JÚLIO CÉZAR RIBEIRO
A GEOGRAFIA DAS FORMAS ESPACIAIS DE REPRODUÇÃO
DA EXISTÊNCIA HUMANA AO LONGO DO TEMPO
À LUZ DO MATERIALISMO HISTÓRICO-GEOGRÁFICO
TESE DE DOUTORADO
NITERÓI 2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
A GEOGRAFIA DA FORMAS ESPACIAIS DE REPRODUÇÃO
DA EXISTÊNCIA HUMANA AO LONGO DO TEMPO
À LUZ DO MATERIALISMO HISTÓRICO-GEOGRÁFICO
Tese apresentada ao Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense-UFF, campus de Niterói/RJ, para obtenção do grau de Doutor (Área de Concentração: Ordenamento Territorial).
Orientando: Prof. Ms. Júlio Cézar Ribeiro
Orientador: Prof. Dr. Ruy Moreira
Niterói 2006
JÚLIO CÉZAR RIBEIRO
A GEOGRAFIA DAS FORMAS ESPACIAIS DE REPRODUÇÃO DA EXISTÊNCIA HUMANA AO LONGO DO TEMPO
À LUZ DO MATERIALISMO HISTÓRICO-GEOGRÁFICO
COMISSÃO JULGADORA
TESE SUBMETIDA À BANCA DE DEFESA
Presidente e Orientador:..................................................................
2o Examinador.................................................................................
3o Examinador................................................................................. 4o Examinador................................................................................. 5o Examinador.................................................................................
Niterói, de de 2006.
Dedicatória
Aos que, na atualidade, emparedados por
esse cada vez mais claustrofóbico espaço, afundam-se no
território reproduzido pela racionalidade brutal do capital
mas que inegavelmente possuem os instrumentos para
se desatolarem: lendo os atuais, conhecendo os passados,
para escreverem espaços futuros.
Agradecimentos
Várias foram as pessoas que acompanharam e da sua forma
contribuíram à realização deste trabalho. Na rede cotidiana de relações,
algumas saltam aos olhos e de forma particular a elas externo gratidão.
Exemplo do amigo Fernandez, pessoa dum coração tão grande como uma
casa e de tantos “sorrisos tortos” que a simpatia fácil se faz notada.
Dos amigos novos, o registro ao Carlos; ao Toni e à “casa de suas três mulheres”
Valdirene e as cambites Tainá e Tamiris; ao André (FBI);
ao thundercat Elias; os gaúchos Marcos e Airton,
o Luciano (Geannechini) e o companheiro Vanderlei e família.
Faz bem lembrar os amigos pra todos os lugares:
o Fabrício (Brad Pitt, cada vez mais fenômeno); o Ricardo (sempre Pessoa Boa);
Alexandre (Lei), Dirceu (Didi Delas) e o companheiro Marcelino.
Dos tipos de amigos que a vida faz família...
A eles o elogio maior no silêncio da palavra gratidão.
Lembro também familiares, as contradições não-antagônicas:
minha mãe Helena, minha tia Nice e minha grega sobrinha Heloísa,
que porta luz em seus castanhos olhares de fogo.
Igualmente agradeço ao Thomaz, sempre presente de várias formas.
Aos professores que participaram das bancas da pós-graduação: Jacob
e Paulo Alentejano (qualificação e defesa), e ? (defesa).
À Ancilla, por preencher algumas lacunas e suscitar esperanças outras.
Por fim e por tudo, ao Ruy, o começo da jornada, por ter contribuído e muito
à chance de eu continuar a caminhar.
A todos, minha profunda gratidão!
“Uma vida que não é examinada não merece ser vivida”
(Sócrates).
--------------------------------------
“Quem em dois mil anos não conhece a história,
não conhece a si mesmo, vive nas sombras”
(Goethe).
--------------------------------------
“Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de
diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”
(Marx).
vi
A GEOGRAFIA DAS FORMAS ESPACIAIS DE REPRODUÇÃO DA
EXISTÊNCIA HUMANA AO LONGO DO TEMPO À LUZ DO
MATERIALISMO HISTÓRICO-GEOGRÁFICO
Resumo
Apresentadas algumas das correntes teóricas mais características
ao pensamento filosófico ocidental e abordados os métodos mais frequentemente
utilizados, iniciamos um enfoque específico sobre a abordagem do materialismo
histórico-dialético marxista, trazendo-o para a seara da geografia já como
materialismo histórico-geográfico, para que pudéssemos ler as formas espaciais de
como as sociedades têm se materializado ao longo do tempo.
Compreendido como motor-estruturante da sociabilidade, o
modo de produção fez-se elemento central para isso da análise, por ser o coração
da formação espacial da sociedade.
Realizada a leitura geográfica e a discriminação dos principais
modos de produção existentes desde antes do surgimento da civilização,
buscamos explicitar a bifurcação societária contemporaneamente manifesta nos
modos de produção capitalista e pós-capitalista, realizando uma verticalização
mais profunda sobre os fundamentos da nova economia política espacial do
capital.
A apresentação das possibilidades metódicas do olhar e o trato
sobre o evoluir histórico-geográfico do estar tem como finalidade rasgar as
cortinas do paisagístico-fenomênico, para então se ler melhor o conteúdo do ser
via passado no mutante-presente, para que possamos melhor escrever o futuro.
Palavras-chave: Método, materialismo histórico-geográfico, modos de produção,
espaço, trabalho.
vii
THE GEOGRAPHY OF THE SPACE FORMS OF REPRODUCTION
OF THE HUMAN EXISTENCE ALONG THE TIME TO THE
LIGHT OF THE HISTORICAL-GEOGRAPHICAL MATERIALISM
Summary
Introduced some of the theoretical currents more characteristics
to the western philosophical thought and approached the methods more frequently
used, we began a specific focus on the approach of the materialism historical-
dialectic Marxist, already bringing it for the wheat field of the geography as
historical-geographical materialism, so that we could read the space forms of as
the societies are had materialized along the time.
Understood as motor-maker of the sociability, the production
way was chosen as central element of the analysis, for being the heart of the space
formation of the society.
Accomplished the geographical reading and the discrimination of
the main existent production ways from before the appearance of the civilization,
we looked for explain the bifurcation social of the contemporary world manifests
in the ways of capitalist production and powder-capitalist, accomplishing a deeper
study on the foundations of the new political economy spacial of the capital.
The presentation of the methodical possibilities of the glance and
the treatment on developing historical-geographical of the being it has as purpose
to tear the curtains of the landscape- phenomenal, for then if it reads the being's
social road content better passed in the mutant-present, so that better we can will
write the future.
Key-words: Method, historical-geographical materialism, way of the production,
space, work.
SUMÁRIO
RESUMO..................................................................................................... vi
SUMMARY................................................................................................. vii APRESENTAÇÃO..................................................................................... 1 INTRODUÇÃO........................................................................................... 4 CAPÍTULO 1 – PROLEGÔMENO AO MÉTODO. DO CAOS
PERCEPTIVO À TOTALIDADE DIALÉTICA:
ESPACIALIZANDO O OLHAR..............................................................
9
1.1 Breve legado das contribuições teóricas edificantes do
pensamento ocidental: irracionalismo, eleatismo e pendularidade
entre idealismo-materialismo. Os genitores do método....................
10
1.2 Um pouco mais sobre (teoria do) método: a reta e o círculo, o
pontilhado... a espiral...........................................................................
95
1.2.1 A reta e o círculo.................................................................... 121
1.2.2 O pontilhado... ....................................................................... 131
1.2.3 A espiral.................................................................................. 140 CAPÍTULO 2 – DA NATUREZA ESPACIAL DO TRABALHO
CONCRETO DE SOCIEDADES PRÉ-CAPITALISTAS À
NATUREZA ESPACIAL DO TRABALHO ABSTRATO DE
SOCIEDADES CAPITALISTA E PÓS-CAPITALISTA.......................
158
2.1.1 A plenitude do espaço como organização temporal das
formas de reprodução do ser social a partir do trabalho............
159
2.1.3 Teorias (e métodos) sobre a evolução humana.................... 191
2.1.3.1 O modo de produção comunista primitivo................. 196
2.1.3.2 O modo de produção “asiático” ou oriental............... 213
x
2.1.3.3 O modo de produção escravista clássico..................... 222
2.1.3.4 O modo de produção servil ou feudal......................... 233
2.1.3.5 O modo de produção capitalista.................................. 249
2.1.3.5.1 Indicativos da nova economia política
espacial do capital: as transformações no mundo do
trabalho e no espaço vivido.............................................
267
2.1.3.6 O modo de produção de capital pós-capitalista......... 296
3. Palavras finais......................................................................................... 309 4. Bibliografia.............................................................................................. 311 5. Outras fontes........................................................................................... 331
1
Apresentação
Expomos neste as dúvidas e questões, implícitas, surgidas
quando da realização do mestrado mas que desde então nos instigavam,
impulsionando-nos à frente na realização de um trabalho em muito amadurecido.
Outro não menor estímulo condisse com a possibilidade de
trabalhar com o Ruy, com o Thomaz introdutores em mim do gosto pela ciência
geográfica de cunho crítico-dialética.
Descobrimo-nos geralmente quando desvelamos
verdadeiramente o real objetivo. Reconstruindo a subjetividade na e pela
revelação da relação sujeito-objeto.
Na arena da geografia e em seu cruzamento com a filosofia,
buscamos desenvolver respostas relativas à ciência geográfica, propriamente no
que concerne aos métodos, com pontuações diretas e indiretas à teoria do
conhecimento nesse atual período em que o saber explicitamente político mais
fortemente é posto em xeque pelo fenômeno sócio-capitalístico de banalização da
ciência (tecnologizada), endireitamento ideológico pelo Pensamento Único da
única via (Terceira) e (des)comprometimento e segmentação exógena e endógena
dos espaços universitários. O que torna mais hercúleo qualquer objetivo de
trabalho discordante e de maior monta.
O estudo sobre os pilares do pensamento ocidental permitiu-nos
compreender como foi a filosofia e o pensar racional se constituindo e como já
por essas épocas, por dentro dos marcos divisórios das correntes do materialismo
e do idealismo, foram se desabotoando métodos de compreensão da realidade,
bem como de ceticismo ou negação total a essa potencialidade. O percurso do que
julgamos necessário para o desvendar do metabolismo sócio-espacial atual serviu-
nos como referencial teórico-conceitual guiado pelo método do materialismo
histórico-geográfico, que floresceu em meio às mais variegadas possibilidades de
tratamento metódico, entre os mais distintos campos do saber, donde sugou seiva
para decidir sua especificidade. Cremos que o tratamento do assunto para além
das raias da geografia prestou à ampliação do arco de possibilidades de
2
abordagem, o que virtualmente permite ao leitor edificar sua própria compreensão
nessa seara. O mais importante, porém, foi reunir o referencial que nos permitisse
construir elementos teórico-metodológicos de tratamento da evolução/involução
dos modos de produção, aqui entendidos como motores-estruturantes de qualquer
formação sócio-espacial, seja ela nucleada pela dimensão econômica seja pela
política; o que requer precaução com o enfoque economicista.
Sem nem à mínima distância querer esgotar as possibilidades de
classificação das formas geográficas arranjadas pelas sociedades ao longo do
tempo, expomos um evoluir não-mecanicista e não-isolacionista, pois tanto a
sucessão como a territorialização dos modos de produção não se deram de modo
linear e puro, sem que recebesse influência de outros modos de produção deitados
ou coexistentes.
Sabemos que muito há por ser reescrito a respeito do método na
geografia, mais sobre os modos (geográficos) de produção, a despeito dos avanços
já realizados sobre os estudos dos espaços a partir das técnicas socialmente
criadas, idéia defendida por Marx (que, em verdade acabou trabalhando com a
teoria dos modos de produção) e desenvolvida na geografia por Milton Santos
(que se propôs quase que à elaboração da genealogia espacial das técnicas).
O percurso que realizamos serve para reencontrarmo-nos com o
concreto-real, tentando aproximar, sob o ponto de vista do materialismo histórico-
geográfico, o sistema de idéias com o sistema do capital, pois sabemos que o
segundo se utiliza do primeiro, entretanto existirem poucos daqueles que se
oponham a este.
Perguntamo-nos sempre de onde viemos, quem somos, para
onde iremos. Respostas menos idealistas e mais materialistas podem ajudar à
clarificação.
O método como lanterna a iluminar a partir da energia existente
em cada espaço-tempo, lançando-se por sobre as substâncias dos cenários dos
modos de produção que, qual estrutura donde mana as funcionalidades às formas
espaciais, podem contribuir ao entendimento de como tornamos o ser e o estar
3
social atuais que, diria Sartre, constroem-se mediante o movimento de certa forma
livre dos sujeitos sociais.
Entender o sistema de objetos e o sistema de ação, a conjugação
da infra-estrutura e da superestrutura, os fatores de produção e as relações sociais
de produção e, hoje mormente, de reprodução sócio-espacial, tornam-se vitais.
Isso é imprescindível para que os dominados percebam as contradições espaciais
nas quais vivem, podendo daí retirar elementos diretrizes à construção de seu
próprio espaço vital.
Concordamos com o Aristóteles que disse que é pelo estudo da
relação com o Outro que nos descobrimos. Como somos mais que individualidade
isolada, apreender os elementos determinantes e estruturantes da sociabilidade
torna-se fundamental, e nesse ponto se justifica a abordagem sobre outros modos
de produção.
Tentamos no fundo cruzar o sistema de idéias concretas com o
sistema social concreto, espaço-individual-mental com o espaço-social-objetivo.
O estudo talvez possa nos ajudar um pouco mais a nos antecipar
na leitura e escrita de espaços novos, a não aceitar os sistemas de idéias opacas,
sobretudo se estes pregarem exatamente a inexistência de sistemas e de ordem,
afirmando que tudo é caos, irracional, ou que as coisas são e serão, simples e
naturalmente como têm sido, tentando fechar o círculo da espiral evolutiva.
4
Introdução
Antecipar a que se propõe o trabalho requer principiarmos a
apresentar a arrumação de suas partes, o composto de compartimentos que, quais
cômodos, tentarão espelhar o conjunto da imagem espacial que o visor do sujeito-
observador alcançou abranger. Provavelmente a ordem da exposição venha a
receber uma menor consideração nesse sentido, se concordarmos que a dialética
igualmente se exprime na argumentativa, no nível do discurso ou no plano da
teoria do real discursado, e isto porque, se de um lado o trato empírico conduz às
teorias mais à frente, o optar de antemão pela teoria igualmente pode anunciar-se
útil se se retornar ulteriormente em visita à empiria, mãe e morada elementar do
saber. O problema à teoria do conhecimento está mais na disjunção do que
exclusivamente na primazia do nível que se arremessa a narrativa, propriamente,
haja vista tal disjunção não ser suficiente para que o sucesso do resultado se faça
melhor possível.
Elucidamos isso tendo em vista que a seqüência se desenreda a
partir da exposição, resumida e selecionada, da história do pensamento filosófico
ocidental, a atmosfera na qual se ventilaram os métodos ao longo dos tempos e
dos lugares. A infreqüência, quando não o descuido, reinante nesse domínio, a
esporadicidade e assistematicidade dos estudos geográficos nessa arena, cremos
redundarem de pelo menos dois motivos basilares: um quiçá decorrência da falta
de ousadia, despreparo, cizânia ou ranço enraizado pela força do imaginário que
muitos perpetram de a geografia sacramentada identificar-se ainda como ciência
eminentemente empírica (empiricista) e, no outro extremo, retro-alimentando (e
nutrindo-se de) tal processo, está o fato de teorias e métodos sistematizantes e
não-tecnologizados receberem pouco crédito como objeto de atenção na grade
hierárquica do conhecimento atual, sempre mais e mais caoticizante, instrumental
e positivista.
Não poucos geógrafos advertiram-nos do pavor à teoria que
encarnava o espírito da tradicional ciência geográfica, tendo em conta que seus
feitores se agrupavam entre os mais cordatos e passivos homens a servir o sistema
5
econômico e seu Estado. Situação que coloca o presente trabalho diante da dupla
necessária tarefa: de pensar algo pouco afeito à Geografia, ou seja, o método
como concreto em pensamento ou concreto pensado, vis-à-vis à realização de
estudos empíricos, sobre o concreto real em sua evolução e entrecruzamento
espaço-temporal; desfazendo-se ao mesmo tempo a díade, quase dualidade, entre
empiria(meta)teoria na Geografia e as cismas que perduram entre ela e os demais
ramos do conhecimento que verdejam a árvore do saber, para que mais facilmente
sejam ultrapassados os limites fragmentários internos à própria ciência geográfica,
esfacelada numa miríade quase sem unidade e bastante caótica de informações
que retrata bem, em resumo, o perfil pós-moderno, manifestamente mais
contemplativo que crítico e provocativo.
Como instrumental teórico, partíamos da base do horizonte
materialista vislumbrado por Marx, e de cuja imediaticidade permitia-nos alçar
ontológica e holisticamente à invisibilidade da mediaticidade distorcida mas, de
outro lado, sentíamos que nosso olhar não poderia se furtar a estender-se sobre
outros horizontes, até para que nossa vista pudesse abraçar visualmente paragens
novas não visualizadas outrora por esse pensador, que como a maioria dos de
então, não-geógrafos especialmente, desmereciam o que se tomava por
geográfico. Lastreamos essa trilha na tentativa de entender a processualidade do
fenômeno de totalização da sociabilidade do capital a partir da totalização uno-
diversificada do espaço, unidade essa manifesta ora mais politicamente e
momentos outros caracterizada por uma substância eminentemente econômica. O
desafio, já significativo no contexto do saber atual portanto, amplifica-se por
dentro dos marcos geográficos, cujos raros rastros foram acompanhados aqui e ali,
na medida da máxima consciência possível, por sujeitos das mais variadas
inclinações teórico-metodológicas.
Visitas a pensadores e outros contextos histórico-espaciais
foram importantes, tanto para reunirmos um mínimo referencial teórico-analítico,
como para cruzá-lo com o que foi possível se perceber na geografia e avançar,
destarte, numa e noutra questão a respeito do passado e do presente concretizados,
teórico e espacialmente.
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As razões dessa tal opção coligam-se à necessidade por nós
sentida de não apenas lustrarmos conscienciosamente a lente do método que nos
permite ler as grafias do espaço, como formular um seqüenciamento, nada
retilíneo, das espacialidades e contra-espacialidades criadas pelas sociedades ao
longo do tempo, para podermos ver como muitos traços espaciais foram fisgados
do passado pelo modo capitalista de produção. Ou seja, grosso modo a proposta
foi a de avaliar minimamente a pluralidade de possibilidades metódicas de
investigação para que, escolhido conscienciosamente um deles, pudéssemos
averiguar os contextos históricos pelos quais a humanidade caminhou e se grafou
espacialmente até que, adiante, tivéssemos as ferramentas apropriadas para julgar
o complexo contexto contemporâneo em que vivem todos os subordinados pelo
sistema do capital.
Alguns se pronunciaram favoráveis a uma “geografia do
presente”, o que é válido para não fugirmos abstratamente dos problemas
materiais hodiernos enredados em vãs divagações retro(in)ativas. No entanto,
revisitar o passado torna-se premente, e por vários motivos. Um deles, se for com
intuito de percebê-lo dialeticamente no e como presente re-vivido
intencionalmente por forças que animam o espaço social. Ademais, porque a
afirmação da contradição deixa de ser algo apenas teórico e abstrato se
acompanhada da comprobação científica de sua manifestação empírico-
geográfica.
Interesse não há por qualquer espécie de arqueologia geográfica
(arqueologias que tomam a cena e ritmam os passos das ciências, como as
inspiradas no método filológico nietzscheano ou na arqueologia foucaultiana).
Urge compreendermos o espaço atual, transpassando-se a superfície paisagístico-
fenomênica.
O estudo continua pois na análise das espacialidades, talvez as
mais significativas ou pelo menos as mais abordadas ao longo do tempo. Se os
dominantes o fazem para reinventar a modernização conservadora da estrutura
societária, quem sabe não seja tão inútil aos dominados a percepção das tramóias
armadas a eles, com o objetivo de que se desviem das muitas arapucas lhes
7
endereçadas, erguendo pela análise um olhar macro-estrutural do fenômeno ao
invés de se enveredar em relatos micro-narrativos e micro-analíticos cuja miopia e
pequenez pouco de significativo trazem para pensar e desvendar as leis da
tragédia social. Esse, um dos motivos. O outro, é porque o passado não condiz
com o real que a flecha do tempo deixou para trás: muito do passado é semeado
no tempo-espaço presente por uma flecha de envergadura e de cujo traçado não se
fazem tão retilíneos, como que se o tempo se igualasse a um bumerangue que se
entrelaça ao espaço social quase sempre pelo trançado ludibrioso projetado pelas
elites, que fazem assim a “farsa” histórica renascer (classisticamente) sob a
aparência naturalizada (socialmente) da humana “tragédia”, como pegadas
espaciais que não cessam de no chão encravar-se.
Percebe-se então que o percurso evolutivo/involutivo objetiva
munir-se do método (saber como técnica e técnica como olhar não-tecnicizado por
perversos interesses) e do conhecimento dos tempos-espaços enterrados-
ressuscitados (a tecnologia espacial humana criada, reinventada e redividida
socialmente), para tratarmos do metabolismo do capital que in-corpo-ra em seu
organismo grupos sociais e espaços antes tidos como reservatórios de valor, além
de outros territórios do orbe agregados ao processo produtivo e reprodutivo do
valor (produzindo mercadorias ou matérias-primas e reproduzindo,
ampliadamente, o valor econômico abstrato).
Atingimos muitos dos alvos prepostos. O maior deles a denúncia
consciente e racional que carregue algo mais que indignação, armando a
indignação de teoria e coragem: a teoria de mãos dadas com o saber metódico e a
coragem, com a experiência histórico-geográfica acumulada e (re)visitada
criticamente.
Por isso, em tempos de quebradeira do saber, cegueira
intencional da teoria, que muitos querem ter por morta, a significância do trabalho
quem sabe esteja mais na determinação da proposta do que no resultado
alcançado, exclusivamente.
8
Se ao marxismo teoria e prática não se excluem, antes se inter e
intracruzando, a validade do método está no aclarar da teoria e no iluminar da
práxis, no manifestar geografizado da metodologia.
Aspiração há pois, que o leitor junte-se à massa crítica em todos
os múltiplos e variegados embates, na teoria e na empiria, os existentes e os que
virão.
– CAPÍTULO 1 –
PROLEGÔMENO AO MÉTODO.
DO CAOS PERCEPTIVO À
TOTALIDADE DIALÉTICA:
ESPACIALIZANDO O OLHAR
10
1.1 Breve legado das contribuições
teóricas edificantes do pensamento
ocidental: irracionalismo, eleatismo e
pendularidade entre idealismo-
materialismo. Os genitores do método
ersiste a pendenga teórica entre a circularidade da “dinâmica”
metafísico-idealista e o movimento espiralado da dialética
materialista, como correntes em disputa à explicação metódica da
qualidade nexal da relação homem-realidade.
PSão debates teórico-conceituais fervorosos esses, em torno de
questões que há tempos têm intrigado pensadores, seja na polêmica que rodeia a
questão da Totalidade, seja na que concerne ao Homem Total ou a respeitante à
Natureza. No fundo, problemáticas todas a abalizar, na avaliação do filósofo e
sociólogo francês Henri Lefebvre (1901-1991), o eterno retorno da velha querela
metódico-explicativa rivalizada entre materialistas e idealistas, marxistas e
antimarxistas, no transcorrer maiormente do período regencial do capital, maestro
e orquestrador do ritmo e dos passos sociais dados (LEFEBVRE, 1981, p. 24).
Ocupando-se com a elucidação da relação Homem-Natureza,
Homem-Meio, Sociedade-Espaço ou Humanidade-Planeta, a Geografia não se
exclui desse caldeirão fervente de teorias.
A história desse campo do saber demonstra ter ela ora se
impregnado de temperos metafísicos e idealistas, momentos outros recheada por
materialismos vulgares de cunho naturalista, empirista e determinista
(ambientalismo e economicismo), cujo trato reporta-se à perspectiva mnemônico-
descritiva preocupada ou com a morfologia ou com a geometria do espaço, de que
são exemplos a geografia tradicional e a nova geografia, que buscavam as leis do
11
real-aparente (concreto-visível) e os padrões (tipologias) da organização espacial,
respectivamente. Noutros momentos, sobremodo na segunda metade do século
último, fora a Geografia parametrada em instrumentos metódicos mais concretos,
menos idealistas, na lapidação cognitiva do real, encetado pelo poder de crítica
que a geografia nova ou a geografia crítica exercera, e em que pese a saraivada
de críticas que os adversários do essencialismo (leia-se, economicismo) tenham
lançado aos que se preocupavam excessivamente com as relações de produção e
os processos de acumulação, desprestigiando temáticas como o ambiental, o
gênero, o racismo ou a etnicidade.
Do que se deduz que a história da Geografia, o “espaço” social
do prestígio seu angariado, não se distingue tanto do espaço político concreto ao
qual se dispõe a examinar. Sobretudo se a serviço de Estados-maiores e
empresários e em se prestando “para fazer a guerra” que ultima o capital,
conforme constatação do geógrafo francês Yves Lacoste (1997).
Qual seu objeto de estudo e porque entrelaçada à estrutura de
poder, a Geografia contém abissais rachaduras dividindo-a em múltiplos
“espaços” teóricos internos que orbitam e se movimentam em redor de duas
grandes forças que se vêm colidindo historicamente, pendendo ora ao curso da
neutralidade da metafísica idealista (pacto dos que compõem a classe dominante),
ora bandeando-se ao pólo do materialismo marxista (compromisso dos dominados
e aliados, que outras propostas de geografia se dispõem a encetar).
Nenhuma ciência que se planeasse crítica no campo do saber
social pôde esquivar-se em todos os momentos da fogueira da crítica que o
marxismo acendeu nas asas do idealismo flutuante ou do olhar cabisbaixo do
empirismo analítico e do descritivismo vulgar, notadamente na segunda metade do
século dobrado, quando a insatisfação no âmbito das ciências, e particularmente
na raia da Geografia, se fizera sentir com maior ímpeto.
Discussões sobre o espaço assumiram tamanha envergadura e se
tornaram tão essenciais ao entendimento do universo social contemporâneo que
mesmo não-geógrafos por formação, como Lefebvre (1973) e Michel Foucault
(1926-1984) em Sobre a geografia, reconheceram a importância de se adicionar a
12
questão espacial no âmago do debate teórico do materialismo histórico, para que a
dialética como lógica de compreensão do real se envergasse ao desvendamento da
dialética espacial, das estratégias essencialmente contraditórias de organização do
território pela “geografia do capitalismo”, diria Neil Smith (1988).
As ciências e os métodos atravessavam a fase que poderíamos
denominar de crise paradigmática da produção científica. Fenômeno que não tão
diacronicamente, conquanto quiçá de modo distanciado, poderíamos ter por
coincidente à crise pragmática do paradigma da reprodução capitalista, inclusive
por conta do desdobramento da cientificização da produção.
No compasso do rebuliço do saber científico, então
tecnologizado, o método punha-se em efervescência juntamente com as teorias
tradicionalmente consagradas à apreensão do real.
No domínio do materialismo não foi diferente.
Qual Fênix do solo reerguida, desde então algumas ciências (a
Geografia inclusa) campearam se reorientar em seus vôos teóricos com os olhos
não se afugentando do chão. Fitando fixo seu objeto concreto para não se
abalroarem novamente com os conteúdos esconsos da morfologia dos “relevos
sociais”, isto é, com os obstáculos materiais que a sociedade (estratificada) erige
em seu movimento de contradição interna. Um tipo de prudência nem sempre
suficiente para que o retorno das “levitações idealísticas” se interponha no mais
das vezes.
Querela que persiste e resiste, pois, em regresso quase que
matemático. Possível pô-la termo?
Na dimensão prático-imediata não, por não se tratar de
controvérsia unicamente confinada ao descerramento do saber e no colher da
verdade, fazendo-a valer. No que acata ao plano teórico da racionalidade
científica, tudo indica que a polêmica idealismo-materialismo possa ser em muito
desmanchada no ar ou grande parte dela dissipada se se inferir que no universo
material a que competem é onde precisamente jaz a conexão da explosão do
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movimento social do trabalho humano com a natureza-totalidade1, tão apenas
preteritamente alentada por forças da contingencialidade a ela imanente, atinente
ao estágio da história que o homem não faz no dizer do filósofo italiano Vico
(1668-1744)2, história duma natureza tida como autocontida pelo filósofo e
matemático inglês Alfred North Whitehead (1861-1947), cuja legalidade, ao
magiar filósofo Georg Lukács (1885-1971), far-se-ia vizinha da dialética da
natureza encetada no materialismo dialético pelos estudos do pensador germânico
Friedrich Engels (1820-1895), suporte teórico que autorizou ao marxista Lefebvre
(1981) conceituá-la de natureza material objectiva.
Noutras palavras: o conhecimento é erigido dos fenômenos.
Contudo, não habita a “natureza” ou os objetos que se nos antepõem como
1 Essa nossa expressão, de natureza-totalidade, aproxima-se da de Karpik (1972 cit. por SANTOS, 1997, p. 94), que a totalidade compreendeu como sendo todo o Planeta, isto é, a natureza e a comunidade humana. Concordamos, pois, com a lembrança de Alfred Schmidt (The concept of nature in Marx, 1971, p. 27) sobre a concepção marxiana dos primeiros trabalhos, de que “A natureza era, para Marx, tanto um elemento da prática humana quanto a totalidade de tudo o que existe” (apud SMITH, 1988, p. 50). O geógrafo Ruy Moreira (1993, p. 37; idem, 2006, p. 74) afirma que “A natureza é o eterno processo de produção/reprodução que desemboca em uma síntese das novas formas materiais no planeta justamente porque desde o começo é múltipla em formas e movimentos”. O interessante a ser observado sobre a questão da unidade da natureza-totalidade nos dias atuais é que, embora esteja ainda longe de perder a legalidade ou a processualidade autocontida, as múltiplas formas e movimentos (naturais) da Natureza cada vez mais se imbricam de modo interdependente, e isso porque a natureza social vem crescentemente demonstrando potencial de acelerar intencionalmente o movimento primitivo-espontâneo da natureza humana biológica e histórica (a engenharia genética comprovando a capacidade crescente que o homem desenvolve de influir em sua natureza não apenas histórica e espacial, como biológica, orgânica e fisiológica, ou seja, a própria produção humana parece prenunciar a mercantilidade, como já acontece com as demais espécies dos reinos animal e vegetal). Eis então que a natureza-totalidade se relaciona organicamente de forma dinâmica. Talvez tenhamos por isso menos razão para defender a tese da natureza autocontida pura, aquela que o homem não faz pois, globalizando-se, a sociedade alterou espacialmente o clima (presenciaríamos a globalização social do clima natural global?), como o faz com o ambiente. Se a geografia ou o espaço de determinada sociedade é o acúmulo de tempos desiguais (espaço como herança histórica), essa história ou esse tempo igualmente é o acúmulo filtrado de espacialidades diferenciais (história como herança espacial), vez que a história como eventos e acontecimentos não se dão de modo desespacializado, como se fosse o homem um ser atópico. É função do materialismo histórico-geográfico explicar a natureza-totalidade pelo viés da sociedade organizada concretamente, temporalmente e espacialmente, buscando explicar e superar os vários mapeamentos realizados pela ciência burguesa: o mapeamento-explicação do espaço objetivo do planeta realizado pela geografia-cartografia oficial, o mapeamento da subjetividade para programar melhor os mapas mentais e, agora, a feitura do mapa genético, que a burguesia persegue para ampliar formas de lucrar. 2 O historiador Giambattista Vico é tido como o primeiro pensador a lançar a hipótese da existência do princípio harmônico, organológico e antimecânico na evolução da humanidade, que a ele evoluiria gradativamente de forma análoga à natureza, com a conexão entre a história e os fenômenos da natureza se manifestando.
14
desafios cognitivos. Produzir conhecimentos é transformar informações
complexas em processo de trabalho abstrato, remetendo à intervenção intelectual
objetos simbólicos (intuições, representações, observações), sem a transformação
da própria realidade observada.
Homem, Natureza, Totalidade, Espaço: realidades, fenômenos
como concreto real projetado como representações que muitas vezes opõem-se à
própria manifestação do fenomênico. (Des)Realidades conceituadas. Como
abordar esses entes e dimensões relacionalmente e não aritmeticamente (como
soma de fatores divididos) e tendo como esteio a ótica geográfica para que o
subjetivo-pensar não se distancie do objeto-pensado? Como garantir que a
verdadeira relação descoberta se faça sempre re-contextualizada, não se
sacramentando em eternização de uma qualquer fórmula geral idealizada? O
método pode auxiliar? Que é ele? O que legitima sua coerência? Como presumir o
melhor? A complexidade do real demanda a inevitabilidade de métodos vários?
Como poderia a Geografia equipar-se para, em meio à pluralidade de
possibilidades, melhor “ler” e “escrever” o espaço? Poderia a Geografia apenas
“ler”, despreocupando-se com o “escrever”, o geo-grafar?
Se considerarmos a questão do saber como política teórico-
ideológica de comprometimento social, em qualquer época ou lugar recuado,
veremos que a ilação de J.P. Vernant detém extenso sentido, seja no que atine à
Filosofia, de que mais detidamente versou, ou aos outros portais do saber (como a
dobradinha realizada entre a dialética materialista e a Geografia, por exemplo).
Propriamente sobre a Filosofia, Vernant a enaltece como fruto da exigência
dominante da sociedade grega ao surgimento da pólis, já que a espacialidade
geográfica em construção necessitava deslocar as discussões filosóficas havidas
no campo cosmológico e materialista para a praia discursiva da moral e da
política, com o fito de se elaborar uma forma de convivência e uma educação
formal. Portanto, o novo enquadramento social.
Então, segundo a tradição marxiana que busca apreender os
elementos estruturais-relacionais do complexo social existentes entre o plano
superestrutural e infra-estrutural da sociedade, veremos em rápidas incursões por
15
tempos idos os indícios do processo de vaporação de novos referenciais a partir do
chão produtivo e material. Será a filosofia a ideologia ou a visão de mundo mais
racional e organizada da pólis, ficando à Grécia rural o característico do saber
mitológico, enredado à esparsa e popular tradição oral.
Com os sofistas outra filosofia principia. Ao lado dela realiza-se
o período antropomórfico e o apogeu da conhecida Democracia Grega. Tudo no
encalço da mudança “de espaço geográfico, das colônias jônias para o espaço
cultural da Grécia e esta mudança acarreta também a variação do objeto de
pesquisa: da natureza para o Homem!” (NUNES, 1992, p. 31).
Esse embasamento geográfico contribuirá de certo modo para
que a dialética, nascida nos braços da Filosofia e nutrida por um corpo de saber já
somado em 2.500 anos no Ocidente, busque firmar-se como o conhecimento a
respeito do mundo da natureza e da natureza do mundo, sobre a condição humana
pessoal e social, sobre a sociedade e a cultura. Como teoria da compreensão da
realidade que não pode ser descolada das condições espaço-temporais, estruturais
e conjunturais, sintetizadas pelo ser social e individual, que as vive e reflete.
Sabe-se que muito provavelmente pelos escritos de Pitágoras (V
a.C.), quem humildemente considerava-se “amigo do saber”, esse termo tenha
vindo à luz. Mas com Heráclito de Éfeso (544-480 a.C.) é que a filosofia se
anuncia como “busca da compreensão da realidade total”, ficando a ele rendida a
reputação de pai da Dialética.
Em todas as classificações da Grécia antiga, vemos que o fio de
ligadura é a tendência a opor-se aos mitos, de forma totalizante, sistematizada e
disciplinada. Opondo-se àquele conceito de polimathéia, fixado como o saber
comum, desconexo, fragmentado e ao nível do senso comum, quase sempre
preconceituoso e limitado, sobre a realidade pessoal, social e natural. E por querer
se opor aos mitos, mistificações, ideologias, senso comum e lugares-comuns,
como saber essencial e sistematizado da realidade, desde que criada a Filosofia
sofreu ataques e difamações, sendo perseguidos e à morte condenados muitos de
seus adeptos, porque no espaço social cujos dominantes buscam reciprocidade,
sintonia, disciplina e ordem, a discordância, contradição, re-ação em pensamento
16
e ato, a des(contra)ordem deve ser controlada/eliminada e isso porque o conteúdo
e a nova unidade que queriam do saber não se dissociava de determinada unidade
de interesses políticos hegemônicos3.
Onde houver reprodução da perpetração da dominância classista
haverá regulação espacial segregacionista.
O espaço, vê-se que desde há muito, talvez possa realmente
condizer com a consideração que o tem como “forma de regulação” (MOREIRA,
2003, p. 51).
Mas então convém indagar: que regulação é essa? A quem,
quantos serve? Desde quando e desde onde? Sempre foi a que conhecemos e
sempre o será? Quais são as peças e o mecanismo dessa engrenagem? Detém ela
caráter natural ou tem a regulação espacial mais a ver com o acondicionamento do
modo de produzir, firmando-se simultaneamente à concepção louvada de ordem e
desprezada de caos?
Conhecer o passado, lembrando-o e enxergando-o no presente
para melhor entrever o futuro quem sabe possa ajudar. Alguns passos iniciantes é
o que tencionamos oferecer no capítulo que segue. Para tal, devemos ter em mente
a materialidade conflituosa da relação histórico-geográfica, por resvalar e
esparrama-se ela no modo (método) como a sociedade se entende e se (re)faz.
O recuo espacial aos Tempos Homéricos4 nos revela que a
geografia das ilhas grega sedimentada pelos povos invasores indo-europeus
(Aqueus, Eólios e Jônios) baseava-se na caça marítima (sobremodo por conta da
pobreza dos solos da região) e que, em meio à transição desse modo de pensar,
reputar-se filósofo nada tinha de possuidor da verdade. Amigo do saber a todo
custo, às vezes com o custo da vida. Filosofia então como saber relativo, histórico 3 Exemplo ilustrativo dá-se muitos séculos depois, quando o filósofo francês Augusto Comte (1798-1857) cria a “doutrina orgânica” para Reorganizar a sociedade (2005), opondo-se à “doutrina crítica” dos povos e à “doutrina retrógrada” da nobreza feudal. Mudando-se os agentes e não a lógica da hierarquia distributiva na qual deveriam todos se acomodar. 4 Os chamados Tempos Homéricos perduraram até cerca de 1.000 anos a.C. Foi nesse período que a tradição grega foi sistematizada por Homero, nas obras que consideradas são o início da narrativa ocidental (Ilíada e Odisséia). Já sobre esse personagem, pouco se sabe. Inúmeras cidades disputam a honra de ter sido seu berço. Não poucos questionam igualmente sua existência, dada as enormes diferenças de estilo de cada poema, aferindo se não pertenceriam eles a uma tradição oral grega compilada por um poeta anônimo.
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e espacial, não “um conjunto de ‘verdades’ perenes ou um método etéreo de
pesquisar as últimas causas de tudo o que existe” (NUNES, 1992, p. 15).
O valor e a grandeza da filosofia de então estavam mais na
proposta, na processualidade, do que nos resultados atingidos. Sempre históricos,
contextuais e pessoais.
Mas reconhecido que às transformações no universo das idéias
tem-se paralelamente, como motor e resultado, modificações no âmbito da
materialidade, tentemos observar outras oposições de idéias e conceitos que tão
vivamente desabrocham quando tumultuada se posiciona a sociedade. Impossível
eliminar-se a dialética existente entre a materialidade e imaterialidade social.
O que vem então a ser a dialética, ou as dialéticas, já que é ela
conceito corrente entre os gregos, estando na base dum pensamento cada vez mais
racionalmente dirigido a explicitar a conexão causal dos fenômenos do mundo, a
partir do momento em que a razão vai-se acoplando e, ao mesmo tempo,
substituindo o mito e as fantasias. Vejamo-la, é ela a mãe de muitos métodos.
A continuidade no regresso a tempos idos nos mostra que o
fortalecimento da base racional que conhecemos, essencialmente dialética ou não,
é o acúmulo dum processo antigo, lento e demorado e que muito provavelmente
Hesíodo (séc. VIII a.C.) tenha sido o primeiro a lançar elementos à base de tal
racionalidade quando se pôs a traçar toda a genealogia e hierarquia dos deuses por
meio dum encadeamento causal que punha ordem ao caos da teogonia e
cosmologia gregas, tratando como a Terra e o Amor dos deuses surgiram e como a
fúria divina fora arremetida aos homens que se atreveram a roubar o fogo sagrado
de seus domínios com a ajuda do imprudente Prometeu, e que a partir de então
tiveram de pagar com a infelicidade de uma vida tortuosa e repleta de todos os
males antes contidos na jarra de Pandora.
Os primeiros bafejos duma principesca racionalidade estavam
sendo espirados. A dialética não se isolará do calor dele emanado.
Aí, o marco do muito alardeado Milagre Grego. Fruto do
acúmulo histórico de evolução-distinção por meio do qual vão aparecendo as
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primeiras filosofias gregas, sob a forma de “mitos racionalizados”, no movimento
pendular em que se tocam razão e mito (GOBLOT, 1962).
Foi aliás como confronto de idéias que a dialética primeiro se
fez identificada. Raiada entre os gregos, a dialética distanciou-se da acepção
inicial deles auferido e que então atribuía significado à palavra diálogo, tão
valorada pelo sábio Platão (429-347 a.C.), que o tinha como o mais apropriado
meio para se atingir a verdade, como mecanismo a deslocar o saber do plano da
doxa (opinião) para o da epistéme (conhecimento)5.
Uma opinião essa não compartida pelo grego Aristóteles (384-
322 a.C.) que ao contrário de Platão a vivamente combatia, questionando o ponto
certo no qual a dialética finalizar-se-ia, o momento no qual a essência verdadeira
da coisa far-se-ia tocada pela mente perscrutante.
O desacordo de Aristóteles para com o juízo platônico da
dialética fê-lo sugerir que o processo de construção do conhecimento deveria
efetivar-se por intermédio de silogismos, em que se partindo de duas proposições
se alcançaria a conclusão verdadeira através da dedução; em busca mediada por
termos-certezas que receberia ainda a adição da indução, essa construída nas e
pelas experiências reais. O silogismo a esse grego destarte possibilitaria a escalada
ao platô genuíno do ainda recôndito saber6.
Entretanto, mesmo mostrando-se correto ao assinalar que a
discussão pela discussão não leva à verdade, Aristóteles não logrou anular o
movimento que a dialética atravessava, sendo seu silogismo considerado por
alguns como mediação vivificadora do método dialético de se pensar.
A condição que ele queria metódica tornou-se recurso lógico-
metodológico ao método dialético de raciocinar. A dedução e a indução, nessa
5 Platão aproximava-se da concepção de filosofia que possuía Sócrates (470-399 a.C.), ocupado com questões como o Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem. Sentido que o alemão Friedrich Nietzsche (1844-1890) veio a repugnar, tendo Sócrates por “inventor” da metafísica e desdenhador da tragédia, que tinha por “irracional” e despertadora de emoções “indignas de filósofos”, desviando a filosofia do caminho da “afirmação” da vida para o do seu “julgamento”, com o qual Nietzsche discordava inteiramente. Examinar: CHAUÍ (cons.), 1999, p. 8. 6 O conhecimento não somente genealógico mas multidimensional do silogismo é considerado vital por ter determinado inúmeras propostas de abordagens geográficas, especialmente quando combinado com os métodos comparativo, taxonômico e quantitativo.
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concepção epistêmica, passaram a ser meios e não princípios e baldrames do
conhecimento.
Inevitavelmente o sentido da dialética foi-se demudando. Ao
invés simplesmente de confronto de teses, reorientou-se ao propósito de
elucidação das contradições no real, deixando de ser emparedada na sofística
discursiva para que uma contenda verbal fosse ganha sem que qualquer
compromisso com a verdade houvesse.
Aliás, o próprio “direito” de se pensar (dialeticamente ou não)
na antiga Grécia, provinha da organização infra-estrutural do trabalho e da
superestrutura jurídica que apartava os que podiam pensar (no sentido amplo do
termo) daqueles aos quais, porque escravos, somente o fazer manual restava.
Especialmente naquela Grécia já urbanizada, da pólis, que quase sempre tinha os
filósofos como visionários aristocráticos, figuras educadoras mantidas para o bom
comportar e conviver dos citadinos, dos livres e privilegiados.
Mas o fato é que não há argamassa social classista em qualquer
sociedade que seja que possa impedir o pensamento de se rachar e mover, latente
ou explicitamente.
Nesse embalo de sábios vai a dialética se desanuviando
finalmente. É já doutrina do movimento. Doutrina em movimento.
Distintamente do vaticínio dos gregos eleatas do século V a.C., a
dialética é já movimento no espaço concreto real e não somente no espaço mental
do concreto pensado; condição negadora das teses da unidade e imobilidade
absolutas do ser pregadas pelos gregos Parmênides (540-450 a.C.) e Zenão,
seguidores dos enunciados eleáticos de Xenófones de Cólofon (séc. V a.C.).
Para Parmênides as coisas não mudam, multiplicam-se e se
repetem infinitamente no ciclo monótono que não se transforma. Permanecendo
sempre igual. A tarefa da filosofia resumir-se-ia a dois caminhos: o que busca a
verdade (aletéya), perfeita, una, eterna e imutável e o que conduz ao Inteligível,
ao Ser. Entre eles, o caminho da opinião (doxa) ou o caminho do Não-Ser, que se
confunde com a experiência individual das realidades sensíveis, quando os
enganadores sentidos antepõem-se como negro abismo ao saber verdadeiro.
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Também ao aristocrata Zenão, o Ser é por definição. Não
podendo ser tratado como vir-a-ser ou como deixar-de-ser. Sem importar o
momento, a mudança e transformação são-lhes irrealizáveis.
De modo sistêmico e ordenado, os eleatas inauguram o método
idealista na Filosofia.
Aos eleatas, o espaço da política e a política espacial recebiam
todas as justificativas de ser-estar, dando realidade às suas idéias cosmológicas e
aristocráticas na pólis grega de Eléia, como se do espírito se originasse a
materialidade. Um Ser ideal, espiritual, institui-se como fundacional à natureza.
Zenão mesmo, negando a realidade e abandonando a pesquisa
empírica e materialista da natureza, irá conceber o espaço como “infinito”, pois ao
argumentar sobre as partículas infinitas que teriam que ser atravessadas acabou
desacreditando o movimento dos corpos.
Em meio ao materialismo dos jônicos e ao idealismo panteísta
dos eleatas e à dialética heraclitiana, estava o eclético Empédocles de Agrigento
(493-430 a.C.) tentando fornecer a síntese a esse redemoinho de correntes,
advogando o que a ele seria a lei imutável: a lei da evolução, pela qual apenas os
mais aptos sobreviveriam mediante a seleção natural; pondo-se entretanto, às
substâncias naturais um agregado de misturas e trocas entre água-ar-terra-fogo,
animados, aditados e segregados pela força do amor e do ódio.
O que comprova que intermediando as duas macro-correntes já
se conjeturavam fórmulas ecléticas de pensar relacionando as forças materiais e as
forças espirituais. Razão, mitologia, misticismo se interpenetrando.
O conflito central foi e continua a desenlear-se entre as correntes
dos dois extremos, entretanto.
Podiam os eleatas, na ânsia de manter a sociedade de seu tempo,
gritar a todos os ventos que a natureza nunca muda. Somente o discurso
permanecia. A realidade inevitavelmente deles fugia.
Mas, assim como estão os eleatas para o idealismo, está
Heráclito para o materialismo.
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Heráclito bem soube que a única lei existente era a da
peremptória mudança. Por isso defendeu a luta dos opostos por princípio regedor
do devenir, argumentando que a natureza e a sociedade sofriam inegáveis
mutações – e embora muito de seu pensar também fosse de várias formas
influenciado pela ideologia dominante da época.
A compreensão materialista e dialética da realidade, muitos
crêem, com ele faz-se inaugurada.
O pensar não consegue e já não quer se furtar ao movimento,
que salta aos olhos e à mente.
A mente eleática, já havia muito, corria e discorria em
argumentações acrobáticas e inúmeras aporias para tentar driblar o movimento
perceptivo do real.
E é pois do ventre dum ilusório imobilismo que o saber caminha
a par do peripatético Aristóteles, saboreando o discursivo Platão, de mãos dadas
com a irônica, agnosiológica e maiêutica postura de Sócrates ou na companhia
dum seu cínico seguidor de Sínope, de nome Diógenes (413-323 a.C.).
Os menos e até alguns dos mais idealistas sabiam reconhecer a
veracidade do movimento. Inda que o apercebessem de modo intuitivo, pré-
julgado, ideado...
Debatendo-se entre cabeças, escolas, séculos, enfim espaços, o
pensamento avança despregando-se da idéia estática do real imóvel.
Conforme o ritmo das teorias, dança o saber no salão de cada
escola filosófica, em ambientes às vezes iluminado pela racionalidade científica e
outras mais trespassado pelas tendências mítico-poéticas que em lábios múltiplos
proliferavam, engrossando voz.
Vez ou outra a dialética, como processo de luta nos domínios do
empírico e do cognoscível, deixava-se embalar pelas divagações da metafísica,
retirando os pés do solo concreto.
As doutrinas titânicas se trombam nas elucubrações aristotélicas
e platônicas. Porém, de forma menos idealista que o sofístico Platão, por que
interessado com a concretude dos fenômenos, Aristóteles apercebeu-se que o
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movimento (kinesis, em grego) se efetua mediante causalidades. E notando a
ordem das coisas, fenômenos e eventos através da ligação causal, pôs-se a
classificar as causalidades em: qualitativa, quantitativa, locacional ou locomotora,
periódica ou perene; com o cuidado devido em identificar as quatro imanentes
causas do movimento como sendo: material, formal, motriz ou eficiente, final.
Passos significativos avançavam no organizar metódico do
processo investigativo até que a dialética chegasse ao estado em que hoje se
molda, em que pese as obscuridades a ela arremessadas.
Como hoje se compreende ela?
Como movimento do concreto em pensamento sobre o
movimento do concreto real, a dialética figura-se como o instrumental teórico
capaz de estimular e habilitar a aproximação do movimento que deve ocorrer
entre a mente e o movimento inesitante do real. E por ser prodígio real e não só
realidade pensada, a manifestação tridimensional da dialética, em termos
materialistas, verifica-se na:
Natureza: orgânica, material, objetiva e de realidade pré-humana e extra-
social;
História (Geografia): produzida e reproduzida socialmente, geograficamente,
contraditoriamente (em classes, estamentos, etc.), podendo ser considerada
como contradição antagônica a existente entre escravos/amos,
servos/senhores, operários/burgueses e como contradição não-antagônica a
que permeia a relação homens-mulheres, adultos-jovens, operários-
camponeses, trabalhadores manuais-trabalhadores intelectuais7;
7 A diferenciação entre contradições antagônica e não-antagônica é tomada de Mao Tsé-Tung (1893-1976). Milton Santos pronunciou no programa “Conexão Roberto D’Ávila”, da Rede Cultura, que a sociedade atual é caracterizada pela contradição pura, paroxística. Jameson (1997) já prefere diferenciar antinomia de contradição, afirmando que é a primeira que responde mais ao estado da sociedade pós-moderna. Consideramos a relação de contradição do ser capitalista como antagônica porque, distintamente das sociedades antecedentes (feudal ou escravista), a classe capitalista, malgrado inexistir sem a classe dos proletários e despossuídos, nega-a a todo instante, ainda que não seja possível a existência duma senão pela outra. A contradição antagônica significa contradição profunda, enquanto as não-antagônicas das formações espaciais anteriores se manifestavam como contrariedades latentes, por isso que a suplantação do antagonismo capitalista só pode se dar pela sua derrocada, por parte dos dominados que o suportam sobre os ombros, numa
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Consciência: pensamento reflexionante sobre as contradições reais, elevadas
em específicos contextos evolutivos de modo a não se permitir que sejam
isolados os conhecimentos (ou a consciência, nos níveis: passivo, vivido e
reflexivo) do conjunto do desenvolvimento espacial e material humano.
Mas como poderia o pensador substituir a “lógica formal” pela
“lógica dialética”? Cremos que inevitavelmente no abandonar do alvéolo da teoria
do conhecimento, o casulo da “reflexão filosófica” sobre o conhecimento, os
domínios da gnosiologia, dimensionando-se metodicamente à prática social por
meio da efetiva “reflexão científica” (LEFEBVRE, 1968a, p. 103), com o
processo reflexionante atinado à devida compreensão das possibilidades e
limitações relacionadas aos procedimentos dedutivo e indutivo. Antes de mais,
tendo-se já por sabido que para achegar-se ao particular iniciando-se do universal
(dedução) tem-se antes de tudo que se estar ciente das leis que regem
dialeticamente o real, de modo ao menos que a elas não se venha a distar; ao
mesmo tempo em que, para do particular aferir-se conclusões universalizantes
(indução), convém que se tenha por analisado, empírica e concretamente, o real
que se quer conhecer, mediante averiguações sistemáticas que traduzam
cognitivamente, na mente, a ordem dos fenômenos que se transluz na ordenação,
nem sempre ou quase nunca harmônica, da espacialidade social concreta.
Nem apenas a dialética platônica e tampouco o solitário
silogismo aristotélico. Dialeticamente pensando, um pouco de ambos: a dialética
tarefa classicamente considerada como missão do proletariado e que agora passa a ser revisitada, devido à complexificação e heterogeneização da força de trabalho. O fato é que pela primeira vez na história das sociedades de classes a liberdade só pode ser atingida pela eliminação das forças e dos agentes que a impede de realizar-se, acabando com a exploração e com os exploradores. De sua parte, a filósofa Marilena Chauí (1991, p. 37) concebe a contradição como movimento de negação que existe apenas na e pela relação, num movimento de negação interna na qual os termos se fariam criados/transformados/superados na/pela/como relação, e isso porque a filósofa recorda que a Marx “a contradição se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais e se chama luta de classes” (ibid., p. 46-47) e, com base nesse enunciado, expõe a discrepância existente entre os termos oposição e contradição: o primeiro termo se anunciaria no âmbito dos interesses dos proprietários, como conflito intraclasse e a segunda condição se consignaria na seara contraditória da esfera interclasses, na divergência dos interesses de todos os proprietários com os interesses dos não-proprietários, “pois onde houver propriedade privada não pode haver interesse social comum” (ibidem, p. 60).
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do primeiro já é menos idealista que o “idealista” Platão e o silogismo do segundo
é já mais materialista que o “materialista” Aristóteles.
Ao que acata ao procedimento indutivo, notamos haver
diferenciações internas substanciais ao mesmo, dividindo-se em:
Indução rigorosa ou aristotélica: aplica uma fórmula a todos os casos
estudados; procedimento que permite que pela mediação racional do
silogismo se chegue ao terceiro termo, a verdade;
Indução amplificadora, experimental ou baconiana: obtém, de número finito
de casos estudados, um número infinito de fatos possíveis8.
Após esse primeiro contato com o componente metódico
hipotético-indutivo criado no antigo solo grego e em chão europeu “renascido” –
cuja prepositiva ciência ainda aproximava-se da metafísica interessada
enormemente com a essência das imutáveis, ideais e totais causas primeiras –
mister a atenção para que do silogismo formal, que pelas penas dos positivistas9
foram escorridos ao largo do mundo e dos séculos na indução e no proceder
deducional pseudocientíficos, se marche à metodologia dialética que contemple,
como base à hermenêutica de um fecundo silogismo concreto, o intercambiar
social e espacialmente relacional das dimensões tribias do real, entre o singular-
particular-universal, na interescalaridade geográfica do micro-meso-macro,
experienciada e refletida pelo sujeito-objeto, em um ir-e-vir que parta e tenha por
8 A metodologia aplicada pelo filósofo e político inglês Francis Bacon (1561-1626) condizia com a procura por exemplos de casos cujos efeitos tenham sido causados por mudanças específicas. Posteriormente, de posse dos exemplos, se partiria à identificação das causas possíveis responsáveis pelo efeito. Daí então, buscar-se-ia ocorrências nas quais as mudanças específicas não se fizessem presentes e nas quais o efeito não se manifestasse. A partir disso, poder-se-ia inventar formas para se compreender a lógica imanente que rege a mudança e os seus efeitos. Para Bacon, conforme o filósofo Will Durant (2000, p. 141), “O método de indução deve incluir uma técnica para a classificação de dados e a eliminação de hipóteses; a fim de que, através do progressivo cancelamento de possíveis explicações, finalmente só reste uma”. 9 O positivismo, corrente teórica formulada por Comte, tem como características basilares a observação, a experimentação e a realização de deduções (formulação de leis gerais ou leis naturais). Não se preocupa como o porquê e o para quê das relações entre os fatos, mas com o como e, nesse processo de pesquisa, nega qualquer interferência de juízo de valor (sentir, intuir, imaginar e atributos subjetivos).
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porto seguro de regresso a realidade social atualmente globalizada, a sociedade
historicamente geografada no seu movimento antitético com o espaço socialmente
produzido e reproduzido, que lhe (re)amolda ou atravanca; espaço que se firma
como escol concreto do sujeito localizado histórico-geograficamente, que vive,
interage e pensa a partir das contradições intrínsecas a toda e qualquer
(re)produção, começando pela relação do ser social com a natureza através do
trabalho, para que das formas (paisagens) se apreenda a lógica da essência
subpaisagística do ser espacial.
A esse transe cultural, teórico e ideológico, vieram as chamas do
Século das Luzes se somar, ao aclarar que a “natureza humana” pode buscar a
multiplicidade das causas antropomórfico-fenomenais da relação entre natureza e
cultura, criando novas cosmogonias despregadas do determinismo teológico, da
tradicional cosmo(teo)logia. Ainda que isso não implicasse afiançar que um salto
progressivo ocorreu instantaneamente, porque o saber sempre cambaleia no jogo
de forças travadas no espaço social, conforme a tradição cultural engessada e seus
invisíveis aculturadores. É por isso que ao que consideramos de determinismo
teológico sucedeu o determinismo natural de que foram vítimas inclusive
sistematizadores da ciência geográfica. Avanços e retrocessos sempre a
manifestar-se porque previamente autores já haviam atentado ao fato de que:
o século de Linneu e de Buffon inscreve o homem no quadro das ciências naturais, mas descobre no mesmo momento que a história natural da espécie humana é ao mesmo tempo uma história cultural (GUSDORF, 1977, p. 80 apud GOMES, 1996, p. 70).
Acúmulo de saberes antigos. Das opiniões na Antiguidade
oferecidas pelo latino Lucrécio (95 a.C.) e pelos atomistas gregos que procuravam
apreender os componentes últimos da física da natureza chegou-se, sobretudo no
desenrolar do século XVIII, à tendência do perscrutar a natureza, com destaque
para os pensamentos do inglês Denis Diderot (1713-1784) e de seus amigos
materialistas d’Holbach, Helvétius e La Mettrie; para não dizer do francês
Georges Louis Leclerc Buffon (1707-1788), portador da visão materialista que
objetivava a compreensão lógica da cadeia de conexões entre os fenômenos
26
naturais e sociais, crente na idéia de unidade entre todos os fenômenos
observáveis, mormente na continuidade conectiva de espécies (opondo-se assim à
classificação hierárquica de Lineu); propondo que a natureza devesse ser
entendida como o plano encadeado e necessário de fenômenos de tal forma que de
uns se deduziram os outros.
