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oNota da edio norte-americana:Spatial Form in Modern Literatureapareceu na The Sewanee Review,edies de primavera, vero e outo-no de 1945. Joseph Frank (nascidoem 1918) gentilmente revisou econdensou seu ensaio para a pre-sente publicao, encontrando-se oraimpresso em sua nova forma com asua permisso e com a permissodo editor de The Sewanee Review.
A publicao deste ensaio umaindicao do Programa de Ps-Gra-duao em Teoria Literria e Litera-tura Comparada da FFLCH-USP.
JOSEPH FRANK
Traduo de Fbio Fonseca de Melo
Extrado de The Foundations ofModern Literary Judgement, NovaYork, Harcourt, Brace and Company(editores: Mark Schorer, JosephineMiles & Gordon McKenzie, da Uni-versidade da Califrnia), 1948,pp. 379-92.
A forma
espacialna
literatura
moderna
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Laocoonte de Lessing, notou certa
vez Andr Gide, um daqueles li-
vros que bom reiterar ou con-tradizer a cada trinta anos anos.
Apesar desse excelente conselho, nenhu-
ma dessas atitudes para comLaocoonte foi
adotada pelos escritores modernos (1).
A tentativa de Lessing de definir os li-
mites da literatura e das artes plsticas tor-
nou-se questo encerrada qual ocasio-
nalmente feita uma referncia respeitosa,
mas que no suscita mais influncia fecun-
dante ao pensamento esttico. Podemos en-tender como isso se sucedeu no sculo XIX,
com sua paixo pelo historicismo, mas no
de entendimento muito fcil no presente,
em que tantos escritores dedicados aos pro-
blemas estticos tm se ocupado das ques-
tes da forma. Para um historiador da lite-
ratura ou das artes plsticas, o esforo de
Lessing em definir as leis inalterveis des-
ses veculos pode bem ter parecido quixo-
tesco; mas crticos modernos, que j no se
assustam com o fantasma do mtodo hist-
rico, comeam a considerar novamente os
problemas que ele tentou resolver.
As solues dadas por Lessing a esses
problemas parecem, primeira vista, ter
pouca relao com o pensamento esttico
moderno. Os argumentos do Laocoonte
direcionavam-se contra a poesia pictrica
de seu tempo, que desde h muito deixou
de interessar a sensibilidade moderna; e
muitas de suas concluses acerca das artesplsticas originaram-se de uma arqueolo-
gia hoje antiquada, que, para piorar ainda
mais as coisas, Lessing conheceu, princi-
palmente, de segunda mo. Mas foi preci-
samente sua tentativa quixotesca de supe-
rar a histria, para definir as leis inalter-
veis da percepo esttica, antes que para
atacar ou defender qualquer escola em par-
ticular, que deu a seu trabalho o frescor
perene a que aludiu Andr Gide. Uma vez
que a validade de sua tese central no de-
pende de sua relao com os movimentos
literrios de seu tempo, nem da extenso de
sua experincia direta com as obras de arte
da Antigidade, ela pode ser tomada par-
te dessas circunstncias e utilizada na an-
lise de desenvolvimentos posteriores.
No Laocoonte , Lessing funde duas
correntes de pensamento que eram de
grande importncia na histria cultural deseu tempo. As pesquisas arqueolgicas de
Winckelmann, seu contemporneo, estimu-
laram um interesse apaixonado pela cultu-
ra grega entre os alemes. Lessing voltou a
Homero, a Aristteles e aos trgicos gre-
gos, usando seu conhecimento direto para
atacar as teorias crticas distorcidas, supos-
tamente baseadas na autoridade clssica,
que haviam se infiltrado na Frana atravs
de comentadores italianos e s posterior-mente empossadas na Alemanha. Ao mes-
mo tempo, como aponta Wilhelm Dilthey
em seu famoso ensaio sobre Lessing, Locke
e a escola emprica de filosofia inglesa ha-
viam dado um novo impulso especulao
esttica. Locke tentara resolver o problema
do conhecimento, partindo idias comple-
xas em elementos simples de sensao, para,
em seguida, examinar as operaes da
mente e verificar como essas sensaes
eram combinadas para formar idias. Esse
mtodo foi rapidamente adotado pelos
estetas, que, em vez de deitar regras para a
beleza, comearam a analisar a percepo
esttica. Escritores como Shaftesbury,
Hogarth, Hutcheson e Burke, para citar
alguns poucos, interessaram-se pelo car-
ter e pela combinao de impresses preci-
sos que deram prazer esttico sensibilida-
de. Mendelssonhn, amigo e aliado crtico
de Lessing, popularizou esse mtodo detratar os problemas estticos na Alemanha;
o prprio Lessing era um estudante ntimo
dessas obras e de muitas outras com o
1 Irving Babbitt, em 1910, es-creveu O Novo Laocoontecoma inteno de fazer artemoderna o que Lessing fez arte de seus dias. Em suma, atese de Babbitt era a de que,assim como a confuso degneros poca de Lessingpde ser atrelada a uma falsateoria da imitao, tambm asaberraes artsticas de nossotempo poderiam ser atreladasa uma falsa teoria da esponta-neidade. O argumento deBabbitt, contudo, no tem ne-nhuma relao com as teoriasde Lessing. A discusso deLessing na primeira metade dolivro refora, meramente, aanalogia entre os propsitosde Lessing e os de Babbitt.
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mesmo esprito geral.Laocoonte, por con-
seguinte, encontra-se na confluncia des-
sas correntes intelectuais: Lessing analisa
as leis da percepo esttica, mostra como
elas prescrevem limitaes necessrias
literatura e s artes plsticas e, ento, de-
monstra como os escritores e pintores gre-
gos, especialmente Homero, criaram obras-
primas obedecendo a essas leis.
Seu argumento parte da simples obser-
vao de que a literatura e as artes plsti-
cas, trabalhando atravs de veculos senso-
riais diferentes, devem, portanto, diferir nas
leis fundamentais que governam sua cria-
o. Se verdade, escreveu Lessing, que
a pintura e a poesia, em suas imitaes,
fazem uso de meios ou smbolos inteira-mente diferentes a primeira, a saber, de
forma e cor no espao, e a segunda, de sons
articulados no tempo , se esses smbolos
requerem, indissoluvelmente, uma relao
condizente com a coisa simbolizada, ento
est claro que os smbolos arranjados em
justaposio podem expressar somente ma-
trias cujas totalidades e partes sejam, elas
mesmas, consecutivas. Lessing, obvia-
mente, no inaugurou essa distino, quevem sendo traada desde as distncias da
Antigidade clssica. Sua contribuio foi
ter retirado tal distino de um discerni-
mento isolado e a alado a princpio crtico
universal, levando, dessa forma, sua con-
cluso lgica os esforos dos crticos cls-
sicos franceses em definir as leis imutveis
da arte conforme estabelecidas pela raison.
A forma nas artes plsticas, de acordo
com Lessing, necessariamente espacial,
pois o aspecto visvel dos objetos melhor
apresentado pela justaposio em um ins-
tante do tempo. A literatura, por outro lado,
faz uso da linguagem, composta de uma
sucesso de palavras que prosseguem atra-
vs do tempo; e da segue que a forma lite-
rria, para harmonizar com a qualidade
essencial de seu veculo, deve se basear pri-
mariamente em alguma forma de seqn-
cia narrativa. Lessing usou este argumento
para atacar dois gneros artsticos altamentepopulares em seus dias: a poesia pictrica
e a pintura alegrica. A poesia pictrica
tentava pintar com palavras, e a pintura
alegrica contar uma histria em imagens
visveis; ambas estavam fadadas ao fracas-
so, porque seus objetivos contradiziam as
propriedades fundamentais de seus vecu-
los. No importava quo acurada e vvida
uma descrio verbal pudesse ser, argumen-
tava Lessing, ela no poderia dar a impres-
so unificada de um objeto visvel; no
importava quo habilmente as figuras fos-
sem escolhidas e arranjadas, uma pintura
ou pea de escultura no teria sucesso em
narrar os diversos estgios de uma ao.
Lessing desenvolve seu argumento ten-
tando provar que os gregos, com um infa-
lvel senso de propriedade esttica, respei-
tavam os limites impostos aos diferentes
veculos artsticos pela condio da per-cepo humana. A importncia da distin-
o de Lessing, contudo, no depende des-
sas ramificaes de seu argumento, nem
mesmo de seus julgamentos especficos
deste ou aquele escritor ou artista. Diver-
sos crticos se engalfinharam com um ou
outro desses julgamentos, achando que, as-
sim fazendo, estariam de alguma forma
minando a posio de Lessing; mas tal cren-
a se baseia em uma m compreenso daimportncia do Laocoonte na histria da
teoria esttica. Os discernimentos de
Lessing podem ser usados unicamente
como instrumentos de anlise, sem avan-
ar em julgamento de valor de obras indi-
viduais, considerando quo proximamente
elas aderem s normas por ele estabelecidas;
e, a menos que isso seja feito, para dizer a
verdade, o real significado doLaocoonte
no pode ser compreendido. Pois o que
Lessing nos ofereceu no foi um novo con-
junto de opinies, mas uma nova concep-
o de forma esttica.
