Laboratório-Portal Teatro Sem Cortinas
Os teatros de Anchieta e Gil Vicente: imbricamentos e afastamentos 1
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LABORATÓRIO – PORTAL TEATRO SEM CORTINAS
HISTÓRIA DO TEATRO MUNDIA L – RENASCIMENTO
Título: Os teatros de Anchieta e Gil Vicente: imbricamentos e afastamentos
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Os teatros de Anchieta e Gil Vicente: imbricamentos e afastamentos 2
03.HTM.0007
Autor: Eraldo Maia
Revisão: Diego Cardoso
Arquivo: 03.HTM.0007
Os teatros de Anchieta e Gil Vicente: imbricamentos e afastamentos 1
1 – Gil Vicente: O homem, o dramaturgo
Mil quatrocentos e sessenta e cinco ou mil quatrocentos e setenta e cinco? Que
importa as querelas entre estudiosos da obra do dramaturgo português Gil Vicente,
quanto à correta data do seu nascimento? O preciosismo histórico esvai-se ante o
farto legado oferecido por um artista que, vivendo entre as últimas décadas do século
XV e as três primeiras décadas do século XVI, compreendeu e traduziu para seus
pósteros o pensamento dos homens de seu tempo.
Apadrinhado pelas cortes dos reis D. João II, D. Manoel e D. João III, sob as
bênçãos de D. Leonor – a Rainha Velha, Gil Vicente produziu sua obra literária e
teatral entre os anos de 1502 e 1536.
Sua trajetória artística coincide com o último estágio de transição entre
Medievalismo e Renascimento. Período em que ressurgem as letras clássicas. Este
ambiente logo se configurará propício a que Gil Vicente retome a importância literária
do texto teatral desgastada pela espetacularidade medieval.
O teatro português, até então, subsistia em moldes primários. Foi, portanto,
este homem do povo o responsável por implantar, nas primeiras décadas do século 1 Texto escrito por Eraldo Maia (então estudante do 4º ano de Licenciatura em Arte Teatro da Universidade
Estadual Paulista), em 2012.
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XVI, um novo modelo teatral para Portugal. Segundo SPINA (1983) “Portugal não
desconheceu totalmente uma atividade teatral na Idade Média; mas tratava-se de
teatro religioso, um teatro inorgânico, desprovido de elementos literários e hoje não
documentado.”
Este teatro inorgânico cederia lugar, com Gil Vicente, a um teatro mais
elaborado, menos cenográfico e espetaculoso.
O impacto causado pelo aparecimento de Gil Vicente no teatro português está
também anotado por SPINA (1983, p.10) no qual cita um pequeno trecho da obra
Miscelânea do poeta Garcia de Resende, contemporâneo de Gil Vicente:
E vimos singularmente fazer representações de estilo mui eloqüente de mui novas invenções, e feitas por Gil Vicente: ele foi o que inventou isto cá, e o usou com mais graça e mais doutrina, posto que Juan Del Encina
pastoril começou.
Garcia de Resende, nestes “versinhos”, indica as fontes em que Gil Vicente se
inspira para a criação do seu teatro: o pastoril espanhol de Juan Del Encina. Porém,
se Gil Vicente bebeu mesmo dessa fonte, não a copiou nem a reproduziu. Dotado de
capacidade criadora, a transformou e, a partir dela, criou seu próprio teatro. Já sob os
eflúvios do Renascimento, o teatro vicentino nasce, tendo como foco o texto em
detrimento a cenografia e a espetacularidade: elementos tão caros ao medievo.
Gil Vicente renovou as artes teatrais portuguesas apoiando-se na cultura
popular, resgatando o prestígio do texto literário, para falar do homem de seu tempo,
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não nos moldes transcendentais e seletivos dos clássicos antigos, mas do homem em
geral, do mais baixo ao mais alto na hierarquia social: seus degradados costumes,
seus ultrapassados tipos, suas crenças, histórias populares, cantos, chistes, etc.
Afirma SPINA (1983): O teatro de Gil Vicente é uma fotografia perfeita desse
momento crítico em que o homem deixa a Idade Média e ingressa impunemente no
Renascimento.
Não somente o teatro vicentino é uma fotografia perfeita de seu tempo. O
próprio Gil Vicente é uma figura alegórica, representante desse momento de “agonia”
de uma cultura fundada no teocentrismo que é forçada a ceder à razão, às novas
ciências, às descobertas de outros mundos e a inevitável ascensão do homem ao
papel de protagonista nos feitos terrenos.
Gil Vicente é um homem “torturado” pelo seu tempo, um homem extraordinário,
dotado de alta capacidade de observação e inteligência. Porém, um homem ainda
preso a crenças e costumes do medievo.
