Nessa situao, lgico, a pessoa

    no se enfurece em silncio, e sim pe-se a gemer. Mas tais gemidos no so sinceros,

    so gemidos sarcsticos, e no sarcasmo que est a coisa toda. nesses gemidos que

    se expressa o prazer do sofredor; se ele no sentisse prazer com isso, no gemeria. Este

    um bom exemplo, senhores, vou desenvolv-lo. Nesses gemidos se expressa, em

    primeiro lugar, toda a inutilidade de sua dor, humilhante para a nossa conscincia; toda a

    legitimidade das leis da natureza, de que os senhores, certamente, podem fazer pouco

    caso, mas em conseqncia da qual os senhores sofrem, ao passo que ela no. Eles

    expressam a percepo de que impossvel encontrar para os senhores um inimigo, mas

    a dor est l; a percepo de que os senhores, apesar de todos os Wagenheim[5], so inteiramente escravos de seus dentes; de que, se algum quiser, seus dentes deixaro de

    doer; do contrrio, doero por mais trs meses. E, finalmente, se os senhores ainda no

    aceitaram e continuam a protestar, s lhes resta, para seu consolo, surrar-se ou bater

    mais forte com os punhos na sua parede, e rigorosamente mais nada. Pois bem, dessas

    ofensas sangrentas, dessas caoadas annimas, que se origina, por fim, um deleite que

    s vezes chega ao mais alto grau de voluptuosidade. Eu lhes peo, senhores, que,

  • quando tiverem oportunidade, ouam com ateno os gemidos do homem culto do sculo

    XIX sofrendo de dor de dente, l pelo segundo ou terceiro dia do seu sofrimento, quando

    ele j comea a gemer de maneira diferente de como gemia no primeiro dia, isto , no

    geme apenas porque lhe doem os dentes; ele no geme como um campons grosseiro

    qualquer, e sim como um homem que foi atingido pelo desenvolvimento e pela civilizao

    europia, um homem que renegou seu solo e as razes populares[6], como agora se diz. Seus gemidos tornam-se detestveis, grosseiramente raivosos, e continuam por vrios

    dias e noites. Mas ele mesmo sabe que os gemidos no tero utilidade alguma; sabe

    melhor do que ningum que em vo que ele tortura e irrita a si e aos demais; sabe que

    at a platia que ele quer impressionar e toda a sua famlia j sentem repulsa ao ouvi-lo

    gemer, no acreditam nem um pouquinho na sua sinceridade e esto convencidas de que

    ele poderia gemer de outra maneira, mais simples, sem tremer a voz e sem bancar o

    original, de que ele est fazendo palhaada de raiva, por pura maldade. Pois bem, a

    volpia est precisamente em todas essas tomadas de conscincia e nessas

    indignidades. Estou incomodando todos vocs, arrebentando seus coraes, no deixo

    ningum dormir. Pois ento no durmam, sintam tambm minuto a minuto que meus

    dentes esto doendo. J no sou mais para vocs o heri que antes quis parecer, sou

    simplesmente um homenzinho desprezvel, um chenapan[7]. Que seja! Estou muito

    contente porque vocs me entenderam. Vocs acham terrvel ouvir meus infames

    gemidos? Pois que seja terrvel; e agora, para vocs, vou emitir uns garganteios ainda

    mais terrveis... Ainda no entenderam, senhores? No; pelo visto, necessrio

    desenvolver-se e adquirir conscincia de maneira mais profunda e completa para

    compreender todos os meandros dessa volpia. Esto rindo? Fico feliz, senhores.

    Naturalmente, minhas piadas so de mau gosto, irregulares, incompreensveis e denotam

    minha falta de autoconfiana. Mas isso porque eu mesmo no me respeito. Por acaso

    um homem com conscincia pode ter algum respeito prprio?

  • 5

    Bom, mas ser possvel, ser possvel que um homem possa ter um mnimo de

    respeito prprio depois de ter tentado buscar prazer at mesmo no sentimento da prpria

    humilhao? No falo isso agora por causa de algum arrependimento meloso. Mesmo

    porque, em geral, eu no suportava dizer: Perdoe-me, paizinho, no vou mais fazer isso

    no porque no fosse capaz de dizer isso, mas, pelo contrrio, talvez mesmo porque eu

    fosse capaz at demais de faz-lo. Como se fosse de propsito, s vezes me metia em

    certas situaes nas quais nem de longe eu era culpado. No havia baixeza maior.

    Nessas ocasies eu me comovia, me arrependia, derramava lgrimas e, claro,

    enganava a mim mesmo, apesar de no estar fingindo nem um pouco. Era o corao que

    de certa maneira agia a de modo vil... Nesse caso, no se poderia culpar nem mesmo as

    leis da natureza, embora elas tenham toda a vida me ofendido, mais do que tudo. D asco

    recordar tudo isso, como era asqueroso tambm naquela poca. Pois aps no mais que

    um minuto eu costumava perceber com dio que tudo aquilo era mentira, uma mentira

    repulsiva e pomposa, todos aqueles arrependimentos, enternecimentos e promessas de

    regenerao. Os senhores perguntaro: para que eu me mutilava e me torturava dessa

    maneira? Resposta: porque era muito chato ficar sentado de braos cruzados, e ento

    entregava-me a essas extravagncias. a pura verdade. Observem-se melhor, senhores,

    e vero que assim. Eu fantasiava peripcias e criava uma vida para mim, ao menos

    para viver, de alguma forma. Quantas vezes eu ficava ofendido, sem nenhum motivo real,

    simplesmente porque queria? E sabia que havia me sentido insultado sem razo, que

    havia bancado o ofendido, mas levava a coisa a tal ponto que no final ficava realmente

    ofendido. Toda a vida, algo me atraa para fazer essas esquisitices, a tal ponto que, afinal,

    perdi o domnio sobre mim mesmo. Noutra ocasio, quis a qualquer custo apaixonar-me,

    duas vezes at. E sofri, senhores, asseguro-lhes. No fundo, a pessoa no acredita que

    est sofrendo, quer fazer uma pilhria sobre o assunto, mas, apesar disso, eu sofria, e era

    um sofrimento verdadeiro, real; sentia cimes, ficava fora de mim... E tudo isso por tdio,

    senhores, tudo por tdio; fui esmagado pela inrcia. Pois o produto direto, imediato e

    legtimo da conscincia a inrcia, isto , o ficar-sentado-de-braos-cruzados

  • conscientemente. J mencionei isso antes. Repito, repito insistentemente: todos os

    indivduos e homens de ao diretos so ativos precisamente porque so obtusos e

    limitados. Como isso se explica? Da seguinte maneira: em conseqncia de sua

    tacanhez, tomam os motivos mais prximos e secundrios como se fossem os motivos

    originais e, assim, eles se convencem mais rpida e facilmente do que as outras pessoas

    de que encontraram um fundamento irrefutvel para a sua causa, e ento ficam

    tranqilos. Isso o mais importante. Pois, para se comear a agir, preciso que antes se

    esteja completamente calmo e totalmente livre de dvidas. E como eu, por exemplo, me

    tranqilizaria? Onde esto os meus motivos originais, nos quais me apoiaria? Onde esto

    os fundamentos? De onde vou tir-los? Fao uma ginstica mental e, em conseqncia,

    cada motivo original imediatamente arrasta atrs de si outro, ainda mais original, e vai por

    a afora, at o infinito. Essa precisamente a essncia de toda conscincia e reflexo.