A concepo de forma esttica herdada
da Renascena pelo sculo XVIII era pura-
mente externa. Presumia-se que a literatu-
ra clssica ou o que conhecemos dela
tivesse alcanado a perfeio, e tudo o que
os escritores subseqentes podiam fazer no
ia muito alm de imitar seu exemplo. Uma
horda de comentadores e crticos deduziucertas regras das obras-primas clssicas
regras como as unidades aristotlicas, das
quais Aristteles jamais ouvira falar e os
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escritores modernos foram advertidos a
obedecer essas regras se desejassem agra-
dar a um pblico cultivado. Gradualmente,
essas regras se enrijeceram num molde ex-
terno no qual o material de uma obra lite-
rria devia ser vertido: a forma de uma obra
no passava de um arranjo tcnico ditado
pelas regras. Tal noo mecnica de forma
esttica, todavia, levou a srias perverses
do gosto Shakespeare foi considerado um
brbaro mesmo por escritores to sofisti-
cados quanto Voltaire, e Pope achou ne-
cessrio us-la na traduo de Homero para
fazer um bom negcio editorial. O ponto
de vista de Lessing, rompendo agudamen-
te com essa concepo externa de forma,
demarca a via para a especulao estticaseguir no futuro.
Para Lessing, como vimos, a forma es-
ttica no um arranjo externo provido por
um conjunto de regras tradicionais: a re-
lao entre a natureza sensorial do veculo
artstico e as condies da percepo hu-
mana. Assim como o homem natural do
sculo XVIII no tinha af pelas formas
polticas tradicionais, mas dedicava-se a
cri-las de acordo com sua prpria nature-za, tambm a arte devia criar suas prprias
formas a partir de si mesma, em lugar de
aceit-las sem originalidade da prtica do
passado. A crtica no tinha que prescrever
regras para a arte, mas explorar as leis ne-
cessrias pelas quais a arte governa a si
mesma. A forma esttica no devia mais
ser confundida com meras externaes da
tcnica no era uma camisa-de-fora den-
tro da qual o artista, a contragosto, tinha
que forar suas idias criativas, mas sim
emanava espontaneamente da organizao
da obra de arte como ela se apresentava
percepo. Tempo e espao eram os dois
extremos a definir os limites da literatura e
das artes plsticas em sua relao com a
percepo sensorial; e possvel, seguindo
o exemplo de Lessing, traar a evoluo
das formas artsticas por meio de suas os-
cilaes entre esses dois plos (2).
O propsito do presente ensaio apli-car o mtodo de Lessing literatura moder-
na para traar a evoluo da forma na
poesia moderna e, mais particularmente,
no romance moderno. As primeiras duas
sees tentaro mostrar que a literatura
moderna, exemplificada por escritores
como T. S. Eliot, Ezra Pound, Marcel Proust
e James Joyce, est se movendo na direo
da forma espacial. Isso significa que cabe
ao leitor apreender suas obras espacialmen-
te, em um momento do tempo, antes que
em uma seqncia. At onde concerne ao
romance, essa tendncia alcana seu apo-
geu no notvel livro de Djuna Barnes, O
Bosque da Noite, que nunca recebeu a aten-
o crtica que merece (3). Finalmente, uma
vez que as mudanas na forma esttica sem-
pre envolvem mudanas maiores na sensi-
bilidade de um perodo cultural em parti-
cular, ser feito um esforo de delinear asatitudes espirituais que levaram predo-
minncia da forma espacial.
1
A poesia anglo-americana moderna re-
cebeu seu mpeto inicial do movimento
imagista dos anos diretamente precedentes
e consecutivos Primeira Guerra Mundial.O Imagismo foi importante no devido a
alguma poesia efetiva escrita por poetas
imagistas ningum sabe bem ao certo o
que era um poeta imagista mas, antes,
porque abriu o caminho para desenvolvi-
mentos posteriores, devido a seu honesto
rompimento com a verbiagem sentimental
vitoriana. Os escritos crticos de Ezra
Pound, o terico liderante do Imagismo,
constituem uma assombrosa farragem de
aguadas percepes estticas jogadas no
meio de uma srie de observaes traves-
sas pueris, cujo principal propsito, pode-
ria parecer, pater le bourgeois chocar
os engomadinhos. Mas a definio de ima-
gem de Pound, talvez a mais aguada de
suas percepes, de importncia funda-
mental para qualquer discusso da forma
literria moderna. Uma imagem, escre-
veu Pound, aquilo que apresenta um com-
plexo intelectual e emocional em um instan-te do tempo. As implicaes dessa defini-
o devem ser notadas uma imagem de-
finida no como uma reproduo pictrica,
2 A crtica de arte alem, nestasltimas dcadas, vem experi-mentando um verdadeirorenascimento ao longo das li-nhas demarcadas por Lessing.Seguindo a direo de AloisRiegl, o predecessor imediatodaqueles escritores que, maistarde, se ocupariam em traara histria da forma nas artesplsticas, os acadmicos ale-mes traaram as cambiantesapreenses do espao queobservaram na raiz das mudan-as na forma esttica. O prxi-mo passo foi conectar a mu-dana na apreenso do espa-
o com mudanas mais amplasna histria da cultura. Finalmen-te, a investigao foi ampliadapara incluir no apenas as ar-tes plsticas, mas tambm a li-teratura e a msica introdu-zindo, assim, a categoria dotempo e mesmo as concep-es variveis de espao e tem-po do pensamento filosficocomo desenvolvimento parale-lo s mudanas nas formas ar-t s t icas. A tentat iva maisabrangente de tamanha snte-se foi feita por Dagobert Freyem seu brilhante e sugestivo li-vro Gotik und Renaissance, pu-blicado em 1929. Uma brevee excelente exposio dessemovimento encontra-se em DiePhilosophie der Kunstgeschichtein der Gegenwart, de WalterPassarge.Neste ponto, devemos mencio-nar ainda Structure of the Novel,de Edwin Muir, a nica obraem ingls, at onde sabe opresente autor, que tenta discu-tir a forma na literatura em ter-mos de espao e tempo.
3 No formato em que foi original-mente publicado, este ensaiocontinha uma anlise detalha-da de O Bosque da Noite(Nightwood), eliminada na pre-sente verso. Os leitores inte-ressados devem consultar a TheSewanee Review, edio devero de 1945.
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mas como a unificao de idias e emoes
dspares em um complexo apresentado es-
pacialmente em um instante do tempo. Tal
complexo no deve proceder discursivamen-
te, segundo as leis da linguagem, mas deve,
antes, fisgar a sensibilidade do leitor com
um impacto instantneo. Pound salienta esse
aspecto, acrescentando, em uma passagem
posterior, que somente a apresentao ins-
tantnea de tais complexos d aquela sen-
sao de liberao repentina; aquela sensa-
o de libertao dos limites do tempo e do
espao; aquela sensao de crescimento re-
pentino que experimentamos na presena
das maiores obras de arte.
Desde o princpio, portanto, a poesia
moderna defendeu um mtodo potico emdireta contradio com o modo pelo qual,
de acordo com Lessing, a linguagem tinha
que ser percebida. Comparando a defini-
o de imagem de Pound com a famosa
descrio da psicologia do processo poti-
co de Eliot, podemos ver claramente quo
profundamente essa concepo influenciou
nossa idia moderna da natureza da poesia.
Para Eliot, a qualidade distintiva de uma
sensibilidade potica sua capacidade deformar novas totalidades, de fundir apa-
rentemente experincias dspares em uma
unidade orgnica. O homem ordinrio, es-
creve Eliot, se apaixona, ou l Spinoza, e
essas duas experincias no tm nenhuma
relao entre si, ou com o barulho da m-
quina de escrever ou com o cheiro de comi-
da cozinhando; na mente do poeta, essas
experincias esto sempre formando no-
vas totalidades. Pound, para se assegurar,
tentou definir a imagem em termos de seus
atributos estticos, ao passo que Eliot, nes-
sa passagem, est descrevendo suas origens
psicolgicas; mas o resultado em um poe-
ma era provavelmente muito parecido.
Essa viso da natureza da poesia ime-
diatamente fez brotar inmeros problemas.
Como poderia ser includa mais de uma
imagem em um poema? Se o valor essen-
cial de uma imagem era sua capacidade de
apresentar um complexo intelectual e emo-cional simultaneamente, associar imagens
claramente destruiria grande parte de sua
eficcia. Ou era o poema ele mesmo uma
vasta imagem, cujos componentes indivi-
duais deviam ser apreendidos como uma
unidade? Mas, nesse caso, seria necess-
rio superar a consecutividade inerente
linguagem, frustrando a expectativa nor-
mal de uma seqncia do leitor e foran-
do-o a perceber os elementos do poema
como justapostos no espao, em lugar de
desdobrando-se no tempo.