Ainda que Gil Vicente tivesse vivido na alvorada do Renascimento português, contemporâneo de Castiglione, Erasmo e Maquiavel, não foi um humanista, nem um espírito representativo das influências italianizantes e clássicas: permaneceu um homem do outono da Idade Média, de cultura escolar e teológica, divorciado do saber científico, oferecendo uma concepção teocêntrica do mundo, um ideal social hierárquico e uma ética fortemente baseada na ascese: desnudar o homem, mostrar-lhe as misérias e apontar o caminho para a redenção. É assim que o pranteado Joaquim de Carvalho desenha o espírito do fundador do teatro português, em traços magistrais e definitivos. (...) Gil Vicente permaneceu um homem do povo, de profundas raízes nas tradições folclóricas e poéticas de sua terra, cujo mundo procurou levar para o tablado sem o processo clássico da seleção de temas. Gil Vicente foi um poeta e um dramaturgo de linha popular. Tanto na escolha dos temas como nos processos teatrais, e nas formas versificatórias, manteve-se fiel à sua vocação popular”. (SPINA:1983).
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1.2 – O teatro vicentino
Sejam quais forem os ascendentes do teatro de Gil Vicente: pastoreios, farsas,
entremezes, elementos ritualísticos católicos, etc, não há como compreendê-lo se
fugirmos aos padrões estéticos do teatro popular. Gil Vicente retorna ao teatro
textocêntrico de modo próprio, assentando-o em uma miscelânea representativa da
cultura popular. Trouxe à cena o homem comum, juntou-o ao homem da corte,
entrelaçou suas falas, dialetos, expressões chulas, resgatou cantos, histórias e figuras
alegóricas tecendo seu teatro com os tipos comportamentais mais emblemáticos do
mundo pré-renascentista.
No teatro Vicentino as normas estéticas da antiguidade clássica tornam-se
inadequadas. Desrespeita-se a verossimilhança, as delimitações temporais e
espaciais.
Funda, então, o dramaturgo português, um teatro centrado na força da palavra,
espelhando-se menos na personagem e mais “nos tipos”, caracterizados pela
indumentária e pela linguagem.
O Teatro Popular de Gil Vicente antecipou-se ao teatro do Renascimento, atribuindo, desde o seu aparecimento, uma força extraordinária à palavra e à caracterização de seus tipos, a ponto de a cenotécnica ficar relegada a um plano secundário”. (...) sua aparição veio quebrar a estética dos olhos e do ouvido, para impor uma estética da reflexão. O homem passou a ser o tema fundamental da dramaturgia. O homem de seu tempo e em todas as suas condições. (...) a inobservância da construção dramática trinitária, a fixação do cotidiano como substância temática de sua inspiração, o apelo aos recursos sugestivos da poesia popular, a participação do auditório no desenrolar da representação, a mistura intencional do cômico ao sério, a individualidade cênica de suas peças – enfim, tudo aquilo que o teatro clássico desconhecia -, faziam o encanto e marcavam a originalidade da arte teatral de Gil Vicente. (...) Porém, o encanto do teatro vicentino reside, em grande parte, nesse desprezo da categoria tempo e na quase total ausência da forma narrativa. (...) predomina, no seu teatro, a sucessão de pequeninos quadros, a lembrar a mesma técnica da pintura narrativa medieval e das novelas de cavalaria. (SPINA:1983).
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Traz Gil Vicente, ao fundar o seu teatro, algo muito peculiar do teatro popular: o
tipo, bem caracterizado. Inerente à este o viés cômico. Porém, por si somente o “tipo”
não produziria o efeito de comicidade que tão bem caracteriza o teatro vicentino. O
resultado decorre de eficiente trabalho do autor: ora pelos jogos de palavras, ora pelo
imprevisto empregado à cena, ora pela dupla inadaptação (utilização inteligente dos
contrastes).
O recurso ao cômico, o apelo aos momentos do mais enternecido lirismo; o sublime de cambulhada com os imprevistos da farsa; a inspiração que não seleciona os temas, (dando, portanto, a impressão de que qualquer assunto serve), tudo isso, num desapego deliberado de estéticas preconcebidas, contribui para a imortalidade literária do teatro vicentino. Gil Vicente criou arte sem atender aos cânones da arte. (SPINA:1983).
1.3 – Auto da Barca do Inferno
Concebida sob influências medievalistas, esta comédia dos vícios toma o
destino humano como tema. Nela, o pecado original praticado por Adão e Eva
estende-se a todos os homens, que já nascem condenados a expiá-lo.
A condenação eterna e as indagações sobre o destino que toma o homem após
a morte constituem o mote vicentino para este texto eminentemente vinculado à moral
cristã.
O maniqueísmo, o tom moralizante e os personagens alegóricos são traços homólogos à visão de mundo medieval e à cultura popular europeia da época do descobrimento. Assim a estratificação das personagens do teatro religioso medieval deve-se à sua pretensão didática, indispensável, visto que era uma arte dirigida ao povo para mantê-lo no credo. (MIRANDA, 2002).