    Portanto, novamente j estamos falando das leis da natureza. E, finalmente, qual o

    resultado? O mesmo, ora. Lembrem-se: h pouco falei sobre a vingana (os senhores, na

    certa, no se aprofundaram no assunto). O que eu disse foi: o homem se vinga porque

    acha que est fazendo justia. Isso significa que ele encontrou o motivo original, o

    fundamento, ou seja: a justia. Disso decorre que ele est tranqilo de todos os lados e

    conseqentemente, efetua sua vingana tranqila e eficiente, pois est convencido de

    que executa uma ao honesta e justa. De minha parte, no vejo nisso nenhuma justia,

    no encontro nenhuma virtude e, por conseguinte, se resolvo me vingar, unicamente por

    maldade. A raiva poderia, claro, suplantar tudo, todas as minhas dvidas e poderia com

    pleno xito servir de motivo original, precisamente porque ela no o motivo. Mas que

    fazer se nem mesmo tenho raiva? (Eu comecei, h pouco, falando exatamente disso.) A

    minha maldade, novamente em conseqncia dessas malditas leis da conscincia, est

    sujeita decomposio qumica. Quando voc olha, o objeto j volatilizou, os motivos

    evaporaram, impossvel encontrar o culpado, a ofensa deixa de ser ofensa e passa a

    ser uma fatalidade, algo como uma dor de dente, em que no h culpados. Ento, o que

    resta aquela mesma sada esmurrar com mais dor ainda o muro. E voc desiste de

    sua vingana porque no encontrou um motivo original. Mas tente abraar com paixo e

    cegamente o seu sentimento, sem reflexo, sem buscar o motivo original, afastando a

    conscincia pelo menos temporariamente; sinta dio ou amor, nem que seja para no

    ficar sentado de braos cruzados. No mais tardar, depois de amanh voc comear a

    sentir desprezo por si mesmo, por ter-se enganado conscientemente. O resultado disso:

    uma bolha de sabo e a inrcia. Ah, senhores, pode ser que eu me considere um homem

    inteligente simplesmente porque em toda a minha vida nada consegui comear nem

  • terminar. Est bem, est bem. Eu sou um tagarela, um tagarela inofensivo e enfadonho,

    como todos ns. Mas que se h de fazer se o nico e evidente destino de todo homem

    inteligente tagarelar, ou seja, dedicar-se propositalmente a conversas para boi dormir?

    6

    Ah, se eu no fizesse nada unicamente por preguia! Meu Deus, como eu me

    respeitaria! E me respeitaria precisamente porque teria a capacidade de possuir ao

    menos a preguia; pelo menos eu teria uma caracterstica quase positiva, que eu mesmo

    teria a certeza de possuir. Pergunta: quem ele? Resposta: um preguioso. Seria mais do

    que agradvel ouvir tal coisa a meu respeito. Mostraria que fui definido positivamente, que

    h o que dizer sobre mim. Um preguioso! isto de fato um ttulo, uma funo, uma

    carreira, senhores. No brinquem com isso, a pura verdade. Eu seria, ento, por direito,

    membro do clube mais importante, e minha nica ocupao seria passar todo o tempo me

    respeitando. Conheci um senhor que toda a sua vida se orgulhou de ser entendido em

    Laffittes[8]. Para ele, isso era uma vantagem e uma qualidade positiva, e nunca duvidava de si mesmo. Morreu com a conscincia no apenas tranqila, mas at mesmo triunfante,

    e com toda razo. Eu poderia escolher uma carreira: preguioso e comilo, mas no um

    comilo qualquer, e sim um que tivesse sensibilidade para tudo que belo e sublime. Que

    lhes parece? Sonho com isso h muito tempo. O tal belo e sublime pesa muito na minha

    nuca agora, aos quarenta anos, mas naquela poca seria diferente! Eu teria encontrado

    imediatamente uma atividade correspondente, como brindar a tudo que belo e sublime.

    No perderia nenhuma oportunidade de comear por verter uma lgrima dentro da minha

    taa e depois beb-la sade de tudo que belo e sublime. Eu transformaria tudo que h

    no mundo em belo e sublime, encontraria o belo e o sublime at mesmo nas coisas mais

    horrveis, nas piores e mais indiscutveis porcarias. Ficaria lacrimoso como uma esponja

    molhada. Um pintor, por exemplo, pintou um quadro de Gay[9]. Imediatamente eu beberia sade do pintor que pintou o quadro de Gay, porque amaria tudo que belo e sublime.

    Um autor escreveu como apraz a cada um[10] e imediatamente eu beberia sade de cada um, porque amaria tudo que belo e sublime. Exigiria respeito por isso,

  • perseguiria quem no me respeitasse. Viveria tranqilo, morreria solenemente ah!,

    como seria formidvel, uma verdadeira maravilha! Arrumaria uma bela pana, um queixo

    triplo, um nariz vermelho, e todos os que cruzassem comigo diriam: Eis um homem de

    mrito! Isto que um homem de verdade!. Digam os senhores o que quiserem, mas

    superagradvel ouvir coisas assim neste nosso sculo to negativo.

    7

    Mas tudo isso no passa de sonhos dourados. Ah! Digam-me quem primeiro

    declarou, quem primeiro proclamou que o homem s age mal porque no conhece seus

    verdadeiros interesses e que, se lhe dessem instruo, se lhe abrissem os olhos para os

    seus interesses verdadeiros e normais, ele deixaria de agir de modo srdido,

    imediatamente se tornaria bom e nobre, porque, sendo esclarecido e entendendo suas

    vantagens reais, veria justamente no bem a sua prpria vantagem?[11] E que, como sabido que nenhum homem capaz de agir conscientemente contra seus prprios

    interesses, conseqentemente, por necessidade, digamos, ele passaria a fazer o bem?

    criancinha pura e inocente! Em primeiro lugar, quando foi que, no decorrer de milnios, o

    homem agiu movido apenas pelos prprios interesses? Que fazer com os milhes de

    fatos que demonstram que conscientemente, isto , compreendendo perfeitamente suas

    verdadeiras vantagens, pessoas deixaram-nas de lado e lanaram-se por outro caminho,

    ao acaso, arriscando-se, sem que ningum ou nada as obrigasse a isso, como se

    simplesmente no quisessem exatamente o caminho que lhes fora indicado e teimosa e

    voluntariosamente abriram outro, mais difcil, absurdo, tateando no escuro quase s

    cegas? Significa, pois, que para elas essa teimosia e esse voluntarismo eram de fato mais

    agradveis do que qualquer vantagem pessoal... Ah, a vantagem! Que a vantagem? Os

    senhores aceitariam a tarefa de determinar com absoluta preciso em que consiste a

    vantagem para o ser humano? E se acontecer que, em alguns casos, para o homem a

    vantagem no s possa, como tambm deva consistir, algumas vezes, em desejar para si

    aquilo que ruim, e no o vantajoso? E, se isso possvel, se pode acontecer um caso

    como este, ento a regra no vale nada. Que pensam os senhores: tais casos podem

  • acontecer? Podem rir, senhores, mas me respondam apenas: teriam sido determinadas

