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221Revista Sociedade e Estado - Volume 26 Nmero 1 Janeiro/Abril 2011
A Crca da Epistemologia
na Sociologia doConhecimento de Karl
Mannheim
Lus de Gusmo1
Resumo: O argo analisa a crca da epistemologia normava na obra de Karl
Mannheim, sublinhando a sua presena tanto na fase mais losca, associada
ao elogio do historicismo, como na Sociologia do Conhecimento posterior. Cha-
ma a ateno tambm para a atualidade dessa crca: ao censurar os epistem-
logos do seu tempo por no levarem na devida conta os achados das cincias
empricas parculares, Mannheim antecipa, em dcadas, tendncias mais re-
centes da Sociologia do Conhecimento e da reexo epistemolgica.
Palavras-chave: Sociologia do Conhecimento, Epistemologia Normava, Filoso-
a da Histria
1. Introduo
Em Ideologia e Utopia, Mannheim, antecipando em dcadas tendncias da
epistemologia e da Sociologia do Conhecimento mais recentes2, vai cen-
surar uma reexo epistemolgica normava e apriorsca que insisa
em ignorar o problema de como os homens realmente pensam nos contextos
concretos da vida codiana, problema esse, contudo, iniludvel numa invesga-
o emprica acerca do conhecimento humano. Segundo ele, os epistemlogoserravam ao idencar o conhecimento tal como o concebiam o produto lgico-
lingusco de um sujeito epistmico abstrato, isolado, desvinculado de qualquer
situao existencial como a nica forma possvel do conhecimento convel,
desqualicando, assim, aqueles modos de pensamento que resultavam da vida
social, nasciam das prcas e para as prcas desenvolvidas no mbito dessa vida.
Mannheim concede aos epistemlogos uma concesso que soaria inaceitvel
aos defensores do chamado programa forte de Sociologia do Conhecimento3
ser, de fato, possvel encontrar um saber no qual buscaramos em vo as marcasdisnvas de um mundo social parcular, um saber destudo, nesse sendo,
de razes sociais e avistas, expresso, na verdade, de um ponto de vista de
Recebimento:
30.08.2010Aprovado:24.02.2011
1. Professor Adjun-to III do Departa-mento de Sociolo-
gia da Universidadede Braslia (UnB)Email: [email protected]
2. Essas tendnciasapontam no sendo
de um abandonocrescente do pontode vista normavo,preocupado coma juscao doconhecimento hu-
mano com base em
critrios universaisde ciencidade,em favor de abor-dagens empricas,ancoradas nas con-
tribuies das ci-ncias parculares
e voltadas, priori-tariamente, para aexplicao causal e/ou funcional desseconhecimento. Nes-sa perspecva, aepistemologia assu-me o status de uma
disciplina empricae j no se disngueessencialmente das
cincias empricasparculares. Essa
mudana de assun-to, essa preocu-pao em fazer daepistemologia umempreendimentoemprico e no maisnormavo, repre-senta uma das prin-cipais contribuiesda obra de Thomas
Kuhn, cujo impac-to foi, vale a penalembrar, enorme
no mbito da So-ciologia do Conheci-mento mais recente
(ver Barnes, 1986).
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nenhum lugar, na formulao to sugesva de Thomas Nagel. Tal saber no
constua, portanto, concede Mannheim, uma invencionice losca, pura c-
o normava cuja nica funo seria proporcionar um padro transcendental
com base no qual uma epistemologia normava e apriorsca, cada vez mais
distanciada das cincias empricas parculares, decidia taxavamente acerca
daquilo que devia ou no contar como conhecimento racional. Mannheim no
vai to longe assim em sua crca da reexo epistemolgica! O conhecimento
tal como os epistemlogos o concebiam, admite ele, de fato exisa. Contudo,
prossegue Mannheim, esse conhecimento s podia ser encontrado em campos
especiais da invesgao cienca, nas cincias naturais e exatas, no esgo-
tando, portanto, o universo do conhecimento humano convel. Cabia incluir
tambm, nesse universo, aquele saber existencialmente condicionado, perspec-
vista, ligado ao, do qual os indivduos (a se incluindo os epistemlogos!)sempre se valiam quando precisavam tomar decises prcas nos contextos da
vida coleva. No havia razo para exclu-lo, no havia razo para estabelecer
uma disjuno total, exclusiva, entre tal saber e aquilo que admiamos como
conhecimento convel. O saber formal, abstrato, desenraizado, cuja expresso
mais acabada podia ser encontrada nas cincias naturais e exatas, no cons-
tua, ao contrrio do que sugeria a reexo epistemolgica, todo o conhecimen-
to humano possvel.
Contra os epistemlogos de seu tempo4, mas tambm, em larga medida, contraa teoria da ideologia em Marx, que insisam em vincular o erro intelectual, a
cegueira ideolgica, na linguagem marxista, inuncia negava das situaes
existenciais no mundo das ideias, Mannheim vai armar a possibilidade do co -
nhecimento objevo existencialmente enraizado. A compreenso dessa possi-
bilidade resultaria, por sua vez, de avanos da invesgao social que nham
em Marx o seu ponto de parda. Vejamos isso mais de perto.
2. Marx e a Sociologia do Conhecimento
Segundo Mannheim, um conjunto de circunstncias sociais, polcas e intelec-
tuais, associadas ao advento do mundo moderno, tais como a ascenso das
classes mdias, a democrazao do sistema polco e o colapso do monoplio
intelectual da Igreja, to acentuado no mundo medieval, havia tornado cada vez
mais visvel o fenmeno do condicionamento social das ideias: pontos de vista
divergentes, mas com igual pretenso de validade, passavam a ser sustentados
pelos disntos grupos sociais, e tais divergncias intelectuais, longe de soarem
independentes das acirradas lutas econmicas e polcas nas quais esses gruposse envolviam, ali encontravam, na realidade, as suas razes mais profundas. Em
O ponto de vistanormavo, na suaexpresso maisestridente, mais
maante, pode serencontrado, por suavez, na obra de Po-pper e de sua esco-la, autores nos quaisa Teoria da Cinciaaparece claramentecomo uma provnciada losoa moral.Para um instru-vo confronto entreesses dois pontosde vista, ver Imre
Lakatos e Alan Mus-grave: A Crca e oDesenvolvimento do
Conhecimento, SoPaulo: Cultrix: Ed. daUniversidade de SoPaulo.