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Em um porto, símbolo que representa o fim da vida terrena e ponto de partida
para a vida eterna, dois barqueiros, emblemas míticos do Bem e do Mal, aguardam
por passageiros que, depois de suas mortes, os procuram para fazer a travessia. De
um lado o Anjo, barqueiro do Bem que acolherá aqueles que em vida se comportaram
como manda os divinos sacramentos da Santa Madre Igreja Católica; do outro o
Diabo, barqueiro do Mal, pronto a conduzir os transgressores para a terra de ninguém,
deserto árido, onde o pesadelo do sofrimento eterno será uma promessa de pena aos
que se recusaram a aceitar os mandamentos cristãos.
Anjo e Diabo, investidos de autonomia, tomam os depoimentos dos futuros
passageiros e os condenam ao embarque. O julgamento se dá ali mesmo, sob estrita
obediência à letra da Lei celestial, sem que ambos, Anjo e Diabo acatem as
atenuantes expostas pelos infelizes pecadores. Cada um dos que ali está fez jus ao
“prêmio” que agora recebe de acordo com o seu comportamento terrestre. Ocultos
estão os procedimentos da travessia, e se a figura de Deus, o mandatário supremo,
intervirá por alguns deles durante o trajeto. A caminho da “terra prometida”, trajeto de
escuridão – purgatório bíblico – poderão os passageiros ser submetidos a muitas
provações, a nós omissas. Porém, cremos que a simbologia da água, sustentáculo à
navegação do barco, condutor dos penitentes, nos possibilita inferir a possível
lavagem dos pecados e que Deus, ser supremo, juiz de última instância, os acolherá
como filhos, após a purificação de todos. Seria, portanto, o trajeto, um momento
purificador?
Apesar da tragicidade do tema, o modo como Gil Vicente o expõe e o discute
afasta-o da tragédia e o direciona à comédia.
Assim, a seriedade do tema é quebrada pelo tratamento que recebe: ninguém pode chorar a sua sorte quando se depara com uma prefiguração de um juízo final. O modo como as personagens descobrem a sentença
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que lhes foi determinada dá-se de forma alegre e divertida, pois o rigor da sentença contrasta com o realismo grotesco de certos personagens e com o sarcasmo do interrogatório do Diabo. Disso decorre a comicidade da comédia dos vícios. (MIRANDA, 2002).
Para as personagens: Fidalgo, o sapateiro, a alcoviteira, o Corregedor, o Frade,
a concubina do Frade, o Judeu e seu bode, o enforcado, o onzeneiro, o parvo e os
quatro cavaleiros, o tempo, aqui na terra, é um tempo de construção, um tempo de
preparação para uma vida muito mais longa e profícua. Sendo, portanto, a vida
terrena momento transitório: o homem deve focar-se nos fins a que se destina esta
“passagem”. Seus interesses materiais devem ser subordinados a ascese, de cujos
resultados dependerá a salvação ou condenação. Neste contexto, os objetos
conduzidos até o porto, exacerbariam a ganância, o desvio de rota, a caricaturização
dos pecados, o apego, o desamor a Deus. O homem apegado aos seus bens
materiais não poderá entrar no reino dos céus. Os objetos são elementos que
materializam o pecado, elemento que irá impedir a ascensão do homem ao divino. As
instâncias cômicas e grotescas evidenciam-se no apego do morto aos objetos, detalhe
tratado com refinada ironia pelo autor.
Gil Vicente, apoiado em bases cristãs e populares, constrói um texto em que
sobressaem elementos da cultura clássica e mitos cristãos, mistura do grotesco e do
sublime, o sério e o cômico, linguagem vulgar e escorreita, tipos, alegorias, homens
de todos os credos e camadas sociais, diabos engraçados, irônicos, anjos irredutíveis
ao perdão, tudo para atingir seu público e levar a frente seu desejo de ver triunfar os
preceitos da Santa Madre Igreja Católica.
2 – O Brasil Colônia
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2.1 – O jesuitismo brasileiro
Os movimentos de cisma pelos quais passa a Igreja Católica, a partir dos
meados do século XVI, resultam no fortalecimento da ortodoxia. Bulas propalam e
exigem dos fiéis e clérigos o cumprimento dos dogmas. O Tribunal da Santa
inquisição e a Companhia de Jesus (1540) - organismo oriundo desse momento
perturbador e que se instala no Brasil colônia - possuem a tarefa de aqui vigiarem e
punirem as dissidências e com mão-de-ferro exigirem o cumprimento dos
mandamentos e da ética católica cristã.
Com a vinda do primeiro Governador Geral do Brasil, Tomé de Souza, 1549,
vieram também as primeiras missões jesuíticas.
A Universidade Temporã afirma: A missão dos Jesuítas era a de cumprir o
mandato real de conversão dos indígenas e dar apoio religioso aos colonos, para o
que recebiam subsídios do Estado, bem como sesmarias destinadas à manutenção
dos estabelecimentos que viessem a criar. (CUNHA: 2007, p.26).