Foi isso, precisamente, que Eliot e Pound
tentaram em suas maiores obras. Ambos os
poetas, em suas primeiras obras, ainda re-
tinham alguns elementos da estrutura con-
vencional. Seus poemas eram apreciados
como ousados e revolucionrios essencial-
mente por questes tcnicas, como o afrou-
xamento do padro mtrico e a manipulaode assuntos ordinrios que no eram consi-
derados poticos. Talvez isso seja menos
verdade para Eliot que para Pound, especi-
almente o Eliot das obras iniciais mais com-
plexas, como Prufrock, Gerontion e
Retrato de uma Dama; mas mesmo ne-
las, embora as sees dos poemas no se-
jam governadas por lgica sinttica, o es-
queleto de uma estrutura narrativa
implicada est sempre presente. O leitor dePrufrock arrebatado por um movimen-
to narrativo logo nas primeiras linhas:
Vamos ento, tu e eu/ Quando a tarde.
E o leitor, acompanhando Prufrock, final-
mente chega a seu mtuo destino: As
mulheres na sala vm e vo caminhando/
De Miguel ngelo falando. Neste ponto,
o poema inicia uma srie de fragmentos
mais ou menos isolados, cada um expondo
algum aspecto do dilema emocional de
Prufrock; mas os fragmentos esto agora
localizados e focalizados em um conjunto
especfico de circunstncias: o leitor pode
organiz-los por referncia situao
implicada. O mesmo mtodo empregado
em Retrato de uma Dama, ao passo que
em Gerontion dito especificamente ao
leitor que ele est lendo idias de mente
rida em rida estao a corrente de
conscincia de um homem velho em ms
seco, ouvindo a leitura que um jovem mefaz, e a esperar pela chuva (4). Em ambos
os casos, h uma armao perceptvel em
torno da qual as passagens aparentemente
4 T. S. Eliot; E. Dickinson; R.Depestre, Seleo, t rad.Idelma Ribeiro de Faria, SoPaulo, Hucitec, 1992 (N.T.).
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desconexas do poema podem ser organiza-
das. Esta foi uma das razes por que
Mauberly, de Pound, e as primeiras obras
de Eliot foram vistas no como precursoras
de uma nova forma potica, mas como vers
de socitcontemporneos espirituosos,
desiludidos, com um certo charme frgil,
mas aos quais faltava aquela alta serieda-
de que Matthew Arnold havia seleciona-
do como pedra de toque da excelncia po-
tica. Esses poemas foram considerados
inusuais principalmente porque os vers de
socithaviam h muito sado de moda;
havia um pouco de dificuldade em aceit-
los como uma abertura ao entretenimento,
ao grande estilo do sculo XIX. Nos Can-
tos e em A Terra Devastada, todavia,devia estar claro que uma transformao
radical estava tendo lugar na estrutura es-
ttica; mas essa transformao foi tratada
apenas perifericamente pelos crticos mo-
dernos. R. P. Blackmur chega mais perto
do problema central ao analisar o que ele
chama de mtodo anedtico de Pound. A
forma especial dos Cantos, explica
Blackmur, aquela da anedota iniciada
em um lugar, continuada em um ou maisespaos diferentes e concluda, se absolu-
tamente concluda, em ainda outro lugar.
Essa desconexo deliberada, essa arte de
algo continuamente aludindo a si mesmo,
continuamente separando-se em retalhos
menores, o mtodo pelo qual os Cantos
os amarra juntos. To logo a mente do lei-
tor concertada com o material do poema,
o Sr. Pound deliberadamente a desconcer-
ta, seja por introduzir um material novo e
desconjunto, seja por reverter a um materi-
al anterior e, aparentemente, igualmente
desconjunto. As observaes de Blackmur
se aplicam igualmente bem a A Terra
Devastada, em que a seqncia sinttica
abandonada por uma estrutura dependen-
do da percepo das relaes entre grupos
de palavras desconexos. Para serem bem
compreendidos, esses grupos de palavras
devem estar justapostos uns aos outros e
serem percebidos simultaneamente; somen-te quando isso se d que podem ser ade-
quadamente entendidos; pois embora eles
sigam um ao outro no tempo, seu significa-
do no depende dessa relao temporal. A
dificuldade desses poemas, os quais nenhu-
ma quantidade de exegese textual conse-
gue vencer inteiramente, o conflito inter-
no entre a lgica temporal da linguagem e
a lgica espacial implcita na concepo
moderna da natureza da poesia.
A forma esttica na poesia moderna,
portanto, se baseia em uma lgica espacial
que demanda uma completa reorientao
da atitude do leitor frente linguagem. Uma
vez que a referncia primria de qualquer
grupo de palavras algo interno ao prprio
poema, a linguagem na poesia moderna
realmente reflexiva: a relao de significa-
o completada somente pela percepo
simultnea no espao dos grupos de pala-vras que, quando lidos consecutivamente
no tempo, no tm relao compreensvel
entre si. Em lugar da referncia instintiva e
imediata das palavras e grupos de palavras
aos objetos e eventos que simbolizam, e a
construo do significado a partir da se-
qncia dessas referncias, a poesia mo-
derna pede a seus leitores que suspendam o
processo de referncia individual tempora-
riamente, at que todo o padro de refern-cias internas possa ser apreendido como
uma unidade. Essa explicao, obviamen-
te, a afirmao extrema de uma condio
ideal, antes que de um estado de coisas
realmente existente; mas a concepo de
forma potica que corre por Mallarm a
Pound e Eliot, e que deixou seus traos em
toda uma gerao de poetas modernos, pode
ser formulada apenas em termos do princ-
pio da referncia reflexiva. E esse princ-
pio a ligao que conecta o desenvolvi-
mento esttico da poesia moderna a expe-
rimentos similares no romance moderno.
2
Para um estudo da forma potica no
romance moderno, a famosa cena do com-
cio da feira de exposies em Madame
Bovary um ponto de partida conveniente.Essa cena foi louvada justamente por sua
caricatura mordaz da pomposidade burgue-
sa, seu retrato inusualmente simptico
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para Flaubert do velho criado aturdido, e
sua pardia da retrica pseudo-romntica
pela qual Rodolfo corteja a sentimental
Emma. No presente, suficiente notar o
mtodo pelo qual Flaubert manipula a cena
um mtodo que poderamos muito bem
chamar de cinematogrfico, j que essa ana-
logia vem imediatamente mente. Da
maneira como Flaubert estabelece a cena,
h ao acontecendo simultaneamente em
trs nveis, e a posio fsica de cada nvel
um bom indicador de sua significncia
espiritual. No plano mais baixo, h a mar
esbarrante da turba na rua, misturando-se
ao gado em exposio; ligeiramente acima
da rua, sobre uma plataforma, encontram-
se os oradores oficiais, bombasticamentedesfiando lugares-comuns para as multi-
des atentas; e no nvel mais alto, obser-
vando o espetculo de uma janela, Rodolfo
e Emma assistem aos prosseguimentos e
levam sua conversa amorosa em frases to
empoladas quanto aquelas que regalam a
massa. Albert Thibaudet comparou essa
cena pea de mistrio medieval em que
diversas aes relacionadas ocorrem simul-
taneamente em nveis diferentes do palco;mas essa comparao aguda se refere
inteno de Flaubert, mais que a seu mto-
do. Tudo devia soar simultaneamente,
escreveu Flaubert mais tarde, comentando
essa cena; devia-se ouvir o berro do gado,
os sussurros dos amantes e a retrica das
autoridades, tudo ao mesmo tempo.
Mas como a linguagem procede no tem-
po, impossvel abordar essa simultaneida-
de de percepo, exceto pelo rompimento
da seqncia temporal. E exatamente isso
o que faz Flaubert: ele dissolve a seqncia,
indo e vindo em cortes entre os diversos
nveis de ao em um crescendo que vai
lentamente acelerando at que no clmax
da cena as frases chateubriendescas de
Rodolfo so lidas quase no mesmo instante
que os nomes dos ganhadores dos prmios
de melhor cultura de porcos. Flaubert tem
o cuidado de sublinhar essa similaridade
satrica pela descrio, bem como pela jus-taposio, como se temesse que as relaes
reflexivas das duas aes no fossem cap-
tadas: Do magnetismo, Rodolphe passou,
pouco a pouco, s afinidades e, enquanto o
senhor presidente citava Cincinato empu-
nhando seu arado, Diocleciano plantando
suas couves e os imperadores da China
inaugurando o ano para as sementeiras, o
rapaz explicava jovem senhora que as
atraes irresistveis tinham sua causa
numa existncia anterior (5).