3. O programa for-te de Sociologiado Conhecimento,
elaborado por soci-logos da Unidadede Estudos da Cin-
cia da Universidadede Edimburgo, emparcular por BarryBarnes e David Blo-or, representou umatentava de natura-lizao da epistemo-logia com base naanlise sociolgica,tentava esta quepretendia deixarpara trs o pontode vista normavo
e apriorsco da ve-lha epistemologia.Nessa perspecva,no apenas os er-ros mas tambm osacertos da inves-gao cienca de-viam ser explicadossociologicamente.Sendo assim, j nohavia lugar para essavelha epistemologia.Numa aberta ruptu-
ra com a Sociologiado Conhecimentomais tradicional,
e x e m p l a r m e n t e
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outras palavras, no embate das ideias ecoavam diferenas e antagonismos ex-
tratericos, existenciais.
A teoria marxista da ideologia representava um lcido e pioneiro reconhecimen-to desse fenmeno. Com efeito, Marx nha sublinhado acertadamente as razes
sociais e avistas de determinadas doutrinas loscas, econmicas e polcas
de seu tempo, revelando o quanto tais doutrinas, longe de habitarem um pla-
tnico (ou popperiano!) mundo das ideias em si, expressavam, na verdade,
pontos de vista parculares de classes sociais parculares.
Assim, por exemplo, em A Ideologia Alem, obra seminal no desenvolvimento
da moderna Sociologia do Conhecimento, Marx vai sugerir, esta a hiptese
central do livro, uma conexo, no mesmo passo causal e funcional5
, entre asideias loscas de autores como Bruno Bauer e Max Srner, os jovens hegelia-
nos contra os quais asperamente polemiza, e as condies sociais e polcas da
Alemanha nos anos 40 do sculo XIX: o gosto por abstraes vazias, destudas
de qualquer contedo emprico, a inclinao especulava, a ausncia completa
de um sendo de realidade, a incapacidade, em suma, de ver as coisas como
elas realmente so, to acentuada na reexo losca dos jovens hegelianos,
expressaria, na verdade, a misria da sociedade alem dessa poca, mais exata-
mente de sua burguesia: esta, num contraste vivo com sua congnere francesa,
protagonista de uma revoluo exemplar, no se revelava capaz de promoveras mudanas sociais e polcas necessrias consolidao de seu domnio de
classe, pois abria mo, temerosa do avano das massas, da revoluo burguesa,
renunciava ao poder polco direto, conciliava vergonhosamente com o passado
feudal, obstaculizando assim o progresso social.
A Alemanha atrasada, retardatria numa era de Revolues, assustada com os
desaos formidveis colocados pelo curso da histria, produzia, assevera Marx,
uma losoa complacente com o presente, pseudocrca, escapista. Para os l-
sofos, a Alemanha se encontrava ento s voltas com uma revoluo grandiosa,
sem precedentes, uma revoluo diante da qual as jornadas francesas de 1789no passavam de brincadeiras de criana. Portanto, sugeriam eles, as coisas cor-
riam muito bem no mundo alemo! Contudo, prossegue Marx, tal revoluo
no passava, na verdade, de uma fantasia losca, pois, longe de envolver,
como fora o caso na Frana, as classes sociais numa luta real, longe de impli-
car mudanas reais nas relaes entre os homens, resumia-se numa disputa
estridente entre fraseologias rivais os conitos no interior da escola de He-
gel, contrapondo jovens a velhos hegelianos , numa tagarelice losca vazia
que deixava intocada a sociedade alem, servindo to somente para desviar a
ateno dos graves e inescapveis problemas colocados para essa sociedade.
representada nosestudos de Merton
sobre a cincia, osporta-vozes do pro-
grama forte vo serecusar a uma divi-
so de tarefas comos epistemlogosnormavos, divisona qual caberia aoslmos a explica-o do sucesso dainvesgao cien-ca, concebidoaqui como triunfoda razo universal,e aos socilogos
to somente o in-ventrio dos fato-res externos quevieram obstaculizar,
em circunstnciasparculares, essetriunfo. Com isso,a Sociologia do Co-nhecimento vai con-
vergir com as ideiasde Quine e Kuhn no
sendo de conce-ber a reexo epis-temolgica comoum empreendimen-to essencialmente
emprico. Para umacrca desse progra-ma de pesquisas,ver Laudan (1981),e para uma crcadessa crca, verBloor (1981).
4. Mannheim, nessacrca, no costu-ma citar autores e
textos parculares,mas parece ter emmente, em algumaspassagens, o cha-mado empirismolgico. Para umaexposio clssi-ca das teses dessa
escola losca,ver Ayer (1946).
5. A presena de ex-plicaes funcionaisem Marx foi luci-
damente sublinha-da pelo chamadomarxismo analco,de longe a mais
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Nesse sendo, os lsofos, os idelogos, como Marx os denomina, traduziam
numa linguagem obscura, pedante, no jargo hegeliano, a incapacidade do bur-
gus alemo de encarar a realidade, de responder aos desaos do presente,
levando a cabo mudanas sociais e polcas cada dia mais inadiveis. Os jovens
hegelianos, conclui Marx, falam da necessidade de substurem a conscincia
atual por uma conscincia losca crca, mas, na verdade, so os maiores
conservadores, pois no lutando contra a fraseologia de um mundo que se
luta contra o mundo que realmente existe (MARX, s/d, p. 17). O signicado
objevo do que se passava no mundo intelectual alemo dessa poca devia ser
buscado, assim, fora desse mundo, devia ser buscado nas condies sociais e
polcas concretas da sociedade alem de ento.
Marx, contudo, observa Mannheim, no levara esse lcido reconhecimento dadeterminao social do epistmico s lmas consequncias, pois se limitara a
pens-la em termos de uma sociologia do erro. Com efeito, para Marx, as for-
mas de pensamento socialmente condicionadas ou ideolgicas, como prefere
chamar, constuam uma falsa conscincia, uma imagem distorcida das coisas,
objevamente compromeda com estruturas de dominao econmicas e po-
lcas, no conhecimento convel acerca do mundo social. nesses termos
que Marx pensa a determinao social das ideias. Assim, soa compreensvel
o fato de que jamais tenha situado o conhecimento cienco, a se incluindo
a sua prpria obra assim que ele a percebe , na superestrutura ideolgi-ca do mundo social. Com isso, Marx acaba reduzindo a anlise sociolgica das
razes pr-tericas, existenciais, do conhecimento humano denncia da pre-
sena intelectualmente destruva dos interesses sociais e polcos na produo
desse conhecimento. Do ponto de vista marxista, com efeito, a revelao dessa
presena implicava invariavelmente a desqualicao intelectual. Desse modo,
Marx permanece ainda muito prximo da reexo epistemolgica tradicional
ao associar o erro ao enraizamento scio-histrico da vida intelectual.