Em nota de rodapé, CUNHA (2007, p.25) expõe, em rápidas linhas, a que
estava voltado o projeto educacional (catequético) ou catequético-educacional da
Companhia de Jesus no Brasil
A política educacional de Manuel da Nóbrega, quando provincial da Companhia de Jesus no Brasil, de 1549 a 1553, estava voltada para a construção de “recolhimentos” para meninos indígenas e reinóis. Nesses estabelecimentos, organizados como confrarias dirigidas por leigos, com seu patrimônio próprio, ensinava-se a doutrina cristã, os “bons costumes” e as primeiras letras; os mais hábeis no trato com as letras recebiam o ensino do latim, e os demais, ensino profissional, agrícola ou artesanal. Entretanto, a orientação educacional de Nóbrega foi logo desautorizada pela ordem, dissolvendo-se os recolhimentos e incentivando-se os colégios, de onde o ensino profissional e os curumins foram logo afastados.
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O fato é que o governo português percebeu que os próprios interesses
jesuíticos sobrepunham os interesses da Coroa. Tomado por esta descoberta a Coroa
portuguesa adota medidas que mudaram as diretrizes educacionais de Manoel da
Nóbrega: obrigando-o a tratar os nativos com mais rigor. Anelava o governo de
Portugal que os jesuítas facilitassem aos colonos a escravização do índio. O índio,
escravo da fé cristã, seria um dia dócil à escravidão para o trabalho, nos parâmetros
compreendidos e estabelecidos pelo governo português. O ensinamento da moral e
dos bons costumes cristãos deveria seguir os mesmos métodos que eram
desenvolvidos pela Companhia de Jesus na Europa.
Essa violência com o habitante local levaria ao aniquilamento da cultura
original: substituição dos mitos pagãos indígenas pelos mitos da Igreja romana,
introdução da língua latina e portuguesa em substituição ao tupi-guarani, releitura,
reorganização e substituição dos valores éticos morais indígenas pelos valores éticos
morais cristãos.
Esses eram, verdadeiramente, os pressupostos que sustentavam a
permanência da Companhia de Jesus no Brasil. Pacto firmado entre o governo
português e a Companhia na Europa, do qual, em ínfimos pontos desviara-se
Nóbrega.
É certo que a luta jesuítica procurava não somente atender às solicitações do
governo português, mas, principalmente, expandir o pensamento cristão e os dogmas
da Companhia aos colonos e nativos, tirando também largos proveitos econômicos.
Os choques entre a interessada atuação jesuítica sobre a economia, a ganância
exploratória da coroa de Portugal sobre a colônia e o desejo escravocrata do colono
para com o índio, culminaram com o quase aniquilamento físico do índio brasileiro.
Apesar de relatos históricos em defesa dos jesuítas proclamarem os cuidados destes
para com a preservação física do índio americano, não podemos deixar de
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responsabilizá-los pela violência com que pretendiam extinguir a cultura indígena,
aniquilando seu passado, tradições, história. A “conversão” foi também muitíssimo
responsável pelo aniquilamento físico e psicológico de milhões de índios no Brasil, os
quais preferiam morrer a se verem reféns do escravismo ou fiéis ao mito de Eva.
Entre os projetos que os jesuítas traziam de Portugal, ao criar a Província do Brasil em 1552, logo estaria o de realizar representações escolares que, reafirmando o ponto de vista católico contra os protestantes, na linha da Contra-Reforma, dessem ainda aos alunos de seus colégios a oportunidade de praticar o latim, a exemplo do que se fazia na Europa. (PRADO:1993, pag. 10).
A catequização implicava substituição da língua local, aprendizado de novos
costumes e consequente introdução de “ideologias perversas”.
Com fins catequéticos todos os meios foram utilizados, desde a imposição pelo
chicote, torturas psicológicas, pena de morte, até os mais brandos, como a utilização
do teatro por José de Anchieta, que se intensifica a partir de 1557.
2.2 - O teatro de José de Anchieta
O fim primaz do teatro jesuítico era mesmo a catequese. Suas peças
assentavam-se em temas sagrados o que lhes conferia e fortalecia o conteúdo
religioso. Não é à toa que José de Anchieta preferia representar seus temas no
formato de Autos. (Peças alegóricas, geralmente montadas em palcos provisórios,
tratando de temas religiosos. “Estética” oriunda da Idade Média).
Anchieta soube compreender muito bem os fins a que se propunha seu teatro e
trabalhou com acerto os meios para alcançá-los. Suas peças eram representadas em
momentos especiais: as efemérides. Não havia o que podemos chamar, hoje, de
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temporada. Eventos religiosos ou visita de grandes personalidades da Administração
da Coroa ou eclesiásticas eram momentos propícios para levar avante suas
representações. Não implicava, entretanto, que, no âmbito restrito da aldeia, José de
Anchieta, “nestes longos intervalos jejunos de eventos” (SPINA:1993), não
trabalhasse o teatro com os fins catequéticos a que ele se propunha.