Entre geometrismos e fórmulas matematizantes de pensar,
transcendentalismos metafísicos e determinismos naturalistas, a natureza da
geografia e a geografia da natureza foram sendo esculpidas, com os corpos
teórico-conceituais sendo formados e reformados no seio do processo político-
econômico de espacialização do produzir economicamente universalizante10.
Obviamente que o ingrediente central das sociedades varia, isto
é, as determinidades ontológicas construtoras da sociabilidade não são as mesmas
sempre e por todos os cantos. Veremos por isso que ao nos debruçarmos sobre os
modos de produção havidos (não-classistas e classistas), até que se desaguasse no
capitalismo o elemento característico ordenador da totalidade sócio-espacial fora
em algumas regiões de teor mais cultural do que produtivo, e isso porque, na
opinião de Bottomore, é o essencial o que deve ser averiguado nas formações
sociais tangenciadas por múltiplos modos de produção – daí a principalidade do
modo de produção escravista no vasto Império Romano.
O conteúdo dos espaços muda conforme as realidades concretas
sob as quais se levanta a cognição. Entender o que se fez produzido e os porquês
dos silêncios sobre a dimensão espacial, dado os vícios do pensar pelo aspecto
único do temporal, pode municiar-nos para apreendermos a complexidade da
concretude do real.
Adiemos por hora, contudo, a reflexão sobre a categoria do
espaço e nos concentremos na da teoria do método, que nos possibilitará
10 Faremos adiante reflexão mais demorada sobre a categoria do espaço. Contudo, é interessante notarmos que paulatinamente o espaço vai-se figurando como algo mais que a tridimensionalidade geométrico-formal-cartografável: largura-espessura-profundidade e descrição da localização-distribuição-disposição intencionada pela macro-política oficial e pelos que a superestrutura representa. Acena já à tridimensionalidade trans-escalar da essencialidade do ser: singular-particular-universal ou lugaridade-regionalidade-globalidade, em que os traços do poder global se hegemonizam territorialmente sob formas particularizadas, singularizadas, em regiões e lugares do mundo, este se pondo como unidade social de espacialidades diversas armadas em rede.
27
referenciar a exposição daquela, inclusive porque a geograficidade da dialética
materialista está na capacidade de ler espacialmente as contradições histórico-
geográficas. Premente torna-se o seu conhecimento. Caso contrário, apenas no
império da dialética filosófica (formalismo lógico-gnosiológico), fechada no
pensar a-espacial, corre-se o risco de a geografia permanecer.
A visão que se institui liga-se ao ferramental teórico-conceitual
que se tem em mãos e se se está a refletir pela forma aparente do fenômeno lógica
e intelectualmente matematizado ou pela essência contraditória do conteúdo
sempre relacional, transformante e de certa maneira fugaz.
Para que tal ocorra, para que se exercite o movimento científico
pela pendulação metódica entre forma e essência, e que da indução baseada no
silogismo formal (silogismo por extensão) se transite à teoria do silogismo da
essência (silogismo da compreensão), convém que o processo de construção do
conhecimento esteja aportado na lógica concreta, empreendendo o silogismo da
essência que vá além das abstrações tautológicas da lógica formal entranhada pelo
silogismo formal, extensivo e da aparência. Como alertou-nos Lukács, é preciso
rasgar o véu da “coisidade” que dissimula a essência da totalidade social.
Obviamente que as posturas teóricas quanto a este método não
são unânimes entre os pensadores11. Basta que citemos a esse respeito o filósofo
austríaco Karl Popper (1902-1995) que influenciado pelo Círculo de Viena se
dispôs a recuperar a linguagem matemática de linhagem cartesiana e a aprimorar a
doutrina positivista (apontada de neopositivista12) e que, juntamente a esse
Círculo13, defendia todo e qualquer esforço metódico amparado no procedimento
inducional, porque a verdade das ciências estaria a evoluir por acúmulos de
11 A geografia, tradicionalmente caudatária do discurso formal protocolado sobre a forma espacial, exemplarmente o comprova, vez que só (se muito) se ocupava com o concreto-visível, em nada se interessando pelo concreto-invisível. 12 No neopositivismo percebe-se preponderar, como características essenciais: a) a linguagem matemática; b) a lógica da razão como contraponto à experiência e à experimentação; c) a separação entre sujeito e objeto; d) a cientificidade como fator resistente ao teste da falseabilidade; e) o conhecimento permeado pela idéia de progresso; f) e a idéia de que teorias científicas, como enunciados universais, possam racionalizar-explicar-dominar-reformar o mundo. 13 Liderado por Rudolf Carnap (1891-1969), o Círculo contava com as presenças de Moritz Schlick (1882-1936), Otto Neurath (1882-1945) e, dentre vários outros, com o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e Bertrand Russel (1872-1970).
28
saberes resistentes à falseabilidade, por meio de provas empíricas sistemáticas a
lhe galvanizar. Ou seja, racionalizada a indução, deve ela ser posta à prova da
falseabilidade para se saber se a idéia nova se confirma cientificamente ou não (se
sim, progride a ciência), vez que o sistema científico só é reputado válido por
Popper caso passe no teste da falseabilidade, imunizando-se à prova da
experiência. A objetividade dos enunciados científicos se sustenta na
possibilidade de poderem ser subjetivamente submetido a testes. Para ele, o
método deve possuir postura lógica, com cânones metodológicos e linguagem
universal (matemática) a todas as ciências, que dessa forma se pretendia que
fossem unificadas. Negando a concepção naturalista do método, como se opondo
às tendências psicologistas, Popper reproduz a concepção cartesiana da ciência,
revitalizando a força inerente do positivismo lógico. Aqui, temos os positivistas
negando o determinismo teológico, o determinismo natural e o determinismo
psicologista, escorregando entretanto no determinismo matemático: espécie de
determinismo metafísico a se predizer (onis)científico.
Enlaçada ao discurso neopositivista, a nova geografia ou
geografia quantitativa orientou-se ao estudo do espaço homogêneo, destituído de
rugosidades e de contradições econômicas típicas da sociedade burguesa.
No âmbito do marxismo a situação se modifica. O que significa
asseverarmos agora, desapegados da rigidez matematizante e do comportamento
“negativista” da ciência-neopositivista-metodologicamente-neutra-popperiana,
que a dedução pode servir ao silogismo da essência que aponte a algumas
“previsões” ou hipóteses tão logo descobertas as leis elementares do real, os seus
vetores sociais fundamentais, contribuindo para a atuação dos que se identificam
como engenheiros das forças sociais, a canalizar e orientar forças que jamais
deixam de pulsar e coadunar-se, para que o novo espaço social surja da
cosmização (reordenamento) da energia social fundada nas dimensões dos
mundos do trabalho e do além-trabalho, de um sujeito que ao conhecer não mais
se separa do objeto, já que se percebe-concebe como objeto de outros sujeitos, e
que por conta disso intenciona se desobjetificar, humanizar, hominizar, a
desenvolver processualmente a omnilateralidade. Isso o que realizara Karl Marx
29
(1818-1883) e vários de seus seguidores por meio do materialismo histórico,
partindo da situação vivida, sem cair no profetismo metacientífico a descrever o
sentido inelutável da história, mas que, doutra parte, se recusa a ser expressão
acanhada de seu tempo14 e espaço, como ciência míope por definição ao furtar-se
a dispor o quadro de probabilidades do curso dos eventos (FERNANDES, 1995,
p. 92; SÈVE, 2001, p. 4; SROUR, 1978, p. 45, 51-52; MÉSZÁROS, 2003, p.
110). Embora alguns marxistas assim não pensassem: qual o filósofo italiano
Antonio Gramsci (1891-1937) que afirmava que o materialismo histórico deveria
se propor a desvelar o que “foi” e “é” e não o que “será”, entendendo o será
como “não-existente” e incognoscível por definição; mas como nos recorda
Robert Henry Srour (op. cit., p. 52, nota de rodapé no 21) em questionamento da
filosofia da práxis gramsciana, o foi também é um não-existente do qual resta
apenas representações que somente na teoria se perpetuam e não mais como
realidade, daí que, operar como Gramsci implica em suprimir da teoria marxista o
caráter de “ciência da prática social”.
Queremos com isso dizer que o fato de nenhum método poder
dar a matematização lógico-formal (suprafísica) da realidade social não sugere de
antemão a negação da potencialidade do conhecimento retroativo ou conjetural
(metafísico). Conhecer não é prever a inevitabilidade do futuro e sim apreender
diretrizes (leis) que guiam o complexo no qual a sociedade se geo-grafa.
Tal trilhar mais condiz com o desemaranhar do fio de Ariadne,
possibilitando o imprescindível pousar das asas da teoria no ninho do espaço
social concreto, de onde alçara vôo, rodopiando em acrobacias idealísticas tão
logo achou-se estranhado o pensar do pensador, por ingênuo descuido ou
maleficência perambulando nos labirintos da metafísica desgeografada,
descuidado em evitar as hipóstases de conceitos eternos e das abstrações teóricas.
Em raias bem opostas, tais formas metafísicas (inocentes ou
perversas) de se pensar manifestam-se ao longo dos séculos sob duas distintas
14 Discordamos da posição de Ítalo Moriconi (1994, p. 18) de que o marxismo, considerado por Sartre como “filosofia insuperável de nosso tempo”, teria sucumbido com aquele “nosso tempo”, de Sartre. O tempo do marxismo se confunde com o do capitalismo. Tenta um destruir o outro.
30
formas. Seu conhecer torna-se imprescindível para se avaliar o adubo sócio-
espacial do qual fertilizaram os saberes e os métodos:
Na interpretação mística, mágica, idílica e inocente do real, em um mix de
visão contemplativa, entendimento e imaginação, as representações são
suscitadas sem o ensejo do engodo, como posições teleológicas primárias
despertas no contexto social arraigado às mediações de primeira ordem,
fundamentada no trabalho concreto (work) produtor de valores-de-uso, na
conformação do metabolismo natural homem-meio (relação intranatural).
Aqui a consciência (simples e parcial) da natureza erige-se da sensação
imediata, como “consciência animal da natureza” (LEFEBVRE, 1981, p.
144), com a lógica que mescla saberes concretos advindos da experiência
concreta (medicina natural e saberes atmosféricos, climáticos, celestiais e
estacionais) com mitificações e interpretativas “reificações inocentes”
(TERTULIAN, s/d) que tentam preencher o vazio de relativa ignorância e
impotência para com a grandiosidade do envolvente; como
concomitantemente na forma que arranjavam espacialmente a relação
homem-meio, já que o homem primitivo se compreendia como ser integrante
e imerso no continuum da Natureza, realizando-se material, espiritual e
cosmicamente em (e como) seu movimento simultaneamente aos outros seres
vivos coabitantes da mesma. Homens e animais considerados como entes
igualmente humanos em muitas sociedades – como nas comunidades
indígenas nas quais o grau de parentesco não se desmantelavam,
individualizando-se apenas –, compondo todos a unidade orgânica. Em tais
comunidades a adaptação ao meio ambiente fazia-se mais do que necessária
culturalmente para que a espécie se reproduzisse, originando-se daí o que
poderíamos tomar como universo superestrutural das idéias, com os códigos
e regras armados com vistas a manter o equilíbrio população-coletividade,
quer por meio da anticoncepção, infanticídio, guerra, feitiçaria ou outros
elementos da rede de costumes organicamente relacionados ao estado da
divisão sexual do trabalho (MEGGERS, 1977). Não sendo a natureza
31
segregada do sujeito, tampouco a função e o produto do trabalho se lhe
opõem, combinando-se na relação que de tão solidária alude à condição inda
celebrada como Idade do Ouro por ampla gama de intelectuais. Na
reinterpretação da antropologia social o mito deixa já de ser estereotipado
como pensamento banal (inferior-atrasado-primitivo) e como algo aquém ao
que se entendia como pensamento lógico-racional (superior-civilizado-
adiantado), como se fez até a Ilustração no século XVIII15. Do século XVIII
em diante vai-se demonstrando que o pensamento mítico pertence aos
campos do símbolo e da linguagem simbólica, que eles não desaparecem mas
coexistem com o pensamento e a linguagem conceituais; muitas vezes
ocorrendo que a imaginação social transforme em simbólico e mítico aquilo
que o saber científico-filosófico concebera exclusivamente como
conceitual16. Pelo pensamento do antropólogo francês Claude Lévy-Strauss
(1908-?) ficou registrado que “sociedades primitivas” “são tão ‘primitivas’
como as nossas” e que o mito e o rito já não mais são tidos por atrasados,
meras lendas ou fabulações, antes respondendo à forma de organização da
realidade a partir da experiência sensível, efetivada mediante o processo
chamado de bricolage, que produz o novo a partir da reunião não tão rígida
dos pedaços do entendimento anterior, como quebra-cabeça-mutante que vai
agregando novas peças (reunindo experiências e narrativas) até que o mito
geral esteja pronto a expender as origens, formas, funções e finalidades dos
fenômenos, com o atributo divino a Natureza e os seres humanos
permeando17. A alusão a ser feita é que o mito – qual o enunciado pelo
Hesíodo – coloca fim ao caos perceptivo porque equipado das funções
15 Este foi o período no qual o idealismo da filosofia da história do alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e o positivismo teoricista e evolucionista de Comte exerceram bastante peso. 16 Há outra linha de pensamento que correlaciona a predominância do pensar simbólico ou conceitual pela concepção neurológica e pela análise da anatomia e fisiologia do cérebro humano, dividido em dois distintos hemisférios – um dos quais, conforme a história e a tendência individuais do sujeito ou a influência da cultura a que pertença, desenvolve-se mais que o outro –, mas que não vemos como tese primordial senão como influência em segundo grau, e talvez em nível mais individual, dos vetores econômico-sociais centrais que estruturam a sociedade segundo o nível do conhecimento desenvolvido. 17 Ver: VALENTIN, 1962a, 1962b; MAKARIUS, 1968; LLOBERA, 1979a; CHAUÍ, 2000.
32
explicativa, organizativa, classificatória e por encadear (sem suficiente
comprovação o que se concebe como) as causas e os efeitos dos fenômenos
na totalidade explicativa18, não mais unicamente contemplativa19;
Na projeção mental particularizada intencionalmente por uns, como posições
teleológicas secundárias içadas ao embuste pelos que ideologicamente
costuram o tecido social do tope do poder, temos como propulsor o complexo
social estruturado em mediações de segunda ordem, voltadas ao trabalho
abstrato (labour) produtor de valores-de-troca e que a toda a sociedade
transmitem a idéia de que se está a avançar do caos perceptivo à totalidade
racional, não se emparedando a realidade sensível tanto à concepção dos
povos primitivos como à racionalidade científica dos teóricos metafísicos.
Mas no fundo, muitas vezes tal totalidade conceitual esconde o fato de estar a
serviço de agentes hegemônicos, como “totalidade fechada” ao “pensamento
único” dos seus interesses, armada, lembra Nicolas Tertulian, como se fora
uma teia de “reificações alienantes”, pela qual a intencionalidade e a
racionalidade instrumental tentam fazer da doxa burguesa epistéme universal
a reproduzir a estrutura de poder e as desigualdades socioeconômicas. Daí
18 Desde a Grécia Antiga esse fenômeno se esboça, com o pensamento cada vez mais laicizado e racionalizante a expor em requintadas amálgamas de efabulações, de que é exemplo o estudo da escola milesiana sobre a phýsis, bem como as que lhe sucedeu, o real materialmente em mutação. Vale recordar que ao homem primitivo tudo o que é desconhecido é enxergado como mítico, sendo religiosa e magicamente julgado como caos e desordem; entrementes, não apenas o primitivo sentia a necessidade de ordenar o caos, fazendo-o de modo sempre ilusório, munido da razão que se confunde com a fantasia, porque o homem moderno também guarda – inda que em menor proporção e sem tão forte dose de mistério – muito da propensão à fusão do racional com o imaginativo e o fantasioso, com “razões” motivantes que se distinguem da racionalidade técnica hegemônica. Decorre daí o fenômeno chamado de prolongamento e distanciamento das posições teleológicas para com a racionalidade que centra o trabalho e que embasa a sociedade; e muito embora se faça complicada a descoberta da ligação imanente e crescentemente ofuscada entre práxis e teleologia, dessa hipótese e pressuposto jamais pode se desfazer o pensar materialista-dialético, e mesmo que as razões se distanciem no tempo, além da materialidade da sociedade. 19 Não custa recordar ademais que o pensamento conceitual igualmente parte do caos perceptivo, rumando contudo à totalidade dialética, não se limitando à realidade sensível comum seja à concepção dos povos primitivos como à racionalidade científica dos teóricos estruturalistas e metafísicos. Daí que, desde os primeiros espaços materiais coletivistas se criaram seres divinais e espaços paradisíacos imaginários que, malgrado o desmembramento cirúrgico do corpo social pelo capital, do espaço material de produção em parcelas do orbe privatizadas, não eliminou aqueles espaços e seres mentalizados a priori. Depreende-se pois, que os processos de entendimento propostos na visão mítica e racional é que são heterogêneos, mas que não se deve conceituar a um como pensar banal, pré ou irracional e o outro como superior, racional e metódico.
33
que, por convencimento ideológico, o que é discordado fica sendo rotulado
como caos na ordem natural da história evoluída.
Ambas as formas de pensar encerram limitações. Uma
condizente ao estado técnico-interpretativo de conhecimento-manejo da natureza,
enxergados não sem certa inocência e ingenuidade. Outra potencialmente
portadora da capacidade de melhor explanação mas que, não por limitação
técnico-cognitiva e sim por artimanha político-econômica classista e
obscurantista, mantém-se acorrentada nada inocentemente ao cárcere prático-
teleológico dos que exercem dominância.
Outro não é o motivo ao racha no mirante da sociedade
civilizada, propiciado pelo fato de muitos escolherem outras lentes para ler o real,
que é embaçado e mal iluminado pelo farol/tampão da racionalidade técnico-
instrumental burguesa.
Tomados pelo fetichismo da mercadoria20 e pela inversão dos
fenômenos na consciência, “o pensamento cotidiano forma uma representação
caótica da realidade” (FREDERICO, 1997, p. 33). Uma das conseqüências está
no fato de o senso comum, de sujeitos que creditam relacionar-se com coisas que
significam por si mesmas, enrijecer o “mito trivial da antinomia ‘prática
totalmente material/teoria sem materialidade’” (SROUR, 1978, p. 35).
Confronta-se, de maneira formal e positivista, atividade
concreta/atividade abstrata, fazer/pensar, teoria/prática. Pelas portas do debate
teórico, o senso comum espelha determinado senso “científico” que, na rabeira do
empirismo simplista, serve à engrenagem econômica capitalista com o discurso da
neutralidade axiológica e da banalização e esterilização da teoria. O cientista por
aí faz, segundo a metáfora, o jogo da avestruz: desmerecendo as conseqüências de
suas descobertas, fugindo do compromisso com o espaço que gera ao esconder a
cabeça no subterrâneo do des(re)comprometimento.
20 A palavra fetiche atine a feitiço, feitiçaria, etc. Foi empregada pelos colonizadores lusos para caracterizar o fenômeno pelo qual os objetos inanimados recebiam imaginária animação pelos povos africanos; sendo posteriormente aperfeiçoada por Marx como metáfora a caracterizar o fetichismo da mercadoria. Em síntese, concerne à aparência ideológica das coisas na mente.
34
Eis por que o método deve olhar sempre pelo menos em dois
sentidos. Primeiro, ao ventre contextual da coisa no real ao qual quer interpretar:
relação coisa-realidade ou a relação coisa-espacialidade (idéia aproximada das do
sistema de objetos e sistema de ação, tratadas por M. Santos). Segundo: para o
ventre contextual experienciado e do qual são retiradas as leis: relação
pensamento-realidade, ou relação pensamento-espaço (espaço-mental-subjetivo e
espaço-social-objetivo). Relação sujeito-objeto. Que mantenha de tal modo a
correspondência entre o movimento do real e seu movimento interno, se preciso
for com a lustração constante das lentes.
Todo método comporta postura política, quando em busca ou
escamoteamento da verdade, pleiteando a praticidade técnica e aperfeiçoamento
lógico-instrumental ou a profundidade da relação entre forças e seres na realidade.
Disso não se pode livrar. O pensamento conceitual por isso, se se distingue num
primeiro momento do pensamento simbólico e imagético elaborado miticamente
numa determinada estrutura conjuntural, noutra ponta se discerne internamente
num multicolorido visual elaborado de acordo com a margem em que pisa o
indivíduo-pensante na sociedade estratificada. Com isso relativizamos a “verdade”
e o “avanço” do pensamento racional à história e à lógica espacial ao qual têm por
berço e que encorpado põe-se a embalar tecnicamente. Fixada a postura de
comprometimento com a verdade, aceitando-se que a noção que desta se tem não
é imutável21, o melhor que deve fazer o pensamento conceitual é o inter-
relacionar racional dos elementos homogêneos, com o fito de explicar a essência
do ser de modo desenvolto de imagens e simbologias (não só mítico-“primitivas”
mas ideológico-“modernas”), para que se alcance, por via lógico-relacional,
causal, necessária e dialética, a análise e a síntese, da realidade e do pensamento.
O pensamento lógico ou racional (ou o pensamento objetivo) opera de acordo com os princípios de identidade, contradição, terceiro excluído, razão suficiente e causalidade; distingue verdades de fato e verdades de razão; diferencia intuição, dedução, indução e abdução;
21 Deve-se evitar o extremismo comum a duas posturas: o da racionalidade do pensar burguês que infiltra nas ciências a lógica dominante, como também, erro cometido por ideólogos estruturalistas do marxismo, a proposta de se criar a “ciência proletária” contrária à “ciência burguesa”.
35
distingue análise e síntese; diferencia reflexão e verificação, teoria e prática, ciência e técnica (CHAUÍ, 2000, p. 164).
Adequadamente utilizado, o método pode ser o fio de Ariadne se
se colocar como condutor entre o ambiente dos corredores de mistérios que
preenchem os labirintos da metafísica com o ambiente da racionalidade
relativamente iluminada pela luz da ciência. Como pode figurar, acaso fragilizado
nas avaliações e conjecturas, como o calcanhar de Aquiles do corpus teórico.
O fato é que “O método decorre do que se objetiva apreender
(e) veste a roupa que lhe dá a teoria” (MOREIRA, 1988b, p. 60); entendendo-se
que “a teoria é um discurso explicativo do real (e) o que constrói a sociedade, o
que constrói o tecido social, é a linguagem”, alerta-nos a socióloga Ana Clara
Torres Ribeiro22. Teoria condiz com uma “rede de conceitos”, disse certa vez
Milton Santos. Conquanto relacionados, há que se saber distinguir entre método e
teoria: o primeiro orienta a teoria conquanto essa, baseada no concreto, o renega,
aperfeiçoa ou absorve elementos parciais a serem ressintetizados “noutro”
referencial metódico. Em determinados casos, pode um ser a forma e o conteúdo
do outro, interdeterminando-se mutuamente.
Como manifesto pelos professores duma instituição de ensino:
É preciso explicitar que método não é conjunto de regras e normas que servem para qualquer situação. Do mesmo modo, não faz parte das poções mágicas que servem para fazer feitiços e encantamentos. O método é uma construção do diálogo entre a teoria e o real que se pretende estudar. Falamos de um caminho construído, de uma travessia da síntese teórica e o mundo vivido. Falamos de uma pluralidade de vertentes e tessituras para o processo de desvelamento da realidade (UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE. Projeto Político Pedagógico do Curso de Graduação em Geografia, 2004).
Se o descrédito continua a resistir, indaguemos: método, por
quê? Simplesmente por ser o procedimento racional elaborado com o objetivo de
fazer caminhar o pensamento do desconhecido ao conhecido, como caminho que
se quer trilhar para atingir um fim: a verdade.
22 Fala proferida em aula de Pós-Graduação da UFF, em 5/6/2004.
36
Método como caminho que o caminhante define e redefine ao
caminhar. Deixando de caminhar, de pesquisar, de maneira materialista ou
metafísica, abandona o terreno da dialética e penetra na vala do estruturalismo, a
ante-sala do idealismo.
Aliás, na raiz etimológica da palavra grega, methodos provém da
junção de meta (através de, por meio de) com hodos (caminho, via).
Dos anos que fluem da era grega antiga à Renascentista Europa,
a dialética, como qualquer outro método inquiridor, recebe atenção especial como
lanterna do saber humano crescentemente laicizado e racional, que enseja
encontrar as causas do real junto ao mesmo.
Na atmosfera da Renascença muitos pensadores encheram os
pulmões para falar sobre a necessidade dum método o mais adequado e perfeito
possível, mergulhando a reflexão em sua caça com o fito de resgatar a verdade
sacudida pela queda do exclusivismo filosófico-religioso escorado em Aristóteles,
num contexto em que o europeu teve de passar a aceitar que os seus pares como
os outros que conheciam não eram os únicos no orbe; que outras terras e outros
povos desafiavam as explicações bíblicas; que o poder e as autoridades político-
religiosas instituídas (Igreja e Estado monárquico) não mais seriam as mesmas. A
Reforma veio abalar tais estruturas, injetando a dúvida e a incerteza no espírito
dos céticos que desabrochavam, turbados pelo movente solo econômico. Nem
Contra-Reforma, Inquisições ou assassinatos matariam o movimento.
Nos marcos do mundo novo, inexoravelmente “No alvorecer do
século XVI, uma geografia inteira se agrega ao campo da experiência humana”
(SOUZA, 1999, p. 95). Geografia que lentamente vai-se afigurando desafiante aos
valores reinantes. Instigando aventuras rumo ao conhecimento. Levando-os a
expedições concretas e a novas viagens teóricas. Alterando as nações, as noções e
os espaços reais, da mente e do corpo.
Diante de tantos, de imediato citamos três personagens que se
destacaram com copioso ceticismo, revelador da continuada falência das
concepções medievais: o alemão Agripa de Nettesheim (1487-1535) que
proclamou a incerteza das ciências; o médico português Francisco Sanches (1552-
37
1632) que negou as doutrinas aristotélicas e pregou a dúvida como recurso
metodológico, testemunhando que o homem nada pode conhecer com segurança,
nem o mundo e nem a si mesmo; e o francês Michel de Montaigne (1533-1592)
que punha sua fina ironia ao proveito de seu ceticismo para demonstrar como
fatores pessoais, sociais e culturais influenciam idéias de sujeitos que, fazendo-se
portadores de recursos analíticos racionais e verídicos, impõem superstições e
opiniões nada além de fanáticas a expender o que lhe comparecia inextrincável.
Montaigne especialmente, vai mais adiante que Francisco
Sanches, porque ele não disse apenas que o homem nada poderia conhecer com
segurança. Munido da filosofia cética dos anos tardios da Grécia antiga e intrigado
com a diversidade cultural e de pontos de vista que o mundo em Reforma e
Renascimento expressava, asseverou que o homem nada é e que por isso nada
pode saber, sendo-lhe a certeza inatingível, tamanha a descrença em um
conhecimento humano tragado e perdido entre influência diversas.
Por considerar que o saber nada poderia ter de sistemático e que
a tentativa de se ordenar o mundo é vã, o ceticismo de Montaigne teve bastante
repercussão por conta do mundo descrente e duvidoso, no qual certezas e valores
religiosos, filosóficos e científicos tombavam ao chão. O que não significa que
fosse ele envolvido por uma atitude liberal: pois valores políticos tradicionais e
conservadores definiam-lhe a conduta – avessa a alterações radicais nos sistemas
políticos –, além da postura como pensador também ser caracterizada pelo
ceticismo aristocrático inspirado nos gregos da Antiguidade.
No olho do furação, o fideísmo do francês Pierre Charron (1541-
1603) quase nada pôde ao tentar restituir o antigo superpoder da fé, dia a dia
menos inquebrantável.
Todos os pilares caiam. A nova visão de verdade e certeza que
se queria construir deveria arvorar-se do nada, sem utilizar os tijolos de muros
deitados, em busca de certezas científicas universais, permanentes e estáveis23.
23 Poder-se-ia sugerir qualquer proximidade entre o obscurantismo pré-renascentista e o da atualidade? Se naquele período o saber tentava se despir da ideologia teológica dominante, hoje as ciências sociais percebem que seu renascer relaciona-se ao despir da ideologia tecnológica
38
A procura pelo método caracterizará o final do século XVI e o
correr de todo o XVII, com pensadores a mais das vezes a se revezar em querer
casar a até então abominada ciência com a cegamente adorada teologia, do que em
divorciar qualquer uma delas. Ensejando colocar o conhecimento humano, do
divino e do homem, num novo patamar, não obstante.
Ascendia o Racionalismo como oposição, imediata ou indireta,
ao poder absolutista, fazendo com que tabus e visões de mágicos e alquimistas
sucumbissem frente à sede de querer saber e querer pensar.
A expansão dos domínios intelectuais, racionais e exploratórios,
tomava o lugar da simbologia subjetivista, tendo por base o cálculo e a
matemática inicialmente vangloriados pelo filósofo, matemático e naturalista
francês René Descartes (1596-1650), quem por primeiro reconheceu a sua
viabilidade, asseverando que a consideração da natureza oculta e insondável não
mais dispunha de assento na sociedade alvorecente, visto que o Deus racional a
torna inteligível mediante um sistema de leis racionais, porque é Deus quem por
primeiro cria as leis necessárias, que são de início voluntárias; e tudo que é
contrário à razão divina a Deus torna-se irracional e desprezível porque a
Descartes a razão não pode acomodar-se à contradição. A ordem natural das
coisas e da natureza é acessível ao espírito perscrutante que em Deus se arraiga.
Tudo, toda criação, ao Descartes detém intencionalidade divinal, a qual o homem
deve obedecer mas não como ignorante, pois a razão é a parceira à convivência e
sapiência das criações com as quais interage.
Não importa as críticas que tenha sofrido, acusado de empenhar-
se na metafísica finalista, refutando a experimentação e a negação demonstrativa
ou achegando-se à dicotomia idealista, pesa o modo inovador do seu raciocínio. O
início da modernidade na filosofia é por ele vincado. O alicerce do edifício do
saber ocidental tem novos tijolos, um novo método como coluna estruturante.
dominante, livrando-se da razão instrumental, imediatista e economicista que as atravessa. A proximidade está no caráter classista desses modos de produção (feudal e capitalista).
39
Pela senda em que infiltrou o pensar de Descartes, não o
deixando tão sozinho na ousada empreitada do pensar racionalizante, personagens
vários haviam-lhe precedido24.
Vão deste modo, cristãos e amantes da verdade rompendo
intelectualmente com a tirania obscurantista da Igreja, como fizera o frade e
filósofo italiano Tommaso Campanella (Giovanni Domenico, 1568-1639) e o
Jacob Böhme, entre outros que da religião oficial se afastaram, sendo criticados,
perseguidos ou à morte condenados.
A Itália fora pátria-mãe da Renascença, onde (o conhecimento
sobre) as forças da Natureza e a da Razão (lumen naturale) por primeiro se
opuseram aos poderes da revelação religiosa, ao poder político do cesarismo e ao
poder do dogmatismo mágico na vida, apesar de tão combatidos serem pela
Contra-reforma, pelo absolutismo e aristocratismo dominantes. Forças da re-ação.
A matemática era o bastião de quase tudo. O capital mercantil
estava na base da matemática, refundando-a sobre novos interesses.
Eis por que, alude Veit Valentin, “Com razão chamaram
recentemente o período de 1650 a 1750 o século da matemática” (1962c, p. 188).
A razão quer entender e impor regras à natureza, cujas forças
teimam em escapar-lhe, enviesada que está da desteleologicidade ontológica.
Abrandava-se no novo mundo a onto(teo)logia e a teleologia religiosas. 24 Pode ser incluído nesse rol o pai da astronomia moderna, o polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) que colocou a Terra no devido “lugar” no sistema (geocentrismo ptolomaico que, resistente mas revogável, cede ao heliocentrismo, não sem assassinatos: como o que a Inquisição impôs ao Giordano Bruno em 1600). Outros contemporâneos de Descartes também podem ser listados, como o astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630) que aperfeiçoou o sistema copernicano ao formular a teoria do movimento elíptico dos planetas, e o matemático, físico e astrônomo italiano Galileu Galilei (1564-1642). Extremando a visão de Descartes esteve o filósofo holandês Baruch Spinoza (1632-1677), estendendo a matemática aos domínios da ética e da moral, por considerá-la o método mais propício para se ocupar da essência e propriedade das coisas. A Spinoza, portanto, elementos tradicionais (como Bem, Sabedoria, Perfeição e Beleza) são valores antropomórficos provenientes da subjetividade ignorante e repleta de preconceitos, ainda que lhe fosse inescusável a ligação necessária e causal entre natureza e Deus. Assim ele descartava idéias de liberdade ou de contingência, porque tudo o que houve, há e haverá atrela-se à natureza divina de existir e atuar, sendo Deus-processo e a natureza-produto. A ciência, para ele, busca desvendar a necessidade, não o desvelar da teleologia, e um método preocupado com a essência das coisas seria o único capaz de distinguir a causalidade natural e a finalidade antropomórfica das coisas e de suas propriedades (natura naturans e natura naturata). O raciocínio é-lhe o pilar estruturante do verdadeiro conhecimento que a divisão da natureza deve averiguar; e no cerne desse saber que busca a essência e a necessidade das coisas está a promitente matemática.
40
A razão científica nega a metafísica pelo fato de a metafísica
querer ter a natureza por causalmente-divinamente determinada.
Experimentos espaciais vão sendo realizados. O que se coloca
em realce é a necessidade de construção da nova geografia e que essa possua
novos elementos edificantes doutra sociabilidade.
Entretanto ter-se lampejado na Itália, foi na Inglaterra que o
racionalismo vigorou. Reputada pátria do racionalismo político, nela inicialmente
se combinou o governo monárquico não mais absolutista com o Parlamento
durante a Revolução de mais de cem anos, que proibiu ainda a sucessão
hereditária no trono e fez priorizar a religião católica. Some-se a isso o aspecto
cultural de a Inglaterra despossuir qualquer visão negativa sobre a Natureza, não
tendo a Igreja adulterado-a como o fizera no continente, sendo o campo visto
como meio de lazer, descanso, práticas de esporte e fonte de estímulo à poesia.
Conta ademais o fato de que socialmente também não havia oposição entre
habitantes do campo e da cidade, com espaços citadinos e campestres de aromas
que cheiravam mais à harmonia que à cizânia.
Tais condições materiais e culturais mostraram-se propícias para
que as ciências naturais se alavancassem.
Outro importante nome é escrito no livro do pensar ocidental: o
do físico, matemático, astrônomo e filósofo inglês Isaac Newton (1642-1727)25.
Ao lançar o famoso capítulo primeiro da física moderna,
Newton substitui a metafísica de Descartes por sua física. Segundo ele, a dedução
cartesiana não mais deveria seguir-se como recurso confirmador de proposições
metafísicas, senão como elemento fundacional do saber semeado no solo do
experimental. A experiência e a observação constituiriam o pedestal do processo
científico.
Parte-se do primado da matéria-homem e não do da imatéria-
Deus. Mas Deus era o gênio da matemática a Newton e todos os mistérios do
25 Entre seus feitos, constam os estudos sobre as cores e a refrangibilidade e decomposição do espectro da luz (mostrando que a luz separada num prisma pode noutro ser ajuntada), além de importantes descobertas matemático-geométricas, inventos (telescópio de reflexão, p.ex.) e elaboração de cálculos ou teoremas considerados revolucionários à vigente e às vindouras épocas.
41
“livro da natureza” escritos em linguagem matemática ao homem tornavam-se
inteligíveis. Isso nos faz entender o porquê de:
O século XVIII foi um século inglês porquanto foi o século da origem do racionalismo e porque foi a Inglaterra que com a idéia do racionalismo transmitiu ao continente a idéia da Revolução (VALENTIN, 1962c, p. 191).
Aquele primaveril racionalismo engendrado pelo grego Hesíodo
amadurece sob o racionalismo inglês.
A seu modo estava Newton a conduzir a tocha da racionalidade
adiante, tomando-a das mãos de Bacon, Galileu, Descartes. Dando
prosseguimento à concepção de natureza como algo inteligível pela força da
observação e experimentação atenta e racional do homem.
E se as leis da natureza (basicamente o movimento celeste dos
corpos) se faziam inteligíveis pelo modelo explicativo newtoniano, as que
competiam ao funcionamento da sociedade igualmente passaram a ser
consideradas tão objetivamente atingíveis como aquelas.
No século XVIII, com a revolução epistemológica das ciências
cumulando, da metafísica translada-se à teoria do conhecimento que fará com que,
para o geógrafo Paulo Cesar da Costa Gomes (1996, p. 68), da essência do
conteúdo se quererá a “essência na forma”, nascendo “um movimento de
progressão do saber sem paralelo na História”, que se pôs a abandonar as
“disciplinas ditas literárias”, focadas nas essências do conteúdo.
Por revolução científica se tomou a identidade desse fenômeno
histórico, que teve como central o substituir das disciplinas literárias pelas
“científicas”, com novos métodos e modelos.
São todas transformações teóricas e científicas que, conjugadas,
desembocar-se-ão no fenômeno anunciante da tecnização, seja no mundo da
produção, distribuição, comunicação ou na tecnização da existência em todos os
sentidos, material e imagético, no campo e na cidade, em que a divisão
internacional do trabalho fez com que as comunidades patriarcais deixassem de
ser comunidades de trabalho (VALENTIN, 1992d, p. 233).
42
A contribuir com esse feito, aqueles iniciais rompimentos com o
saber secular. Secular não-duvidar (em especial o não-duvidar não contraditório,
conspirativo).
Assim ia o cientista tomando o lugar do personagem sábio. E
duas vertentes metodológicas se demarcam como grandes aberturas dispostas ao
pensamento moderno, nessa nova odisséia pela natureza da verdade da natureza:
uma delas foi a proposta pelo Bacon no suster da tese da necessidade da ciência
que se valesse da observação e da experimentação, através das quais
indutivamente se formulariam as leis sobre a ordem sistemática e geral ao se partir
da consideração dos casos particulares para se chegar às generalizações. Por
propugnar que a história da ciência funcionaria como a pedagogia do método
verdadeiramente científico, a influência baconiana se fez destacada (resvalando
entre outros na filosofia da ciência de Ampère e nas proposições de Comte, que
sobre a distância do observador frente ao objeto argumentava, a partir da venerada
“razão” positiva).
Entre o mundo sensível e o mundo inteligível, o único ponto capaz de separar a percepção personalizada e imediata do conhecimento geral, universal e objetivo é o método científico. A enorme importância atribuída à objetividade, fetiche do discurso científico, vem desta possibilidade de construir um objeto do conhecimento por intermédio do método (GOMES, 1996, p. 69).
O intuito de desmistificar o Oriente fantástico, pragmático e
místico influenciara Bacon a querer desenvolver a ciência experimental (scientia
experimentalis), levando-o a estudar o Secretum secretorum26, e isso por
pretender revisitar o inquestionável saber dominante ancorado no Aristóteles.
Contemporaneamente a ele, fortes rumores de passos teóricos
eram ouvidos doutro homem: o Descartes de que há pouco falávamos.
O racionalismo moderno arraigado ao Descartes punha nas mãos
da razão, modelada exemplarmente nas ciências matemáticas, a tarefa de
recuperar a certeza científica pelo enfrentamento do “gênio maligno” da dúvida,
26 Referente ao compêndio árabe de política, medicina e magia supostamente escrito por Aristóteles para Alexandre, o Grande, com o intento de que dominasse o mundo.
43
fazendo da “dúvida metódica”, nas palavras de Durant, “o pré-requisito do
pensamento honesto que acabe com as teias de aranha” (2000, p. 140).
Encarnando a divindade platônica, na ontologia de Descartes Deus é Bom, e como
Bom que é não poderia deixar que o homem se enganasse. A res infinita (Deus)
destarte far-se-ia a fonte para a res cogitans (pensamento) que tenta apreender a
res extensa (coisa externa, entorno, meio circundante e separado do corpo27).
Ainda que não o fosse negado, percebe-se que o Deus agora já
não é o da religião e sim o que fundamenta a ciência. Aqui o bom Dieu substitui o
malin génie que – herança cética herdada de Montaigne – quer atrapalhar o saber
humano. A Deusa-Razão ou o infalível Deus cartesiano ama o saber, não
permitindo que a mente humana se perca em ficções. Maior motivo não haveria
para o venerar de tal Deusa no Iluminismo do século XVIII.
O método procede no aclarar da realidade pelo estabelecimento
de conceitos claros e distintos, atentando cuidadosamente à precipitação e à
prevenção para evitar idéias preconcebidas, mantendo-se acesa a chama da
dúvida.
De mãos dadas mais com a luz da Deusa-Razão do que com as
visões dos outros pensadores, Descartes prossegue propositadamente apartado a
tentar humildemente dissipar as turvações que pairam sobre as mentes humanas.
Respaldado no tradicional postulado do atomismo
individualista28, o método de Descartes considerava as relações humanas reflexas,
reflexos de estímulos captados pela inteligência humana: a substância colocada na
27 Em aula na Pós-Graduação na UFF-Niterói, no dia 15/5/2004, Moreira relatou a proximidade de Descartes para com o pensar platônico, que separa o eu do mundo, negando o corpo. Descartes, pelo mesmo viés, verá o espaço tão-só como extensão e metricidade. Segundo ainda essa proposição, Moreira vai relacionar a atualidade das teorias do eu desencaixado do francês Anthony Giddens aos enunciados de Descartes. Enquanto que Emmanuel Kant (1724-1804), por sua vez, ainda que o tendo por continente (social e natural), penderá do geometrismo ao perpectivismo do espaço, dum sujeito temporalizado e desespacializado, porque a Kant o espaço não é nem absoluto e nem relativo mas o percebido, o existente apenas intuído, onde homem e natureza se distribuem. Após discorrer sobre as concepções que possui o espaço, como o praticado, o percebido e o imaginado (tratado por Lefebvre) ou como condição de manutenção do poder sobre o corpo (do qual versa Foucault), Moreira arremata classificando-o como o estar do ser no mundo, como a tensão entre o uno e o múltiplo, dimensão de relações como elas mesmas. 28 Por vários momentos nesse texto se poderão perceber autores filiados a essa idéia, não importa os séculos a que pertenceram: se o XVII (idéia compartida por Thomas Hobbes, 1588-1697), XVIII (Gottfried Wilhelm Leibniz, 1646-1716) ou qualquer outro.
44
glândula epífise por Deus, a diferenciar o homem dos animais inferiores (DORIN,
1980a, p. 218).
Concebe Descartes que o homem detém certas idéias inatas.
Além de os próprios homens possuírem potencialidades intelectuais diferenciadas
lhes atribuídas distintamente por Deus – o que de certa forma aponta à tradição
antiga, que sem grandes esforços identificamos em Virgílio (70-19 a.C.), como
também ulteriormente em Dante e Campanella.
Sabedor contudo que Deus abençoa os homens com
potencialidades intelectivas distintas e certo de que o melhor pensar condiz o
realizado pelo indivíduo solitário, humildemente Descartes não se incluía no rol
dos mais bem dotados pelas forças divinais. Ficando tão-somente a indagar sobre
as idéias e potências inatas: em como seriam as crianças se sua vontade e razão
seguissem sem que reprimendas as cerceassem desde a infância, com tradições e
influências dos predecessores se lhes atravessando (DESCARTES, 1999, p. 26,
44-45).
Problemática da ciência cartesiana, que primava pelo alicerce do
trabalho da inteligência isolada.
Do alto da iluminação divinal manifesta em sonhos, esse ex-
soldado francês alinhou-se em combate às visões deturpantes e embrutecedoras,
em procura da verdade racional e científica por meio do método especado na
álgebra e aritmética, para que a física da natureza se fizesse despida aos demais
humanos (DESCARTES, 1999, p. 36 e 52).
A álgebra, a geometria e em especial a matemática serviam
“tanto para satisfazer os curiosos quanto para facilitar todas as artes e reduzir o
trabalho dos homens”, tendo em vista que os princípios matemáticos são os mais
“seguros e sólidos” (ibid., p. 38 e 40).
Continha a matemática o fio de certeza lógica que resistia aos
ventos das transformações, permitindo que o homem desvelasse a ordem e as
verdades emanadas de Deus, que é quem dá ordem ao caos (ibid., p. 70-71).
Mais: era a tal verdade o que incomparavelmente se
multiplicava no mundo moderno, seja na arquitetura urbanística, nos edifícios e no
45
traçado das ruas. E é por isso que a geometria cartesiana tenderá a representar a
física do espaço e do mundo exclusivamente pela extensão, por ser-lhe a Natureza
geométrica. Eis o elemento primordial da matéria e a característica da
corporeidade dos corpos sobrelevada por ele.
O autor institui como garantia da objetividade o entendimento
subjetivo da existência de Deus, como entende sê-lo. Porque Deus existe, também
existirá o mundo exterior, numa conectividade que tem por causa primeira a
existência da res infinita que fundamenta a existência da res cogitans, da qual se
erige a certeza da existência da res extensa.
O Deus (infinito) de Descartes é-lhe intermediário entre duas
coisas (finitas): o eu que pensa (pensamento humano) e o fato de que tenho corpo
(mundo físico). Razão para que a partir de suas concepções:
Toda distinção possível provém da forma, do tamanho e da posição relativa. A natureza é geométrica e, pela primeira vez, aparece claramente uma noção abstrata do espaço; a princípio vazio e isonômico, este se define pela posição, pela forma e pelo movimento dos corpos que o ocupam (GOMES, 1996, p. 73).
Não à toa a noção de espaço abstrato tenazmente entranhar-se na
geografia nos séculos que sobrevém a Descartes, que solitário persegue a verdade
com o a tocha da razão das mãos de Deus recebida. E isso porque a racionalidade,
desprestigiada pela mitologia do mundo antigo e pela filosofia escolástica, galga
suficiente autonomia, até, lentamente, começar a andar por si mesma.
Comedido que era, todavia, guardava sempre o francês o recurso
da dúvida como base do consistente saber, com postura humilde a justificar que,
acaso enganado, “talvez não seja mais do que um pouco de cobre e vidro o que eu
tomo por ouro e diamante”; perfilhando suas limitações e “fraquezas” jamais
pensou dar a fórmula acabada e por isso ser “censurado”, narrando apenas como
“fábula” o que a razão permitia-lhe entrever (DESCARTES, 1999, p. 36-37).
Notamos que inda que imerso o pensador em dúvidas e defensor
do solitário cogitar, o método infundia-se como que necessidade à época, como
46
forma de reordenar a mente a partir do mundo estremecido. Todos, duma ou
doutra maneira, pressentiam que:
Era preciso achar a via – o hodos dos gregos – que levasse à meta ambicionada: precisava-se achar o método para a ciência (e) As matemáticas eram as promessas de se ir além de Montaigne (PESSANHA, 1999, p. 9 e 14).
O método corresponde ao interesse pelo organizar e regular
racionalmente o pensamento, em qualquer processo investigativo ou
demonstrativo. Obviamente que varia ao longo do tempo e nos lugares pelo fato
de que a forma como se lê a realidade está imbricada à cultura a que se encrava o
sujeito e ao modo pelo qual se estrutura e se reproduz materialmente a sociedade a
qual se insere, conforme as leis escritas espacialmente29.
Para o desentenebrecer da legalidade, do movimento
autocontido, desteleologizado e contingencial da natureza e a ontologia do
movimento da determinidade social do trabalho que com ela dialeticamente
interage, convém desmistificar a transição havida entre as duas formas têmporo-
espaciais de concreção teleológicas do ser, analisando-se a intencionalidade
material implantada como dínamo-movente das posições teleológicas secundárias.
Para que tenhamos por captada a essência latente da
intencionalidade da logística espacial é necessário que nos apercebamos das
diferencialidades dos caracteres que faz a cada uma dessas configurações
teleológicas uma singular, pois vemos que cada um dos pensadores citados
encontrava-se envolvido em determinadas conjunturas espaço-temporais, com
possibilidades/limitações e interesses/posturas pessoais/sociais.
Provavelmente sem ter consciência plena das conseqüências
reais, a visão matemática e geométrica cartesiana, assim como as concepções de
29 Ao Aristóteles o método se punha como instrumento capaz de poupar tempo com tergiversações inúteis, anódinas e mendazes, para que a essência do real fosse conhecida sem estéreis delongas e distorções, o que o opunha ao Platão que, motivado pela contradição em idéia, ambicionava desvestir a essência imutável e eterna das aparências enganadoras. No seu encalço o Descartes, cuja mente por-se-ia como matéria-prima a decifrar os mistérios da intencionalidade divinal da criação, existência e movimento das coisas e dos seres no plano da espacialidade geométrica.
47
inteligência e de homem, ajudará a criar o distanciamento homem-natureza talvez
só inferior ao que se solidificou entre os próprios sujeitos sociais.
Com isso, a muito tradicional dicotomia sociedade/natureza30
tem recobrado seu fôlego nos corolários cartesianos e também newtonianos. E foi
pelo esteio de premissas teóricas de fundo cartesiano-newtoniano-kantiano que o
espaço geográfico burguês fez-se configurado como palco geométrico à exterior
natureza-máquina que se tenta decompor analiticamente com vistas a que na
posterior remontagem se tenham em mãos as leis mecânicas dos movimentos
causal e gravitacional de que “os homens” devem prático-racional-
instrumentalmente tirar proveito.
Assim manejam-se os espaços métricos: fragmentando-os,
medindo-os, coligando-os. Como peças trabalhadoras que são, os indivíduos que
neles se encontram devem sofrer com desterramento, deslocamento, migração,
reterritorialização (quando não, descarte) onde e quando apontar o vento da Força
da Natureza (social dominante) ao adejar das andorinhas humanas.
A cosmização material do espaço do capital seguia a passos tão
ou mais largos que o de sua esfera superestrutural, oxigenando-se das intenções
dos que exercem soberania. Isso pressupõe clareza sobre a problemática do saber,
isto é, mais do que nunca, desse momento em diante da história deve-se
compreender que uma coisa é a realidade como ela é, outra: o conceito que dela se
faz.
Apresentação e re-presentação não são sinônimos, nem enxergar
e ver. Entre o ser e o pensar e o signo e o significante: a distância do observador, a
qualidade dos óculos (método) que o possibilita enxergar e o não menos relevante
interesse social que inicialmente fê-lo querê-la mirar: a) a vaidade (dos gregos ou
dos modernos) para que a discussão seja ganha ou somente que perca sentido de
30 No dito começo do tempo-espaço natural, teria Adão ouvido de lábios divinais: “Vede, entreguei-vos todas as plantas e sementes férteis... e toda árvore na qual o fruto produz sementes; serão o vosso alimento... Crescei e multiplicai-vos, enchei a Terra e a submetei; dominar os peixes do mar, os pássaros do céu e todos os seres vivos que se movem sobre a Terra”.
48
ser31; b) a validade (de pragmáticos e técnicos burgueses) ou; c) a verdade dos
que se empenham com o saber útil, para todos.
O que “é” natural não está desprendido da construção social,
seja pelo baixar do olhar do sujeito ao objeto ou pelas razões explícitas ou
esconsas que o subjazem, interferindo a posteriori, mental e materialmente, na
relação do sujeito com a natureza.
Do desconhecimento histórico que é geral, cruza-se como que
num passar de mágica ao terreno das inverdades elaboradas com o fito de
prolongar e aprofundar premeditadamente a ignorância/estupidificação do social.
E a visão hegemônica está na paisagem (landschaft), empírica e simbolicamente,
respondendo silenciosamente ao espaço que brada o ser capitalista.
As posições teleológicas secundárias cá estão. Equivalendo-se à
substância “conceitual” radicada nos séculos XVIII e XIX ao termo ideologia32.
Eis por que o conceito nunca é o real, mas a forma na idéia que
dele se tem, a qual pode tanto proporcionar a necessária aproximação mental,
como a ceguidade, intencional ou não, para com a realidade deparada. Preciso faz-
se a compreensão processual da função estrutural-estruturante da forma.
Ficar preso em conceitos estanques implica manter-se
simpatizante do estruturalismo lingüístico, preservando o pensar na estase da
mente e no aceite das formulações hegemônicas rigidificadas que, se muito, se
movem ciclicamente na raia metafísica do “neutro” saber técnico.
31 Karl Jaspers, sobre a tentativa antifilosófica burguesa de desacreditar a filosofia em nome da sociedade consumista, pragmática e tecnocrática, delatou no século XX que “Quanto mais vaidade se ensine, menos estarão os homens arriscados a se tocar pela luz da filosofia”. 32 Como defendia a postura antiteleológica, antimetafísica e antimonárquica adotada pelo grupo de Destutt Tracy na aurora do século XIX, a ciência das idéias que pelo artifício da razão construiria o universo de idéias (ideologia) ao bem geral e comum segundo o aparecer dos fenômenos da realidade que também porta aparências, por ardil napoleônico impregnou-se o conceito de ideologia de sentido diametralmente oposto, sendo exatamente os seus formuladores tachados por Napoleão de “tenebrosos metafísicos e ignorantes do realismo” em fala ao Conselho de Estado em 1812 (CHAUÍ, 1991, p. 24-25). A ideologia de esse momento em diante representa o projetar de maneira universalizada da visão invertida e particular dos interesses privados duma classe, tal qual Marx e Engels (1996) vieram a tratar. A linguagem e a comunicabilidade ideológica burguesa estendia-se a esse e aos demais conceitos e visões pairantes, como o de Natureza, Trabalho e tudo que se tivesse por interessante de se fazer “saber”, já que em armação prosseguiam as injunções das posições teleológicas da classe que agora tinha o cetro em mãos.
49
As posições teleológicas diferenciam-se propositalmente, e a
ideologia como crença verdadeira diante do que se re-apresenta mentalmente, com
vistas a clarificar a realidade a todos, passa a ser veiculada como saber
obscurecedor, na câmara invertida da percepção opaca, como saber deformado,
parcial, fragmentado e mutilado da realidade, refletindo/projetando fatos como
totalidade abstrata, a qual, como sistema fechado em aparente coerência, em
sendo continente de meãs-verdades, intencionalmente deixa os interesses
perversos às sombras da consciência científica e em prejuízo da maioria.
Inexistindo o conceito original de ideologia como salvadora da
humanidade, resta divisá-la do de ciência concreta. Querer separar o joio do trigo
implicaria hoje a distinção da falaciosa e burguesa ciência abstrata daquela que
poderíamos ter por social e coletivamente comprometida ciência concreta?
No atual contexto de hegemonia das posições teleológicas
classistas ao extremo conduzidas, a ideologia não mais posteriormente é
incorporada para sancionar a realidade objetiva; vem-na encravada nas coisas
socialmente produzidas, como modos particulares de re-presentação do mundo
das coisas que se impõem como universalidades ideológicas abstratas aos olhos
dos homens, encurralados assim nos guetos histórico-ideológicos da cosmogonia e
cosmologia dominantes.
Daí que todo o desenvolvimento histórico, calcado na
contradição entre as forças produtivas e as relações de produção, ocorre como
processo natural33 mas, conforme afirmação de Marx e Engels, isso não quer dizer
que o processo natural se realize sem sujeito histórico, “sem consciência” e idéias,
vez que o sujeito histórico influi contraditoriamente com certo grau de
consciência, não importa se com “ilusões” ideológicas (jurídico-políticas,
pertencentes à superestrutura) e desprovido do conhecimento verdadeiro do
processo.
33 Vários pensadores comparam o desenvolvimento natural de organização da sociedade com o da criança, que evolui da infância à adolescência até – finalizando a pré-história natural da espécie, via revolução – saltar em frente inaugurando a idade da razão, a história consciente, planificada e organizada, com a consciência (ou instinto consciente) a tornar-se conhecimento e razão.
50
Mesmo Jean-Paul Sartre (1905-1980), filósofo, escritor e
teatrólogo francês, n’O existencialismo é um humanismo (1998), em escrevendo
sobre o caro tema da liberdade, sustentava a relativa responsabilidade que
possuem os sujeitos, apontando para o caráter das escolhas que se lhes interpõem
no percurso da vida34. Sem a mesma filiação teórica, todavia, se muito ousarmos
aferir, com certa similaridade, o renascentista francês La Boétie (1982) assinalava
à relativa culpabilidade que possui o dominado ao permitir que o poder continue a
massacrá-lo. Postulação teórica que respingou, entre outros, em teóricos como
Nietzsche, Freud, Valéry, Claude Lefort e Hannah Arendt (ABENSOUR, 1999).
Postura tácita e servil alimentadora, direta ou desveladamente, da sociedade
tirânica, ressoou Chauí (1999) sobre o enunciado do renascentista francês.
Foucault (1978) também não deixou de mencionar a estatização por que passa a
sociedade ao reproduzir cotidianamente a microfísica do poder. Vê-se que contra
o “estado de pureza” do ideário que tenta confinar o poder na institucionalidade
oficial, está a visão, qual a de Srour (1978, p. 48), de que o poder não está
confinado em organizações estatais repressivas, pois todo aparelho (de
conhecimento ou de Estado) é um sistema no qual forças se enfrentam e colidem,
consubstanciadas em organizações particulares.
Proximamente demonstramos como a sociedade estatizada
capitalista de escravidão assalariada e não-assalariada reproduz, por vias
extraparlamentares e nos mais diferentes dutos de sociabilidade, a cultura
hierarquizante e concorrencial. Realçando não obstante a penosa tarefa de
demarcação entre macrofísica e microfísica do poder, quando começa e quando
finda a autonomia individual e a tendência sócio-cultural perpetradora das
tradições hegemonicamente direcionadas pela sociabilidade capitalística legal e
informal (RIBEIRO, 2001b).
Do universo hegemônico, centrado pelo astro capital, é donde
emana o pensamento único que comanda a órbita (cósmica) da moderna teoria da
34 Para título de comprovação, ver o filme O preço da ambição, em que um dos personagens “foge” da escravidão empresarial moderna tornando-se opressor, em evidente livre-escolha pelo poder a qualquer custo. Na outra ponta, compare-o com Monster, filme baseado numa história real, no qual a protagonista se torna assassina por falta de opção e de liberdade de escolha.
51
defesa do caos, volteando em redor da indeterminação e do imponderável, como
de igual modo em amparo às razões extra-social ou divinal, cada qual e todas
juntas acoplando-se sistematicamente ao movimento metódico de compreensão
fatalista da realidade, com arquétipos teóricos (classistas, individualistas,
naturalistas, espiritualistas, desistoricizantes, desespacializantes, caoticizantes)
que querem fazer crer que tudo o que há é a extensão de dimensões naturais e que
nada se pode contra a natureza a que se pertence, porque o espaço social
(imperialista) nada mais seria que palco terrenal torneado pela complementação
inevitável da etnicidade evoluída – como a leitura teórica da evolução hegeliana
pelo viés da cultura nacional – interagida com porções do globo ricamente
abençoadas pelo supra-ser, sobrenatural.
Tenta-se de modo nada inocente, na arena da Geografia, fazer do
espaço fotografia congelada. Resultado da força da natureza evoluída ou da
conjunção terrena de forças exteriores à sociedade. Ou ainda instância em que se
cumprem contradições típicas de sociedades “simplesmente” complexas, e que
por via de conseqüência apenas se “refletiria” o espaço como o dado passivo no
“curso natural (ordenado ou desordenado) das coisas”.