    corretamente as vantagens humanas? No existiriam algumas que no se enquadraram e

    nem poderiam enquadrar-se em nenhuma classificao? Pois os senhores, ao que eu

    saiba, compuseram toda a sua lista de vantagens humanas fazendo uma mdia de

    valores estatsticos e de frmulas da cincia econmica. De acordo com as suas

    concluses, so elas o bem-estar, a riqueza, a liberdade, a tranqilidade, e assim por

    diante. De modo que, por exemplo, o homem que clara e deliberadamente rejeitasse toda

    essa lista seria, na sua opinio, e na minha tambm, claro, um obscurantista ou um ser

    completamente louco, no isso? Mas vejam uma coisa espantosa: por que acontece

    que todos esses estatsticos, esses sbios que tanto amam a humanidade, quando

    enumeram as vantagens humanas sempre omitem uma delas? Nem a levam em conta da

    maneira como deve ser levada, e disso depende toda a conta. No seria um mal to

    grande se pegassem essa vantagem e a colocassem na lista. Mas a desgraa que essa

    vantagem problemtica no se encaixa em nenhuma classificao. Eu, por exemplo,

    tenho um amigo... Mas vejam s! Ele amigo dos senhores tambm; e de quem, de

    quem ele no amigo?! Ao se preparar para realizar uma ao, esse senhor comear

    por lhes explicar, de maneira clara e pomposa, como precisamente ele deve agir para

    estar de acordo com as leis da razo e da verdade. Isto no tudo: ele falar aos

    senhores com paixo e emoo sobre os interesses humanos normais e verdadeiros,

    criticar com ironia os idiotas mopes que no entendem nem suas prprias vantagens,

    nem o verdadeiro significado da virtude e, exatamente quinze minutos depois, sem que

    haja qualquer motivo repentino e exterior, mas precisamente por alguma coisa interna que

    mais forte do que todos os seus interesses, ele aprontar uma das suas, far

    claramente o inverso do que dissera pouco antes: agir contra as leis da razo e contra

    os prprios interesses, ou seja, contra tudo... Quero preveni-los de que meu amigo um

    personagem coletivo, por isso um pouco difcil condenar s a ele. Mas a mesmo que

    eu quero chegar, senhores. Ser que de fato no existe algo que seja mais caro a quase

    todos os homens do que suas melhores vantagens, ou (para no destruir a lgica) aquela

    mesma vantagem mais vantajosa (aquela que sistematicamente omitida, de que

    falamos antes), que mais importante e mais vantajosa do que todas as outras vantagens

    e que, para obt-la, o homem est sempre pronto, se necessrio, a afrontar qualquer lei,

    ou seja, ir contra a razo, a honra, o sossego, o bem-estar numa palavra, contra todas

    essas coisas maravilhosas e teis, apenas para alcanar essa vantagem mais vantajosa,

    a primeira, que para ele mais cara do que tudo?

    Mas continua sendo uma vantagem diro os senhores, interrompendo-me.

  • Permitam-me, ns vamos nos explicar, e a questo no se resume a um jogo de

    palavras, e sim a que essa vantagem notvel justamente porque destri todas as

    nossas classificaes e todos os sistemas que foram montados pelos amigos do gnero

    humano. Resumindo: ela atrapalha tudo. Mas, antes de lhes dar o nome dessa vantagem,

    quero comprometer-me pessoalmente e, por isso, insolentemente declaro que todos

    esses maravilhosos sistemas, todas essas teorias que pretendem explicar para a

    humanidade quais so seus interesses verdadeiros e normais, para que ela,

    necessariamente almejando alcanar esses interesses, torne-se no mesmo instante boa e

    nobre at o momento, na minha opinio, no passam de falsa lgica. isso mesmo,

    senhores, falsa lgica. Afirmar que a renovao do gnero humano atravs do sistema de

    suas prprias vantagens, bem, isso, para mim, quase a mesma coisa que... bem, quase

    o mesmo que afirmar, seguindo Buckle[12], que o homem se abranda por influncia da civilizao e, em conseqncia, torna-se menos sanguinrio e menos inclinado a fazer

    guerras. Parece que foi pela lgica que ele chegou a essa concluso. Mas o ser humano

    to apaixonado pelo sistema e pela concluso abstrata, que capaz de fazer-se de

    cego e surdo somente para justificar sua lgica. Por essa razo vou trazer um exemplo

    que ilustra com muita clareza tudo isso. Olhem ao seu redor: sangue fluindo como rios e

    ainda por cima com alegria, como se fosse champanhe! Isto, senhores, o sculo XIX,

    sculo em que Buckle tambm viveu. Vejam Napoleo, tanto o Grande como o atual!

    Vejam a Amrica do Norte, com sua unio perptua![13] Finalmente, vejam essa caricatura que Schleswig-Holstein![14] Em que a civilizao nos est abrandando? A civilizao desenvolve no homem apenas uma diversidade de sensaes... e nada mais.

    E, graas ao desenvolvimento dessas sensaes, bem possvel que o homem acabe

    por descobrir no derramamento de sangue um certo prazer. Isso j aconteceu. J notaram

    que os sanguinrios mais refinados quase sempre tm sido os cavalheiros mais

    civilizados, aos ps dos quais no chegam todos os tilas e Stenkas Rzin?[15] E que, se eles no chamam muita ateno, como tila e Stenka Rzin, justamente porque so

    muito comuns e freqentes e j nos acostumamos a eles? Pelo menos se pode dizer que,

    se o homem no se tornou mais sanguinrio com a civilizao, tornou-se, com certeza,

    um sanguinrio pior, mais hediondo. Antes ele via no derramamento de sangue um modo

    de fazer justia e com a conscincia tranqila massacrava aqueles que julgava merec-lo;

    hoje, ainda que julguemos que derramar sangue seja uma torpeza, mesmo assim o

    praticamos, e ainda mais do que no passado. O que pior? Decidam os senhores

    mesmos. Dizem que Clepatra (desculpem se dou exemplo da histria de Roma), gostava

    de fincar alfinetes de ouro nos seios de suas escravas e sentia prazer com seus gritos e

  • contores. Os senhores diriam que isso foi numa poca relativamente brbara; que

    agora tambm vivemos numa poca brbara (relativamente, tambm), pois hoje tambm

    se enfiam alfinetes; que tambm agora, embora o homem tenha aprendido, vez por outra,

    a enxergar com mais clareza do que nos tempos da barbrie, ele est longe de ter

    aprendido a proceder da maneira indicada pela razo e pela cincia. Porm, os senhores

    esto firmemente convencidos de que ele se acostumar, quando alguns hbitos antigos,

    ruins, tiverem desaparecido completamente, e quando o bom senso e a cincia tiverem

    reeducado totalmente a natureza humana, direcionando-a para um estado normal. Os

    senhores esto convencidos de que, ento, o homem deixar voluntariamente de errar, e

    a contragosto, por assim dizer, no ir querer opor sua vontade aos seus interesses

    normais. E mais: nesse tempo, dizem os senhores, a prpria cincia vai ensinar ao

    homem (embora isso j seja um luxo, na minha opinio) que ele, na verdade, no possui

    nem vontade, nem caprichos, que, por sinal, nunca os teve, e que ele mesmo no passa

    de alguma coisa parecida com uma tecla de piano ou um pedal de rgo; e que, ainda por

    cima, existem tambm as leis da natureza, de modo que, no importa o que ele faa, isso

    no feito por sua vontade, e sim por si mesmo, seguindo as leis da natureza.