Esta cena ilustra, em pequena escala, o
que queremos dizer pela espacializao da
forma em um romance. Pela durao da
cena, pelo menos, o fluxo de tempo da narra-
tiva detido; a ateno posta na interao
das relaes dentro da rea de tempo de-
limitada. Essas relaes so justapostas
de forma independente do progresso da
narrativa; a total significncia da cena dada somente pelas relaes reflexivas en-
tre as unidade de significao. Na cena de
Flaubert, entretanto, a unidade de signifi-
cao no , como na poesia moderna, um
grupo de palavras ou um fragmento ou uma
anedota; a totalidade de cada nvel de ao
tomada em conjunto: a unidade to gran-
de que a cena pode ser lida com a iluso de
completo entendimento, ainda que com uma
total inconscincia da dialtica do lugar-comum (Thibaudet) entrelaando todos os
nveis e, finalmente, ligando-os conjunta-
mente em ironia devastadora. Em outras
palavras, a luta pela forma espacial em Pound
e Eliot resultou no desaparecimento da se-
qncia coerente aps algumas poucas li-
nhas; mas o romance, com sua maior unida-
de de significao, consegue preservar a
seqncia coerente dentro da unidade de sig-
nificao e quebrar apenas o fluxo de tempo
da narrativa. (Devido a essa diferena, os
leitores de poesia moderna so praticamen-
te forados a ler reflexivamente para apa-
nhar algum sentido literal, enquanto os lei-
tores de um romance como O Bosque da
Noite, por exemplo, so levados a esperar
uma seqncia narrativa dentro da unidade
de significao.) Mas isso no afeta o para-
lelo entre a forma esttica na poesia moder-
na e a forma da cena de Flaubert: ambas s
podem ser bem compreendidas quando suasunidades de significao so apreendidas re-
flexivamente, em um instante do tempo.
A cena de Flaubert, embora interessan-
5 G. Flaubert, Madame Bovary,trad. Arajo Nabuco, SoPaulo, Crculo do Livro, s/d.(N.T.).
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te nela mesma, de menor importncia para
seu romance como um todo, e habilidosa-
mente reincorporada na estrutura narrativa
principal aps cumprir sua funo satrica.
O mtodo de Flaubert, contudo, foi em-
prestado por James Joyce e aplicado em
escala gigantesca na composio de Ulisses.
Joyce comps seu romance com um nme-
ro infinito de referncias e referncias cru-
zadas que se relacionam independentemen-
te da seqncia de tempo da narrativa; es-
sas referncias devem ser conectadas pelo
leitor e visualizadas como um todo para
que o livro possa caber em algum padro
significativo. Em ltima anlise, se quiser-
mos acreditar em Stuart Gilbert, esses sis-
temas de referncia formam uma figuracompleta de praticamente tudo sob o sol
dos estgios da vida do homem e dos r-
gos do corpo humano s cores do espec-
tro; mas essas estruturas so muito mais
importantes para Joyce, como observou
Harry Levin, do que jamais poderiam ser
para o leitor. Os estudiosos de Joyce, fasci-
nados por sua erudio, vm normalmente
se dedicando exegese, negligenciando,
infelizmente, o problema da forma com queestamos lidando.
A inteno mais bvia de Joyce em
Ulisses dar ao leitor uma figura de Dublin
vista como um todo para recriar as vistas
e sons, as pessoas e os lugares de um dia
tpico em Dublin, tanto quanto Flaubert re-
criou sua feira de exposies provinciana.
Como Flaubert, Joyce queria que sua re-
presentao tivesse o mesmo impacto uni-
ficado, a mesma sensao de atividade si-
multnea ocorrendo em diferentes lugares.
Joyce, para dizer a verdade, faz uso, com
freqncia, do mesmo mtodo de Flaubert
indo e vindo em cortes entre diferentes
aes que ocorrem ao mesmo tempo e,
normalmente, o faz para obter o mesmo
efeito irnico. Mas Joyce tinha o problema
de criar essa impresso de simultaneidade
para a vida de uma cidade prolfica inteira,
e de mant-la ou, antes, de fortalec-la
por centenas de pginas que devem ser li-das em seqncia. Para resolver esse pro-
blema, Joyce foi forado a ir muito alm do
que fora Flaubert: enquanto Flaubert man-
teve uma linha narrativa com cortes claros,
exceto pela cena da feira de exposies,
Joyce quebra sua narrativa e transforma a
prpria estrutura de seu romance em um
instrumento de sua inteno esttica.
Joyce, sabemos ns, concebeu Ulisses
como um pico moderno. No pico, como
nos diz Stephen Dedalus em Retrato do
Artista Quando Jovem, a personalidade
do artista, no comeo um grito, ou uma ca-
dncia e depois uma fluida e radiante nar-
rativa, acaba finalmente se clarificando fora
da existncia, despersonalizando-se, por
assim dizer [] o artista, como o Deus da
criao, permanece dentro, ou junto, atrs
ou acima da sua obra, invisvel, clarifica-
do, fora da existncia, indiferente, raspan-do as unhas dos seus dedos (6). O pico,
para Joyce, , destarte, sinnimo do com-
pleto auto-apagamento do autor; e com seu
usual rigor intransigente, Joyce leva essa
implicao mais longe do que algum ja-
mais ousara antes. Ele assume, em primei-
ro lugar, que seus leitores so dublinenses,
intimamente familiarizados com a vida em
Dublin e a histria pessoal de seus persona-
gens. Isso lhe permite abster-se de dar qual-quer informao diretiva sobre seus perso-
nagens, pois tal informao delataria ime-
diatamente a presena de um autor onisci-
ente. O que Joyce faz, em vez disso, apre-
sentar os elementos de sua narrativa as
relaes entre Stephen e sua famlia, entre
Bloom e sua esposa, entre Stephen e Bloom
e a famlia de Dedalus em fragmentos,
medida que so lanados sem explicao
no curso da conversao casual, ou medi-
da que eles vo sendo embutidos nos diver-
sos estratos de referncia simblica; e o
mesmo verdade tambm para todas as
aluses vida e histria de Dublin e aos
eventos externos das vinte e quatro horas
durante as quais o romance tem lugar. Em
outras palavras, todo o plano de fundo
factual to convenientemente resumido
para o leitor em um romance ordinrio
deve ser reconstrudo a partir de fragmen-
tos, por vezes distantes centenas de pgi-nas, dispersados pelo livro. Como resulta-
do, o leitor forado a ler Ulisses exata-
mente da mesma maneira que l poesia
6 J. Joyce,Retrato do Artista Quan-do Jovem, trad. Jos GeraldoVieira, 4a ed., Rio de Janeiro,Civilizao Brasileira, 1998(N.T.).
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moderna montando os fragmentos conti-
nuamente e guardando as aluses na mente
at que, por referncia reflexiva, ele possa
lig-las a seus complementos.
Joyce tencionava, dessa forma, criar na
mente do leitor uma sensao de Dublin
como uma totalidade, inclusive todas as
relaes dos personagens entre si e todos
os eventos que adentram suas conscincias.
medida que o leitor progride no roman-
ce, conectando as aluses e referncias
espacialmente, tomando gradual conscin-
cia do padro de relacionamentos, essa
sensao devia ser imperceptivelmente ad-
quirida; e, na concluso do romance, po-
der-se-ia quase dizer, Joyce literalmente
queria que o leitor se tornasse um dubli-nense. Pois isso o que demanda Joyce:
que o leitor tenha mo o mesmo conheci-
mento instintivo da vida em Dublin, a mes-
ma sensao de Dublin como um enorme
organismo circundante, que o dublinense
possui de bero por direito. Tal conheci-
mento, em qualquer momento do tempo,
lhe d um conhecimento do passado e do
presente de Dublin como um todo; e s
por esse conhecimento que o leitor, comoos personagens, consegue colocar todas as
referncias em seus contextos apropriados.
Isto, deve-se imaginar, praticamente equi-
vale a dizer que Joyce no pode ser lido
pode apenas ser relido. Um conhecimento
do todo essencial para a compreenso de
qualquer parte; porm, a menos que se seja
um dublinense, tal conhecimento s pode
ser obtido depois da leitura do livro inteiro,
estando todas as referncias ajustadas em
seus locais apropriados e apanhadas como
uma unidade. Embora os fardos confiados
ao leitor por esse mtodo de composio
possam parecer insuperveis, o fato ainda
que Joyce, em sua inacreditvel fragmen-
tao laboriosa da estrutura narrativa, pro-
cedeu assumindo que uma apreenso espa-
cial unificada de sua obra, em ltima an-
lise, poderia ser possvel.
De uma maneira muito mais sutil que
em Flaubert e Joyce, o mesmo princpio decomposio est presente em Marcel
Proust. Uma vez que o prprio Proust nos
diz que, antes de mais nada, seu romance
O escritor
James Joyce
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ter impresso em si uma forma que, nor-
malmente, permanece invisvel, a forma do
Tempo, pode parecer estranho falar de
Proust em conexo com a forma espacial.
Quase sem exceo, ele tem sido conside-
rado o romancista do tempopar excellence,
o intrprete literrio daquele tempo real
bergsoniano que, quando intudo pela sen-
sibilidade, nos pe em contato com a reali-
dade ltima. Parar nesse ponto, entretanto,
perder o que o prprio Proust considerava
a mais profunda significncia de sua obra.