Contudo, o andamento subsequente da invesgao sociolgica, assegura Man-
nheim, vai deixar para trs as limitaes da teoria marxista da ideologia, com base
num duplo passo, a saber: 1) ampliando a hiptese relava determinao exis-
tencial das ideias, de modo a incluir, nos domnios dessa determinao, o conjunto
do conhecimento social, a se incluindo o marxismo e os desenvolvimentos pos-
teriores da Sociologia do Conhecimento, que adquiria assim uma dimenso au-
torreexiva em Ideologia e Utopia, por exemplo, Mannheim vai estabelecer as
circunstncias scio-histricas que tornaro possvel essa sociologia; 2) dissocian-
do tal determinao da inevitabilidade do erro intelectual e, em decorrncia dis-
so, acolhendo a possibilidade do conhecimento objevo socialmente enraizado.
Nessa perspecva, a elucidao das razes sociais e avistas de um determinado
sensata, a menos
obscuransta inter-pretao da obramarxiana.
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ponto de vista j no implicava necessariamente a sua desqualicao intelectu-
al: o saber do qual se valiam os seres humanos nos contextos concretos da vida
codiana trazia, cabia reconhecer, as marcas desses contextos, mas no soava
plausvel reduzi-lo, em razo disso, a miscaes ideolgicas.
A Sociologia do Conhecimento deixava Marx para trs ao revelar a universalida-
de desse condicionamento existencial das interpretaes pblicas da realidade
social e ao dissoci-lo da cegueira ideolgica compromeda com a preservao
de estruturas de dominao. A Sociologia do Conhecimento vinha sublinhar a
existncia de formas de pensamento indissoluvelmente ligadas aos contextos da
ao, ecientes e indispensveis nesses contextos, formas de pensamento essas
que j no cabiam no conceito marxiano de ideologia.
3. Da Filosoa da Histria Sociologia do Conhecimento como cinciaemprica
Mas esses avanos tericos da invesgao sociolgica no se mostravam com-
paveis, alerta Mannheim, com a ideia de conhecimento objevo da velha
epistemologia. Mais ainda: no soavam sequer possveis luz dessa ideia! Na
perspecva dos epistemlogos, a conquista da objevidade implicava a mais
completa eliminao das caracterscas parculares, especcas, do sujeitoepistmico, a se incluindo, naturalmente, todas aquelas que resultavam de sua
insero num dado mundo social: no produto lgico-lingusco, admido como
conhecimento objevo, tais caracterscas simplesmente deviam desaparecer!
Caso isso no ocorresse, a almejada objevidade estaria seriamente compro-
meda. Do ponto de vista dos epistemlogos, a ideia de um conhecimento, no
mesmo passo, objevo e existencialmente situado, soava absurda, inaceitvel.
Portanto, o confronto com a Sociologia do Conhecimento parecia realmente ine-
vitvel.
Ora, argumenta Mannheim, como a reexo epistemolgica, longe de ser inde-
pendente dos progressos realizados no mbito das cincias empricas parcula-
res, como sugeria a ambio fundacionista dos epistemlogos, dele dependia, a
mencionada incompabilidade colocava a necessidade iniludvel de uma reviso
do conceito vigente, to central na reexo epistemolgica, de objevidade. As
descobertas empricas da Sociologia do Conhecimento no precisavam ser legi-
madas por uma epistemologia desenvolvida numa poca em que tais desco-
bertas no haviam sido feitas. A relao inversa na realidade se impunha: cabia
epistemologia atualizar-se, ajustar-se s novas evidncias empricas disponveis,
com elas tornar-se compavel. Sendo assim, assevera Mannheim, a Sociologia
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do Conhecimento implicava uma salutar e bem-vinda renovao da reexo
epistemolgica (ver Mannheim, 1982, p. 90, 309, 310).
No seria, talvez, exagerado dizer que a Sociologia do Conhecimento de Man-nheim consiste, em larga medida, numa verdadeira cruzada na qual o inel apa-
rece na gura de uma epistemologia supostamente caduca, prisioneira que de
uma concepo de conhecimento objevo demasiado restriva e excludente,
fruto da eleio, compreensvel mas indbita, de um po parcular de conhe -
cimento aquele encontrado apenas nas matemcas e nas cincias naturais
como o ideal exclusivo e supremo de todo o conhecimento convel. Ao rejeitar
tal epistemologia, Mannheim vai reivindicar o direito da invesgao social em-
piricamente orientada de prosseguir no seu caminho sem ser importunada por
um despropositado veto losco. Com isso, Mannheim se coloca na posiode porta-voz de uma disciplina emprica, a saber, a Sociologia do Conhecimento,
cujas descobertas empricas estariam sendo desautorizadas por uma epistemo-
logia dogmca, aferrada ao passado intelectual, incapaz de aprender com os
avanos da invesgao cienca.
A polmica de Mannheim com os epistemlogos passa, vale a pena sublinhar,
por duas etapas disntas: numa primeira etapa, muito bem representada no
ensaio Gnese e natureza do historicismo, ele vai censur-los com base numa
Filosoa da Histria (o historicismo) acolhida, nesse momento, em termos que
lembram o elogio do marxismo em Sartre: tratava-se da viso de mundo incon-
tornvel dos tempos modernos, uma fora intelectual de extraordinrio sig-
nicado com a qual todos ns teramos que nos haver, quisssemos ou no.
Na contramo dessa losoa, qual devamos a compreenso da historicidade
inescapvel do conjunto dos fenmenos sociais, a se incluindo o mundo das
ideias, os epistemlogos, prisioneiros ainda de uma losoa estca da razo,
no teriam se dado conta da dimenso histrica, dinmica, mutvel, do entendi-
mento humano, no teriam percebido o quanto as categorias mais gerais desse
entendimento variavam, tanto na forma como no contedo, ao longo da his-
tria intelectual, no cabendo, portanto, conceb-las em termos absolutos. Os
epistemlogos, legmos herdeiros da tradio iluminista, insisam numa con-
cepo scio-historicamente desenraizada, supratemporal, da racionalidade hu-
mana, mas tal concepo, na verdade, resultava ela prpria de uma poca, e de
uma poca que cava para trs.