Longe não obstante da abstração como faina metafísico-idealista
do Espírito ou da razão absolutista do Absoluto que se revelaria na consciência do
ser pensante como fator extra-social contatado, como distante igualmente das
filiações teórico-naturalistas que o têm por fator externo e indeterminado pelo
homem, está a postura científica que se identifica com a noção do trabalho como
prática humana a acompanhar/recuar/penetrar/avançar mentalmente na
relacionalidade do concreto espacial, com filiação agora daquele geométrico
espaço cartesiano-newtoniano-kantiano em enunciados teóricos leibnizianos-
einsteinianos-lefebvreanos, de que se ocupa Oliva (2001). Ou quem sabe se possa
ainda filiar a primeira tradição aos pressupostos eleáticos e pitagóricos (ideação de
números nas formas e expressões espaciais), conquanto a outra, ao primado
heraclitiano, fazendo com que haja a transladação da tradição idealista-
quantitativista-pitagórica à preocupação relacional e unificadora, ou materialista-
qualitativa-heraclitiana.
52
Em meio a outra postura e munido doutro propósito é que
começam a se cristalizar correntes paralelas do saber científico inconformados
com o pragmatismo fortalecedor da mecanicidade desumanizante e embrutecedora
do ser; feição que mais tardiamente a Geografia será adepta.
O método, que muitas vezes fora assemelhado à metodologia
pela força do pragmatismo burguês, desabrocha agora com outros coloridos.
Trabalhando com outro viés que os assinalados, ao materialismo
a prática é a mãe da ciência e “É na prática que o homem deve demonstrar a
verdade” (MARX; ENGELS, 1996). Assim, se foi a consciência que fez do caos
ordem, no intelecto do homem, fê-la inicialmente através da prática, como
produto do trabalho e não do “espírito”; com o que o “homem instintivo”, que da
natureza não se achava disjunto, foi aumentando o domínio com seu
conhecimento, destacando-se dos demais animais, errando (desperdiçando energia
e recursos) e com os desacertos aprendendo. Os demais animais, possuidores
exclusivamente do entendimento prático-determinante atado à experiência,
mostravam-se incapazes de como o homem pensar dialeticamente, refletir em
nível conceitual e se propor ou negar a agir por meio da razão geograficamente
apreendida (memória), praticada (vivida) e tencionada (projetada).
O trabalho teórico crítico não se divisa do trabalho concreto na
sociedade do capital. Quer libertá-la.
Se o homem que surgiu da natureza como uma sua forma
especial o fez por intermédio da prática e sem dela apartar-se, mais e mais
aprofundando e penetrando-a, com uma tal proeza também se devendo à
consciência que brotada da matéria e com ela retrabalhando, fez evoluir o fator
material de maior relevância ao pensamento: o órgão cerebral, produto superior do
desenvolvimento da natureza. Bem ao oposto do que advogam os metafísicos, o
homem não se separa da natureza, diferencia-se desta, e ela não existe ou se põe
como objeto à consciência humana, mas a consciência humana é que reponta da
natureza com fôlego sempre redobrado em cada novo mergulho em suas
profundezas realizado. Isso porque a natureza não é um produto à consciência, a
consciência é que é o “produto” da evolução têmporo-espacial da relação homem-
53
meio atingida, e que teve seu desenvolvimento entrosado à satisfação e criação de
novas necessidades a partir da divisão do trabalho, que tornou-as, a consciência e
a sociedade, sempre mais complexas. Eis por que o homem possui inteligência,
deixando os comportamentos repetitivos e automáticos adquiridos pelo instinto
(inato) e pelo hábito (pensamento prático imediato e momentâneo) e que, ao não
serem readaptados a outras circunstâncias e a outros fins, erguem-se como cercas
ao reino animal do qual se sobrelevou a inteligência prática-instrumental e teórica-
abstrata do homem: plástica, flexível e maleável porque ao homem apresenta-se a
capacidade e a potência de transformar objetos e ambientes, lembrar situações e
lugares, esperar pelo contexto que virá, organizar a situação e os dados presentes
e imaginar novas conjunturas ausentes; tudo junto potencializando ao homem a
representação do mundo e a atuação prática sobre ele, geografizando o espaço que
o apraz, modelando a paisagem que mais justamente lhe acomode (ética) e o
agrade (estética).
Por mais que alguns teóricos renascentistas tivessem enlevado
epistemologicamente a questão do saber a novos patamares, geralmente figurava o
tratamento vertical-metafísico-idealista em tais proposições. Mesmo muitos dos
que defendiam o experimentalismo e o sensualismo como genitores do saber não
o faziam no plano da horizontalidade-físico-concreta da sociedade real.
Paulatina desdivinização. Célere naturalização. Problema: a
prática que evoluiu o saber e o conhecimento que se progrediu com o fazer
geraram não apenas o destacamento do homem para com a natureza, como do
homem para consigo mesmo, alienando-se, desumanizando-se e objetificando-se.
O Homem anteriormente, para certos filósofos, evoluiria, se
desalienaria e se humanizaria caminhando pela vereda das idéias para Deus. O
Homem para os idealistas utópicos deveria caminhar, sonhando, na direção dos
seus pares. E para os materialistas dialéticos, o Homem (sociedade) se reencontra
com prática e teoria concretas, expurgando violentamente os engenhos e os
engenheiros de sua degenerada situação...
Também não podem ser esquecidos os filósofos que
asseguravam a naturalidade da situação concreta como ineliminável, já que além
54
da potencialidade humana de antevisão, desvio e reposicionamento ante o curso
casual e caótico do real. Por irônico que se nos pareça, nesse ponto é que muitos
pós-modernos e irracionalistas que tentam fazer ou tomar a ciência por exercício
diletante, se atolam em contradições, pretendendo negar o movimento da natureza
que os fornece a própria capacidade histórica de pensar sobre a espúria inutilidade
de teorizar a coerência do real. Embora isso, o movimento segue a contragosto dos
irracionalistas e desconstrucionistas, que se não podem impedir o movimento do
real tentam desacreditá-lo como significante à descoberta, como tentam-no aferi-
lo como inextrincável à vã tentativa do ser pensante35. (Em verdade, essas
posturas pós-modernas, pós-marxistas ou pós-racionalistas, indiretamente que
seja, desnudam a luta ideológica na ciência, um dos aspectos da luta de classes36)
Filósofos do naipe de Hegel, parafraseado por Lefebvre (1995,
p. 21), muito ao longe dos irracionalistas, advertia-nos que fora justamente a
ciência acumulada ao longo de gerações que esteve a cooperar na formulação de
noções, princípios e verdades que “reduziram o caos empírico”. E é por isso que
a razão hegeliana não é intemporal mas influenciada pelas tradições e por
determinadas “condições materiais”, sendo levada adiante pelo seu idealismo
filosófico perseguidor da verdade e do conhecimento (idem, 1981, p. 98-99),
conferindo o mais rigoroso trabalho de conhecer à potência que acompanha a
humanidade desde o seu iniciar evolutivo.
Combate feroz pois, entre “teorias” antifilosóficas,
antimetódicas e irracionalistas com as filosofias embasadas metódica e
racionalmente.
35 Procedimento parecido a esse dos que tentam raciocinar sobre a irracionalidade da sociedade (e que o fazem em instituições universitárias escolhidas a dedo por financiadores nem um pouco irracionais) é demonstrada pelos prosélitos da teoria do fim do trabalho, que passam noites a fio “trabalhando” (teorizar como trabalho abstrato remunerado e não-produtivo) para negar o trabalho. 36 O momento, segundo o que pretendem os pós-marxistas, parece ser o oposto daquele da Grande Revolução de 1789-1793, que contrariava o travamento do livre pensar científico causado pelo pensamento único da teologia medieva, elegendo o primado da Razão e da Liberdade, ao passo que hoje o que se coloca em defesa é justamente a Des-Razão e a Obscuridade como primado da pós-modernidade totalitária (do não-pensar filosófico ou do pensar único técnico-mercantil). Na raiz da diferença entre os períodos, a “mesma” classe que suplantou o pensar medievo das antigas classes monárquicas e eclesiásticas com a ajuda dos Enciclopedistas, e cujas bandeiras agora querem enterrar: a re-novada burguesia.
55
Como “caniço pensante”, como aludia o francês Blaise Pascal
(1632-1662), o homem pensa porque existe e sabe, se ousarmos reformular o dito
cartesiano37. Pensar vem do latim pendere: pender, suspender, pesar, examinar,
ponderar, avaliar, compensar, recompensar e equilibrar, e seu sentido se equivale
ao de outros dois termos: cogitare (colocar diante de si algo a ser avaliado) e
intelligere (da junção de inter: entre e legere: colher, reunir, juntar, escolher e ler
as palavras, ou conhecer e entender).
Todo saber é espacial, mesmo que aparentemente
desespacializado. No principiar do social, nos primeiros bosquejos de existência,
por pouco que o fosse, recorda Lefebvre (1995, p. 34), o Topos já era “o homem”
e era Logos pois foi pela prática concreta (trabalho) do fazer e refazer do lugar
(topos), instância pré-social e pré-espacial até então, que “o homem” fazia e se
refazia cognitivamente (logos). Como noutro momento proclamou o Engels, “foi
na medida que o homem aprendeu a modificar a natureza que seu pensamento
cresceu”. Com igual sentido Géza Szamosi (1988, p. 63) afiança o conceito de
espaço dos primitivos como “experiência espacial”, com mundo real e mundo
simbólico se entremeando, haja vista que os símbolos possuíam o “significado
emocional” do espaço comunal concreto, fosse-o bem ou mal quisto.
Com poucos esforços sabemos que a atual e hegemônica
simbolização abstrata do Espaço, da Natureza, da Filosofia, Ciência e Método está
mais próxima de ideação perversa do que de inocência, com num outrora remoto.
É preciso se estabelecer a “rede de linguagem” (RIBAS et al.,
1999). Evitar a rede dos “jogos de linguagem” da literatura pós-moderna (as
37 Avançando da postura de tudo questionar, concebeu Descartes que: “Porém, logo em seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa” daí “esta verdade: eu penso, logo existo”. Crente nas almas que se desterrenam e se sobrelevam às “máquinas móveis” e “autômatos” corpos, tinha no poder do duvidar a comprovação de que deveria irrefutavelmente existir como ser-pensante; e o pensar firma-se como substância do ser, independentemente de lugar e de coisa material porque “a alma, por causa da qual sou o que sou, é completamente distinta do corpo e, também, que é mais fácil de conhecer do que ele e, mesmo que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é” (DESCARTES, 1999, p. 62). A alma, dimensão incorpórea do pensar abençoada por Deus, vai conduzindo o pensador nas veredas das verdades manadas de Deus e impressas na natureza, visto que verdades e pensamento não surgem do nada e do vazio mas do Criador que as fazem raiar a nós, seres imperfeitos que alcançam com Sua ajuda a perfeição de Seus projetos ideais (id., p. 63-66). Ver: SANTIAGO, 2005.
56
figuras de linguagem, metáforas e valorização do discurso no mundo das idéias),
que se assemelha ao método idealista dos eleatas.
Linguagem e inteligência são inseparáveis, diria Piaget. (E
talvez por isso as inteligências que jogam com a linguagem queiram universalizar
de modo anistórico e a-espacial a confusão momentânea do aprofundamento da
complexificação societária)
A consciência porta o potencial de simbolizar e prosperar a
capacidade de manejar feições cada vez mais abstratas, desenvolvendo-se pela
vereda da inteligência prática (espacial). Em termos metafóricos, poderíamos
descrever que a linguagem age como se fosse o corpo do conhecimento que se
move e atua no topos, ação que por desdobramento remodela o corpo do saber
acumulado e transmitido, do percebido, memorizado, imaginado e articulado.
Como via de mão dupla, a linguagem permite à inteligência “Comunicação,
informação, memória cultural, transmissão, inovação e ruptura” enquanto essa
oferece à linguagem “Clarificação, organização, ordenamento, análise,
interpretação, compreensão, síntese, articulação” (CHAUÍ, 2000, p. 156).
Linguagem e razão relacionam-se porém conflituosamente
devido à dialetização verificada entre imagem (percebido, visto, apreendido) e
comunicação (falado, dito, cantado, pintado, escrito) no mundo da re-a-
presentação.
Pelo conhecer metódico “A impressão sensível de desordem do
começo dá lugar a uma certeza racional de ordem”, pois da “reflexão intelectual,
por meio do método” podemos retirar as coisas do campo do “indeterminado”
(MOREIRA, Categorias, conceitos..., p. 195). A teoria permite integrar o que
poderia permanecer “como experiências fragmentárias e peças isoladas do
conhecimento” (SMITH, 1988, p. 11).
Ao banir o caos o homem (re)institui o espaço cosmizado.
A determinidade ineliminável do trabalho (mental e prático) que
atravessa e baliza a evolução da sociedade e dos espaços, sem que negue o
indeterminado como descontinuidade, cesuras, conflitos e casuísmos, confirma a
dialeticidade da natureza, as determinidades e acasos (já dizia o grego Epicuro,
57
342-271 a.C.) derivados da intervenção da vontade humana, de cuja complexidade
ao invés de se querer barrar a necessidade de explicação teórica deve-se ter como
suposto ao reencontro do homem com a história e com seu espaço, com o seu “eu”
individual e com os “outros” que se somam à espécie, alienada e estranhada em
todos os sentidos imagináveis. O Lukács mesmo, rememora-nos Tertulian, expõe
que a complexidade das ações individuais tende a gerar a totalidade complexa e
caótica, não-orgânica e não-organizada sob o ponto de vista do indivíduo.
Florestan (1995, p. 50) opina sobre a impossibilidade de se
reproduzir toda a realidade, que muito possui de caótica, e somente por isso o
método deve oportunizar ir do concreto ao abstrato para daí retornar à categoria
histórica; e sempre também se demarcando os pontos e os contrapontos entre os
fenômenos na relação concreta, vez que o método de investigação de Marx
consiste em “analisar indo do presente para o passado e vendo como se deu a
transição” (ibid., p. 52, 184). Nomeadamente no que pertence ao estudo da
economia, de acordo com Florestan haveria para Marx dois métodos apropriados:
o analítico e o sintético; entre o que expõe em Crítica da Economia Política, fica
com a segunda postura, realizando a análise exclusivamente para reencontrá-la no
todo sintético: atomizando primeiro a realidade para se chegar a conceitos simples
para na seqüência se operar a viagem de retorno, rumo à totalidade.
A concepção de dialética de Marx implica no conhecimento
sintético e completo da realidade. Com o concreto – eis a noção hegeliana – sendo
reproduzido mentalmente, enquanto concreto, na apreensão do movimento
dialético imanente ao próprio real, às próprias coisas, e nesse momento o método
marxiano aparta-se do (neo)hegelianismo e do kantismo, que aplicavam método e
concepção naturalistas ao reino das ciências sociais.
O fato é que o método marxiano possibilitou ao saber –
geográfico inclusive – o transpassar da totalidade harmônica e da totalidade lógica
para o nível da totalidade histórico-geográfica.
O reconhecimento desse processo deve dar seqüência à seta do
saber, miniaturizando-se os erros para avançar teoricamente negando a
pseudoverdade; concretizando-se a negação da negação para que os mimetismos
58
alienantes do espaço se façam eliminados nas e pelas práticas (grafias) espaciais
dos sujeitos. Não se enrijecendo posturas que, ao querer contrariar a racionalidade
estruturalista, economicista, viciada e dogmática do método, pendeu a outro
extremismo: negando-se ou a relevância do método e ou a irracionalidade
estrutural do real a partir já dum estruturalismo irracionalizante.
Resumidamente, entre diversas oscilações, assistiu-se ao trânsito
do primado da causalidade divinal (passível ou não de conhecimento segundo o
autor que se considere) à idéia de causalidade natural (no qual a cadeia explicativa
necessária dos eventos se tornaria decifrável pelo processo racional de construção
do saber) para, com Marx, se encontrar como método dialético-material de
compreensão do concreto. E contra as propostas teórica e metódica marxianas
fazem resgatar a herança irracionalista montaigneana e o arcabouço teórico
oitocentista dos naturalistas38.
Não obstante o naturalismo materialista ter representado avanço
diante da metafísica medieva, sua conseqüência não deixou de ser negativa sob
muitos aspectos à filosofia em geral e à geografia em particular.
Alguns nomes podem ajudar-nos a compreender esse fenômeno.
Se detivermos-nos sobre século o XIX, veremos o francês Jean-Baptiste Pierre
Antoine de Monet Lamarck (1744-1829) defender a evolução dos órgãos e
membros dos seres pelo seu uso continuado em consonância com os imperativos
ambientais, o que responderia pelas alterações genéticas proveitosas à ambiência
vivida. Noutra ponta da mesa de debate, o naturalista inglês Charles Darwin39
(1809-1882) conferia o realce à seleção natural oriunda da luta pela vida, travada
entre os seres como condição determinante ao estágio da evolução das espécies.
Em lugares piores no cenário do debate outras formulações teóricas se faziam 38 Nesse rol incluem-se Kant e Montesquieu, que buscaram estabelecer relações entre culturas e gêneros de civilizações com climas e condições físicas diversificadas da superfície terrestre; questão focada sob os ângulos de “sociedades naturais, leis naturais e leis civis, liberdade individual e necessidade física, poder político e liberdades individuais, igualdade natural (dada por uma razão uniforme e geral) e desigualdade social” (cf. GOMES, 1996, p. 80, 83-84). 39 Sabemos que as teorias de Darwin e Moritz Wagner influenciaram no século XIX o geógrafo Friedrich Ratzel, revitalizando o determinismo que se arrastava da Antiguidade (presente em Aristóteles e Hipocrates) e da Idade Média (com Santo Tomás de Aquino, 1225-1274). Até o geógrafo francês anarquista Jean Jacques Élisée Reclus (1830-1905) fora influenciado pelo pensamento darwiniano e pestalozziano.
59
presentes, como as teorias genéticas, enredadas a inquirir sobre a influência das
transformações na substância germinal, com a evolução a processar-se através de
mutações bruscas, segundo proposição de Hugo De Vries (1848-1935); além das
teorias materialistas da evolução que combinam as mutações genéticas com as
variações decorrentes da seleção natural, a perfilhar a formulação dos
neodarwinianos.
Mas qual o poder de influência desse processo na Geografia?
Teriam tais formulações teóricas, filosóficas e metódicas se embrenhado
profundamente em conceitos como os de totalidade, natureza e diversidade?
As respostas não poderiam ser negativas. Desde o Renascimento
precipitavam-se novos questionamentos, novos procedimentos de investigação,
experimentação e interpretação.
A obra Geographia generalis de Varenius, embalada nos
parâmetros empiristas e racionalistas de homens como Francis Bacon, Galileu e
Descartes, é reputada como a primeira tentativa de cunho universalizante a marcar
o pensamento dos séculos XVII e XVIII, inclusive a autores como Newton.
Seriam quem sabe esses os primeiros passos geográficos no
Renascimento com proposta de raciocínio sistematizante, generalizante, abstrato,
a suplantar a tradição das análises particulares que remontavam aos gregos e que
se fortalecera no imaginário da – como comumente se fez cognominada –
Geografia clássica (descritiva e acrítica).
Mas será temporalmente mais adiante que discussões teóricas se
avolumarão até contraporem-se duas grandes escolas.
O determinismo do alemão Friedrich Ratzel (1844-1904) é uma
delas. Surgiu para justificar a necessidade de fortalecimento do Estado alemão
tardiamente reunificado (1870). O Estado-organismo figurava como
engenhosidade teórica conduzida ao plano da expansão econômico-territorial e
imperialista alemã. Os incapacitados de gerirem seu próprio desenvolver deveriam
perecer na ordem natural evolutivo-expansiva da sociedade, na relação do
“espaço vital”. Cumpre advertir entrementes duas observações: a primeira é que
tal perspectiva teórica não era a única na Alemanha e, a outra, mesmo na mente de
60
Ratzel podia ora ou outra ter-se delineado outras inclinações, vez que a evolução
do pensamento é contraditória e menos pura do que se costuma imaginar.
Também é útil recordarmos que o determinismo refere-se a uma
macro-tendência cuja nomenclatura veio só posteriormente a ser forjada, e pelos
escritos do seguidor da teoria possibilista vidalina, Lucien Febvre.
Segundo a corrente de pensamento denominada de possibilismo,
haveria relativa liberdade, com uma rede de alternativas na história da existência e
evolução humanas. Visão que se dispunha a querer minar o papel do
determinismo (climático ou cultural) no processo sócio-evolutivo.
No entanto, cabe ressaltar que geralmente a teoria dos estudos
possibilistas inaugurada pelo geógrafo francês Paul Vidal de La Blache (1845-
1918) enaltecia mormente as condições físicas e histórico-sociais do povo, cada
qual portador dum gênero de vida, sendo que, na prática seus próprios estudos
dirigiam-se mais às sociedades primitivas e às características ecologistas do que
os elementos sociais; inclusive porque os estudos da relação homem-meio de
Vidal eram orientados, segundo observação de Sandra Lencioni (2003), pelo
método indutivo, despreocupando-se com leis gerais e achegando-se mais às
investigações dos fenômenos regionais singulares distribuídos na totalidade da
superfície terrestre.
No plano teórico quis Vidal opor-se às concepções fatalistas e
finalistas que secundavam o papel social na evolução. (Sob certo ângulo, algo
parecido com o que Marx concomitantemente propunha com a teoria materialista
da história, produzida socialmente de modo contraditório, através da qual punha a
desenvolver algumas teses atinentes à liberdade preconizada pelo Epicuro)
No palco da prática, menos do que sugeria logrou o Vidal de La
Blache com os estudos sobre os “gêneros de vida”. A aversão às generalizações
positivistas e o apego às particularidades impediu-o de realizar uma compreensão
menos tópica e empirista. Assim, a totalidade a ele seria pouco mais que uma
colcha de retalhos regionais costuradas pelos homens (primitivos) nos vários
quadrantes do ecúmeno.
61
Emmanuel De Martonne e Albert Demangeon, entre inúmeros
seguidores vidalinos, engendraram a tradição na Geografia de realização de
monografias regionais reunidas sob o micro-guarda-chuva da Geografia Regional.
Proposição idiográfica claramente carente de atributo científico.
Para além dos arcos avistados e como outras correntes,
encontramos ainda nesse período o historicismo e o positivismo. O primeiro
contrapondo-se ao segundo conjuntamente a seus postulados naturalizantes, por
afirmar o caráter evolutivo da história e da natureza. Aos historicistas, a natureza
não só se produz fisicamente como socialmente, em que pese os estudos da
realidade se rachar em “ciências naturais” e “ciências humanas” ou “ciências do
espírito”. Outro elemento característico ao historicismo coligava-se ao valor do
subjetivo, do imaginativo e intuitivo, elementos não valorados pelo neutro saber
positivista.
De modo mais coetâneo que sucessório, às vezes mais que uma
corrente fazendo-se presente nas formulações dum pensador, as correntes do
positivismo, historicismo, determinismo e possibilismo inspiram-se na filosofia
iluminista, no idealismo alemão e no desenvolvimento do romantismo: pilares da
evolução da Geografia moderna.
Não obstante as diferenças, estão as filosofias da natureza na
origem da disciplina geográfica. Dois dos maiores formuladores a ratifica.
Pondo-se em rescisão com a tradição clássica oriunda da antiga
Grécia, prestada à feitura de mapas e infindáveis e pormenores descrições de
lugares particulares, o alemão Alexander von Humboldt (1769-1859) já se
envergava à idéia da compreensão dos princípios gerais que regem a totalidade
orgânica-coerente-harmônica que representa a Terra e as esferas que estão além
dos domínios da superfície terrestre, seja em termos antropomórficos ou naturais
(a ele inclusive, o homem faria parte da natureza), em caça à causalidade dos
fenômenos orgânicos e inorgânicos das esferas terrenal e cósmica, para assim se
suplantar o âmbito das experimentações e das leis empíricas.
Devido às influências do idealismo alemão de Hegel, Johann
Gottlieb Fichte (1762-1814) e Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854),
62
Humboldt concebeu a natureza como unidade viva. Foi também genitor da noção
de meio – embora em seus estudos este comparecesse mais como meio físico.
A visão de todo da “escola alemã” objetivava a relação dos
elementos orgânicos e inorgânicos combinados na realidade (MOREIRA, 1988b).
Do estudo da totalidade identificariam semelhanças e
diversidades, mediante comparações.
Voltado ao desvelar da totalidade e com similaridades aos
pressupostos humboldtianos, figuram os estudos de Karl Ritter (1779-1859) sobre
a relação entre totalidade e diversidades (diversidades unidas pela sua substância
teleologia).
Tocado pelas teorias de liberdade de Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778) e pelos enunciados de Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827)40,
como pela afeição mostrada pelas disciplinas Filosofia e História, a trajetória
teórica e narrativa de Ritter orientava-se à teologia cristã, amparado em
enunciados pregadores duma totalidade que representava a idéia de conexão
homem-Deus através da Terra. Conciliando ciência e religião, ao pensador caberia
a busca das conexões Homem-Deus-Terra, que deveriam ser apreendidas de forma
completa e universal mediante o estudo analítico e comparativo das diversidades
regionais do globo terráqueo, pois a visão ritteriana enxergava as regiões-como-
partes do todo-orgânico-terrestre criado por Deus, como se a Terra se
assemelhasse a um palco cuja atuação humana durante a existência permitiria a
aproximação do Criador.
O viés metódico analítico, comparativo, descritivo, enumerativo
(de regiões identificadas mais pelo prisma do físico-natural do que pelos atributos
antropocêntrico e político-administrativo), como o teor imanentemente teológico,
podem ser alguns dos qualificativos menosprezados pelo seu ex-aluno Marx, que
no ano de 1838 com ele esteve na Universidade de Berlim.
40 Pestalozzi criou o método de educação que partia da observação à consciência, para então se alcançar o discurso, sempre se orientando do mais simples ao mais complexo. De acordo com Moreira (1988b), o apreço pelo empírico e pelo viés integrador dos fenômenos em escalas sempre maiores acabou por gerar uma geografia na qual os fenômenos apareciam geralmente como relação entre coisas ou como sistema de coisas, deixando de tratar do homem concreto, que vive e interage em relações sociais classistas contraditórias.
63
A Terra seria a totalidade concreta das diversidades regionais, a
unidade ontológica assentada no teológico. Totalidade orgânico-divinal que para
ser compreendida deveria receber atenção do estudioso sobre as questões das
individualidades e diversidades (regionais) ou das subtotalidades (continentes, por
exemplo), como se fossem escalas imprescindíveis de análise, comparação e
sistematização. Com esse pressuposto o autor negava a idéia de totalidade
fechada, haja vista a divisão e multiplicação de subtotalidades passíveis de foco.
Ritter pretendia estudar as relações existentes entre a superfície
terrestre e a atividade humana através do método empírico e do procedimento
inducional e escalonado (indo dos menores para os recortes espaciais maiores).
Perspectiva científica alçada além do mero descrever.
Se os pais oficiais da Geografia moderna41 viam a Terra como
totalidade enviesada pelo divinal, não chegam a se assemelhar em tudo às
conseqüências de suas orientações.
Humboldt virá a ser reconhecido como o proponente da
Geografia Geral. Ao passo que Ritter será identificado como o formulador da
Geografia Regional (ou da Geografia Geral Comparada). O primeiro voltava-se
mais para o geral e sistemático, enquanto que o outro rumava mais ao particular e
regional, sem todavia ter-se verificado exclusão total de tais estudos em incursões
contrárias às hegemônicas que possuíam.
Já a partir da terceira década do século XIX, a Geografia, como
a História, servia à construção (ideológica) da identidade nacional.
Apesar de fundadores da Geografia moderna, foi a tradição da
Geografia clássica (descritiva e acrítica) que persistiu hegemônica. Sendo o
rompimento gradual e demorado.
O pensamento ritteriano não vingou devido ao apego
escolástico. E o humboldtiano exerceu certa influência na Europa (excetuando-se
a França) devido ao viés naturalista, envergado aos estudos regionais.
41 A Geografia encarnava a política e economia dominantes, a caminhar ainda lentamente a formulações teóricas mais ousadas. Talvez seja esta uma das razões da geografia de Reclus – ex-aluno de Ritter, entre 1849-50 – ter sido desprezada tanto pela ciência burguesa quanto por Marx e Engels, que o tomavam por um “vulgar compilador”.
64
Simultaneamente, muitos seriam os nomes e as vertentes
teóricas possíveis de menção. Se o descritivismo e a resignação acrítica de boa
parte da oficialidade geográfica ocultavam as postulações universalizantes e
dignificadoras dos princípios gerais, de igual modo o neokantismo veio a se opor
ao positivismo, preponderando sobremodo no período de 1880 a 1930.
As chamas da reflexão crítica sobre os valores universais
inflamaram-se com o neokantismo.
Aquecida pelas brasas teóricas de Kant42, destaca-se na
Geografia o alemão Alfred Hettner (1859-1941), preocupado mais com o estudo
da diferenciação da superfície terrestre do que com a relação homem-meio.
Como das grandes contribuições, a perspicácia hettneriana
estaria na negação da polarização estabelecida pela classificação do alemão
Wilhelm Windelband (1848-1915), de que a Geografia ou seria nomotética
(preocupando-se com estudos gerais ou com a formulação de leis gerais e
categorias abstratas) ou idiográfica (dirigida a estudos de fatos particulares de
determinados territórios). Para Hettner, a Geografia incluiria ambas as coisas.
No arco de seguidores teórico-metódico hettnerianos, o
americano Richard Hartshorne, a quem a Geografia, como ciência da natureza e
da sociedade, prontificar-se-ia a estudar todos os fenômenos possuidores de
dimensão espacial, ou seja, na visão hartshorneana não existiriam fenômenos
particulares à averiguação da ciência geográfica, assim como não haveria objeto
de estudo comum à mesma. O método (e não os objetos) é o que definiria as
ciências em geral e a Geografia em particular. E o cientista também deveria
priorizar a interpretação dos fenômenos, contrariando a prioridade aceita por
muitos da necessidade de formulação de leis gerais, e – seguindo Kant e Hettner –
ainda dizia ser necessário ao geógrafo a perspectiva histórica, desde que não
confundida com a Geografia.
42 Foi Kant quem distinguiu Geografia de História. Para ele, a Geografia deveria versar sobre a inter-relação e conjunção dos fatos no espaço, conquanto à História coubesse a sucessão dos acontecimentos no tempo. Instituiu e lecionou também Geografia Física, embora a compreensão que desta tinha se distanciasse do conteúdo que veste a Geografia Física atual, vez que a proposta kantiana igualmente incluía o estudo da Moral e da Política.
65
Pela filiação teórica ao kantismo, isto é, à concepção subjetiva
da realidade, Hartshorne alegava que as regiões nada teriam de auto-evidentes e
que a identificação adviria da observação e da construção mental do pesquisador.
Sem maiores dificuldades se percebe que foram os estudos
regionais que garantiram a unidade e o status científico da Geografia, permitindo
a superação da dualidade do físico/humano, vez que a região espelhava as
especificidades e homogeneidades físicas e sócio-culturais do arranjo espacial.
Verificando-se em cada uma delas a identidade nacional que interatuava e
realimentava a identidade nacional. Agindo o Estado como instrumento garantidor
da harmonia territorial, e comparecendo a Geografia como instrumento da
orquestra sinfônica.
Se para uns a região resultaria de construção mental, para outros
condiria à realidade objetiva. Expressando-se através da paisagem objetiva, com a
qual os homens construiriam exatamente as identidades e consciências regionais.
Dos maiores nomes da Geografia Regional, é Paul Vidal de La
Blache quem arroga o status científico à Geografia na França. E contra a
Antropogeografia ratzeliana formulou a expressão de Geografia Humana.
Também porque opositor às idéias deterministas de Ratzel e
totalmente fiel às possibilidades – como compreendeu Febvre –, suas idéias
viriam a ser batizadas de possibilistas, em 1922.
Porém, cabe assegurar que tanto Vidal quanto Ratzel,
geralmente enquadrados como opositores, compartilhavam a visão unitária da
relação homem-natureza. A Vidal o homem depende da natureza, e por meio da
engenhosidade construída histórico-socialmente subtrai as possibilidades por ela
oferecidas, ao passo que, semelhantemente, Ratzel assevera a dependência do
homem para com a natureza, sendo a qualidade de tal relação determinada pelo
grau do desenvolvimento socialmente atingido.
Não obstante certas similaridades, a “escola francesa”
apresentou concepção bem mais rica que a da “escola alemã”, entrementes a
tendência às generalizações ou inter-relações servisse sobremodo a fortalecer a
geografia que, na ânsia de dialogar com tudo e com todos, entre as ciências do
66
homem e as da natureza, não conseguia unificar o discurso ambicionado, com
postura tendente a uma síntese abstrata que rendeu a séria crítica de Lacoste de
quem tenta a tudo explicar e que a nada mais que um fraco economista e medíocre
geólogo conseguia comparecer.
Esse ligeiro quadro serve para ilustrar as forças das correntes em
embates entre si e mesmo com os próprios pensadores. Vê-se ao mesmo tempo a
tentativa de enlaçar os estudos à perspectiva histórica, embora essa ora seja vista
como manifestação causal da vontade do Espírito, ora como materialização
espacialmente diferenciada (regiões) de condicionantes naturais (clima,
geomorfologia, vegetação, etc.). Quando a visão se fazia mais antropocêntrica, a
realidade da relação homem-meio, homem-natureza, Terra-região vez ou outra
titubeava aos determinismos climático-naturais ou do naturalismo sócio-evolutivo
(sociedade moderna + cultura avançada + Estado orgânico desenvolvido =
imperialismo econômico-territorial democraticamente expansionista).
Demorou para que o saber clandestino e o acumulado pela
oficialidade se enfrentassem vigorosamente, pondo no terreno da teoria a dialética
vivida concreta e socialmente, confrontando totalidade concreta e totalidade
abstrata, princípios-gerais-divinais-idealistas com leis-gerais-sociais-materialistas.
O pulo-do-gato no estudo da totalidade deu-se com o método
marxiano que permitiu o transpassar do nível da totalidade harmônica ou da
totalidade lógica para o da totalidade histórica.
Processo cumulativo. Pois, inda que sob multíplices facetas,
vimos que a concepção materialista cotizou com o destronar de posturas
arqueadas ao antigo evolucionismo, cuja concepção finalista proclamava a
evolução gradual e linear e, com isso, a evolução natural passou a ser percebida
como processo continente de regressões, decadências, declínios, recuos, desvios,
mutações e descontinuidades, numa relação espaço-tempo conflituosa de
progressos e declínios de espécies entre si, com outras espécies e com a
particularidade do lugar ocupado.
Haveria já a dialética, imanente tanto ao espaço natural como ao
espaço social, à natureza e à história, à sociedade e ao espaço ordenado.
67
A qualidade do movimento muda quando a natureza-social-
humana passa a centralizar crescentemente a natureza-totalidade porque,
germinando da natureza e complexificando-se a ela, o homem foi se destacando
com a mão que, em prol da proteção, defesa, ataque e trabalho, acenou com o
paralelo pensar que se ia ramificando e acumulando, na direção do movimento da
dialética da natureza. Com essa teoria dialético-materialista, Engels (1979) foi
mais além que os pensadores que o precedeu, como o jônico filósofo eclético de
nome Anaxágoras de Clazômenes (500-428 a.C.), cuja percepção e intuição na
Atenas antiga punha-o a discorrer provocativamente sobre as diferenças reinantes
entre os seres, quando ao dizer que o Espírito (Nous: força superior e pura ou
inteligência transcendental organizadora de tudo) estava em tudo, mostrou-se
original em reconhecer a qualidade corpórea que faz com que em uns o Nous mais
se encarne que noutros. Justificando o fato de os seres animados – o homem no
caso – serem inteligentes porque possuem mãos, ou seja, a ele “o homem pensa
porque tem mãos”. Uma idéia não aceita pelo Aristóteles depreciador do trabalho
manual, tributado aos inferiores escravos (PESSANHA, 2000, p. 30).
Evoluções, involuções e revoluções caracterizam o complexo
mix do natural-social, no plano biológico-natural e social, prático e intelectivo.
A dita relação trabalho-topos-logos.
Por que nascido e habitante da face da Terra, pôs-se o homem
cada vez mais a querer melhor viver grupalmente. Do lugar experienciado
avançou sobre outros para tê-los como urdidos e esse conhecimento aprofundado
e expansivo do espaço geográfico exterior alterou e alavancou o desenvolver dos
espaços interiores, numa dialética relacional da objetividade-subjetividade em que
o ser e o estar geográficos passaram a se interdeterminar, combinando-se e
conflitando-se na unidade espacial do diverso produzido43.
43 A dialética, a guisa de exemplo, é verificável no ser protestante abordado por Max Weber (1864-1920), que naquela fase do capitalismo simultâneo à Reforma deveria trabalhar para acumular e acumular para agradar a Deus, voltando-se para o desenvolvimento do mundo espiritual interior, desapegando-se de valores mundanos, numa clara contradição entre a racionalidade da cultura e a racionalidade da economia em expansão (WEBER, 2002). Ou então, outro exemplo, no conflito de racionalidades havido entre o ser índio tradicional com o estar geográfico da racionalidade da espacialidade hegemônica que sobrepôs a cultura do mercado às
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Nas sociedades classistas há uma segunda natureza de ordem
ideológica por trás da natureza teleológico-material propalada socialmente. O
trabalho possui uma segunda natureza (abstrata) por detrás da natureza ontológica
de satisfação humana pela relação metabólica mantida com a natureza.
Ardil ludibriante, causador de desencontros os mais possíveis no
senso comum e no científico, como resultado da adaequatio ao método que parte
da idéia, defendendo o trabalho da razão da Idéia como o fundante do ser, ou – o
que dá no mesmo – cultivando culturalmente a idéia social particular que quer ter-
se por universal.
Objetiva-se que assim siga o homem. Perdido em falsas metas.
Figurante proposital da trama tachada de extra-social ou sócio-natural, a qual deve
formas de expressões culturais autônomas, bem como o formato de seu arranjamento espacial às espacialidades dos índios. Poderíamos ainda citar a dialética que vive o ser operário descontente que manifesta a personalidade punk como válvula de escape ou instrumento político de contestação ao mundo geográfico com o qual não pode deixar de minimamente sintonizar-se pelo estar, no espaço regulador do comportamental. O real vai abarcar esse movimento antitético imanente ao ser dominado-rebelde na relação dialética com o movimento do espaço hegemônico, o qual de modo semelhante, antiteticamente, faz-se posto/contraposto. Ainda que haja determinância em último grau das condições materiais (vez que “não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência”, diriam: MARX; ENGELS, 1996) é inegável que as dimensões superestruturais igualmente atuam como elementos ativos, inda que como dimensões distanciadas e prolongadas do real e este foi o motivo de o Marx ter alegado n’A questão judaica não devermos procurar “o segredo do judeu na sua religião, mas, muito pelo contrário, o segredo desta religião no judeu”, desenvolvendo o materialismo simplista do Ludwig Feuerbach (1804-1872) dos Princípios da filosofia do futuro e das Teses provisórias para a reforma da filosofia, em que constavam os pródomos da inversão do hegelianismo, mencionando serem assim as relações reais entre o pensamento e o ser: “o ser é sujeito e o pensamento atributo (Das Sein ist Subjekt, das Denken Prädikat)... O pensamento vem do ser (ist aus dem Sein), mas não o ser do pensamento... Qualquer especulação sobre o direito, a vontade, a liberdade, a personalidade, tentada sem o Homem, fora ou acima dele, não é mais que uma especulação sem unidade, sem necessidade, sem substância, sem fundamento, sem realidade. O homem é condição de existência da liberdade, da personalidade e do direito” (FEUERBACH, Teses provisórias...). Feuerbach, através de seu individualismo materialista, restituiu ao homem a sensibilidade roubada pelas frias teses mecanicistas que afiançavam só átomos e matéria existirem, descobrindo que o pensamento decorre do ser, e a partir dessa sensibilidade intuitiva, todavia, consistiu seu erro em acreditar que a negação do ser se faria pela crítica filosófica (contra a “alienação religiosa”), pela razão do seu “homem total” encontrar-se domado pela sensibilidade passiva (dum ser mais biológico que social e nesse caso, então tipicamente alemão: burguês, passivo, sentimental, solitário e dotado de sentimentos puros de amor e amizade); cabendo a Marx a tarefa de realizar a crítica materialista, como pensamento e ação, dum homem não mais passivo mas ativo e fazedor de história, contrariando os supostos da economia política liberal (inglesa) já atacada precocemente pelo Engels no Esboço de uma crítica da economia política, publicado nos Anais franco-alemães e referido por Marx como um trabalho “genial”.
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destrinchar para mais próximo da Providência e da Ordem Natural poder-se achar,
resignando-se e o melhor possível adaptando-se.
Entre resignação e ignorância, estranhamento e alienação,
pitadas aqui e acolá de coação e coerção física e psicológica são aplicadas para
que se mantenha curvado o andar do corpo social.
O presente é perfeito e o futuro é a promessa do encontro com o
espírito ou com um seu “eu” que mais e mais sente esvair-se.
Consequentemente e nada despretensiosamente, no
estranhamento uma das categorias-mores do movimento social coevo. Tornando-
se comum a condição do passado privadamente traçado, o presente congelado e o
futuro borrado; momentos diferentes desse movimento sócio-espacial.
A intencionalidade social ocupou (construiu) o espaço da
contingencialidade movente da natureza pré-social.
A nascediça geografia moderna é filha soberba e esconsa da
classe burguesa vigente.
O fazer e o pensar, desde muito estilhaçados em infinitos cacos,
distam-se inda mais no percurso social dessa “intenção estranha”.
Na teoria e na prática, no concreto real e no concreto pensado,
no pensar de racionalidade instrumentalizante e no pensar alternativo
heterogeneizante, várias as transformações porque se é uno o espaço-mundo ao
gerenciamento e acumulação privada dos capitalistas, faz-se pulverizada a
compreensão dos múltiplos espaços vividos pelos indivíduos divididos, que lhes
têm socializados os danos sócio-ecológicos.
E tem marco esse processo de polarização acelerada porque
desde que o capital passou a roubar a cena no princípio da Era Moderna mais se
distancia a bifurcação social armada entre homem-meio, sociedade-espaço
construído, homem-humanidade, fazer-pensar, produzir-distribuir.
As identidades e semelhanças esquadrinhadas pelo capital
descambaram no fechar de olhos às diferenças e dessemelhanças que contestavam
já comedida atenção, pois os idênticos o são apenas na forma pura, na tautologia,
e é por isso que se faz necessária a potencialização da capacidade de apreensão da
70
unidade do diverso mediante os aparentes semelhantes, não se desprezando as
formas específicas em que comparecem, enquanto simetria, simultaneidade,
repetição, recorrência, etc., porque há unidade entre identidade e diferença44. E
para penetrar no concreto o pensamento deve transgredir a identidade, o imediato,
as sensações, atravessar as diferenças, as contradições mais essenciais, para
reencontrar-se com a unidade, com o verdadeiro, porque a identidade da verdade
não se alcança com indiferença às diferenças, seja em termo da construção e
transformação do conhecimento (LEFEBVRE, 1995; MOREIRA, 1999) ou sua
aplicação como atuação prático-política (RIBEIRO; THOMAZ JR., 2001).
Hoje, as contradições atingiram um nível paradoxal, o estado
puro; não só na economia como em múltiplas esferas de realização da vida, na
arena do trabalho e além, como na estrutura e superestrutura societárias.
A diferença roga presença e, qual a semelhança, prima destaque.
A dialética que se calcificara na síntese quando da consideração
da diferença, que não esporadicamente fazia-se (anti)tese, transformando-se em
premissa homogeneizante que a tudo se justaporia, defronta-se com um grau de
complexidade que está a exigir mais do que o processo “reflexionante” se tornou
afeito, para que a certa logicização do método dialético de se trabalhar com as
contradições seja enfim suplantado.
Novas práticas delineiam-se nesse interrogar. A mudança
material da espacialidade social acarretou mutações às subjetividades, na teoria e
na ação45.
44 Discussão filosófica antiga essa: Lefebvre (1995) lembra o caráter aparente e efêmero da diferença como discordância a ser agregada à unidade. Moreira (1999) traz a questão para a geografia enfatizando os perigos de eliminação das contradições e diferenças, o que fez fortalecer o formalismos científico antidialético. Sustentado em Regis Debray (1991), Santos (1997), quando tratando de todo, totalização e processo, diz que a tendência do que é único é tornar-se múltiplo e esse, no futuro, a metamorfosear-se em único. Isso para não mencionar a discussão sobre a filosofia e os estudos propendidos à física quântica, a teoria da relatividade, unidade e relacionalidade e a teoria no campo do fractal, reino da aleatoriedade e da indeterminância que atormenta o cérebro dos físicos (STIX, 2004; THOMMSEN, s/d.); embora já existam pistas teóricas interessantes, que conseguem ver leis no caos fenomênico (PRIGOGINE, 2002). O movimento contraditório da natureza constrói/destrói a natureza contraditória do movimento: dialética da relação equilíbrio-desequilíbrio como real-concreto (MOREIRA, 2006, p. 75). 45 Calha de modelo, é ilustrativo nesse sentido o movimento operário revolucionário europeu, anarco-sindicalista e leninista, de cunho antiestatista, antilegalista e antiparlamentarista, antimilitarista e antipatriotista do final do século XIX e início do XX, que teve suas forças minadas
71
Afetado o mundo da produção, afetou-se o da reprodução social
(universidade, ciência e método juntos).
Vejamos mais sobre as conseqüências sociais para adiante
apontarmos as relações teóricas invisíveis.
Atualmente, estão as lutas a se darem mais veementemente por
fora da esfera do mundo geográfico do trabalho, transbordando à escala da
reprodução da vida social, no espaço da residência e do consumo, no lazer, seja-o
turístico ou outro, porque as contradições estruturais da lógica da dominação,
alienação e destrutibilidade do capital dão-se fora da esfera do trabalho, vazando e
espraiando-se por todos os poros de organização e concretização da sociabilidade,
em setores mais complexos das camadas sociais que não exclusivamente o
operariado fabril tradicional. Além do mais, como afiançaria o filósofo Lukács, é
próprio às faculdades histórico-culturais humanas definir o que há de viável
economicamente em determinada ocasião, esquivando-se à mera noção anistórica
da esfera econômica, por ser a mutabilidade cultural dado igualmente imanente à
necessidade historicamente produzida, tanto àquela imposta pelo trabalho como
meio garantidor da reprodução como à atinente às faculdades pertencentes à
determinada época. Eis o pretexto de que parece ter-se valido Henry A. Murray na
distinção que fez dos dois tipos gerais de necessidades: as viscerogênicas,
atinentes à própria condição do organismo, e as psicogênicas ou adquiridas, como
a necessidade de consideração, posse e poder, com o que faz irromper
necessidades novas ao lado das histórico-morais, num híbrido entre o que é
necessidade biologicamente herdada e que por meio econômicos se faz realizada e
o que é conquista introjetada culturalmente (ver: DORIN, 1980a, p. 218;
MANDEL, 1976, p. 68-69, 73; FURTADO, 1977, p. 25; LEFEBVRE, 1981, p.
141-142; RIBEIRO, 2004b, p. 47, nota de rodapé nº 20).
O que significa dizer que há uma imbricação tensa, mutável,
direta ou velada, entre os mundos da produção e da não-produção, entre os
espaços produtivo e reprodutivo, espaços da produção e da distribuição, mundos à medida que se estenderam reformas do Welfare-State, sob a ascensão do paradigma fordista-taylorista consolidado no após-guerra, que por essa política adotada abandonou a proposta de gestação e gerenciamento doutra espacialidade a partir da viseira desembaçada dos trabalhadores.
72
do trabalho e do não-trabalho (espaço vivido ou espaço do não-trabalho). Isso
porque, ao se transformar as bases material produtiva e reprodutiva da sociedade,
volveu-se a sua dimensão superestrutural, seus elementos culturais, ideológicos e
políticos, num infinito afetamento inter-relacional.
Vários os efeitos que o pensar lógico-gnosiológico, nesse
ínterim, encetou aos intelectuais e aos movimentos sociais de cujas forças e
contrariedades por todos os cantos jorravam sem perspectiva universalizante a
lhes dinamizarem.
A compreensão limitada do real reverberou em ações
fragmentadas e de fácil barragem, por parte dos incomodados que se espremem no
piso térreo da pirâmide, visto que a leitura parcelária do real alentou-os a atos
isolados, fáceis de serem desmontados pela totalidade sistêmica do capital; sem
contar que, a respeito das teses marxianas das crises, não houve preocupações
com sua convergência na tríade do social-econômico-político (LEFEBVRE, 1981,
p. 202; RIBEIRO, 2004a, p. 19).
Na era atual – do dito pós-vanguardismo, em que o fazer
sobrepuja o ter consciência sobre, por motivo da racionalidade instrumental
exagerada, que enleva a estética à ética – várias perguntas vêm à tona, algumas
tendentes a contemplar a questão sobre onde se embrenhará o re-começo e a partir
de qual mediação. Desapegas da esfera do trabalho, na extensão reprodutiva da
sociedade? E caso o seja, serão elas capazes de modificar a base produtiva?
Também longe do dualismo, outra síntese acena que não se
efetuará nem o caráter apocalíptico da Grande Noite insurrecional e nem a
harmonia crida entre trabalho/capital, como pacto duradouro dos contraditórios. O
primeiro azo far-se-ia mito e o segundo, ardileza ludibriante. Explorando a tese: a
alternativa deveria ser construída cotidianamente, por dentro da ordem e a ela
contrária.
Toda lógica e prática sociais teriam de ser aniquiladas e ou
revertidas, pois o que está em processo é o vivificar do que aí está.
Novamente, mudança conservadora. Velho, o novo.
73
Atenção válida a demonstrada pelo marxista norte-americano
Fredric Jameson (1997, p. 30-31), pelo distinguir da mudança mercantil,
estandardizante e programada da mudança que substitui um sistema por outro.
As razões teóricas invisíveis à mutação conservadora,
responsáveis pelas conseqüências sociais apontadas, querem implantar agora no
lugar do caos perceptivo a totalidade idealista do espaço abstrato.
O remanejar concreto da sociabilidade em crise de reprodução,
trançando-se em novos métodos de trabalho e gestão da produção, com novas
regras institucionais sendo ativadas para regular o corpo social em transição,
instigam a metamorfose também em nível imagético e interpretativo, como se
hologramas (paisagísticos) fossem acionados pelo campo de força do sistema do
capital, utilizando do aparato do meio técnico-científico-informacional de que
versa M. Santos.
A esse serviço, ideologia e estranhamento realinham-se no novo
agir, comportar, viver, interpretar, teorizar.
O capitalismo, que dessacralizou valores enferrujados para o seu
sistema, santifica novos valores. No espírito evoluído do capitalismo estaria a
redenção do social.
Da metafísica teológica medieval à metafísica econômica atual.
No fundo, as leis do real concreto sendo desviadas do ser social
concreto. Todavia, anteriormente buscava-se explicações no Espírito autônomo ao
qual, em contato, evoluiria o corpo social não mais para frente (irruptiva e
revolucionariamente) e sim interiormente, no sentido do encontro do Homem com
a abstrata Idéia da Razão divina, tendo por dínamo o processo pelo qual a
consciência passa do espírito subjetivo ao objetivo para se alçar ao píncaro do
encontro com o espírito absoluto. Fora isso o que compreendera Hegel: figurando-
lhe a sociedade Democrática do capital como o fim da odisséia histórico-
espiritual, a excelsa supra-evolução aflorada pela humanidade. Isto devido ao fato
de em Hegel unificar-se o princípio idealista da escola eleática da dialética como
74
razão46 com a idéia jônica de dialética como processo de razão47. Daí que na
teoria hegeliana, as “forças objetivas” que atuam no mundo foram
metafisicamente interpretadas, dispostas como gradientes de manifestação do
Espírito, seja como indivíduo (consciência espiritual em nível individual, como
razão) ou como família e Estado (formas da razão objetiva revelada por
intermédio das relações interpessoais).
Entendamos melhor a tradição comum a esse tipo de pensar,
nesse autor desenhando-se direta ou implicitamente burguês, e seu encravamento
no seio da sociedade para que, ao serem retomadas as questões pertinentes à
sociedade contemporânea, não permaneça indeterminada a lógica causal que se
disfarça de natural, fatalista e caótica para encobrir a historicidade classista,
socialmente perversa e economicamente imperialista, pois foi no gênio dialético
de Hegel que a história da filosofia fez-se filosofia da história (burguesa).
A teoria hegeliana retoma a centralidade de uma categoria como
princípio ontológico ou instância última do ser: a contradição, adormecida desde
muito junto à tumba do Heráclito, e que depois veio receber ainda os bafejos
metafísicos do Spinoza48.
46 Em Eléia, cidade da Magna Grécia, na Itália meridional, viveram Parmênides e Zenão no século V a.C., pensadores que se caracterizavam pela diferenciação do mundo físico (dos fenômenos reconhecidos pelos sentidos) do mundo inteligível (plano da razão que serve de baluarte à ciência). A característica política comum a essa escola filosófica está na, explícita ou não, preocupação em se legitimar o poder e a ordem estabelecidas, sendo pois, uma filosofia idealista e conservadora. 47 A escola jônica, surgida no século VI a.C. era constituída por Tales de Mileto (640-545 a.C.), Anaximandro (610-547 a.C.) e Anaxímenes (588-524 a.C.), além de Heráclito e Pitágoras (séc. VI a.C.), estudiosos da origem primeira da natureza ou phýsis: água (para Tales); ar (Anaxímenes); fogo: o elemento indeterminado-infinito ou apeíron fundante dos compostos água-ar-terra-fogo (Anaximandro); ou ainda o Hum (de Pitágoras). Por isso, esses filósofos são chamados de Físicos. O período é chamado de Cosmológico. E através dessa um pouco ainda confusa Filosofia materialista empírica, eles negavam a mitologia e a ideologia dominantes, buscando a origem material das coisas sociais e naturais, o princípio primeiro do universo (arque). É preciso dizer que há os que preferem ver Pitágoras como criador de sua própria escola, como a precursora do platonismo e a que estabelecerá o embrião do dualismo ontológico que oporá idealismo e realismo, por querer encontrar a substância ideal e única que origina tudo o existente. Razão de Nunes (1992, p. 24-25) afirmar que o espírito místico pitagórico é contrário ao materialismo dos físicos. 48 Adepto do método cartesiano no prestigiar dos procedimentos matemáticos (a dedução se realizando de intuições intelectuais imediatas e diretas dos elementos, baseando-se em idéias simples e irredutíveis, demonstradas geometricamente), Spinoza, apesar de erguer seu racionalismo em crítica aos dogmas da Igreja, viu Deus como criador de tudo e o homem como mero observador passivo do encadeamento causal dos fenômenos. Por suas idéias, foi considerado o antecipador do liberalismo político forjado pelo John Locke (1632-1704), que – contrariamente a Descartes – desprezava a consideração da existência de idéias inatas ao ser.
75
A contradição, como processo e produto de especulação e
conhecimento filosófico, evolui e regride intimamente às contradições materiais
específicas à sociedade em que foi concebida. Chega ao tempo de Hegel, que aos
domínios do conhecimento a resgata. Ironicamente, no entanto, por conta de
volteios idealísticos, aboliu Hegel em seus estudos tão afeitos à dialética
ressurreta, a negatividade, superabilidade e contraditoriedade do movimento
social do concreto real.
A evolução social-racional-ideal cerra-se com a ascensão da
burguesia ao poder. Acompanhou tal advento o ideário de fim da História, como
pôs-nos a recordar o Armando Correia da Silva (1993a). Como se à mercê
estivéssemos da desditosa e irremediável visita do eterno retorno dos que – senão
o Nietzsche49, pensadores que nele e ou noutras correntes se guiaram, como no
platonismo – deitam um pé na antiguidade e outro no mundo contemporâneo, no
encalço dos franceses Gilles Deleuze e Jacques Derrida (1930-).
Mesmo Comte já compartia de tal opinião, de que ideais de
revoluções futuras não passariam de mitos, fantasias ou milagres, e com sua teoria
punha-se a tentar regular o bom funcionar do organismo social nos rumos da
“ordem e progresso” burgueses, com a universalização ideológica de seu
postulado científico objetiva e subjetivamente classista e eurocêntrico, na
taxonomia linear (embora tenha dito não sê-lo) e evolutiva dos povos de cuja 49 Olgária Chaim Ferez explana, em pesquisa consultada por Chauí, que a idéia nietzscheana do eterno retorno surgiu no verão de 1881 quando residira em Haute-Engandine, na aldeia de Silvaplana, enquanto passeava; pouco depois teria Nietzsche publicado a tese de “que o mundo passa indefinidamente pela alternância da criação e da destruição, da alegria e do sofrimento, do bem e do mal”. No entanto, a idéia que ele detinha sobre esse processo não implicava a repetição do mesmo, como volta do mesmo e volta ao mesmo. A afirmação de o mundo como vontade – representada pela figura do deus artista e dos ciclos vitais, o grego Dioniso, símbolo do irresponsável, amoral e superior ao lógico, como da desordem, da exuberância e da música – pressupunha a vontade de potência e, conseqüentemente, a abertura para o futuro, a probabilidade de mudança e dum múltiplo brotar, ou seja, a repetição era-lhe desigual e seletiva. Nietzsche, opositor ao cristianismo e à sua lógica moralista de renúncia, submissão e crença no além-morte, advoga a idéia do eterno retorno não em defesa da idéia de resignação e renúncia como virtudes, pois o “bom” não é o que segue esses preceitos mas o que os nega, tendo em vista que bom – expõe-nos mediante seu crítico método filológico – vem do latim bonus, o “guerreiro”, o que foi sepultado pelo cristianismo. Não haveria outro motivo à realização da genealogia da moral, com vistas a que fosse despida de certas interpretações, por meio das quais os fracos pensam que são fortes a partir de ideologias armadas para conservar a estrutura social, nela consolando-se. O super-homem deveria voar, ultrapassar os valores estabelecidos, evoluindo-se pela contra-ação (CHAUÍ [cons.], 1999). Ver: NIETZSCHE, 1999.
76
dinâmica adviria, por meio do método naturalista aos “comtistas” e aos
evolucionistas apropriado, a compreensão das leis gerais do funcionamento da
Sociedade e o desenvolver da Humanidade.
As “insurreições” ou “revoluções tumultuosas” compareciam-
lhe como fruto da “ignorância” sobre a “marcha natural da civilização” em
sentido do progresso, contrariando a “tendência instintiva da espécie humana em
se aperfeiçoar” e é por isso que a “política positiva” deveria fornecer os meios
para que se mantivessem à distância as “revoluções violentas” (COMTE, 2005, p.
63, 66, 67 passim). Para ele: “Ninguém é tão insensato para levantar-se,
conscientemente, em insurreição contra a natureza das coisas” (ibid., p. 66-67) e
isto pelo motivo de que tão logo:
as ações humanas – individuais e sociais – contradisserem as idéias, serão tidas como desordem, caos, anormalidade e perigo para a sociedade global, pois o grande lema do positivismo é: “Ordem e Progresso”. Só há “progresso”, diz Comte, onde houver “ordem”, e só há “ordem” onde a prática estiver subordinada à teoria, isto é, ao conhecimento científico da realidade (CHAUÍ, 1991, p. 28).
Reforçador dos ideais conservadores e metafísicos, esse francês
que se cria portador e instrumento da tocha luminosa do saber positivo, os demais
(teóricos teológicos, deístas, metafísicos ou utópicos subversivos) considerava
pouco dotados de razão.
