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Investigao Filosfica, v. 6, n. 2, 2015. (ISSN: 2179-6742) Artigos/Articles
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A BIOLOGIZAO DA POLTICA E A POLITIZAO DO BIOLGICO:
PODER E VIDA NA OPERAO SOBERANA
Pedro Lucas Dulci1
RESUMO: o presente artigo tem por objetivo, a partir dos recentes acontecimentos envolvendorefugiados e imigrantes para a Europa, problematizar a condio poltica contempornea.Atravs da chave de leitura biopoltica de Michel Foucault e Giorgio Agamben, procuraremosmostrar que o que est no centro das caractersticas distintivas da governamentalidade atual uma biologizao da vida nua, ou seja, o mero preocupar-se com os corpos de indivduosmatveisainda que, ao mesmo tempo, sejam insacrificveis. Para tanto, nos ocuparemos comos paradoxos jurdico-poltico envolvendo a noo de soberania, bem como a aporia envolvendoo poder constituinte e o poder constitudo.
PALAVRAS-CHAVE: Refugiados. Biopoltica. Soberania. Homo Sacer. Poder constituinte.
Abstract: from the recent events involving refugees and migrants to Europe, this articlediscusses the contemporary political condition. Through key biopolitics reading MichelFoucault and Giorgio Agamben, will try to show what is at the core of the distinguishingfeatures of the current governmentality is a biologization of bare life. That is, the mere concernitself with the bodies of killable individuals - although at the same time, they are insacrificveis.To this end, we will work with the legal and political paradoxes involving the notion ofsovereignty, but also the aporia involving the constituent power and constituted power.
Keywords:Refugees. Biopolitics. Sovereignty. Homo Sacer. Constituent power.
Introduo
No ltimo ms de setembro, o mundo recebeu a foto do corpo de Aylan Kurdi
encontrado em uma praia de Bodrum. O menino srio de trs anos faleceu tentando,
junto com sua famlia, a travessia clandestina entre a Turquia e a Grcia. Ainda que a
imagem do corpo de uma criana morta em uma praia tenha causado uma consternao
internacional, Paulo Srgio Pinheiro, o lder da comisso da Organizao das Naes
Unidas que investiga crimes de guerra na Sria, nos garante que o espetculo de
cadveres nas praias da Europa era um fenmeno previsvel (BBC, 2015, s/p.), em
razo da situao catica que o pas atravessa. Talvez a comoo internacional no
tenha tido lugar em nosso meio antes porque nem todas as imagens de seres humanos
mortos na praia so to comoventes quanto de uma criana branca como o caso de
centenas de negros que morrem todas as semanas em botes que naufragam antes de
chegar praia, como acontece em Lampedusa, na Itlia, todos os anos. Nesse sentido,
aps o momento de sensibilizao mundial, agora que precisamos pensar a chamada
1Doutorando em Filosofia (UFG).
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crise humanitria envolvendo os refugiados e migrantes contemporneos.
Desassociando de qualquer repetio atravs da comparao de imagens como
fizeram alguns entusiastas de redes sociais com outras fotografias histricas de crianas
em condio de abandono morte convm perguntarmos: o que est em questo na
atual odissia migratria em botes atravs do Mediterrneo?
Vrios so os fatos que nos chamam ateno nessas notcias, no entanto, o
filsofo esloveno Slavoj iek parece atingir o centro da questo quando sustenta que
esse incidente, envolvendo os refugiados e imigrantes, mostra que a noo de
Agamben do homo sacer, o excludo da ordem civil que pode ser morto impunemente,
est em plena ao no corao da prpria Europa, que se v como ltimo bastio dos
direitos humanos e da ajuda humanitria em contraste, por exemplo, com os Estados
Unidos e os excessos da guerra ao terror (2011, p. 4-50). Em seguida, iek
desenvolve propriamente o seu argumento descrevendo um paradigma poltico de quase
dez anos, mas que ainda atual:
Em julho de 2008, como numa irnica anuncia teoria do estado de exceo deGiorgio Agamben, o governo italiano decretou estado de emergncia em toda aItlia para enfrentar o problema do Prximo em sua forma contemporneaparadigmtica: a entrada ilegal de imigrantes da frica do Norte e da Europaoriental. No incio de agosto, dando um expressivo passo alm nessa direo,foram mobilizados 4 mil soldados armados para controlar pontos sensveis nasgrandes cidades (estaes ferrovirias, centros comerciais...) e, assim, elevar onvel de segurana pblica. Atualmente, tambm h planos de usar as forasarmadas para proteger as mulheres contra estupradores. Aqui, o importante observar que o estado de emergncia foi institudo sem grandes protestos: a vidacontinuou normalmente... No seria esse o estado do qual nos aproximamos nospases desenvolvidos do planeta, onde esta ou aquela forma de estado deemergncia (empregada contra ameaas terroristas, imigrantes etc.) simplesmente aceita como medida necessria para garantir o curso normal dascoisas? (IEK,2011, p. 49).
A aluso de iek, no pargrafo supracitado, teoria do estado de exceoe do
homo sacer, ambas oriundas do pensamento de Giorgio Agamben, tem por intenomostrar que o que est em prtica corrente na gesto pblica dos pases mais
desenvolvidos do mundo uma clara expresso da xenofobia insensata e inaceitvel
para os padres democrticos, em prol de medidas sensatas de segurana pblica no
menos xenofbicas e racistas. Nas palavras de iek essa viso de desintoxicao do
Prximo representa uma passagem clara do barbarismo direito para o barbarismo
berlusconiano de rosto humano (2011, p. 50). Aqui, a invocao da figura de Silvio
Berlusconi bastante significativa, pois se trata de um fenmeno poltico caracterstico
de nossa contemporaneidade pblica, em que tnhamos o poltico mais poderoso da
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Itlia agindo de forma absurda e totalmente desavergonhada, ora ignorando, ora
minimizando as investigaes legais sobre suas atividades criminosas que sustentam
interesses comerciais particulares a partir de suas influncias como chefe de Estado.
Com esse exemplo, presenciamos um rompimento com a dignidade poltica clssica,
onde tnhamos a esfera ideal do citoyen separada dos conflitos e interesses egostas
caractersticos do bourgeois. O procedimento de Silvio Berlusconi mostra, de maneira
sintomtica, que essa separao foi drasticamente extinguida. O que temos que na
Itlia contempornea, o poder do Estado exercido diretamente pelo vil bourgeoisque
explora de maneira clara e impiedosa o poder do Estado para proteger seus interesses
econmicos e discute seus problemas conjugais diante dos milhes (2011, p. 51) que
acompanham a transmisso televisiva, no pior estilo de um reality show.
A grande questo que paira sobre os que identificam esse rompimento com a
dignidade clssica do fazer poltico : como foi possvel chegar a tal ponto?
Acreditamos que a resposta sobre tal possibilidade se deu atravs da insero do mero
indivduo, como simples corpo vivente, nas estratgias de gesto poltica vigentes. Ou
ainda, para usarmos a terminologia original de Michel Foucault, o acoplamento da vida
no aparato governamental chamado de virada biopoltica. Por trs de cada um dos
exemplos especficos envolvendo os refugiados e migrantes mencionados
anteriormente, existe uma dinmica biopoltica que perpassa as principais prticas da
gesto pblica como um denominador comum. O propsito do presente artigo
explorar justamente essa dinmica, bem como os seus mais evidentes resultados a
figura do homo sacercomo paradigma poltico.