    Conseqentemente, basta descobrir essas leis da natureza que o homem no ter mais

    de responder pelos seus atos, e viver, para ele, ser extremamente fcil. Evidentemente,

    todas as aes humanas sero calculadas matematicamente, de acordo com essas leis,

    numa espcie de tbua de logaritmos, at 108.000, e sero inscritos nos calendrios; ou,

    algo ainda melhor: surgiro algumas publicaes bem-intencionadas, do tipo dos atuais

    dicionrios enciclopdicos, em que tudo estar to bem calculado e indicado, que no

    mundo no haver mais nem aes nem aventuras.

    Nesse tempo isso tudo os senhores que dizem , surgiro novas relaes

    econmicas, que sero tambm completamente calculadas, e com preciso matemtica,

    de modo que, num piscar de olhos, todo tipo de questes deixaro de existir,

    precisamente porque algum j ter encontrado todo tipo de respostas para elas. E ento

    ser construdo um palcio de cristal[16]. Ento... Bem, numa palavra: ento seremos visitados pelo pssaro azul. Evidentemente, no se pode garantir (isto j sou eu que estou

    dizendo) que nesse tempo no ser, por exemplo, terrivelmente aborrecido (porque, o que

    haver para fazer, se tudo estar distribudo numa tabela?), mas, em compensao, tudo

    ser extremamente sensato. Evidentemente, o que no se inventar por puro tdio! Pois

    alfinetes de ouro so fincados tambm por tdio, mas isso ainda no nada. O ruim

    mesmo (novamente sou eu que estou dizendo) que pode at acontecer que as pessoas

    vo se sentir felizes com os alfinetes de ouro. Pois o ser humano burro, de uma burrice

  • fenomenal. Ou melhor, ele no nem um pouco burro, mas em compensao ingrato.

    No existe ser mais ingrato que ele. Eu, por exemplo, no me admiraria nada se, de

    repente, sem nenhum motivo, em meio ao futuro bom senso geral, surgisse um cavalheiro

    com um rosto nada nobre ou, melhor dizendo, com uma fisionomia retrgrada e

    zombeteira e, de mos na cintura, dissesse a todos ns: e ento, senhores, que tal dar

    um pontap em todo esse bom senso e mandar esses logaritmos para o diabo para que

    possamos novamente viver segundo a nossa vontade idiota? E no acabaria nisso, pois o

    mais lamentvel que ele certamente encontraria seguidores: assim o ser humano. E

    tudo isso por um motivo insignificante que no valeria a pena mencionar: precisamente

    pelo fato de que o homem, invariavelmente e em todo lugar, quem quer que ele seja,

    sempre gostou de fazer o que quis, e no como mandam a razo e o interesse prprio;

    ele, inclusive, pode querer algo contra seus prprios interesses, e s vezes at deve

    indubitavelmente quer-lo (isto j idia minha). Sua vontade livre, um capricho seu,

    mesmo que seja o capricho mais estranho, uma fantasia sua, exacerbada s vezes at a

    loucura eis a vantagem que omitida, a vantagem mais vantajosa, que no se submete

    a nenhuma classificao e que manda para o diabo constantemente todos os sistemas e

    teorias. E de onde esses sabiches tiraram que o homem necessita no sei de que

    vontade normal, virtuosa? De onde partiu essa sua idia de que o homem precisa ter

    obrigatoriamente uma vontade sensatamente vantajosa? O que o homem precisa

    somente de uma vontade independente, custe ela o que custar e no importa aonde

    possa conduzir. Bom, essa vontade, o diabo conhece bem...

    8

    Ha, ha, ha! Mas tal vontade, no fundo, nem ao menos existe! interrompem-me

    os senhores com uma gargalhada. Na nossa poca, a cincia j conseguiu dissecar a tal

    ponto o homem, que j do nosso conhecimento que a vontade e o assim chamado livre-

    arbtrio no passam de...

    Um momento, senhores, eu mesmo queria comear dessa maneira. Confesso

    que at me assustei. Um instante atrs por pouco eu no quis gritar que a vontade

  • depende sabe o diabo de que, coisa que, talvez, devamos agradecer a Deus, mas

    lembrei-me da cincia e... me calei. E nesse instante os senhores comearam a falar.

    Porque, de fato, bem, se algum dia encontrarem mesmo a frmula de todos os nossos

    desejos e caprichos, ou seja, aquilo de que eles dependem, as leis segundo as quais eles

    se produzem, como precisamente se espalham, que objetivos eles buscam num caso ou

    noutro, etc., ou seja, se encontrarem uma verdadeira frmula matemtica a talvez o

    homem imediatamente deixe de ter vontade e, digo mais, ele seguramente far isso.

    Quem vai querer ter vontade de acordo com uma tabela? E ainda: no mesmo instante o

    homem se transformar num pedal de rgo ou em algo no gnero; porque o que esse

    homem sem desejos, sem vontade, sem seu prprio querer, seno um pedal de rgo?

    Que acham disso? Examinemos as probabilidades: pode isso acontecer ou no?

    Hum... concluem os senhores. Nossos desejos, na sua maioria, so

    equivocados devido a uma avaliao errada das nossas vantagens. Se s vezes

    queremos coisas absurdas, isso se deve ao fato de que nessa coisa absurda ns vemos,

    por burrice nossa, um caminho mais curto para obtermos uma vantagem

    antecipadamente presumida. Bem, quando tudo isso estiver explicado e exposto

    numericamente no papel (o que perfeitamente possvel, porque indigno e sem sentido

    crer antecipadamente que haja leis da natureza que o homem nunca descobrir), ento,

    evidentemente, no existiro as chamadas vontades. Pois, se a vontade um dia coincidir

    completamente com a razo, ns iremos raciocinar e no querer, propriamente, porque

    impossvel, por exemplo, conservando a razo, desejar coisas sem sentido, indo, desse

    modo, conscientemente contra a razo e desejando algo que nos prejudique... E, como

    todos os desejos e raciocnios podero ser realmente calculados, pois algum dia sero

    descobertas as leis do nosso assim chamado livre-arbtrio, ento, conseqentemente,

    alm de anedotas, tambm ser possvel estabelecer-se algo como uma tabela, de tal

    modo que ns realmente teremos desejos de acordo com essa tabela. Porque se, por

    exemplo, um dia me provarem com clculos que se eu fiz um gesto obsceno com o dedo

    para algum isso se deu precisamente porque no poderia deixar de faz-lo, e porque era

    exatamente aquele dedo que eu deveria mostrar, ento o que restar de livre em mim,

    especialmente se sou uma pessoa instruda e com um curso completo de cincia em

    algum lugar? Pois nesse caso eu vou poder calcular antecipadamente toda a minha vida

    futura por um perodo de trinta anos; em sntese, se isso for implantado, no nos restar

    nada a fazer; de todo modo, teremos de aceitar. E, de maneira geral, devemos repetir

    para ns mesmos sem descanso que, forosamente, num determinado minuto e em

    certas condies, a natureza no pede a nossa opinio; que necessrio aceit-la tal

  • como ela , e no como ns a fantasiamos, e se, de fato, almejamos chegar a uma tabela

    e a um calendrio e a... bem, nem que seja a um tubo de ensaio, ento, que se h de

    fazer, preciso admitir tambm o tubo de ensaio! Seno ele mesmo se admitir, sem

    esperar por sua aprovao...