Os eventos merecedores de tais representações assistiam a um teatro cuja
tessitura se compunha do entrelaçamento entre os fios da arte e da religião, como
também dos elementos constituintes da cultura ameríndia e da europeia. Fundiam-se
línguas, criavam-se novas palavras, atendia-se a todos, ora falando o tupi-guarani, ora
o espanhol, ora o português, ora o latim. Mesmo pertencendo a um contexto maior,
sendo parte de comemorações quase sempre religiosas, a mistura entre o religioso e
o cômico, o sagrado e o profano, este quase sempre a cargo do diabo, era outra
particularidade do teatro de Anchieta.
Era muito forte a comunicação estabelecida pelo veio sensorial no teatro
anchietano. Além do cenário natural, sujeito a sons e movimentos da natureza no
entorno, os elementos mágicos, a música e a dança, no caso desta quase sempre
representada pelas crianças indígenas, ajudavam a compor este ambiente propício ao
acolhimento das múltiplas percepções de seu público.
A presença de elementos fantásticos, místicos, como diabos, sempre
antagônicos, anjos heróis, personificação da Morte, do Tempo, da Prudência, do Amor
de Deus, complementavam o quadro de convencimento catequético a ser mostrado
ao expectador local, culminando com o Bem sendo sempre um vencedor na luta
contra o Mal. Ou seja, o diabo, Anhangá, seria invariavelmente derrotado pelo anjo,
pelos santos, pela força da religião cristã, que se apresentava como salvadora do
homem num plano acima do terreno e de qualquer desgaste do tempo.
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Os textos de Anchieta deveriam funcionar como sermões dramáticos, não aceitavam qualquer desfalecimento da vontade perante o Mal. A condenação impiedosa do pecador, a presença do castigo eterno pairando sobre a cabeça de todos, e não apenas dos infiéis, talvez sobre a regra do gênero, se não a sua regra básica”. (...) a função do Mal era ser esmagado pelo Bem, passada a fase de bravatas. (PRADO:1993, p.22).
2.3 – Na Festa de São Lourenço
Tudo junto e misturado (expressão de uso popular)
Esta expressão popular bastante em voga, hoje, para expressar o ecletismo de
cores, origens e culturas que compõem o povo brasileiro caberia muito bem como
epígrafe ao teatro de José de Anchieta.
Escrita, provavelmente, entre 1583 e 1586, Na Festa de São Lourenço é uma
colcha de retalhos. Falam-se várias línguas, convivem lado a lado o sagrado e o
profano, o grotesco e o sublime, o riso e o sério. O mundo das personagens
contempla um painel com índios, anjos, demônios, imperadores romanos, santos,
figuras simbólicas, etc, que por si mesmas já explodiriam qualquer possibilidade de
respeito à unidade de tempo e à verossimilhança.
Esse verdadeiro caos histórico, ou a-histórico, vai do infinitamente grande ao infinitamente pequeno, do divino ao humano, do material ao imaterial, do passado remoto ao presente imediato, do local ao universal, formando um bloco cultural complexo a que unicamente os padres da Companhia de Jesus (e talvez nem todos) estavam em condições de ter acesso. Mas o caos organiza-se, adquire sentido, torna-se compreensível mesmo a cérebros jejunos de teologia e Antiguidade Clássica, se, ignorando as épocas e passando por cima das individualidades, separarmos as personagens, como faz idealmente a peça, em apenas dois grandes e caracterizados grupos: os inimigos e os amigos da Igreja Católica. (PRADO:1993, p.24).
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O embate se situa, então, no plano da luta do Bem contra o Mal. Os amigos
(europeus) eram não somente defensores da Igreja, mas também gente do Bem. Os
inimigos da Igreja (índios não redimidos, figuras deuses e crenças da cultura
ameríndia) caracterizavam-se como os representantes do Mal. Enfoque maniqueísta
necessário para dividir, sem meios termos, o mundo em duas fatias: aqueles que
estavam com o Diabo, representantes de forças destruidoras, desagregadoras e
aqueles que estavam com a Igreja Católica e, consequentemente, com Deus, o
responsável pela felicidade eterna dos homens, o dono do destino humano.
A cultura e pensamento europeus, representada pelo homem branco, o homem
superior, o representante divino, estão aqui simbolizados como elementos do Bem
que teriam de ser cultuados pelos habitantes do Novo Mundo.
Anchieta principia seu processo conversor pelo alto da escala hierárquica
indígena. Guaixará é personificado como o Diabo, apresentado como figura do Mal,
combatido e vencido.