Especificamente em tratando do que viu como influências
causadas pela retrógrada força do espírito teológico, cada vez mais destituído de
força moral, advogou a tese de que:
Exercido assim, realmente inspirou ou secundou muitas aberrações anti-sociais que o bom-senso, entregue a si mesmo, teria espontaneamente evitado ou rejeitado. As utopias subversivas que vemos ganhar crédito hoje, quer contra a propriedade, quer mesmo acerca da família, etc., não emanaram quase nunca das inteligências plenamente emancipadas nem foram por elas acolhidas, apesar de suas lacunas fundamentais, mas antes por aquelas que perseguem ativamente uma espécie de restauração teológica, fundada sobre um vago e estéril deísmo ou sobre um protestantismo equivalente (COMTE, 2006, p. 67, grifos nossos)
77
Sem mais palavras, o que quis esse aderente da idéia metafísico-
positiva dizer é que os outros é que são metafísicos, utópicos, antimoralistas, anti-
sociais, pouco inteligentes e influenciáveis. Menos ele, que talvez sem pretender
se julgava um super-sábio não conservador e que se cria teoricamente
revolucionário e partícipe-gestante da nova era.
Já Marx ocupou-se da sociedade burguesa européia em um
período de tempo determinado, sem negar junção de teoria com prática e sem crer
em idéias de que o povo seria apenas depositário de teorias (de Ordem e
Progresso) lhes transmitidas por filósofos (como concebera Comte, que entendia
que os grandes pensadores deveriam criar as idéias que, transmitidas ao povo e
infundidas nos costumes, remodelariam passivamente os governos e as
instituições). Marx via o povo como agente atuante-pensante, parteiro da nova era.
Aos que utilizam o método naturalista e metafísico por guia, o
método histórico de Marx baliza vários erros, como o da idéia que considera que a
história se repete – como quis Hegel – por supranatural tendência transcendente,
de tragédias que sucedem tragédias; como elucidado n’Os 18 Brumário, repete-se
a história como farsa. Ou, noutros termos, como produção de natureza social
reproduzida na ordem classista, estatal e burguesa. O “acaso” natural ou a
indeterminação do trágico na história repete-se então por obra social de interesses
privados, como “descaso” social50.
O real do tempo de Hegel por ele foi eternizado em sua
metafísica, com vistas a uma presentificação do presente anuladora do dever-ser
da sociedade como movimento radical e irruptivo. Indiretamente que fosse, o
movimento dialético de seu pensamento prescreveu-se à dissolução dialética do
movimento histórico concreto. 50 Segundo Lefebvre (1981, p. 96-98), Hegel, dando continuidade ao alemão Kant, substituiu pelo final do século XVIII a idéia comum de que reinaria “harmonia” entre indivíduo e sociedade, interesse privado e interesse geral, entre razão e sentimento. Por terem vivido numa época revolucionária, esfacelamento dos pequenos Estados feudais e da ordem medieval, ascensão da burguesia e criação de instituições reguladores da “superestrutura” político-jurídico-ideológica, esses filósofos descobriram o movimento contraditório na história e não apenas a repetição, colocando a relação num novo patamar, metafísico ainda, de uma Idéia (Deus) preexistente, pré-cósmica e pré-histórica que criou o mundo, o humano, a história e a matéria como sua “outra coisa”, a Idéia que se aliena e se “exterioriza”, com as quais esse Espírito “inconsciente” estaria em contradição e por meio das quais tomaria consciência de si mesmo, reencontrando-se.
78
Contraditória é a teoria hegeliana da contradição. Circular o seu
movimento da não-repetição. Que mais ele fez que pôr-se a querer refrear a
energia que sintetiza o espaço e a história, tendo-os por completados?
Parece nisso denotar-se uma propensão teórica comum a muitos
pensadores no século XIX, severamente criticada por autores que têm a cultura
por amontoado de simples reflexos ampliados e exteriorizados da “natureza
humana” (WHITE, 1978, p. 28). Quando o que ocorre é a complexificação da
cultura conferir-lhe relativa autonomia perante o homem: distanciamento-
prolongamento-desdobramento-aprofundamento-diversificação-complexificação.
Entretanto, se os axiomas hegelianos de leitura filosófica da
história do mundo fabricam uma redoma interpretativa a-histórica ou ultra-
histórica, uma filosofia meramente contemplativa, há que se salientar que de
muito mais que exclusivos enganos se nos oferecem os ditos da sua “filosofia
crítica”. Como ao seu jaez fez o naturalista Aristóteles – que parecido apego
exacerbado pelos universais e pelas abstrações demonstrou com aquilo ao qual
quis ser crítico, como a doutrina platônica –, o Hegel reconheceu a importância do
trabalho à sociedade, especialmente do papel que a teleologia possui enquanto
exercício de pré-ideação antecessor e direcionante da práxis (extrapolando aqui
inclinações irracionalistas), contudo o fez de modo tão sobrevalorizado que a idéia
acabou por assumir centralidade auto-suficiente e descolada da base real, como
concreto pensado desposado do concreto real, transluzindo-se naquilo que o
filósofo tcheco Karel Kosik (1926-) apropriadamente rotulou de
pseudoconcreticidade (KOSIK, 1995).
A bem da verdade, para Hegel é o trabalho da Idéia que
predestina os rumos da sociedade, como uma espécie de espírito pré-material e
existencial que se encarnou no mundo. Prestando-se a filosofia, unicamente, a
possibilitar o encontro do Homem com o conteúdo ontológico-teleológico-
teológico da Razão divina externada no mundo. Com certa dose de materialismo,
como um idealista objetivo, Hegel reitera o valor dos instrumentos do
conhecimento que buscam o alcance da verdade – apreendendo a natureza que
independe das sensações –, embora tal verdade se igualasse à Idéia. Distando-se
79
assim dos idealistas subjetivos, para os quais todo o conhecimento não passaria de
artificial construção mental, reduzida à mônada.
Encarando o mundo pelo grau de proximidade dos homens para
com Deus, mostrou-nos Hegel – não obstante a dita influência oriental recebida –
a sua face européia, conservadora, cristã e burguesa ao baixar seus olhos para o
mundo ameríndio, tecnicamente menos desenvolvido e povoado a seu ver por
crianças “privadas de qualquer reflexão e intenção superior” (HEGEL, cit. por
DESCOLA, 1999, p. 112); pondo-se à frente da teoria de “remedio espacial” a
respaldar a extensificação do capitalismo às colônias e periferias do mundo, com
vistas a mitigar as contradições nos países centrais, e que ao mesmo tempo
prestavam-se ao “elevar” (sic!) do nível técnico-social dos povos primitivos por
tais paragens encontradiços (HARVEY, 1999, p. 50, 52 passim). Montado no
móvel do pensamento ahistórico e idealista, jamais poderia aperceber-se de que
logo que finda as oportunidades oferecidas na fase de capitalismo concorrencial a
que presenciava, as contradições ao invés de expurgadas tomariam estatura
mundiais; argúcia que coube aos críticos da dialética filosófica hegeliana
discorrer, os cientistas-revolucionários histórico-dialéticos Marx e Engels.
Hegel partilhava a idéia de que “Deus governa o mundo”. De
modo que se Ele governa e se transluz no mundo, à filosofia caberia a
compreensão do plano divinal:
A filosofia deseja identificar o conteúdo, realidade da Idéia divina, e justificar a realidade menosprezada, pois a razão é a compreensão do trabalho divino (HEGEL, G. W. F. A razão na história. São Paulo: Moraes, 1990, p. 86 apud SILVA JR.; GONZÁLEZ, 2001, p. 48).
A superqualificação da idéia gerou seu destacamento para com o
real. Condutor ao descolamento. Traduzindo-se em idealismo. Te(le)ologia.
Ao Lukács teria esse sido o maior enclave do hegelianismo:
imputar superimportância à teleologia a expensas do trabalho social, fazendo da
primeira o motor da história, descolado da práxis social fundante. Ou poderíamos
dizer que Hegel deu mais atenção àquela dimensão marxiana, repassada por
Lefebvre (1968a, p. 106) da práxis como atividade prático-crítica (ocupada das
80
relações sociais, examinando-as e querendo modificá-las), desmerecendo-a como
atividade prático-sensível (que constrói o mundo dos objetos, acrescentando aos
objetos da natureza aqueles que a sociedade cria), e fê-lo, porém, a partir do
prisma idealista da reflexão crítica. Ao invés da prática social, na teoria hegeliana
a razão é o motor da história (incluindo-se a teoria do direito e do Estado).
A teleologia, o pôr teleológico ou o traçar de finalidades
adquiriu exclusividade na realização da história porque Hegel periferizou os
meios históricos que impulsionam e garantem efetivamente o seu manifestar,
secundando o fato de ser o trabalho o elemento mediador de historicização da
idéia em fato. Ao contrário disso, proclamou a história como obra do Espírito
predeterminante do realizar social que com ele, por esse viés, encontrar-se-ia e
mais evoluiria internamente.
Se o teleologizar decorre das próprias imperatividades
imanentes ao ser social, e nesse ponto mostrou-se o Hegel portador de inelutável
argúcia, desconsiderou ele no entanto que o transpor da teleologia à causalidade
efetiva depende essencialmente dos meios materiais, portanto históricos e
geográficos, que avalizam efetivamente o seu concretizar; e não duma divina
Razão a ditar os rumos evolutivos do ser.
O espaço não consta como construção categorial e teórica
primordial em suas elucubrações, se muito como base físico-geológica da
Natureza engravidada de maiores possibilidades sociais pelo Espírito. A história
sim é senhora de maior notoriedade, como obra da Idéia esposada pelo Homem
abstrato – preferencialmente do abstrato e cristão Homem Alemão.
A idealidade abstrata da hegeliana idéia histórica e espacial da
Idéia menoscaba a mediação espacial como ponto em que o trabalho social pode
potencialmente firmar-se como gênese ontológica da liberdade, dispondo ao
animal biológico e instintivo o status e a condição de ser consciente e autogerido,
pela autogovernança da práxis social, que rumaria à universalidade quando por
desvinculado se fizesse das travas históricas e materiais que o agrilhoam.
Em Hegel, presencia-se diametralmente o oposto. Sua dialética
se resolve em-si, como idéia da Idéia à parte do mundo concreto, como idéia
81
evoluída do Homem desgeografado e ahistórico, com a espiritualidade se
mesclando à naturalização do histórico-social, da história feita pelo Capital, em
cantos do planeta próprio às modernas nações dos homens culturalmente
adiantados.
O real que já estava de ponta cabeça, põe as cabeças a pensar
somente pelas pontas; pelas formas; pelo avesso. Nesses níveis permanecendo.
Hegel se despede da vida, mas sua filosofia não divide o silêncio
no repouso de seu sepulcro, em outras vivas bocas encontrando voz ao longo dos
séculos.
Chega ela ao presente, quer-se arremessar em direção ao futuro.
Os ideais a isso se fundam nas máximas da presentificação do presente, negação
do movimento irruptivo, parecença do legal e democrático com o divino
providencial, que no real exprime-se; ou em linguagem (pós?)moderna, nos
paralelos pertencidos ao “presente perpétuo”, “saudade do futuro” ou “morte do
sujeito” que fixa o “fim da história” e a desimportância do espaço (Giddens chega
a teorizar sobre a “aniquilação do lugar”), que formam o sistema de simulacros
cujo germe primacial ascende da concepção parmenidiana do ser.
As científicas ideologias hodiernas se descrevem, autodefinindo-
se, inda mais científicas e nada ideológicas, quando o que se verifica é a
tecnologização da ciência e a universalização ideologizante do saber burguês,
emitido como pensamento único que, negando o espaço como referencial de ação
e embates, nada mais faz que congelá-lo com o poder detido sobre seus vetores
estruturantes.
Sendo Deus o capital, a lógica embutida em suas idéias é que
regulam a história e o espaço, capitalizado pela mercantilização do ser-estar. O
conteúdo ontológico da sociabilidade tem aí o nexo fundante, locomotor e
transitivo. Tudo ele disseca e deturpa para seu visor emprestar. Da área da
produção à reprodução, muito de fundacional e pré-direcional junge o social da
esfera reprodutiva ao seu centro nevrálgico, porque em duas vias principais segue
o capital atuando: na reificação das relações sociais e na personalização da
relação reificada.
82
As coisas se autonomizam e se fecham em-si, como se fossem
“pessoas”. Contrariamente, as pessoas são objetificadas, tratadas como coisas,
fator produtivo ou peça-marginal-miúda da engrenagem pelo sistema do capital
reprogramada. Enquanto na realidade é o trabalho o que gera o capital – em
ambivalência ao que criam os clássicos economistas quando do desvendamento de
algumas das “leis” da anatomia da economia política, que pecaram pelo não-
descobrimento dos principais caracteres da fisiologia. Não trabalho do Espírito,
anistórico e predestinante; porém trabalho como práxis humana, mais-trabalho
social, estranhado e explorado por outro Homem, outra classe, e já não
unicamente a alemã. Com o espaço não se passa algo muito diferente: apartado do
homem (igualmente dividido), figura como meio de lucro e toda e qualquer
racionalidade dirige-se a essa empresa, tendo o trabalho abstrato por alavanca.
O método, se entra na representação de toda essa trama
ideológico-científica, chega pela porta dos fundos, inda que na aparência
prefigurando-se como obra do encontro com o Espírito, ou agora como fruto do
encontro com a idéia (estranhada) que porta a ilusão de ser a redentora da
sociedade, senão mais Deus, o ideal de ser a Tecnologia, o Trabalho, a Harmonia,
a Pactuação e a Ordem, o Capital, o elo da corrente causal do perturbado presente
com o sempre alardeado e distado futuro promissor.
O porquê de Whitehead, em referindo-se à Filosofia das
Ciências, pelo alvitre seu de busca de relações (ou ausência de relações) entre as
ciências todas, citar as tendências múltiplas contidas em cada sistema fechado,
que como o hegeliano se estruturam, tecendo as considerações que:
O pluralista filosófico é um lógico rigoroso; o hegeliano floresce em meio a contradições com a ajuda de seu absoluto; o sacerdote maometano curva-se diante da vontade criativa de Alá; e o pragmático aceitará o que quer que seja contanto que “funcione” (1994, p. 6).
Aí a ponte filosófica e ideológica de um real objetivo criando e
coligindo as mediações necessárias a esse tipo de pensar intra e intersubjetivo,
impelido por método metafísico-idealista, positivista e pós-Moderno, apegado ao
epifenomênico, ao momento do cotidiano desapego da dialeticidade (marxista) da
83
tríade singular-particular-universal, em que a transescalaridade das relações são
mais que métricas, mas sociabilidades imbricadas, abarcantes e histórico-
geograficamente conflituosas, por conta da própria estrutura da realidade social,
cujas propostas científicas pelo Whitehead explanadas sempre esbarram, tendo em
conta as limitações estabelecidas na forma do olhar, que acaba por dirigir a visão
para o que se quer enxergar51.
Este o motivo para Ellen Wood, conforme observação do
sociólogo Ricardo Antunes, considerar o capitalismo vigente portador de grande
maturação e universalização, com alterações na base produtiva, na esfera do
mercado e na dimensão cultural das sociedades, de conteúdo maior do que mero
trânsito da Modernidade à Pós-Modernidade (Modernity, Postmodernist or
Capitalism?, 1997, p. 539-540 apud ANTUNES, 2000, p. 48). Estaria já o
capitalismo plenamente realizado como modo de produção e cultura mercantil
(MOREIRA, 2002a, p. 32).
As novas-velhas justificativas do capital, ventiladas a todas as
direções da sociedade, para ideologicamente tentar tapar as voçorocas materiais
abertas sob os homens, quais rachaduras que não cessam de avançar.
A ampla crise do movimento operário, reverberando para a
questão da consciência de classe, estendida para sindicatos, partidos políticos,
parlamentos e instituições representativas, se expressa política e teoricamente
como novas ideologias Pós-Modernas, presentes na “Morte do Sujeito”, no Fim
das Meta-Narrativas e no Fim das Vanguardas, para ultimar no “Eterno Presente”,
como produtos e efeitos do Máximo Mercado (PELLEGRINI, 2001).
Ideologias, diz F. Florestan (1995, p. 120-121), que anunciam o
“fim do socialismo” e a “morte do marxismo” por serem criadas pelos fariseus
que vivem da moda intelectual produzida e propagandeada nos centros de
produção cultural dos países centrais, agora sob fachada da social-democracia.
51 É sabido que a Escola de Frankfurt, nas figuras de Max Horkheimer (1895-1973), Theodor Adorno (1903-1969), Herbert Marcuse (1898-1979) e Jürgen Habermas (1929-), ao colocar-se a negar o positivismo e o objetivismo puro nas ciências sociais e a afirmar o peso dos valores individuais nos estudos, de igual modo ao que fazia a fenomenologia, punha-se a afirmar o caráter histórico das ciências sociais e a incorporação de questões como o imaginário e a estética aos estudos da realidade.
84
Importante a mensagem do Prefácio do livro de Srour (1978, p.
17) feita por Robert Frossaert, na qual, ao versar sobre a cuidadosa e necessária
“dessacralização de Marx”, com as quais a teoria busca a “adequação prática ao
real”, há o desferir de aguda crítica aos “novos filósofos” franceses:
cuja única novidade consiste em enterrar Marx em nome do Gulag, de Nietzsche, de Leibniz, quando não em nome de Deus. Creio que algum dia alguém deveria fazer-lhes saber que Marx está enterrado em Highgate desde 1883, mais isto não vale a pena: as modas parisienses mudam depressa, sejam elas intelectuais ou indumentárias!
A nosso ver, nada mais do que a radicação do Mundo Paralelo,
oficial e fictício, no posto de centralidade da vida hodierna (THOMAZ JR., 1992).
Para além do mundo fragmentado do pensar, o capital atingiu o
mundo do agir, acondicionando-o.
Não é de se deixar notar, amiúde no que toca à problemática das
vanguardas, que o desgosto com o atropelo sofrido pelo movimento operário
revolucionário gerou resistências teórica e prática à formação e aceitação das
mesmas; quando entendemos que a função da vanguarda deva ter por horizonte o
caminhar para o seu fim, formando sujeitos conscientes que adensem o processo
de desalienação. A diferencialidade das potencialidades dos sujeitos não deve ser
desprezada, no entanto direcionada contra o capital. O problema não está na
vanguarda em-si, senão na postura por ela avocada: seu distanciamento,
profissionalização, burocratização ou descolamento da base, pondo-se cooptada
pelos atores dominantes ou pelos que querem isto se tornar. A diferencialidade e o
direito universal à individualidade não devem estar apartados da cooperação do
indivíduo com o projeto coletivo: o indivíduo dando de si “conforme a sua
possibilidade”, sob égide do (e contra o) capitalismo.
Como outras de não menor valor, impõe-se essa como questão
ideologicamente embaralhada pelo pensamento hegemônico que quer-se único,
porque algumas experiências práticas de vanguardas mostraram-se desastrosas
mundo afora, justificando ideologicamente o menoscabo sofrido por estas
tendências, tidas como anacrônicas nos “novos tempos”.
85
Nada obstante, se toda teoria ou ideologia tenta pôr-se como
arcano, o seu desbotamento rebenta da própria empiricidade das condições
objetivas, no instante em que o sujeito reconhece a razão que responde pela
brutalização de suas condições objetivas, em seus espaços mentais interiores e na
convivência coletiva que se faz comparativa de experiências, solidarizando-se e
politicamente elevando e consolidando, por meio de práticas populares, o nível de
concreção cognitiva do real.
A consciência da ausência, do que existe e do que despossui,
desdobra a consciência subjetiva do mundo objetivo. Como efeito, ao menos em
tendência avoluma-se e esboça-se, a consciência coletiva e objetiva dos elementos
subjetivos inextrincáveis ao ser. Não onisciência mas parcial e histórica
(cons)ciência do espaço construído e dividido alienadamente.
Os processos de concreção material e espiritual se interagem
enquanto re-apresentação sujeito-objeto e sujeito-sociedade; e das fissuras e da
incapacidade ontológica de manutenção da homogeneidade e perfectibilidade no
corpo da ideologia, que por esse viés acaba por manter a coerência na
incapacidade ontológico-estrutural de revolver os furos em seu tecido
interpretativo, que tenta maquiar e manter invisível os elementos contraditórios
estruturais que conformam o real, fertilizam antiteticamente as possibilidades de
solidificação de ideologias alternativas.
O entrançar do tecido da ideologia contém então desfiadas
linhas. Tanto que à ideologia que informa o que pensar e o que se quer fazer
pensar, da classe dominante (Marx), ou a estrutura psíquica hegemônica espraiada
territorialmente pela psicoesfera (SANTOS, 1994, 1997)52 para se atingir
determinado fim econômico, qual estrutura a pretender represar as águas da
história, de fissura em fissura, mesmo que apostando evitar o desgaste contínuo,
ora ou outra sinaliza de forma mais intensa o peso das forças silenciadas que
esperam o momento por fazer-se jorrar.
52 Ao M. Santos está na unicidade técnica o meio de realização da mais-valia global, não atrapalhando o seu manifestar concentrado e centralizado espacialmente. A tecnoesfera é o que interliga o mundo em rede, enquanto a psicoesfera, em si produto da unicidade técnica, a (re)alimenta, como ideologia dominante e condicionante de comportamentos sociais.
86
O capital, mediante processo de desestruturação dos indivíduos
sociais, reestrutura-se nas dimensões materiais e espirituais. A forma de
sociabilidade, em-si contraditória e destrutiva, gera experiências destrutivas entre
os indivíduos e estes, por força maior duma lógica hegemônica e existencial
histórica, naturaliza a destrutibilidade como fenômeno universal comum em
sociedades complexas.
A fatalidade da natureza social já não tem nada de divino e
sobre-humano: o espaço é produto da natureza social que aliena material e
psiquicamente os valores ocorrentes, como excedente produzido pelo mundo do
trabalho ou em última instância como pensamento urdido ao universo social do
não-trabalho, atinente à reprodução no espaço-vivido-do-além-trabalho.
Apesar disso, há que se ressaltar que ainda que muito
racionalizada e predeterminada a existência, o indivíduo é um poço profundo de
indeterminidade, sobretudo aos burgueses transparecendo como ervilha na lata de
ervilha (na expressão de Sartre) ou tijolos homogêneos talhados na forma bruta do
muro (na alegoria de Roger Walters, ex-vocalista do Pink Floyd).
Na irredutibilidade ontológica da imanenticidade do caráter de
indeterminidade estabelecida entre o Eu e o Mundo repousa a potência do novo,
do alternativo, na dialética da confrontabilidade entre legalidade e racionalidade;
pronunciou Lukács que legalidade não é racionalidade, simples relação de causa e
efeito, antes aludindo à irredutibilidade ontológica do ser ao indeterminado53 que
se não é socialmente em tudo central (como pensam os pós-modernos, que no
outro extremo negam a causalidade) é certeiro de avulsa ocorrência.
53 Sobre o indeterminado, as opiniões de dividem: de um lado estão os que defendem a existência do indeterminado no ser e, de outro, os que ponderam se o indeterminado não se constitui apenas como causalidade desconhecida, sendo-o o desconhecido determinado, cujo o vazio teórico deve a ciência colocar-se a preencher. Talvez o acaso e a necessidade (a lei) devam ser concebidos como aspectos igualmente objetivos, como aspectos contraditórios e unidos dialeticamente na natureza – do mesmo modo que o acidental assume papel de destaque na teoria darwiniana –, porque o movimento da determinação não pode ser visto como evento mecânico, contendo também traços de espontaneidade, como movimento que revela o acaso ou o “autodinamismo” da natureza (autocontida), a se imbricar numa totalidade dialética de difícil discernimento. Para essa discussão: CHAUÍ, 1999, 2000; LEFEBVRE, 1968a, 1995; RIBEIRO, 2005b.
87
Pensando em termos luckacsianos: sinonimizar legalidade e
racionalidade condiz com o sagrar da gnosiologia lógico-estrutural à ontologia
histórico-dialética do ser social.
Mesmo na Física houve os que, a primazia foi do físico alemão
Albert Einstein (1879-1955), em descobrindo a aleatoriedade da natureza
subatômica, donde as probabilidades querem desbancar as certezas, se ergueram
ao desvendar da teoria da relatividade, ocupando-se com o fio de interligação
entre a relatividade especial e a mecânica quântica – idéia que os físicos pósteros
superestimaram.
Inegável a dialética do real, no universo físico-natural ou social,
independentemente de classes e da formulação de leis político-econômicas para
reger a sociabilidade. A imprevisibilidade, tal a complexificação do ser, coloca
questões inimagináveis aos que buscam dirigir com menores riscos o ser.
Não se pode, todavia, negar que a estatização e capitalização do
ser geram modos-padrões de sociabilidade.
Como totalidade dimensional objetiva – mais do que mera
geometria paisagística de formas e objetos escalares e locacionais –, o espaço
apresenta-se como complexo de relações sociais geografadas, materiais e culturais
(no sentido amplo do termo). O espaço geográfico, se servirmos-nos da tese de
Milton Santos, talvez deva ser considerado em sua totalidade, compreendido
como “universalidade empírica”; o que requer do pensador o partir metódico da
constituição empírica universalizada expressa nos e pelos espaços da
globalização, apreendendo os elementos estruturais e processuais imanentes.
Outro não é o propósito desse geógrafo ao argumentar que:
Em nosso ponto de vista, um caminho seria partir da totalidade concreta como ela se apresenta nesse período de globalização – uma totalidade empírica – para examinar as relações efetivas entre a Totalidade-Mundo e os Lugares. Isso equivale a revisitar o movimento do universal para o particular e vice-versa, reexaminando-o, sob esse ângulo, o papel dos eventos e da divisão do trabalho como uma mediação indispensável (SANTOS, 1997, p. 92).
88
E reforça mais adiante, respaldado em Wittgenstein, que: “A
totalidade é a realidade em sua integridade”, como totalidade de coisas e de
homens em relações e em movimento (ibidem, p. 94).
Na opinião do geógrafo Douglas Santos é preciso reconstruir a
relação sujeito-objeto, para que aquele que constrói o discurso não se perca em
enunciados positivistas que tratem de algo predeterminado e desposado do sujeito
concreto que vive espacialmente. A geografia, ou os geógrafos, devem assumir de
forma consciente a reflexão “sobre a espacialidade de forma sistemática”, uma
vez que “A geograficidade existe na cabeça de todos nós, senão não
conseguiríamos reconhecer nem a diferença entre a nossa casa e a do vizinho”
(FRANCO GARCÍA; GONÇALVES, 2003, p. 123). De modo desalienado em
relação ao objeto (espaço), este se torna a versão de verdade atingida pelo sujeito-
pensante-concreto que o teoriza, já que:
aquilo que o sujeito diz sobre o objeto é uma verdade da coisa e não uma verdade da relação. Mas as verdades não estão somente nas coisas, nós é que nos relacionamos com elas. Nós falamos das coisas, elas não falam por si mesmas (FRANCO GARCIA; GONÇALVES, loc. cit.).
Comungando com Thomaz Jr. (2003b, p. 6), defendemos a
necessidade de se:
Apreender esse processo por meio da “leitura” geográfica (que) é, antes de tudo, aprender a raciocinar geograficamente, isto é, aprender a identificar formas, estabelecer parâmetros de localizá-las territorialmente e desvendar o significado dessa ordenação.
Como expõe D. Santos, tradicionalmente destina-se o geógrafo
ao “desvendamento do significado das localizações”, sem deixar de “olhar para
o mundo efetivo” (FRANCO GARCIA; GONÇALVES, 2003, p. 126, 128).
Primordial a apreensão da lógica da distribuição da
(des/re)localização (MOREIRA, 2006, p. 172). O juízo da regulação espacial é
essencial a geógrafos e a quaisquer outros pensadores, pois quem não lê hoje o
mundo espacialmente não o compreende, “por que as categorias explicativas do
89
mundo hoje são as categorias espaciais. Pela razão pura e simples de que o
mundo hoje se organiza em termos espaciais” (idem, 2003, p. 59).
Priorizar o tempo, esquecendo o espaço, enleia o idear
metafísico da história. Ao Reclus “a geografia é a história do espaço enquanto a
história é a geografia do tempo” (apud ANDRADE, 1994, p. 23).
Necessário faz-se revisitar a metafísica. Não a idealista. Mas a
que se ampara em pressupostos materialistas, no silogismo do concreto, com uma
perspicácia dedutiva que seja a mais científica e materialista possível, sem
incorrer no erro de querer separar em pensamento o que na realidade encontra-se
concatenado, como o faz a metafísica idealista (LEFEBVRE, 1995, p. 54, 65-71,
254-255 passim). O pensamento geográfico sobre o topos existente ou o
inexistente (u-topia) deve propor-se a distinção entre o que são pensamentos
metafísico-idealista e metafísico-materialista (RIBEIRO, 2001b, p. 79 passim).
Se, conforme Santos, existe a universalidade empírica (1997), esta se manifesta
hoje, segundo Moreira, como o que se cognomina de globalização, a concretizar
enfim o antigo sonho grego de universalização de determinados truísmos
metafísicos (direitos, democracia, justiça social, etc.), só que, diferentemente dos
de algures de outrora, atualmente efetua-se o manifestar em escala global de
elementos da determinidade do capitalismo, que incorporou aqueles conteúdos da
metafísica ao seu discurso e ao seu movimento revolucionário, grandemente
através das categorias de ordem, natureza, tempo, espaço e, especificamente,
mediante os universais metafísicos de mercadoria e valor-trabalho (MOREIRA,
2003, p. 58-60; idem, 2002a, p. 42-43). Por esse mecanismo ideológico, o capital
transforma idéias falsas, invertidas e irreais em fenômenos (pseudo)concretos,
pelo esparzir e renovar do complexo de “universais abstratos” (CHAUÍ, 1991, p.
95), concernentes ao movimento pelo qual as ideologias do capital manifestam-se
objetivamente como práxis, como pensamento praticado-objetivado e fetiche de
práxis estranhada e reentranhada no pensar.
No rastro do pensamento do lugar, que pode ser freio ou motor
ao realizar globalitário dos vetores fundamentais do capital, deve o geógrafo pôr-
se à caça. O ordenar e distribuir locacional porta o conteúdo da lógica espacial.
90
O discurso concreto só será construído da melhor forma se
estiver claro que os espaços, como os sujeitos, são construções sociais materiais e
imateriais interdependentes dialeticamente, nem neutras e nem isoladas. O sujeito
que se desvencilha e se isola teoricamente das mediações e resultados do discurso
cria unicamente a noção de espaço abstrato, positivista, elaborado por quem se
quer neutro e anônimo.
O período atual de desenvolvimento econômico-material da
humanidade decreta a forma(ta)ção hegemônica do espaço como totalidade
empírica cuja expressão fenomênica sintetiza a planetarização dos universais
idealísticos do capital. Espaço-mundo como unidade da diversidade de lugares
enredados geograficamente à reprodução da mais-valia global.
Atentar à complexidade dialético-concreta da realidade requer o
relacionar do estar espacial com o ser social. O espaço é extensão corpórea e
concreta da sociabilidade (material e imaterial) porque, na dialética da
interpessoalidade, nas trocas de experiências e idéias cotidianas, perpetua e sofre
redefinições dos espaços interiores (intra-subjetivos), sobremodo se vontades e
inquietações permanecem às sombras por muito tempo, como dimensões
impossibilitadas de emergir, fazendo com os indivíduos venham a se encher da
sensação de vazio e buraco, até não mais agüentar.
Explode o cerne da dialética sócio-espacial: a alternância
dinâmica dos cheios e vazios de Jean Brunhes ou a dialética espacial dos fixos e
fluxos de M. Santos espelham as formas temporais de como as sociedades se
organizam espacialmente (MOREIRA, 2006, p. 172) mas, contraditoriamente,
atualmente o encher ou densificar do espaço abstrato capitalista não
necessariamente preenche o vazio espacial-existencial do homem por
humanidade. Esvazia-o mais. Ganha em espessura o (pré)espaço burguês pelo
rarefazer do social. O ser burguês está na raiz do não-ser ou do deixar-de-ser
alternativo, justapondo regras de seu dever-ser. Convém rememorarmos inclusive
que os “espaços vazios” (sic!) pré-capitalistas do território brasileiro serviram de
pressuposto ideológico ao expandir da sociabilidade e territorialidade burguesas
(RIBEIRO, 2001b).
91
O estatuto “ontológico” do ser capitalista, substancialmente
cartesiano, dilacera, pela avalanche de ideologias alienantes, a ponte que une dois
continentes: o espaço subjetivo do ser e o espaço como condição objetiva do estar
(questões corriqueiramente aludidas como sujeito-objeto ou sociedade-natureza);
o divórcio forçado dessa unidade faz com que os conteúdos da essência
universalizada passem a ser vistos como formas de particulares pesos e medidas.
A clivagem do espaço e a compartimentação do social ocorrem de par com o
esfacelamento do ser individual, com a vida pessoal e afetiva sendo retalhada, o
eu desconhecido, o outro incompreendido e temido (contradição intraclasse), a
compreensão multifacetada na miríade de partes aparentemente desconexas que
perfaz o caleidoscópio sentimental, em que nada e ninguém parecem ter sentido,
senão o desconhecido sentido intencionalmente instituído pelo capital.
Cremos que a dialética entre fatores internos e externos é mais
complexa e profunda do que costumeiramente está-se a imaginar e que a síntese
que perfaz a identidade individual (personalidade), além de resultar de escolhas
conscientemente selecionadas e de influências coletivas indiretas e inconscientes
ao sujeito, possui uma não menos importante origem genético-biológica. Ou seja,
se há interação entre espaços internos e externos, a constituir a síntese histórica do
sujeito em termos comportamental e biológico, da mesma forma há,
compreendem certos psicólogos, a transmissão hereditária desses caracteres, por
ser o indivíduo um híbrido social e genético-biológico que contem traços da sua
época e das que passaram: elementos retidos na constituição comportamental-
biológica dos antecessores e às quais herdou geneticamente (distmia,
temperamento, ansiedade, etc.). É óbvio que isso se trata de propensão genético-
comportamental, haja vista que os estímulos do espaço experienciado pelo sujeito
podem transmudar os caracteres recebidos, sendo-lhes sobremaneira influente.
Sobre a questão do temperamento em particular, não são poucos
os psicólogos que creditam que advenha da incapacidade demonstrada pelo
sistema nervoso em adaptar-se ao ambiente em que vive e de suportar seus
estímulos, e que tal inadaptabilidade se faz passível de transmissão hereditária
(DORIN, 1980b). Parece que não é exclusivamente em nível de idéias ou
92
ideologias que os mortos continuam a assombrar a mente dos vivos mas, em
menor escala que seja, em nível genético, que se poria como momento sintético e
dialético do binômio comportamento-ambiente registrado biologicamente pelo
ser, que o passaria adiante, aos descendentes, como estrutura físico-psíquica
potencialmente desajustada ou instável. A relação mundos interno e externo,
espaços interno e externo, assinala a simbioses de geografias da subjetividade-
objetividade herdadas, conflitantes e socialmente superáveis, na dialética homem-
mundo, indivíduo-coletivo, simbologias-realidade.
O alheamento do ser a si mesmo (decisão sobre a vida ou
história individual), do seu derredor (espaço de trabalho, do residir, atuar e por
que não, resistir) e do outro (profissional concorrente), salvo às devidas
proporções, confirma a clivagem que nega identidades reais para criar as factícias.
Ideologias todas armadas pelo capital.
O capitalismo embutiu sua identidade egoística no nível
microscópico, do eu. Indica-nos o francês Alan Bihr (1999, p. 69-79) que suas
encarnações expressam-se em várias frentes interagentes, como: a) no fetichismo
do produtivismo: com o desenvolvimento das forças produtivas projetando-se
como porta-bandeira ao engrandecimento material e moral dos sujeitos; b) no
fetichismo jurídico-político: de leis gerais e abstratas mantidas pelos “neutros”
aparelhos de Estado e; c) na fetichização da racionalidade instrumental: enquanto
crença na ciência, como algo em-si e redentora do social, desapega a análise da
finalidade que a norteia (acumulação do capital) e, por fim; d) no fetichismo do eu
hasteado pelo capital: na atomização dos membros da sociedade no pensar e agir.
No mundo da prevalecente “feira de sentidos”, qualquer
indivíduo em particular pode instituir o sentido que entenda corresponder à sua
existência, tanto em nível de identidades, como pertences, valores e modos de
vida (ibid., p. 172), porque estão todos a “convergir” à “individualidade
personalizada”, correspondente à ordem imperante que tranca a todos em
“mundos particulares privados”, desconectando-os psicossocialmente dos demais
e jogando as chaves fora (BIHR, 1999, p. 173).
93
Com isso, o capital fragmenta ou debulha as subjetividades, não
de forma homogênea e inconteste entretanto, para impingir a sua identidade: a
idé(olog)ia que o capitalismo criou de si e infligiu ao restante da sociedade, nas
mentalidades individuais entupidas de narcisismo, alienação e consumismo.
Fonte negra da ignorância que tudo mais ensombra, as correntes
da ideologia escoam e se exprimem em arquétipos congelados de pensar.
Esparramando-se pelos dutos de sociabilidade como fios d’água que se derramam
em marolas ilusionistas a ludibriar os seres sociais com miragens de inverdades no
horizonte próximo, para a qual todos unidos devem pôr-se a remar.
A ampliação das tendências destrutivas ganha tonicidade no
pressentimento da insatisfação com algo ou consigo, com a autopunição
intensificando-se na fuga pelas toxicomanias, na caoticidade do trânsito ou
diretamente na morte “autoprovocada” pelo suicídio (RIBEIRO, 2001b). Produtos
da manifestação negativa da pressão-opressão da descarga compulsiva provocada
pela lógica social que sufoca os seres nos campos e nas cidades do globo, muito
lhes exigindo econômica e politicamente e pouco de realmente importante lhes
outorgando, negando-lhes o alimento do pão e do essencialmente belo (BETTO,
s/d), mercantilizando e dividindo os juízos histórico e estético (LUKÁCS, 1997).
A estandardização, como estatização e capitalização do ser, gera
inconformismos, inadaptabilidades porque longe não obstante estão as forças de
padronização de realizar-se por completo.
Esta uma das questões que devem ser avaliadas, porque
fundamentais ao inclinar metódico ao concreto: saber pensar a dialética do ser-no-
mundo/não-ser-no-mundo, o estar-aí/não-estar-aí, a presença/ausência. O homem
guarda muito de altruísmo, despreocupação e generosidade, porquanto a
generosidade a nada mais servir do lado burguês que ao mito da fraternidade
(SARTRE, 1999, p. 136). Essas as limitações do humanismo certa vez declaradas
como alvitre teórico propenso a “desarmar o proletariado” (ALTHUSSER, 1999,
p. 44) e que mal logram disfarçar os fins políticos nada humanistas (LEFEBVRE,
1981, p. 63). Inclusive porque mesmo na suposição de o humanismo desejar a
intervenção pacifista, a ingenuidade e o romantismo que pregam – nos casos em
94
que se ausentam ideologias escusas dominantes – contribuem ao imobilismo nos
momentos de choques sociais mais agudos. Até que, no fim, diretamente ou não,
se criva de conservadorismo; idéias abstratas e incondicionais do que desejam que
a sociedade seja se antepõem ao imperativo de criação anterior das condições
materiais propiciadoras de sua concreção54.
Essas formas de se pensar, que vão do senso-comum à lógica
(matematizada) do pensar científico-acadêmico, esboçam-se genericamente em
modelos e métodos científicos com conteúdos formais, fragmentados e
antidialéticos, porque não se poderia esperar nada distinto dum mundo pensado,
feito e vivido de maneira tão segmentada e segregadamente.
O espaço criado pelo “sujeito” capital apresenta-se como prisão
ou gaiola de ferro – para utilizarmos de expressão weberiana. Desse modo sendo-
o reproduzido alienadamente pelo ser.
Como conteúdo e continente do ser alienado, a espacialidade
arquitetada encontra seu respaldo na superestrutura ideológica golfada por todos
os canais da sociedade, porque a estatização e mercantilização do ser amparam-se
em compósitos ideológicos que abraçam e se arremessam desde as pistas das
ciências às formas mais cotidianas de se enxergar o real, porque sempre teve por
fina união o mundo do trabalho (material ou teórico que seja) sustentação com o
mundo do não-trabalho, inda que difícil o divisar da intersecção.
1.2 Um pouco mais sobre (teoria do)
método: a reta e o círculo, o
pontilhado... a espiral
Totalidade aberta e totalidade fechada não de agora ouvimos
falar. Tampouco sobre parte e todo, fragmento e totalidade, estrutura e função,
forma e conteúdo, aparência e essência, fragmento e soma, quantidade e 54 Também é importante assinalarmos que as posições sobre o humanismo não são unânimes, havendo tipos de humanismo que poderíamos tomar por crítico-radical, como os manifestos por Sartre (1998b) e pelo “humanismo socialista” de Lukács (1997).
95
qualidade, identidade e diferença, o (neo)positivo e o dialético, continuidade
conservadora e ruptura violenta, criticidade e radicalidade, todo e totalidade55,
totalidade e totalização56, entre várias outras categorias de inquirição e construção
do discurso científicos. Temas que remetem ao método e que não se resumem
puramente a opções fortuitas de observação e postura; conquanto o aleatório
apresentar-se a muitos como o melhor procedimento de coordenação
investigativa: como metodologia do ajuntamento anárquico.
O método é o que tenta transpor a ordem do mundo ao plano do
conhecimento teórico, sistematizando cognitivamente em teoria a processualidade
da totalidade social, com o que se valida o ponto de vista que tem a teoria como
“um todo, um sistema” (LEFEBVRE, 1968a, p. 102) que atua pela análise e
ajuntamento de um conjunto de fatos (id., 1995, p. 56), para uns como “rede de
conceitos” (M. Santos), para outros rede articulada e de conjunto da experiência
(LAING, 1978), ou quem sabe ainda “explicação ou interpretação intelectual de
um conjunto de fenômenos e significações (...) que estabelece a natureza, o valor
e a verdade de tais fenômenos” (CHAUÍ, 2000, p. 157-158).
Mas se a teoria é a rede de conceitos, são eles a forma do
conteúdo (LEFEBVRE, 1968a, p. 104) que expressam a lógica do conteúdo ou a
lógica da qualidade (idem, 1995, p. 141) que a sociedade apresenta em seu
movimento dialético. Por isso é que a forma deve se reobservar continuamente no
confronto com a essência para se saber se inda a espelha ou se a deturpa
ideologicamente. A tríade práxis(meta)teoria como discurso sobre o discurso
(científico) baseado no real (MÉSZÁROS, 1993b; SILVA, 2000) tem por função
desvelar de modo utópico (COELHO, 1980) ou utópico-científico (RIBEIRO,
2001b, 2004c), a partir do futuro engravidado no presente, as crias passíveis de
ganharem vida pelas mãos dos seres conscientes que queiram dar as suas marcas
ao espaço que se encontra privadamente apossado (RIBEIRO, 2004c), mas
55 Silva (1991) distingue esses dois conceitos, negando a posição de Milton Santos (1997, p. 93 et seq.), que toma todo e totalidade por sinônimos, sentido único distinto apenas do de “partes”. 56 Valendo-se especialmente de Sartre e Lefebvre, Santos (id., p. 95-96) lembra-nos que a totalidade é o resultado e a totalização, processo. A primeira é a totalidade produzida (mas sempre incompleta, por re-fazer-se) e a segunda a totalidade em produção. Podendo as duas convergir e conviver em um mesmo momento e lugar.
96
obviamente com o justo cuidado para que o discurso sobre o discurso, a
metalinguagem portanto, não se perca em “‘diálogos’ sem fim”, como inútil
“fuga para frente” (LEFEBVRE, 1968a, p. 108), isto é, para que a transcendência
não se faça subterfúgio sofístico, de uma metalinguagem abstrata que queira se
passar por filosofia a ilusoriamente transparecer como “decodificação absoluta” e
“hermenêutica soberana”, buscando atingir verdades absolutas-eternas-puras-
perfeitas-transcendentais ao imperfeito-limitado pensar humano (idem, 1995, p.
32, 90), e que quanto mais longe do presente olha mais suscetível de cegueira
pode estar – como pensara Paul K. Feyerabend. Preferimos ter a metateoria,
pensando materialisticamente, como forma de viagem teórica aos mais profundos
alicerces do espaço concreto.
O método como ponte teórica do conhecimento erigido sobre o
terreno da sociedade, sem largar vistas da prática e não enfiado nas nuvens
filosóficas do idealismo, serve como azimute que se magnetiza e reorienta
segundo as forças materiais-objetivas em cena, não separando julgamentos de
valor de juízos de fato no processo de construção do conhecimento – como
operam os idealistas. Fazendo uso para isso, tanto da abstração (redução do
conteúdo) como da concreção (retorno para o concreto).
Em tese, haveria aqui leve semelhança com a concepção
platoniana de método, que se poria como passaporte ao saber verdadeiro, liberto
do conhecimento sensível (opiniões, crenças) e do seu recheio de aparências e
ilusões. Platão percebia o método como a forma racional que contribuía para que
o conhecimento avançasse pela discussão racional, como discussão de teses
contraditórias que, negando-se constantemente, possibilitaria que se chegasse à
essência da coisa, à idéia universal. Por isso Platão nomeou esse método de
dialética, distinguindo-se do dos atenienses que a tinham como arte da retórica.
Ao Aristóteles a dialética conseguiria indicar dar o ponto final
ao conflito de teses, impossibilitando que se descerrasse a verdade. Endossou
então o método dos silogismos (indução e dedução) como fundamento da teoria
do conhecimento, estando no conjunto das três proposições o meio mais indicado
para que se tocasse a conclusão verdadeira.
97
No milênio em que mais prevalece a escolástica o conhecimento
vê clivar-se razão de fé devido às considerações do platoniano Santo Agostinho
(354-430). Os primeiros quinhentos anos viram surgir teorias racionais quase
heréticas que pregavam o livre-arbítrio da investigação racional humana, como a
do irlandês João Escoto (800-877) que afirmava prevalecer a razão (verdade de
Deus) sobre a religião (devoção a Ele). Quase outros quinhentos anos depois
surgem os protetores da fertilidade da união entre razão e fé, o conhecimento da
natureza aumentando a fé no Criador, como pensava o Santo (influenciado pelo
aristotelismo) Thomas de Aquino (1225-1277).
Mas foi a partir do século XVII, durante a modernidade
portanto, que a necessidade do método se expôs mais urgente a um sujeito que
questionava se poderia alcançar ou não a verdade das coisas, desconfiando dos
conhecimentos herdados – como os conhecimentos sensíveis, pressentidos como
crescentemente ineficientes para postular a função de guia no mundo renascido.
Só, esse sujeito esperava contar apenas com o pensamento. E da
solidão e do afã de conhecimentos verdadeiros é que vem acudir o método.
Descartes declarou-o como “regras certas e fáceis, graças às
quais o que as observa exatamente não tomará nunca o falso por verdadeiro e
chegará, sem gastar esforço inutilmente, ao conhecimento verdadeiro de tudo
aquilo que seja capaz” (2005, p. 81). Feito isso, identificou as suas três principais
regras: a) certeza: segurança; b) facilidade: economia de esforços inúteis; c)
auxílio: todo o conhecimento possível pode ser alcançado pelo entendimento.
Bacon proclamou o método como o modo seguro de “aplicar a
razão à experiência”, investindo o conhecimento lógico aos dados oferecidos
pelo conhecimento sensível; enlevando a veracidade mediante o método
experimental que, por seus esforços, representou a versão pioneira do empirismo,
ao prezar que todas as proposições dependem da experiência para ser avaliadas
quanto à veracidade.
Certo de que a razão era a condição habilitadora para o destapar
das leis da natureza e da iminência da necessidade duma nova teoria e
metodologia para o desenvolvimento da humanidade, tendo-se por autonomizadas
98
as disciplinas de teologia e filosofia, denotava Bacon que “O conhecimento e o
poder humano são a mesma coisa, pois a única forma de se conquistar a natureza
é obedecendo-a” (cit. in. OLIVER, 1998, p. 67).
Sobressaiam-se no Renascimento: “A observação, a
quantificação, a mensuração, a descrição, o conceito de função e a preocupação
com a elaboração de leis (que) passaram a ser os novos referenciais do
pensamento” (LENCIONI, 2003, p. 55).
Na tal busca pela verdade, a empreitada baconiana recebe
destaque no fato de o saber racional dever esgueirar-se dos quatro “ídolos do
saber”, que de todas as formas quer impedir-lhe de enflorar, sendo-os:
Ídolos da tribo (idola tribi): advindo da tentativa de se querer, por meio das
projeções de desejos e esperanças, assacar à natureza estruturas as quais ela
não detêm, elaborando interpretações errôneas sobre suas leis, comprovando
que o julgamento do homem sobre a Natureza não poderia refletir o mundo
com objetividade;
Ídolos da caverna (idola specus): tendência demonstrada pelo pensador de
deixar que características pessoais específicas, decorrentes de sua formação
social, influenciem no estudo da natureza, tendo como conseqüência o afastar
da verdade já que, entendeu Durant, para a teoria baconiana “A verdade não
tem partido” (2000, p. 139);
Ídolos do foro (idola fori): considerado o grande perigo ao avanço da ciência,
atine à propensão a se usar palavras indefinidas, guiando-se o pensador pela
linguagem mais comum do que pelas explicações científicas, pois a
comunicação estabelecida entre os homens faz com que venham a tomar, em
sua mente, por verdade o que não passam de mendazes suposições57,
querendo ter por verdadeiro nada mais que filosofia teatral provida de
representações cênicas – qual o retratado por Platão, que tomou por real
muito do que sua mente conjeturava; 57 Durant (2000, p. 139) ressalta-o como Ídolo do Mercado, atrelando-o ao aumento do comércio e da associação entre os homens, com uma multidão de palavras sendo formadas inexatamente, causando a obstrução da mente.
99
Ídolos do teatro (idola theatri): relaciona-se à disposição demonstrada pelo
pensamento em se aceitar doutrinas, fazendo com que a retórica muitas vezes
ocupe o assento da verdade – o que pode levar os preceitos da tradição a
enganar o homem.
Com os devidos cuidados metódicos com os ídolos, Bacon
apostava na razão como elemento indispensável à construção do saber.
O traço comum a essa charneira renascentista talvez esteja na
avaliação feita por Chauí (2000, p. 159) de que o método “sempre teve o papel de
regulador (...) guia o trabalho intelectual (produção das idéias, dos
experimentos, das teorias) e avalia os resultados obtidos”.
Então, o método regula e auxilia o sujeito na análise e
construção do conhecimento da realidade. Buscando a verdade de modo racional.
A consciência é o passaporte, sugere Cleverson Leite Bastos
Keller58.
Método como espécie de vereda onde percorre a carruagem da
razão. Conforme Keller (1996, p. 84):
Método é um procedimento de investigação e controle que se adota para o desenvolvimento rápido e eficiente de uma atividade qualquer. Não se executa um trabalho sem adoção de algumas técnicas e procedimentos norteadores da ação.
Todavia, como atua ele diante de toda a diversidade que compõe
o real, seja em formas, movimentos, funções, arranjos e contextos?
Antigo e denso é o debate sobre isso.
A Filosofia desde priscas épocas e lugares onde Aristóteles
exercia seu peripatético estilo, julga que ao lado dum método geral devem
marchar métodos particulares, convenientes à análise de determinados objetos. Ao
Aristóteles então, os métodos deviam distinguir-se de acordo com o objeto
58 “A consciência de si é uma volta ao sujeito que conhece sobre si mesmo, tornando-se assim ele mesmo objeto do próprio conhecimento em um desdobramento que é característico do que se chama cons-ciência (ciente duas vezes), ‘sei que sei’ ou ‘saber que sabe’” (1996, p. 82).
100
focado: o método da química diferenciar-se-ia do da geometria e esse tanto do da
história como da física, e assim sucessivamente.
Em alguns períodos a Filosofia chegou a apoiar um único
método.
O fundador do método experimental, Galileu, fez isso com o
método matemático, recomendando-o a todos os conhecimentos da Natureza.
Descartes sustentou também a existência dum único método, independentemente
do objeto focado, porque a ele o procedimento de ordenar em nexos contínuos as
idéias deveriam ser universais (mathesis universalis), ou seja, como o meio eficaz
ao conhecimento da ordem necessária das idéias, válido a todas as áreas do saber,
da Filosofia às demais. Outros filósofos do final do século XIX compartiam da
opinião de que apenas um único método seria mais profícuo e, como se achavam
espantados com o desenvolvimento da física, acusaram que o método usado pela
“ciência da Natureza” seria o mais apropriado aos estudos, como o meio elencado
ao descobrimento dos encadeamentos causais do real, fossem eles naturais ou
humanos.
A proposta de um único e comum método para alguns não é
mais válida, principalmente por conta do prestígio que a fenomenologia59 do
filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938) e a corrente do estruturalismo
exerceram entre os campos do saber, asseverando que cada campo do
conhecimento deva ter um método próprio, adequado à natureza de seu objeto, à
forma como o sujeito dele se aproxima e de como a verdade é concebida dentro de
cada um desses campos.
Continuemos a exposição sobre o método no universo da
filosofia e no mundo de cada ciência para posteriormente termos mais referenciais
para subsidiar sua discussão no âmbito da ciência geográfica.
A complexificação social engendrava a compartimentação
científica que respectivamente projetava a divisão nas “técnicas” (metódicas) do
olhar.
59 Termo forjado em 1764 pelo físico alemão Johann H. Lambert (1728-1777).
101
Destarte, em relação à classificação dos métodos nos domínios
das ciências, Chauí (2000, p. 159-160) sobreleva:
Método matemático, dedutivo ou axiomático: o ponto de partida é um
conjunto de axiomas; encaixa-se melhor no estudo de objetos que existem
apenas idealmente, como pensamento;
Método experimental, hipotético ou indutivo: demonstra-se proveitoso às
ciências naturais (física, química, biologia, etc.) que observam seus objetos e
realizam os experimentos para formular e verificar as teorias com base em
hipóteses lançadas sobre os objetos; guiando os experimentos e avaliando os
resultados;
Método compreensivo-interpretativo: ajusta-se melhor às ciências humanas
(psicologia, geografia, sociologia, história, antropologia, etc.) que examinam
o sentido de ações, práticas e comportamentos, institucionais ou histórico-
culturais, desenvolvidos por homens que buscam desvendar o sentido do que
produzem, vivem e compartilham.
Já no respeitante aos domínios da Filosofia, quatro traços
destacam-se aos variados métodos empregados:
Reflexivo: inicia-se pelo autoconhecimento ou auto-análise do pensamento;
Crítico: investiga os fundamentos e as possibilidades do conhecimento
verdadeiro;
Descritivo: relata a essência de cada campo do saber e as formas da ação
humana;
Interpretativo: explicita as formas da linguagem e o sentido de objetos, fatos,
instituições e práticas em suas origens e mutações (ibid., p. 160).
Parafraseado por Marx na primeira observação do capítulo II da
Miséria da filosofia (1965), Hegel considerou o método “a força absoluta, única,
102
suprema, infinita, à qual nenhum objecto saberia resistir; é a tendência da razão
para se reencontrar, para se reconhecer a si própria em todas as coisas”.
Nessa concepção que o tem como portal racional ao universo do
saber, o método é o amparo do sujeito cognoscitivo ou o “instrumento racional
para adquirir, demonstrar ou verificar conhecimentos” (CHAUÍ, 2000, p. 157).
Não é difícil entretanto de se encontrar na literatura científica
inúmeras indicações de possibilidades de tratamento metódico e, por conta disso,
seria praticamente impossível citá-los todos60. Apresentamos não obstante alguns
exemplares metódicos, quer atinentes ao ramo da filosofia ou doutras ciências,
porque a geografia pode deles se apropriar para, analisando-os e comparando-os,
selecionar elementos que possam servir-lhe em sua odisséia pela elucidação da
verdade, para suplantar a aparência e alcançar a essência do espaço geográfico61.
Como instrumento de que se vale o pensador para avaliar a
realidade, é como podemos rotular o método. Se o faz sem se rever no processo
(relação sujeito-objeto), separando os elementos do real (coisas-fenômenos),
procede metafisicamente, apartando na mente o que de fato são inseparáveis;
60 O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, na Apresentação que fez aos públicos brasileiro e mexicano do livro Amazônia, de autoria da arqueóloga norte-americana Betty J. Meggers (1977), definiu-o como um importante trabalho amparado pelo método comparativo. Lukács, versando sobre o universo cultural do artista (seja-o literato ou outro) nos escritos sobre a arte e a estética, trabalha com a noção de tipicidade (herdada de Marx e Engels) e, ao lado dessa, acresce o método narrativo, com o qual busca contrapor-se ao método descritivo para expressar a realidade na literatura a partir dos tipos marcantes dos personagens que devem ser narrados ao leitor e não somente descritos, por que: “as coisas podem ser descritas, mas os fatos concernentes aos ‘destinos humanos’ precisam ser narrados”, concluiu Frederico (1997, p. 53) em estudo sobre o método do realismo empregado pelo húngaro a partir de 1930. E isso por compreendê-lo “como o único método apropriado para se obter uma representação artística correta (...) na ótica do que julgava ser a teoria marxista do conhecimento” (ibidem, p. 32). Para Lukács o artista ou escritor deve denunciar, tomar partido por intermédio dos personagens, diante de fatores sociais que impedem o desenvolvimento da humanidade, cerceando a liberdade. Através do método do realismo que adotava “como caminho para se chegar à verdade e, também, o critério para se julgar a produção artística”, Lukács opunha-se ferrenhamente ao que julgava serem posturas anti-realistas que quebram a unidade entre essência e aparência, fazendo reproduzir falsamente a realidade, como o expressionismo (que deforma a aparência para realçar a essência) e o naturalismo (prisioneiro da aparência fetichizada) (id., p. 34). 61 Exemplos podem ser tomados dos métodos supracitados. O método comparativo foi utilizado pela geografia (tradicional), podendo ser recombinado às premências do mundo e da ciência geográfica atual, tratando das novas diferencialidades espaciais de forma não contemplativa e isolacionista. Diante do avanço dos jogos de linguagem, das metáforas e do descuidado linguajar das teorias pós-modernas, quem sabe os métodos narrativo e do realismo lukacsiano podem ajudar a geografia a revitalizar sua linguagem, desenvolvendo uma geografia mais próxima do mundo da vida sem que se perca a criteriologia científica.
103
ficando-se unicamente na forma dos entes que vicejam aos olhos: como o que se
verifica no idealismo platônico que se projeta do concreto palpável à idéia abstrata
da coisa, a posteriormente querer explicar as coisas reais a partir da idéia da coisa
em si, da essência eterna ou o arquétipo; como uma idéia concreta que ganhando
a perfeição abstrata envereda-se antecipadamente a explicar a matéria.
Procedimentos semelhantes ao do grego tiveram os irmãos Bauer (Bruno, Edgard
e Egdbert), recriminados por Marx e Engels (2003) de cunharem entidades
abstratas a querer encarnar-se no concreto (frutos vulgares e reais), para que o
concreto do abstrato fosse produzido.
Impossibilitada está ontologicamente de desunião a relação
sujeito-objeto, apartando a consciência das coisas – posição diametralmente
oposta a das premissas heideggerianas –, como a separação do homem de seus
pares de vez que o homem só se enriquece verossimilmente quando é objeto (de
luta, amor, desejo e paixão) para outro “homem”, ninguém sendo esquecido na
rede de proteção mútua.