    Pois , senhores... Justamente neste ponto que eu me enrasquei! Perdoem-me

    por ter filosofado dessa maneira, mas foram quarenta anos de subsolo! Permitam-me

    fantasiar um pouco. Vejam os senhores: a razo uma coisa boa, sem dvida, mas razo

    apenas razo e satisfaz apenas a capacidade racional do homem; j a vontade, esta a

    manifestao da vida como um todo, ou melhor, de toda a vida humana, a incluindo-se a

    razo e todas as formas de se coar. E, mesmo que a nossa vida parea s vezes bem

    ruinzinha do ponto de vista acima, ela vida, apesar de tudo, e no apenas a extrao de

    uma raiz quadrada. Eu, por exemplo, naturalmente quero viver para satisfazer toda a

    minha capacidade de vida, e no para satisfazer apenas minha capacidade racional, ou

    seja, talvez a vigsima parte de toda a minha capacidade de viver. Que sabe a razo? Ela

    sabe apenas aquilo que conseguiu conhecer (outras coisas, provavelmente, nunca

    saber; isso pode no consolar, mas por que no diz-lo?); j a natureza humana, esta

    age como um todo, com tudo o que possui, seja consciente, seja inconsciente e, mesmo

    mentindo, est vivendo. Desconfio de que os senhores esto olhando para mim com

    pena; esto repetindo que impossvel um homem evoludo e esclarecido, em suma, um

    homem do futuro, vir a querer conscientemente para si algo desvantajoso; que isso

    matemtica. Concordo plenamente, de fato matemtica. Mas repito pela centsima vez:

    h apenas um caso em que o homem capaz de, proposital e conscientemente, desejar

    para si algo at mesmo nocivo, idiota, at mesmo idiotssimo, e precisamente quando

    quer defender o direito de desejar para si mesmo algo idiotssimo e no ficar obrigado a

    desejar para si apenas o que inteligente. Isso a suprema idiotice, isso um capricho

    pessoal e, na verdade, senhores, pode ser o que de mais vantajoso haja na Terra para os

    nossos semelhantes, principalmente em certos casos. E, particularmente, pode ser mais

    vantajoso do que todas as vantagens, mesmo no caso de nos causar um mal indiscutvel

    e de contradizer as concluses mais corretas de nossa razo quanto a vantagens

    porque pelo menos conserva para ns o mais importante e o mais caro, ou seja, nossa

    personalidade e nossa individualidade. Alguns afirmam que isso de fato o que mais

    caro ao ser humano; a vontade pode, se assim o desejar, coincidir com a razo,

    especialmente se no abusar desta e us-la com parcimnia; uma coisa til e s vezes

    elogivel. Mas a vontade, muito freqentemente, e at mesmo na maior parte das vezes,

    discorda completa e teimosamente da razo, e... e... Sabem os senhores que isso

  • tambm til e s vezes at elogivel? Senhores, admitamos que o homem no seja um

    idiota. (Realmente no se pode afirmar que ele seja um idiota, pelo menos pela nica

    razo de que, se ele fosse um idiota, quem ento seria inteligente?) Mas, se no um

    idiota, ao menos monstruosamente ingrato. Penso at que a melhor definio para o

    homem : um ser bpede e ingrato. Mas isso ainda no tudo, esse no o seu pior

    defeito: seu defeito mais grave sua constante m conduta. Sim, constante, desde o

    dilvio universal at o perodo schleswig-holsteiniano dos destinos da humanidade. A m

    conduta e, por conseqncia, a falta de bom senso, pois h muito tempo se sabe que a

    falta de bom senso resultado da m conduta. Tentem lanar uma olhada na histria da

    humanidade; que vem os senhores? grandiosa? Talvez at seja grandiosa; qual no

    ser, por exemplo, o valor de um Colosso de Rodes? No toa que o sr. Anaivski [17] nos informa que, na opinio de alguns, esse colosso foi obra humana, ao passo que, para

    outros, ele foi criado pela prpria natureza. Os senhores acham a humanidade

    multicolorida? V l, mesmo multicolorida; quanto valeria, por exemplo, a simples

    descrio, em todos os sculos e em todos os povos, somente das fardas de gala de

    militares e civis? E se acrescentarmos as fardas de servio, a ento de morrer. Nenhum

    historiador resistiria tentao de faz-lo. Os senhores consideram a humanidade

    montona? Talvez seja montona: brigas e mais brigas; brigavam antes, brigam agora

    concordem comigo que isso montono at demais. Em suma, tudo se pode dizer da

    histria universal, tudo que possa ocorrer imaginao mais perturbada. S uma coisa

    no se pode dizer: que ela seja sensata. Os senhores engasgariam na primeira palavra. E

    vejam at o que acontece volta e meia: constantemente aparecem na vida pessoas to

    corretas e sensatas, to sbias e amantes do gnero humano que assumem como seu

    objetivo de vida comportar-se da maneira mais correta e sensata possvel para, por assim

    dizer, ser uma luz para os demais, provando para eles que possvel de fato viver neste

    mundo de maneira correta e sensata. E da? Sabe-se que muitos desses amantes do

    gnero humano, uns mais cedo, outros mais tarde, alguns j no fim da vida, traram a si

    mesmos, dando margem a anedotas, algumas at bem obscenas. Agora pergunto-lhes: o

    que se pode esperar do homem, sendo ele um ser dotado de caractersticas to

    estranhas? Pois bem, cubram-no de todos os bens que h na Terra, mergulhem-no de

    cabea na felicidade mais completa, de modo que somente borbulhas subam superfcie;

    dem-lhe tal bem-estar econmico, de modo que no lhe reste nada mais a fazer, alm de

    dormir, comer pes de mel e tratar de garantir a continuao da histria universal pois

    os senhores vero que, mesmo assim, ele, o homem, por pura ingratido, por galhofa, h

    de fazer besteira. Por em risco at os pes de mel e desejar intencionalmente o

  • absurdo mais prejudicial, a coisa, do ponto de vista econmico, mais sem p nem cabea,

    unicamente para adicionar a toda essa sensatez positiva seu elemento fantstico

    prejudicial. Ele desejar conservar consigo precisamente seus sonhos fantsticos, sua

    estupidez mais torpe, com a finalidade de afirmar para si mesmo (como se isso fosse

    mesmo absolutamente imprescindvel) que os homens continuam a ser homens, e no

    teclas de piano, as quais, embora sejam tocadas pelas prprias mos das leis da

    natureza, esto ameaadas de serem tocadas at chegar ao ponto em que, alm do

    calendrio, no ser possvel desejar-se mais nada. Mas isto ainda no tudo: mesmo

    que se constate que ele de fato uma tecla de piano, mesmo que isso lhe seja

    demonstrado pelas cincias naturais e pela matemtica, nem assim ele criar juzo e

    propositalmente far alguma coisa oposta, unicamente por ingratido; de fato, para impor

    a sua vontade. E, no caso de no possuir os meios para isso, ele inventar a destruio e

    o caos, inventar diversos sofrimentos e acabar por impor sua vontade! Ele lanar ao

    mundo sua maldio e, como s o homem capaz de amaldioar (isso um privilgio

    seu, o que ele tem de mais importante e que o distingue dos outros animais), talvez ele

    consiga o que procura apenas com a maldio, ou seja, realmente talvez se convena de

    que um homem, e no uma tecla de piano! Se os senhores disserem que tudo isso

    tambm pode ser calculado pela tabela o caos, a treva, a maldio, de modo que a

    mera possibilidade de clculo prvio pare tudo e a razo triunfe , ento nesse caso o

    homem ficar propositalmente louco, para ficar privado da razo e defender sua opinio!