O baluarte da cultura indígena, o responsável pela união da tribo, da
perpetuação dos costumes, aquele a quem se recorre para a cura de todos os males,
o ouvidor, o conselheiro, o juiz que decide todas as querelas, enfim, a “autoridade”
maior da comunidade indígena, passa, instantaneamente, a ser considerado como
responsável por todos os males, e aqueles que o seguem ou o seguirem serão
também considerados discípulos do Mal e penalizados por isso. Assim, de modo
abrupto, José de Anchieta propõe a substituição do mito indígena pelo mito cristão,
não sem as queixas e a resistência preliminares de Guaixará:
Molestam-me os virtuosos, irritando-me muitíssimo os seus novos hábitos. Quem os terá trazido para prejudicar a minha terra”? Que “ao invocar os costumes ameaçados, entre muitos que a ótica cristã condena – beber, matar, amancebar-se, ser desonesto, adúltero - enumera outros de
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natureza meramente social: É bom dançar, adornar-se, tingir-se de vermelho, empenar o corpo, pintar as pernas, fazer-se negro, fumar (...) (PRADO:1993, p.30).
Seria então o novo mito um ente capaz de resolver os problemas que se
apresentam como insolúveis àquela comunidade. É o que oferecer Anchieta aos seus
seguidores. Para o índio, talvez o fato do mito cristão projetar para o plano das ideias
a Felicidade, tenha contribuído para a adesão à nova crença, á medida que posterga
a esperança por um prazo a perder de vista.
Para um povo que conversa de igual para igual com seus Deuses, recebendo
destes as afirmações ou negações, sofrendo, muitas vezes, a decepção da negativa,
o fracasso no aqui agora, a esperança na eterna felicidade se configura como uma
possibilidade encantadora, uma vez que jamais seria frustrada a empreitada. Pois, se
os frutos, as benesses tão esperadas não fossem colhidas agora no plano da vida
terrena as seriam em outro. Não haveria, portanto, fracassos ou negativas. O Deus
cristão, o novo e prometido “Salvador”, cumpriria aqui ou no além a sua promessa.
Talvez o atendimento demorasse, mas viria. Diferentemente do Sol, da Lua, da Terra,
dos Ventos, cujos resultados do solicitado teriam que ser sentido no já, de modo
palpável, imediato, fossem eles respostas positivas ou negativas. Mesmo que o Deus
cristão demorasse a atendê-los, não importava: o sofrimento aqui seria tributo a uma
vida futura plena de realizações. Anchieta prometia essa felicidade, desacreditando os
mestres indígenas, seus caciques, responsabilizando-os, como demônio, pelas
agruras e angústias sofridas por todos. O demônio indígena tinha agora feições
humanas e estava frente a eles, era aquele mesmo que se dizia capaz da cura.
Ao desacreditar o Pajé, ao responsabilizá-lo pelas doenças, pelas más
colheitas, Anchieta golpeia de morte a cultura indígena. Atordoa o índio, que não mais
sabe em quem acreditar, nem mesmo quem é. Diz Aimberê: “Sou jiboia, sou socó, o
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grande Aimberê tamoio. Sucuri, gavião malhado, sou tamanduá desgrenhado, sou
luminoso demônio”.
São Lourenço e São Sebastião, emblemas do Bem, procuram mostrar a
Aimberê e seus súditos que somos todos iguais, que Deus (o Deus cristão) criou
todos a sua imagem e semelhança. Que eles podem ser como os brancos, pois é
assim que Deus o quer. O branco é dono da verdade, da sabedoria e da felicidade
encantada, às quais o índio poderá também ter acesso, basta, para tanto, que
abandone suas crenças, mitos, cultura, que se submeta sem reclamos à escravidão,
que esteja disposto a sofrer aqui, para, num plano superior, gozar a felicidade
prometida.
O índio precisa ser convencido de que o Deus que não se faz visível, o Deus
cristão, é forte. Mais forte que o Sol, a Terra, a Lua, companheiros de todo dia, com
seus bons e maus humores e com quem eles trocavam longos diálogos e juras de
obediência.
Os Deuses terrenos jamais falaram ao índio ou o ensinaram sobre o profano e
o sagrado. Essas distinções, agora oferecidos pelo preceitos cristãos, afrontam-no.
Havia sim entre eles códigos, tabus, que se rompidos poderiam resultar em castigos,
que se desrespeitados gerariam exclusão, morte, banimento, etc. Estes códigos e
tabus estavam sendo substituídos por algo novo: o pecado. De difícil entendimento,
pois implicava conhecimento de algo também novo: a moral cristã, à qual era alheio o
índio.
Se o pajé não era mais pajé e sim demônio, se os tabus tinham o nome de
pecado, se as regras de convivência recebiam agora denominação de preceitos
morais, se Deus era um ser invisível, se o Sol e a Lua não poderiam mais ajudá-los,
quem então seria o índio? Um convertido talvez, um catequizado talvez, um homem
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talvez, um ninguém certamente. E é a procura desse ninguém que está José de
Anchieta.