1. A biologizao da poltica e a politizao do biolgico
Antes de explorarmos a zona de indiferena que existe hoje em dia entre asprincipais categorias polticas (direita/esquerda; privado/pblico;
absolutismo/democracia etc.), convm retrocedermos um pouco para quando tal
indiferena no era to evidente. 2 Para tanto, Agamben recua at a Poltica de
2 Utilizamos a expresso to evidente como um modo sutil de questionar a preciso total dadiferenciao que apresentaremos a seguir. Fazemos isso, tendo em mente que a recuperao queAgamben faz da filosofia poltica de Aristteles como a porta de entrada privilegiada para os gregosno assim to exclusiva. O brilhante professor argentino Fabin Luduea Romandini nos amplia o
horizonte quando nos lembra que Agamben acentuou a distino entre zoe bos, tentando demonstraque, para os gregos, somente o bosera algo semelhante a uma vida qualificada e, portanto, o sujeito maisprprio da poltica, enquanto azo representava, por assim dizer, uma vida natural originalmente excluda
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Aristteles para mostrar que os gregos tinham, pelo menos, dois temos para fala sobre
aquilo que chamamos de vida. So eles zo que exprimia o simples fato de viver
comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bos, que indicava a forma
o maneira de viver prpria de um indivduo ou de um grupo (AGAMBEN, 2002, p. ).
Em outras palavras, enquanto a zo sempre dizia respeito simples vida natural dos
seres vivos, sejam eles quem for, a bosaponta para um estilo de vida qualificado, um
modo de vida particular. Nesse sentido, a simples vida natural no poderia ser objeto
dos assuntos dapolisgrega, antes, precisava estar restrita a o mbito do oikos, fazendo
com que o alvo da comunidade poltica seja radicalmente diferente do mbito privado
da casa enquanto a primeira visa o bem viver e a vida politicamente qualificada, a
segunda objetiva a simples vivncia e reproduo da vida. 3
Exclusiva de Aristteles ou no, tal diferena clara entre esses dois modos de
vida no permaneceu inalterada. Foi o filsofo francs Michel Foucault que, ao final de
sua anlise empreendida para compreender as sociedades modernas, identificou a
modificao do exerccio e da representao do poder soberano e junto dela, o fim da
clara separao entrezo e bos. Esquematicamente, podemos dizer, a partir de Vigiar e
Punir e A vontade de saber, que, enquanto por muito tempo as duas marcas
caractersticas do poder soberano fora o fazer morrer e deixar viver, relacionado figura
jurdica que confiscava e apropriava-se dos bens, dos corpos e da vida dos indivduos; a
partir da idade clssica o Ocidente viu a desqualificao da morte, e o desuso dos rituais
polticos que o acompanhavam, enquanto exerccio do poder soberano. A frmula agora
fazer viver e deixar morrer, tudo isto atravs da ordenao de normas para a gesto e
controle desta vida produzida e no mais fundamentalmente pelo direito que, como
nos mostrar Agamben, muitas vezes precisa ser suspenso para dar lugar s medidas de
do mundo da cidade. Esta leitura, indubitavelmente parcial, no leva em conta, para comear o corpusplatnico que acabamos de considerar. Somente com a excluso deste ltimo das verdadeiras origens davida poltica que foi possvel concluir que existe algo como uma oposio to ntida entre zoe bos(ROMANDINI, 2012, p. 29). O objetivo de Luduea, como tambm o nosso, em explicitar tal opo deleitura presente em Agamben no , de forma alguma, desmerecer a potencia que sua argumentao tem.Antes, visa ampliar nossa compreenso sobre a operao soberana no ocidente. A hiptese de Luduea que, j bem antes em Plato, era possvel afirmar quer no existe nenhuma soberania que no seconstitua, precisamente, sobre azo, sendo esta o objeto originrio de toda a poltica (2010, p. 2-30).3 Qualquer aluno do primeiro semestre de uma disciplina de filosofia poltica se lembraria da clebredefinio do ser humano como politikon zoon (Poltica, 1253a, 4). Quanto a essa exceo deAristteles, Agamben explica que ( parte o fato de que na prosa tica o verbo bionai no praticamente usado no presente), poltico no e um atributo do vivente como tal, mas uma diferenaespecifica que determina o gnero zoon(logo depois, de resto, a poltica humana distinguida daquelados outros viventes porque fundada, atravs de um suplemento de politizao ligado linguagem, sobreuma comunidade de bem e de mal, de justo e de injusto, e no simplesmente de prazeroso e doloroso) (AGAMBEN, 2002, p. 10).
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exceo em favor da vida e segurana da populao. Neste sentido, a imagem de poder
que opera contemporaneamente no mais caracterizada pela morte e pela lei, mas pela
vida e pela norma. Isto ele faz a partir atravs de duas esferas distintas, mas totalmente
interligadas: as disciplinas do corpo e as regulaes da populao. 4 Esta grande
tecnologia de duas fazes aquilo que Agamben chama de teoria unitria do poder em
Foucaultabre-se assim a era de um bio-poder (FOUCAULT, 188, p. 131-132).
Os movimentos de tal teoria podem ser melhor compreendidos a partir das seguintes
palavras do prprio Foucault:
concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do sculo XVII,em duas formas principais; que no so antitticas e constituem, ao contrrio,dois plos de desenvolvimento interligado por um feixe intermedirio derelaes [os dois plos da relao unitria]. Um dos plos, o primeiro a ser
formado, ao que parece, centrou-se no corpo como mquina: no seuadestramento, na ampliao de suas aptides, na extenso de duas foras, nocrescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integrao em sistemasde controle eficazes e econmicos tudo isso assegurado por procedimentos depoder que caracterizam as disciplinas: antomo-poltica do corpo humano. Osegundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do sculoXVIII, centrou-se no corpo-espcie, no corpo transpassado pela mecnica do servivo e como suporte dos processos biolgicos: a proliferao, os nascimentos e amortalidade, o nvel de sade, a durao da vida, a longevidade, com todas ascondies que podem faz-lo variar; tais processos so assumidos mediante todauma srie de interveno e controles reguladores: uma bio-poltica dapopulao. As disciplinas do corpo e as regulaes da populao constituem osdois plos em torno dos quais se desenvolveu a organizao do poder sobre a
vida. A instalao durante a poca clssica, desta grande tecnologia de duasfazes anatmica e biolgica, individualizante e especificante, voltada para osdesempenhos do corpo e encarando os processos da vida caracteriza um podercuja funo mais elevada j no mais matar, mas investir sobre a vida de cimapara baixo (FOUCAULT, 1988, p. 131).