Obsessivo pela inelutabilidade do tempo,
Proust era visitado sem sobreaviso por cer-
tas experincias msticas que ele descreve
em detalhe em O Tempo Reencontrado, o
ltimo volume de sua obra de vrios volu-mes. Essas experincias, proporcionando-
lhe uma tcnica para transcender o tempo,
pareciam libert-lo da dominao do tem-
po; e, escrevendo um romance, no qual ele
traduziria as qualidades extratemporais des-
sas experincias no nvel da forma esttica,
ele esperava revelar sua natureza ao mundo.
Pois, como verdadeiro artista, ele no dese-
java apenas explic-las conceitualmente
ele queria que o mundo sentisse o impactoemocional exato que ele prprio sentira.
Para definir como isso se d, necess-
rio primeiro compreender claramente a
natureza precisa da revelao proustiana.
Cada experincia dessas, conta-nos Proust,
marcada por um sentimento de que a
essncia permanente das coisas, normal-
mente encobertas, libertada, e nosso ver-
dadeiro Eu, que parecera longamente mor-
to, mas no estava morto de outras formas,
desperta, respira vida nova medida que
recebe o alimento celestial que lhe trazi-
do. Esse alimento celestial consiste em
algum som, ou odor, ou outro estmulo
sensrio, sentido de maneira nova, simul-
taneamente no presente e no passado. Mas
por que esses momentos deveriam parecer
to assoberbantemente valiosos para Proust
cham-los celestiais? Porque, observa
Proust, a imaginao s consegue operar
no passado; ao material apresentado ima-ginao falta, portanto, qualquer imediao
sensorial. Mas, em certos momentos, as sen-
saes fsicas do passado retornavam trans-
bordantes para fundir-se com o presente; e
nesses momentos, acreditava Proust, ele
apanhava uma realidade real sem ser do
momento presente, ideal mas no abstra-
ta. Somente nesses momentos ele atingia
sua ambio mais fundamental apossar-
se, isolar-se, imobilizar-se pela durao de
um lampejo luminoso, o que, de outro
modo, ele no poderia apreender, a saber:
um fragmento de tempo em seu estado
puro. Para uma pessoa que experimenta
esse momento, acrescenta Proust, a pala-
vra morte deixa de ter significado. Situa-
da fora do escopo do tempo, o que ela po-
deria temer do futuro?
A significncia dessa experincia, em-
bora obscuramente insinuada por todo olivro, explicitada apenas nas pginas con-
clusivas que descrevem a aparncia final
do narrador na recepo da princesa de
Guermantes. O narrador decide dedicar a
recordao de sua vida recriao dessas
experincias em uma obra de arte; e essa
obra diferir essencialmente de todas as
outras porque, em sua fundao, estar uma
viso de realidade refratada atravs de uma
perspectiva extratemporal. Muitos crticos,considerando Proust como o ltimo e mais
debilitado de uma longa linha de estetas
neurastnicos, acharam meramente, nessa
deciso de criar uma obra de arte, a etapa
final de seu vo para longe dos fardos da
realidade. Edmund Wilson associa essa
viso com a ambio de Proust de conquis-
tar o tempo, assumindo que Proust espera-
va se opor ao tempo estabelecendo algo
uma obra de arte imprvio a seu fluxo;
mas isso mal faz justia prpria convic-
o de Proust, expressada com especial
intensidade no ltimo volume de sua obra,
de que cumpria uma misso proftica. No
era a obra de arte qua obra de arte com que
Proust se preocupava (seu desdm pela
horda de escrevinhadores novidadeiros era
desmedido), mas com uma obra de arte que
pudesse permanecer como um monumento
a sua conquista pessoal do tempo. Sua pr-
pria obra, contudo, podia fazer isso, nosimplesmente por ser uma obra de arte, e,
como todas as obras de arte, presumi-
velmente intemporal, mas por ser uma obra
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que comunicava a viso proustiana por um
mtodo a compelir o leitor a experimentar
sua total significncia emocional.
O prottipo desse mtodo, como a an-
lise do momento revelador, ocorre durante
a recepo da princesa de Guermantes.
Aps passar anos em um sanatrio, per-
dendo quase que completamente o contato
com o mundo elegante dos volumes anterio-
res, o narrador sai da recluso para acom-
panhar a recepo. Sua primeira reao
de atordoamento diante das espantosas
mudanas na posio social e das mudan-
as ainda mais espantosas no carter e per-
sonalidade de seus antigos amigos. Na opi-
nio de alguns crticos de inclinao para o
social, a inteno de Proust nessa cena eraretratar a invaso da sociedade aristocrti-
ca francesa pela alta burguesia, e a queda
gradual de todos os padres sociais e mo-
rais provocada pela Primeira Guerra Mun-
dial. Provavelmente, esse processo des-
crito incidentalmente em alguma extenso;
porm, medida que o narrador toma as
grandes dores para nos contar, est longe
de ser esse o significado mais importante
da cena para ele. O que surpreende o narra-dor, quase que com a fora de um golpe,
isto: ao tentar reconhecer os velhos amigos
sob as mscaras que, da maneira como ele
sente, os anos soldaram neles, ele atirado
pela primeira vez na conscincia da passa-
gem do tempo. Quando um rapaz se dirige
respeitosamente ao narrador, antes que com
familiaridade, como se fosse ele um cava-
lheiro de avanada idade, o narrador perce-
be repentinamente que se tornou um cava-
lheiro de idade avanada; mas para ele a
passagem do tempo esteve imperceptvel
at aquele momento. Para se tornar cnscio
do tempo, comea a compreender o narra-
dor, foi necessrio primeiro remover a si
mesmo de seu ambiente costumeiro ou, o
que acaba por dar no mesmo, do fluxo de
tempo que age naquele ambiente e, ento,
arremeter de volta ao fluxo aps um lapso
de anos. Assim fazendo, o narrador achou-
se a si mesmo presenteado com duas ima-gens o mundo como ele antes o conhece-
ra, e o mundo, transformado pelo tempo,
que agora via diante de si; quando essas
duas imagens so justapostas, descobre o
narrador, a passagem do tempo subita-
mente experimentada atravs de seus efei-
tos visveis. O hbito, esse soporfico uni-
versal, acoberta ordinariamente a passagem
do tempo daqueles que esto acostumados
com suas maneiras, pois, em qualquer
momento do tempo, as mudanas so to
diminutas que se tornam imperceptveis.
Outras pessoas, escreve Proust, nunca
param de trocar de lugar em relao a ns
mesmos. Na marcha imperceptvel, porm
eterna, do mundo, ns as vemos como iner-
tes em um momento de viso, curto demais
para percebermos o movimento que as vai
arrastando. Mas basta que selecionemos em
nossa memria duas imagens tiradas delasem diferentes momentos, todavia prximos
o suficiente entre si para que no tenham se
alterado perceptivelmente, quero dizer e
a diferena entre eles ser uma medida do
deslocamento que sofreram em relao a
ns. Comparando essas duas imagens em
um momento do tempo, a passagem do tem-
po pode ser experimentada concretamente
atravs do impacto de seus efeitos visveis
sobre a sensibilidade; no mais meramen-te uma lacuna contada em nmeros. Essa
descoberta proporciona ao narrador um
mtodo que, na expresso de T. S. Eliot,
uma objetiva correlativa que lhe permite
evocar, atravs do veculo de uma obra de
arte, a apreenso visionria do fragmento do
tempo puro intudo no momento revelador.
Quando o narrador descobre esse mto-
do de comunicar sua experincia do mo-
mento revelador, ele decide, como j disse-
mos, incorpor-lo em um romance. Mas o
romance que o narrador decide escrever j
foi concludo pelo leitor; e sua forma
controlada pelo mtodo que o narrador
delineou em suas pginas conclusivas. O
leitor, em outras palavras, foi substitudo
pelo narrador, e foi colocado pelo autor,
em todo o livro, na mesma posio que o
narrador ocupa antes de sua prpria expe-
rincia na recepo da princesa de Guer-
mantes. Isso se d pela apresentao des-contnua do personagem um dispositivo
simples que, no obstante, a chave para a
forma da vasta estrutura de Proust. Cada
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leitor logo nota que Proust no segue ne-
nhum de seus personagens durante todo o
curso de seu romance: eles aparecem e re-
aparecem em diversos estgios de suas vi-
das, mas, por vezes, vo centenas de pgi-
nas entre o tempo em que so vistos pela
ltima vez e o tempo em que reaparecem;
e quando eles se apresentam novamente, a
passagem do tempo, invariavelmente, os
modificou de alguma maneira decisiva. Em
lugar de submergir o leitor no fluxo do tem-
po, isto , apresentar-lhe personagens que
se desenvolvem progressivamente, em uma
linha contnua de desenvolvimento, Proust
o confronta com diversos instantneos dos
personagens inertes em um momento de
viso em diferentes estgios de suas vi-das; e o leitor, justapondo essas imagens,
experimenta os efeitos da passagem do tem-
po exatamente como o fizera o narrador.
Conforme prometera, portanto, Proust sela
seu romance indelevelmente com a forma
do tempo; no entanto, encontramo-nos ago-
ra em uma posio que nos permite enten-
der exatamente o que ele queria dizer com
sua promessa.