Nessa etapa, a crca da epistemologia levada a cabo por Mannheim com-
pletamente tributria da aceitao entusisca da Filosoa da Histria, do
historicismo (em Mannheim esses termos parecem intercambiveis), con-
cebido aqui como uma metasica dinmica sintonizada com a moderni-dade. Nesse sendo, tal crca vai consisr num embate losco, numa
disputa acirrada entre duas losoas rivais epistemologia vs historicismo
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para saber qual delas merecia o status de cincia fundamental de todo conhe-
cimento humano. Mannheim, naturalmente, no alimentava qualquer dvida
acerca do desfecho desse embate. ele quem escreve: o lugar da epistemo-
logia como cincia fundamental ser ocupado pela Filosoa da Histria como
uma metasica dinmica (MANNHEIM, s/d, p. 151). Por outro lado, vale a pena
observar, a legimidade da invesgao sociolgica parece derivar aqui da sua
compabilidade com as lies dessa Filosoa da Histria, pois, para Mannheim,
nesse momento, a sociologia apenas uma daquelas esferas que, dominadas
de forma crescente pelo princpio do historicismo, reetem com mais delidade
nossa nova orientao na vida (p. 138). Nessa perspecva, os epistemlogos
aparecem como uns insensatos, indivduos incapazes de entrar em sintonia com
essa nova orientao na vida.
Contudo, em Ideologia e Utopia e nos ensaios reunidos em Sociologia da Cul-
tura, obras posteriores ao mencionado estudo sobre o historicismo (publica-
do originalmente em 1924), buscaramos em vo qualquer elogio da Filosoa
da Histria: as referncias, quando aparecem, so todas negavas. Assim, por
exemplo, discundo no captulo I de Sociologia da Cultura a importncia vital,
para a invesgao sociolgica, de reunir e sintezar as contribuies dos estu-
dos sociais especializados, Mannheim alerta para o risco de se relegar tal sntese
s extemporaneidades dos lsofos da histria (MANNHEIM, 1974, p. 8). A
rudeza desse alerta, to contrastante com a atude apologca presente no en-saio sobre o historicismo, soa compreensvel quando lembramos da importn-
cia crescente da metodologia empirista na obra de Mannheim: se as snteses da
Filosoa da Histria soam agora extemporneas, inaceitveis para a moderna
invesgao social, isso se deve, sobretudo, ao fato de que no pertencem ao
reino da experincia vericvel, lugar onde se situa essa invesgao, vivendo
antes na atmosfera rarefeita da especulao.
A Filosoa da Histria aparece agora como uma reexo especulava, destuda
de qualquer contedo emprico, desenvolvimento das premissas volivas deseus autores, invencionice losca cheia de personicaes da histria como
uma fora produva, um agente catalisador ou um poder inexorvel. Os lsofos
da histria pareciam conceber o movimento histrico sem levar em conta aquilo
que efevamente se movia, sem referncias aos contextos sociais concretos, s
foras reais que ali atuavam, nicas responsveis por tal movimento. Os lsofos
da histria nham, na verdade, negligenciado a substncia da histria. Com isso,
acabavam reduzindo a sociedade ao cenrio passivo do curso preordenado dos
acontecimentos histricos (p. 20-21). Sendo assim, cabia invesgao social
empiricamente orientada rejeitar, sim, as extemporaneidades desses lsofos.
Em Sociologia da Cultura, Mannheim faz um balano, to lcido quanto
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impiedoso, daqueles aspectos metodolgicos das obras de Marx e Hegel nos
quais ecoava uma losoa especulava da histria, aspectos esses incompa-
veis, alerta ele, com os procedimentos usuais numa cincia emprica genuna.
Aps observar que esses procedimentos envolviam a comunicabilidade, suposi-
es parlhadas e critrios pblicos de evidncia, Mannheim conclui:
Se o edicio conceitual de Hegel uma teologia racional da ordem polca
e social de seu tempo, o de Marx um cnone da Revoluo (...) mas, nem
o diagnsco de Hegel nem o de Marx so produzidos de modo anlogo
ao ulizado pelos irmos Grimm para detectar a famlia de lnguas indo-
europias, ou por Mendeleiev para chegar periodicidade dos elementos
atmicos. Pelo contrrio, as duas snteses so verses plenamente desen-
volvidas dos pontos de vista iniciais dos autores. O carter insustentvel da
presente ordem social uma premissa voliva do pensamento marxista,
assim como a nalidade do Estado de 1830 um axioma do pensamento
hegeliano. (MANNHEIM, 1974, p. 25)
Mannheim reconhece, bem verdade, as contribuies decisivas de Hegel e
Marx para a gnese e o desenvolvimento da moderna invesgao social. No
se trata, portanto, de rejeit-los em bloco. Assim, por exemplo, a sugesto he-
geliana de que apenas o recurso a categorias mediatas, no reduveis ob-
servao direta do fenomnico, sempre atomsca e fragmentria, possibilitariauma viso integrada do mundo da cultura, acolhida por Mannheim como uma
contribuio importante e duradoura metodologia das cincias sociais, algo
que, infelizmente, escapava a um empirismo mais estreito (p. 26-41). Marx, por
sua vez, teria estabelecido os alicerces, como j vimos, de uma Sociologia do
Conhecimento, ao sublinhar as razes scio-histricas das doutrinas econmicas
e polcas de seu tempo. Contudo, este o ponto fundamental, tais contribui -
es soavam aceitveis na medida, e apenas na medida, em que se revelavam
compaveis com as severas exigncias da pesquisa emprica: ulizar categorias
mediatas, assevera Mannheim, no signica abandonar o reino da experinciavericvel para entrar na atmosfera rarefeita da especulao, mas antes passar
da viso subjeva e fortuita anlise objeva (p. 26). O condicionamento social
das ideias, por sua vez, constua, repete Mannheim exausto, um fato muito
bem estabelecido no mbito dos estudos empricos do mundo social.
O adeus s iluses da losoa especulava da histria, resultante, deixem-nos
reper, da aceitao explcita de princpios metodolgicos empiristas, acom-
panhado, por outro lado, do enquadramento sociolgico da invesgao hist-
rica. Mannheim connua sublinhando a relevncia de uma abordagem histricado mundo das ideias ou, com mais abrangncia, do mundo da cultura; connua
armando a necessidade de buscarmos as razes scio-histricas desse mundo.