O pargrafo supracitado de importncia singular para a argumentao
foucaultiana que Agamben recuperar, em primeiro lugar, porque a primeira vez em
um livro que o filsofo introduz o conceito de biopoltica e, em segundo lugar, porque
ele o faz relacionando com os dois plos do que temos chamado de teoria unitria do
4Foucault acrescenta que estas duas esferas distintas daquilo que chamamos de teoria unitria do poder,ainda aparecem nitidamente separadas, no sculo XVIII. Do lado da disciplina as instituies como oExrcito ou a escola; [...] do lado das relaes de populao a demografia, a estimativa da relao entrerecursos e habitantes, a tabulao das riquezas e de sua circulao, das vidas com sua durao provvel[...] a Ideologia como doutrina da aprendizagem, mas tambm do contrato e da formao regulada do corsocial constitui, sem dvida, o discurso abstrato em que se procurou coordenar as duas tcnicas de poderpara elaborar sua teoria geral. De fato, sua articulao no ser feita no final de um discurso especulativo,mas na forma de agenciamentos concretos que constituiro a grande tecnologia do poder no sculo XIX:o dispositivo de sexualidade ser um deles, e dos mais importantes (188, p. 132). Justamente por causadeste fator, pode-se compreender a importncia assumida pelo sexo como foco da disputa poltica. que
ele e encontra na articulao entre os dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a tecnologiapoltica da vida. [...] Insere-se, simultaneamente, nos dois registros, d lugar a vigilncias infinitesimais, acontroles constantes (188, p. 136).
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poder. Ele mostra que a substituio do universo de privilgios caractersticos do poder
soberano, que ocorreu a partir do sculo XVII, se desenvolveu em duas esferas distintas,
mas no antitticas. Na verdade, as duas tiveram seu desenvolvimento relacionado a
partir de um feixe intermedirio comum de relaes. A primeira faceta deste poder
sobre a vida centrou-se na ao sobre o corpo entendido com mquina, isto , na
ampliao das capacidades produtivas e da utilidade dos corpos atravs de seu
adestramento e vigilncia. O nome deste plo a antomo-poltica do corpo humano: o
crescimento simultneo da utilidade e da docilidade dos indivduos atravs de sua
integrao em sistemas de controle. O segundo plo j uma formao mais tardia e,
em certo sentido, resultado dos procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas
neste sentido, a nfase prioritria que a biopoltica assumir na pesquisa de Foucault
no um deslocamento novo de seu raciocnio, mas o reconhecimento de um
desdobramento necessrio daquilo que j estava sendo investigado em Vigiar e Punir.
Trata-se dos processos assumidos a partir do sculo XVIII que transpassou o corpo dos
indivduos enquanto mero ser vivo, o corpo-espcie, regulado por todo um suporte de
processos biolgicos. A biopoltica da populao trata-se daquela faceta do poder sobre
a vida que ocupou-se em regular e intervir em toda a esfera propriamente biolgica que
est envolvida uma sociedadetal como a natalidade, mortalidade, qualidade da sade,
longevidade, etc. Tudo isto, tambm atravs de sistemas de controle e interveno
eficazes e, principalmente, econmicosconforme ser explorado nos cursos da dcada
de 70 no Collge de France.
Esta bio-histria da sexualidade iniciada no primeiro volume sobre a
vontade de saber sobre as presses por meio das quais os movimentos da vida e os
processos da histria interferem entre si, na verdade ser chamada no interior do
pensamento de Foucault de bio-poltica, para designar o que faz com que a vida e seus
mecanismos entre no domnio dos clculos explcitos, e faz do poder-saber um agentede transformao da vida humana (FOUCAULT, 188, p. 134). Contudo, no ser no
primeiro volume da Histria da sexualidade que o filsofo explorar o conceito a
exausto. Nos anos que seguiram a publicao do livro, de 1975 a 1979, Foucault
lecionar no Collge de Francetrs cursos de fundamental importncia para o tema:Em
defesa da sociedade, Segurana, territrio e populaoe oNascimento da biopoltica.
Cobrir o contedo destes cursos no s desnecessrio, devido aos bons comentrios
que temos acerca do tema, como tambm invivel para os propsitos que se coloca opresente artigo. No obstante, faz-se necessrio destacar que ser a partir destes cursos
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que Agamben situar filosoficamente o limiar da modernidade biolgica que, dentre
outras coisas, significa essencialmente que a passagem do Estado
territorial ao Estado de populao e o consequente aumento vertiginoso da
importncia da vida biolgica e da sade da nao como problema do poder soberano,
que se transformar ento progressivamente em governo dos homens (AGAMBEN,
2002, p. 11).
Agamben nos lembra que Hannah Arendt tambm identificou esse mesmo
processo de transformao nas sociedades modernas. 5No entanto, alm de Arendt e
Foucault nunca terem dialogado diretamente motivo que impossibilitou relacionar
biopoltica aos campos de concentrao e de refugiadostambm a morte de Foucault o
impediu de desenvolver todas as implicaes que o conceito de biopoder carregava
consigo. Abre-se, portanto, um campo de investigao excepcional para a filosofia
poltica. O ingresso dazona esfera dapolis, a politizao da mera vida dos indivduos,
constitui um evento decisivo na modernidade e nenhuma das questes tico-polticas
que temos diante dos nossos olhos hoje podem ser compreendidas sem levar em
considerao esse fato. Ou ainda, nas palavras de Agamben, os enigmas que nosso
sculo props razo histrica e que permanecem atuais (o nazismo s o mais
inquietante dentre eles) podero ser resolvidos somente no terreno a biopolticaem
que foram intrincados (AGAMBEN, 2002, p. 12). To somente quando a assinatura
poder for recolocada nesse contexto de indistino das categorias clssicas da cincia
poltica, que talvez possamos fazer sair de sua ocultao moderna uma ao humana
distintamente poltica.
Uma das orientaes mais basilares que Agamben assume em seu projeto de
investigar esses enigmas contemporneos e propor alguma soluo, aquela que h
muito Foucault j nos instruiu o decidido abandono da abordagem tradicional do
problema do poder, baseada em modelos jurdico-institucionais (a definio dasoberania, a teoria do Estado), para ir em direo de uma anlise sem preconceito dos
modos concretos com que o poder penetra no prprio corpo de seus sujeitos e em suas
formas de vida (AGAMBEN, 2002, p. 13). Nesta altura torna-se mais clara e evidente
o significado de uma teoria unitria do poder. Tal abordagem unitria no significa de
5Segundo Agamben Hannah Arendt havia analisado, em The human condition, o processo que leva ohomo laborans e, com este, a vida biolgica como tal, a ocupar progressivamente o centro da cena
poltica do moderno. Era justamente a este primado da vida natural sabre a ao poltica que Arendt fazia,alis, remontar a transformao e a decadncia do espao pblico na sociedade moderna (AGAMBEN,2002, p. 11).
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modo algum o esforo de analisar cada uma das duas direes que a assinatura poder
assume na poltica modernaisso porque, o trabalho de Foucault foi exatamente esse. 6
Ao invs disso, a investigao do filsofo italiano se ocupar com o elo em que esses
dois aspectos do poder convergem e do lugar a um centro unitrio no qual a dupla
direo poltica encontra sua razo de ser. Em sntese, se Foucault contestou as
abordagens tradicionais do problema do poder, baseada exclusivamente em modelos
jurdicos e institucionais, cabe agora perguntar onde est, ento, no corpo do poder, a
zona de indiferenciao (ou ao menos, o ponto de interseco) em que tcnicas de
individualizao e procedimentos totalizantes se tocam? (AGAMBEN, 2002, p. 13).