Atuando cônscio da relacionalidade tensa e sistêmica entre os
diversos, o pensador aproxima a mente do objeto, descrevendo-o como ele é e não
como pensa ou quer que o seja. Dessa forma o sujeito apreende a natureza em sua
infinita complexidade; diferentemente do que faz o método cartesiano que
objetiva compreender a natureza com uma análise que ao dissecá-la em naturezas
simples, indo do complexo ao simples, tenta reconstituir o mecanismo geométrico
de uma realidade natural vista como física e fisiológica.
Já sob outro prisma, o do método materialista-dialético de se
raciocinar, evita-se tomar a coisa, fenômeno ou o ser in abstract, por fora da
história e da prática social. Ao Lefebvre (1981, p. 70) o método se põe como:
o alfa e o ómega, o ponto de partida e de chegada do marxismo. Que é um método? No trabalho do pensamento científico, o método desempenha o mesmo papel que o instrumento no trabalho manual.
Na continuidade da conversa sobre o método com os marxistas,
polemiza sobre “O que é esse método? É a consciência da forma, do movimento
104
interno do conteúdo” (id., 1995, p. 21). “Materialismo histórico significa:
clarividência”, o que as pessoas dizem, pensam, são, de acordo com o que fazem,
e é por isso que o marxismo pode ser reputado como a “sociologia ‘científica’”
dotada duma “concepção de mundo”, de uma “filosofia (que) não se separa da
ciência, da prática, da acção” (LEFEBVRE, 1981, p. 65, 70).
O marxismo segue a doutrina do movimento, como teoria em
movimento. Movimento combinado entre os domínios do concreto real e concreto
pensado.
A viveza da inovação teórica realizada por Marx fez o sociólogo
norte-americano Albion W. Small considerá-lo ter “nas ciências posição análoga
à de Galileu nas ciências físicas” (cit. por FERNANDES, 1995, p. 75).
Para Louis Althusser:
O materialismo se apóia (...) sobre a distinção entre a matéria e o pensamento, entre o real e seu conhecimento, em outros termos mais precisos, sobre a distinção entre o processo real e o processo de conhecimento; sobre a primazia do processo real sobre o processo de conhecimento; sobre o efeito de conhecimento produzido pelo processo de conhecimento no processo de compatibilização do processo de conhecimento com o processo real (1999, p. 43-44).
A lógica dialética tenta trazer para o terreno do concreto
pensado a lógica que dirige a concretude do real, cuidando para que não se
estabeleça cisão e rigidificação entre o concreto real e o concreto pensado.
Qualidade que o diferencia indubitavelmente das premissas pós-
modernas de “investigação”, que não querem ponte para nada e nem oriente a ter
por destino. Distanciando-se também do mecanicismo cartesiano que parte do
complexo ao simples para se fazer a suposta análise elucidativa da totalidade; à
dialética materialista o caminho a se perscrutar é tanto do simples ao complexo,
como o inverso, da análise (parte) à síntese (todo) voltando-se à análise, já que
uma não existe sem a (por fora ou desligada da) outra.
O francês Frank Lestringant (1999, p. 35, 36) bem ao propósito
nos avisa das similitudes havidas entre o método pós-moderno e a teorização
montaigneana ensaiada nos albores da Europa Renascentista, expondo-a dotada
105
dum “atomismo epistemológico”, ao qual a perspicácia de seu compatriota Lévi-
Strauss atinou como indicativo da “esquizofrenia ontológica” a imperar no
cérebro de Montaigne.
Podemos julgar as duas correntes explanadas como racionalista
e irracionalista. Qual a diferença metódica existe entre elas? À primeira o método
transparece como conjunto de parâmetros (dialéticos ou cartesianos) elencados e
escalonados sistemicamente como rede teórico-conceitual armada para se atingir a
verdade dos fatos. À irracionalista tem-se enaltecido a questão da validade dos
fatos, com o seu “método” (senso científico ou opinativo) se lhes propondo mais
acertado ao caráter naturalmente assistemático e descontínuo do real, ou porque o
real mostra-se inextrincável à sondagem da mente humana.
Para muitos pós-modernos o sistema não existe, senão como
todo recheado de subtotalidades. A aleatoriedade e a mente vazia constituem-se
no primum móbile da averiguação científica.
O ecletismo aí ganha realce, quando a lacuna do método
investigativo é “inteirada” por conceitos-respostas de outros métodos e teorias
capturadas a esmo. O que faz com que o ecletismo e o diletantismo sejam
colocados num patamar mais baixo de cientificidade que o ceticismo e o
pluralismo, que ao menos se demonstram preocupados com a razão; aspecto não
presenciado nas duas primeiras posturas.
David Harvey (1996), em censura ao desconstrucionismo, que
comprova asco pelas causalidades do real, fato comum aos pós-modernos,
sentencia trabalhos como o de Giddens como frágil “literatura filosófica”.
Seria o mesmo que afirmar que a natureza concebida por
Leibniz (ou o espaço natural), como produto oriundo do processo essencial,
perderia seu conteúdo metafísico e idealista, apreensível ou não pela mente
humana. Seria o mesmo que dizer que a res extensa de Descartes (ou o espaço
geométrico), como produto oriundo da res infinita, perderia seu caráter metafísico
e racional, apreensível pela mente humana. Em termos de ciência geográfica,
concordar com os pós-modernos seria o mesmo que dizer que a natureza, o espaço
106
natural ou o espaço social perderiam a potencialidade de compreensibilidade, pois
não haveriam nexos causais, animados por quaisquer processos que sejam.
Na ótica do pluralista, ao invés de aprimorado e
recontextualizado o método, de modo que acompanhe as transformações do
concreto real antes verdadeiramente de se saber se se encontra ele exaurido, o
cientista vai o (e se) encaixando, porém não sem qualquer critério. Na ótica do
eclético dá-se a absolutização da aleatoriedade, ficando o cientista a pular de
galho em galho nos horizontes estreitos do saber fragmentário, em defesa da
“liberdade” que quer fugir das redomas ortodoxas do erro com o simples desejo de
não se pôr a arriscar, a errar e acertar.
Debate profícuo a esse respeito deu-se entre Lefebvre e
Althusser, quando o primeiro rebateu as declarações do segundo sobre a
existência do vazio e da indeterminância, desferindo-lhe uma saraivada de
críticas; as mais categóricas contra o vazio teórico. Ponderou Lefebvre (1968a, p.
80): “Ora, o vazio teórico, por mais que se confirme, só pode se declarar em
nome de conteúdos ainda mal apreendidos, ignorados ou mal elaborados
conceitualmente”.
Jogar por terra o método se no cientista pode estar o erro e optar
pelo silêncio não resolve a questão. Contra o silêncio da ignorância deve avançar
a ousadia da reflexão científica, para se penetrar na “conspiração dos silêncios”
(ibidem, p. 81). A superação da ignorância dá-se pelo momento de dúvida
(espírito crítico), de crise do pensamento, de ceticismo (que nega verdades
absolutas isentando-se em elevar a razão às verdades relativas), de relativismo,
sem nessas fases se conservar (idem, 1995, p. 97).
Sem respostas absolutas, desgeografadas e ahistóricas, o saber
geográfico atém-se à máxima consciência espacial possível.
É preciso buscar o grão de verdade dos fatos ou o “grão de
verdade do erro relativo” (LEFEBVRE, 1995, p. 182) através do “relativismo
dialético” (ibidem, p. 97-98) porque o verdadeiro e o falso não são simples
opostos (id., p. 8-9) que possam ser pela falseabilidade popperiana discernidos.
“As verdades são provisórias, condição necessária para a produção infinita de
107
conhecimentos novos” (SROUR, 1978, p. 51). Ou como retratou Frossaert, é
preciso avançar a “máquina teórica marxiana”, estudando-a “peça por peça”,
observando onde parou, avaliando quais peças elaboradas pelos mais engenhosos
se mostram valiosas e quais devem ser rejeitadas pelo uso que já as comprovaram
defeituosas (ibidem, p. 18. Prefácio de R. Frossaert).
A dialética continua o trabalho de construção do conhecimento
aonde estaciona o ceticismo, que apenas nega a “verdade” conhecida.
Prosseguindo a dialética a negar a verdade teórica negada, para superá-la.
Há então uma problemática posta entre os que acusam a
realidade como objetivamente indeterminada, inapreensível e silenciosa e, noutro
extremo, os que creditam a indeterminidade como subjetividade política adotada
diante do mundo (de modo consciencial ou não), tornando-se necessário o
caminhar em meio ao silêncio socialmente fabricado, desentranhando a
complexidade ensombrecida pelos interesses sub-reptícios, desmascarando as
posições teleológicas hegemônicas que estimam a imanência objetiva da
desteleogicidade a acalentar o real e o social.
Esta uma das grandes querelas entre racionalismo e
irracionalismo. O irracionalismo faz naturalizar o imaginário social construído
pelo ocultismo burguês – que se impôs ao obscurantismo medievo –, vergando-se
a tramar manobras ideológicas para que os seres se curvem subjetivamente à
manifestação fenomênica do real.
Por quererem a materialidade por pecaminosa e infrutífera a
qualquer descoberta, fica-se com a mente solta para vagar convenientemente ao
bel prazer das proposições topadas.
Não que deva haver cativeiros em empedernidas redomas
científicas, só que querer ficar ao vento e relento talvez só alargue o problema.
Temos então posturas variadas, muitas das quais com outras
guardando similaridades e sinteticamente podendo ser classificadas como as que
abaixo são arroladas – nelas não se limitando e sob outros enquadramentos e a
partir de outras visões podendo ser apresentadas –, quais sejam:
108
Positivismo: bastante expressivo no século XIX, a ponto de ser considerado
algo mais que uma teoria científica, interpondo-se como doutrina geral a
desenvolver a relação da sociedade-natureza-ciência. Supervalorizando a
teoria em detrimento da prática – marginalizada por irônico que se nos pareça
– não (quiseram?) se apercebeu que essa forma de idear condiz em prima
facie com a organização prático-instrumental do mundo, assente na relação
entre os que mandam e os que obedecem, entre os que positivamente se
encontram evoluídos e os de estado primitivo, como reza a concepção
etapista-evolutiva comteana dos Três Estados (teológico-fictício, metafísico-
abstrato e positivo-científico). Os enunciados centrais do positivismo
glorificam: a) a concepção de mundo como o senso-perceptivelmente
apreendido; b) a separação da filosofia da/na ciência62; c) o tratamento dos
fenômenos como coisas e as suas relações como relações entre coisas
(coisificação de fatos e fenômenos); d) a apreensão do conhecimento somente
por intermédio do método experimental, redundando no triunfo da técnica
sobre o pensar; e) a substituição da metafísica pela ciência, em busca do
saber puramente objetivo-geral-progressivo-afirmativo que, tendo à frente as
ciências sociais, pudesse guiar a organização da sociedade e substituir as
antigas crenças teológicas ou metafísicas, fazendo com que no formalismo
lógico da ciência positiva a contradição fosse quase sempre vista como
absurdidade ou atestado de falseabilidade; f) a concepção, em analogia à
natureza, de que cada membro, indivíduo ou órgão do corpo social possui a
função a que deve se dedicar para o bom funcionar de si e do grupo (nesse
sentido a idéia de sociedade e natureza-máquina dominante no século XVIII,
inspirada no modelo físico newtoniano-cartesiano, fez-se substituída pela de
natureza-orgânica, na qual a dinâmica da sociedade passa a ser associada à
dinâmica biológica do mundo natural orgânico);
Fisiologismo: teoria sociológica parida no último quartel do século XIX e
que deteve predominância até as duas primeiras décadas do século XX. Tinha
62 A ciência é vista como pensamento superior e a sociologia, pendida ao estudo das complexas relações estabelecidas entre o homem e a cultura, se colocaria como plataforma da reforma social.
109
como característica essencial tomar a sociedade por organismo vivo ou
biológico, de membros a se unirem organicamente no todo ideal. Assim, o
que outras teorias se lhe apresentassem como fenômenos de contradições
estruturais (classe) a ideologia burguesa funcionalista tomaria por fenômenos
intersubjetivos ou interpessoais (disfunção-tensão-contrariedade momentânea
entre indivíduos-células da sociedade-organismo63). Esse pressuposto teórico
é atrelado muitas vezes aos escritos do inglês Herbert Spencer (1820-1903),
que na opinião de E. E. Evans-Pritchard foi o antropólogo social que, a par de
Émile Durkheim (1858-1917), mais despertou a atenção para a análise da
etnologia filosófica de cunho funcional64, tendo como maiores defensores os
russos Paul Lilienfeld e J. Novicow, o alemão Albert Schäffle e o francês
René Worms. Nos EUA, o funcionalismo se fortalece com a chegada do
inglês Bronislaw Malinowski (1884-1942) em 1926 e de Alfred Reginald
Radcliffe-Brown (1881-1955) no ano de 1931. Entretanto, inversamente à
imaginação do naturalismo funcionalista, a teoria que valida e se revê no
método não pode ser entendida externamente à teia de interesses individual e
social do ser histórico-geográfico dividido. A opinião de Srour (1978, p. 45)
é que, na raiz do processo,
Quando a sociologia funcionalista norte-americana assenta seu método de interpretação da realidade social na procura dos “efeitos socialmente úteis” (função social como perpetuadora da ordem social vigente), mergulhamos no conservadorismo meticuloso da burguesia monopolista.
63 A variante teórica do organicismo na Geografia é representada por Humboldt nos Quadros da natureza, com influência do romantismo e do idealismo da época (BAUAB, 1999, 2001). 64 Leslie A. White (1978, p. 120-122) opina que em Spencer a comparação entre organismos sociais e biológicos é efeito de metáfora e linguagem figurativa de analogias traçadas entre ambos, por estar o pensador implicitamente a versar sobre o sistema, empresa a que o próprio Marx teria se valido n’O Capital com o uso da expressão de organismo social, como o fizeram também Durkheim e Comte. Todavia, cremos ser esta uma comparação inapropriada, pela discrepância teórico-terminológico-praxista dominante entre esses autores. Basta que citemos, também, por exemplo, o funcionalista Talcott Parsons, que entendia que a questão da luta de classes – caso não se constituísse em contrariedade momentânea – não se encerraria com a supressão da sociedade burguesa, entendendo-a como uma dimensão eternitária das classes sociais.
110
Neopositivismo: assessorado pelas modernas técnicas estatísticas, análises
fatoriais e por cartogramas mais precisos – que de forma individual ou por
cruzamento fatorial aprecia elementos considerados pelo inquiridor como
dignos de análise, por servir-se de alicerce técnico altamente modernizado –,
essa vertente tem por guia de procedimento análises restritas e
crescentemente atomizadas, que seguem os princípios do formalismo-lógico
(confundido com a lógica formal65), da não-contradição e do terceiro-
excluído, com uma análise dita sistêmica mais mecânica que sociológica
(contraditória). Tal corrente teórica e metódica originou-se do Círculo de
Viena, tendo sido Popper um seu ilustre divulgador;
Estruturalismo: mesmo que tenha permitido às ciências humanas a criação de
métodos próprios em consonância com os objetos, com leis científicas
avessas à relação (causa-efeito) mecanicista e de ter mostrando que os fatos
humanos assumem a forma de estruturas66, a crítica comum tem-no como
meio congelado de se exprimir a “contradição”, que por antítese, faz abolir o
movimento da dialética social ao se desprezar as forças desestruturantes e
corrosivas que agem no mecanismo social67. Outra razão não teria a crítica de
Lefebvre (1981, p. 75) ao apontar que, sob a errônea ótica estruturalista,
“Posso, por exemplo, considerar separadamente o mar e o continente, ou o
65 Notamos que não é a lógica formal que deve ser desprezada: o problema do conhecimento não está na lógica que se ocupa das formas – em sua relação com a lógica dos conteúdos. O formalismo lógico é que deve ser repudiado. 66 A estrutura alude ao sistema organizado por princípios internos cujos elementos desempenham funções específicas na totalidade ou no todo, já que, para Chauí (2000, p. 274), o todo no estruturalismo equipara-se à noção de totalidade: “O todo não é a soma das partes, nem um conjunto de relações causais entre elementos isoláveis, mas é um princípio ordenador, diferenciador e transformador. Uma estrutura é uma totalidade dotada de sentido”. Segundo Lévy-Strauss (1974, p. 57): “Pensamos com efeito que, para merecer o nome de estrutura, os modelos devem satisfazer exclusivamente a quatro condições. Em primeiro lugar uma estrutura tem um caráter de sistema, ela consiste em elementos tais que uma modificação qualquer em um deles encadeia uma modificação em todos os outros. Em segundo lugar, todo modelo diz respeito a um grupo de transformações do qual cada transformação corresponde a um modelo da mesma família e o conjunto de transformações constitui um grupo de modelos. Em terceiro lugar, as propriedades indicadas acima permitem prever de que forma reagirá o modelo, em caso de modificação de um de seus elementos. Enfim, o modelo deve ser construído de tal forma que seu funcionamento possa dar conta de todos os fatos observados” (cit. por GOMES, 1999, p. 90-91). 67 Não à toa acusar-se o estruturalismo de ter um pé no positivismo comteano, basicamente no que respeita à idéia de que o conhecimento só possui proveito se seguir o modelo da ciência, vindo a transformar-se em ciência.
111
vale e o rio. Nesse caso, esqueço-me de que apenas existem um pelo outro”.
O que é o mesmo que dizer que as coisas devem ser entendidas nas relações e
contradições. Também elucidativa foi a consideração do mesmo Lefebvre
(1968a, p. 103-104, 107) à metodologia althusseriana que muito se grassou
entre os campos do saber, dizendo que os conceitos aparecem em seu traço
estanque e rijo e que o erro metodológico fundamental de Althusser:
é ficar no interior das formas e das questões formais, procedendo a uma formalização sem ter elucidado a “forma” e sua relação com o “conteúdo”. Êle se mantém assim no quadro de uma teoria em segundo grau do conhecimento, em lugar de refletir sôbre as diligências que hoje permitem adquirir conhecimentos (por exemplo sôbre os problemas urbanos, sôbre a planificação, sôbre a questão agrária, sôbre a questão do Estado e da tecnocracia, etc.) (...) O marxismo está ali diante de nós. Os ossos, despojados de carne por um hábil anatomista, foram desarticulados, desmontados, e depois remontados levando cuidadosamente em conta as articulações.
Como outros fundamentos teórico-metódicos, temos ainda a:
Fenomenologia68, nas muitas propostas que priorizam a parte, o início, o
cotidiano, o indivíduo, o lugar e o subjetivo, indevidamente descambando em
dois tipos básicos de subjetivismos: o da consciência individual
(psicologismo, metafísica do eu e existencialismo, que evocam o
proustianismo essencialista e isolacionista no conceber do sentir) e o da
consciência coletiva (subjetivismo sociológico, de grupo ou classe)69. Mas o
68 Chauí recorda ter sido a fenomenologia, em priorizando a investigação sobre a essência ou o significado particular que possuem realidades (sentido, forma, propriedade, origem) diferenciadas que, após ter mostrado a realidade particular do “homem” para com a “natureza”, fez com que nos domínios da primeira se originasse a multiplicidade de estudos sobre essências diversas (psíquica, histórica, social, cultural, sociológica, geográfica, antropológica, etc.), cada um desses objetos sob incumbência duma ciência específica (2000, p. 273). A idéia precípua defendida pelos partidários desse método é que o marxismo é incapaz de fazê-lo, mas nada de antemão sugere que ele não possa se dispor ao estudo de qualquer questão, pois o materialismo histórico-dialético é um método e não uma gaiola temática, podendo se lançar ao estudo da ética, estética, moral, consciência, subjetividade, generalidade, particularidade, cotidianidade, etc. Basta recordarmos a afirmação do “jovem” Marx (1964), que, num materialismo-dialético já embrionário, alojando os pródomos da “antropologia” marxiana, firmava que o homem moderno devedor de aluguel aproxima-se (ou rebaixa-se) do da época da caverna, que ao menos a sua morada possuía. 69 O subjetivismo também possui peso na economia, sobre a questão teórica do valor (marginalismo) e sobremodo na filosofia, com vários pensadores reiterando que a dialética só
112
fato é que, vale sempre lembrar, apesar dos desvios manifestos nesse
conceber fenomenológico, a preocupação central de muitos destes atem-se à
leitura do mundo a partir do lugar em que se vive e percebe, que já não é
mais simples materialidade e sim o “conjunto de significados” em que os
objetos são considerados fenômenos que devem ser analisados por
intermédio da razão, do modo como à consciência aparecem. Parte-se assim
da percepção do espaço vivido e não do concebido (eis o medo com o perigo
do estruturalismo!). As portas da Geografia à fenomenologia foram abertas
por Julian Wolpert, focando a questão da migração com um fundo de
psicologia. Muito daí não se exigiu para que a preocupação com a percepção
do lugar se impusesse, dando margem à Geografia da percepção e do
comportamento, desembocada na Geografia cultural-humanista (HOLZER,
s/d.) dimensionada aos estudos dos símbolos, representações e significados
(negando-se assim o neopositivismo empiricista, matematizante e tecnicista
da Nova Geografia), além da estética e do imaginário, buscando-se elaborar
os mapas mentais, como aspectos que ao marxismo geralmente passavam ao
longe. A fenomenologia nega a imparcialidade científica e a identificação fiel
entre o percebido com o real, estimando ademais a intuição no processo de
construção do saber; distanciando-se por isso em muitas léguas do
empirismo. No que acata à geografia, foca-se a mente para se alcançar o
entendimento do comportamento do homem em relação ao espaço.
Dialética: de absurdidade nas areias positivistas, a contradição
metamorfoseia-se em fecundidade na orla do materialismo porque a
contradição é a lei interna de qualquer transformação, na natureza e na
sociedade. Aqui a parte é o todo e o todo é a parte, ao mesmo tempo em que a
parte se reafirmando, diferenciando-se, se faz parte-diferença e o todo se faz
todo enquanto universalidade de práticas globais, como o lugar que manifesta
o global (espaços da globalização para M. Santos) ou o sujeito localizado que
possui existência na e pela consciência humana e que as contradições, por extensão, só existem dentro e por causa do homem. Alguns extremam tanto essa visão que chegam a afirmar que a realidade é somente expressão da existência da consciência humana, como desejo e representação externada. A dialética nessa via se faz subjetivista, metafísica, idealista.
113
se faz cosmopolita sem perder a particularidade da carga experiencial-
perceptiva construída no lugar e filtrada pela dialética do sentimento
localizada e desperta do isolacionismo sentimental-perceptivo (SARTRE,
1999), próximo daquilo que Whitehead (1994) titulou de pensamento
heterogêneo quando a tratar da natureza, ou seja, do mundo externo composto
de entidades ou coisas. O que é o mesmo que dizer que a dialética está no
indivíduo, imerso na globalidade que se extensifica e lugariza ou no lugar
que se globaliza, peneirando e sintetizando aspectos que a definem e, ao
mesmo tempo e contraditoriamente, a eles podendo transcender, ignorando-
os ou afrontando-os diretamente porque a dialética materialista desde o
princípio e durante todo o processo considera todos os elementos do
conhecimento70. O pensar calcado no método dialético evolui pela tensão
entre modos diferentes de pensamento (afirmação x negação, tese x antítese),
dos quais evolui o terceiro termo (negação da negação, síntese). Para isso,
deve o método dialético travar a constante batalha entre aparência e essência,
forma e conteúdo, negando a percepção positiva das coisas tais como elas se
apresentam para que possa ser descoberto o ser oculto da aparência, a
negatividade oculta (valor-trabalho expropriado) na positividade corpórea da
70 Eis o porquê de o pensamento de Marx não poder ser dividido estruturalmente, como continente de rupturas epistemológicas, do tipo exposto por Plekhânov (1989), a caminhar e transcender o idealismo hegeliano (apogeu da filosofia alemã), o materialismo francês do século XVIII, a tradição francesa de pensamento racional, a economia clássica inglesa do século XIX (Petty, David Ricardo [1772-1823] e Adam Smith [1723-1790]), o socialismo utópico francês (Claude Henri de Rouvroy Saint-Simon [1760-1825], François Marie Charles Fourier [1772-1837] e Pierre Joseph Proudhon [1809-1865]) e inglês (Robert Owen) e o materialismo ingênuo feuerbachiano, até chegar ao materialismo dialético. Na “juventude” ou nas primeiras obras as diferenciações já eram significativas, ou seja, embora se perceba influências hegelianas e dos socialistas utópicos franceses e economistas clássicos ingleses, a dialética marxiana sempre foi inovadora em relação a todas elas. Daí não dever haver separação entre um Marx do período do materialismo histórico e outro do período do materialismo dialético. O diferencial é que no “período” da “juventude” seu pensamento se concentrava em questões mais “filosóficas”, com a teoria do conhecimento, metodologia e visão de mundo embrenhadas no estudo da prática, da alienação, da natureza e do “homem total” (em Marx o homem era já mais concreto que o de Feuerbach, e este mais concreto que o de Hegel) a guisa de exemplo, conquanto as obras da “maturidade” serem essencialmente científico-econômicas, mas que não excluem e sim incorporam os estudos precedentes, em níveis mais elevados de análise e crítica (LEFEBVRE, 1981). Aliás, o vício da periodização e da ruptura também foi enxergado na obra de Florestan, consideração essa rebatida pela Eliana Veras (SOARES, 1997). Florestan (1995, p. 48), em se referindo às possíveis inspirações por Marx recebidas, como as atinentes aos economistas ingleses, evita taxá-lo como economista teórico, vendo-o como anti-economista ou teórico da “economia política do proletariado”.
114
coisa visível (mercadoria), descobrindo a razão de ser-assim-como-aparece
em seu-ir-sendo.
O fato é que o método não pode ser visto unicamente como a
priori, mas como construção.
Eliseu Savério Sposito, amparado em Chauí (1978), recorda que
o método toma dois elementos fundamentais da matemática71: a ordem e a
medida. A ordem sendo o conhecimento do encadeamento causal, seqüencial,
coerente e necessário que sintetiza os termos “medidos”, para que se passe do
desconhecido ao conhecido, seguindo adiante a “cadeia de razões”72. Dessa
filósofa entrementes, esse geógrafo discorda das modalidades definidoras do
método, já que àquela o método se caracteriza sob duas feições: como dedutivo
(usado pelos racionalistas intelectuais que partem das idéias para as sensações) e
como indutivo (para os racionalistas empiristas parte-se das sensações para as
idéias), enquanto Sposito julga que “indução e dedução são procedimentos da
razão e não métodos diferenciados e com razão própria” (2000, p. 24), o que o
leva a endossar a existência de tão-somente três métodos: hipotético-dedutivo,
dialético e hermenêutico-fenomenológico, todos eles com componentes
específicos (leis, conceitos, teorias, doutrinas e ideologias subjacentes), e que os
mais seguidos corresponderiam ao fenômeno comum ao pós-Renascimento de
multiplicação/fragmentação das ciências, quando cada uma propugnava
arduamente o “método” julgado mais apropriado ao raio de seu saber.
Esquadrinhando as ambigüidades ao redor do método e da
ciência, o mesmo autor arrola um conjunto de cientistas e de correntes que em sua
opinião apropriaram-se inadequadamente de procedimentos científicos diversos,
crendo-os os mais ajustados “métodos” investigativos. Cita por exemplo os que
tomam o método dedutivo73 e o método indutivo como os dois únicos
71 Originariamente, do grego ta mathema: conhecimento completo, perfeito e dominado inteiramente pela inteligência. 72 Expressão tomada de Descartes (Geometria, 1967 apud PESSANHA, 1999, p. 20). 73 Para Szamosi (1988, p. 25), Tales de Mileto foi o primeiro a aplicar o “método dedutivo a um problema abstrato”, intencionando descrever formas espaciais a partir de leis abstratas.
115
instrumentais teóricos válidos ao estudo de determinada ciência, como fazem o
economista Paulo Sandroni e o Mario Bunge. Cita noutra ponta os que se inclinam
para um método único, como René Descartes74, Leônidas Hegemberg, Russel
Ackoff, Alfonso Trujillo e Joaquim Antonio Severino.
Em síntese apresentada por Eva Lakatos, Sposito (2000, p. 21)
dá o panorama do método como o: (a) caminho previamente escolhido (de forma
refletida e deliberada) para se atingir determinado resultado (Hegemberg); (b)
como regras de triagens (escolhas são técnicas) para avaliar alternativas à ação
científica (Ackoff) ou; (c) como forma de proceder, como instrumentos básicos
que ordenam inicialmente os pensamentos do cientista, para que ele atinja o
objetivo proposto (Trujillo); (d) além de o método ser considerado o conjunto de
procedimentos através dos quais se propõem os problemas científicos e se
colocam à prova as hipóteses científicas, rebaixando-o a simples procedimento de
dedução e indução (Bunge).
Considerações sobre o significado do método tecidas, clarifica
ainda as características aos quais admite existir no âmbito das ciências, dos três
métodos possíveis de serem trabalhados, coincidindo alguns deles com algumas
das propostas metódicas anteriormente aventadas; são eles:
Hipotético-dedutivo: instituído por Descartes, pretendia estabelecer um
método universal baseado no rigor matemático e na razão, a se valer da (a)
evidência: verdade atingida pela comprovação irrefutável, evitando-se a
pressa na formulação dos juízos; (b) análise: divisão das dificuldades em
partes a se estudar, para que sejam solucionadas; (c) síntese: caminhando-se
ascensionalmente dos mais simples e fáceis aos mais complexos objetos, com
o estabelecimento da ordem no pensamento mesmo entre os objetos que se
não “precedem naturalmente uns aos outros”; (d) enumeração, por meio do
qual se caminha do desmembramento à efetuação de “relações metódicas tão
74 Em defesa dum único método, não circunscrito a um objeto e podendo por todas as ciências ser utilizado, escreveu Descartes que “não o havendo sujeitado a nenhuma matéria em especial, prometia a mim mesmo empregá-lo com a mesma utilidade a respeito das dificuldades das outras ciências como o fizera com as da álgebra” (1999, p. 52).
116
completas e revisões gerais tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada
omitir” (DESCARTES, 1999, p. 49-50). Na argumentação escolástica de
Descartes, Deus é a substância da realidade, idéia inata apreendida pela razão
e da qual outras prosperam pelo método. Instituindo a razão, Descarte
desbanca o dogma; seu racionalismo (e por extensão o de Galileu) recupera o
racionalismo grego, embora suas quatro regras metodológicas estejam
emparedadas na lógica formal. O método cartesiano é racionalista porque ele
não parte das evidências sensível e empírica (cujos sentidos confundem e
enganam) mas da razão que percebe intuitivamente os primeiros princípios.
A dedução e a indução, reconhecidas por Descartes como procedimentos do
método, continuaram a ser considerados por outros como sinônimos de
método. No método hipotético-dedutivo há sobrelevação do objeto em
relação ao sujeito, ficando este à montante daquele (sujeito < Objeto), o real
sendo descrito por meio de hipóteses e deduções;
Fenomenológico-hermenêutico: até o século XIX a hermenêutica
representava o esforço, individual e subjetivo, de interpretação de um texto
difícil, fazendo-o reflexo duma cosmovisão (Weltanschauung) que cria que
toda filosofia é uma “filosofia da vida”, como imaginava o alemão Wilhelm
Dilthey (1833-1911). Hoje a hermenêutica é tratada como esforço
compreensivo ou reflexão filosófico-interpretativa de símbolos e mitos em
geral75. Já a fenomenologia, cujo primeiro grande teórico fora o Husserl, foi
sobremaneira trabalhada por outros dois expressivos pensadores: Max
Scheller (1874-1928) e Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Como proposta
cardeal da fenomenologia está a superação da oposição tradicional entre
realismo e idealismo, além de opor-se ao empirismo e ao psicologismo,
valorizando o “eu-pensante” e se colocando como a “filosofia do sujeito”
que busca aprender a essência das coisas voltando-se “às coisas mesmas”.
75 Nunes (1992, p. 88) enxerga a hermenêutica como “uma crítica de toda a tradição especulativa ou idealista. Abandona os pressupostos do psicologismo, refuta o positivismo e o empirismo a um mesmo tempo e se propõe como uma nova metodologia do conhecimento, buscando fugir da antinomia, da objetividade do conhecimento ou subjetivismo gnosiológico. Quer uma apreensão pura das essências e capaz de descrever a experiência total do vivido, do humano”.
117
Da riqueza dessa perspectiva muitas outras abrocharam76, vários nomes se
sobressaem. Com sua fenomenologia, Husserl opôs-se ao realismo absoluto
que considera só os objetos e não o sujeito pensante e sua carga de
experiências, ultrapassando tanto o idealismo como o racionalismo77. E
enquanto a Platão e Kant a palavra fenômeno remete à aparência do ser (ou
do “número”), na fenomenologia husserliana essa palavra assume outra
conotação: o fenômeno é uma manifestação plena de sentido passível de ser
revelado pela filosofia. Ao entender que o conhecimento é produto dum
sujeito pensante e transcendental78, Husserl estava realizando a crítica à
psicologia positivista (científico-matemática). A intencionalidade subjetiva
da consciência é elemento-chave no método fenomenológico que tenta
superar o subjetivismo unilateral, pondo-se como a visão antropocêntrica de
mundo que tenta resgatar o humanismo na ciência. Busca descrever o
fenômeno imediato desinteressando-se pelas ciências da natureza e opondo-
se ao empirismo e ao idealismo (que toma a teoria do conhecimento como
fator imediato). Aos fenomenólogos a essência do fenômeno é o objeto
inteligível a ser captado pela visão imediata do sujeito, por meio da intuição
essencial. Na Geografia o espaço vivido coloca-se no âmago da análise, com
o enlevar do conceito de lugar: algo não apenas objetivamente construído
como também construção subjetiva79. Diversamente do método hipotético-
76 O existencialismo surgiu da fenomenologia dispondo-se a combater o essencialismo, cuja postura teórica porta uma definição universal e apriorística do ser humano. Ao passo que o existencialismo considera que a definição do modo de ser do homem possui uma parte que é fixa e outra que é cultivada e transmitida socialmente. 77 O idealismo é ultrapassado na medida em que a consciência visa um objeto transcendente. O racionalismo é superado porque toda significação remete a uma consciência transcendental, doadora de sentido. 78 Esta uma das diferenças entre a fenomenologia de Husserl e a de seu compatriota Martin Heidegger (1889-1976), sobretudo pelo desdém do último aos enunciados apriorísticos embasados no eu, típicos à tradição dos estudos da relação sujeito-objeto. Heidegger foca o ser-no-mundo, o sentido do ser em seu estar-aí, na práxis que antecede a consciência ou que se realiza pela boa circularidade, e é por isso que a ontologia fenomenológica heideggeriana constituiu-se em resposta à de Husserl (STEIN, 2005). 79 Armando Corrêa da Silva pode ser considerado um dos personagens destacados nessa vertente em âmbito geográfico nacional, tendo a fenomenologia como o método mais adequado para abordar o fenômeno imediato, a se manifestar no cotidiano lugarizado.
118
dedutivo, na fenomenologia há prevalência do sujeito sobre o objeto (Sujeito
> objeto), e o sujeito apropria-se mentalmente do objeto para explicá-lo;
Crítico-dialético: persegue a verdade negando/aprofundando a aparência
imediata, do senso-comum. As visões sobre esse método condensam-se
contudo num largo espectro: para o Platão a dialética era o processo que
possibilitava à alma elevar-se das aparências sensíveis às realidades
inteligíveis, rumo às formas e idéias eternas, transpassando o mundo sensível
(caverna) em direção ao mundo das idéias; o por que de a dialética ser-lhe
instrumento pró-verdade e base da pedagogia científica do diálogo,
potencializando a percepção das essências a partir do domínio das pulsões
corporais e da descrença nos dados do mundo sensível. Aristóteles, por seu
turno, assim não creu: a dialética não lhe passava de meras deduções
resultantes de processos tão-somente prováveis80; contrariando os sofistas da
época interessou-se por isso menos em convencer o adversário do que fazê-lo
defrontar-se com as incoerências de suas teses. Na essencialidade o que nos
interessa é o fato de a dialética – nos termos histórico-materiais em que hoje
é concebida – portar melhor equilíbrio na relação estabelecida entre o ser
pensante e o objeto (Sujeito ↔ Objeto), pelo motivo de que o homem já não
mais é visto como possuidor de idéias inatas (postura típica do idealismo),
senão da inata faculdade de o homem fazer da razão histórico-espacialmente
desenvolvida o ingrediente ativador da avaliação e classificação das
impressões brotadas dos sentidos, sem tê-las imediatamente por verídicas
(postura típica do empirismo). O método dialético-científico81 orienta-se à
80 Preferindo o método do silogismo, Aristóteles lançou as bases da ciência empírica a partir do uso dos sentidos humanos (que captam as formas na própria natureza) e da razão lógica (na construção do conhecimento). 81 Michael Löwy crê que o método dialético contempla várias outras denominações, como: dialética materialista, materialismo dialético, materialismo histórico, método dialético ou filosofia da práxis, na acepção gramsciana; todos tidos por sinônimos. Idéia discordada pelos que qualificam o “marxismo” como a corrente de pensamento (filosofia), diferenciada de “materialismo dialético”, que seria a visão marxista da concepção do mundo e que, por fim, se divisaria do de “materialismo histórico”, considerado como o estudo científico e racional do marxismo sobre os fenômenos socioeconômicos, com o objetivo de interpretar dialeticamente a História (LENCIONI, 1999, p. 158, nota de rodapé nº 11). Srour enaltece o marxismo por sua fecunda “teoria (ciência + filosofia): é o terreno onde se processa uma distinção não excludente, isto é, onde se processa a recusa de uma mútua redução do ‘caráter prevalecente’ (dominância na
119
compreensão das categorias econômicas a partir das relações históricas de
produção, correspondente ao estágio determinado de desenvolvimento da
produção material, tendo por leis basilares: a interação universal, o
movimento universal, a unidade dos contrários, o desenvolvimento em
espiral e a transformação da quantidade em qualidade e vice-versa. Segundo
alguns estudiosos, como Harvey, Marx reunira a dialética de Hegel e os
dualismos de Kant, entretecendo teoria e prática para fundar a prática teórica
com a qual o homem se torna agente-ativo da história82.
Em termos de pesquisa científica as características dos três
métodos mencionados – que alguns crêem nada mais serem que componentes
doutrinárias de correntes filosóficas contemporâneas – referem-se ao:
1) Método empírico-analítico de pesquisa: em que se dá a coleta, análise e
descrição dos dados obtidos por questionários e entrevistas, com o tratamento
do produto quantificado das variáveis por meio de total neutralidade
unidade complexa) do materialismo histórico como ciência e do materialismo dialético como filosofia. Não se trata portanto de justaposição mecânica, nem de dissolução num amálgama informe, mas de interpenetração e de mútua intervenção” (1978, p. 48). 82 Examinando o campo das determinações, notamos que a dialética marxista (marxiana) recebeu várias influências: a) de Heráclito tomou a noção de contradição, oposição e conflito de forças de origens não-independentes (por Marx empregada no entendimento das leis do capitalismo); b) de Sócrates tomou a argumentação dialética como meio de se atingir a verdade (por Marx elevada ao propósito da luta de classes); c) de Platão o marxismo absorve, como características da razão dialética, a flexibilidade conceitual, o esclarecimento e a desmistificação, até a racionalização das práticas materialmente fundadas e condicionadas de emancipação coletiva; d) do romano Plotino (204-270) a Schiller empresta a noção do processo dialético da unidade original, unidade diferenciada e da separação histórica como arcabouço da luta social pelo socialismo; e) de Hegel o marxismo destila a potencialidade de inteligibilidade legada pela dialética (BOTTOMORE, 2001). Meditando sobre as ciências históricas e as ciências naturais, Fernandes (1995, p. 78-79) concluiu haver inevitáveis diferenças entre elas, posto que cada período histórico se reja por leis próprias, e que já na Miséria da Filosofia Marx prenunciara que a concepção naturalista incorre no erro de sacrificar a diferença ao observar somente as permanências (o que lhe garante a unidade), tendo Marx inovado com a não-sacrificação da unidade, apreendendo-a na interpretação dos contrários; por isso que o “materialismo histórico” marxiano absorvera tanto uma dimensão do “método naturalista” (assimilar o que é geral nas coisas) quanto o essencial no “método histórico” (captar as coisas em sua singularidade). Em âmbito geográfico, podemos considerar a opção metódica do materialismo histórico-geográfico como a que visa transpassar a paisagem para chegar à lógica organizativa do espaço geográfico, trabalhando concomitante e dialeticamente com a interescalaridade das relações do local-regional-nacional-global, compreendendo as redes horizontais e verticais de poder político-econômico-territorial.
120
axiológica do método científico e imparcialidade do pesquisador
(racionalidade técnico-instrumental), de modo a separar ciência de crítica
com o intuito de apreender, através da experimentação, a causa do fenômeno
estudado. Trata-se duma concepção de ciência baseada na causalidade,
percepção empírica e linguagem matemática. (Como propõe a Geografia
Nova engravidada pela ideologia burguesa)
2) Método crítico-dialético: considera maiormente técnicas não-quantitativas,
analisando-se e incorporando dados contraditórios que desvendem conflitos
de interesses a partir de categorias de análise articuladas com a realidade
estudada, realidade essa considerada historicamente mutante e passível de
transformação social pelo sujeito-pesquisador. A quantificação desponta
como meio de qualificar a análise (e não o inverso, em que a análise é
qualificada segundo o nível de quantificação). Aplicado à pesquisa, esse
método quer apreender a causalidade, vendo-a como inter-relação e não como
sucessão linear de fenômenos; considerando outrossim que a parte focada não
se desmembra do todo (interpenetram-se) e que não se deve desmerecer o
fato de os fenômenos apresentarem dinâmicas internas contraditórias. (Como
propõe a Nova Geografia fecundada pela rebeldia das críticas)
3) Método fenomenológico-hermenêutico: prevalece o uso de técnicas
qualitativas no estudo de histórias de vida (dos outros e de si) e análises
individuais de fenômenos (cujas causalidades são desprezadas para se
privilegiar o fenômeno), que passam pelo filtro do investigador que assume
postura participativa e crítica, elencando as especificidades do objeto e
expressando a sua ótica teórica com o fito de desembaraçar as ideologias,
explicitar discursos e decifrar textos. Parte e totalidade não se separam; o
fenômeno é abordado individualmente após a decomposição das partes
descritas e interpretadas pela capacidade hermenêutica de ressintetização do
investigador. (Como propõe a Geografia Humanista fertilizada pela crítica
fenomenológica)
121
São estas as particularidades apresentadas pelos métodos quando
em aplicabilidade científica.
Eis agora sumamente, as especificidades e as acepções que se
nos incutem os subitens adiante alistados.
1.2.1 A Reta e o Círculo
“As idéias estão no chão
Você tropeça e acha a solução”
(A melhor forma, Titãs)83.
Os significados de reta e círculo avizinham-se porque as
conseqüências finais da problemática posta findam sempre no estacionamento e
engessamento do pensar, preso num imobilismo que imita o velho eleatismo grego
(LEFEBVRE, 1968a e 1995)84. Ou quem sabe o eterno retorno85, em que a
mudança repete o mais do mesmo (MOREIRA, 1999; LEFEBVRE, 1995;
HARVEY, 1996); tendência assumida por vários outros expoentes da cultura que
várias linguagens utilizaram, como o tcheco Milan Kundera (1985) na literatura
ou as (certas) obras do compositor brasileiro Renato Russo (2003). Tem-se a
filosofia avizinhada ao senso-comum, à cultura cotidiana.
83 Sabe-se que o postulado metafísico-idealista, de fundo platoniano e hegeliano, que tenta enxergar as idéias na realidade, fora responsável pela profunda crise intelectual e adoecimento do jovem Marx. Aos idealistas, a Idéia se expõe no mundo na forma de “grandes idéias” (amor, justiça, fraternidade, etc.) que, terrenizando-se e o governando, possibilita que o homem como que nelas tropeçando, apreendendo-as racionalmente, aproxime-se do Espírito que tudo criou, por tal vereda reencontrando-se. Os idealistas crêem que a história avança pela força das idéias e que o real é somente um dado da consciência (fechada em-si), isto é, acreditam que o real seja “idéias ou representações e que o conhecimento da realidade se reduz ao exame dos dados e operações de nossa consciência ou do intelecto como atividade produtiva de idéias que dão sentido ao real e o fazem existir para nós”, na síntese de Chauí (1991, p. 19). 84 Ironicamente, enquanto Zenão desacreditava o movimento como ilusão pelo constructo metafísico de suas aporias, Diógenes apenas caminhava. 85 A doutrina cíclica foi criada na Antiguidade a partir sobretudo dos séculos VII e VI a.C., tendo como adeptos os órficos, pitagóricos, jônios e estóicos.
122
Sem o intuito de isolar, tão-só assinalar esses dois momentos,
exponhamos a reta e o círculo em seus percursos principais para em seguida
demonstrarmos como possuem muito de parecido, quando a flecha entorta-se em
círculo ao fim dos rodeios que a idéia executa no pensamento, tendo antes por
conhecido os pressupostos básicos da lógica formal que sustenta esse modo de
pensar que, nascido na Grécia e esposado com a matemática86, teve Hegel por
crítico algoz ao entendê-la incapacitada à apreensão da complexidade das
múltiplas determinidades do real; o que o leva a esforçar-se numa “ciência da
lógica” atenta à “lógica dialética”, combatendo o formalismo e o estruturalismo
em prol dum sistema de leis ontológicas que, não obstante, aproximou-se da
metafísica sem perder a dialeticidade pois apesar da lógica formal ser a lógica
abstrata e a lógica dialética identificar-se com a lógica concreta (praxiologia), a
lógica idealista hegeliana detém densa dialeticidade como concreto em
pensamento, porque sua dialética é a de uma filosofia especulativa que se angaria
na sofística, o que significa dizer que essa dialética supera a tradição imanente às
velhas premissas da identidade (como os princípios da não-contradição, do
terceiro excluído e o princípio experimental-demonstrativo aristotélico).
Para Hegel, o pensar matemático orienta-se a uma logificação
que tenciona um construtivismo irreal enredado em tautologias que, como forma
pura-transparente-neutra-vazia, faz ocultar o real. Todavia, mediante essa
construção teórica resolvida mentalmente, colocou-se Hegel em defesa da
racionalidade filosófica atrelada no e pelo Estado (no qual posteriormente veio a
desenvolver-se o neo-hegelianismo stalinista).
86 Interessante notar como a lógica da superestrutura que regia a estrutura espacial da sociedade fundamentava-se na organização classista do modo de produção escravista grego, que, desprezando o trabalho a que se dedicavam especialmente escravos, enredava esse tipo de pensar científico (lógico formal) em formulações metafísicas esteticamente contemplativas, inclusive no teorizar mítico-religioso, como prazer luxuoso o que se ocupava a aristocracia dos homens livres. A conseqüência foi o estancamento da sociedade pois escravos desestimulados, inferiorizados e a cargo de trabalho embrutecedor não produzem máquinas. Situação que fez prevalecer a concepção negativista de trabalho e de máquinas que apenas no século XIV e XV viria a se reposicionar na Europa, quando as ciências começariam a penetrar nas artes mecânicas e a sociedade se faria tocada por mudanças materiais significativas.
123
O método depende do ponto de partida do investigador
(racionalista, empirista, idealista) e de suas bases teóricas e doutrinárias
(empirismo inglês, idealismo alemão, dialética hegeliana, positivismo comteano e
materialismo histórico-geográfico marxista).
Portanto, são diversas as formas de manifestação da reta,
presenciando-se no vasto efeito prismático que perpassa: o evolucionismo87
mecanicista, cartesiano, o sociologismo darwinista, economicismo ricardiano, a
demografia malthusiana, positivismo comteano, os empirismos (grego, inglês88 e
escocês89) entre outros construtos parametrados em relações causa-efeito e
legalidade-racionalidade lógico-gnosiológica ou em que a ontologia se sinonimiza
à metafísica idealista medieval que persistiu na transição ao racionalismo,
87 Um dos problemas maiores dos evolucionistas está na propensão de averiguar o real de forma tão detalhista, com a estreita aproximação do olhar ao objeto, que acaba por desperceber os saltos significantes das qualidades ontológicas. A aproximação do olhar gera contraditoriamente cegueira porque a viseira metódica do observador encontra-se teoricamente empoeirada. 88 O empirismo inglês desenvolveu-se maiormente nos séculos XVII e XVIII com Bacon e Locke. Ao opor-se às doutrinas metafísicas e por deter a paternidade do racionalismo inglês, Locke foi considerado o maior representante dessa escola; seus estudos psicológicos e etnográficos mostram a diversidade de divindades e concepções morais a encher os povos do mundo e que a alma é uma “tábula rasa” que utiliza a faculdade da percepção, mediada por circunstâncias particulares, para tomar consciência de si. Mas além de ser considerado o fundador do empirismo na teoria do conhecimento foi Locke contemplado o instituidor na filosofia política do liberalismo político, chagando a ser cognominado pelo filósofo Bertrand Arthur Wilhelm Russell (1872-1970) o apóstolo da moderada Revolução de 1688 dada à pregação de pacifismo exercida entre as camadas sociais. No que respeita à teoria empirista lockeana, Gomes recorda-nos que se por um lado ela provinha das sensações, isso não queria dizer que o empirismo se lhe assemelhe ao puro sensualismo já que deveras essencial era o papel da reflexão (interna) do sujeito. A Locke “A natureza age com constância e regularidade, e o papel da razão é o de extrair, a partir da impressão imediata, correlações fenomenais e estabelecer uma representação abstrata” (1996, p. 75). Tal qual Newton fora criador da física, há quem avalie Locke o criador da metafísica, não obstante defendesse a experimentação e uso do método empírico como se punha avesso a tratar de noções de infinito, Deus, substância e outras que resvalassem a tergiversações idealistas. 89 O filósofo e historiador David Hume (1711-1776) a muitos sintetiza o auge do Iluminismo na Grã-Bretanha: a razão com ele ganha altitude. Adepto da ciência lógica da matemática e do empirismo, Hume admitia que o sensualismo auxiliava na construção de conhecimentos perceptivos através da constatação de fenômenos mecânicos passados com o objeto de estudo – postura cientifica classificada de “positivista” por Valentin (1962a, p. 195). Estudioso da história e da psicologia, Hume foi o primeiro a considerar que a concepção dos povos a respeito das religiões provém das circunstâncias e interpretações criadas por eles, demonstrando que as religiões originam-se das necessidades psíquicas dos povos e que são produtos do espírito humano. Hume levou ao extremo o empirismo de Bacon e Locke, bem como o idealismo puro do irlandês George Berkeley (1685-1753). Embora sua filosofia redunde no mais completo cepticismo e na destruição da unidade dos sistemas antigos, mostrando a necessidade de novas teorias do universo, no campo da ética foi utilitarista, concentrando as ações humanas no prazer e na dor.
124
representando o pensar fechado em círculo (totalidade fechada), ossificado em
forma acabada tencionada a oferecer a “hermenêutica” última do “mundo”.
Empirismo, objetivismo, materialismo ou historicismo vulgar
como teorias unilaterais e incompletas da objetividade que se desdobram em
metateorias abstratas (metafísico-idealistas) que tendencialmente se fecham em
círculo mediante tautologias vazias que se auto-afirmam ou que primam um dado
do ser e do real (apriorismo e inatismo), a ele sempre retornando para se afirmar
tautologicamente, podendo ser um fato, sensação imediata (sensibilidade passiva),
conceito ou lei científica vista como princípio-chave à formulação do saber.
Faz-se indiscernível racionalidade de racionalismo metafísico e
abstrato com a matematização, logicização e o conservadorismo do pensamento.
O motim contra o racionalismo deve por isso ser interpretado como revolta ao
racionalismo abstrato, para que se saiba distinguir legalidade de racionalidade,
evitando o abandono da racionalidade (como fazem irracionalistas,
desconstrucionistas, ecléticos, diletantes e pós-modernos).
Tem-se um embate, com acertos e desacertos em vários desses
construtos. A saber: o empirismo tem razão em partir do real para edificar o saber
mas peca ao no real se ater (CHAUÍ, 1991, p. 19), vez que o mundo não se
restringe ao que apenas dele é sentido e percebido, configurando-se mais
complexo e intrincado, com ilusões de ótica causadas seja pelas limitações físicas
dos aparelhos-perceptivos-individuais seja pelas limitações metafísicas dos
aparelhos-imperceptíveis-sociais (aparato ideológico do Estado burguês). Já o
racionalismo mostra-se correto ao afirmar a necessidade de superação do sensível
mas erra quando as idéias racionalmente formuladas tendem a se des-colar
(meta)fisicamente do real movente, envolvendo-se num pensar lógico-formal no
qual “Decreta-se o percurso, que re-produz o movimento inicial e imita o modelo.
É o dogmatismo filosófico” (LEFEBVRE, 1995, p. 12).
Nada mais que sistema de positivismo retroalimentado por
relação causa-efeito. Relação formal apoiada em premissas gerais e imutáveis que
125
definem o início do processo cognoscente, dirigindo o pensar, antecipando o fim.
As formas (auto)firmadas que constroem o real partem amiúde de duas variantes:
a) A experiência sensorial que reflete mecanicamente na mente o fato;
b) A matematização da construção intelectual como processo de logicização da
dialética (que morre no processo), preconcebendo o fim como conclusão
teleologizada.
Resultado: ao invés de ontologia da história ou ontologia do
espaço tem-se a gnosiologia lógico-estrutural da idéia. A relação entre o aparente
e o essencial se resolve (?) na mente e não junto ao real.
A idéia gere a análise mantendo-se intacta às observações
realizadas no (que deveria ser o) processo de descoberta.
O pensamento julga partir do concreto real. Avança
indefinidamente sem a ele retornar, senão como ideologia travestida de ciência.
Vê-se o que se quer enxergar.
A elaboração mental firma-se comumente como que guiada por
método analítico-estruturalista, atuando mediante análise em separado e por
oposição dos termos observados nas relações dos complexos que substanciam o
real, somente posteriormente sendo inseridos na relação; e não o oposto: de serem
apreendidos unicamente pela interação dialética dos contrários existentes.
O que confirma a tese da curvatura imperceptível da reta, que ao
final se reencontra com a proposição latente, atingindo as respostas pré-ideadas.
Fecha-se o círculo.
No círculo, as partes que se escoram e se auto-explicam por
recursos sofísticos fornecem as “respostas” preconcebidas que se encerram em
sistema (totalidade fechada). E mesmo que para isso tenha que prescindir da
diferença e da discordância para parecer “coerente”, entrando em cena os
princípios da não-contradição e do terceiro excluído.
126
Tais teorias não chegam nem a ser um retrato do real congelado,
um momento do movimento assumindo formas. Como caricatura incolor e
desbotada do real comparecem.
O sistema é de uma metafísica geralmente idealista em que a
práxis que confronta a idéia é tachada como caos e desordem à ordem ideada pela
teoria abstrata, e pensadores como Comte, Hegel e Fukuyama são-nos mostras
desse estilo analítico que assemelha legalidade e racionalidade.
O sistema idealista faz com que parcos vestígios de
materialismo sejam espreitados e que poucos se sobressaiam neste quesito90.
Destaque para Hegel, que nos escritos sobre dialética, lógica e conceitos
90 Lefebvre (1995) demonstra como os indícios de materialismo de vários pensadores rumaram ao idealismo: cita o exemplo do calculismo da logística de Leibniz, para quem o entendimento provinha dos sentidos e experiências, do mundo e da natureza, conquanto tal entendimento de nada se lhe proviesse, a não ser da consciência “de si” que, qual mônada, se afiguraria descolada da natureza e do mundo exterior, como algo autocontido que independe dos reflexos externos, estando Deus a inspirar sensações e idéias; ou seja, todo o entendimento provém dos sentidos, exceto o próprio entendimento, a mônada inspirada por Deus. A matemática leibniziana prezava que de um conjunto de signos (characteristica universalis), cuja lógica se assemelharia ao cálculo (calculus ratiocinator), se formariam os axiomas que revelariam todas as verdades (ares combinatoria). Nas palavras de Gomes, ao Leibniz “O princípio da natureza é a ordem, mas a razão não está sempre em condições de compreender esta ordem” (1996, p. 76) e isso porque “A mente de Deus é toda a mentalidade que se encontra espalhada pelo espaço e pelo tempo, a difusa consciência que anima o mundo” (SANTAYANA apud DURANT, 2000, p. 176-177). Tudo teria explicação, a menos que Deus quisesse manter segredos aos homens (OLIVER, 1998, p. 80). Imensa a força da teoria leibniziana, a ponto de Kant deixar-se influenciar na sua leitura do conhecimento (oriundo de sensações e experiências), não obstante a “forma” que o sujeito lhe confere no mundo interior (o pensamento era-lhe suma substância consciente, imanente, cuja substancialidade se introjetaria nos objetos), que não apenas transformaria o objeto observado, como faria dele aquilo que nele fosse enxergado, separando o sujeito da natureza (coisas), que ficaria na forma vazia da coisa em si ou a outra coisa (o noumeno kantiano, Deus ou as idéias e verdades inacessíveis ao homem: as antinomias às quais a razão e a experiência não se entranhariam), ao invés de aprofundar na essência oculta do movimento e das coisas. Haveria a Kant uma diferença entre a coisa em si (noumeno) e o objeto possível de ser conhecido-representado (fenômeno), e a ciência da natureza, em sua física pura, depende do a priori das categorias, representações e proposições apodícticas das leis da natureza aventadas e que guiarão o processo do conhecimento (transcendental). Já Berkeley diferentemente é caracterizado como idealista subjetivo, dotado dum idealismo extremado cujo processo de conhecer é rotulado de solipsismo, porque a ele apenas a mônada, a consciência “de si” ou o pensador individual existe, e tudo o que o envolve compõe uma construção artificial, não havendo mundo exterior senão como sensação e idéia. Em Leibniz e Kant o idealismo é portanto mais sutil, como o é em Hegel, considerado um idealista objetivo. Verifica-se então uma maior proximidade entre as preocupações do materialismo e do idealismo objetivo no que se refere à teoria do conhecimento, que entendem o pensamento não como uma “coisa” ou uma “substância” mas como atividade: o “nada” substancial, o vazio ou a potência de compreensão que em “tudo” avança.
127
conseguiu expressar marcante dose de materialismo, inclusive por referir-se à
realidade, que entendeu como histórica e com atributo potencial à reflexividade91.
Ainda a guisa de exemplificação está Durkheim e seu conhecido
método de segmentação entre teoria e subjetividade, para não falar da neutralidade
que deveria possuir o sujeito na análise do objeto – o que para Marx soaria como
contraposição entre juízos de valor e juízos de realidade. Ensejava Durkheim
livrar a teoria e a ciência das cargas ideológicas; ironicamente, terminou por
constituir-se em ideologia. Desta feita, a clivagem metódica entre ciências sociais
e ciências naturais, tão bem vista no século XIX, passa a ser crescentemente
interpelada, já que se tinha por aceito que a objetividade das ciências sociais
individualizava-se da das ciências naturais porque as leis descobertas pelas
últimas independeriam da consciência humana, sendo-lhes exterior e libertas de
juízos de valores. Imagem relativizada a cada aurora, haja vista que os resultados
objetivos obtidos nas ciências da natureza não são absolutos e imutáveis, ao
inverso do que se pensava no século retrasado, além do que, o conhecimento
depende dos instrumentos, do método e do avanço já cumulado pelo sábio e da
época a que pertence, porque ainda que a natureza seja objetiva e não-projetiva, há
que se saber que nada impede que o pensar homogeneamente a natureza, a partir
da percepção sensível, possa estar indiretamente envolvido com algum tipo de
pensamento ou (pré)conceito enraizado no ser-pensante, ou seja, se a natureza de
certa forma é autocontida e independe do homem, o seu conhecimento por mais
objetivo que se nos possa afigurar não está entretanto isolado totalmente do
homem, da sociedade, dos instrumentos, valores e da época e espaço em que se
desenvolve. A objetividade da ciência se cruza com a subjetividade do cientista (e
o teórico em geografia é aquele que compreende o espaço construído sem isentar-
se em fixar as suas marcas no espaço vivido, na interação da vivência-prática-
conhecimento). Lévy-Strauss poderia ter certa razão quando escreveu que o que
separa as ciências naturais das ciências sociais não é unicamente o objeto (que é o
mesmo) mas a atitude epistemológica; algo parecido se efetivando com as ciências 91 Não à toa Marx ter incorporado muito da dialética de Hegel, de um pensamento cujo grau de complexidade pecou justamente na forma que elegeu para compreender a complexidade do mundo, concepção à qual Marx fez inverter e pôr os pés no chão.