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Contudo, tal abordagem agora explicitamente colocada sob a gide da socio-
logia como conhecimento do geral. O que procuramos, esclarece ele, uma
iluminao sociolgica da histria. Nesse Mannheim, como de resto, no con-
junto da moderna teoria social, com a exceo talvez do Weber de alguns textos
metodolgicos, as descries do historiador (ou do etngrafo), no importa o
quanto exausvas e rigorosas possam de fato ser, nunca bastam por si mesmas,
nunca so sucientes na busca de uma compreenso cienca dos fenmenos
sociais, pois tais descries s ganham sua plena inteligibilidade luz da sociolo-
gia como conhecimento do geral. Assim, cabia falar numa iluminao sociol-
gica da histria. Em Sociologia da Cultura, essa subordinao do conhecimento
histrico teoria sociolgica, uma subordinao, diga-se de passagem, talvez
indissocivel da prpria ideia de sociologia, formulada por Mannheim nos se-
guintes termos:
A sociologia geral constui um legmo quadro de referncia: em virtude
de seu alcance geral, suas categorias tm precedncia sobre as categorias
da descrio histrica. Nesse nvel, os fenmenos singulares da histria
so vistos como combinaes parculares de tendncias supra-histricas,
como so observadas ao nvel da sociologia geral. (p. 39)
Com essa passagem progressiva de um Mannheim mais losco, entusiasta e
paladino da Filosoa da Histria, concebida como cincia fundamental, parao Mannheim socilogo emprico da cabea aos ps de nossas lmas citaes,
um autor preocupado em fazer avanar uma cincia emprica da cultura, crco
impiedoso dos arroubos especulavos dos lsofos da histria, da tutela, neles
to acentuada, de preocupaes extracognivas, morais e polcas (as referidas
premissas volivas) sobre a invesgao social; com essa passagem, deixem-nos
reper, vo estar dadas as condies de possibilidade da segunda etapa da cr-
ca da epistemologia acima sumariamente apresentada.
O Mannheim socilogo emprico j no censura os epistemlogos com basenuma viso totalizante, losca, supracienca do curso da histria universal
(o historicismo); j no recorre, ao combat-los, a generalidades metasicas
acerca da historicidade lma de todas as coisas, da mobilidade eterna e sem-
pre estruturada do mundo dos homens, preferindo antes sublinhar o fosso que
se instalara entre a reexo epistemolgica e descobertas empricas bem esta-
belecidas no mbito da moderna invesgao social, no caso, aquelas relavas
s razes sociais e avistas do conhecimento humano.
Segundo Mannheim, tal fosso resultava do apego dos epistemlogos a uma
concepo de conhecimento objevo, que soava, como j vimos, com-pletamente inadequada em face das descobertas empricas da Sociologia
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do Conhecimento. Os socilogos nham revelado, com base em pesquisas em-
pricas, o condicionamento existencial de determinadas formas do conhecimen-
to humano, a saber, aquelas de que se valem os indivduos nos contextos con -
cretos da vida coleva. Na contramo dessas descobertas, os epistemlogos,
porm, insisam em vincular a conquista da objevidade produo de um
po de conhecimento no qual no deveramos encontrar jamais as marcas de
indivduos (ou colevidades) parculares, situados em mundos parculares, um
conhecimento resultante, na verdade, de procedimentos cognivos genricos e
universais. Com isso, eles acabavam estabelecendo uma oposio absurda en-
tre o conhecimento objevo, tal como o concebiam, e parcelas considerveis do
conhecimento humano, idencadas agora como um saber inexato, imperfeito,
pr-cienco (ver Mannheim, 1982, p. 30). Para Mannheim, tal situao colo-
cava a necessidade de uma reviso da velha epistemologia, de modo a torn-lacompavel com as novidades ciencas em questo. Em Ideologia e Utopia,
Mannheim formula essa necessidade nos seguintes termos:
No conseguiremos angir uma psicologia e uma teoria do conhecimento
adequadas enquanto nossa epistemologia deixar, desde o incio, de reco-
nhecer o carter social do conhecer, e no encarar o pensar individualiza-
do apenas como um momento excepcional. (p. 59)
Caberia aos epistemlogos aprenderem com as cincias empricas parculares,acompanharem as novidades ali apresentadas, pois s assim ganhariam a ne-
cessria exibilidade e abrangncia6. Nas palavras de Mannheim:
Somente atravs de um recurso constante aos procedimentos das cincias
empricas especcas podem os fundamentos epistemolgicos tornarem-
se sucientemente exveis e extensos para no somente sancionar as
pretenses das formas mais angas de conhecimento (sua nalidade ori -
ginal), mas igualmente as formas mais recentes. (p. 310)
Semelhantes concluses, todavia, pressupunham, vale a pena sublinhar, a
passagem acima mencionada da losoa especulava da histria Sociologia
do Conhecimento como cincia emprica. Esta lma pertencia por inteiro ao
reino da experincia vericvel e, nessa condio, possua autonomia e pre -
cedncia em relao a qualquer presumida cincia fundamental. O erro dos
epistemlogos foi exatamente no terem se dado conta desse fato, foi terem
reivindicado para a reexo epistemolgica, numa verdadeira inverso da or-
dem natural das coisas, uma independncia em face das cincias empricas par-
culares, na verdade, inexistente.
Embora Mannheim no chegue a sustentar abertamente a necessidade da
6. Para uma interes-sante discusso so-bre as relaes entrea epistemologia nor-mava e o conheci-mento substanvoacerca do mundo
oferecido pelas ci-ncias empricas,ver Laudan (1988) e
Worrall (1989). Parauma tentava deconciliar a natura-
lizao da reexoepistemolgica comas tradicionais pre-ocupaes norma-vas dessa reexo,ver Kitcher (1998) eGoldman (1998).
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eliminao pura e simples da reexo epistemolgica tradicional, no-emprica,
normava e juscacionista em favor de abordagens resolutamente naturalistas
(sociolgicas ou no), ciencas e no loscas, do conhecimento humano,
sua polmica com os epistemlogos parece apontar agora, em larga medida,
nessa direo: a epistemologia renovada que resultaria, segundo ele, do reco-
nhecimento daquela dimenso existencial e avista da vida intelectual, to lu-
cidamente sublinhada, desde Marx, por uma invesgao social empiricamente
orientada, j no guardaria muita semelhana com a velha epistemologia, uma
disciplina losca com status quase transcendental, situada, de fato, fora e su-
postamente acima do mundo das cincias empricas parculares, autoprocla-
mada guardi da razo universal. Mannheim vai rejeitar categoricamente a pos-
sibilidade e a legimidade de semelhante disciplina e, nessa rejeio, antecipa
em muitas dcadas as abordagens naturalistas da epistemologia e da Sociologiado Conhecimento mais recentes.