Para experimentar a passagem do tem-po, aprendeu Proust, era necessrio elevar-
se acima dela, e apanhar passado e presente
simultaneamente em um momento do que
ele chamou tempo puro. Mas tempo
puro, obviamente, no tempo, em abso-
luto a percepo em um momento do
tempo, ou seja, espao. Pela apresentao
descontnua do personagem, Proust fora o
leitor a justapor imagens dspares de seus
personagens espacialmente, em um mo-
mento do tempo, para que a experincia da
passagem do tempo seja completamente
comunicada a sua sensibilidade. H, aqui,
uma notvel analogia entre o mtodo de
Proust e aquele de seus to amados pinto-
res impressionistas que vai profundamente
alm dos comentrios usuais sobre o
impressionismo do estilo de Proust. Os
pintores impressionistas justapunham tons
puros na tela, em vez de mistur-los na
paleta, para deixar a tarefa de mesclagemdas cores ao olho do espectador. Similar-
mente, Proust nos d o que poder-se-ia
chamar de vises puras de seus persona-
gens vises deles inertes em um mo-
mento de viso em diversas fases de suas
vidas e permite sensibilidade do leitor
fundir essas vises em uma unidade. O
propsito de Proust alcanado, portanto,
apenas quando essas unidades de signifi-
cao so referidas umas s outras reflexi-
vamente em um momento do tempo. isso,
provavelmente, que Ramn Fernandez ti-
nha em mente quando, em uma nota de
rodap admirvel para um ensaio sobre
Proust, lanou a seguinte observao: Em
geral, a maneira de [Proust] fazer contato
com sua dure bastante bergsoniana
(vide episdio da madeleine), mas as rea-
es de sua inteligncia sobre sua sensibi-
lidade, que determinam a curva de sua obra,o orientariam, antes, em direo espacia-
lizao de tempo e memria. (Itlico do
texto.) Conseqentemente, assim como em
Joyce e nos poetas modernos, vemos que a
forma espacial tambm a armao estru-
tural da obra-prima labirntica de Proust.
3
Consentindo que as obras j considera-
das so similares em sua estrutura, que to-
das tm em comum a qualidade da forma
espacial, surge imediatamente a pergunta:
a que podemos atribuir esta surpreendente
unanimidade? Para responder satisfatoria-
mente a essa questo, devemos primeiro
ampliar os limites de nossa anlise e consi-
derar a questo mais geral da relao das
formas artsticas com os climas culturais
em que so criadas. Essa ltima questo
tem atrado estudantes das belas-artes des-
de, pelo menos, a poca de Herder e
Winckelmann; porm, no foi seno na
virada do ltimo sculo que um estudo sis-
temtico do problema se iniciou. Estimula-
dos pela anlise magistral de Hegel dos es-
tilos de arte como objetificao sensorial
de diversas atitudes em relao ao univer-
so, um grupo de acadmicos e crticos de
arte alemes se concentrou sobre o proble-ma da forma nas artes plsticas, elaboran-
do diferentes categorias da forma, traan-
do em detalhe a mudana de um tipo de
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forma para outro, e tentando considerar
essas mudanas em termos culturais gerais.
T. E. Hulme, um dos poucos escritores de
lngua inglesa a se interessar seriamente
por esses problemas, seguiu a direo des-
se grupo de acadmicos e crticos alemes;
e no podemos fazer nada melhor do que
seguir seu exemplo.
H um escritor em particular que exer-
ceu uma forte influncia sobre Hulme e,
atravs de Hulme e por meio de Eliot, pos-
sivelmente sobre toda a escritura crtica
moderna em lngua inglesa. Esse autor
Wilhelm Worringer, o autor de um livro
intitulado Abstraktion und Einfhlung
traduzindo literalmente, Abstrao e
Empatia subtitulado Uma Contribuio
Psicologia do Estilo; e no livro de
Worringer que vamos encontrar a chave
para nosso prprio problema da forma es-
pacial (7). Originalmente publicado em
1908, como tese de doutorado do autor, o
livro teve inmeras edies um fato que,
como reivindica Worringer no prefcio da
terceira edio, prova que seu assunto no
era meramente acadmico, mas tocava em
problemas vitais sensibilidade moderna.Uma outra prova desse ponto, observa ain-
da Worringer, que, enquanto ele e outros
acadmicos examinavam e reavaliavam
estilos negligenciados, artistas criativos
voltavam-se a esses estilos em busca de
inspirao, encontrando neles uma forma
esttica melhor adaptada s necessidades
de sua sensibilidade do que o naturalismo
convencional do sculo XIX. Embora a
obra de Worringer seja impecavelmente
acadmica, confinando-se estritamente ao
passado e excluindo qualquer referncia,
exceto algumas breves, s obras contem-
porneas, sua reivindicao bastante jus-
tificada: um leitor no pode evitar ser sur-
preendido pela relevncia das teorias de
Worringer acerca dos problemas mais fun-
damentais da arte moderna. sua rele-
vncia, junto com um estilo vigoroso e
incisivo, que d ao livro sua notvel at-
mosfera de excitao e descoberta inte-lectual um ar que faz de sua leitura, ain-
da hoje, uma experincia animadora.
Em seu livro, Worringer se prope a
explicar por que, ao longo da histria das
artes plsticas, tem havido uma alternao
contnua entre estilos naturalistas e no-
naturalistas. Durante perodos de natura-
lismo a Idade Clssica da escultura e ar-
quitetura gregas, a Renascena italiana, a
arte da Europa Ocidental ao final do sculo
XIX o artista empenha-se em representar
o mundo objetivo e tridimensional da ex-
perincia ordinria e em reproduzir com
dedicada acurcia os processos da nature-
za orgnica, na qual est includo o homem.
Por outro lado, durante perodos de no-
naturalismo a arte dos povos primitivos,
a escultura monumental egpcia, a arte
oriental, a arte bizantina, a escultura gtica,
a arte do sculo XX o artista abandona omundo tridimensional e retorna ao plano,
reduz a natureza orgnica, inclusive o ho-
mem, a formas geomtricas lineares, e
freqentemente abandona o mundo orgni-
co completamente por um outro de linhas,
formas e cores puras. Embora, obviamente,
existam vastas diferenas entre os produtos
artsticos dos diversos perodos aglomera-
dos sob essas duas categorias, as similarida-
des bsicas entre as obras de uma categoria,e sua oposio bsica, tomadas como um
grupo, a todas as obras da outra categoria,
no so menos notveis e instrutivas. Te-
mos aqui, de acordo com Worringer, uma
polaridade fundamental entre dois mtodos
distintos de criao nas artes plsticas; e
nenhum deles pode ser estabelecido como
norma qual o outro deve aderir.
Da Renascena aos fins do sculo XIX,
contudo, era costumeiro aceitar o natura-
lismo, entendido nesse sentido amplo, como
o padro para as artes plsticas. O no-na-
turalismo era visto como uma aberrao
brbara causada por incapacidade tcnica:
era inconcebvel que os artistas pudessem
ter violado os cnones do naturalismo se
no tivessem sido forados a tanto por um
baixo nvel de desenvolvimento cultural.
Franz Wickhoff, um famoso historiador da
arte austraco da velha escola, chamou de
arte no-naturalista o encantador balbuci-ar das crianas; e essa opinio, embora
tivesse perdido todo seu poder de convic-
o entre os artistas, provavelmente acha-
7 Embora dois dos l ivros deWorringer tenham sido tradu-zidos para o ingls, Abstraktionund Einfhlung, infelizmente, spode ser lido em alemo. Noentanto, a segunda seo doensaio de Hulme sobre ArteModerna, pp. 82-91 de Es-peculaes , , como dizHulme, praticamente um resu-mo das vises de Worringer.Trata-se das vises apresenta-das em Abstrakt ion undEinfhlung.
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ria alguma aceitao entre o pblico edu-
cado mesmo nestes dias atuais. Para com-
bater essa elevao hostil do naturalismo
como padro esttico eterno, Worringer faz
uso do conceito de Kunstwollen, vontade-
para-arte, originalmente empregado por
outro famoso acadmico austraco, Alois
Riegl. O impulso de criao nas artes pls-
ticas, acreditava Riegl, no era primaria-
mente uma urgncia em imitar objetos na-
turais; pois, fosse isso verdade, o valor es-
ttico seria idntico habilidade na repro-
duo naturalista, e as melhores obras de
arte seriam aquelas que mais habilidosa-
mente duplicassem as aparncias do mun-
do natural. Em vez disso, Riegl postulava
o que ele chamava de vontade-para-arteabsoluta, ou, ainda melhor, vontade-para-
forma; essa vontade-para-forma absoluta
o elemento comum a toda atividade nas artes
plsticas, mas no pode ser identificada em
nenhum estilo em particular. Todos os es-
tilos so, para dizer a verdade, modifica-
es dessa vontade-para-forma absoluta na
medida em que encontram expresso de
maneiras diversas em todo o curso da his-
tria. A importncia desse conceito, apon-ta Worringer, que ele transferiu o centro
de gravidade no estudo dos estilos de uma
causao puramente mecnica o estado
do conhecimento tcnico artstico no mo-
mento em que o estilo floresceu para uma
causa baseada no emprego proposital da
vontade-para-forma. As peculiaridades de
estilo nas eras passadas, escreve
Worringer, podem ser investigadas, no
em questo de deficincia no conhecimen-
to, mas em vontades-para-arte diversamen-
te direcionadas. Desse ponto de vista,
impossvel olhar o no-naturalismo como
uma tentativa grotescamente malsucedida
de reproduzir as aparncias naturais: ele
no tem interesse em tal reproduo, e no
pode ser julgado como se tentasse compe-
tir com o naturalismo em seus prprios ter-
mos. Ambos os tipos de arte, criados para
satisfazer diferentes necessidades espiritu-
ais, s podero ser compreendidos se exa-minarmos os climas de sentimentos que
levaram predominncia de uma ou de
outra forma em tempos diferentes.