128
humanas que, ainda que possuam objeto próximo ao das ciências sociais, valem-se
como inspiração metodológica das ciências exatas e naturais.
Isso faz crer que o método contribui amplamente para que a
opção tomada no início da odisséia tenha seqüência no trilhar teórico, contudo não
ser incomum e inapropriado que se intercalem elementos parciais que o
contradite, como aconteceu com o Hegel, de cujos axiomas abstratos se colhem
pensamentos concretos sobre a dialética da lógica e dos conceitos, da realidade
contemplada como idealidade do Absoluto abstrato que se concretiza
historicamente.
Os idealistas, em princípio e substância, em acreditando ser o
real representações processadas pelo intelecto, frisam como fator à produção de
idéias científicas a consciência em si. Um exemplo está na concepção hegeliana
de Estado, explicitada na Filosofia do direito como Idéia política par excellence a
retratar a evolução geral do espírito humano, e que surge como das mais altas
sínteses do Espírito objetivo, a harmonizar e supostamente espessar os interesses
da pessoa (proprietário), do sujeito (moral) e do cidadão (sociedade e política).
Analisando a “alienação” de maneira alienada e descolada da
materialidade contraditória da história real, vendo-a como contradição filosófica a
ser ultrapassada racionalmente pelo homem com o auxílio das idéias emanadas do
Espírito, Hegel venerou aquilo que o homem produz e que justamente lhe afronta:
a propriedade privada, o Estado, o capital e a religião; compreendendo-os como
obra espiritual da Idéia Sobre-natural e não como produto histórico da alienação
social comum em sociedades classistas.
O fator móbil da história encontrar-se-ia arrimado na mais
sublime e cordata idéia manifesta pelo Espírito e não nas condições materiais92,
sob contradições histórico-espaciais, pelos homens vivenciadas nas lutas que
travam e das quais resultam as idéias invertidas-alienadas-ideologizadas-
distanciadas-complexificadas.
92 Ao Marx a matéria diferencia-se do empírico, aproximando-se da concepção de concreto (real e pensado, de que tratou Kosik). Marx abordou o fenômeno social concreto, que inclui fluxos, relações, idéias, símbolos e ideologias; abordou a matéria social: os homens (re)produzindo e se organizando como homens sob determinadas condições concretas.
129
Ao contrário de manifestação ideal do desenvolvimento, o
Estado concretiza-se como a orquestra de instrumentos e normas escalonadas para
entenebrecer as práticas das lutas imanentes ao ser-antagônico-capitalista, com o
objetivo de seu engessamento e condução circular (geograficamente, o princípio-
fim-circular da lógica identifica-se com a arrumação dos espaços à reprodução
ampliada do capital).
A ilação do exposto permite afirmarmos que às teorias e
ideologias relatadas tem-se a idéia rodopiando em torno de si, nas nuvens, longe
das fissuras do chão social. Olhando de cima e com a cabeça para o lado, até se
voltar e se encontrar com o pré-afirmado93.
Fecha-se dessa maneira o círculo do vôo mental com a imagem
de que o que se vê é a causa da dinâmica do real. Quando o que realmente espelha
não vai além da conseqüência.
Por essa via a metafísica idealista anseia dirigir a prática.
Contrariamente, à distância da mesma, sem se sujar com as histórias e as
geografias sociais. Mantendo-se pura, neutra e desapega de subjetivismos
ideologizantes94.
O resultado é o mesmo na reta e no círculo.
93 Discordamos da acepção de Ernildo Stein (2005) sobre o fato das teorias marxianas também se enquadrarem nesses enunciados, como teorias pré-afirmadas (chamadas de retórica, pelo forte apego argumentativo e emocional) para justificar a práxis transformadora, sem que houvesse consistente teoria do homem para que, sabendo-se da condição do ser, se buscasse pela práxis o dever-ser. Sabemos que as teorias marxiana e marxista apresentam profunda análise do ser histórico-concreto e que a teoria é construída conjuntamente ao seu descobrimento, voltando inclusive para rever-se no processo, não havendo o a priori metafísico relatado. Afinal, a concretude e terrenidade da mundividência marxista não se presenciaria pela concepção de que o homem é aquilo que faz e o saber erige-se da relação prática-teoria? Contra o dogmatismo, Marx não teria se assegurado um não-marxista? A preocupação marxista com o homem e o mundo não teria qualquer ligação com o enunciado (heideggeriano) do cuidado, só que nas vestes teórico-praxiológica da coletividade classista? O ser-no-mundo como ser-jogado e como ser-para-a-morte refletiria ontologicamente apenas a angústia e o cuidado individual? Ao marxismo o homem só se realiza no coletivo, por isso a preocupação com os fundamentos do ser coletivo. Certo é que o marxismo está léguas da neutralidade teórica de determinada concepção filosófica de estar-aí do ser-no-mundo cuja práxis além de servir à estrutura hegemônica quer colocar no mesmo saco (de pedagogos idealistas) aqueles que justamente deram o golpe mortal no idealismo. Os não(anti)marxistas é que indispõem de relação entre teoria e práxis – ou então primam o cuidado como mediador da teoria-prática –, não os adeptos do materialismo histórico-geográfico. 94 É interessante notar que o subjetivismo fortaleceu-se no marxismo a partir da questão da consciência de classe, como necessidade de elaboração da ciência proletária contrária à ciência burguesa. Imbuído disso, o subjetivismo suplantou o caráter científico, a teoria da objetividade.
130
O predicado central na reta está na partida do pensar pelo
imediato, por meio de sensações auto-afirmadas e inquestionáveis, empiricistas,
que erguem um edifício de pensamento nas alturas do chão da empiria. Já no
círculo, o pensamento parte de um princípio do real visto como central e que vai
justificar, rodopiando e lançando múltiplas “justificativas”, toda a relação de
causalidade advindas do encadeamento matemático e mecânico de eventos
sucedidos àquele ponto determinado no início. Agiram assim os economistas
clássicos que tomavam o capital como fonte de riqueza em todos os momentos e
regiões da história, quando na verdade é o trabalho que gera a riqueza, o capital
apenas dele se apropriando e o dirigindo à esfera abstrata da produção do
excedente, pela mais-valia do trabalhador extraída e não de investimentos em
maquinários que em-si responderiam infinitamente pelo desenvolvimento social
(quando ao capitalismo concorrencial sucedeu o monopolista).
Outro exemplo de interpretações que seguem esse suposto
fundante está na consideração da proletarização, produção da mercadoria e ou no
fator salário os ingredientes únicos caracterizadores do capitalismo: a parte central
elevada ao todo (confundindo, na prática, todo-soma com totalidade-dialética).
Por simples cartesianismo, vêem a história e a geografia como
partes, formas, esquecendo-se que o capitalismo é a essência do processo: o
movimento de acumulação que acumula, reinventando, meios novos e híbridos
para se reproduzir ampliadamente como unidade tensa de um complexo
organísmico, que se não nega as estratégias espaciais passadas agrega como
elementos de seu metabolismo partes dos complexos aos quais destruiu para se
reproduzir ampliadamente. O capitalismo aprende horizontalmente com a
diversidade espacial e reorienta-se evolutivamente com as experiências da
sucessão temporal.
Nestes procedimentos metódicos (empirismo ou materialismo
vulgar95 e metafísico-idealista) não se discutem premissas na relação do pensar
com o real: estariam elas já dadas e o real a elas deveria se ajustar.
95 Foi postura comum aos estruturalistas, revisionistas ou detratores do marxismo a identificação do materialismo histórico como interpretação econômica (ou sociológica) da história, possível de
131
O motor que move as asas (da dialética) do idealismo hegeliano
é o trabalho do Espírito ou da dialética logicizada que alça seu vôo dialético que
se fecha em círculo, negando ao fim a própria dialética. Ao passo que o motor que
move a dialética do materialismo histórico é o trabalho material socialmente
dividido e espacialmente regulado, que em páginas vindouras nos achegaremos.
1.2.2 O Pontilhado...
“Acabou a revolta da vontade. E estou mudo: já não tenho
mais palavras de ordem para mudar tudo”96.
---------------------------------------------------
“A única certeza é de que nada se tem certeza”
“Suspendo meu juízo”97.
---------------------------------------------------
“Para o homem, é inútil procurar a solução dos grandes problemas que
mesmo para não serem entendidos foram apresentados.
Refiro‐me a Aristóteles, a Platão e a outros mais”
(ALIGHIERI, 2002, p. 156)98.
---------------------------------------------------
Uma filosofia superficial, que faria deste mundo um palco de milagres,
exagerou prodigiosamente a influência do acaso, isto é,
das causas isoladas, nas coisas humanas.
Esse exagero é manifesto sobretudo nas ciências e nas artes”
ser captada por disciplinas afins, quando de fato, nos pôs a recordar o historiador marxista Eric. J. Hobsbawm (1975, p. 20-21) em crítica a Joseph A. Schumpeter, a história é mais complexa do que pretende cada disciplina e visão particular. Para além do economicismo, sociologismo e dos geografismos baratos e deterministas, deve lançar-se o método dialético materialista. 96 Verso de Augusto de Campos utilizado por Moriconi (1994, p. 25) para tratar do estado de espírito social dos indivíduos contemporâneos. 97 Frases grafadas por Montaigne na viga de seu escritório. 98 Execra o florentino Dante os feitos dos que, aliados à razão e contrários ao contemplar, ousaram poder adentrar nos mistérios da Divina Providência; assuntos impróprios aos terrenais humanos.
132
(COMTE, 2005, p. 61)99.
A perceptividade da pós-modernidade. O que o mercado
fragmenta ou sistemicamente diversifica, arranja e distribui ideológica e
materialmente, a percepção científica descreve como coisa-em-si.
Situação que faz com que o caos da paisagem sirva à
conservação ideológica da estrutura invisível da totalidade do espaço imperialista.
Trata-se do imponderável, indeterminado, descontínuo, o se e o
ser sem vir-a-ser, sem devir, congelado no presente e espaço perpétuos.
A História sem historicidade, a Geografia sem intencionalidade
e a saudade do futuro revelam as nuances do micro. Despreocupa-se teoricamente
de com a totalidade se relacionar porque o lugar é visto em-si, explicado por-si.
O saber é mumificado. Mata-se a vanguarda na ciência e na
práxis, a metateoria materialista.
Os mundos interior e o exterior figurados como mosaicos de
fotografias: caleidoscópio sentimental. Qual espectro insatisfeito e cansado a
vagar aos sopros do que se entende imponderável.
Não se busca a verdade dos fatos. Objetiva-se a validade.
Que se diga entrementes que as ciências não apenas se fizeram
obra da reviravolta objetiva do mundo social. Sofreram elas mutações advindas
das descobertas em segmentos específicos do saber: caso da Física sacudida pelo
campo inclinado à Quântica100, e que como saber parcelário concernente a um
campo específico do universo científico ergueu-se ideologicamente a arquétipo
universal justificador das “leis naturais” do mundo humano.
99 Não obstante a defesa da tese da existência da lei natural a estimular a civilização indubitavelmente a marchar progressivo-linearmente no tempo, nessa passagem em que trata do avanço da ciência, cumulada pelas gerações precedentes, Comte contribui de maneira salutar ao mencionar que o acaso – como o da queda maçã registrada pelo Newton, a dita semente da lei da gravidade universal – não passa de particularidade, de ato singular que perde peso diante das descobertas realizadas pelo encadeamento e sucessão dos saberes que fazem avançar as ciências. 100 O próprio Einstein não logrou conciliar a questão da teoria geral da relatividade com a física das partículas, fundamentalmente quântica, isto é, o enigma que perdura entre a relatividade e o eletromagnetismo, entre o que se relaciona causalmente e as propriedades e realidades sem relações causais da mecânica quântica.
133
Os átomos sacudiram o mundo por inteiro: na matéria e na idéia,
quer devido à segunda guerra imperialista ou pela descoberta da caoticidade da
dinâmica de suas partículas internas (subatômicas), interpretada por muitos como
microrreflexo escalar do que se processaria em escala social global.
Tais descobertas fulguravam a posteriori com o fim de
responder à política levada ao extremo (da guerra), com tecnologias de destruição
em massa a servir de argamassa à divisão internacional do trabalho, à hierarquia e
partilha desigual do excedente global (produtos, renda e mais-valia), com a
manutenção da desigualdade das geografias técnico-científico-informacionais.
Na geografia do trabalho internacional, de lutas interclasses e
intraclasses, a geografia do trabalho vivo digladia-se com a geografia do trabalho
morto101. Dualidade aparente por tratar-se de par contraditório de termos inter-
dependentes, coabitantes de uma mesma relação.
Nem tanta acidentalidade nas teorias justificantes da
aleatoriedade.
Uma passagem de Jameson (1997, p. 32-33, grifo nosso) ilustra
o que na pós-modernidade às escondidas se reproduz:
O que começamos a perceber agora, portanto – e o que começa a aparecer como uma constituição mais profunda e mais fundamental da pós-modernidade, ao menos em sua dimensão temporal – é que, doravante, quando tudo se submete à mudança perpétua das imagens da moda e da mídia, nada mais pode mudar. Esse é o sentido daquele renascimento do “fim da História” (...) como uma conquista final da igualdade democrática (e da equivalência de valor entre individual, econômico e jurídico) (...) mas que hoje podemos identificar como a pós-modernidade em si (o jogo livre de máscaras e papéis sem conteúdo ou substância). Em outro sentido, é claro, isto é simplesmente o velho “fim da ideologia” com força total e desempenha um papel cínico no declínio da esperança coletiva num clima de mercado particularmente conservador. Mas o fim da História é também a forma final dos paradoxos temporais que tentamos dramatizar aqui: a saber que uma retórica da mudança absoluta (ou da
101 Se nas sociedades primitivas, escravistas e feudais, o trabalho vivo (manual e intelectual) era o motor da sociedade – se ousarmos empregar conceitos marxistas àquelas –, nas sociedades capitalista e pós-capitalista do século XX destacaram-se principalmente geografias do trabalho morto onde o capital fixo (máquinas, instalações industriais, laboratoriais, etc.) não apenas superou como passou a antagonizar com o trabalho vivo. Isso porque, distintamente das sociedades anteriores (não-classistas ou classistas), o capital e o capitalismo seguem a ordem do lucro, que é a estrutura de seu cosmos e o princípio-negador de todos os demais obstáculos, vistos como caos.
134
“revolução permanente” em uma nova acepção colada à moda e totalmente aviltada), é, para o pós-moderno, não mais satisfatória (nem menos) do que a linguagem da identidade absoluta e estandardização imutável, remodelada pelas grandes corporações, cujo conceito de inovação é mais bem ilustrado pelo neologismo e pelo logotipo e seus equivalentes no domínio do espaço construído, dos “estilos de vida”, da cultura corporativa e da programação psíquica.
Segundo o autor, quer-se conservar o modo de produção a partir
de mudanças atreladas à mercantilidade, reproduzindo o velho no novo e
estribando o “Mesmo na Diferença absoluta” que “desacredita a mudança, pois
daqui para a frente a única mudança radical concebível residiria em pôr fim à
própria mudança” (ibidem, p. 33).
Lefebvre (1995, p. 16), demonstrando a pretensão de se acabar
com a contradição e o movimento, sobretudo no pós-II Guerra Mundial, notou que
“Entre os pensadores, a reflexão dialética não tem mais fundamento objetivo,
nem referência teórica, nem base prática, nem referência social”.
O médico e psiquiátrico italiano Mauro Maldonato (2004, p.
34), em defesa do pluralismo teórico que veio a seu ver contrariar o cienticismo
que então se impunha de modo mais danoso que a própria religiosidade,
marcadamente nos últimos cinqüenta anos, argumenta que:
O homem não é, nem nunca será, o deus diante de quem outro homem deve ajoelhar-se. Nenhum homem, portanto, jamais será onisciente. Isso vale, antes de mais nada, para os cientistas. Talvez seja esta a lição mais importante que decorre das descobertas e das controvérsias da epistemologia contemporânea. Basta pensar no falibilismo e racionalismo crítico de Karl Popper, na virada epistemológica pós-positivista nas visões de Thomas Kuhn (a estrutura da revolução científica), de Imre Lakatos (a metodologia dos programas de pesquisa), de Paul Feyerabend (o anarquismo metodológico), de Edgar Morin (a complexidade): teorias divergentes em linhas de pesquisa, mas convergentes ao criarem um clima de pluralismo teórico oposto a todo monismo. Cada uma dessas teorias mostrou, com diferentes ênfases, que a descoberta científica baseia-se numa ignorância consciente, no controle dos limites da razão. Nessa consciência, nesse saber que não sabemos nada de absolutamente certo, é que consiste a sabedoria da tradição que vai de Sócrates a Popper.
O italiano crê o monismo como mais prejudicial que o
pluralismo e que o racionalismo desmedido e prepotente, na via filosófica anti-
135
socrática, acaba perturbando o processo do saber. Daí centrar também a utilidade
das metáforas, que preenchem o vazio que rijos conceitos jamais vislumbrariam,
pela aridez e fixidez, considerando a vida farta demais em simbologias para caber
no cienticismo conceitual puro, fazendo do metafórico necessário auxiliar, como
de certa maneira se opera com os pensamentos mais abstratos (id., p. 33, 36).
Essa é a linha dos que se posicionam pró-método, advogando
exclusivamente a importância dum “método científico flexível”, atinado à
pluralidade e à riqueza do mundo da vida (MALDONATO, 2004, p. 37).
Pior são os que se posicionam contrários ao método.
O estruturalismo tanto cresceu e se enganou que não demorou a
aparecerem teorias contrárias ao método, causando grande estardalhaço. Foi o que
se passou com Feyerabend que para criticar o dogmatismo e a ortodoxia
pseudoverdadeiras colocou-se contrário ao processo dedutivo-indutivo,
defendendo o pluralismo teórico amparado no “anarquismo metodológico” ou
“anarquismo teorético”, que nada deveria desprezar de antemão e cujo
relativismo se despiria de preconceitos, prontificando-se a sempre rever os
postulados (GÓMEZ, 2004).
Válida em princípio a preocupação feyerabendiana externada em
Contra o método, datado de 1975. Evidencia-se que o método científico não é
infalível e nem as verdades eternas102. As conseqüências desse tipo de pensar é
que são indignas de seus princípios.
Típicas à corrente dos pós-modernos, algumas das
conseqüências possíveis se identificam com a sobreposição da lógica formal à
dialética. Opta-se pela gnosiologia à ontologia para que no evitar do movediço
solo da dialética concreta se prefira a estabilidade do pensar lógico formal;
quando o essencial é que a lógica dialética centre o pensamento concreto do/no
102 Facilmente se observa que a postura científica de Feyerabend é totalmente avessa a que preservava Popper. Não obstante, o método não precisa ser negado para que se confirme a falibilidade do conhecimento (ou dos pensadores). Observações mais profundas que as de Feyerabend foram feitas por Lefebvre (1995) contra o marxismo vulgar, a metafísica e o estruturalismo, e não para enfraquecer o método mas para que a seta da verdade relativa fosse mais reaproximada do eixo do saber acumulado, para que o método do materialismo dialético se reorientasse à investigação da “objectividade aprofundada” mediante o “relativismo dialético”.
136
concreto empírico sem desdenhar entretanto a limitada-fixa-momentânea-inerte-
infecunda-abstrata-insuficiente-mas-necessária lógica formal, a ser reapropriada
no processo cognitivo para o efetivar concomitante da logicização da dialética e
da dialetização da dialética. A lógica destarte não pode ser concebida como
produto metafísico e sim como o relativo integral, presente em todas as relações e
integradora das relações, especificidades e diferenças (LEFEBVRE, 1995, p. 29).
No contexto em que se avigora a praticidade do saber cooptado
pelo mercado (capitalista ou pós-capitalista) somada à repugnância pelas formas
viciadas do pensar ideológico, abrolham os desgostos pela racionalidade e pelo
método. Tudo coligado às descobertas da física; como se ao determinismo natural,
histórico e geográfico, surgisse agora o determinismo atômico-molecular: novo
matiz do naturalismo filosófico103.
Do reino físico, (des)sintonia probabilística que tudo mais
confunde, como de praxe, dá as mãos as mais ciências. Dedicando a esse assunto,
Ilya Prigogine mostrou os avanços recentes da física, relatando como interagem o
indeterminado e a probabilidade – passíveis de serem desnudados pela estatística
– e como a seta do tempo influi nessa relação. Prigogine (2002, p. 8) insiste na
caoticidade como um atributo da natureza que deve ser conhecido à luz das “leis
da natureza”, e que a instabilidade do caos que produz a desordem igualmente se
desenha como fonte de ordem, “mas contanto que generalizemos essa noção para
nela incluirmos as noções de probabilidade e de irreversibilidade”.
O cosmu, o que anima a vida atômica, tem pouco da
concordância e consonância preconcebidas; como se se tratasse de cosmo de
equilíbrio assentado no chaos (lat.).
103 Whitehead classifica a postura da natureza pensada homogeneamente um atributo da ciência natural, pois erigida da percepção sensível que, ainda que se queira livre de qualquer tipo de pensamento – pelo fato de a natureza ser autocontida e indiferente ao pensar humano –, há sempre envolvido no processo de conhecer algum tipo de pensamento. Senão indaguemos: Como é possível saber se no próprio processo de apreensão sensível não estão contidos valores sociais, ou seja, se não há pensamento subjacente à percepção? Isso explica o fato de nem mesmo a ciência natural poder ser considerada neutra, envolvendo algum pensar na relação espacial sujeito-objeto-lugar. Por extensão, o que pensar do método heideggeriano da ontologia fenomenológica fitada na analítica existencial do estar-aí do ser-no-mundo?
137
Na etimologia grega o termo Kosmos também significa
“literalmente ‘arranjo, ordem’” (universo organizado) conquanto Káos
simbolizar “‘abismo’ (...) assinala o momento no qual, entre os elementos, impera
a confusão” (PENHA, 2000, p. 12). Outro não é o motivo para que
tradicionalmente na filosofia as imagens-chave prevalecentes sejam as que têm o
mundus por “buraco, caverna, corredor com uma abertura para luz” ao passo
que a de cosmos se assemelhe à “disposição harmoniosa dos corpos e
corpúsculos numa hierarquia iluminada” (LEFEBVRE, 1995, p. 14).
Abismados com o achado da Física, outros filósofos se rendem à
metafísica idealista de fundo religioso, tal o baque e a descrença nas verdades e
nas lógicas consagradas. Conscientes ou não cumprem o jogo do mercado, de vez
que os burgueses não perdem tempo em aproveitar o clima psicossocial para
injetar recursos e micro(cosmo)visões na direção do mirante Capital.
Se se despreza o real como fonte de elaboração-sistematização
do saber, opta-se pelo idealismo como método explicativo, dado que a
representação faz-se produto de elaboração mental fechada em-si, ou seja, a
consciência põe-se como determinante do ser social, tendo a razão papel nuclear
no aproximar do ser social ao Espírito absoluto (Deus).
Idealismo ou determinismo quântico que tenta pôr-se como
procedimento explicativo a aconteceres sociais104.
A aleatoriedade, a contingencialidade, imprevisibilidade e
mormente a neutralidade ganham campo notório. Quando o sentido grupal (social)
aparece, reveste-se como união de fragmentos.
Ao sistema do capital fragmentar é a ordem.
Agora, para além desse raio do saber, contagiando as mais
ciências... As ciências sociais não ficam imunes.
As implicações abundam:
104 Atentar à idéia da função da “nova esquerda mundial” defendida pelo representante dum dos maiores partidos políticos do país, a respeito do assessoramento governamental às lutas da esfera não-governamental (ONG’s), em: GENRO, Folha de São Paulo, 27/2/2001, p. A3.
138
a) Nas ciências, se se pensava em inter ou trans-disciplinaridade, vê-se ocorrer o
processo hegemônico de fusionamento assistemático de preceitos; somando-
se partes sem sistematização de método, ou então se assume a soma como
“método” matematizante, caso do ecletismo teórico e do diletantismo que se
desvestem da razão levando o saber aos labirintos dos “jogos de linguagem”,
ao invés de pela rede-de-linguagem conduzir o homem à verdade relativa;
b) Na teoria, nada de ideologia: se houver, mais como orgia ideológica, em que
tudo e ninguém a nada pertencem;
c) Na sociedade concreta não existiriam classes: temos o borrão social;
d) No território continua-se a tentar suprimir a idéia de coação, supostamente
incapaz de existir na “sociedade democrática” na qual impera a
“representatividade política” e na qual a propriedade dos meios geográficos
de produção se faz obra do justo esforço individual. Tudo se arrumando
concretamente como conjunção espacial harmônica no universo das normas
reguladoras da geografia burguesa.
Quiçá, senão o maior, configura-se como dos maiores problemas
dos pós-modernos a confusão em relação aos ingredientes que compõem o real.
São tantos os elementos por eles percebidos – o que em-si não se institui em fator
ruim – que acabam por se perderem ironicamente no meio das mediações: sem se
saber o que fazer com elas, delas partindo-se.
Não há mais início, princípios. Não há objetivos ou projetos,
como finalidades à práxis105.
Os antagonismos cedem lugar às contradições, quando muito.
Ou se esbarram na relação dos vários soltos, quais moléculas errantes.
Eis o aleatório da Quântica Social a “preencher” a vacuidade do
universo espacial.
Há mais contentamento em se formular perguntas. Menos
carência existencial (social) por respostas. 105 Intencionalmente ou não, a pós-modernidade repete os postulados dos revisionistas do marxismo que quando não podiam evitar a insurreição de forças revolucionárias buscavam dimensioná-las ao reformismo, como Bernstein, ao qual o movimento era tudo e o fim nada!
139
A estética sobrepuja a ética, notou Harvey em crítica aos
desconstrucionistas (1993, p. 325 et seq.). A metalinguagem, como discurso sobre
o discurso desapego do real, desvanece-se perante a sociedade que entende
possuir a sua principalidade fundante no simulacro, em idéias distorcidas e
reificantes. Jameson (1997, p. 24-25) usa o exemplo da Guerra do Golfo para
ratificar a idéia de como na sociedade pós-moderna a querela subjetivo-objetivo se
desfaz, com as representações subjetivas sendo travestidas de objetividade.
Repetimos: não há busca pela verdade factual. Na validade está
a meta. Motivo para que as performances (anti)científicas pós-modernas,
desconstrucionistas e irracionalistas, talvez nem devam ser rotuladas como
construções metódicas, senão como ideologias classistas prol a-classismo.
A uma distância bem longa, talvez o período atual lembre o
clima psicossocial derrotista da Europa do final do século XIX106. Outros
conseguem ver proximidade com o Renascimento, com uma bifurcação histórica a
se armar.
Talvez o império das reticências no universo do pontilhado...
pelo capital.
1.2.3 A Espiral
“Aquele que à inatividade se entregar deixará de si sobre a terra
memória igual ao traço que o fumo risca no ar e a espuma traça na onda.
106 Marx e Engels também se sentiram abatidos pelas distorções psicológicas originadas nas fases das contra-ofensivas burguesas, pela violenta repressão das forças conservadoras às operações revolucionárias dos comunardos contra os poderosos; não deixando fazer de uma batalha o final da guerra, rapidamente declararam de nada servir o lamentar recostado ao sofá ou o agir extremista e infantil, espécies de compensação psicológica. Prosseguiram a batalha no terreno da teoria. Atentar aos estudos de: FERNANDES, 1995; LÊNIN, 1988.
140
Vence a fadiga e o torpor, recobra o ânimo, que das vitórias sobre os perigos,
a primeira é a da vontade sobre o corpo”
(Palavras proferidas a Dante pelo poeta latino Virgílio,
quando o florentino recostava-se cansado na sétima vala do oitavo Círculo,
nos domínios do Inferno, com o propósito de seu reanimar)
(ALIGHIERI, 2002, p. 101, Canto XXIV)107.
------------------------------------------
“Sejamos absolutamente modernos.
Se o real está em movimento, então que nosso pensamento
também se ponha em movimento
e seja pensamento consciente da contradição”
(LEFEBVRE, 1995, p. 174).
------------------------------------------
“As armas da crítica não podem, de fato, substituir a crítica das armas;
a força material tem de ser deposta por força material,
mas a teoria também se converte em força material
uma vez que se apossa dos homens”.
(MARX, Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel)108.
Movida por premissa totalizante, a dialética materialista pleiteia
que a visão da unidade do diverso do real seja identificada pela mente do sujeito
que com o real relaciona-se pelo ato do (como) pensar não-desvinculado de sua
carga experiencial, com o escopo de, na expressão de Marx, se “descobrir o
núcleo racional sob o invólucro místico”. Razão ao trânsito que o pensar
materialista-dialético mantém entre os pares do abstrato (elaborado pela reflexão)
e do concreto, da matéria e consciência, causa e efeito, teoria e prática, formal
(lógico) e conteudístico (práxis), imediato e mediato, global e parcial, negativo e 107 Ainda que conhecido o repúdio de Dante aos que não se contentavam com o contemplar dos mistérios divinais, expomos a frase para contrariar a versão idealista e anti-racionalizante, de fundo agostiniano, para negar teorias e teóricos que renegam a razão à persecução do saber. 108 Este e outros textos podem ser estudados no site: www.pstu.org.br.
141
positivo, analítico e conjuntural, possibilidade e realidade, subjetivo e objetivo, do
eu e o mundo, para-si e em-si, coerente e conflitual, qualitativo e quantitativo,
necessário e contingente, menos e mais complexo, do verdadeiro e falso. Além
dessas relações tratadas habitualmente de maneira dualística ou além desses pares
contraditórios, a dialética opera também mediante tríades, como as do singular-
particular-universal, passado-presente-futuro (espacializado-espacializante-
espacializável), eu-aqui-agora, particular-movimento-relação e do lugarizado-
regionalizado-globalizado, se meditarmos em termos geográficos a dialética
temporal, transfigurando-a no universo espacial.
No que atine à questão temporal, vimos que o método do
materialismo histórico-dialético consiste em ir primeiramente do presente para o
passado, pois a “anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”
(MARX, 1999). A anatomia do homem ilumina a anatomia do macaco, tendo em
vista que as formas inferiores (simples) só podem ser apreendidas quando as
superiores já são conhecidas, desenleando-se o passado no e pelo novelo das
relações presentes, pela crítica das sociedades primevas. Tese que discorda do
postulado comteano que pretende vasculhar o passado mediante o estudo da lógica
evolutiva da marcha natural da civilização para antever o futuro e, somente então,
munido de teoria se transformar o presente pelo reorganizar da sociedade.
Podemos inferir existir uma dialética (multilinear) do presente-
passado-futuro na teoria e método marxianos, ao passo que no comteano
predomina a fórmula do propositivo (linear) passado/futuro/presente.
Hegel havia pouco revolucionara a concepção de História, pois
ao caracterizá-la como algo mais que sucessão de fatos no tempo fez transgredir o
mecanicismo linear do passado-presente-futuro e emergir a idéia de seu
movimento como que dotado de forças internas parteiras de acontecimentos que
não só estão no tempo mas que o são.
Marx foi mais além que Hegel. Se na teoria hegeliana o real não
somente tem ou está mas sobretudo é História, Marx demonstrou-a como
movimento social (inda que alienado), suplantando a tese fundada no mero
manifestar da Cultura ou do Espírito (desejo, vontade, Estado, etc.).
142
Os estudos seguintes respeitantes à teoria da sucessão dos
modos de produção terão por finalidade conhecer algumas das estratégias
econômico-territoriais criadas pelas sociedades em espaços e períodos singulares,
com suas específicas correlações sócio-ambientais, tendo por guia metódico a
formulação marxiana recém-apresentada, tirando-se as formulações históricas e
espaciais do campo do Sobre-natural ou do Sobre-social para colocá-la no piso do
universo contraditório Intra-social.
Talvez devamos nos lembrar antecipadamente da observação
que nos chega de Étienne Balibar, manifesta nos Cinq études du matérialisme
historique (apud SROUR, 1978), em que fica desacreditada a possibilidade dum
conhecimento teórico geral dos modos de produção (no sentido forte do termo
teoria), porque se poderia encalhar em escolhos insuperáveis, desembocando-se
numa “teoria ideal da história universal”.
Deparando-se com o manifestar fenomênico, parte-se do falso
concreto para a ele regressar assim que compreendida a totalidade das
determinações imanentes. Razão esta de o fenômeno examinado pelo método de
Marx (1999) partir da população, um grande vazio quando ignorada as classes e as
relações sociais de produção e as forças materiais produtivas.
A dialética materialista é a que casa e acompanha a lógica da
forma com a teoria do conteúdo e até a ocasião da primeira grande guerra
imperialista pouco conhecimento se acumulara a respeito da dialética, a não ser
por parte de alguns seguidores de Descartes, Kant e Henri Bérgson (1859-1941).
Esse quadro será alterado no pós-guerra devido à geração de
formulações “dialéticas” voltadas a estudos do “em si” e “para si”, o “eu” e o
“outro”, o ser e o nada, vida e morte, subjetivo e objetivo, etc., como se a dialética
tivesse se tornado, no depoimento dum filósofo, uma “torta recheada de creme”.
A questão é que não é a temática ou o número de elementos
analisados que definem a qualidade do pensar dialético, nem o anseio de querer
acompanhar o mundo incorporando (desqualificadamente) discursos e temáticas
da “moda”. Assim se prioriza a quantidade e não a qualidade (e talvez tenha sido
143
por isso que houve a debandada de teóricos do marxismo para outras correntes,
por crerem que a lacuna era estrutural a esse método).
Por isso da importância de se ter aclarada a inter-relação
existente entre a forma, a estrutura, a função e o conteúdo, explanada
preliminarmente no materialismo histórico-dialético de Marx (1999), e
posteriormente por filósofos (Lefebvre, entre eles) e geógrafos (como M. Santos).
A dialética materialista confronta-se com a dos antigos gregos
que, como recuso sofístico, a norteava à espetacularização do saber, embaralhando
o pensamento ao invés de aclará-lo, contrapondo teses para decompô-las na
armadilha das contradições descompromissadas com o verdadeiro/falso.
À tarefa da verdade incumbe-se o “materialismo histórico-
dialético” criado por Marx e Engels (1996) com a transmutação da dialética
metafísica hegeliana. Método que geógrafos como Hadjimichalis, Bernard Soja
(1993) e Harvey (1993 e 1996), em meio à acalorada discussão sobre o espaço,
rebatizaram de “materialismo histórico-geográfico”. A força e o norte desse
método (RIBEIRO, 2004a, 2005a) devem condizer com a capacidade materialista-
dialética de se des-envolver (re-novar) com o auxílio da compreensão da
“dialética do concreto” (KOSIK, 1995), da “objectividade aprofundada”
(LEFEBVRE, 1981), aproximando-se da proposta marxista da “metafilosofia”
(idem, 1995). Via lógica histórica, na arena da geografia poder-se-ia atingir a
essência do conteúdo do espaço mediante a dialetização da sua relação com a
paisagem, que se poria assim como portal empírico-fenomênico ao desvelar da
lógica territorial-organizativa da sociedade109. Nunca se desprezando, como a
geografia cultural recentemente repôs ao debate, a importância dos saberes
populares e aproveitando, como de certa maneira considerava a tradição marxista
do pensamento, a necessidade e capacidade de participação do povo na leitura e
feitura da história, para que sua importância não fosse varrida para longe pelas
posturas comteanas ou pelos obreiristas e esquerdistas que desmerecem a teoria; é
necessário aquele tipo de cuidado que demonstrou Paulo Freire ao formular o
método educacional embasado na ação dialogal em que todos são educadores-e- 109 MOREIRA, R. Categorias, conceitos e princípios lógicos..., s/d.
144
educandos, pois “Um dos pressupostos do método é a idéia de que ninguém educa
ninguém e ninguém se educa sozinho” (BRANDÃO, 2004, p. 21-22).
Dialética vista como fenômeno objetivo inerente à natureza, não
algo recluso unicamente ao entendimento humano particular.
Não há negação ou hierarquização de uma das esferas da relação
sujeito-objeto. Constituem a díade essencial. Como relação, pela relação e na
relação devem ser examinados e assimilados os determinantes do espaço social. O
sujeito não nega o real para nele estribar a idéia e a idéia não se constrói por fora
da relação do ir-e-vir do sujeito têmporo-espacial.
Nessa tarefa, a sensação e a razão servem de pontes entre as
margens da ignorância e da ciência, e não para negar o real e afirmar o eu-
autocontido (mônada, consciência-de-si idealista, noumeno, número, espírito) mas
para que sejam desmistificadas as dissonâncias sensoriais com vistas à apreensão
racional das leis reais do movimento da natureza. Jorra o saber científico da união
dialética entre o imediato (sensações) e o mediato (percepção), que se imbricam e
interagem processualmente, racionalmente: momento em que o nível métrico e
paisagístico (notado pela visão, audição, tato, etc.) é transpassado
qualitativamente, revelando-se a essencialidade das determinâncias espaciais.
Ademais, de grande relevância ao entendimento da relação entre
a sensação, o percebido e o refletido é que as contradições não somente se
expressam na interação desses diversos momentos, como internamente a eles pode
igualmente haver relação de complementaridade, causal, conflitual e tensa.
Aqueles famosos cinco sentidos (visão, audição, tato, olfato e
paladar) considerados auxiliares à observação do mundo externo por Aristóteles e
que foram tão censurados por Agostinho como fonte do prazer-pecado, hoje são
reavaliados por cientistas que ousam arriscar a existência de algo entre dez e trinta
e três sentidos. Outros interpelam se não existiriam em maior número ou então se
não seria somente um o sentido que possuímos, a demudar conforme os caracteres
culturais da sociedade e/ou do organismo físico-biológico individual.
Hasteia-se a nova “ciência dos sentidos”, dimensionada a
vasculhar os dois “mundos”: interior e exterior. Porque mais que os cinco sentidos
145
clássicos “existem aqueles que servem para percebermos nós mesmos e a relação
do nosso corpo com o espaço” (AXT, 2005, p. 79).
Dentre o arco de exemplos condizentes aos sentidos interiores,
salientamos a propriocepção que informa-nos sobre o que faz parte de nosso corpo
(pessoas dela desprovidas precisam enxergar partes do corpo para se mexer) e a
cinestesia que informa quando cada parte do corpo se move espacialmente.
No que atine aos sentidos tradicionais, sabemos que o tatear tem
lá sua complexidade, como o sentido diferenciado entre o tocar com pressão e o
tocar gélido. Com a visão não é diferente já que enxergar formas e paisagens é
diferente de enxergar cores (os daltônicos comprovam ser possível ficar cego só
para cores), e entre as próprias cores questiona-se se não poderiam ser apreciados
pelo menos em quatro os sentidos (um para as formas e os outros para os verdes,
vermelhos e azuis). No concernente ao olfato é possível com a fragrância reavivar
pessoas, situações e lugares grafados no espaço da mente; às vezes ainda pode-se
dum perfume evocar a cor e dum som uma imagem diversa (processo chamado de
sinestesia). Tais fatos se dão porque não obstante a sensação ser ordinariamente a
fonte de estímulos a serem decodificados pela percepção, outras vezes pode
ocorrer de a sensação não acontecer e sim a percepção: o que permite que apenas
pela visão sejam sentidas texturas de lugares e de coisas ou que sejam elaboradas
imagens complexas pela mente através do tato e da audição.
É possível enxergar de olhos tapados ou sem a capacidade da
visão: tato e audição podem ser os visores. Possível é tatear, sentir a textura de
coisas e de lugares através de cheiros ou da visão. É possível “olhar” pela língua
ou por outros sentidos, podendo até a memória auxiliar em caso de a visão falhar.
O ver pelos olhos seria apenas o caminho mais habitual, o que
poderia ser comprovado pelo fato de cegos pintarem obras de arte de melhor
qualidade que muitos que detêm visão perfeita. O que reforça as teorias de que a
percepção das coisas ou do espaço não depende necessariamente da senda pela
qual os sentidos nos chegam: o cérebro vê de várias formas.
Os sentidos são flexíveis, adaptáveis. Experimentos científicos
realizados pela vedação dos olhos de algumas pessoas acrescidos a estímulos
146
táteis e auditivos desenvolveram maiormente outros sentidos; comprovando que a
limitação de algum promove o estímulo doutros, compensando-se a deficiência.
O cérebro monta a imagem mental a partir dos dados
disponibilizados pelos sentidos. O espaço mental criado é essencialmente o
resultado da interação estabelecida entre a qualidade e os atributos dos aparelhos
sensórios, do nível de estímulos e da percepção que se tem do espaço geográfico,
donde a ordem racional que substitui o caos mental das imagens e paisagens.
Além da multiplicidade de sentidos e da variância encontrada no
que se cria ser um só sentido (caso da visão ou do tato) a percepção vê-se
embaraçada pelo fato de os sentidos momentaneamente agirem em grupo,
permitindo ao cérebro a utilização de todas as percepções para criar o cenário
mental da situação ou fenômeno (processo designado de mãos da mente). A
questão torna-se mais intrincada porque nessa complexão existe a variação entre a
sensação e a percepção, porque a primeira corresponde ao estímulo recebido, ou
seja, a sensação é a parte passiva, enquanto que a percepção assimila-decodifica-
processa os estímulos; sem contar que a potencialidade seletiva da percepção pode
ser desativada em algumas ocasiões (quando se escuta palavras sem nada ouvir),
ao passo que noutros, superestimulada (andando-se na rua deserta fica-se mais
perceptivo a barulhos e sombras, com maior confusão entre a objetividade do
espaço externo e a percepção subjetiva no espaço da mente). A percepção pode
também ser prejudicada na ocorrência de um problema neurológico, como o da
agnosia que impede o reconhecimento de sons, cheiros e imagens (há relatos de
pessoas que não conseguem ter visão integral de coisas e pessoas, confundindo a
cabeça da esposa com um chapéu, embora enxergue com incrível riqueza de
detalhes as partes componentes do objeto).
Na conexão causal e dialética desses momentos (interação não
tão harmônica entre o sentido, o percebido e o refletido) conta também o fato de o
real aparente iludir a sensação e o ritmo da vida humana ser diferente do
movimento natural das coisas. Fazendo com que o mundo prático apareça muitas
vezes imóvel (caso do invisível desgaste em nível da forma-paisagem).
147
A compreensão dialética da dialética do espaço social tem de se
dispor a avançar nessas veredas: saber ventilar sensações falsas de aparências e
paisagens ilusórias, tatear empiricamente as rugosidades e as fissuras da forma,
ouvir e decodificar o emaranhado estrutural de sons e discursos, aspirar para além
do perfume exalado a confundir os sentidos. Como indicara Marx, os sentidos são
produtos históricos do desenvolvimento concreto alcançado pela sociedade (Não é
comum que comunidades caçadoras tenham alguns sentidos mais afinados que
outros de comunidades pescadoras ou camponesas?).
Relação sujeito-objeto esteando a teoria do conhecimento. Desse
sustentáculo tem-se animada a visão epistêmica das questões da razão e emoção,
do observado e imaginado.
Foi sentenciado não se dever desprestigiar o sentimento em
nome da racionalidade positiva desapegada de subjetivismos e paixonites agudas,
passando-se por cima da época e do estado do saber alcançado, dos lugares e dos
conjuntos de forças e circunstâncias que os definem, desvalorizando-se de arrastão
os sujeitos, como se se tratassem de seres gerais voltados a captar dum só golpe a
verdade universal, independente de tudo e de todos.
Não foram poucos os que atestaram a necessidade do sentir. Do
“conhecimento da escassez” (Milton Santos) ou do “conhecimento da ausência”
(Boaventura de S. Santos), pela “fome de pão e de beleza” (Betto) ou pelo
princípio freudiano-sartreano da presença do não-ser como plenitude primacial do
ser é donde se manifestam em idéia as contradições da própria empiricidade das
condições sociais, em que a fisicidade do lugar põe-se a desafiar a generalidade
abstrata do discurso ideológico e do fazer hegemônico.
Disse-nos Lukács que:
Somente quando a sociedade se torna bastante diferenciada, de modo que cada homem organize individualmente sua própria vida em um caminho cheio de sentido ou também se deixe levar pela perda de sentido, que esse problema emerge como geral (grifo nosso).
Não-ser. Não-ter. Condições do deixar-de-ser e do deixar-de-
estar como indícios reveladores da ausência de si, do outro, de algo.
148
O psicanalista inglês Ronald David Laing esclarece-nos que:
As primeiras insinuações do não-ser talvez tenham sido a ausência do seio ou da mãe. Parece ter sido esta a sugestão de Freud. Winnicott escreve sobre “o buraco”, sobre a criação do nada no devorar do seio. Bion relaciona a origem do pensamento com a experiência da ausência do seio. O ser humano, na expressão de Sartre, não cria o ser, antes injeta o não-ser no mundo, numa plenitude original de ser. O nada, como experiência, surge como ausência de alguém ou de alguma coisa (1978, p. 29).
Vai-se embalando a história entre as causas e os efeitos,
entremeando-se múltiplos espaços de concordâncias e contradições, entre o
mundo insano da produção agilizada e o mundo desigual da distribuição
desproporcional, entre os espaços da produção e reprodução, entre os que mais
podem ser, estar e ter (a partir das “necessidades” literalmente propagandeadas
como vitais) e os que na margem e à distância começam, na inquietação, a ensaiar
comparações e a reconhecer as cercas espaciais das privações.
Do sentimento de falta jorra sentidos às vidas sem-sentido.
A única coisa fixa no movimento, portanto, é a veracidade da
ocorrência. Querer ter por finalizada a história e congelado o espaço supõe
fossilizar, como forma em pensamento, o conteúdo irrefreável do concreto
espacial, substituindo o espaço-objetivo-dialético do concreto real pelo espaço-
mental-letárgico do formalismo lógico.
Jamais dogmatizado e em movimento, o avanço racional e
metódico do pensador pelas veredas da dialética materialista permite que outras
trilhas metódicas sejam avistadas. Não desprovido de criteriosidade, o adepto do
materialismo pode utilizar de teorias aprofundadas por outros métodos, sem que
por essas tenha guiada e ajustada a razão. Pode tomar as partes de que se ocupam
e que importam: suas lentes e objetos, analisando os pontos de vista sem jogar por
terra a estrutura de seu mirante interpretativo, como o que vêm ocorrendo com os
estudos marxistas no campo do feminismo, da subjetividade, cotidianidade, do
racismo e do etnicismo, cumprimentando os universos multifacéticos, sociais e
interiores, abrigados pela capa da opressividade das classes burguesas.
149
Importa rever as parcelas desses outros saberes no processo
dialético da concreção intelectiva do mundo, dando ordem ao caos da miríada de
cacos informativos.
Como “expressão suprema da razão” (LEFEBVRE, 1981, p.
229), “Esse método vem ordenar, desobstruir e organizar a consciência do
mundo e do homem” (idem, 1995, p. 44).
A relação ente-ser comparece meritória de análise, remetendo-
nos mais além das que se encerram no ente (MOREIRA, 1999).
O conhecido, semelhante, classificado e aceito abrem espaço ao
desconhecido, diferente e novo, advindo do (ou homiziado no) movimento.
Para que o pensar dialético não se emperre em (pré)conceitos
forma(ta)dos em realidades (meta)físicas singulares, convém atentar-se às
providenciais regras cartesianas que zelam cuidadosamente a precipitação e a
prevenção, evitando-se idéias preconcebidas. Cuidado demonstrado por Marx na
advertência deixada à questão das relações prática-teoria, tese-antítese-síntese,
singular-particular-universal e parte-totalidade.
O problema é que os pós-modernos extremaram o conselho
cartesiano ao aplaudir a mente vazia como fonte da ciência liberta. Afora os
fenomenólogos, que todo o temor guardam às influências tentaculares que idéias
apriorísticas possam exercer no estabelecer dos juízos; fugindo da atmosfera da
metafísica para atolar a cabeça num concreto mais empírico que real.
É como se a todo instante tivéssemos que partir do nada, do
vazio. Quando o que vale é o interesse continuado para que o saber formado não
se engesse, sem que se demande o seu imediato, geral e constante abandono.
Numa metáfora materialista, é como se ousássemos afirmar que
o cientista deve atuar como uma eterna criança: sempre curiosa e incansável por
descobrir, só que sem ter que esquecer necessariamente de tudo o já acumulado,
amadurecido e (re)formulado pela mente.
Com o intuito de elucidar as grandes leis do método dialético
aventadas, listamo-las a seguir:
150
Lei da interação universal: tudo está relacionado; advogar o contrário
implica reconhecer a realidade povoada por caos de fenômenos insulares,
descolados uns dos outros, quando formam o conjunto relacional de cadeias
conectivas determinantes e secundárias-periféricas que, avolumadas e inter-
relacionadas, contribuem na afetação do todo. Em termos geográficos, tal
idéia pode ser notada na economia-mundo atual, na rede ao qual implicações
pontuais tendem a desdobrar-se em infinidades de conseqüências na cadeia
do espaço-mundo;
Lei do movimento universal: uma vez considerados como integrados, o
método dialético ocupa-se em descobrir o movimento dos fenômenos em
suas duas dimensões: a que emana internamente a eles e a do movimento
externo que os envolve no devir universal (já que a tendência derivativa está
na relação processual dos fenômenos). Os fundamentos da generalidade do
regime do capital, donde manam os universais reguladores da sociedade e
espaço globais, interatuam com as geografias das particularidades dos povos,
culturas e lugares. Interações que tendem, virtualmente, a promover mutações
em ambos;
Lei da unidade dos contraditórios: a dialética capta a totalidade da coisa na
unidade concreta dos contraditórios, no movimento de
intercomplementaridade, ambivalência, oposição, choque e superação, vez
que o real corresponde ao movimento originado da contradição dos
elementos que interagem tensa e reciprocamente. A sociedade, como o
espaço geográfico, deve ser analisada a partir do desenvolvimento desigual e
combinado, nas relações de contradição/antagonismo oriundas dos vetores
metafísicos do sistema;
Lei da transmutação da quantidade em qualidade ou lei dos saltos: o
cumular espácio-temporal lento e gradual de modificações quantitativas
redundam, pela intensificação das contradições internas, em metamorfoses
bruscas e violentas, com características qualitativamente novas germinando
nas fases de crises. É quando os saltos de qualidade exprimem o
151
engravidamento social gerado pela união da ação com o conhecimento,
parindo o novo no instante em que a descontinuidade vence a continuidade;
Lei do desenvolvimento espiralado ou lei da superação: permite a
compreensão da evolução da natureza que avança e se complexifica pelo
salto dialético. Exemplos podem ser citados na agudização das tensões da
geografia do capitalismo que podem, avolumando-se, potencialmente
engendrar as condições da evolução à formação espacial superior da
sociedade. A lei da espiral evolutiva vale-se da eterna luta dos contrários,
mediante a negação e negação da negação, que modelam o novo espacial.
O método do materialismo histórico-geográfico não se soma a
outros, como querem os pluralistas110. Porém, percebe os fatores teóricos tratados
sob outras searas e que devem ser incluídos como categorias e discursos
interpretativos passíveis de problematização, porque por vezes o que se
entendiam, até havia pouco, como mediações acessórias na sociedade podem ser
concebidas como centrais ao discernimento das determinidades ontológicas mais
complexificadas da sociabilidade contemporânea. Inclusive porque vários
dialéticos ainda se encontram em processo de reorientação, tentando libertar-se
dos efeitos nefastos do estruturalismo antidialético stalinista que travou o
pensamento ao divulgar visão oficial e estática dum real ilusório por meio de
meras metalinguagens, contribuindo para aumentar o descaso (essencialmente
pós-moderno) para com o discurso, já que “O conhecimento tornou-se linguagem
(imagem) ou fala” (SILVA, 1993c, p. 1). Os pós-modernos talvez se mostrem
tão-só céticos ante a possibilidade do enlevar do contradiscurso; posição
minimamente cética, senão irracionalista, já que o optar pelo jogo de palavras da
linguagem, por azar no lance, pode jogar o pensador no beco escuro e silencioso
da falta de palavras, como fez Wittgenstein.
O método dialético do materialismo histórico-geográfico, como
discurso interpretativo do real, projeta-se a temáticas teoricamente pinceladas por
110 A. Correia da Silva é responsável pela junção do analítico-ontológico-fenomenológico-estrutural, considerando-o como melhor instrumental teórico.
152
outras inclinações metódicas. E problema nenhum há nisso, além de algum
relativo anacronismo criado no pensar estrutural. Não é o tema o que define a
forma do saber mas o método que utiliza temáticas afins no trajeto à verdade dos
fatos, ao interrogar o real para encontrar os elementos fundacionais e
determinantes à produção e reprodução societária, sem que se despreze a potencial
força de tendências ou aspectos latentes e manifestos no desenvolver do real
contraditório.
Para o materialismo marxiano, não é a consciência ou a idéia
que distingue os homens dos animais mas o que e como produzem as condições
materiais e imateriais da existência. A consciência é modificada quando
retracejadas as condições materiais do produzir.
A “voz da consciência”, compartimo-nos nesse ponto da
opinião de Randcliff-Brown e Leslie White111, é o reflexo das sanções sociais no
indivíduo. Torna-se a ordem dum sistema cultural.
Como noção que remonta efetivamente à segunda metade do
século XIX, o comportamento passou a ser entendido como algo extra-individual,
social. O porquê de um dos pioneiros da sociologia norte-americana, Albion W.
Small (1854-1926), ter escrito que “No início era o Grupo” (RIBEIRO, 2004a,
2005c). Rosa Luxemburgo, trazendo a discussão para o plano da materialidade
objetiva, alegava que “no início era o ato” (apud ANDERSON, 2003, p. 80)112.
Vão os espaços se fazendo na relação entre consciência e ato,
teoria e práxis, indivíduo e sociedade.
Da confusão desplanificada caminha a ciência à ordem,
deixando para trás as explicações divinais. Ordem estranhada e alienante, porém.
Quanto mais o capital se fortalece hoje, mais fragmenta os
povos, a sociedade e as classes, mais fraciona as ciências. Ante tamanha
complexificação sócio-espacial e parca capacidade transdisciplinar,
111 Ainda que haja diferenças entre esses autores a respeito de a consciência ser ou não fundante, externa e autônoma ao ser e em que medida tal se processaria, não irrelevante é que a sociologia fora inaugurada por influência da teoria comteana, mesmo que de modo organicista. 112 Anderson (op. cit.) traz excelente discussão sobre a relação dialética existente entre a materialidade estimulante às idéias e como estas, segundo vários pensadores, igualmente podem se pôr como dínamos moventes àquela.
153
metadisciplinar, se escasseiam tendencialmente a potencialidade e o interesse pelo
pensar holístico.
O espaço não é diferente. Não se safa da arquitetura do capital:
de geometria traçada para se conhecer o que percorrer para lucrar, de palco
natural e dado que se fixa determinante (passivo) ao sujeito (passivo) que nele se
acha, de espaço de natureza de leis desconhecidas e tecnicamente pouco
coordenado, o espaço tem cientificamente reconhecido hoje o conteúdo
sociodialético que o entranha historicamente de modo alienado e privado.
Se muitas faces o espaço possui, a máscara que o enfeita é a que
lhe empresta os dominantes que o ordenam e que de todo modo escondem a
logística privativa que concentra, embala, plasma, substantiva e coliga as
espacialidades diferenciais.
Veremos que no mundo coevo a maioria dos homens produz e
se reproduz sem consciência efetiva de como, por que e para quem produz:
reflexo do trabalho segmentado, atomizado e/ou polivalente, mecânico, repetitivo,
empobrecedor, desefetivante, dessocializante, mercantilizado e entremeado da
impessoalidade dum espaço sensoriamente concreto mas duma perceptividade real
fugidia. Restam cacos de interpretação hegemônica, a visão míope que não se alça
para além do imediato vivido e fragmentariamente (pré)interpretado.
A espiral que deve o espaço escalar condiz com o ir-e-vir do ser
que, para não se perder, faz de bússola o próprio real (inter)agido e (re)pensado, e
que faz do método a lanterna condutora pelo escuro ideológico.
Também condiz com o avançar sabendo-se que às vezes se deve
retroceder. O voltar-se para se revisitar o trajeto e retraçar o horizonte por meio da
relação prática(meta)teoria: teoria e empiria, micro (cotidiano) e macro-estrutura.
Imperativo entendermos a coessência do que nos é contemporâneo e coespacial,
com o devido cuidado para não cairmos no empirismo ou na metafísica idealista,
em que o ato de transcendência do indivíduo é tal que do real faz se apartar.
Os princípios são captados, afrontados e confrontados
continuamente com o real, podendo ser confirmados ou negados. Ponto da
antítese. Antítese espacial: de espacialidades hierarquizadas que se
154
intercomplementam e que se afiguram como espaços-fragmentos tão-só às
sombras da diferença isolacionalista. O espaço global é cenário crescente da
unidade transnacional, do espaço como unidade capitalística de espacialidades
diferenciais (relativamente lugarizadas, regionalizadas), homogeneizadas e/ou
concatenadas contraditoriamente no plano da economia-mundo113.
No materialismo histórico-geográfico a quantidade se faz
qualidade (e vice-versa) e o padrão global toma a autonomia relativamente
aparente do diferente lugarizado. A totalidade se faz parte e essa altera aquela ao
se refazer, afirmando-se ou negando-se. Entre forma e conteúdo está a dialética:
uma muda a outra, alterando-se na e pela relação. Espaços ou lugares formados
pelo capital podem, acaso munidos de conteúdo versátil, flexível e experimental,
trazer novidades para que este se reveja e altere seus universais; reestruturando-se.
(Foi o que ocorreu com as formas-padrões de manifestação do capital ao longo do
tempo, que focalizaremos no trato deste modo de produção adiante)
Totalidade que não é soma ou todo mas síntese de mediações
múltiplas do concreto real. Não é grandeza e medida mas relação processual e
movimento. Complexo de complexos que se arranjam, desarranjam, combinam,
complexificam espacialmente. Unidade de diversidades. Unidade tensionada.
À dialética a diferença tem a mesma importância do que se
repete. O igual e o diferente se interpenetram, interagem, interinfluenciam.