Essa pergunta ditar o tom da presente genealogia teolgica da assinatura de poder,
tendo como objeto privilegiado esse ponto oculto de interseco entre o modelo
jurdico-institucional e o modelo biopoltico de poder.
No desnecessrio esclarecer esse carter teolgico que a genealogia da
assinatura de poder assumir nos trabalhos de Agamben. O protagonista eleito por
Agamben para ilustrar o processo de constituio da operao soberana no Ocidental
uma figura retirada do mbito religioso mais arcaico do direito romano. Trata-se do
homo sacer. Tal indivduo uma obscura figura do direito romano que tem seu papel na
vida pblica justamente quando ele colocado fora dela. Contudo, de maneira mais
clara, o que um homo sacer? Uma das definies mais precisas desta categoria pode
ser encontrada no gramtico Festus, quando este nos diz:
Sacer mons: Chamamos monte sagrado a um monte situado na outra margem doAniene, um pouco alm da terceira pedra militar, posto que o povo no momentode separar-se do senado e logo aps a criao dos tribunos da plebe,estabelecidos para ajud-lo, o consagrou a Jpiter no momento de retirar-se.Porm, d-se o apelido de sacer ao homem que o povo julgou por um delito;no permitido sacrific-lo mas aquele que o mata no condenado comohomicida, posto que a primeira lei tribuncia estabelece esta disposio se
algum mata aquele que sagrado por plebiscito, no ser consideradohomicida. Da que em linguagem familiar se chame sacer a todo homem mau eimpuro (FESTUS, 1997, p. 422-424, traduo de Luduea).
A vida nua, a mera vida matvel de um indivduo includa nos tramites do
ordenamento jurdico tendo como principal caracterstica sua excluso, sua
matabilidade. Ou seja, o homo sacer aqui definido ao mesmo tempo como
6Nas palavras de Agamben por um lado, o estudo das tcnicas polticas (como a cincia dopoliciamento) com as quais o Estado assume e integra em sua esfera o cuidado da vida natural dos
indivduos; por outro, o estudo das tecnologias do eu, atravs das quais se realiza o processo desubjetivao que leva o indivduo a vincular-se prpria identidade e prpria conscincia e,conjuntamente, a um poder de controle externo (2002, p. 13).
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insacrificvel e como suscetvel de ser executado por qualquer um. Justamente por tudo
isso um homo sacer, esta que talvez a mais antiga acepo do termo sacer nos
apresenta o enigma de uma figura do sagrado aqum ou alm do religioso, que constitui
o primeiro paradigma do espao poltico do Ocidente (AGAMBEN, 2002, p. 16). 7
De certa forma, portanto, a figura do homo sacer ser um paradigma
privilegiado para pensarmos a condio de mera vida, de vida nua, dos cidados
contemporneos nas democracias de direito. Nesse sentido, tanto a argumentao de
Agamben em Homo Sacer I, bem como a sua reconstruo no presente artigo,
assumiram a seguinte trajetria: em um primeiro momento (1) exploraremos o paradoxo
em que est imerso o exerccio do poder soberano no Ocidente, para que ento, em um
segundo momento, (2) possamos ilustrar tal dinmica com a aporia jurdica do poder
constituinte e poder constitudo.
Vale considerar, antes de terminar que em toda a investigao de Agamben, o
fator decisivo e propriamente inovador no , por um lado, a incluso da zona polis
pois como Fabin Luduea bem mostrou, uma constatao que data da filosofia
platnicanem mesmo o simples fato de que vida tenha se tornado o objeto principal
dos clculos do poder estatal pois todas as concluses de Foucault j o fazem muito
bem. Aquilo que original e com capacidades para elucidar o contemporneo, na
filosofia de Agamben , sobretudo,
O fato de que, lado a lado com o processo pelo qual a exceo se torna em todosos lugares a regra, o espao da vida nua, situado originalmente margem doordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espao poltico, eexcluso e a incluso, externo e interno, bos ezo, direito e fato entram em umazona de irredutvel indistino. O estado de exceo, no qual a vida nua era, aomesmo tempo, excluda e capturada pelo ordenamento, constitua, na verdade,em seu apartamento, o funcionamento oculto sabre o qual repousava o inteirosistema poltico; quando as suas fronteiras se esfumam e se indeterminam, a vidanua que o habitava libera-se na cidade e torna-se simultaneamente sujeito e o
objeto do ordenamento poltico e de seus conflitos, o ponto comum tanto daorganizao do poder estatal quanto da emancipao dele. [...] Estes processos,sob muitos aspectos opostos e (ao menos em aparncia) em conflito acerbo entreeles, convergem, porm, no fato de que em ambos o que est em questo a vida
7Conforme esclarece mais uma vez Luduea a figura do homo sacer, ento, se encontra mais alm,tantodo direito penal quanto do sacrifcio religioso, ainda que ao mesmo tempo tenha sua origem em umadupla exceo relacionada com ambas as esferas . A inteno de Agamben consiste ento em identificar aexcluso originria atravs da qual se constituiu a dimenso poltica (AGAMBEN, 2002, p. 1), isto , oespao em que se decidiu sobre a humanidade mesma do homem. Essa esfera no a -histrica, como jse recriminou a Agamben, seno originria, quer dizer, completamente imbuda de historicidade enquantoUr-phnomenon da poltica em seu aspecto soberano. Tampouco se trata, desde logo, de um
essencialismo, seno de algo assim como a Entstehung da wirkliche Historie de que falava FriedrichNietzsche. O espao poltico do homem ocidental , para Agamben, um espao da excepcionalidadeoriginria (2013, p. 239).
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nua do cidado, o novo corpo biopoltico da humanidade (AGAMBEN, 2002, p.16-17).
Com essas palavras, Agamben consegue expor a diferena especfica de sua
empreitada filosfica. O espao de vazio inoperante que caracterizado nasdemocracias contemporneas coincide com o que ele chama de estado de exceo como
regra. Um espao em que a mera vida nua dos indivduos colocada margem do
ordenamento e, progressivamente, vai tornando-se a prpria vida poltica tpica. Tudo
isso faz com que as fronteiras daquelas categorias clssicas da filosofia poltica se
indeterminem, fazendo com que o cidado torne-se tambm simultaneamente, sujeito e
objeto do ordenamento poltico e de seus conflitos. justamente por isso que, mesmo
onde h luta, conquistas de direitos e de liberdades existem tambm um corpo sacro
um homo sacersendo um pouco mais capturado e inscrito no nos ditames do controle
governamentalrazo essa que levar Agamben a problematizar os modernos direitos
humanos na seo final deHomo Sacer I.