2.4 – Na Festa de São Lourenço – Construção estétic a
De tênue unidade dramática, sem respeito à verossimilhança e à unidade de
tempo, Na Festa de São Lourenço é apresentada sob o sol e as estrelas, em meio a
natureza. De caráter estritamente catequético e exaltador do poder da Igreja, apesar
da precariedade em sua unidade dramática, acaba por surtir os desejados efeitos
catequéticos a que se propõe o jesuíta. O objetivo é mostrar aos índios e aos colonos
o poder católico frente à fragilidade dos homens e do Mal: elemento nocivo que habita
em todo aquele que não for temente ao Deus cristão. Com os espíritos demoníacos
instalados em pajés, com diabos medrosos e temerosos de agir e não reagindo à
prisão, com imperadores romanos falando tupi-guarani, Anchieta expõe o viés cômico
da peça e com ele conquista seu espectador.
Ao destacar a presença dos demônios, denota o quanto a Igreja necessita
desse elemento do Mal, sem o qual o Bem não poderia mostrar sua força, seu
combate. Sem os demônios como poderia punir pecadores, destruir o Mal, levantar
bravatas para impressionar. Portanto, Guaixará, Aimberê e tantos outros são
elementos de que se utiliza Anchieta, para mostrar-lhes como ícones defensores da
cultura indígena: cultura do Mal. Defensores que, derrotados, servem como exemplo
de quão forte e soberano é o poder divino.
O cômico e o grotesco são buscados a qualquer preço sem se importar com a
verossimilhança. Por exemplo, imperadores romanos falando a língua tupi-guarani,
pajés convertidos combatendo imperadores romanos ao lado de santos da Igreja
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Católica. Tudo era válido, desde que a mensagem chegasse com acerto ao público
alvo.
Buscava-se, como se percebe, um efeito cômico acessível ao público, ainda que à custa da lógica e das regras habituais da dramaturgia. Importava o “recado” (é a palavra empregada a respeito dos sermões do Temor do Amor de Deus) religioso, não a estruturação e o acabamento artístico. (PRADO:1993, p.28-29).
3 – Auto da Barca do Inferno e Na Festa de São Lour enço: confronto
Aproximadamente sessenta e cinco anos separam o nascimento do Auto da
Barca do Inferno de Na Festa de São Lourenço. No entanto, a distância cronológica
não impede que se inspirem nas mesmas fontes: autos medievais e cultura popular.
De modos diferentes, apoiam-se no tema religioso católico cristão para cortejarem seu
diversificado público. Gil Vicente apresenta seu espetáculo para o homem citadino, o
homem da Corte portuguesa, se não em um teatro regular, como hoje o conhecemos,
pelo menos em palácio ou entre paredes. José de Anchieta o faz para índios, negros,
colonos e mestiços da colônia Brasil, tendo como cenário a natureza brasileira.
Anchieta dialoga com o mundo dos vivos. Seu Auto dá-se no plano terreno e as
personagens que já haviam embarcado para o plano celestial, como os imperadores
romanos, o anjo, os santos Lourenço e Sebastião, ressuscitados ao mundo dos vivos.
São trazidos, também, à cena personagens alegóricas como O Amor de Deus e o
Temor de Deus encarnadas em personalidades humanas.
Em Gil Vicente, todos estão mortos. O plano não é mais terreno e os diálogos
ocorrem no universo dos mortos. Neste plano, somente a hierarquia divina prevalece,
os modos hierárquicos humanos de organização social, aqui, invalidam-se, e todos,
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sem exceção, necessitarão prestar contas à “entidade” superior. Num ambiente assim,
os objetos, os apetrechos humanos, as vontades e autoridades não mais se prestam a
organizar a vida e a delimitar o espaço e a atuação de cada um. Todos são iguais
perante o divino e todos sofrem o mesmo medo do desconhecido.
O porto, lugar escolhido por Gil Vicente para o embarque dos recém-falecidos,
é o ponto de encontro e de partida, passagem para o desconhecido.
Em O Auto da Barca do Inferno, aparentemente, o destino de todos já está
traçado. Não há mais nada a ser feito. O percurso das personagens, a vida, seus
erros e acertos balizarão o julgamento e serão determinantes para indicar se elas são
ou não merecedoras de ocupar um lugar no reino dos céus.
Na Festa de São Lourenço, as personagens ainda têm salvação, desde que se
convertam ao chamado da Santa Madre Igreja Católica. À exceção daqueles
“resgatados” para uma nova aventura terrena, todos estão percorrendo o trajeto que
os levará inevitavelmente ao mesmo porto vicentino à espera das mesmas barcas e
dos mesmos barqueiros. Entretanto, até lá chegarem, poderão ter seu destino
alterado pela mão poderosa do Deus cristão.