Podendo ou não se afirmar ou negar entre si. Da ordem social “estabilizada” nasce
113 Empregamos a expressão economias-mundo (weltwirtschaft) de Fernand Braudel para demonstrarmos a tendência da unidade (centralidade) imposta pelo capital a despeito da questão das fronteiras nacionais. Incrível que, se por um lado a burguesia norte-americana tenta entravar o processo de expansão do capital que não o reproduzido-ampliado-hospedado em seu país a custa de guerras e dum déficit orçamentário que não cessa em aumentar (MOREIRA, 2003), doutro lado já se verifica entre estrategistas norte-americanos prol globalização preocupações quanto à necessidade duma nova regionalização no mundo que diminua o gap da globalização (abismo entre os países mais e menos integrados economicamente), desfavorecendo consequentemente o terrorismo que o jaz, como propõe o consultor do Pentágono Thomas P. M. Barnett. Ideal que ajudaria a consolidar uma unidade não apenas pela expressão do mercado composto por nações vizinhas (nos moldes da União Européia) mas por países que ofereçam oportunidades, especialmente, ao fortalecimento da economia norte-americana (como o México e países do Oriente Médio: um por conta da participação crescente que terá naquela economia, os outros pelos recursos naturais que dispõem). Talvez, estejamos diante da possibilidade de concretização duma nova noção jurídica de nação (dividida, obviamente) ou o revigorar do imperialismo, com recolonização político-econômica (EXPEDITO FILHO, 2004).
155
o múltiplo “desordenador” parido de processos contraditórios que carrega no
ventre, qual big-bang social que se intensifica concomitantemente ao reordenar do
espaço-prisão capitalista.
O método do materialismo histórico-geográfico permite
apreender a desordem produzida pela Ordem. Auxilia no trilhar do caos
perceptivo à totalidade dialética do meio social produzido pelos homens
alienados, descortinando a ordem da dialética social: a lógica teleológico-prático-
destrutiva da relação-capital; lógica social que – se julgada existente – os pós-
modernos e os adeptos do pontilhado vêem como casual e não-causativa, porque
ao invés de tomar o caso como prenhe de dúvida momentânea optam de forma
derradeira pelo descrédito na possibilidade de obtenção de respostas114.
Não se nega que entre o produto da tese, abortada do ventre da
outra (anti)tese, vivencia-se um período de dúvidas. O problema é quando se quer
fazer do passageiro a cultura permanente. Por isso a dialética reclama trafegar pela
realidade relacional do micro com o macro, não desprestigiando o meso: o
singular-local, particular-regional e universal-global.
Não se desmerece a causalidade, como fazem os prosélitos do
irracionalismo, porque “Sem causas e sem causalidade, não há ciência”, como
alegou um pensador francês contemporâneo. Não melhorada é a “ciência” dos
pós-modernos, mais achegada à literatura.
Longe dos desconstrucionistas rasgadores de teorias, distante de
irracionalistas e a léguas dos que remendam caoticamente os farrapos teóricos
encontrados pelo caminho, está o materialismo histórico-geográfico. Para estes o
local, o regional, nacional, internacional e transnacional são o mesmo e o
diferente, padrões e contra-arrestações, forças de homogeneização e tensões por 114 Marx enfrentou, a partir de 1847, líderes de movimentos e agremiações políticas socialistas e comunistas utópicas – como a de Weitling – que se mostravam avessos aos “princípios abstratos” e aos “sábios”. Um dos mais significativos resultados foi a redação de Engels do Manifesto do Partido Comunista em 1848, que fora retrabalhada por Marx e enviada ao Comitê Central com o objetivo de diluir tanto as posturas “obreiristas” como a dos “alquimistas da revolução”, das sociedades secretas, como Willich e Gottschalk: os partidários da “desordem mental” e da coragem e obstinação prática para a tomada do poder da burguesia, crendo que a revolução dependeria mais da vontade que das condições materiais. Não fosse a coragem e o objetivo ideológico classista de esquerda (na verdade “esquerdismo”), assemelhar-se-iam aos desconstrucionistas, irracionalistas e pós-modernos.
156
dissensões, formas e reformas, forças de estabilidade e de ruptura, diacronia e
simultaneidade, unidade do diverso e dos contrários, unidade tensa e em
movimento, movimento horizontal e vertical.
São extensificados espacialmente os fenômenos gerais do ser
capitalista pela força centrífuga do capital, mantendo-se não obstante ordenados
por sua centrípeta organicidade imperialista, que longe se estende, tocando os
mundos do trabalho e do não-trabalho, a materialidade e a espiritualidade,
espacialidades outrora primitivas e alhures isoladas.
Não há como a dialética material da espacialidade histórica
igualar-se à ordem hierárquico-estrutural-cartesiana na análise dos fatos têmporo-
espaciais sem que se altere o resultado do “produto”.
O estudo geográfico do espaço, desse campo de forças
associadas e conflitantes, deixa às claras a dialética do movimento do real. Nessa
dialética inter-reativa, de interpenetração e interdeterminação dos fenômenos que
tão-só à mente afiguram-se analiticamente apartados, o próprio evento social já é
espaço, ao passo em que o é tempo e relações sociais a se convergirem e
dissentirem simultaneamente.
Mais que organismo uno de órgãos com funcionalidades
positivas e ao contrário também de simples máquina a precisar de reparo (com
peças e funções novas sendo inventadas para descartar as obsoletas), a sociedade é
síntese contraditória que se reproduz perpetuando sua própria negação uterina.
As perturbações têm berço original no mundo do trabalho, em
que pese as irradiações multicoloridas para dimensões outras do real.
Do extenso curso metafísico-idealista a dialética enfim se
temporaliza e se espacializa ao admitir sua mundanalidade.
O método dispõe-se a averiguar a ontologia do ser mediante o
processo constitucional de sua concretude histórico-geográfica.
O método do materialismo histórico-geográfico deve atinar à
geografia das formas espaciais de reprodução da existência humana no tempo,
pois todas as sociedades deixam suas pegadas no espaço. Atualmente ambiciona
decifrar a totalidade dialética das relações sociais planetarizadas como unidade de
157
tensões: o espaço-mundo (des)arranjado pelo capital no transcurso conflitante com
outras sociedades e espaços tocados e atassalhados pela lógica hegemônica de
realização ampliada do valor; desvelando-se os espaços da globalização criados
pela sangria da mais-valia global.
É o que haveremos de investigar nas que sucedem. Haveremos
de ler a realidade das formas de reprodução existencial a partir da sucessão,
interposição e confrontação de lógicas espaciais distintas, esquadrinhando arranjos
territoriais díspares que se combinaram e se acotovelavam disputando forças e
energias ao longo do tempo, numa espiral social evolucional/regressiva cujo
processo nada tem ontologicamente de retilíneo, cíclico e ininteligível.
O timão a essa viagem tem por tripulante principal a lógica
materialista que, por método dialético de bússola, navegará nas turvas ondas da
história humana em que trafegaram e naufragaram povos e sociedades, reparando
nas formas concretas de como trabalhavam e por qual conteúdo se valiam para
reproduzirem-se como identidade social porque, apenas por esse modo, o espaço
que ganhou vida nas mãos do homem metamorfoseado do primata, e que deu alma
social ao ambiente caótico, poderá retornar ao escol concreto do Ser consciente de
o fazer, viver, pensar.
Teoria e práxis se reunirão onde jamais deveriam ter-se
apartado: na concretude real do espaço-tempo.
– CAPÍTULO 2 –
DA NATUREZA ESPACIAL
DO TRABALHO CONCRETO DE
SOCIEDADES PRÉ-CAPITALISTAS
À NATUREZA ESPACIAL DO TRABALHO
ABSTRATO DE SOCIEDADES
CAPITALISTA E
PÓS-CAPITALISTA
159
2.1.1 A plenitude do espaço como
organização temporal das formas de
reprodução do ser social a partir do
trabalho
s homens organizaram o meio ao longo do tempo para que
material e espiritualmente pudessem se reproduzir; a
transformação do caos em espaço cosmizado econômico-
culturalmente foi a mediação.
OO espaço é componente social das mais importantes dimensões e
é por isso que espaços naturais, de povos primitivos, guardam formas de
geografias; qualidade já superior à da condição de prótese do social.
O entorno destarte se transubstancia em expressão corpórea da
sociabilidade constituída pela extensão dos mecanismos estruturais em que se
materializa a relação homem-natureza pelo trabalho. O espaço está no entorno
mas a ele não se limita, concernindo sobremaneira ao conteúdo estruturante da
sociedade (relações político-jurídicas e ideológico-culturais) que à forma
estruturada da paisagem (epidérmica e sensoriamente percebida).
É dimensão social e não só palco, instância, rugosidade, forma e
produto. Estrutura imaterial e invisível, totalidade processual construída e
interagida dialeticamente pela sociedade em seu relacionar-se com o mundo ao
(re)produzir territorialidades/desterritorialidades, arranjos/desarranjos/rearranjos a
partir daquilo que o ser (capitalizado) quer unificar, manter conexão e ignorar,
fragmentar e isolar: o espaço condiz com aquilo que se quer evidenciar como o
melhor do cosmos (justo, bom, democrático, etc.) e aquilo que se rechaça como
caos (terrorismo, antidemocrático, ditatorial, etc.).
Diversamente das sociedades pré-capitalistas em que a produção
material reconhecia-se com a distribuição à reprodução do grupo, impedindo que
160
o valor econômico-político-cultural rachasse os valores de unidade e
reciprocidade solidária, o regime do capital valoriza agora tudo o que o possibilita
reproduzir ampliadamente o valor econômico fetichizado e alienado do ser.
Jamais podem ser ilhados ser-estar-pensar. Todo ser é
geográfico: a sociedade não pode ser abstraída de sua geograficidade. Todo estar é
tópico: a seletividade da singularidade-particularidade redefine o cosmopolitismo
e a globalização. Todo pensar é espacial: a abstração e a metafísica introrsa
conectam-se dialeticamente com a concretude da realidade extrorsa.
Sociedade e espaço, nos níveis concreto e pensado, estão
firmemente entrelaçados.
Em determinada ocasião, Santos (1997, p. 96) relatou que “Se o
ser é a existência em potência, segundo Sartre, e a existência é o ser em ato, a
sociedade seria assim o Ser e o espaço a existência”. Fato é que o espaço é
produto/produtor, reflexo/refletor dialético de ações para com o mundo e à
sociedade classista, por isso é mais que passivo e receptáculo, antes se referindo à
essencialidade contraditória das práticas sociais que apenas à empiricidade
paisagística aparente e letárgica (MOREIRA, 1988b; RIBAS et al., 1999;
RIBEIRO, 2001b, 2004b; OLIVA, 2001). O espaço sintetiza tanto a empicidade
como a incorporeidade da dinâmica social a lhe embalar (SANTOS, 1997).
Como corpo do tempo, ratifica as formas espaciais que as
sociedades implantaram em seu arranjar-se com o meio, no dilatar e relacionar-se
histórico dos homens entre si e com o ambiente construído (MOREIRA, 1996).
Em razão das acoplagens havidas entre trabalho e espaço,
Moreira (1988b, p. 85 e 86) afirma ser o espaço a expressão formal do conteúdo
processual do trabalho social:
Espaço e trabalho estão numa relação de aparência e essência: o espaço geográfico é a aparência de que o processo historicamente concreto do trabalho (a relação homem-meio concreta) é a essência (...) O espaço geográfico é a materialidade do processo do trabalho. É a “relação homem-meio” na sua expressão historicamente concreta.
161
Por não haver forma sem relação com conteúdo, o espaço pode
ser percebido como a estrutura invisível da sociedade (idem, 2002c). Como a
dimensão socialmente criada, não obstante de maneira alienada.
Em caso de mais generalizante a visão, com uma teoria da
relatividade social mais holística, a tridimensionalidade dialética do espaço
intercalada com o tempo e a quinta dimensão do cotidiano, se transforma numa
pentadimensionalidade de cuja complexidade muito há por explorar.
E se o espaço é produto do trabalho dividido, este também é
condicionado por aquele. Ao passo que o espaço geográfico coloca-se como a
materialidade do processo de trabalho organizado (inclusivamente para além do
mundo do trabalho), o trabalho põe-se como a objetividade processual do agir
acondicionado pelo espaço do capital.
Se “O movimento é o modo de existência da matéria”
(LEFEBVRE, 1995, p. 185) e se a natureza do espaço identifica-se com a
“dimensão em que o movimento assume formas” a partir do trabalho que, como
natureza em movimento, age na natureza envolvente por meio de seu caráter
social dividido e pelo movimento da técnica (D. SANTOS cit. in. RIBAS et al.,
1999, p. 121), o espaço só pode então ser compreendido como “aquilo que a
prática humana dele faz” (HARVEY apud SILVA, 1997).
Ao deixarmos para trás teorias e métodos (positivistas,
evolucionistas, etc.) que vêem o espaço como palco e geometria, segunda natureza
ou natureza produzida “coletiva” e “harmonicamente” pelos homens por sobre a
natureza dada primeiramente (primeira natureza), abandonamos a um só tempo a
idéia que o tem por instância em que se enverga a flecha do tempo, palco em que
se sucederiam episódios. O espaço é o próprio tempo, não é apenas sucessão mas
a própria relação (causal/casual/dialética) dos eventos. É impossível evento social
sem espaço e história sem evento (SOJA, 1993); espaço e tempo são dimensões
gêmeas (SZAMOSI, 1988). Como os próprios eventos singulares, o espaço é o
arranjo que estes tomam na dimensão concreta da relação do homem com a
natureza-mãe ou natureza-totalidade envolvente.
162
Por isso ele deve ser compreendido geográfico-concretamente,
sendo ressignificado, reconceituado.
Vale lembrar que o mesmo deve ser feito sobre o conceito de
trabalho, dada à relação parental ineliminável existente entre ambos; o que
implica assegurar que o estancamento teórico de um interfere no desfecho da
leitura da totalidade geográfica.
Como vimos observando, o trabalho (a) não é o processo que
quer com o Espírito se reencontrar (teoria hegeliana), (b) não é mero princípio
legitimador da propriedade privada (teoria lockeana), (c) não é simples elemento
de crítica verbal e “despraxizada” (teoria do socialismo utópico), (d) nem
atividade dividida à geração da riqueza de nações (teoria smithiana), (e) não se
confunde com emprego ou com fator de produção a necessitar de reparo no
capitalismo por intermédio de reestruturação produtiva (teoria da economia
política burguesa); o trabalho (f) é o processo-elemento estruturante da sociedade,
fazedor da história, balizador do espaço e, porque essencial à sociedade, objeto de
desalienação e humanização pela revolução social (teoria marxiana).
Distinguindo-se dos animais, o homem que trabalha sabe que o
faz. Produz o que necessita e é capaz de fazê-lo para que os demais animais
tenham proveito, se assim o desejar. Produz além disso, aquilo que simplesmente
lhe agrada, com o anelo de deleitar-se com o prazer que a obra há de lhe reservar.
Antecipa na mente o fato, seu fim: preconcebendo o trabalho, teleogizando-o. E
no caso de aprazer-lhe, faze-o com a excepcionalidade de seguir o critério do belo,
a arte da estética.
A história do trabalho, a sucessão das formas espaço-temporais
precipitadas à reprodução da vida e manifestas no esforço homem-natureza,
explana as particularidades das funções históricas das formas e das atividades
geográficas de reprodução da existência humana no decorrer do tempo, no
transcursar dos espaços. Que se entenda a sucessão de modos de produção, porém,
não como o transpassar duma evolução cronológica mas muito mais próxima da
concepção marxiana que a tem como sucessão em um sentido mais geral, operada
163
igualmente por rupturas (como as que se viu com os sistemas escravista e oriental,
a guisa de exemplo).
Importante dizê-lo, entretanto, que o trabalho se instala como
processo fundante da sociabilidade, como protoforma do ser social e não como
extensão a tudo determinante: no complexificar do ser social ganham corpo
feições distanciadas e prolongadas de realização no âmbito da reprodução social.
A gênese ontológica da liberdade, para Lukács, “se origina a
partir da esfera do trabalho”. Através dele processar-se-á o momento catártico
denominado por Gramsci, o findar dum bloco histórico e o iniciar doutro, no qual
o reino da liberdade tomará o lugar do reino da necessidade para que se alcance
outro bloco histórico. A refundação da substância do trabalho é plataforma
genética à transformação das contra-espacialidades e heterotopias alternativas em
um novo bloco geográfico.
Ainda que a origem ontológica da liberdade ao trabalho não se
limite e tampouco seja fator inicial e exclusivo de reconhecimento da negatividade
da sociabilidade do capital, por sê-lo elemento estrutural-fundante do ser, cremos
que outra sociabilidade para efetivar-se materialmente requererá minimamente ter
por fundamento um novo trabalho, concreto, desfetichizado e emancipado. A
história ou espaço ordenado stalinisticamente pelo trabalho dividido, estranhado,
alienado e produtivista, serve de lição.
O trabalho é a essência ativa do homem real, processo fundante
do universo espacial e balizador do ponto do salto do animal em homem e das
sociedades antropóides em sociedades humanas, do caos e des-ordem físico-
material da dialética natural (determinidade e legalidade da natureza, considerada
caótica porque desconhecida) em energia teleológico-social com dialética de
cunho social a conferir ordenança ao meio a partir da (tão temida por positivistas,
idealistas e escolásticos) prática concreta.
O trabalho está na origem da alienação do homem em relação à
natureza. Ontologicamente nada tem que ver com o processo de alienação na
sociedade civilizada/burguesa. A alienação antropológica do trabalho na relação
homem-natureza discrepa-se de qualquer fulcro ineliminável de alienação
164
ontológica do trabalho na relação homem-sociedade, como mostrou-nos Marx
(1964) e alguns de seus seguidores, como G. Markus (Marxism and antropology
cit. por KRADER, ob. cit., p. 264, nota de rodapé nº 2)116.
O trabalho é o processo da natureza que se autodetermina
motivando pari passu a natureza exterior (orgânica e inorgânica), sendo
contraditória e intensamente influenciado por ela. A energia natural não mais flui
essencialmente desgovernada, canalizando-se objetivamente pela
autodeterminação têmporo-espacial da natureza que se torna humano-social. Isso
porque, da cotidiana relação homem-natureza, processada pelo trabalho, no
produzir-se e reproduzir-se biológica e socialmente (respirar, alimentar, amar e
proteger-se) é que evoluiu o homem em passos lentos à generalidade.
O big-bang do universo social tem gradativamente organizada a
energia que mana, como trabalho da potência do humano controlando e
canalizando os outros fenômenos energéticos existentes. De certa forma, o plano
de evolução humana marcha de par com o domínio cumprido sobre as outras
formas de energia, em combinação com o medrar dos equipamentos técnicos.
Podendo-se dizer que o estado da graduação da evolução tecnológica da sociedade
amarra-se ao quantum do fator-energia usado para acionar a parafernália técnica,
determinando igualmente o complexo de idéias e representações (reais ou
invertidas) que estimula/interfere a direção e no movimento da materialidade
geográfica, como dimensão “superestrutural” criada.
Nas fases iniciais da evolução humana foi a energia solar, a ser
descoberta pela domesticação de animais e de plantas (tração animal, alimentação
e vestuário), juntamente com o principesco conhecimento da energia imanente aos
fenômenos naturais e atmosféricos (chuva, água e fogo)117, que deram um salto
qualitativo no manejo ambiental e em seus elementos, contenção do dispêndio de
energia humana gasta (e o conseqüente ganho com o tempo de não-trabalho) e
116 Esses autores, no rastro do enunciado marxiano, se posicionariam avessos à sacralização da premissa burguesa de naturalização (desistoricização-desespacialização) do fenômeno alienação. 117 Sabemos que posteriormente ao manejo da energia solar, vieram o carvão e o petróleo a ocuparem o posto de propulsores do movimento das forças materiais produtivas e do deslocamento dos fluxos. Em seguida, a energia nuclear. Agora, a biomassa (biodiesel em destaque), fonte de energia renovável impulsionada pela biotecnologia; entre outras em pesquisa.
165
aceleração da dinâmica de desempenho das forças produtivas, com maiores
resultados materiais impetrados.
A riqueza é urdida nessa relação homem-natureza, entre a
Natureza Social e a Natureza Primária. Noutros termos, entre a história que o
homem faz (Segunda Natureza) e a que independe da prática e ciência humanas
(Primeira Natureza).
Para reproduzir-se o homem trabalha. A qualidade e o patamar
histórico da existência material vinculam-se à gradação da produtividade obtida,
das matrizes técnica, energética e laborativa inventadas, da repartição da riqueza
concebida, do ambiente conhecido e regulado. Enfim, das formas desenvolvidas
pela organização econômica interna dos membros da sociedade com o espaço em
que vivem, já que, registrou Marx (1999), “A estrutura econômica da sociedade é
formada pela totalidade dessas relações de produção”118.
Pobreza e riqueza são fenômenos concretos entrançados à
estrutura organizativa da sociedade, atados à capacidade de produção-distribuição
do produto do trabalho materializado ou não em objetos, e não forma abstrata no
universo descolado da idéia. Daí que a forma em que se estrutura a sociedade,
seja-a primitiva ou civilizada, deve ser vista em seu contexto e sem que haja
embaralhamento de contextos (não se pode entender a sociedade primitiva a partir
da ótica da sociedade de classes e de sua respectiva teia de valores).
Um tipo de cuidado como esse pode servir-nos diante de
concepções teóricas que asseguram que a pobreza e a fome no paleolítico, por
exemplo, se fizeram originadas da obsolescência das técnicas e da envergadura
limitada da capacidade de fabricação, como do desconhecimento da natureza
exterior, colocando-se em vista disso como o elo comunal primitivo básico à
cooperação, solidariedade e irmandade concreta, a ponto inclusive de hoje estar-se
a gerar nostalgia para com aquelas comunidades de bens da Idade do Ouro.
Quando o que ocorre é que, noutro plano argumentativo, em muitas sociedades
sem classes a não-geração do sobreproduto fora opção e não obra de inépcia, por
118 Compreendemos a estrutura a partir da ótica demonstrada pela geógrafa Lenyra Rique da Silva (1991): como o elemento interno e invisível da sociedade.
166
inexistir incitamento ao sobretrabalho, à obrigatoriedade (MANDEL, p. 15-16,
58-59, 244-245; SROUR, 1978, p. 313 et seq.) e tampouco estado famígero ou de
miserabilidade, como afiançam ideólogos burgueses, marxistas vulgares ou certos
descuidados.
Para alguns a união e a solidariedade primitivas são produtos
originários da pobreza e rusticidade do ato de trabalho. Outros a viram como
opções conscientes de um modo de vida estruturado por ações individuais
harmoniosas e relações sociais solidárias (inclusive na divisão do produzido).
Posicionamo-nos entre os da segunda vertente, embora nem ela
talvez deva ser generalizada a todos os laços sociais existidos.
Mas talvez o que menos se discuta seja a novidade enxertada
com o progresso das técnicas materiais e do conhecimento das leis da natureza.
Não porém por haver determinismo duma pseudo-Natureza Humana, imutável e
individualista, a se desvendar tão logo a coesão ponha-se afrouxada e a distinção
individual elevada pelo maior desenvolvimento técnico, porque os rumos da
civilização aclaram um dos muitos comportamentos possíveis no des-envolver
organizacional do ser, em seu saltar geográfico à frente.
Como Marx, dissentimos do ideário cultuado por T. Carlyle, a
ver no indivíduo o motor da história119. Emprestando-a indevidamente de Daniel
Defoe, a fabula da personagem Crusoé serve-lhe de inspiração; como também à
cegueira de Ricardo para com o homem primitivo caçador, enxergado como que
119 Evocamos nesse instante a dúplice dimensão que possui o indivíduo humano: a de ser a um só tempo abstrato e concreto. O caráter abstrato está no pertencer à espécie humana e à história natural do homo sapiens, enquanto história biológica do homem. Já a característica da concretude repousa na totalidade da história do gênero humano em toda a sua multiplicidade. A força da história resulta da combinação e cooperação espacial dos indivíduos em sociedade e não da soma dos indivíduos isolados. O indivíduo abstrato não tem história. O indivíduo concreto é o alicerce às forças produtivas, para a consciência e à realidade social. Em que pese o indivíduo ser “o conjunto das relações sociais” (MARX; ENGELS, 1996) e não expressão singular de uma essência humana abstrata, a sociedade exprime o conjunto ou o complexo das relações assimétricas entre indivíduo e sociedade na trama de relações indiretas e abstratas entre indivíduos, por não ser a relação entre indivíduo e sociedade uma simétrica via de mão dupla. Pensar o contrário seria querer substituir a ontologia social por uma ontologia individual, reduzindo problemas e questões que são sociais ao âmbito do indivíduo e da consciência em-si. Apoiando-se estaria um atomismo individualista bastante em voga no século XVII, reforçado que fora pelos ideólogos burgueses dos séculos XVIII e XIX. Mas desde a Antiguidade Epíteto e Aristóteles profetizavam o contrário: o último dizendo que o indivíduo fora da sociedade ou é divindade ou animal e, em ambos os casos, algo inumano (legado oponente aos ensinamentos de Sócrates).
167
despojado de vida social. Figuram esses entre os pensadores que só vieram a
eleger argumentos idealistas, camuflados como materialistas, no lugar donde antes
se alocava a Idéia metafísica de Hegel, de ser Deus o movedor da história.
O modo como a sociedade trabalha, se aparelha e se reproduz
prospera no manejar-conhecer e conhecer-manejar do espaço e dos elementos
físicos, naturais e sociais. O trabalho e a propriedade comum tendem à vida social
coletiva e à manutenção da condição comunal de se trabalhar todos e melhor para
menos se empenhar.
O tempo de trabalho finaliza-se na consecução da reprodução da
existência para a manutenção da geografia do tempo do não-trabalho, onde as
dimensões artísticas, religiosas e humanas potencial ou vigorosamente despertam.
Quando vêm à tona classes antagônicas, o trabalho, elo
fundante-estrutural da totalidade da práxis social, faz-se socialmente dividido. A
divisão do trabalho gera a rede combinada de elementos igualmente divididos e a
profundidade e abrangência desse desenvolvimento se expressa geograficamente
de modo diversificado pelos quadrantes do globo.
Veremos adiante essas características de maneira mais
detalhada. A conveniência da antecipação lia-se à condição histórico-geográfica
geratriz da “civilização”, da “história social” e do “espaço social”, sobre a
ribalta do “trabalho social”.
Reforcemos, contudo, que houve sobreposições, sucessões,
interposições e multivariações das formas de organização espacial ao longo do
tempo, inexistindo evolução mecânica. Outro não foi o motivo para que a situação
permanecesse a mesma em muitos cantos e para muitas sociedades, com a
manutenção da relativa diferenciação não-antagônica dos integrantes da
comunidade se reproduzindo. Não houve demolição universal, continuada e
irrefreável nesse processo; aspecto mais que suficiente para a perpetração da
cultura comunalista primitiva, quer na esfera da produção ou da gerência, efetuada
pelas assembléias coletivas gerenciadas pelos mais antigos e hábeis personagens.
Com a finalidade de mencionar a sucessão temporal não-linear a
partir das sociedades de classes – já que muitas se entrecruzaram no tempo ao
168
passo que outras “antigas” chegaram a épocas mais recentes –, evidenciamos o
fato que existiram sociedades sem classes e sem Estado (caso dos Guarani,
Nhandevá e Kaiowá) e muitas outras do Brasil pré-colonial e contemporâneo. Os
teóricos de linhagem hegeliana ou os antropólogos estruturalistas, portadores de
visões eurocêntricas e metafísico-idealistas, é que primam esses predicados como
certificadores da maturidade e desenvolvimento da humanidade; com os que a eles
se isentam sendo taxados de serem sociedades sem-Estado, sem-escrita, sem-lei,
sem-rei, sem-moeda, sem-comércio, sem-alma... sem-humanidade, até.
Não obstante que a raiz da sociedade civilizada, das classes e do
Estado se concerte com o fim da comunidade de bens (sociedades regidas pelos
princípios coletivos da “vida arcaica” das gens, clãs, grupos consangüíneos,
linhagens ou comunidades aldeãs primitivas), deve-se ter claro que o retraimento,
isolamento geográfico e a heterogeneidade das formas de reprodução e
desenvolvimento das forças produtivas entre os diversos povos do mundo
propiciaram a perpetração da reprodução de formas coletivistas descontínuas
noutras porções do globo. Isso permite assegurar que o desaguar da evolução
diversificada da história dos modos de produção não são lineares e universais
(como sopesara o próprio Marx120), não suprimindo totalmente histórias
características que quase até recentemente galgaram o presente. Devendo sê-los
concebidos como processos históricos concretos gerais e não universais; a própria
concepção calculista do trabalho como produtor de valor, ou do tempo de trabalho
socialmente necessário ao fabrico das mercadorias, atesta a concreticidade
histórica e espacial específica a alguns povos e regiões do globo, e não a todos,
pondo-se o valor como atributo da sociedade civilizada mercantil burguesa.
120 Marx, sob certos aspectos, deixa transparecer a teoria da sucessão linear dos modos de produção, seguindo um grau sempre superior e mais desenvolvido do estágio subseqüente em relação ao anterior, por ater-se à materialidade do desenvolvimento social: eis por que de ter considerado a Índia uma civilização com desenvolvimento social e comercial inferior ao inglês de seu tempo, ainda que fosse superior aos dos árabes e turcos. Talvez tenha isso a ver com a influência indireta da tipologia classificatória hegeliana aos povos americanos conforme as técnicas de que dispunham. É Descola (1999, p. 112 et seq.; RIBEIRO, 2004, p. 21, nota de rodapé nº 24) que nos mostra a comparação feita por Hegel – e naqueles inspirados nele – entre os povos europeus e os povos da floresta da América, que Hegel enxergava como “crianças desprovidas de qualquer intenção superior”, a habitar regiões com debilidades físicas e faunísticas, como povos de imaturidade psicológica, política, moral, de inferioridade técnica e humana.
169
Observemos o caráter do trabalho e das forças produtivas que
subsidiam os espaços nos múltiplos estágios dos modos de produção classistas as
quais pertenceram ao longo dos séculos, por serem eles módulos de espaço-
tempo, as molas a projetar para frente o corpo social; e longe de uma teoria geral,
ideal e acabada, mais próximo dos pródromos duma concepção geográfica
marxista dos períodos de inércias, retrocessos, arranques e avanços demonstrados
pelas sociedades que iam arrumando e desarrumando espacialidades a partir das
forças produtivas e das relações de produção experienciadas.
Faremos isto por entendermos, bem ao contrário do que cria o
Florestan (SOARES, 1997), que o método do materialismo histórico-dialético
pode sim contribuir para o entendimento de sociedades e de períodos históricos
passados, com aceite daqueles indígenas, que indispunham das contradições
encontradiças em sociedades como a nossa, divididas e hierarquizadas por classes
sociais, organizando-se sob formas coletivistas. Cria esse sociólogo ser melhor o
método funcionalista para esse feito, uma vez que a seu ver sociedades
desprovidas de contradição como essas não poderiam ser estudadas pela ótica da
dialética materialista. Dele discordamos, realçando a potencialidade de talvez sê-
lo o mais acertado método, já que se dispõe a analisar a sociedade em sua
concreticidade histórica, em seus múltiplos processos e movimentos, a partir de
um olhar por sobre as formas espaciais, para entranharmos na essência do ser que
se concretiza como estar geográfico localizado e regulado meticulosamente,
racionalmente pela rede de valores, normas e regras dominantes.
Lukács também assegurava que se o materialismo histórico for
considerado como método científico poderá ser aplicado a épocas anteriores ao
capitalismo, apesar de reconhecer franca dificuldade metodológica no marxismo
para discernir as chamadas sociedades primitivas das sociedades de classes.
A possibilidade ou inviabilidade de estudos das diferenças
estruturais entre ambas seria menos incapacidade do materialismo histórico-
geográfico de se enveredar pela antropologia de outrora (ou pela geografia de
alhures), do que ardil ideológico de antropólogos ingleses e norte-americanos
sobretudo, que tentam circunscrever a temática sob o guarda-chuva de sua ciência,
170
alegando que a dialética materialista nada tem a oferecer à perquirição das
relações de reciprocidade que espelham as relações de parentescos edificantes das
formações sociais primitivas.
A gosto de alguns, contragosto doutros, o cientista não precisa
pedir licença pra ousar, pensar, refletir.
O marxismo segue rompendo portas e arrebatando novos
campos.
Eis o porquê de, além do declarado apoio do Althusser em
Materialismo histórico y materialismo dialético, ser de igual modo da
consideração do antropólogo marxista Emmanuel Terray (cit. por SROUR, 1978,
p. 53, nota de rodapé no 23, parênteses nossos) que:
A tarefa atual dos investigadores marxistas consiste em expulsar essa ideologia de seu último refúgio, consiste em anexar o domínio reservado da antropologia social ao campo de aplicação do materialismo histórico, consiste em provar a universalidade dos conceitos e métodos elaborados por este, consiste em substituir a antropologia social por um setor particular do materialismo histórico dedicado às formações econômico-sociais nas quais está ausente o modo de produção capitalista, setor este no qual colaborariam historiadores e etnólogos (como geógrafos e outros cientistas sociais).
Como sinalizou Srour, apesar dos empecilhos, houve “respostas
aproximativas”, inda que sob o aspecto de “formas descritivas” para caracterizar
as “formações sociais periféricas”, incluindo-se a brasileira, como a do “tipo país
semicolonial, país semifeudal, capitalismo de Estado, pré-capitalismo, formações
mistas, modo de produção colonial, etc.” (op. cit., p. 24-26).
O leque de questionamento se abre diante da vastidão da
problemática.
Como anteriormente punha-mos a questionar: teria havido
feudalismo no Brasil, na forma de uma “antecipação capitalista” em relação ao
continente europeu? Quando e sob quais nuances se processou a revolução
burguesa no Brasil? Sob quais aspectos se deu a subordinação da burguesia
interna com o momento externo do capitalismo (mercantil e industrial,
concorrencial e monopolista)? Houve revolução de modos de produção ou desde o
171
início do “achamento” foi o Brasil arrumado, diferencialmente, por dentro dos
marcos do (e como) regime capitalista, com somente paradigmas produtivos se
sucedendo quase sempre tardiamente em relação aos países centrais do sistema?
Neste caso, não havendo revoluções na formação social, teria havido unicamente
revolução política? O desenvolvimento desigual e combinado se dava entre modos
de produção ou dentro já dum modo de produção?
Do presente, por nós averiguado metodicamente e revelado
neste estudo, exporemos a lógica que presidiu o processo desde outrora. Como
recurso metodológico expositivo isto faremos e não por qualquer outro motivo,
posto que, já fizemos saber o enunciado marxiano, nesta atual forma superior é
que devem ser desveladas as precedentes, e é por isso que haveremos de fazer
uma exposição relativamente evolutiva dos modos de produção, em que pese não
haver linearidade e homogeneidade em seu manifestar mas variegados encontros e
desencontros têmporo-espaciais.
Existiram formas históricas e determinadas de desenvolvimento
avocadas pelas sociedades, que ao se organizarem definiam o norte que possuiria
o trabalho. Ao mesmo tempo em que a ordenação do trabalho, segundo o modo de
produção reinante, redefinia dialeticamente a estrutura organizativa da sociedade,
ou seja, a forma pela qual os indivíduos em combinação (cooperação)
transformaria os materiais naturais pela aplicação direta da atividade laborativa,
alterando-os no interior do processo de produção.
Baliza o espaço essa dialética de relações entre forças espaciais
produtivas e relações sociais de produção. Pela peculiaridade do grau de
intersecção existente entre os diversos padrões de biodiversidade e
sociodiversidade, de certo modo o espaço determina o nível de desenvolvimento
dos mecanismos de reprodução da existência pela territorialização individualizada
dos vetores sociais gerais. As relações sociais são desigual e combinadamente
geo-grafadas, marcadas vertical e horizontalmente, com o conteúdo
hegemonizado paralelamente sofrendo os (des)ajustes aflorados nos lugares.
A história natural, como história de reprodução biológica
(procriação) dos homens, diferencia-se da história social fundada no trabalho.
172
Embora cada vez mais o regime do capital esteja lucrando com a produção
biológica de espécimes vegetais, animais... humanas.
Até então essa divisão era mais rígida.
A história natural fora objeto de Darwin, que pesquisou a
tecnologia natural dos homens: o armazenamento, acumulação e transmissão dos
caracteres hereditários pela seleção natural das espécies. Marx ocupou-se da
história social da acumulação, armazenagem e transmissão da tecnologia social,
ou das habilidades dos trabalhadores ampliadas ao longo do tempo.
Hoje, aceleradamente, o labor (laboratório) científico cruza
essas tecnologias tornando dificultosa sua diferenciação por conta da natureza
social do trabalho guiado pelo valor econômico que, em seu favor, suscita
intensos debates éticos e religiosos, como que querendo reestruturar a
superestrutura societária na esfera dos valores morais.
Nesse longo percurso que deságua no presente, bem lá no
princípio notaremos que o espaço não era inativo a esse processo. De natural base
física a prover a vida antropóide que caça, coleta, abriga-se e acolhe os filhos
gerados, transmuta-se pelo trabalho em mundo ordenado, conhecido, marcado,
localizado, diferenciado, pré-planejado e coletivamente refeito, com o
conhecimento gradual e muitas vezes inconsciente (mistificado) de suas leis tendo
contribuído à invenção crescente de objetos materiais pelas mãos dos integrantes
das sociedades primatas.
O neolítico foi o primeiro marco bifurcador da organicidade dos
(des)arranjos. Nele, segundo Gerd Bornheim (1998, p. 21-22), deram-se os
estabelecimentos dos hábitos sedentários nas emergentes povoações, com o trabalho transformador da natureza, com a divisão do trabalho e, expressando isso tudo, com a intervenção da doutrina dos dois mundos, o dos homens e o dos deuses, que consolidaria as bases remotas de toda a questão dos universais.
Formas de trabalhar, co-operar, interagir (entre si e com o meio),
enxergar, refletir e ordenar ambiental e subjetivamente o vivido, fundamentam o
173
que vêem, imaginam e fantasiam sobre a origem e o fim que tudo cerca e
entranha.
Demonstrou Marx a análise da história humana estar a
compreender quatro dimensões, quais sejam:
Relação do homem com a natureza;
Processo de produção direta da vida humana;
Relações sociais da vida humana;
Representações mentais ou espirituais decorrentes das anteriores.
Ocupemo-nos nesse momento da história social identificada
com o trabalho: o big-bang instituidor de espacialidades, irromper energético
manejador e instituidor de técnicas e objetos técnicos, quando de seu ser genérico,
estado característico do animal social ou animal de rebanho, o trabalho passa a se
debruçar e se prender em formas de propriedade que, desenvolvendo-se, vão
refletindo o grau de individualização que o homem sofreu em seu processo de
desenvolvimento histórico. Afastando-se assim o homem daquela unidade original
formada pela comunidade (tribal), alterando, por conseguinte, sua relação com a
própria natureza (espaço natural).
Trazendo para o nosso contexto de discussões as contribuições
de Bolívar Echeverría (1995), que destrinçou o mundo moderno principiado com
as descobertas européias, percebemos a substituição dos espaços-tempos e povos
primitivos aos modernos, com a transição das “técnicas mágicas” às “técnicas
racionais”, instalando-se a vida moderna que:
impõe uma civilização que têm sua origem no triunfo aparentemente definitivo da técnica racionalizada sobre a técnica mágica (como se fosse) a morte da primeira metade de Deus (ECHEVERRÍA apud SPOSITO, 2000, p. 129).
Com isso foram o sentimento mágico e o encantamento do
homem com o mundo se esfumaçando; a nova materialidade, as novas regras e
possibilidades causaram modificações na esfera do cultural e da psique. (Ao invés
174
das rezas e preparados do pajé se procura hoje, cada vez mais, o médico nos
momentos de agonia, por exemplo)
Em cena, desdivinização, dessacralização e tecnificação
urbanística.
Sabemos que é a organização social do trabalho o que desenha
os meios de produção econômico da sociedade, formatando geograficamente a
sociedade e suas contradições endógenas, suas relações de propriedade e as
relações sociais de produção que interatuam com as forças produtivas.
Pelo trabalho rebenta e revigora a organização social da
produção, em espaço produzido humanamente. O espaço natural fica para trás e o
espaço social complexifica-se na medida precisa da intensificação e extensificação
das relações de produção e reprodução humanas. O gradiente de desenvolvimento
espacial das forças produtivas, das relações de produção e de troca, e as
contradições entre as mesmas forças produtivas e as relações de propriedade,
revelam-se como motor da história dos modos de produção geográficos das
sociedades, de seus estágios espaço-temporais de re-evolução121.
Por ser dialética e conflituosa a lógica estrutural da sociedade,
recheada por lutas internas radicadas em classes opostas, a essência do espaço só
poderia concretizar-se como engenho humano-social igualmente contraditório.
Rodeado, encharcado e afetado por contradições inerentes ao modelo das relações
sociais de produção gerais, o espaço as absorve (in-corpo-ra), confronta-as, re-
alinha-as e re-projeta-as, interferindo inexoravelmente na dinâmica e
funcionalidade das relações sociais, pelo processo dialético imanente às suas
estruturas internas e às relações que se desenrolam entre ambas as dimensões.
Nada de espiritualidade racional pré-humana, “inconsciente” e
ansiosa de reencontrar-se, a “externalizar-se” no mundo, pondo-se como
configuração Espiritual-territorial norteada pelo Estado, a externar a Razão divina
121 Nem todos os autores concordam com essa máxima marxiana. Robert Brenner pretende que o conflito maior nas sociedades pré-capitalistas, que contribuem ao seu enfraquecimento e dissolução, se dá entre as classes sociais, entre os produtores diretos e a classe dos exploradores, ou seja, não seria o desenvolvimento das forças produtivas que prejudicaria e colocaria em xeque a reprodução dos modos de produção pré-capitalistas.
175
arraigada como prática social evoluída, como poderiam pensar os que tomam a
Hegel por autor predileto (como o seu compatriota Karl Ritter), porque foi o
Hegel quem por primeiro acusou que o Espírito absoluto atravessa e alenta com
sua inspiração a história, perdendo-se e reencontrando-se através das épocas; e
nesse processo em que o “sujeito” da história é identificado com o Espírito, os
verdadeiros sujeitos históricos ou os filósofos são visualizados como o “objeto”
de encarnação da Idéia, e assim segue o “Homem” idealizado pelo Hegel nesse
processo a caminhar por momentos, etapas negadas, contraditadas (abstratamente,
metafisicamente, pela Idéia pura, que é o motor do drama), que se engrandecem à
medida que se distancia do seu estado primitivo e se aproxima do tipo civilizado,
da infância à maturidade e da sensação à consciência plena (do tipo alemão
burguês!).
A dialética do movimento concreto e contraditório do espaço
nada tem com a dialética do movimento abstrato e contraditório da metafísica
racional da Idéia, que estaria a predizer o arrumamento abstrato e linearmente
progressista do corpo social.
O desenvolvimento desigual e combinado das relações sociais
espelha e confronta-se com essa lógica hegemônica que fita unificar
globalitariamente os espaços (ou as espacialidades sociais, diria Soja). A
afirmação logística do espaço-mundo concretiza-se pela combinação desigual e
negadora de territorialidades, em que uns locais devem perder, se secundarizar e
subordinar, para que outros se sobressaiam e se nuclearizem no mando.
As razões para a manifestação desigual de processos e estágios
de desenvolvimento social e a tonicidade espacial nada têm que ver com a medida
da presença da razão do Espírito, encarnada com mais maturidade em Estado-
territorial. O tensionamento subjacente ao espaço deita raízes na própria forma em
que se encontra estruturada e arbitrada a sociedade, na disposição conflituosa e
hierarquizada dos membros.
O espaço cosmizado, a natureza externa enxergada algumas
vezes como inóspita por primitivos, que lhes rendiam rezas e oferendas para com
ela estar-se em harmonia, vez que nela os deuses se faziam presentes, tinham
176
como epicentro ordenador do caos elementos instituídos pelo homem ou
vislumbrados na natureza como elo com as instâncias superiores. Trata-se aqui do
que chamam alguns de axis mundi, o locus em que o ambiente é organizado
socialmente. O núcleo simbólico-material ordenador do caos adquiriria formas
saídas das mãos humanas, para os povos em que o espaço cada vez mais técnico
teria por símbolo objetos de valor socialmente instituídos122.
Isso quer dizer que os espaços naturais dos povos primitivos
também possuíam uma certa organização homem-meio, em que pese a
preponderância da adaptabilidade do homem ser mais requisitada que seu
(insuficiente) potencial e capacidade de interferência ativa (técnica) no mesmo.
Mesmo assim observa-se que ao passo que evolui a complexidade de sua práxis
social, transforma-se qualitativa e quantitativamente o nível do poder de
interferência, e com isso o espaço dominado pelas técnicas mágicas (e que na
verdade espelham certa forma de raciocinar, de refletir) vão sendo substituídos ou
ao menos coadunados com técnicas mais racionais, fazendo com que seja banido
o caos e extensificado o espaço cosmizado, ou o espaço natural essencial à
sobrevivência grupal.
O ambiente físico, pois, vai manifestando, sofrendo e reagindo
aos impulsos sígnicos projetados pelos homens, que imprimem diretrizes às ações
e à coordenação simbólica do grupo. Fortalecendo concomitantemente a coesão
político-econômico-cultural de seus integrantes.
A lógica organizadora do espaço esboça-se e se delineia na
condição da proporção do escólio de conhecimento e informações acumuladas
pelos sujeitos históricos, em determinado quadrante espácio-temporal. A
racionalidade é a percepção e lineamento discursivo que anseia formular respostas
122 Percebemos duas formas espaciais de ordenamento ou cosmização espacial. No primeiro, a simbolização ou (re)sacralização do ambiente processa-se a partir dum ponto no território (árvore, montanha ou qualquer elevação) valorada miticamente para desempenhar o papel de centro ou umbigo do mundo: tratando-se geralmente de um objeto natural. Noutros espaços dá-se a eleição dum artefato para exercer a função cósmico-centrípeta de gerenciamento espacial e execração do caos (cruz, igreja ou qualquer elemento transcendente que faça ligação entre os mundos inferior, terrestre e superior): trata-se já de um objeto social. Cf. ELIADE, s/d; SZAMOSI, 1988; COLI, 1998; GRUZINSKI, 2003; RIBEIRO, 2004b.
177
às bolhas de dúvidas emersas pelo relacionar-se do homem com o mundo, com os
seus e os Outros.
Porque acompanham noções e valores históricos, o imo da
lógica é que muda. Daí o fato da explicação mítico-religiosa do real pelos olhos
gregos da Antiguidade, como a visão que os índios entoavam sobre o ambiente e
seus deuses, ser substancialmente outra que a lógica “racional” e científica
moderna, entretanto adotarem a mesma lógica de encadeamento de perguntas e
respostas, como bem percebeu José Porfírio de Carvalho123. O modo de
averiguação ou concepção é que excepcionalmente se transmuda.
O fato de termos já afiançado de que o construto social não
possui o fortuito e o despretensioso como substância central do ser – salvo como o
seu par dialético, nascido da impossibilidade de todos os entrecruzamentos de
complexos fatores se tornarem possíveis de antevisão –, como pretendem aqueles
que imputam às ciências sociais as mesmas leis por eles plausíveis nas da
natureza; ou os que estão inconscientes ou propositadamente a turvarem as razões
sociais classistas para que no umbral da lonjura poupem-se das luzes da
consciência.
O aleatório e o inesperado não têm assento permanente na lógica
da sociedade.
Não que o contingente seja teoricamente ignóbil. O
indeterminado marca presença na sociabilidade, tantos o disseram, Lukács por
várias vezes. A questão fundamental talvez esteja tanto na não-absolutização
desmedida da imponderabilidade de um lado e, de outro, na não-confusão da
indeterminação do real como fenômeno desprovido totalmente de causalidade; e
com respeito ao sentido dessa segunda questão, Chauí (1999) clarifica que o
indeterminado resulta de causalidades originalmente disjuntas que se topam, como
séries causais distintas que por motivos imprevistos se afluem, fazendo com que o
real compareça como complexo de causalidades ora por outra casualmente
entreveradas (como exemplo a calhar, a descoberta da América se lhe ilustra
pertinente a essa ocasião). 123 Consultar: Waimiri-atrori: a história que ainda não foi contada, no site www.estado.com.br.
178
A realidade social deixa expressar-se na qualidade de situação
regida por qualquer estatuto ontológico de irracionalidade intrinsecamente natural.
O acaso e o indeterminado devem-se a relações nexais que se encontram, queira
ou não, saiba ou não o sujeito, ou o sujeitado.
Não significa isso que se deva advogar a tese da efetividade
absoluta da racionalidade humana. Mesmo porque não existe a noção imutável do
que isto possa representar, tendo em vista que a própria noção de racionalidade
em determinado contexto pode sê-la irracional naqueloutro, e isto porque
“Racionalizações dos mais variados tipos têm existido em vários setores da vida,
em todas as áreas da cultura” (WEBER, 2002, p. 30).
A realidade espacial é movimento de eventos e de
representações que se concertam e discordam, empedernindo-se e dissolvendo-se
no ar. É impraticável ao homem o prognosticar teórica e teleologicamente de toda
a complexa transa de relações causais do concreto espacial. A dialética da
natureza, da sociedade e do pensamento o impediria, não o deixando ir além da
histórica e espacial máxima consciência possível. Asseverar o contrário seria
apostar na onisciência do homem, abdicando-se conjuntamente do pressuposto
ontológico da dialética da legalidade da natureza.
As partes contêm traços da totalidade. A totalidade não se
propõe cognoscível pela soma interminável de suas enésimas componentes que,
por matemática colagem, mecanicamente se auto-revelaria como que por encanto
lógico-formal. A metateoria tem aqui seus limites. A síntese está na relação causal
e dialética dos determinantes estruturais da sociabilidade com as mediações que
lhes ameaçam a partir do e contra o seu próprio ser colidente.
Não havendo onisciência, tampouco ontológica irracionalidade
ou indeterminidade absoluta na natureza do real social e extra-social existiria.
Há que se saber distinguir entre a feição “racional” que detém
determinada organização societal, de acordo com sua visão de mundo e suas
pretensões histórico-geográficas, de qualquer postura irracionalista que defende a
sociabilidade como amontoado assistemático de atos, valores e vetores. O que não
quer dizer que tudo seja racionalmente encadeante e matematizável numa equação
179
de irrefutável resolução. Mas o aleatório e o despretensioso não se colocam como
cernes subjetivos edificantes de qualquer corpo social que almeja manter a
capacidade de reproduzir-se, crescer e complexificar-se social e territorialmente,
com identidade agrupante que co-opera (trabalha coletivamente) em razão da
existência/resistência.
Eis o conteúdo latente do processo proto(des/re)humanizante do
ato do trabalho, e o seu conteúdo têmporo-espacial é uma das pilastras capitais
estruturantes da forma em que se realiza a reprodução da existência, porque
garante a vida e é fundante à socialidade (LESSA, 2002). É-o motor da história
para muitos, porque a emancipação humana não poderia nem sequer cogitar-se
possível desconsiderando-se a necessidade de mudança na sua qualidade;
redirecionando-a em proveito irrestrito e igualitário dos integrantes da sociedade.
A refundação da sociedade implica a reorientação do conteúdo e da função do
trabalho, a garantir que as potencialidades (esfera da liberdade) de hominização,
humanização ou desenvolvimento da omnilateralidade humana se desenvolvam na
seara da reprodução social da existência espacial coletivista e co-gerida, com uma
nova forma de organização societal construída na interatividade harmônica com a
organização do trabalho, no máximo enquanto contradição não-antagônica, de
modo que tenha o trabalho por fundamento a geração de um excedente concreto
(RIBEIRO, 2004b) que, qual renda social garantida em uma sociedade socialista
(BIHR, 1999), sirva ao homem durante toda a sua vida, e não o inverso.
As forças que “congelam” o espaço e que fazem a energia social
do trabalho escorrer na calha classista da opressão e alheamento, teria aí
estilhaçado um dos dutos que aprisionam as águas da história, ressecando
possibilidades de afloramentos de espacialidades humanizantes, com leitos outros
que não o lucro e o verter privado da riqueza abstrata.
Se o salto ontológico de sociabilidades consubstancia-se pelo
trabalho, o motor da história ou a essência (re)fundacional do espaço, considerado
como conjunto interativo das práxis dos indivíduos em sociedade, não deve sê-lo
visto mecânica e simplificadamente em todo o construto social edificado. A
sociabilidade incorpora formas e facetas distanciadas, prolongadas e
180
complexificadas de agir e manifestar-se na esfera da reprodução social: na arte,
ética, afetividade, religião, esporte, alimentação, sexo e no direito. No entretanto
de jamais poderem ser, na ótica do materialismo dialético, separadas esfera da
vida e esfera do trabalho ou o sistema que a conecta, pelo trabalho tornado
atividade abstrata ou alienada (entfremdung). Há conexão e distinção,
aproximação e prolongamento, ao contrário do que creu Jürgen Habermas (1929-)
com seu estruturalismo analítico (ANTUNES, 2000; SILVA JR.; GONZÁLEZ,
op. cit; RIBEIRO, 2004a, 2004c, 2005a). Diminuirá sem desaparecer, tanto agora
como na posteridade, do capital ou além capitalista, porque se torna menos vivo e
cada vez mais morto, trabalho morto, em uma sociedade que transita do reino das
necessidades para o da liberdade.
A história universal bifurca-se em história que o homem faz e
história que o homem não faz (geograficamente falando, entre espaços naturais e
espaços sociais). A primeira antecede e extravasa o ser social; entoa à natureza
autocontida, de dinâmica e leis próprias. A história que o homem não faz, por seu
turno, acena àquela inaugurada no instante em que o animal-homem se
autodetermina pelo trabalho e prática social, controlando a si próprio e
embrenhando na natureza ao qual concerne e que somente em idéia (alienada) é-
lhe exterior; com vistas a mais conhecê-la em seu proveito.
Logo, é potencialmente una a história universal, como história
do trabalho, da produção e da ciência humana em relação à natureza. A história
natural subsumindo a história humana; do mesmo modo que essa subsume a
história natural, em um infindo intercâmbio entre ambas as partes. O homem ao
fazer sua história, consciente e inconscientemente, voluntária e involuntariamente,
intervém na história que ele não faz, ao passo que esta última influi de certa forma
na que é feita por ele.
Mas dizemo-la una a potencialidade da história por encontrar-se
humanidade e natureza concreta e reciprocamente separadas hodiernamente, com
o trabalho nucleando-se na origem da cisão (MARX, 1964). Em termos de análise
teórico-científica no entanto, alerta-nos Lefebvre para o fato de que o ser
mergulha a fundo na natureza, ao invés de distar-se ou dela se descasar, e que a
181
natureza não existe na ou para a consciência humana, como união
irrevogavelmente tendente unicamente à abstração metafísica; muito pelo
contrário, a consciência humana é que emerge da natureza e pode com ela
reencontrar-se através de método vigilante à objetividade aprofundada.
Chama-nos a atenção o filósofo para a possibilidade de o
Homem reencontrar-se consigo mesmo. Já não é mais o Espírito quem deve se re-
encontrar.
Poucos não são os que compartilham da idéia de o reencontro do
ser social com a natureza, a desalienação dos homens, ainda estar a remeter-se à
questão respeitante aos nexos do mundo do trabalho, na refundação das relações
sociais de produção e reprodução e com o mundo natural. Pondo-se o trabalho no
frontispício da vida emancipada e repleta de sentidos (ANTUNES, 1998, 2000;
MÉSZÁROS, 2002; THOMAZ JR., 2000; RIBEIRO; THOMAZ JR., 2001).
O homem é a natureza metamorfoseada a partir de seus atributos
naturais desenvolvidos pelo trabalho físico e mental (ENGELS, 1979).
Se tudo é história, história da transformação, o mesmo se pode
assegurar sobre o espaço. O espaço é a dimensão em que se arrumam e
desarrumam forças e relações (entre homens e coisas), visíveis e invisíveis.
O movimento existe, seu conteúdo é social. Leis imutáveis e
eternas foram ademais ideais metafísicos que agradavam a reis medas e persas, à
Igreja, aos filósofos especulativos que buscavam as leis do ser social, aos
economistas clássicos e seu pressuposto teórico da natureza humana imutável e a
antropólogos especulativos, que faziam da história uma hipóstase, um sujeito
metafísico, fetiche ou autômato dotado de vontades autônomas.
Por demais conhecidas são as criticas de Marx a E. B. Tylor
nesse assunto. E o culturólogo Leslie White (1978), concomitantemente evidencia
uma nítida orientação evolucionista de autonomização exacerbada dos sistemas
culturais em relação à sociedade, que tão-só refletiria o grau de encadeamentos
relativamente autônomos dos complexos de símbolos; a numerosos outros
pensadores se assemelhando, desde Herbert Spencer (1820-1903), Edward Burnett
Tylor, John Lubbock, L. H. Morgan, J. B. Phear, H. S. Maine, Émile Durkheim e
182
a Sidney Webb, neste último com maior transparência; todos eles entrementes
guardando diferenças entre si: como a oposição de Durkheim ao pai do
estruturalismo individualista inglês, A. D. Radcliff-Brown, ou a oposição do
americano evolucionista Morgan à interpretação individualista da história, que
tinha a Teseu não um indivíduo mas um período histórico ou uma série de
eventos.
Em termos gerais, vemos ser antiga a polêmica do
evolucionismo (culturologia) ou dos evolucionistas, sobre-determinadores dos
simbolados, com antropólogos e defensores da centralidade humana no realizar da
cultura e da história, como Franz Boas, Radcliff-Brown, Spiro, Robert S. Lynd,
discordantes da premissa de que deteria a cultura realidade ontológica, como algo
externo e fundante do ser. Há que se saber avaliar a dialética entre símbolos-
símbolos, símbolos-sociedade, materialidade-imaterialidade, racionalidade-
legalidade (RIBEIRO, 2004b). Se o homem é determinado pela história que faz
sem o saber, também a ela é determinante, sendo-o criatura e criador dessa e de
outras histórias e espaços possíveis. Basta-nos a recordação marxiana-engelsiana
de que “as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as
circunstâncias” (MARX; ENGELS, 1996, p. 56)
A história que é feita por nós é história do trabalho e esforço
humanos.
É a história humana (ou história da natureza que se tornou
humana) aceita como objeto da ciência natural, de forma indevida e quase que
generalizada. A olvidar que é a ciência natural da mesma maneira produto da
ciência do homem; condição a pôr em cheque a ilusória neutralidade e imunidade
do saber, que se autoconfere o método positivista e naturalista.
Ao dialeticamente infundir a sua autotransformação pelo
trabalho, a natureza pariu a condição social transformante e fazedora de outra
história: aquela de uma relação da história social e natural como potencialidade
una de uma materialidade historicamente decomposta atualmente na organização
social classista e alienada que, num suceder de idéias, ideologias e práticas
dominantes, resultou nos espaços privilegiados dos superiores sociais.
183
Os destituídos dos meios espaciais de produção e de subsistência
transformam-se em trabalhadores imediatos criadores de sobre-trabalho ou sobre-
produto, gerando a riqueza social a partir da especialidade laborativa imposta pela
divisão social do trabalho em sociedades classistas. À divisão social do trabalho
se ajunta a divisão espacial do trabalho, numa dança nem sempre bem coordenada
pelos gestores (que trabalham intelectualmente na administração da relação
contraditória), que sofrem e se contorcem com as reviravoltas dos trabalhadores
que cotidiana e lentamente vão aprendendo a enxergar a distância espacial que
guarda o abismo existente entre o andar de baixo e o de cima da sociedade, em
que se encontram os que não trabalham de fato – pelo contrário, até demonstram
uma espécie de “labor-fobia”, como a que possuíam filósofos e patrícios da
Antiguidade.