No preciso dizer que o reconhecimento dessa aporia fundamental no interior
da operao soberana no significa desvalorizar ou mesmo abrir mo das conquistas da
democracia. O que Agamben pretende tentar compreender por que, justamente no
instante em que parecia haver definitivamente triunfado sobre seus adversrios e
atingido seu apogeu, ela se revelou inescapavelmente incapaz de salvar de uma runa
sem precedentes aquelazo (AGAMBEN, 2002, p. 17) zoessa que as democracias
de direto fizeram seus principais objetos de dedicao e esforos. Em outras palavras,
para o filsofo italiano, a experincia de decadncia continua nas democracias
ocidentais que foram apontadas j por Alexis de Tocqueville em A democracia na
Amrica, mas que atingiram seu cume nos estados totalitrios do novecentos talvez
possa ser explicada por essa aporia constituinte da poltica.
Precisamente em um perodo histrico em que a tica e a poltica no conhecem
outro valor do que a vida, se ocupar com as gigantescas contradies que essa postura
implica pode ser nossa nica possibilidade de fazer com que o fascismo no permanea
atual. Esses vinte e quatro sculos de teoria poltica desde Aristteles, parece que no
trouxeram nenhuma soluo, ao menos provisria, para tal aporia que se encontra na
base da poltica ocidental. O trono se mantm a partir do vazio da operao de captura
da vida pelo poltico. Ou ainda, nas palavras de Agamben a poltica, na execuo da
tarefa metafsica que a levou a assumir sempre mais a forma de uma biopoltica, no
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conseguiu construir a articulao entre zoe bos, entre voz e linguagem, que deveria
recompor a fratura (2002, p. 18).
To somente uma poltica totalmente nova, isto , uma poltica que no seja
fundada sobre a operao de incluir a vida nua atravs de sua excluso, poder nos dar
condies de escapar deste beco sem sada em que se encontra a ao humana hoje. O
curso dessa investigao e descoberta de novos horizontes inclui muitos movimentos
argumentativos basilares, que passam desde uma reviso se reservas das principais
noes que as cincias humanas, a jurisprudncia e a antropologia acreditavam ter
definido, como tambm de uma crtica radical ao que est na base de muito do que foi
produzido na filosofia poltica. Nesse sentido, comearemos por nos perguntar sobre a
lgica da soberania.
2. A incluso da vida atravs de seu abandono: a lgica da operao soberana
Conforme procuramos deixar claro na introduo do presente trabalho, a
metodologia de crtica que Agamben empreende em toda a saga Homo Sacer bastante
coerente e segue um caminho bsico. Antes de apontar a necessidade de um poder
destituinte ou mesmo a urgncia de uma nova poltica, Agamben sempre inicia seus
raciocnios mostrando a condio paradoxal entre duas categorias clssicas da filosofia
poltica ou ontologia. Esse o primeiro movimento de toda e qualquer argumentao de
Agambensempre seguido de um passo que evidncia a zona de indeterminao entre
essas duas categorias, para depois, ao final, apontar para a inoperosidade destituinte. Ou
ainda, nas palavras do comentador William Watkin para Agamben, todos os conceitos
ocidentais de qualquer significncia derivam sua longevidade, consistncia e operao
do conflito dialtico interno entre elementos em comum e elementos prprios, ouseja,
cada conceito no Ocidente bifurcado (WATKIN, 2014, p. xii, traduo nossa).A assinatura poder no ficaria de fora dessa dinmica caracterstica da
filosofia ocidental. Toda a primeira parte do livro Homo Sacer I dedicada ao
esclarecimento desse paradoxo existente na mais caracterstica operao de poder, qual
seja, a soberania jurdico-poltica. Antes de prosseguir, entretanto, vale elucidar
brevemente a razo pela qual tal operao soberana o paradigma privilegiado para
abordar a assinatura poderuma vez que, se nos lembrarmos do trabalho de Foucault,
temos em mente algo muito mais capilar e microfsico, ao invs de uma nica operao.Contudo, precisamos situar tal escolha no todo da obra de Agamben, bem como, de sua
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relao com Foucault. Conforme buscarmos deixar claro nas sees anteriores,
Agamben identificou dois plos na obra de Foucault em que o poder abordado
tecnologias polticas e tcnicas do eu , uma vez que a inteno de Agamben
justamente abordar o poder a partir de um ponto de vista unitrio, a operao soberana
um excelente paradigma. 8 Nela observamos justamente esses dois plos em ao,
gerando uma figura igualmente unificadora, qual seja, o sujeito soberano. A partir de
um nome que mais se parece com uma contradio performtica, a figura do sujeito
soberano consegue expor melhor do que qualquer outra o paradoxo poltico em que
estamos inseridos. Conforme as palavras do prprio Agamben, em um texto publicado
muito anos antes deHomo Sacer I, podemos entender que:
este paradoxo muito antigo e, se se observa atentamente, est explicito nomesmo oximoro em que se encontra a expresso: o sujeito soberano. O sujeito(isto , aquilo que etimologicamente est sob) soberano (, por isso, aquilo queest sobre). E talvez o termo sujeito (em conformidade ambigidade da raizindo-europeia da qual derivam as duas propores latinas de sentido opostosuper e sub) no tem outro significado que este paradoxo, este ficar l onde esteno est (AGAMBEN, 2005, p. 92).
Podemos observar que Agamben estava bastante ciente da situao paradoxal
em que o poder ocidental estava inserido quando escreveu o texto Bataille e o paradoxo
da soberania (1987). A diferena de sua abordagem para o que ir fazer em Homo
Sacer I no diz respeito tanto a questo, mas com quem ele estabelecer o dilogo.
Enquanto no primeiro ele est se referindo diretamente a questo de uma comunidade
livre do fascismo, a partir da obra de Bataille, Jean-Luc Nancy e Maurice Blanchot, em
Homo Sacer I, Agamben far uso do pensamento do jurista alemo Carl Schmitt, no
8
O termo paradigma que recorrentemente aparece tanto na obra de Agamben, quanto no presenteartigo, tambm tem um significado especfico no interior da filosofia do italiano. Em estreita relao comsua filosofia da indiferena os paradigmas de Agamben so exemplos, ou melhor, quaisquer fenmenosde uma determina condio ou situao que exemplificam, de maneira completa, aquilo do que fazemparte. O paradigma geralmente no o melhor exemplo ou a porta de entrada principal, mas qualquerexemploum caso distintamente indiferente. Nas palavras do prprio Agamben em A comunidade quevem O ser que vem o ser qualquer [qualunque]. Na enumerao escolstica dos transcendentais(quodlibet ens est unum, verum, bonum seu perfectum, qualquer ente que se queira uno, verdadeiro, bomou perfeito), o termo que, permanecendo impensado em cada um, condiciona o significado de todos osoutros o adjetivo quodlibet [qualquer]. A traduo corrente no sentido de no importa qual,indiferentemente certamente correta, mas, quanto forma, diz exatamente o contrrio do latino:quodlibet ens[qualquer ente] no o ser, no importa qual, mas o ser tal que, de todo modo, importaisto , este j contm sempre uma referncia ao desejar (libet), o ser qual-se-queira est em relao
original com o desejo (2013, p. ). Diante dessas palavras, um paradigma, tal como a operaosoberana, um exemplo qualquer, que consegue carregar consigo o significado de tudo aquilo do qual eleexemplifica.