    Eu creio nisso, respondo por isso, porque toda a questo humana, creio, resume-se, na

    realidade, em o homem provar constantemente para si mesmo que ele um homem, e

    no uma tecla! Ainda que arriscando sua pele, ele tentar prov-lo; ainda que se

    comporte como um troglodita, ele tentar prov-lo. E, depois disso, como no pecar, como

    no se felicitar por ainda no existirem tais coisas, e a vontade, por enquanto, depender

    s Deus sabe de qu...

    Os senhores gritam-me (se que ainda me concedem a honra de gritar comigo)

    que ningum est me tirando a vontade; que todo o esforo que fazem para, de alguma

    forma, conseguir que a minha vontade espontaneamente, por si mesma, passe a coincidir

    com meus interesses normais, com as leis da natureza e com a aritmtica.

    Mas que nada, senhores! Que vontade prpria vai existir quando chegarmos s

    tabelas e aritmtica, quando s houver dois e dois so quatro? Dois mais dois sero

    sempre quatro, mesmo sem a minha vontade. Ser que vontade prpria desse tipo pode

    existir?

  • 9

    Senhores, evidentemente estou brincando, e eu prprio sei que minhas

    brincadeiras no so muito felizes; entretanto, nem tudo deve ser interpretado como

    brincadeira. Talvez eu graceje rangendo os dentes. Tenho, senhores, algumas questes

    que me atormentam; resolvam-nas para mim. Por exemplo, os senhores querem fazer

    com que o homem desaprenda hbitos antigos e desejam corrigir sua vontade, de acordo

    com as exigncias da cincia e do bom senso. Mas como os senhores sabem que no s

    possvel como tambm necessrio mudar assim o homem? De onde os senhores

    tiraram essa concluso de que to necessrio corrigir a vontade humana? Em suma,

    por que os senhores sabem que tal correo ser benfica ao homem? E, se para dizer

    tudo, por que os senhores tm tanta certeza de que realmente sempre vantajoso para o

    homem e constitui uma lei para toda a humanidade no contradizer as vantagens

    verdadeiras, normais, aquelas garantidas por argumentos da razo e da aritmtica? Pois,

    por enquanto, isso apenas uma suposio dos senhores. Admitamos que isso seja uma

    lei da lgica, mas possvel que no seja absolutamente uma lei da humanidade. Os

    senhores pensam, talvez, que estou louco? Permitam-me explicar-me. Admito: o homem

    , acima de tudo, um animal que constri, condenado a buscar conscientemente um

    objetivo e exercer a arte da engenharia, ou seja, a abrir caminho para si mesmo

    incessante e eternamente, no importando aonde esse caminho o leve. Mas eis que, vez

    por outra, ele tem vontade de se desviar para um lado, talvez precisamente porque ele

    esteja condenado a abrir esse caminho, e tambm talvez porque, por mais idiota que

    geralmente seja o homem direto, de ao, s vezes ele pensa que aquele caminho, na

    realidade, quase sempre leva no importa aonde, o mais importante no para onde ele

    leva, e sim que ele continue a levar, a fim de que a criana bem-comportada, fazendo

    pouco caso da arte da engenharia, no se entregue ociosidade destrutiva, que, como

    sabido, a me de todos os vcios. O homem gosta de criar e de abrir caminhos, isto

    indiscutvel. Mas por que ele tambm ama com paixo a destruio e o caos? Digam-me,

    por favor! Entretanto, eu mesmo quero dizer duas palavras parte sobre isso. No

    poderia ser, talvez, que ele ame tanto a destruio e o caos (bem, indiscutvel que ele

  • s vezes gosta muito, no h dvida) porque ele mesmo, instintivamente, teme atingir o

    objetivo e concluir o edifcio que estava construindo? Como os senhores podem saber?

    Talvez ele ame o edifcio somente de longe e no o ame de perto; talvez ele ame apenas

    o ato de constru-lo, e no viver nele, abandonando-o depois aos animaux domestiques,

    como formigas, carneiros, etc. Vejam como as formigas tm um gosto completamente

    diferente. Elas tm edifcios extraordinrios, indestrutveis para os sculos: os

    formigueiros.

    As venerveis formigas comearam com um formigueiro e terminaro tambm,

    provavelmente, com um formigueiro, o que muito honra sua constncia e sua natureza

    positiva. Mas o homem um ser inconstante e pouco honesto e, talvez, semelhana do

    jogador de xadrez, goste apenas do processo de procurar atingir um objetivo, e no do

    objetivo em si. E quem sabe? No se pode garantir, mas talvez todo o objetivo a que o

    homem se dirige na Terra se resuma a esse processo constante de buscar conquistar ou,

    em outras palavras, prpria vida, e no ao objetivo exatamente, o qual, evidentemente,

    no deve passar de dois e dois so quatro, ou seja, uma frmula, e dois e dois so quatro

    j no vida, senhores, mas o comeo da morte. Pelo menos, o homem sempre teve um

    certo temor desse dois e dois so quatro, e eu at agora tenho. Suponhamos que o

    homem no faa outra coisa alm de procurar esse dois e dois so quatro, atravessando

    oceanos, sacrificando a vida nessa busca, mas sou capaz de jurar que ele tem medo de

    encontr-lo realmente. Porque ele sente que, assim que o encontrar, no haver mais

    nada para procurar. Os trabalhadores, ao trmino do trabalho, pelo menos recebem seu

    dinheiro e podem ir para o botequim e depois podem acabar na delegacia e tm, assim,

    ocupao para a semana. Mas o homem para onde ir? Pelo menos, sempre se nota que

    ele fica um pouco sem jeito quando consegue atingir algum desses objetivos. Ele ama o

    processo de conseguir, mas atingir mesmo, nem tanto, e isso, claro est, terrivelmente

    engraado. Em uma palavra, o homem constitudo de modo cmico; em tudo isso, pelo

    visto, h um jogo de palavras. Mas dois e dois so quatro , de qualquer modo, uma coisa

    extremamente insuportvel. Dois e dois so quatro, na minha opinio, pura insolncia.

    Dois e dois so quatro olha para voc com ar petulante, fica no meio do seu caminho com

    as mos na cintura e cospe pro lado. Concordo que dois e dois so quatro uma coisa

    excelente; porm, se para elogiar tudo, ento dois e dois so cinco s vezes tambm

    uma coisinha bem encantadora.