Uma vez aceita essa concluso, est-se
a um pequeno passo do cerne do livro de
Worringer sua discusso das condies
espirituais que tm impelido a vontade-
para-arte a mover ou na direo do natura-
lismo ou na direo do no-naturalismo.
Quando o naturalismo o estilo de arte
reinante, de acordo com Worringer, temos
que ele criado por culturas que alcana-
ram um equilbrio com o ambiente natural
de que fazem parte. Como os gregos do
perodo clssico, elas se sentem parte da
natureza orgnica, ou, como o homem
moderno da Renascena aos fins do sculo
XIX, esto convencidas de sua capacidade
de dominar o mundo natural. Em todo caso,
o mundo orgnico da natureza no guardaterrores para elas: elas tm o que Worringer
chama de Vertraulichkeitsverhltnis uma
relao de confiana e intimidade com o
universo; e o resultado, na arte, um natu-
ralismo que se deleita em reproduzir as
formas e aparncias do mundo orgnico
objetivo e tridimensional. Acompanhando
Riegl, entretanto, Worringer nos adverte a
no confundir esse deleite pelo orgnico
exibido pelo naturalismo com um meroimpulso imitao. Embora a imitao das
formas e objetos naturais seja um subpro-
duto do naturalismo, o que apreciamos no
a imitao per se, mas nossa sensao
exaltada de participao ativa no orgnico;
e essa sensao que, demandando satisfa-
o, vira a vontade-para-arte na direo do
naturalismo quando o homem e o universo
esto em relao harmoniosa.
Por outro lado, quando a relao entre
homem e universo de desarmonia e
desequilbrio, temos que aqueles estilos
abstratos no-naturalistas so sempre pro-
duzidos. Para os povos primitivos, o mun-
do exterior um caos incompreensvel, uma
confuso absolutamente sem sentido de
ocorrncias e sensaes. Claramente, os po-
vos nesse nvel de desenvolvimento cultu-
ral no obteriam nenhum prazer em uma
apresentao objetiva do orgnico: o mun-
do de sua experincia ordinria um mun-do de medo, e a representao desse mun-
do na arte meramente intensificaria seu
terror. Sua vontade-para-arte, em lugar de
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voltar-se para o naturalismo, vai na direo
oposta: ela reduz as aparncias do mundo
natural a formas geomtricas lineares
formas que tm a estabilidade, a harmonia
e a sensao de ordem que o homem primi-
tivo no consegue encontrar no fluxo dos
fenmenos medida que, para citar Hart
Crane, eles submergem no silncio. Os
estilos no-naturalistas tambm so pro-
duzidos, em um nvel mais alto de desenvol-
vimento cultural, em perodos que, como o
bizantino e o gtico, so dominados por uma
religio que rejeita completamente o mundo
natural, por consider-lo o reino do mal e da
imperfeio. Em lugar de representar as
aparncias naturais em toda a sua pujante
vitalidade, a vontade-para-arte se volta parasua espiritualizao, para a eliminao da
massa e da corporeidade, para uma aproxi-
mao da eterna e etrea tranqilidade da
existncia em outros mundos. Em ambos os
casos o primitivo e o transcendental a
vontade-para-arte, em conformidade com o
clima de sentimentos que prevalea, diver-
ge do naturalismo para criar formas estti-
cas que satisfaam as necessidades espiritu-
ais de seus criadores; e, em ambos os casos,essas formas se caracterizam por uma nfa-
se em padres geomtricos lineares, em uma
eliminao dos formatos objetivos
tridimensionais e do espao objetivo
tridimensional, em uma dominao do pla-
no em todos os tipos de arte plstica (8).
No difcil aplicar as observaes de
Worringer aos desenvolvimentos moder-
nos nas artes plsticas. Em uma poca como
o presente, um tempo em que, como nos
disse o psiclogo Erich Fromm, o homem
est tentando escapar da liberdade por j
no se sentir capaz de lidar com as comple-
xidades atordoantes da existncia
megalopolitana, no deve ser de surpreen-
der que os artistas sempre os barmetros
mais sensveis da mudana cultural te-
nham se voltado, em busca de inspirao,
aos estilos dos perodos regidos por climas
de sentimentos similares; e os resultados
desse processo nas artes plsticas so tam-bm bvios demais, dispensando comen-
trios mais detalhados. Porm, como T. E.
Hulme foi um dos primeiros a perceber,
podia-se esperar que a forma esttica na
literatura moderna passasse por uma mu-
dana similar em resposta ao mesmo clima
de sentimentos. O ensaio mais interessante
de Hulme, Romantismo e Classicismo,
uma tentativa de definir essa mudana da
maneira como ela afetou a forma literria.
Infelizmente, faltou a Hulme um conceito
adequado de forma esttica na literatura, e
ele equivocadamente tentou compensar
essa deficincia adotando idias usadas
pelos crticos franceses Pierre Lasserre e
Charles Maurras em sua investida contra o
Romantismo. Por razes polticas e liter-
rias, esses escritores criticaram amargamen-
te os romnticos franceses em todo terreno
concebvel, mais ou menos como IrvingBabbitt faria com o Romantismo em geral
alguns anos depois; mas o que mais im-
pressionou Hulme na obra dos crticos fran-
ceses foi sua denncia da subjetividade
romntica, da emotividade irrestrita que o
Romantismo s vezes impingia como lite-
ratura. A arte no-naturalista, notou Hulme,
em sua supresso do orgnico, tambm
suprimia o subjetivo e o pessoal da maneira
como o homem moderno os entendia; oestilo correspondente na literatura tambm
seria impessoal e objetivo, ou, pelo menos,
no seria como derramar um pote de me-
lao sobre a mesa de jantar; ela teria uma
seca rigidez, a rigidez de Pope e Horcio,
em oposio pieguice que no considera
que um poema um poema a menos que ele
esteja lastimando e se queixando de uma
ou outra coisa. E, conclui Hulmes, eu
professo que um perodo de verso clssico
seco e rgido se aproxima. Embora essa
profecia possa parecer ter chegado notoria-
mente muito perto do alvo, sabemos, dos
poemas do prprio Hulme, que ele pensava
em algo semelhante ao Imagismo, antes que
na influncia tardia de Donne e os meta-
fsicos; mas, independentemente da acur-
cia de sua predio, sua adoo da anttese
clssico-romntico poderia apenas confun-
dir a questo. Em vez de seguir a direo de
Worringer e tentar elaborar alguma nooprecisa da forma literria que pudesse ir
paralela s mudanas que estavam tendo
lugar na arte moderna, Hulme nos d uma
8 Para prevenir objees, poder-
se- ia apontar que nemWorringer, nem o presenteautor vem essas distinescomo absolutas em nenhumoutro sentido que no o teri-co. Esses diferentes estilos soconstrues ideais, s quais aarte dos diversos perodos temse aproximado em maior oumenor grau. Elementos deambos os estilos podem ser en-contrados em todos os pero-dos; diz-se que as culturas cri-am uma ou outra com base napredominncia, e no na ex-cluso absoluta. Toda a segun-da parte do livro de Worringer,que est fora do escopo denossa discusso, traa o ver-dadeiro grau de dominncia einterpenetrao de ambos osestilos nas artes plsticas dasculturas selecionadas.
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vaga descrio dessa forma literria como
sendo seca e rgida em qualidade, pre-
gando essa descrio adiante a um conjun-
to totalmente diferente de problemas, ao
invocar igualmente a forma clssica. O
grande mrito de Hulme reside em estar
entre os primeiros a perceber que a forma
literria passaria por uma mudana similar
s mudanas ocorridas nas artes plsticas;
mas ele falhou em definir essa forma lite-
rria com o mnimo de exatido. Para tan-
to, devemos voltar a Worringer e compre-
ender onde a feliz, mas fragmentria, intui-
o de Hulme cessou.