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apenas para enunciar o paradoxo, como tambm para torn-lo inoperante. As palavras
so as seguintes:
O paradoxo da soberania se enuncia o soberano est, ao mesmo tempo, dentro
e fora do ordenamento jurdico. Se o soberano , de fato, aquele no qual oordenamento jurdico reconhece o poder de proclamar o estado de exceo e desuspender, deste modo, a validade do ordenamento, ento ele permanece forado ordenamento jurdico e, todavia, pertence a este, porque cabe a ele decidir sea constituio in totopossa ser suspensa (Schmitt, 122, p. 34). A especificaoao mesmo tempo no trivial o soberano, tendo o poder legal de suspender avalidade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto significa que o paradoxo
pode ser formulado tambm deste modo a lei est fora dela mesma, ou entoeu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que no h um fora da lei(AGAMBEN, 2002, p. 23).
Ainda que toda a recuperao do contexto do pensamento de Schmitt seja um
projeto muito grande para o presente artigo, desde j podemos compreender o que est
em jogo na argumentao de Agamben. Esquematicamente, podemos dizer que o
paradoxo da soberania reside no fato do sujeito soberano estar, ao mesmo tempo, dentro
e fora do ordenamento legal. Este mesmo sujeito que tem o poder de suspender a
validade da lei, coloca-se, de forma totalmente legal, fora da lei. Em sntese, o paradoxo
o carter excepcional da soberania, dado que o que esta em questo na exceo
soberana , segundo Schmitt, a prpria condio de possibilidade da validade da norma
jurdica e, com esta, o prprio sentido da autoridade estatal (AGAMBEN, 2002, p. 24-
25). Nesse sentido, a exceo uma espcie de excluso, em que o excludo, todavia,
no est absolutamente fora da relao com a norma. Daqui, portanto, nasce a situao
paradoxal.
Agamben, no entanto, sabia que, para alm do prprio Schmitt, outras pessoas j
haviam observado que o ordenamento jurdico-poltico tem uma estrutura de incluso
daquilo que , ao mesmo tempo, excludo. Gilles Deleuze j havia verificado em Mille
plateaux e Maurice Blanchot em Lentretien infini sem esquecer-se do prprio
Foucault naHistoire de la folie lge classique. No entanto, para o filsofo italiano a
exceo que define a estrutura da soberania , porm, ainda mais complexa (2002, p.
26) e por isso, ainda carecia ser melhor explorada. Isso Agamben faz destacando a
seguinte especificidade:
Aquilo que est fora vem aqui includo no simplesmente atravs de umainterdio ou um internamento, mas suspendendo a validade do ordenamento,
deixando, portanto, que ele se retire da exceo, a abandone. No a exceoque se subtrai regra, mas a regra que, suspendendo-se, d lugar exceo e
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somente deste modo se constitui como regra, mantendo-se em relao comaquela. O particular vigor da lei consiste nessa capacidade de manter-se emrelao com uma exterioridade. Chamemos relao de exceo a esta formaextrema da relao que inclui alguma coisa unicamente atravs de sua excluso(AGAMBEN, 2002, p. 26).
Existem dois pontos fundamentais nesse trecho. Em primeiro lugar, trata-se da
apresentao da operao soberana como a deciso sobre a exceo. Isso significa dizer
que a deciso do soberano no diz respeito a uma questo de direito ou uma questo
de fato, mas antes, e to somente, a prpria relao entre direito e fato. Soberano,
portanto, aquele que d conta dessa situao, a situao limite de toda a estrutura do
poder. Em outras palavras, a operao soberano, enquanto deciso pela exceo, a
forma originria do direito. Em segundo lugar, as palavras supracitadas de Agamben
nos mostram que, se a exceo a estrutura da operao soberana, ento a soberania
no , nem um conceito exclusivamente poltico, nem uma potncia externa ao direito
(como queria Schmitt) ou interna ao direito (como queria Hans Kelsen). Antes de tudo
isso, ela o processo de incluso da vida no direito que, seguindo a sugesto de Jean-
Luc Nancy, Agamben d o nome de bando. Conforme ele disse acima, aquilo que est
fora vem aqui includo no simplesmente atravs de uma interdio ou um
internamento, mas suspendendo a validade do ordenamento, deixando, portanto, que ele
se retire da exceo, a abandone. Ou seja, aquele que foi banido no simplesmentealgum que foi posto fora da lei, mas abandonado por ela. Ele no est indiferente e
alheio lei, antes, ocupa um limiar entre vida e direito, entre externo e interno. Do
sujeito soberano no possvel dizer se est fora ou dentro do ordenamento. Nesse
sentido, Agamben apresenta-nos uma nova forma de colocar o paradoxo da operao
soberana no existe um fora da lei. A relao originria da lei com a vida no a
aplicao, mas o Abandono. A potncia insupervel do nmos, a sua originria fora de
lei, que ela mantm a vida em seu bando abandonando-a (AGAMBEN, 2002, p. 36).Na sua forma arquetpica, portanto, o estado de exceo o princpio de todo
ordenamento jurdico, uma vez que ele abre o espao para o prprio estabelecimento de
determinado ordenamento. Essa sua estrutura fez com que Schmitt tivesse muita
dificuldade de estabelecer o nexo entre localizao (Ortung) e ordenamento (Ordnung)
que constitui o nmosda terra (cf. AGAMBEN, 2002, p. 27). Essencialmente ele era
o ilocalizvel, uma vez que ele o ponta-p de qualquer localizao jurdico-poltica.
Trata-se de uma verdadeira zona ilocalizvel de indiferena. No entanto, Agamben
prope uma localizao, ou ainda, para falarmos com Foucault, uma visibilidade para o
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discurso da exceo. Trata-se do campo de concentrao. Estabelecendo um contraste
com a visibilidade eleita pelo prprio Foucault para corresponder com a dinmica do
nmos, Agamben nos diz que no o crcere, mas o campo, na realidade, o espao
que corresponde a esta estrutura originria do nmos (2002, p. 27). Mais do que uma
questo de preferncia, o que est em jogo aqui uma opo coerente com o argumento
que est sendo construdo. Justamente porque a inteno de Agamben no encontrar
uma visibilidade que apenas corresponda a um dos plos da teoria unitria do poder
como se presta a visibilidade do crcere foucaultiano em relao aos processos de
subjetivao sua escolha foi o campo. Enquanto a priso insere-se no espao do
direito carcerrio do ordenamento normal, o campo um verdadeiro espao de
abandono e exceo. Ou ainda, a constelao jurdica que orienta o campo , como
veremos, a lei marcial ou o estado de stio. [...] O campo, como espao absoluto da
exceo, topologicamente distinto de um simples espao de recluso (AGAMBEN,
2002, p. 27).
Nesta altura, sua exemplaridade nos ajuda a compreender o modo como a vida
includa nos clculos do poder e o paradoxo que tal operao gera. Conforme resume a
professora da Universidade do Porto, Eugnia Vilela, ou seja, toda a vida se torna
sagrada e toda a poltica se torna exceo (2010, p. 112). Caso tal dinmica paradoxal
no seja levada em conta em nossa ao poltica, o fascismo se manter
desgraadamente atual nas democracias hodiernas.