    E por que os senhores esto assim to firme e solenemente convencidos de que

    apenas o que normal e positivo, ou seja, o bem-estar, vantajoso para o homem? A

    razo no estar cometendo um erro quanto s vantagens? Quem sabe o homem ame

  • no apenas o bem-estar? Quem sabe ele ame igualmente o sofrimento? Quem sabe o

    sofrimento para ele to vantajoso quanto o bem-estar? O homem, s vezes, ama o

    sofrimento de maneira terrvel, apaixonada; isso um fato. Para isso no h necessidade

    de consultar a histria universal. Perguntem a si mesmos, se que os senhores so

    homens e viveram nem que seja um pouco. Quanto minha opinio pessoal, penso que

    amar apenas o bem-estar , de certo modo, at indecente. Seja isso bom ou no, o fato

    que, s vezes, quebrar alguma coisa tambm muito agradvel. No estou propriamente

    defendendo o sofrimento e nem o bem-estar. Estou defendendo... o meu capricho, e que

    ele me seja garantido, quando necessrio. O sofrimento no admitido, por exemplo, nos

    vaudeviles, sei disso. No palcio de cristal, ele at impensvel: o sofrimento dvida,

    negao e que palcio de cristal seria esse, do qual possvel duvidar? Entretanto,

    estou convencido de que o homem nunca renunciar ao sofrimento verdadeiro, isto ,

    destruio e ao caos. O sofrimento a nica causa da conscincia. E, embora eu tenha

    declarado no incio que, na minha opinio, a conscincia a maior infelicidade para o

    homem, eu sei que o homem ama a conscincia e no a trocar por satisfao alguma. A

    conscincia, por exemplo, infinitamente superior ao dois mais dois. Depois do dois mais

    dois, evidentemente no restar nada, no s para se fazer, como at mesmo para se

    conhecer. A nica coisa que ento ser possvel ser trancar os cinco sentidos e

    mergulhar na contemplao. Com a conscincia chega-se ao mesmo resultado, ou seja,

    tambm no haver nada para fazer, mas pelo menos ser possvel surrar a si mesmo de

    vez em quando, e isso anima um pouco, apesar dos pesares. Embora seja uma coisa

    retrgrada, ainda melhor do que nada.

    10

    Os senhores acreditam no edifcio de cristal, para sempre indestrutvel, ou seja,

    acreditam num edifcio ao qual ningum poder mostrar a lngua mesmo s escondidas,

    nem fazer-lhe uma figa com a mo no bolso. Bom, eu tenho medo desse edifcio, talvez

    porque ele seja de cristal e indestrutvel atravs dos sculos e porque no ser possvel

    mostrar-lhe a lngua nem s escondidas.

  • Vejam os senhores: se em vez de um palcio houver um galinheiro, e se comear a

    chover, talvez eu suba no galinheiro para no me molhar, mas nem assim vou achar que o

    galinheiro um palcio, s por gratido por ele ter-me protegido da chuva. Os senhores

    esto rindo e dizendo que num caso como esse tanto faz um palcio como um galinheiro.

    Sim, respondo eu, se o nico objetivo de viver fosse no se molhar.

    Mas o que fazer se meti na minha cabea que vivo no somente para isso e que,

    se vou viver, quero que seja num palcio? Isso o meu desejo, a minha vontade. Os

    senhores s a arrancaro de mim quando tiverem modificado os meus desejos. Bem,

    faam a transformao, seduzam-me com outra coisa, dem-me outro ideal. Mas, por ora,

    no confundirei o galinheiro com um palcio. Admito at que o palcio de cristal seja uma

    quimera, que ele no esteja previsto pelas leis da natureza e que eu o inventei apenas

    devido minha prpria burrice e a alguns hbitos antigos, irracionais, prprios da nossa

    gerao. Mas no me importa se ele no est previsto. No d na mesma se ele existe

    nos meus desejos, ou melhor, existe enquanto existem meus desejos? Os senhores

    talvez estejam rindo novamente? Riam vontade; aceito qualquer caoada. Mesmo

    assim, no direi que estou saciado se tenho fome; mesmo assim, sei que no me

    contentarei com um meio-termo, com um zero peridico constante, unicamente porque ele

    existe em decorrncia das leis da natureza e existe realmente. No aceitarei como triunfo

    de meus desejos um grande edifcio com apartamentos para moradores pobres com

    contrato por mil anos e, para qualquer eventualidade, com a placa do dentista Wagenheim

    na entrada. Destruam meus desejos, apaguem meus ideais, mostrem-me alguma coisa

    melhor, e serei seu seguidor. Talvez os senhores digam que no vale a pena meter-se

    comigo; nesse caso, posso responder-lhes da mesma forma. Estamos argumentando

    seriamente, mas, se no quiserem conceder-me sua ateno, no hei de me humilhar.

    Tenho meu subsolo.

    Por enquanto ainda estou vivo e tenho desejos e que minha mo seque se eu

    colocar um tijolinho que seja nesse edifcio![18] No dem ateno ao fato de que h pouco renunciei ao palcio de cristal unicamente porque no ser possvel mostrar-lhe a

    lngua. E de maneira nenhuma eu disse isso porque goste de mostrar a minha lngua.

    Talvez eu tenha ficado irritado somente porque, dentre todos os seus edifcios, at agora

    no h nenhum ao qual no se possa no mostr-la. Pelo contrrio, por pura gratido eu

    deixaria que me cortassem a lngua, se as coisas se arranjassem de tal maneira que eu

    mesmo no tivesse mais vontade de mostr-la. No tenho nada a ver se isso no

    possvel e preciso contentar-se com os apartamentos. Mas por que fui formado com tais

    desejos? Ser possvel que tenha sido somente para concluir que toda a minha

  • conformao no passa de uma brincadeira de mau gosto? Ser possvel que todo o

    objetivo no passe disso? No acredito.

    E, ademais, saibam de uma coisa: estou convencido de que preciso manter

    esses tipos do subsolo rdea curta. Embora eles possam passar quarenta anos calados

    no subsolo, se conseguem sair para a claridade, ficam falando, falando, falando...

    11

    Concluso final, senhores: melhor no fazer nada! melhor a inrcia consciente!

    Pois, ento, viva o subsolo! Apesar de eu ter dito que invejo o homem normal at a minha

    ltima gota de fel, nas condies em que o vejo, no quero ser ele. (Embora no pare de

    invej-lo; no, no, o subsolo, em todo caso, mais vantajoso!) Ao menos, l possvel...

    Ah! Estou mentindo agora tambm! Porque eu mesmo sei, como dois mais dois, que o

    melhor no o subsolo, mas outra coisa diferente, completamente diferente, pela qual eu

    anseio, mas que jamais encontrarei! Que v para o diabo o subsolo!

    Seria melhor at mesmo o seguinte: que eu mesmo acreditasse, ao menos um

    pouquinho, no que acabo de escrever. Juro aos senhores que no acredito em uma

    palavra sequer de tudo o que rabisquei at aqui! Ou melhor, eu acredito, talvez, mas, ao

    mesmo tempo, no sei por que, sinto e desconfio que estou mentindo desbragadamente.

    Ento, por que o senhor escreveu tudo isso? dizem-me os senhores.

    E se eu os deixasse presos por quarenta anos, sem nada para fazer, e, passado

    esse tempo, eu fosse visit-los no seu subsolo para verificar o ponto a que chegaram?

    admissvel deixar um homem sozinho e sem ocupao durante quarenta anos?