4. Sociologia da reexo epistemolgica
Na cruzada que leva a cabo contra os epistemlogos de seu tempo, Mannheim
no se limita a uma armao genrica acerca da precedncia e autonomia das
cincias empricas parculares em face da reexo epistemolgica. Alm disso,
fechando o cerco, ele busca o enquadramento scio-histrico da epistemolo-gia: esta disciplina, longe de situar-se acima de todas as culturas parculares
(a suposta condio de possibilidade do conhecimento objevo), resultaria, na
realidade, de um conjunto de circunstncias sociais e histricas especcas, de-
las seria uma expresso intelectual. Com isso, Mannheim procura incluir, na lista
das provas empricas disponveis relavas ao condicionamento social das ideias,
o exemplo da prpria epistemologia! Contra as iluses transcendentalistas dos
epistemlogos, cabia inclu-la tambm, ao lado do pensamento social e polco,
no vasto universo das ideias existencialmente situadas. Vejamos isso mais de
perto.
A ideia geral de que a epistemologia, como de resto toda a reexo losca,
lana as suas razes e fundamento lmo em solo pr-terico, atravessa a obra
de Mannheim, podendo ser encontrada tanto em sua fase mais losca como
em seus lmos escritos. Com efeito, j no ensaio sobre o historicismo (1924),
localizamos referncias s condies scio-histricas da doutrina da autono-
mia da esfera terica, na qual estaria ancorada a reexo epistemolgica: tal
doutrina, esclarece Mannheim, emerge apenas nos tempos modernos, como
expresso intelectual de um determinado processo histrico, a saber, o da au-
tonomizao progressiva das diferentes esferas da vida social, um fenmeno
completamente ausente no mundo feudal que cava para trs. Nas palavras de
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Mannheim:
Como evidncia de que os fundamentos da doutrina da autonomia da
teoria so pr-tericos, podemos mencionar de passagem que durante aIdade Mdia a relao ancilar de subordinao que a losoa e todas as
outras teorias mannham com a teologia e com a esfera religiosa existente
por trs dela, era algo absolutamente acima de qualquer dvida (...) no
Renascimento que as diferentes esferas da vida comeam a se emancipar e
angem a autonomia da ao moral, da criao arsca e do pensamento
terico. (p. 149)
Contudo, a sociologia da epistemologia realizada por Mannheim nesse ensaio
ainda demasiado sumria e incipiente, alm de completamente tributriade uma losoa especulava da histria, mais tarde, como j vimos, rejeitada:
Mannheim no discute ali, como far em Ideologia e Utopia, teses epistemolgi-
cas especcas, tais como a disno entre os contextos da descoberta e da jus-
cao7 , limitando-se a invesr contra a losoa do Iluminismo, censurada
por encerrar uma doutrina da supratemporalidade da razo. A Sociologia do
Conhecimento ainda aparece ali como uma espcie de subproduto intelectual
de uma metasica dinmica concebida como cincia fundamental.
Em Ideologia e Utopia, na parte I desse livro, ausente na edio original alem
de 1929, escrita especialmente para a edio inglesa de 1937, Mannheim apre-senta, em contraparda, uma anlise sociolgica circunstanciada daquilo que
teria sido o solo pr-terico, existencial, da epistemologia moderna. Segundo
ele, essa disciplina losca veio responder necessidade colocada para os mo-
dernos, para homens vivendo num mundo onde tudo que era slido e estvel
se esfumava (Marx), de encontrar um ponto de apoio, um reduto de certezas
intelectuais no qual pudessem se ancorar. Com a derrocada da sociedade feudal,
acompanhada como fora da contestao bem-sucedida do monoplio intelec-
tual da Igreja e da proliferao de pontos de vista alternavos e rivais, j no se
dispunha de uma viso unicada e inabalvel do mundo exterior, espelho dascoisas como elas realmente so. A crena no ordenamento objevo desse mun-
do, no ordenamento independente de qualquer sujeito epistmico, to acentu-
ada no pensamento medieval, soobrava junto com a autoridade inconteste da
Igreja, seu maior sustentculo. O mundo exterior, alvo de interpretaes diver-
gentes, j no parecia oferecer um fundamento seguro para o conhecimento
humano. Nesse contexto de crise intelectual, fruto de transformaes scio-his-
tricas decisivas, os indivduos se voltaram, prossegue Mannheim, para o sujeito
epistmico, concebido em termos gerais e abstratos, nele buscando um anco-
radouro para a existncia objeva. Para Mannheim, tanto o racionalismo comoo empirismo clssicos apontavam nessa direo. ele quem escreve:
7. Em Ideologia eUtopia, Mannheim
rejeita a disnoradical, to cara aosepistemlogos, en-tre o contexto dadescoberta enquan-to o conjunto dascondies naturaise sociais associadas
gnese de umadeterminada ideia,
legmo objeto deinvesgaes emp-
ricas, e o contextoda juscao, es-pao das razes l-gicas e metodolgi-cas gerais com basenas quais decidimosacerca da aceita-
bilidade ou no deenunciados ou siste-
mas de enunciados,
sem levar em conta
agora quaisquer cir-cunstncias vincula-
das s suas origens,domnio exclusivoda reexo episte-molgica. SegundoMannheim, tal dis-
no podia valerpara as cincias na-turais e exatas, masno cabia aplic-laquando se lidavacom o conhecimen-
to existencialmentesituado. Para umacrca ainda maisradical dessa dis-
no, ver Latour(1997).
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Todas essas tentavas [racionalistas e empiristas] pressupem a conside-
rao mais ou menos explcita de que o sujeito nos mais imediatamente
acessvel que o objeto que, como resultado das muitas interpretaes di-
vergentes, passou a ser por demais ambguo. (p. 42)
A epistemologia representava, assim, uma tentava de solucionar, com base
numa anlise do sujeito epistmico, de sua natureza e avidades, o problema
dos fundamentos do conhecimento humano, problema esse que soava incon-
tornvel para os modernos em razo do colapso da f incondicional na viso
unicada do mundo, de inspirao religiosa at ento prevalecente. Nesse sen-
do, a reexo epistemolgica resultava de uma crise intelectual datada cujas
razes scio-histricas j estavam bem estabelecidas. Mannheim vai ainda mais
longe nesse enquadramento sociolgico da epistemologia: no apenas a crise,mas tambm a soluo apresentada trazia as marcas dessa poca, lanava as
suas razes e fundamento lmo em solo pr-terico: com efeito, na reexo
epistemolgica, com a sua nfase exclusiva no indivduo isolado, independente,
situado fora de qualquer contexto comunitrio, com seu descaso para com o
carter social do conhecimento humano, ecoava, assevera Mannheim, a viso
de mundo individualista e subjevista da sociedade que emergia na Europa das
runas do mundo feudal (p. 59-60).