3. Poder constituinte e poder constitudo: um exemplo do paradoxo da soberania
Conforme vem sendo exposto at ento, a pretenso filosfica de Agamben no
se limita s dimenses polticas. Para que a lgica da operao soberana realmente
assuma as dimenses que o italiano diz que ela temisto , toda a metafsica ocidental
, sua hiptese sobre a zona de indiferena precisa tangenciar outras reas do
conhecimento. Isso fez com que Agamben se esforasse por toda a primeira parte de
Homo Sacer Iem explorar alguns exemplos em que essa dinmica paradoxal mostra-se
evidente. Um dos primeiros casos que ele apresenta, para alm do mbito estrito da
poltica com a linguagem. Sua tese que uma dimenso no-normativa (tal como o
estado de exceo) tambm acontece na linguagem. Ele nos lembra que igualmente a
linguagem pressupe o no-lingustico como aquilo com o qual deve manter-se em uma
relao virtual para poder denot-lo no discurso em ato (2002, p. 28).
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No obstante, Agamben tambm menciona um exemplo da matemtica, retirado
da teoria dos conjuntos, para igualmente ilustrar sua hiptese. Da mesma forma que na
teoria dos conjuntos se distingue pertencimento e incluso, isto , um termo pode
pertencer a um conjunto sem estar includo nele, ou vice-versa, Agamben sustentar que
a exceo configure uma forma de pertencimento sem incluso. Nas suas palavras o
que define o carter da pretenso soberana precisamente que ela se aplica exceo
desaplicando-se, que ela inclui aquilo que est fora dela (2002, p. 32). A exceo
soberana, em termo da teoria dos conjuntos, portanto, aquilo que no pode ser em
nenhum caso includo, mas que vem a ser includo na forma da exceo algo como a
paradoxal incluso do pertencimento mesmo que o Puzzle de Bertrand Russell h muito
j enunciava, e que contemporaneamente Alain Badiou recuperou em categorias
polticas.
Com a apresentao de cada um desses exemplos, a inteno de Agamben
defender que, se a exceo a estrutura da soberania, a soberania no pode ser um
conceito exclusivamente poltico, nem uma categoria exclusivamente jurdica. Antes,
trata-se da estrutura originria na qual o direito se refere vida e a inclui em si atravs
da prpria suspenso (2002, p. 35). No entanto, dentre o conjunto de exemplos
enumerados pelo autor para apresentar o paradoxo da operao soberana, no existe
nenhum melhor do que o problema do poder constituinte e de sua relao com o poder
constitudo. A reconstruo de tal problemtica, feita por Agamben no captulo 3 de
Homo Sacer I, alm de ilustrar perfeitamente a dualidade que o italiano sempre busca
tornar evidente em suas argumentaes, tambm ser de fundamental importncia para
suas recentes pesquisas sobre aquilo que ele chamou de poder destituinte. Percorrendo
tal trajetria, nossa proposta, em estreita harmonia com o fio condutor do presente
trabalho, mostrar como Agamben expe a condio paradoxal insolvel das principais
categorias jurdico-polticas, faz emergir uma zona de indistino entre elas, para que,por ltimo, introduza um terceiro elemento na relao que, no refora nem inicia outro
paradoxo, mas o depe e o inopera. Por tudo isso, convm reconstruir a argumentao
agambeniana sobre poder constitudo e constituinte.
Na conceitografia jurdica, o poder constituinte refere-se potncia originria
fora do jurdico, que cria e fundamenta um novo Estado; enquanto o poder constitudo
diz respeito prpria ordem constitucional preestabelecida. Ou seja, o primeiro est fora
do Estado, enquanto o outro se encontra no Estado. Daqui, para Agamben, nasce aimpossibilidade de compor de modo harmnico a relao entre os dois poderes (2002,
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p. 47). Essa questo no diz respeito apenas compreenso da natureza jurdica da
ditadura ou do estado de exceo, mas tambm nas recorrentes discusses sobre a
reviso do texto constitucional. Aqueles que reduzem o poder constituinte ao poder de
reviso, desconsideram sua potncia pr-jurdica de fazer nascer a constituio. Walter
Benjamin, por sua vez, colocou a relao entre os dois poderes como aquela entre a
violncia que pe o direito e a violncia que o conserva. Mesmo que essa oposio
fundamental de Benjamin no tenha condies de ser reconstruda aqui, j podemos
apontar para o que Agamben quer deixar evidente ainda que o poder constituinte,
como violncia que pe o direito, seja certamente mais nobre que a violncia que o
conserva, ele no possui, porm, em si nenhum titulo que possa legitimar sua
alteridade (AGAMBEN, 2002, p. 48). Isso faz com que o relacionamento entre os dois
poderes se mantenha ambguo e irremediavelmente confuso. Justamente nesse
contexto, surge aquilo que Agamben procura deixar evidente:
Nesta perspectiva, a clebre tese de Sieys, segundo a qual a constituio supeantes de tudo um poder constituinte, no , como tem sido observado, umsimples trusmo: ela deve ser entendida sobretudo no sentido de que aconstituio se pressupe como poder constituinte e, desta forma, exprime nomodo mais prenhe de sentidos o paradoxo da soberania. Como o poder soberanose pressupe como estado de natureza, que assim mantido em relao de bandocom o estado de direito, assim ele divide em poder constituinte e poder
constitudo e se conserva em relacionamento com ambos, situando-se em seuponto de indiferena (AGAMBEN, 2002, p. 48).
Em tudo isso, mostra-se insolvel a questo de deixar clara a diferena entre os
dois poderes. Tal dificuldade fez com que recorrentemente na histria das ideias
polticas, uma fonte transcendente e infinita de autoridade fosse evocada para que
pudesse conferir uma soberania igualmente infinita nao tal como o caso do Ser
Supremo de Robespierre que Hannah Arendt nos lembra em Sobre a Revoluo. A
grande questo aqui, entretanto, no a de conceber um poder constituinte que nunca seesgote em um poder constitudo. Antes, trata-se de distinguir os dois algo que, dada a
estrutura jurdica ocidental, para Agamben impossvel, fazendo com que surja uma
zona de indiferena entre eles que alimenta a operao soberana tal como tem sido
descrita aqui.
Quem problematizou essa mesma relao, mas de um ponto de vista totalmente
diferente, fazendo com que a questo assumisse uma dimenso absolutamente diversa
do que at ento apresentava, foi Antonio Negri. Em seu livro O Poder Constituinte:ensaio sobre as alternativas da modernidade (1992), Negri busca sustentar a tese da
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total irredutibilidade do poder constituinte a qualquer forma de ordenamento constitudo
e, por conseguinte, uma reduo ao princpio da soberania. Ao contrrio, para Negri,
falar de poder constituinte falar de democracia, apresentando-o como expanso
revolucionria da capacidade humana de construir a histria, como ato de inovao e,
portanto, como procedimento absoluto (NEGRI, 2002, p. 40). Em tal aproximao do
poder constituinte ao prprio processo histrico democrtico, Negri busca deixar
evidente que o poder constituinte no apenas a fonte onipotente e expansiva que
produz as normas constitucionais de todos os ordenamentos jurdicos, mas tambm o
sujeito desta produo (2002, p. 7).