    Mas isso no tambm vergonhoso, no humilhante?! talvez os senhores me

    digam, balanando a cabea com desprezo. O senhor tem sede de viver e ao mesmo

    tempo tenta resolver problemas vitais com uma barafunda lgica. E como so

    impertinentes e insolentes seus disparates e, ao mesmo tempo, como o senhor tem

    medo! O senhor diz absurdos e fica contente com eles; diz coisas insolentes, mas est o

    tempo todo com medo por causa delas e pede desculpas. O senhor afirma no ter medo

    de nada e, ao mesmo tempo, busca nossa aprovao. O senhor afirma que range os

  • dentes e, ao mesmo tempo, fica fazendo graa para nos divertir. O senhor sabe que seus

    gracejos no so nada espirituosos, mas, ao que parece, est muito satisfeito com a sua

    qualidade literria. Talvez o senhor tenha sofrido realmente algumas vezes, mas o senhor

    no respeita nem um pouco o prprio sofrimento. H alguma verdade no que diz, mas o

    senhor no tem pudor; pela vaidade mais mesquinha, o senhor fica exibindo sua verdade,

    no pelourinho, na feira... O senhor quer realmente dizer algo, mas, por medo, esconde

    sua ltima palavra, porque no tem coragem para proferi-la, e o que possui apenas uma

    insolncia covarde. O senhor se vangloria de ter conscincia, mas s o que faz vacilar,

    porque, embora sua inteligncia funcione, seu corao est obscurecido pela depravao,

    e, sem um corao puro, impossvel uma conscincia completa e justa. E como o

    senhor importuno, insistente e afetado! Mentira, mentira, mentira!

    Claro est que essas palavras dos senhores fui eu mesmo que acabei de inventar.

    Elas tambm vieram do subsolo. Durante quarenta anos seguidos fiquei escutando pela

    fresta as palavras que os senhores diziam. Eu mesmo as inventei, pois somente isso era

    possvel inventar. natural que eu as tenha aprendido de cor e que elas tenham adquirido

    forma literria...

    Mas, ser possvel, ser possvel que os senhores sejam to crdulos e imaginem

    que eu v imprimir tudo isso e ainda lhes dar para ler? E eis ainda uma questo que

    preciso resolver: para que, na verdade, eu os chamo de senhores, para que dirijo-me

    aos senhores, como se de fato estivesse dirigindo-me a leitores? Confisses, como as

    que tenho a inteno de comear a narrar, no se publicam nem se do a outros para que

    leiam. Eu, pelo menos, no sou uma pessoa to segura e nem acho que isso seja

    necessrio. Mas vejam os senhores: veio-me cabea uma fantasia e, custe o que

    custar, desejo realiz-la. Vou dizer-lhes do que se trata.

    Entre as recordaes de cada pessoa, h coisas que ela no conta para qualquer

    um, somente para os amigos. H tambm aquelas que ela no conta nem para os

    amigos, somente para si mesma, e isso secretamente. Mas, finalmente, h tambm

    aquelas que o indivduo tem medo de revelar at para si mesmo, e um homem respeitvel

    tem tais coisas acumuladas em grande quantidade. E pode ser at mesmo assim: quanto

    mais respeitvel ele , mais coisas desse tipo ele tem acumuladas. Eu, pelo menos, s

    recentemente tomei coragem para recordar algumas das minhas aventuras passadas, as

    quais at agora tinha evitado com uma certa inquietao. E agora, quando no s

    recordei, como at me decidi a escrev-las, agora exatamente quero tirar a prova:

    possvel algum ser inteiramente sincero consigo mesmo e no temer toda a verdade? A

    propsito: Heine[19] afirma que quase impossvel existirem autobiografias sinceras,

  • porque na certa o ser humano mentir, falando de si mesmo. Na opinio dele, por

    exemplo, Rousseau sem dvida mentiu sobre si mesmo em suas Confisses e fez isso

    at deliberadamente, por vaidade. Estou convencido de que Heine est certo; entendo

    perfeitamente como, s vezes, algum pode confessar uma srie de crimes por pura

    vaidade e percebo at muito bem de que tipo pode ser essa vaidade. Mas Heine

    comentava sobre uma pessoa que fez uma confisso pblica. No meu caso, escrevo s

    para mim, e declaro de uma vez por todas que, se escrevo como se me dirigisse a

    leitores, unicamente por exibicionismo, e porque desse modo me mais fcil escrever.

    Isso apenas forma, uma forma vazia, eu nunca terei leitores. J havia declarado isso...

    No quero que nada me cerceie na redao de minhas notas. No vou estabelecer

    ordem nem sistema. Escreverei tudo o que me vier memria. Mas, por exemplo, algum

    poderia implicar com o que eu disse e me perguntar: se o senhor realmente no conta

    com leitores, ento por que est agora fazendo tratos consigo mesmo e, ainda por cima,

    por escrito, dizendo que no vai introduzir nenhuma ordem ou sistema, que vai escrever

    aquilo de que se lembrar, etc.? Por que est dando explicaes? Por que est se

    desculpando?

    Esperem, j vou responder.

    H, neste caso, toda uma psicologia. Talvez, inclusive, eu seja simplesmente

    covarde. Pode ser tambm que eu imagine de propsito um pblico na minha frente para

    me comportar mais decentemente enquanto escrevo. Pode haver umas mil razes.

    Mas eis ainda uma questo: para que e por que eu, de fato, desejo escrever? Se

    no para um pblico, ento no seria possvel guardar tudo na memria, sem pr no

    papel?

    Certamente, senhores. Mas no papel ficar, de certo modo, mais solene. O papel

    inspira respeito, serei mais exigente comigo mesmo, o estilo lucrar. Alm disso,

    escrevendo, talvez eu sinta de fato alvio. Neste momento, por exemplo, uma recordao

    antiqssima me oprime. Ela me veio memria com nitidez h alguns dias e desde ento

    no me larga, como uma melodia aborrecida que no sai da cabea. Entretanto,

    necessrio livrar-me dela. Tenho centenas de recordaes desse tipo, mas de vez em

    quando alguma se destaca das outras e comea a me afligir. Por alguma razo, creio que,

    escrevendo-a, conseguirei livrar-me dela. Por que no tentar?

    Finalmente: sinto-me entediado, pois fico o tempo todo sem fazer nada. O ato de

    anotar , de certo modo, um trabalho. Dizem que o homem se torna bom e honesto com o

    trabalho. Bom, pelo menos, eis a uma chance.

    Agora est caindo uma neve quase molhada, amarela, turva. Ontem caiu tambm,

  • nos dias anteriores tambm. Creio que foi por causa da neve molhada que me lembrei da

    anedota que agora no quer desgrudar-se de mim. Ento, que isso se transforme numa

    novela sobre a neve molhada.

    [1] . Tanto o autor das Notas como elas prprias so, evidentemente, fictcios. Entretanto, pessoas como o autor destas Notas no s podem como devem existir na nossa

    sociedade, se levarmos em conta as circunstncias em que ela de modo geral se formou.

    Meu propsito foi trazer perante o pblico, com mais destaque que o habitual, um dos

    personagens tpicos