Prossigamos. Mannheim vai sublinhar tambm, nesse enquadramento scio-
histrico da reexo epistemolgica, as conexes entre tal reexo e as ten-
dncias democrazantes associadas s origens do mundo moderno. O ponto de
vista epistemolgico, centrado nas avidades cognivas do sujeito epistmico
genrico, aceitando apenas os controles estabelecidos no mbito dessas avi-
dades, representaria um formidvel desao autoridade da Igreja como intr-
prete ocial do universo: o conhecimento convel j no deveria ser estabe-
lecido agora com base nos pronunciamentos desse intrprete, mas sim como
resultado de procedimentos cognivos acessveis, em princpio, a qualquer in-
telecto. Assim, conclui Mannheim, a reexo epistemolgica vinculava-se, de
fato, s inclinaes democrazantes da modernidade, ali encontrava o seu lugar.
Em Sociologia da Cultura, no captulo intulado O problema da intelligent-
sia: um estudo do seu papel no passado e no presente, Mannheim segue na
mesma direo. Nesse captulo, com efeito, ele vai destacar as similitudes en-
tre o ponto de vista epistemolgico e a mentalidade democrca das classes
mdias em ascenso nos comeos do mundo moderno: ambos envolveriam
princpios universalistas, niveladores e anaristocrcos. Os critrios epistemo-
lgicos, completamente gerais e abstratos, com base nos quais caberia decidir
acerca da aceitabilidade ou no de um dado juzo, deveriam valer para todos osseres humanos, sem excees. Nessa perspecva, ningum, absolutamente nin-
gum, estava autorizado a dispensar tais controles gerais, e todos, em princpio,
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todos deles poderiam parcipar: as provas empricas disponveis de um juzo
factual ou a demonstrao rigorosa da necessidade lgica de um juzo analco
podiam ser objeto de escrunio por todos os indivduos. Para os epistem-
logos, como para os defensores do iderio polco democrco, a publicidade
irrestrita soava obrigatria, iniludvel.
Nesse sendo, o ponto de vista epistemolgico, convergindo aqui com a men-
talidade democrca, implicava a mais cabal rejeio da viso de mundo elista
e aristocrca, expresso espiritual de uma sociedade estracada com base
numa rgida disno entre homens superiores e inferiores, para a qual o co-
nhecimento humano em suas formas mais desenvolvidas, como, de resto, qual-
quer outro produto cultural socialmente valioso, devia situar-se num plano su-
perior, inacessvel aos homens normais. Os epistemlogos, sintonizados com osnovos tempos, apresentavam assim uma teoria geral do conhecimento humano
na qual j no havia nenhum lugar para elites epistemologicamente privilegia-
das, nem para intrpretes ociais do Universo, uma teoria na qual ecoava lm-
pida a ideia democrca da igualdade fundamental de todos os seres humanos.
Os epistemlogos vinculavam-se, ainda, cultura democrca na preferncia
revelada por abstraes e generalidades, em detrimento da ateno dispensada
aos aspectos mais concretos, mais parculares, de seu objeto de anlise. Com
efeito, o sujeito epistmico do qual falavam constua uma endade altamen-
te abstrata, destuda de qualquer contedo parcular, situada aparentemente
fora e acima da natureza e da cultura. Ora, tal inclinao por abstraes, com
o sacricio dos contedos parculares da experincia humana, constua, na
realidade, prossegue Mannheim, um dos traos mais caracterscos das socie-
dades democrcas: que a mulplicidade e a diversidade dos grupos sociais,
ali atuando como legmos protagonistas da vida pblica, inviabilizariam as co-
municaes mais concretas, as mensagens dotadas de contedos especcos,
acessveis apenas queles indivduos que dispusessem de experincias e as-
sociaes similares. Nesse contexto, o recurso a uma linguagem mais abstrata,
mais distanciada das vivncias singulares de grupos sociais singulares, represen-
taria a nica forma de assegurar uma comunicabilidade mais completa e geral. O
carter abstrato da reexo epistemolgica resultaria dessa tendncia societria
mais ampla, nela lanaria as suas razes pr-tericas. Portanto, assegura Man-
nheim, cabia reconhecer que
A necessidade de abstrao e anlise no imposta pelas coisas; sua ori-
gem social; surge a parr das propores e da estrutura do grupo no
interior do qual o conhecimento deve ser parlhado (...) mais provvel
que relaes abstratas sejam descobertas em sociedades democrcas doque aristocrcas. (p. 156)
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Buscando detalhar mais essa sociologia da epistemologia moderna, Mannheim
vai localizar, nas ideias epistemolgicas de Kant, relavas ao papel avo e cons-
truvo do sujeito epistmico no processo cognivo, os ecos da experincia so-
cial pr-terica de seu tempo. Nessas ideias, sugere ele, podemos encontrar a
expresso losca da crescente incluso social e polca de camadas da popu-
lao at ento dependentes e passivas, camadas essas que passavam agora a
parcipar avamente da vida polca dos povos. A concepo kanana do pro-
cesso cognivo como avidade criava do sujeito epistmico implicava o aban-
dono de concepes anteriores, nas quais tal sujeito desempenhava um papel
puramente passivo e recepvo em face do objeto.
Para Mannheim, essa mudana losca acompanhava a mencionada mudana
societria mais geral: a epistemologia kanana traduzia, na linguagem abstra-ta dos lsofos, a experincia social pr-terica dos processos democrazantes
em curso na Europa. O novo status do sujeito epistmico correspondia ao novo
status social e polco dos protagonistas desses processos. Na imagem kanana
do sujeito epistmico, teramos o desfecho de um processo cultural mais amplo,
cujas origens remontavam Renascena, de transformaes na autoapresenta-
o dos seres humanos nos tempos modernos. Nesse sendo, tal imagem ex-
pressava o ponto de vista de indivduos situados num mundo social parcular,
numa etapa parcular de seu desenvolvimento histrico. Sendo assim, conclui
Mannheim, a epistemologia kanana, como, de resto, o conjunto da moder-na reexo epistemolgica, representava, ao contrrio do que pareciam supor
os epistemlogos, prisioneiros de iluses transcendentalistas, uma ilustrao
exemplar da tese sociolgica relava s determinaes scio-histricas do co-
nhecimento humano.