Para Agamben, no entanto, a grande contribuio que Negri traz discusso da
relao entre poder constitudo e constituinte encarar esse ltimo como uma potncia.9 Isso faz com que o poder constituinte deixe de ser um conceito poltico para
transforma-se em uma categoria da ontologia. Conforme coloca Agamben, com essa
modificao de Negri,
O problema do poder constituinte se torna ento aquele da constituio dapotncia (Negri, 12, p. 383), e a dialtica irresolvida entre poder constituintee poder constitudo deixa lugar a uma nova articulao da relao entre potnciae ato, o que exige nada menos que repensar as categorias ontolgicas damodalidade em seu conjunto. O problema se desloca, assim, da filosofia poltica
filosofia primeira (ou, se quisermos, a poltica restituda sua condioontolgica). Somente uma conjugao inteiramente nova de possibilidade erealidade, de contingncia e necessidade e dos outros pthe to ntos, poder, defato, permitir que se fenda o n que une soberania e poder constituinte: esomente se conseguirmos pensar de modo diverso a relao entre potncia e ato,e, alis, alm dela, ser possvel conceber um poder constituinte inteiramentelivro do bando soberano. At que uma nova e coerente ontologia da potncia(mais alm dos passos que nesta direo moveram Spinoza, Schelling, Nietzschee Heidegger) no tenha substitudo a ontologia fundada sobre a primazia do ato esobre sua relao com a potncia, uma teoria poltica subtrada s aporias dassoberanias permanece impensvel (AGAMBEN, 2002, p. 51-52).
No pargrafo supracitado, mais do que um comentrio ao movimento filosficoque Negri empreendeu em sua investigao, Agamben aponta para o horizonte em que
sua prpria pesquisa se encaminhar. A afirmao da insolubilidade da aporia em que
esto envolvidas as principais categorias filosficas ocidentais, produz, pelo menos,
dois resultados imediatos: em primeiro lugar, ela torna muitos esforos intelectuais
9Nas palavras do prprio Negri o moderno , assim, a negao de toda possibilidade de que a multidopossa se exprimir como subjetividade. Numa primeira definio, o moderno consiste nisto. Portanto, no estranho, nem pode ser considerado imprevisto, que ao poder constituinte no possa ser concedido
espao algum. Quando ele emerge, deve ser reduzido extraordinariedade; quando se impe, deve serdefinido como exterioridade; quando triunfa sobre toda interdio, excluso ou represso, deve serneutralizado num termidorqualquer. O Poder constitudo esta negao (2002, p. 448).
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incuos particularmente aqueles que insistem em proceder no interior da ontologia
que relaciona potncia e ato a exemplo do que tem sido feito desde Aristteles. Em
segundo lugar, ela necessariamente exige de Agamben, ou de qualquer outro que
subscreva suas constataes, no mnimo, o sinalizar de um novo conjunto conceitual
que trace os contornos de uma alternativa ontolgica da potncia.
A utilizao de alguns insights da teologia do apstolo Paulo por parte de
Agamben tem justamente esse propsito. Para Agamben, Paulo enfrentou uma situao
ontolgica de natureza anloga operao soberana nas democracias contemporneas.
Isso exigiu do apstolo traar os contornos de um pensamento que tem condies de nos
sinalizar horizontes muito promissores para o que Agamben chama de a filosofia que
vem. De forma esquemtica, Agamben argumenta que tal ontologia alternativa se faz
necessria, uma vez que a condio paradoxal que a relao entre poder constitudo e
poder constituinte exemplifica, tem nas razes de sua complexidade a relao entre
potncia (dynamis) e ato (enrgeia) em Aristteles. Da mesma forma que acontece com
na linguagem, na teoria dos conjuntos e no direito constitucional, no pensamento de
Aristteles, de fato, por um lado, a potncia precede o ato e o condiciona e, por outro,
parece permanecer essencialmente subordinada a ele (AGAMBEN, 2002, p. 52).
Aristteles, no entanto, faz questo de afirmar a existncia autnoma da potncia, para
evitar o problema de reduzir toda a potncia como existente somente no ato como
alguns juristas e polticos tentam reduzir todo poder constituinte ao poder constitudo.
Nesse sentido, o que ele se prope a pensar no livro Theta da Metafsicano , em
outras palavras, a potncia como mera possibilidade lgica, mas os modos efetivos de
sua existncia (AGAMBEN, 2002, p. 52). Mais do que isso, necessrio pensar na
potncia de forma que ela possa at mesmo no passar ao ato, ou seja, que se apresente
constitutivamente como potncia de no fazer ou no sera impotncia (adynama) de
Aristteles.Descrevendo dessa forma a natureza da potncia, Agamben acredita que
Aristteles legou filosofia ocidental o paradigma da soberania. Isso ele sustenta
porque, estrutura da potncia, que se mantm em relao com o ato precisamente
atravs de seu poder no ser, corresponde aquela do bando soberano, que aplica-se
exceo desaplicando-se (2002, p. 54). Nesse sentido, a potncia aristotlica, de certa
forma, sem funda soberanamente, isto , sem que nada a preceda nem a determina, a
no ser, o seu prprio poder de no ser (adynama). Conforme podemos ver em outrasdiscusses de Agamben, a partir da teoria de Carl Schmitt, a deciso soberana
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justamente aquele ato que o soberano realiza retirando a prpria potncia de no ser, ou
seja, deixando-se ser. Ou ainda, conforme sintetiza Agamben a soberania sempre
dplice, porque o ser se auto-suspende mantendo-se, como potncia, em relao de
bando (ou abandono) consigo, para realizar-se ento como ato absoluto (2002, p. 54).
Consideraes finais
Podemos concluir, portanto, que a ambiguidade da relao entre poder
constitudo e poder constituinte, bem como seu paralelo ontolgico da teoria aristotlica
da potncia/ato, exemplifica de maneira paradigmtica a operao soberana no
Ocidente. Tal estrutura faz com que a tarefa de pensar uma constituio de uma
potncia totalmente emancipada desse paradoxo da soberaniatal como quis Negri com
o poder constituinte, ou como o prprio Agamben intentar com o poder destituinte
seja to rdua. Isso porque, o que est em jogo no a necessidade que esse poder no
se esgote jamais em um poder constituinte pois at mesmo o poder soberano pode
manter-se indefinidamente apenas em potncia, sem passar ao ato e transformar-se em
uma constituio.
A grande questo est em pensar em uma potncia que no tenha o sentido
ltimo de sua relao em nenhum ato. Para Agamben, no entanto, isto implicaria,
porm, nada menos que pensar a ontologia e a poltica alm de toda figura da relao,
seja at mesmo daquela relao limite que o bando soberano; mas isto justamente o
que muitos hoje no esto dispostos a fazer por preo algum (2002, p. 55). A aporia
ontolgica revela aqui suas dimenses poltica. Mais do que isso, essa altura da em que
a investigao nos coloca deixar evidente nos ltimos momentos do presente trabalho
que a proposta de Agamben necessariamente precisaria ser algo da espcie de um
poder destituinte que no mais transitasse entre a colocao ou manuteno daoperao soberana, mas que a destitua e inopere.
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