Anchieta não se propõe a apresentar um painel de maus exemplos para os
que, aqui, ainda estão, mas um conjunto de atitudes a serem tomadas no hic et nunc
(aqui e agora), as quais poderão conduzi-los pelos caminhos do sagrado. Não constrói
um receituário, exemplificando-se nos que já partiram, mas para os que ainda aqui
estão. Em Gil Vicente, as vidas das personagens, seus comportamentos e
transgressões servirão de exemplos aos outros homens, que pelos exemplos e
punições dos mortos se converterão ainda em vida. Anchieta precisa que a conversão
se dê agora, não procura resgatar almas futuras, mas ter ao seu lado, professando a
sua fé o homem presente. Necessita do índio, cativo da fé, cativo no trabalho. Mais
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um cordeiro para o rebanho cristão. Anchieta trabalha com o presente para modificar
o presente. Gil Vicente trabalha com o passado para alterar o futuro.
Diante de seres descarnados e sem autonomia, o Diabo vicentino consagra-se
todo poderoso. Já em Anchieta o Diabo precisa ser fraco, governável, sem autonomia
e facilmente vencível.
Essa diferenciação é a responsável, em O Auto da Barca do Inferno por um
Diabo pleno de poderes, um julgador que já sabe ter em suas mãos, ancorado nas leis
celestiais, que são também infernais, indivíduos pecadores, comprometidos com os
pecados terrenos e por eles afundados no lamaçal de uma vida eterna desgraçada.
Não há, no texto de Gil Vicente, limites a esse capeta irônico. Ante a recusa de
qualquer passageiro, não se incomoda nem se perturba, pois sabe que o anjo,
implacavelmente, o encaminhará de volta a barca infernal. Há, no entanto, um ponto
comum em ambos: a lei é de talião2. Anchieta a apresenta aos vivos, como
advertência. Gil Vicente a executa sem dó ou piedade: pecou, transgrediu, será
convertido em passageiro da Barca do Inferno.
Em Anchieta, o Diabo é grotesco, falastrão, até resiste, mas não tem nenhum
poder diante do divino. Não julga, não resgata, antes, se rende à mão poderosa da
Igreja Católica, transmuda-se e atua junto com ela ao lado dos santos e anjos. A
metamorfose por que passa o Diabo é a metamorfose pretendida por Anchieta para
todos os gentios. Esse recado catequético de que com as forças da Igreja nem o
Diabo pode é o fim precípuo do Auto de São Lourenço.
Em ambos os textos encontramos a comunhão do sagrado com o profano, do
grotesco com o sublime, da presença de homens das mais diversas classes sociais
2 Lei que imperava no Velho Testamento, na qual havia a prática conhecida como “olho por olho, dente por
dente”.
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convivendo juntos. Ressalte-se que em Anchieta o índio atua junto, transpõe a
barreira do silvícola oprimido para colocar-se a serviço da arte, mesmo que esta arte
intencione produzir resultados adversos a esse novo homem novo. Em ambas, pode-
se encontrar também certo nível de tensão entre o mundo oficial e o mundo popular.
Embora Anchieta proponha uma vivência ancorada no mundo terreno, tanto no
Auto da Barca como no Auto de São Lourenço pode-se vislumbrar desprezo à vida
terrena e a consequente valorização do espiritual.
Aparentemente poderíamos supor que o Diabo de Anchieta possuísse mais
recursos para explorar o cômico, pois um diabo fraco, manipulável e que é facilmente
convertido à fé cristã parece-nos bastante risível. No entanto, não é isso o que ocorre.
A Tessitura dialógica entre personagens vicentinas e o demônio que os recebe, sob a
ótica do riso, a nós nos parece efetivamente mais fortalecido.
Gil Vicente nos pergunta: qual será o nosso destino imposto pela morte?
Anchieta nos convida a morrer já ciente do que será o nosso destino: a vida cristã
traçará caminhos seguros para o paraíso, o valor da vida terrena esvai-se rumo ao
futuro. O aqui é transição, nossos esforços cotidianos dirigem-se à compra de um
bilhete para a felicidade eterna. Felicidade que somente a morte pode nos trazer em
modos definitivos. O viver nos preceitos cristãos, o obedecer aos mandamentos da
Santa Madre igreja Católica são o passaporte para um futuro de paz, onde todos os
problemas deixarão de existir e só o Bem prevalecerá.
Gil Vicente questiona. Anchieta promete.
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BIBLIOGRAFIA
CUNHA, Luiz Antônio Constant Rodrigues da. A Universidade Temporã. São Paulo:
Editora Unesp, 2007.
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Auto da Barca do Inferno. Revista: Acta Scientiarum, Maringá: v. 24, n. 1, p. 59-66,
2002.
PRADO, Décio de Almeida. Teatro de Anchieta a Alencar. São Paulo: Perspectiva,
1993.
SPINA, Segismundo. Obras-primas do Teatro Vicentino. São Paulo: Difel, 1983.