Como j vimos, Mannheim, nesse aspecto socilogo da cabea aos ps, subor-
dinava a invesgao histrica s verdades abstratas da sociologia geral. Cabia
buscar, assevera ele, uma iluminao sociolgica da histria. Ora, isso valia
igualmente, supruo diz-lo, para a histria das ideias: tambm, nesse caso,
as descries do historiador no bastavam, devamos buscar uma iluminao
sociolgica dessas descries. Nesse sendo, cabia disnguir uma sociologia
da epistemologia de uma histria das ideias epistemolgicas que se limitasse a
estabelecer conexes entre tais ideias e contextos scio-histricos parculares,
sem, contudo, desembocar em concluses de ordem mais geral.
Mannheim leva realmente a srio tal disno: no se tratava apenas de realizar
uma histria das ideias atenta ao impacto de circunstncias histricas parcu-
lares num ambiente intelectual parcular; no se tratava apenas de demons-
trar que uma crise intelectual datada, scio-historicamente enraizada, resultounuma busca losca de fundamentos tambm datada. Mannheim, como os
pais fundadores da moderna teoria social, dos quais um legmo e ilustre
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herdeiro, , antes de tudo, um pensador terico: embora, como eles, se valha
da erudio histrica, dela se benecie amplamente, busca ultrapass-la na am-
bio intelectual, uma ambio intelectual expressa na tentava de estabelecer,
para l dessa erudio, padres e relaes de dependncia mais gerais.
Nesse aspecto, diga-se de passagem, o Mannheim mais losco e o Mannheim
socilogo emprico esto muito prximos: ambos subordinam as invesgaes
histricas especcas ao conhecimento do geral, sendo que, para o primeiro, tal
conhecimento idencado com a Filosoa da Histria enquanto metasica
dinmica, ao passo que, para o segundo, ele aparece na gura da moderna
teoria social, concebida como cincia emprica genuna.
A Sociologia da epistemologia levada a cabo por Mannheim consiste to so-
mente numa ilustrao parcular da hiptese geral, constuva da Sociologia
do Conhecimento como disciplina terica, acerca das razes sociais e avistas
do pensamento humano. Com essa ilustrao, Mannheim busca sublinhar a
fecundidade e o alcance explicavo de uma histria da vida intelectual socio-
logicamente iluminada: desvendar o solo pr-terico da epistemologia no
signicava desvendar apenas uma peculiaridade da vida intelectual no Oci-
dente moderno, mas sim fornecer novas provas empricas da generalidade e
abrangncia do fenmeno da determinao social do conhecimento humano. A
sociologia da epistemologia vinha demonstrar que, mesmo nas reexes mais
abstratas, aparentemente mais distanciadas dos contextos concretos da ao
coleva, seria possvel sim, graas iluminao sociolgica do material histrico,
localizar tal determinao. Nesse sendo, a sociologia da epistemologia oferecia
uma ilustrao histrica parcularmente valiosa das verdades gerais da Sociolo-
gia do Conhecimento.
5. Consideraes Finais
No cabe na extenso limitada deste trabalho, voltado to somente a uma expo-
sio, a mais el possvel, das objees dirigidas por Mannheim aos epistemlo-
gos de seu tempo, um balano crco dessas objees, uma crca da crca: isso
realmente nos levaria muito longe! Gostaramos, contudo, nestas consideraes
nais, de deixar registrado nosso respeito intelectual por esse autor merecida-
mente idencado por muitos como o lmo dos grandes clssicos da moderna
teoria social. Isso no implica acolh-lo sem reservas, endoss-lo no conjunto
de suas concluses. Nada mais longe da verdade: se a crca da epistemolo-
gia apriorsca e normava permanece, em larga medida, relevante e atual, o
mesmo no pode ser dito do enquadramento sociolgico dessa epistemolo-gia levado a cabo por Mannheim. Este, legmo herdeiro da ambio terica
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ilimitada de Marx e Durkheim, aposta alto demais na capacidade do conheci-
mento do geral de tornar plenamente inteligvel o conjunto da vida social, e isso
o leva a diculdades de toda ordem: decididamente no uma tarefa das mais
fceis explicar as formas parculares assumidas pela nossa vida intelectual com
base num corpo de conceitos gerais e abstratos8.
Seja l como for, de Mannheim poderamos dizer, com razo, aquilo que Lnin,
j prximo do m, disse de Rosa Luxemburg: mesmo quando errava, mesmo
quando comea os maiores tropeos, ela no perdia a grandeza, pois uma guia
ocasionalmente voando baixo connua a ser uma guia. A leitura de Man-
nheim nos deixou plenamente convencidos, pelo menos, de uma coisa: estamos
diante de um esprito poderoso, de um grande autor, cuja prosa constui, ainda
hoje, fonte do mais genuno prazer intelectual. Isso, leitor, convenhamos, deci-didamente no pouco!
Abstract: The arcle analyzes the crique of normave epistemology in the work
of Karl Mannheim, stressing its presence both in his more philosophical phase,
associated with the praise of historicism, and in his later Sociology of Knowledge.
It also calls aenon to the relevance of this crique: aacking the epistemolo-
gists of his me by not taking into proper account the ndings of parcular em -
pirical sciences, Mannheim ancipated by decades recent trends in the Sociology
of Knowledge and epistemological reecon.
Keywords: Sociology of Knowledge, Normave Epistemology, Philosophy of His-
tory
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8. Mannheim nodispe de um cor-po de hiptesesuniversais cujascondies de apli-cao tenham sidoclaramente esta-
belecidas, mas sim
to somente de umquadro conceitualmais ou menos abs-
trato, e com base
em semelhante fer-ramenta intelectual
simplesmente no possvel oferecer,como sonha esse
autor, explicaescausais e/ou funcio-nais situadas almdas descries com-preensivas do co-nhecimento social
do po conteuds-co. Infelizmente,
no podemos de-senvolver aqui esseponto de importn-cia, contudo, deci-
siva num balanocrco da Sociologiado Conhecimento
de Mannheim.
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