Porque a literatura uma arte do tempo,
Hulme poderia ter feito de seu ponto de
partida, como faremos ns, a discusso deWorringer sobre o desaparecimento da pro-
fundidade na arte no-naturalista. As razes
gerais para esse desenvolvimento j foram
explicadas; mas Worringer analisa esse pon-
to com grande particularidade e, assim fa-
zendo, lana uma observao de primeira
importncia para o entendimento da forma
espacial na literatura moderna. Espao pre-
enchido com luz atmosfrica, escreve
Worringer, que aglutina os objetos e abolesuas autocontinncias individuais, confere
um valor intemporal (Zeitlichkeitswert) s
coisas, desenhando-as no carrossel csmi-
co das aparncias. Apresentar os objetos
em profundidade lhes d um valor tempo-
ral, ou talvez devamos dizer que acentua
seu valor temporal, por conect-las com o
mundo real no qual ocorrem os eventos; e
uma vez que o tempo a prpria condio
daquele fluxo e mudana de que, como
vimos, o homem tenta escapar quando se
encontra em uma condio de desequilbrio
com a natureza, os estilos no-naturalistas
esquivam-se da dimenso de profundidade
e preferem o plano. Pois quando a profun-
didade desaparece e os objetos so apre-
sentados em um nico plano, sua apreen-
so simultnea como parte de uma unidade
intemporal , obviamente, facilitada. Em-
bora, para retornarmos a Lessing, as artes
plsticas sejam absolutamente espaciaisquando comparadas literatura, vemos
agora que ambas foram mais ou menos
espaciais no curso de sua evoluo interna,
dependendo da extenso na qual a repre-
sentao da tridimensionalidade era favore-
cida ou evitada. Isso significa, paradoxal-
mente, que as artes plsticas foram mais
espaciais quando no representaram a di-
menso da profundidade, e menos espaci-
ais quando o fizeram, j que um grau maior
de valor temporal sempre acompanha a
apresentao da tridimensionalidade (9).
Em um estilo no-naturalista, ento, a
espacialidade inerente das artes plsticas
acentuada pelo esforo em remover todos
os traos de valor temporal; e, uma vez que
a arte moderna no-naturalista, podemos
dizer que ela est se movendo na direo de
uma espacialidade cada vez maior. A
significncia da forma espacial na literatu-ra moderna se torna clara agora: o com-
plemento exato na literatura, no plano da
forma esttica, aos desenvolvimentos que
tiveram lugar nas artes plsticas. A forma
espacial o desenvolvimento literrio que
Hulme procurava, mas que no sabia como
encontrar. Em ambos os veculos artsti-
cos, um naturalmente espacial e o outro
naturalmente temporal, a evoluo da for-
ma esttica no sculo XX tem sido absolu-tamente idntica: ambos tm agido no sen-
tido de vencer, na medida do possvel, os
elementos temporais envolvidos em sua
percepo; e a razo para essa identidade
que ambos encontram-se enraizados no
mesmo clima espiritual e emocional um
clima que, na medida em que afeta a sensi-
bilidade de todo artista, deve tambm afe-
tar as formas que eles criam em cada vecu-
lo. Em um plano puramente formal, por-
tanto, ao demonstrarmos a completa con-
gruncia da forma esttica na arte moderna
com a forma na literatura moderna, ns des-
nudamos o que Worringer chamava de razes
psicolgicas da forma espacial na litera-
tura moderna. Mas, para uma verdadeira psi-
cologia do estilo, como Worringer nos ad-
verte nas observaes citadas no incio des-
ta seo, o valor formal deve ser de-
monstrado como uma expresso precisa
do valor interno, de tal maneira que adualidade de forma e contedo deixe de
existir. Que elementos podem ser desco-
bertos no contedo das obras que discuti-
9 Dagobert Frey, cujo livro Gotikund Renaissancej menciona-mos, toma as categorias deespao e tempo de Lessing edemonstra em detalhe que, doponto de vista da percepo,as artes plsticas podem sermais ou menos espaciais, e aliteratura para no mencio-nar a msica mais ou menostemporal. Frey, todavia, chamatemporal a arte planimtricano-naturalista da Idade Mdiaporque, para entender o signi-ficadodos smbolos comprimi-dos no plano-figura, o olho deveir de um a outro no tempo e l-
los como se fossem letras deuma palavra ou partes de umasentena.Apesar de isso ser inquestio-navelmente verdadeiro, resta ofato de que, ao lado da ques-to de contedo, a arte plani-mtrica da Idade Mdia criouformas geomtricas no planodo qual foi removido todo tra-o de valor temporal. Eventosda vida de Cristo, por exem-plo, embora possam ter ocorri-do em tempos diferentes, sojustapostos no mesmo plano-fi-gura e apreendidos simultanea-mente como parte de um pa-dro visual estilizado. Por essarazo, no podemos aceitar aterminologia de Frey comoadequada para descrever aqualidade de percepo maisimportante da arte medieval.
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7/28/2019 A Forma Espacial Na Literatura Moderna - Joseph Frank
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mos para resolver essa dualidade?
No caso de Proust, j respondemos a
essa questo, mostrando que seu uso da
forma espacial adveio de uma tentativa de
comunicar a qualidade extratemporal de
seus momentos reveladores. Ernst Robert
Curtius, na concluso de seu penetrante
estudo de Proust, chama a este platonista;
e esse termo se revelar bastante acurado
se acharmos que Curtius quer dizer que,
como Plato, Proust encontrou seu valor
ltimo em uma existncia que se livrou de
toda submisso ao fluxo do temporal.
Proust, geralmente no se percebe, era um
aluno ardente de filosofia, bem como esteta
neurastnico; tinha inteira conscincia das
implicaes filosficas de suas prpriasprodues literrias. Ao conceitualizar es-
sas implicaes para ns em sua anlise
dos momentos reveladores, o prprio Proust
explicou ao leitor a unidade entre forma e
contedo em sua obra-prima.
Com nossos outros escritores, contudo,
o problema um bocado mais complexo.
Onde Proust se preocupava com uma reve-
lao individual, restrita, em sua obra,
esfera da experincia pessoal do narrador,os outros escritores se moviam, todos, para
alm do pessoal, em direo aos mbitos
mais largos da histria: tudo tratava, de uma
maneira ou de outra, do embate das pers-
pectivas histricas, induzido pela identifi-
cao das figuras e eventos contempor-
neos com prottipos histricos variados.
Isso fica evidente nos Cantos, em A
Terra Devastada e em Ulisses, pois a prin-
cipal fonte de significao em todos os trs
a sensao de irnica dissimilaridade e,
ainda, de profunda continuidade humana
entre os protagonistas modernos e seus mo-
delos h tempos falecidos. Um efeito simi-
lar de palimpsesto acha-se em O Bosque da
Noite, em que o Dr. OConnor est conti-
nuamente desenhando imagens e metfo-
ras em sua memria pr-histrica, costu-
rando o passado com o presente e identifi-
cando os dois. Allen Tate, falando dos
Cantos, escreve que as vigorosas justa-posies dos mundos antigo, renascentista
e moderno de Ezra Pound reduzem todos
os trs elementos a uma miscelnea anti-
histrica, intemporal e sem origem; e isso
chamado a qualidade peculiarmente
moderna do Sr. Pound. Mas , igualmen-
te, a qualidade peculiarmente moderna de
todas as obras que temos diante de ns
todas elas conservam uma justaposio
contnua entre aspectos do passado e do
presente, de tal modo que ambas so fundi-
das em uma viso abrangente; e tanto
Tirsias quanto o Dr. OConnor as figu-
ras centrais das obras em que aparecem
so o foco de conscincia nessas obras pre-
cisamente porque transcendem os limites
histricos e abarcam todas as pocas.
(Leopold Bloom, obviamente, faz o mes-
mo; mas Joyce, mantendo as tradies do
naturalismo, faz de Bloom o portador in-consciente de sua prpria imortalidade.)
Atravs dessa justaposio de passado e
presente, como percebeu Allen Tate, a his-
tria se torna anti-histrica: j no mais
vista como uma progresso objetiva e cau-
sal no tempo, com diferenas distintamen-
te marcadas entre cada perodo, mas sen-
tida como um continuum em que as distin-
es entre passado e presente esto oblite-
radas. Assim como a dimenso de profun-didade foi se esvaecendo das artes plsti-
cas, ela tambm foi se esvaecendo da his-
tria medida que formava o contedo
dessas obras: passado e presente so vistos
espacialmente, encerrados em uma unida-
de intemporal que, embora possa acentuar
diferenas de superfcie, elimina qualquer
sentimento de seqncia histrica por meio
do ato mesmo da justaposio. A imagina-
o histrica objetiva, da qual o homem
moderno tanto se orgulhava e a qual culti-
vou to cuidadosamente desde a Renascen-
a, transformada, nesses escritores, na
imaginao mtica para a qual o tempo his-
trico no existe a imaginao que v as
aes e os eventos de uma poca em parti-
cular meramente como novo corpo dado a
prottipos eternos. Esses prottipos so
criados transmutando-se o mundo tempo-
ral da histria no mundo intemporal do mito.
E esse mundo intemporal do mito, for-mando o contedo comum da literatura
moderna, que encontra sua expresso est-
tica apropriada na forma espacial.