As relações de produção que dividem o trabalho para maiores
excedentes pela especialização da funcionalidade produtiva, não conseguem
escapar ao fato de o espaço produzido reagir, reinventar ou reamoldar os vetores
econômicos gerais; inclusive porque a organização e disposição territorialmente
descontínua mas integrada do trabalho manifesta-se territorialmente como
representação e organização classista dos trabalhadores mais ou menos
solidificada em correspondência com a coordenação da espacialidade
singularizada dos meios espaciais de produção e de trabalho pelos trabalhadores,
que deixam de ser simples peças passivas na engrenagem retro-alimentar do
capital.
A legalidade do real, a história que não é feita pelo homem124,
ou a lógica e individualidade da natureza autocontida e independente ao ser social
(WHITEHEAD, 1994, p. 7, 19 esp.; LEFEBVRE, 1981, p. 49) não pode servir de
parâmetro à leitura da processualidade da geografia alicerçada, abnegada,
combalida e refeita pela sociedade, porque são outros os parâmetros (QUAINI,
124 Essa expressão de Vico (Principi di Scienza Nuova, 1744 apud KRADER, 1987, p. 273-274) foi utilizada tanto por Darwin quanto pelo Marx, que diferenciou a história social da história natural. Com essa definição, Marx distanciava-se da concepção comungada, entre outros, por Francis Bacon: de que tudo está a submetido à história, quer a natureza ou o homem (mesmo não havendo separação absoluta entre ambas, por se imbricarem cada vez mais). Essa simplificação das histórias fora também alvo de pensamentos de Buffon, Kant, Laplace e Adelung.
184
1991). Insistir nesse disparate, como tantos fazem na atualidade, é ler o espaço a
partir da ótica da (i)lógica certificadora do que entendemos por quântica social
(RIBEIRO, 2004a), que expressaria em escala social ampliada, de forma
naturalista ou evolucionista, uma “razão de ser” natural inextrínseca a todo fator
do real, inclusive à história que é feita pelo homem, que supostamente seria em-si
irracional e que, por isso, no plano teleológico, a ciência não poderia
ontologicamente acompanhá-la.
Sem mais ou menos, os donos do mundo querem agora negar as
ciências, especialmente as críticas, porque as que se lhes prestam à revitalização e
aperfeiçoamentos técnicos têm todo ouvido. Resultado, ditadura do pensamento
único; sem contra-discurso enfraquece-se a contra-ação; morre a história, congela-
se o espaço... Ou pelo menos as lutas, de inexorável existência objetiva em
sociedades de classes, surgiriam desordenadamente (o que as classes dominantes
já consentem, porque fariam parte da “democracia” individualista e anticoletivista
do capital), permitindo um esfacelamento mais rápido. Nada à toa a pregação do
fim da história, do fim das vanguardas, da morte do sujeito, do fim do território e
do fim do espaço (que enterraria na mesma vala o contra-espaço ou controlaria as
heterotopias), da paz social interclasses, ou do próprio fim das classes125, para não
dizer, entre outras falácias, do silêncio sobre a própria expressão capitalismo, que
perderia sentido já que não haveria outro a contrapor-lhe, segundo denuncia o
economista Luiz Gonzaga de Melo Belluzzo (2005a, p. 13). Outra faceta essa da
luta de classes arremessada na arena da ciência, da visão de mundo que credita
“ler” racionalmente o real e que não mais que projetar-se como porta-voz das
classes dominantes consegue.
Com uma nova visão de espaço, de Deus (divino ou social-
capital), de natureza e de trabalho, somente mais requintadas; crêem não ser
125 Não é a primeira vez que o fim das classes é decretado. Ocorreu quando a própria burguesia sodificou-se no poder no século XVIII, como nos advertiu o Armando Correia da Silva. Ocorre que à época a burguesia realmente incorporava preceitos universalistas, de redentora da sociedade, sem que houvesse já ideologicamente um “egoísmo” e uma “mentira de classe”. Já atualmente, a história se repete como tragédia e o fim das classes nada tem de ingênuo e libertário, o sendo expressão dos interesses burgueses de perpetuação da história que lhe convém, do espaço ao qual melhor se acomoda.
185
preciso que todos raciocinem mesmo, buscando a razão das coisas, uma vez que
argumentam serem já suficientes os que ditam os rumos da civilização e os que
são cooptados nos estratos societais inferiores em troca de favores, recompensas
ou robustas rendas, para pensar para o restante, que deveria reproduzir o já
conjeturado intelectualmente.
O aleatório não tem existência tão liberal como se diz e por isso,
o espaço então se coloca como a essência do ser social em seu movimento
histórico e geográfico, contínuo e descontínuo, a transparecer na paisagem
fenomenicamente, como imagem epidérmica, congelada e momentânea, quais
hologramas espectrais do movimento da sociabilidade estabelecida e
territorializada pelo ser social. Unidade do diverso metamorfoseante ou complexo
de complexos mutante por meio do qual, e mediante processo holometabólico
recheado por contraditórios interesses internos à socialidade (entre forças
produtivas e relações de produção, base e superestrutura, capital e trabalho, região
e nação), se ostenta tons desbotados e sonoridades distorcidas.
A dedução do que venha a ser a natureza ou o espaço advém das
finalidades classistas dos que pretextam conservar-se no tope do edifício social.
Ludibriando os demais para ideologicamente “apagar-se” as dissimilitudes;
escondendo-as no pântano escuro e sujo que intermedeia as classes.
Importante aliás, é a constatação de Milton Santos, a vaticinar
que a ideologia presentemente vem empiricizada nos objetos. E com igual valor
acentuamos o lembrete de Sérgio Lessa, para quem “o melhor meio de se
proceder é sempre recusar as imposições dadas pela realidade imediata”
(SILVA JR.; GONZÁLEZ, 2001, p. 7. Prefácio de Sérgio Lessa). Muita
mistificação entre o espaço real e o espaço propagandeado; questionar e atravessar
as brumas das formas falseantes é o melhor meio para se chegar à essência da
lógica espacial historicizada pela sociedade. Eis o motivo de o Lefebvre (1981, p.
229), retomando na mesma linha o método de Marx, recomendar-nos à não
aceitação imediata pela empiria e aparência dos fatos dados.
O controle social esteirado na posse dos meios geográficos de
produção, seja do corpo do indivíduo, da instância territorial da sociedade, ou das
186
instalações e objetos materiais, instala-se como a substância edificante da
sociabilidade arrumada com vistas a pôr os pobres a trabalhar e sustentar os
dominantes; e não sem violência e repressão.
A natureza histórica do espaço produzido exprime o modo como
se desenrolou o processo de autotransformação da natureza do espaço natural em
espaço com natureza social: mediante reificações. Em princípio como reificações
inocentes. Como reificações alienantes, a seguir. O que era subjetividade autêntica
transmuta-se em subjetividade inaltêntica. Do privilégio como reconhecimento
grupal ao indivíduo týranno (originalmente o excelente) pelo seu bem-fazer em
guerras, representação, segurança ou qualquer outra função, incrusta-se a
segmentação constrangedora: o apartar do týranno por amor motiva a revolta do
amado apartado, socialmente segmentado e espacialmente segregado. O amor
pariu o ódio; o querer bem o levou à distinção; esta ao isolamento e à falta do
amor até então usufruído (LA BOÉTIE, 1982).
Seria essa uma das hipóteses. A abstração entretanto, não pode
desenredar-se do contexto espacial. Poderia sim tê-lo sido o resultado dum
descuido a gerar a opressão e a coerção, mas noutros momentos a situação poderia
ter sido também engenhosamente armada para que o poder fosse roubado,
servindo-se para tal da carapuça da magia, da mediunidade e da descendência
divinal.
A organização social calcada não teria tanto mais de reificações
inocentes. A alienação e a ideologia unem-se para a usurpação dos explorados
divididos. Condições e combinações essas diferenciadas em todos os quadrantes
do mundo. Não havendo uma linearidade evolutiva fatalista, a caminhar
homogeneamente numa só direção.
Daí o erro de Comte que, na busca pelas identidades dos povos,
os quais comunicação política alguma existiu, entendeu que a identidade havida
pelos rumos de desenvolvimento assumido pelos povos comprovava a
infalibilidade da lei progressiva que possui a marcha natural da civilização,
determinada e invariável, não importando o lugar em que se achassem os povos, e
o autor cita o exemplo dos malaios que a seu ver possuíam muito do feudalismo
187
europeu do século XI, além dos costumes e da cultura da Grécia dos tempos de
Homero prevalecentes na Europa de então e, surpreendentemente, entre algumas
“nações selvagens da América setentrional” (sic!) (COMTE, 2005, p. 60).
O arranjamento ambiental evidencia o potencial do nível de
compreensão e manipulação das leis e materiais do meio. As forças produtivas
motorizam e apregoam o estádio do avanço conseguido pelo homem. Por força da
complexidade e do nível de incremento da capacidade produtiva e geração de
sobre-produto conseguida nesse processo, a sociabilidade faz nascer organizações
políticas e jurídicas a emoldurarem os sujeitos com nova regulação espacial a
tomar corpo, alçadas pelas classes sociais dominantes que imprimem a sua
logística nos derredores habitáveis, explorados e interconectados socialmente.
Cada modo de produção corresponde a específico coeficiente de
organização societal abrangido pelas formações sociais no decurso da história, em
variados quadrantes do globo (SROUR, 1978; HOBSBAWM, 1975; MARX,
1975, 1999; ENGELS, 1979). Corresponde ele à forma como a sociedade se
organiza economicamente, conforme o estágio atingido pelo desenvolvimento das
forças produtivas, não compreendendo a totalidade das relações concernentes à
formação social126 concreta mas mantendo-se ligada à superestrutura da
sociedade.
126 A noção bastante corrente de a formação social dum país possuir variados modos de produção, amontoados e fusionados pela esfera da circulação, não possui veracidade teórica, histórica e geográfica, na atualidade. O contexto da economia mundial monopolista, para nos adiantarmos na questão, parece demonstrar exatamente o oposto daquele julgamento: um único modo de produção econômico planetarizado, como espaço-mundo ou espaço-mercado, a conviver com dezenas de formações sociais nacionais amalgamadas pelas esferas político-econômico-ideológico-cultural, na relação fincada na produção-circulação-distribuição-troca-consumo. Como Azevedo (1999, p. 312), entendemos o modo de produção como “a maneira e a forma como são produzidos os bens materiais, ou seja, o conjunto que constitui as forças produtivas e as relações de produção (...) A substituição de um modo de produção por outro pode ser efetuada através de processo evolutivo, ou através de ruptura brusca, geralmente revolucionária. Por outro lado, o modo de produção condiciona também o modo de vida da formação social onde é atuante”. Atentando às observações de Pitirim Sorokin, Fernandes (1995, p. 86) argumenta que em Marx o modo de produção não deve ser compreendido pela acepção restrita, como o sentido positivista de “produção”, típico a dos clássicos Adam Smith e Ricardo, posto que: “Ao contrário, na terminologia marxista ‘modo de produção’ implica todo um complexo sócio-cultural, extremamente típico e variável; compreende as noções de forma social e de conceito material em sua correspondência efetiva”. Logo, deve ele ser ilustrado como conceito sintético, contrapondo-se àquele primitivo conceito analítico. Outro não foi o sentido da crítica de Mazzeo (1989) aos marxistas vulgares, que na Internacional Socialista do princípio do século XX ressuscitaram dos
188
Indubitavelmente estava entre os principais conceitos tratados
por Marx. Conforme se referiu n’O capital que “O modo em que se efetua esta
combinação (entre os meios de produção e os trabalhadores) distingue as diversas
épocas econômicas da estrutura social”.
Mas há aqueles que negam essa expressão, preferindo considerar
as etapas evolutivas da sociedade a partir de determinadas medidas econômicas
(produção per capta, taxa de poupança, etc.) e que mesmo o capitalismo
contemporâneo teria como característico a industrialização (W.W. Rostow); como
há aqueles que negam o próprio termo capitalismo.
Deixando para traz essas posições e com base na concepção
marxiana, a história das formações sociais da humanidade pode ter o “conteúdo”
de seu “progresso” expresso nas seguintes leis gerais e abstratas127:
a) Quando em vigor uma relação de estabilidade entre as forças sociais
produtivas e as relações sociais de produção, caracteriza-se um determinado
estágio de desenvolvimento da formação econômico-social;
clássicos esse ponto de vista; consideração essa que pende à interpretação analítica, estruturalista e cartesiana sobre modo de produção (RIBEIRO, 2004c). Marx (1999) se debruça sobre a “produção em geral”, caracterizada por produções concretas distinguíveis entre si. Há que se saber que as forças produtivas, ou as forças naturais e os instrumentos de produção, como máquinas, técnicas, invenções, etc., constituem apenas a base material do modo de produção e não a sua totalidade, que se compõe ainda do sistema das relações sociais e do padrão de comportamento e disciplinamento social (FERNANDES, 1995, p. 86-87). O modo de produção deve ser entendido como totalidade em processo e não como forma inerte, como estágio estático, modelo puro a ser demonstrado e afrontado a todas as épocas e conformações espaciais; igualmente relevante, é que a dimensão cultural não seja sempre concebida o reflexo mecânico da econômica, que nesse viés seria transcrita como valor absoluto. Informa-nos Chauí (1991, p. 63) também que o modo de produção “não é um dado, mas uma forma social criada pelas condições econômicas e políticas dos agentes sociais (independentemente de sua vontade e de sua consciência). É o sistema das relações de produção e de suas representações por meio de categorias jurídicas, políticas, culturais, etc.”. Gorender (1994, p. 46) considera a categoria de modo de produção “como a base material da sociedade sob a forma de conjugação de forças produtivas e relações de produção”. Aproximamos, por fim, o conceito de modo (geográfico) de produção da sociedade ao conceito de formação espacial, em suas múltiplas dimensões (política, cultural, econômica, ideológica, etc.). 127 O abstrato aqui não se resume às meras tautologias vazias, dado à profundidade do pensamento de Marx que, ainda que vivendo em época em que os estudos ou era ainda precários ou pouco difundidos/traduzidos, esboça as leis da evolução como possibilidades latentes bastante plausíveis. O pensamento de Marx opera, quando necessário, pelo uso do silogismo concreto.
189
b) Já quando se estabelecem conflitos, ao longo do tempo, entre as forças
produtivas e as relações sociais de produção, instala-se uma fase transitiva,
que lança o corpo social à frente, até que se tenham implantados...
c) Os períodos de revolução social, em que as relações sociais tendem a se
readequar às forças produtivas, em um novo estágio de desenvolvimento
econômico e de realização civilizatória.
O decurso evolutivo dos modos de produção da humanidade faz-
se como escorço mais possível e relevante destes marcos, sem que se esteja a
negar muitas outras combinações ou estágios intermediários, em vários cantos do
mundo, pois tais estudos dependeriam de um acúmulo de dados históricos e
antropológicos aos quais Marx e seu amigo Engels indispunham ao seu tempo,
por isso que nem mesmo eles se mostravam satisfeitos com o quadro evolutivo
esboçado. Ademais, os autores objetivavam conhecer sobretudo o modo de
produção comunista primitivo e o capitalista, para demonstrar o descompasso
entre eles e as disparidades que a humanidade deveria conhecer para reorientar-se
no curso evolutivo vindouro.
Como seis, entendemos comparecer a categorização marxiana
mais habitualmente utilizada para exprimir as estruturas sociais de produção, além
de transições e formações econômico-sociais relevadas por Marx como
exemplificação ilustrativa do processo evolutivo e contraditório das sociedades,
ao longo do tempo e dos lugares, e isso por que ele focava a sucessão dos modos
de produção e não a existência de modos específicos de produção (embora tivesse
Marx conhecimento sobre o modo de produção eslavo, e sobretudo se detivesse
sobre o modo de produção germânico128, tendo-o como fase intermediária entre o
128 O modo de produção germânico (ou da Idade Média) tem como unidades básicas os lares, que se põem com um todo econômico e auto-suficiente em termos agrícola e manufatureiro (trabalho doméstico e subsidiário das mulheres); lares estes distribuídos de forma individualizada e isolada, não vivendo o indivíduo nem em aldeias e nem em cidades e só se reunindo esporadicamente para a guerra, religião, litígios legais e outras questões que o mereçam, decididas nas assembléias dos chefes familiares que reúnem as tribos por uma espécie de pacto tribal entre semelhantes. A propriedade nesse sistema é comum (territórios de caça, pastagens, etc.) mas o uso é individual, como posse individual consentida na e pela relação cooperativa com os demais lares e, por isso, o sistema germânico de frouxa relação comunal e potencialidade de individualização econômica
190
comunismo primitivo – ou a comunidade camponesa primitiva – e o feudalismo),
e sem também que houvesse uma ordem predeterminada para tal sucessão
(contudo, fosse-lhe bastante provável que determinadas fases de desenvolvimento
não pudessem pular etapas e alcançar outras, ou seja, o capitalismo não poderia
surgir do comunalismo primitivo e nem do escravismo, por exemplo, devendo
haver determinadas condições materiais produtivas para que da contradição com
as relações de produção brotasse o novo).
Afirmamos também que o estudo poderia sim se pautar no
estudo da evolução das técnicas, como sugeriu Marx – sendo seguido nessa
vereda inclusive por geógrafos –, mas optamos pelo estudo dos modos de
produção pelo fato de que se toda modificação desse provém originariamente
duma evolução técnica, por outro lado, nem toda revolução técnica acarreta a
modificação do modo de produção. Para longe de dualismos, porque se
relacionam ambos, o modo de produção se firma como a estrutura nexal que
organiza e orienta a parafernália técnica.
Vejamos agora quais os períodos de desenvolvimento que mais
são destacados na literatura científica:
Modo de produção comunalista primitivo;
Modo de produção “asiático” que, de jeito apodíctico, mais correspondeu ao
modo de produção reinante nos Impérios do Oriente e Ásia menor, podendo
igualmente referir-se aos existentes na América pré-colonial e em partes de
África;
Modo de produção escravista clássico-antigo129;
Modo de produção servil ou feudal; põe-se entre a cadeia evolutiva que se dirige ao capitalismo, de acordo com Marx, tendo antes por etapa o feudalismo. Por isso, tal sistema foi um dos maiores alvos do pensamento marxiano, por crê-lo uma das subvariedades do comunismo primitivo e uma fase de transição ao capitalismo, pelo tipo de individualização a ele imanente. Muito provavelmente – Marx não o elucida – tenha o sistema germânico perecido pelas diferenciações interna e externa havidas no período, com lideranças militares surgindo e se sobrelevando nos momentos de disputas e de guerras. 129 Lembramos não haver unanimidade entre os autores sobre o modo de produção escravista porque houvera múltiplas formas de manifestação do escravismo ao longo do tempo e dos espaços, como o que se deu no Mundo Antigo e o que se processou no Novo Mundo, entre os espaços coloniais.
191
Modo de produção capitalista ou burguês, em seus estágios: mercantil, fabril-
industrial e financeiro;
Modo de produção de capital pós-capitalista130.
A seguir as formas adotadas pelo ser social conforme o
progresso do modo de produção alcançado.
2.1.3 Teorias (e métodos) sobre a
evolução humana
“Só o espírito positivo, em virtude de sua natureza eminentemente relativa,
pode representar de modo conveniente todas as grandes épocas históricas
como tantas fases determinadas de uma única evolução fundamental,
onde cada uma resulta da precedente e prepara a seguinte segundo
leis invariáveis que fixam sua participação especial na progressão comum,
de maneira a permitir sempre, sem inconseqüência nem parcialidade,
render uma exata justiça filosófica a todas e quaisquer cooperações”
(COMTE, 2006, p. 63).
-------------------------------------------------------
“A teoria geral do materialismo histórico requer apenas a existência de
uma sucessão de modos de produção, e não a existência de modos específicos,
nem que haja uma ordem pré‐determinada para esta sucessão” 130 Essa classificação altera a sucessão teórica preconcebida pelos marxistas, não sem certo veio estruturalista, a despeito da evolução da sociedade, inscrevendo a sociedade estatizada de capital pós-capitalista na seqüência da sociedade estatizada capitalista. Contudo, isso não altera o fato de o comunismo ainda continuar sendo considerado como a última etapa da história humana, como o melhor espaço possível e cientificamente previsível de ser conjeturado, de acordo com a máxima consciência histórica que dispomos: “Verossimilmente, não será senão uma forma momentânea da evolução humana” (LEFEBVRE, 1981, p. 188). Deixaremos de tratar, como já deve ter ficado explícito, o que viriam a ser o modo de produção socialista e o modo de produção comunista – lembrando que há os que apenas consideram alvo de teorização o modo de produção comunista, tendo o socialismo apenas como uma fase transitiva, que não poderia ser considerada como modo de produção.
192
(HOBSBAWM, 1975, p. 22).
Vários autores se enfileiraram para explicar a pulsação e a
marcha das sociedades no suceder dos tempos e dos espaços. O diferencial da
explicação está no método e nas fontes teórico-ideológicas assumidas que, de
forma sucinta e não sem perigoso engano, podem ser resumidas em três macro-
grupos – um pouco, é verdade, distinto da concepção comteana.
À frente desses grupos e varrida para longe do ambiente das
ciências estão as teorias filosófico-teológicas (onto-teo-logia presente em eras
primitiva, medieval, moderna e contemporânea) que ruíram como torre de babel, e
que explicavam a complexidade ou o avançar dos povos e culturas a partir da
espiritualidade evoluída pelos homens, na relação de proximidade estabelecida
com Deus. Também nesse grupo podemos considerar as teorias míticas de povos
primitivos e modernos, como a de agrupamentos religiosos contemporâneos.
Sequencialmente a essas idéias, as contrariando e se
posicionando mais ao centro desses grandes blocos teóricos estavam os que,
arrogando-se possuidores de teorias científicas e neutras (na política, religião ou
quaisquer outras esferas), elaboraram quase que basicamente teorias do desejo
privadas de veracidade e profundidade teórica, sendo mais ufanismo nacionalista e
ideologia classista do que teoria concreta do percurso evolutivo por quererem que
o concreto real fosse somente aquilo que idealisticamente cimentaram em suas
mentes (isso quando tais teorias não se faziam criadas nos gabinetes de grandes
corporações econômicas ou nos amplos e silenciosos salões dos governos das
maiores potências).
No outro extremo estão os que buscam na materialidade
concreta edificada pelos homens os pressupostos elementares da formação
cultural, e aí quase sempre tomam a técnica e os modos de produção como
instrumentos teóricos de análise das formas de evolução e aprestamento
econômico-material das sociedades. Como teorias crítico-científicas podemos
enquadrá-las.
193
Essa classificação não esconde os riscos da generalização, quem
sabe um pouco estruturalista vez que dentro desses grupos se encontram posturas
as mais variadas: quando perdido em especulações e deduções embasadas no
silogismo formal, o mesmo autor científico pode ora ou outra trafegar no outro
domínio.
Uma proposta teórica que pode ser ligada ao primeiro grupo
(teorias filosófico-teológicas) é o hegelianismo, dada à teologia e à metafísica
imanentes ao conteúdo explicativo. Como exemplo do segundo grupo (teorias
científicas e neutras) elegemos as teorias comteanas131 que, em que pese tenha
contribuído para ventilar para longe as teses teológico-metafísicas e de ter
elaborado certas regras de cientificidade, quis fazer da ciência religião intocável
ao entrar na vala da metafísica que se levantava a combater. A corrente do
materialismo pode, por fim, ser delegada ao terceiro grupo ao negar como guia e
motor ao homem as forças extra ou sobre-humanas (típicas ao primeiro grupo),
repudiando a tese de ciência como acúmulo acabado de teorias forjadas no plano
do concreto mental (típicas ao segundo grupo) e por entender a evolução humana
como produto das contradições e das lutas de classes, enxergando seus reflexos na
luta teórico-ideológica, nunca acabada, universal, imparcial, perfeita ou acrítica.
Se o hegelianismo no fundo acreditava a qualidade do estádio de
evolução humana derivada de uma consciência ligada ao Espírito, em marcha
linear apoiada pela família e pelo Estado, a teoria comteana sobre a evolução
humana também não deixa de ser linear pois, apesar de todos os esforços de seu
criador para rotulá-la de científica, o seu fundamento advoga o impulso e o
instinto humanos como motores do avanço dos povos – e aí a religião oficial foi
substituída pela fé na ciência acrítica, por acreditar-se ápice possível do
pensamento humano universal que haveria de harmonizar e unir os povos.
131 Embora não se definisse como neutra, a teoria stalinista da evolução também pode ser enquadrada nesse grupo. Como ficou estabelecido pela Conferência de Leningrado realizada em 1931, apoiada por Stálin, elegeu-se como verdadeira a idéia mecanicista e linear da evolução humana através de estágios de desenvolvimento (Comunismo Primitivo Escravismo Feudalismo Capitalismo Socialismo) que só viriam a perder força a partir da década de 1960, com o fim do stalinismo.
194
Os pertencentes ao primeiro grupo crêem que a transformação
do real dependerá da manifestação, revelação ou atuação conjunta do homem com
o ser sobrenatural. Os integrantes da segunda unidade entendem a transformação
como resultado do ser natural humano, como estágio frutificado da conjunção da
razão humana (neutra, aclassista) potencialmente universal com o propósito de
elevação da civilização. O terceiro grupo medita sobre a natureza socialmente
contraditória do ser fundado histórico-geograficamente, apontando os agentes
responsáveis pela transformação teórica e prática, sobretudo.
Não mais a ação extra-social harmonizará a sociedade
(misticismo e onto-teo-logia). Não mais a educação dos grandes teóricos
iluminados e neutros a renovará pelo educar dos povos e dos governos
(platonismo, comtismo). Ao materialismo histórico-dialético ganha realce a práxis
como ação dialógico-reflexionante e social-prática.
A percepção de que, havia muito, estava em pauta na mesa de
debate das sociedades a reflexão sobre a marcha e o destino da civilização talvez
seja o mais importante.
Comte isto notou a respeito do que entendia ser a irrevocável
macha da civilização rumo ao progresso contínuo do espírito humano e por isso –
em que pese a visão metafísica que tentou tornar científico-positiva – fez questão
de registrar que várias sociedades, desde as mais primitivas, procuravam
apreender o mundo imaginando-o como o seria, o que se consubstanciava
entrementes mediante artimanhas intelectuais pendentes à teologia e à metafísica,
com a imaginação sobrepondo-se à observação nas fases primitiva e medieval,
respectivamente.
O destoante é que na política teológica primitiva a imaginação
exercia-se sobre seres sobrenaturais, conquanto na política metafísica medieva
realizar-se sobre abstrações personificadas.
O mergulho mais a fundo na teoria evolucionista comteana nos
permite notar que a panacéia da ciência positiva ou da política científica deveria
educar os povos no caminho do inevitável progresso da civilização, com
preponderância da observação sobre a imaginação e com o trabalho dos grandes
195
gênios existentes. O desenvolvimento da civilização era-lhe resultado direto da
“tendência instintiva da espécie humana em se aperfeiçoar” (COMTE, 2005, p.
63).
Conjeturava o mecanismo comteano o que todos os povos
anteriores se propuseram: tentar explicar o real para melhor viver, de acordo com
os conhecimentos (físicos e metafísicos) reunidos. Pensando criar a ciência
perfeita e última, auge da civilização madura sustentada na indústria e no domínio
“sobre” a natureza e arrogando-se mais científico e veraz por ter seus argumentos
fundados na observação e não na imaginação, caiu na arapuca de seu próprio
cogitar, imaginado como último e como princípio verdadeiro das leis imutáveis
teorias metafísicas que seriam algumas das muitas possibilidades de
conhecimento a serem elaborados a partir da estruturação física da época.
Do fetiche teológico transitou-se ao fetiche metafísico, até se
alcançar o plano teórico do fetiche científico com Comte. A idéia comteana mais
obstinada, a que pregava que a era da imaginação e dos pensamentos imaturos e
metafísicos estava abolida, findou contraditada pela própria ciência positiva.
Pelas penas de Comte a sociedade do princípio do século XIX
foi assemelhada ao mais ingênuo dos sistemas primitivos que tanto se opunha: em
ambas as épocas o projeto de teorização com vistas à cosmização do entorno
detinha as marcas histórico-geográficas que a teoria metafisicamente se dizia
querer livrar por meio de elucubrações tidas por verdadeiras e perfeitas.
Comte levou adiante o corpus do pensamento teórico com sua
sociologia metafísica, superando de certa forma a filosofia metafísica de Hegel,
mas foi Marx que pela acidez de sua crítica os superou ao revolver toda a teoria
acumulada mediante a aproximação dos estudos da sociedade com o plano
concreto da contradição e da luta, retirando-os do plano idealista da perficiente
harmonia sócio-natural.
Com base no materialismo histórico-geográfico trataremos da
evolução das sociedades a partir dos modos como produziam e se reproduziam
socialmente.
196
2.1.3.1 O modo de produção comunista
primitivo132
“Ditosa a idade e afortunados séculos aqueles a que os antigos puseram o nome de
dourados, não porque nesses tempos o ouro, que nesta idade do ferro tanto se
estima, se alcançasse sem fadiga alguma, mas sim porque então se ignoravam as
palavras ‘teu’ e ‘meu’! Tudo era comum naquela santa idade; a ninguém era
necessário, para alcançar o seu ordinário sustento, mais trabalho que levantar a
mão e apanhá‐lo das robustas azinheiras, que liberalmente estavam oferecendo o
seu doce e sazonado fruto. As claras nascentes e correntes rios ofereciam a todos,
com magnífica abundância, as saborosas e transparentes águas. Nas abertas das
penhas e no côncavo dos troncos formavam as suas repúblicas as solícitas e
discretas abelhas, oferecendo a qualquer, sem interesse algum, a abundosa colheita
do seu dulcíssimo trabalho. Os valentes sombreiros despegavam de si, sem mais
artifícios que a sua natural cortesia, as suas amplas e leves cortiças, com que se
começaram a cobrir casas sobre rústicas estacas, sustentadas só para reparo contra
as inclemências do céu. Tudo então era paz, tudo amizade, tudo concórdia. Ainda
132 Marx e Engels edificaram essa teoria a partir basicamente dos textos de Maurer e Lewin Morgan (Anciety society, de 1877). Tanto que Engels escreve O marco (1882) amparado em Maurer e A origem da família, da propriedade privada e do Estado balizado em Morgan. Marx elogiou bastante a Morgan por entender que suas opiniões com as dele se cruzavam, tendo contribuído pesadamente com as formulações marxianas sobre o socialismo. Outro autor influente ao pensamento marxiano nessa seara foi o russo M. M. Kovalevsky. Cabe a ressalva de que ao tempo em que as Formen foram escritas, Marx não dispunha de profunda investigação sobre as sociedades tribais primitivas e nem sobre as civilizações pré-colombianas das Américas, visto que, até a década de 1850, detinha conhecimento apenas do comunalismo primitivo do período inicial da Europa medieval e do que restava à época, nas quatro modalidades: oriental (ou indiana), greco-romana, germânica e eslava. O fato é que quando da elaboração das Formen, os conhecimentos históricos não eram tão profundos sobre a pré-história, as sociedades comunais primitivas e América Pré-colombiana, como de igual modo eram quase nulos no concernente à África.
197
se não tinha atrevido a pesada relha do curvo arado a abrir e visitar as entranhas
piedosas da nossa primeira mãe, que ela, sem a obrigarem, oferecia por todas as
partes do seu fértil e espaçoso seio o que pudesse fartar, sustentar, e deleitar, aos
filhos que então a possuíam. Então, sim, que andavam as símplices e formosas
pastorinhas de vale em vale, e de outeiro em outeiro, com singelas tranças ou em
cabelo, sem mais vestidos que os necessários para encobrirem honestamente o que
a honestidade quer, e quis sempre que se encubra. Não eram seus adornos, como os
que ao presente se usam, exagerados com a púrpura de Tiro, e com a por tantos
modos martirizada seda; eram folhagens de verde bardana e hera entretecidas; com
o que talvez andavam tão garridas e enfeitadas como agora andam as nossas
damas de corte com as raras e peregrinas invenções que a indústria ociosa lhes tem
ensinado. Então expressavam‐se os conceitos amorosos da alma simples, tão
singelamente como ela os dava, sem se procurarem artificiosos rodeios de fraseado
para os encarecer. Com a verdade e lhaneza não se tinham ainda misturado a
fraude, o engano, e a malícia. A justiça continha‐se nos seus limites próprios, sem
que ousassem turbá‐la nem ofendê‐la o favor e interesse, que tanto hoje a
enxovalham, perturbam e perseguem. Ainda se não tinha metido em cabeça a juiz
julgar por arbítrio, porque ainda não havia nem julgadores, nem pessoas para
serem julgadas. As donzelas e a honestidade andavam, como já disse, por toda a
parte desguardadas e seguras, sem medo de que a alheia desenvoltura e
atrevimentos lascivos as desacatassem; se se perdiam era por seu gosto e própria
vontade...”
(Da ocasião em que o valoroso cavaleiro cervantino, o fidalgo Dom Quixote de la
Mancha, idealisticamente dá a discorrer, na presença de seu bom escudeiro Sancho Pança
e dos cabreiros que com eles dividem sobejos, sobre tão díspares valores e tempos que
correm entre a clássica idade do ouro e a era do ferro de cujos desagravos se lhe
antepunham como desafios a serem enfrentados)
(SAAVEDRA, 2002, p. 72-73).
198
Várias as adjetivações. Era dos modos de produção primitivo e
gentílico133, períodos de perpetuação dos espaços naturais do comunismo
primitivo, clânico, tribal, das comunidades aldeãs primitivas, das hordas
(comunidade de sangue, língua e costumes), do patriarcalismo, da Idade do
Ouro134 ou ainda das muitas outras expressões assomadas pelos dizeres no tempo.
Tiveram todas por comum um conteúdo histórico comprovado verídico, que tinha
na centralidade da reprodução comunal a preocupação ao perpetuar da vida pela
cooperação simples e interdependência solidária, concretizada através de caças
aquática e terrestre, de coleta e duma incipiente agricultura comunitária e iniciante
domesticação de animais.
Erroneamente sopesada pela ausência de situações-entidades,
pelos marxistas vulgares ou teóricos burgueses, ordinariamente se confere o
característico de tais formações àquilo de que indispõem e que se distingue das
formações sociais ulteriores, que pelo seu visor etnocêntrico as subvaloriza como
retardatárias na estrada linear do tempo. Tendo-as como: as sem-escrita, sem-
133 O modo de produção primitivo e o modo de produção gentílico não são sinônimos, embora tenham muito em comum. O primeiro concerne às sociedades paleolíticas formadas por bandos, cuja única hierarquização estável aludia ao sexo e à idade. O modo de produção gentílico, atinente aos espaços neolíticos tecnicamente revolucionados pelas práticas agrícolas e do pastoreio, é já regido pelos grupos parentais com hierarquias estáveis. A distinção político-social entre as mesmas implica no fato de que na primeira ocorriam relações de afiliação resultante das hierarquias mais instáveis, conquanto nas segundas se instalassem relações de parentesco, com hierarquizações estáveis, entretanto de poder limitado. 134 A memória nostálgica da Idade do Ouro vem desde tempos remotos. Fez-se presente em Virgílio e foi retomada na idéia político-aristocrática do socialismo de Platão. Marcou também os pensamentos de São Cipriano. Mas foi na idade moderna que o saudosismo para com a idade do ouro, a fartura natural cantada em memória de outrora, recebeu realce com a descoberta do Outro no Novo Mundo, e que foi não apenas objeto de especulação de Tomas Moro e Campanella, como base das teorias dos socialistas utópicos dos séculos XVIII e XIX (Saint-Simon, Fourier e Proudhon) e de teóricos não-socialistas que sentenciavam “reformas” (como o não-revolucionário Proudhon) ou negavam com a radicalidade onto(teo)lógica dum ideal moral e estético (caso de Weitling) a sociedade em que desiludidos viviam, perspectivando outras estruturas sociais e espaciais com maiores farturas e menores injustiças no orbe terrestre ou além, alcançável por intervenção de um agente divinal a se revelar aos homens (fio-antena e fio-terra do processo) com o escopo de reanimá-los no caminho do Bem ou por meio de um agir coletivo e solidário, dentro do capitalismo ou por fora dele, como que o esvaziando em organizações trabalhistas solidárias e entidades assistenciais e filantrópicas. Para maior aprofundamento, ver: MORO, s/d; CAMPANELLA, 2004; MARX; ENGELS, 1996; COELHO, 1980; RIBEIRO, 2001b.
199
dinamismo e de história cerrada, sem-propriedade-privada, sem-Estado e sem-
História... consideradas que são como pertencentes ao Reino da Natureza.
Como se a História apenas se principiasse com o Estado e como
se todas as sociedades devessem pertencer e se subordinar a ele que, justamente,
como aparelhagem político-institucional mantenedora da dominação classista,
deve ser aniquilado, simultânea (anarquismo) ou posteriormente (marxismo) à
tomada do poder pela classe dominada fundamental.
Por essa ótica, foram mais sábias as sociedades primitivas que
nem consentiu que o fosse arquitetado.
A história não começa com o Estado, exceto a história da
dominação regulada politicamente de maneira classista. A história é o fluxo da
prática social espacializante. Como seria possível se pensar tais sociedades como
aistóricas e aespaciais?
Inda que pedras lascadas e polidas, respectivamente inventados
no paleolítico e neolítico, entre inúmeros outros instrumentos criados, parcas
alterações efetivaram nesses primevos espaços cuja reprodução dos homens
dependia mais dos produtos da natureza do que dos advindos dos itens por eles
fabricados; condição que levou Ernest Mandel (1976, p. 23) a dizer que a
humanidade de então vivia como se fosse “parasita da natureza”.
Ao inverso também do que julga a moral burguesa atual, não são
sociedades promíscuas sexualmente. Tampouco detêm desprezível
desenvolvimento de forças produtivas, ficando a vegetar e se acovardar diante
duma suposta e terrífica natureza externa.
O que não raras vezes se desqualifica a seu respeito figura como
seus mais altos valores: despossuir Estado; propriedade privada; trabalho abstrato
(exatamente o que julgamos “livre”); desdenhar o acúmulo de riqueza; ojerizar a
produção desenfreada de sobretrabalho e sua desigual distribuição; ignorar
cidades e classes economicamente poderosas que sejam vistas como as mais
notáveis hóspedes, como se passam com os espaços citadinos ordenados pela
burguesia; desmerecimento de qualquer saber ou técnica que se ponha em
desacordo com o que a experiência lhes consentira outorgar como bem-comum,
200
inclusive porque o sistema de valores não se fazia autonomizado e contraditório
substancialmente ao coletivo (conquanto na sociedade moderna se prestigie com
status e montanhas de moedas a ciência tecnificada).
A sociedade primitiva ou a “formação primária” da sociedade
humana, como julgou Marx nas Formen135, imbuía-se em traçar as relações
internas que, de forma nada aleatória porém combinada e coordenada
administrativamente pelos reverenciados como os mais sábios (velhos), lhe
permitisse avançar na sua “ruptura” com a natureza e ingressar na “história dos
homens” mediante a apropriação comunitária do mundo.
Assim sendo, em comum acordo com a idéia apregoada de se
estruturarem como sociedades possuidoras de contradições não-antagônicas ou
sociedades sem classes sociais136, quaisquer diferenciações internas havidas,
como os prestígios e direitos garantidos por quantidades maiores de mulheres,
advinham do reconhecimento do esforço e da dedicação em prol dos interesses
comuns, em tarefas por poucos levadas a cabo por serem mais danosas e penosas.
Outras diferenciações internas correspondiam às questões das
confrarias secretas masculinas, do sexo, idade, troca de signos e de mulheres, das
relações de parentesco, do prestígio social, permuta de bens raros ou de
subsistência, como igualmente nas disposições sobre direitos de se atravessar
determinados espaços ou de se utilizar determinado veio aqüífero, dentre outras
distinções insuficientes à quebra dos laços comunalistas, tendo-se em conta que os
135 Nesta obra, Marx propôs-se a traçar o conteúdo e o progresso da história humana na sua forma mais geral, revelando essencialmente o fato de que (a) as relações sociais de produção correspondem ao estágio do desenvolvimento das forças produtivas, (b) o que acaba gerando o constante conflito entre forças produtivas e relações de produção, podendo-se então ocorrer (c) os períodos de revolução social, que são exatamente aqueles em que as relações de produção entram em choque com as forças produtivas. Ao contrário de Hegel e não obstante as lacunas, Marx apresenta um modelo teórico com possibilidades lógicas latentes erguidas à luz dum materialismo em franca progressão, não se perdendo em tautologias vazias por estar munido dum raciocínio amparado no silogismo da compreensão. Procedimento que leva Hobsbawm (1975, p. 22) a desautorizar opiniões que queiram fazer das Formen simples obra de dedução, defendendo-a como resultado de intensa observação. 136 Srour classifica os modos de produção não-classistas como: modos de produção primitivo e gentílico; modos de produção segmentários; modos de produção comunal e comunalista; modos de produção participacionista e gestionário; modos de produção patriarcal e solidarista; modos de produção socialista e comunista. Não empregaremos a rigor todas as distinções por ele explanadas e, mais adiante, citaremos nosso ponto de discórdia para com a teoria adotada por esse autor.
201
valores culturais não se distavam e nem se distorciam perante os valores
materiais.
Não importa o nível das tensões endógenas, conflitos sexuais ou
discordâncias momentâneas havidas, se oportuno fosse, tudo se resolvia
internamente com mediação dos mais sábios, o que praticamente dispensava a
coerção como fator de resolução de contendas.
Inexistiam nessas estruturas sociais situações privilegiadas de
propriedade (proprietário), poder (potentado) ou mistificação (reitor).
Os “maiores” ou os chefes poderiam até possuir alguns direitos
a mais. Todavia estes decorriam dos deveres maiores prestados, de tarefas não tão
impossíveis de serem executados por outros candidatos à titularidade, o que
tornava as proficiências e a hierarquia137 bem mais instável nessas sociedades
não-capitalistas138. A cisão intragrupal é evitada porque mesmo os mais fortes,
ágeis, belos, resistentes e portadores de melhores proficiências sensoriais
(auditiva, visual, etc.) dependiam numa ou outra situação dos cuidados do bando,
quando da ocasião de doenças ou acidentes.
As pilastras essenciais pelas quais se faziam estruturadas tais
sociedades foram por Engels identificadas a partir das características da (a)
apropriação comum dos solos e dos (b) laços de parentesco, com os quais a malha
social fazia-se organizada e dinamizada pela primeira divisão do trabalho
137 Devemos saber discernir historicamente o fenômeno social da hierarquia, pois a não-generalização abstrata da hierarquia como sempre fenômeno maléfico tem respaldo na própria história dos povos ameríndios de antes da colonização, de quando se estruturavam em segmentos sociais interdependentes e diferenciados de maneira não-coercitiva. A hierarquia em-si talvez não deva ser em tudo e a todas as latitudes, espaços e sociedades, ponderada por fenômeno unicamente lesivo (e talvez esse seja um dos equívocos dos movimentos sociais e dos políticos pós-modernos que defendem a tese da rede de relações horizontais como mais condizente ao cenário político do mundo pós-Stálin). O que traz-nos à mente o conselho de Engels (1981) à não aversão a toda e qualquer forma de poder social, de que eram partidários os anarquistas. Conforme crítica de Marx a Morgan, a simples existência da hierarquia não fora responsável, aliás, pela oposição entre os chefes das gens e os membros comuns das gentes: as classes sociais tiveram origem no conflito de interesses entre os chefes das gentes (que se apropriaram de casas, gados e terras sob a fórmula social das famílias monogâmicas) com os membros comuns das gentes. 138 Na classe dos modos de produção não-capitalistas há autores que incluem não apenas os modos de produção pré-capitalistas como os modos de produção pós-capitalistas coetâneos ao capitalismo, como as diversas formas de socialismo consolidadas no século XX (socialismo real, de Estado ou monopolista). Porém, as características instáveis de hierarquia e de poder entre os primeiros mudam totalmente de feição com os últimos.
202
conhecida: a sexual (ENGELS, 2005). Opinião diversa da que costumeiramente é
acatada, de tê-la sido a familial a primeira divisão do trabalho havida.
As dessemelhanças internas não liquidavam a solidariedade
orgânica, o formato social combinado coletivamente.
Não é preciso que para se asseverar a coesão se tenha que se
acreditar na opressão latente. Ou então advogar tese avessa: como a idéia da
horda-protoplasma-social aludida pelo Durkheim, em cujo reino da amorfia
inexistiria qualquer divisão de atividades, nem mesmo pelo sexo, com a total
partilha das maneiras de agir, pensar e sentir se manifestando.
Outro equívoco usualmente cometido consta na imputação da
divisão do trabalho a partir do parâmetro biológico, que faria subalternizar e
inferiorizar o sexo feminino ante o masculino por conta dos atributos físico-
corpóreos, porquanto sabermos terem sido comuns casos de mulheres a
desempenhar atividades pesadas e essenciais em algumas primitivas sociedades,
camponesas ou índias.
Tais teses são empregadas para (re)embaralhar a teoria,
recolocando a questão da hierarquização e do domínio sob a chancela do sexo ou
de algo imutável à Natureza Humana, no entrepor dos espaços e no entrecruzar
dos tempos.
Rebatemos tal tese, embora reconheçamos a inevitabilidade do
destino de tarefas específicas às mulheres, como: dar à luz, amamentar e cuidar
dos filhos em suas primeiras fases. No entanto, a qualidade das tarefas e a
destinação sócio-sexual variam conforme a sociedade e as condições técnico-
materiais alcançadas.
Desempenhar atividades mais ou menos prestigiadas não
representava obrigatoriamente a minoração social de seu valor e do papel do sexo
no coletivo.
Lembremos que sobre as mulheres recaia a função da
reprodução natural dos membros. Obrigação que não apenas as valorizava como
lhes concedia destacado valor no corpo social, mesmo que efetivamente não
participassem do grupo de comando, regularmente presidido por homens. Há
203
casos históricos relatados de mulheres que para atingir seu objetivo, sabedoras da
importância social que dispunham, se retiravam da comunidade até que suas
reivindicações fossem acatadas. A mulher era um bem social de suma importância
nesse determinado ponto do desenvolvimento dos meios de produção. Dela
dependia a geração da força de trabalho que garantiria a perpetuidade coletiva,
haja vista que os meios de produção eram quase sempre simples e extensão da
mão humana, dependendo a reprodução social mais dos meios de produção
oferecidos pela natureza do que os meios de produção que fossem produtos do
engenho do homem. Com técnicas e instrumentos não tão avançados, a força de
trabalho (o que hoje se costuma denominar de trabalho vivo) é que era o
substancial.
A relativa superioridade masculina fundeava-se na lide da caça e
nas situações igualmente arriscadas das guerras e a proibição do incesto e a troca
de mulher eram realizadas quando o seu valor de uso excedesse as necessidades
comunitárias; situações que reforçavam o controle sexual, as relações
intercomunitárias, prestativas e associacionistas instituídas pelos homens.
O intercambiar das mulheres destarte deve ser contextualizado à
realidade histórico-geográfica do desenvolvimento das forças produtivas e do
nível de organização social, vez que o próprio robustecer da comunidade
acoplava-se à prática da exogamia (Compreensão distinta das representações do
atributo ideológico da “moralidade” burguesa que tenta ver nisso alguma
protomercantilidade, obscenidade ou promiscuidade social-sexual inata). O
realizar da troca correspondia à estrutura produtiva, com o tabu do incesto
podendo ser qualificado como uma das coberturas de valores da superestrutura.
Noutras palavras, para o bem comum de homens, mulheres, crianças, jovens e
idosos, eram sancionadas as regras para gerenciar a vida comunal e as relações
intercomunais consumadas nas práticas do parentesco.
Tal procedimento põe em transparência que a condição do grau
de desenvolvimento das forças produtivas opera e se mensura pela organização
das relações de trabalho que, com os meios de produção, indicam o formato que
204
assume a divisão do trabalho socialmente combinado, e que, ao ser estimulada e
recomposta, fecunda e vivifica a produtividade.
O reposicionar das relações de trabalho implica em
diferenciações e discriminações jamais impostas coerciva e alienadamente porque
nessas sociedades o trabalho não se descola do coletivo.
O relativo consenso existente entre os antropólogos sociais
quanto à subordinação política do agregado feminino ao masculino deve-se à
constatação do modo comunitário de produzir e gerir.
Primeiramente, está no cuidar da prole uma das imposições às
mulheres à necessidade do sedentarismo sob guarda do homem, liberando a
maioria deles à aventura cinegética coletiva.
Estribado nas necessidades-possibilidades materiais, como
segunda condição, a cisão das atividades econômicas (homens a caçar de forma
coletiva e mulheres a coletar de modo individual) repercute nas relações entre os
sexos no âmbito político-cultural. Opera-se então um maior estreitamento e
institucionalização das relações masculinas, enquanto as femininas tornam-se
mais frouxas e episódicas por conta do sedentarismo e da tarefa produtiva que as
deixam mais isoladas espacialmente em relação aos fazeres do sexo oposto; mas,
apesar de relativamente isolados e espacialmente apartados, a distribuição dos
sujeitos se dá mirando sempre a cooperação, para que se garanta o propósito da
reprodução da vida grupal.
Essa a geografia do trabalho desse modo de produção. A relação
sexual bilateral associa-se à divisão funcional entre espaço de trabalho e espaço
do além-trabalho, que dirigia práticas e afazeres tanto no que se dimensionava à
produção direta (segmentação combinada das práticas homem-mulher) como à
organização política (fixação de diretrizes, códigos e regras sociais e
estabelecimento de relações intercomunitárias), religiosa (preparativos com a
ritualização, oferendas, etc.) e cultural de forma geral (espaço-tempo ritualísticos,
comemorativos, etc.).
Nem a muita distância a divisão dos sexos então havida
equivaleria às vindouras classistas. As sociedades primitivas são regidas pela
205
complementaridade de sexos que produzem conjugadamente ao bem comum, com
base no que se consegue histórico-geograficamente examinar e cotejar como o
mais orgânico. A subalternidade está relegada ao plano do parentesco, ainda que
as atividades produtivas masculinas gerem habilidades e códigos distintos:
fenômenos que acabam por respingar no comportamento interno à comunidade,
sem deformá-la na substancialidade do conteúdo societal.
O mundo social feminino é mais disperso que o masculino por
que os espaços econômicos de produção se distinguem escalarmente, detendo os
homens conhecimentos mais amplos sobre outros locais, sobre territórios hostis,
animais, plantas, paisagens, entre outros elementos.
O pensar (simbolizar, representar, significar) e atuar sobre
espaços às mulheres desconhecidos outorgava-lhes a primazia de ocupar espaços
de decisão política e organizacional peculiares. O traçar do rumo que o corpo
social deveria seguir era ditado pelos homens, mas de forma não descolada do
comunal, pois eles não eram Maiores ou Proprietários de tudo: “proprietários” dos
meios de troca, da administração, da regulação, da indagação ou da cognição.
Desposado de usurpação dos trabalhadores diretos pelos
Maiores, nesse modo de produção ficava ausente a troca dos bens de subsistência
ou bens matrimoniais pela influência dum poder superior e desconexo. Inexistia
injusta distribuição de mulheres porque os jovens, como força guerreira
desiludida, poderiam se retirar para outra comunidade que os acolhessem melhor.
Da força que gozavam as mulheres, dispunham igualmente os jovens e os demais
segmentos sociais internos, imprescindíveis cada qual ao bem comum.
Disputas, contradições e competições internas não punham sob
risco os bens de subsistência. A desigualdade é mantida à distância porque tudo
que se crê serve à maximização da satisfação humana e não a apodrecer sem
proveito à comunidade. Quando havia, a competição dava-se sobremodo na esfera
da circulação (prestígios e bens raros) e não como intento de concentração de
meios de produção e muito menos para fortalecer hierarquias (como o que se
verifica nas sociedades classistas).
206
Dadas às dissimilitudes, é provável existirem níveis psíquicos e
comportamentais diferenciados entre os sexos: o homem tido como caçador,
nômade, explorador e agressivo e a mulher como terna, coletora, sedentária,
rotineira e pacífica139.
As mulheres, por essa e outra série de questões, conciliam-se a
uma situação social na qual não chegavam a serem subvaloradas,
significativamente minoradas. Nas sociedades patriarcais em que a autoridade se
fazia exercitada pelo chefe em sintonia com o conselho administrativo dos
anciãos, as mulheres se tornavam bens raros a saciar a poliginia dos chefes tribais
devido às necessidades de relações de parentesco e por motivo do reconhecimento
coletivo das funções que desempenhava a chefatura. Além dessas considerações,
era por meio dessa estrutura social que se fazia controlado o erotismo, a libido ou
o orgasmo feminino, que poderiam pôr em xeque a fraternidade viril dos homens
caçadores e guerreiros que necessitavam de coesão grupal, coibindo-se
concomitantemente a possibilidade das funções femininas serem desviadas de
seus deveres na divisão técnico-sexual do trabalho.
Havia uma subjetividade que se combinava com a materialidade
das condições objetivas vivenciadas. O espaço-subjetivo-individual dos membros
das comunidades primitivas em muito se desdobrava do espaço-objetivo-social
esteado pelas condições materiais de produção e organização social.
Realizava-se a união harmônica indivíduo-coletividade. Sem
querer com isso afiançar a inexistência de diferenças ou de certos níveis de
contradições ou oposições embrionárias nas comunidades naturais, cujas
organizações não-classistas se embasavam no que Lefebvre alcunhou de
“desigualdades individuais” (1981, p. 58). De modo algum tais distinções se
punham como coercitivas e tão menos como discriminação pseudocoletiva: as
diferencialidades não se encontravam armadas antagonicamente, ameaçando a
coletividade. Antes, tratava-se duma forma específica encontrada pela sociedade
para tentar resolver a questão da sobrevivência e reprodução comunal. 139 Essa não pode ser vista como regra absoluta, já que mulheres comprovadamente desempenhavam atividades e atitudes mais agressivas em variadas sociedades primitivas – e por muito tempo lendas de mulheres guerreiras, como as das amazonas, se fizeram perpetuadas.
207
A variabilidade das funcionalidades individuais casava-se com a
irmandade orgânica do coletivo. O que oportuniza que essa fase seja tipificada
pelas organizações fraternais, igualitárias e de comum liberdade, com que se
deleitavam os componentes dos povos antigos.
Em compasso com o estágio de desenvolvimento da base
material produtiva, regulador do padrão populacional e dos níveis técnicos, todos
os que constituíam as comunidades primitivas tinham função específica
estabelecida pelo fator sexo e idade, no qual o bem de cada um e o do grupo se
reconheciam e se solidarizavam. A subordinação e antagonismo não existiam pela
óbvia razão de que organizando internamente as atividades do grupo, com maiores
chances, menor esforço e maior agilidade, cumpririam todos com as obrigações da
reprodução comunal.
Inexistindo classes, vigorava a divisão organizativa e não-
antagônica da comunidade pelo concretizar dum ordenar espacial em que os
valores do indivíduo e o do grupo se reconheciam com o ambiente ocupado;
ambiência que, mais que pelo atributo técnico, participava da vida cósmico-
espiritual da tribo pelo nível de simbolismos presentes.
O espaço é construto desse modo de produzir, viver e
reproduzir, fazer e pensar manifesto na cotidianidade única da temporalidade-
espacialidade por eles forjada. Espaço desconhecedor de cesuras entre público e
privado (como comprovam o habitar coletivo dos índios e a noção de família que
possuíam, em que a única substancial diferenciação havida condizia com a
qualificação do que eram espaços sagrados e de culto e os que, porque
desconhecidos, se faziam espaços ocultos, temidos, rechaçados e reconhecidos
como caos – visão da caoticidade imanente ao ignorar do grupo, de seu nível
técnico-instrumental de apropriação material e cognitiva do entorno, por outros
povos podendo ser interpretado inversamente).
O trabalhar transparece como atividade vital coletiva e
cooperada a partir da divisão social do trabalho, com cada um individualmente, e
todos simultaneamente, desenvolvendo atividades consideradas adequadas ao bem
viver grupal, nas várias esferas do social.
208
A manifestação de qualquer excedente não causa abalo na
estrutura econômica do grupo, da comunidade não se apartando ou sobrelevando-
se porque além de acidental ou esporádico punha-se imediata e irrefutavelmente
ao consumo de todos como excedente concreto, fruto do trabalho livre e
autodeterminado produtor de valores-de-uso, em um espaço natural calcado na
economia natural cujo espontâneo desenvolvimento natural (naturwüchsig)
fincava-se na propriedade comunal da caça e da coleta ou na eventual produção
agrícola, com o plantio no laboratório natural (terra) ocorrendo sem distinção
entre meios de trabalho (Arbeitsmittel) e objetos de trabalho, donde qualquer
produção a mais se punha ao salto quantitativo e qualitativo do padrão coletivo do
modo de vida.
A relação produção-distribuição unia a relação comunidade-
natureza em razão da sabedoria de quem pretendia com a “natureza” estar sempre
interatuando e usufruindo, até porque ampla gama dessas sociedades (como as
americanas pré-capitalistas) concebia os elementos animais vivos da natureza
como humanidade de parentesco cósmico.
Intuitivamente, os povos primitivos comprovam profundo
conhecimento e sabedoria sobre o fato de a natureza humana depender da natureza
envolvente. Miticamente, os primitivos se vêem como entes criados por um Ser
divino que os dotou de qualidades diferenciadas para melhor viver sem que se
recorresse a abusos e disparates. Enlevava-se destarte sobre o alicerce da
economia comunalista primitiva o cipoal cultural-representativo encorpado em
reificações interpretativas que, de forma espontânea, inocente e sincera,
decorrentes do nível de compreensão histórica por todos partilhada, amparava-se
na relação equilibrada entre trabalho, recursos, tecnologia, população e
conhecimentos adquiridos.
Anseio e angústia não havia à geração de excedentes e como a
prolongação do tempo de lazer era o objetivo social central e a produção ao uso
social se dimensionava, com a “troca” o mesmo se efetuava, situando-se como
meio de realização da vida.
209
O sobreproduto é eventual. Não havia noção de trabalho
abstrato, de excedente abstrato. O trabalho, quando excedia a necessidade,
incorria de modo a ela urdido, repartindo-se o excedente com os vizinhos e
parentes nos consumos realizados nas cerimônias, festas, convites, visitas
estrangeiras, entre outras ocasiões comemorativas, e também por que se a
experiência demonstrou-lhes certa vantagem com a produção a mais o fora como
o minimamente suficiente para cobrir os flagelos naturais, as intempéries
climáticas ou as pragas que danificavam a colheita agrícola e os meios necessários
à reprodução comunal (com a produção a mais sendo convolada a posteriori ao
uso).
A riqueza nas trocas primitivas correspondia à totalidade de
necessidades, capacidades, prazeres e forças produtivas, que desenvolviam o
domínio sobre a sua natureza e com as forças naturais com as quais atuava, com o
propósito do incremento do desenvolvimento e engrandecimento humanos
efetuados por meio da partilha, pois da doação recíproca e da troca se garantiria a
condição de reprodução comunal e intercomunitária, que, nos casos de invasões
deflagradas por grupos estranhos, agiria como bloco parental e orgânico duma
força única.
A partilha econômica e a paridade política constituíam o caudal
que regava a unidade através da forte parceria. Pela partilha se garantiria a coesão,
do oferecer se firmava o receber quando requisitado fosse, dando-se com a certeza
de que mais adiante se receberia, aumentando a confiabilidade e o respeito
mútuos140.
Frugalmente alterado pelas técnicas dos homens, contra a
delgadeza dos espaços primitivos e às limitações ambientais é que se assentavam
as relações de repartição, como co-auxílio generalizado para resolver os 140 Vários antropólogos fornecem provas sobre a cultura coletivista e solidarista das sociedades primitivas: Margaret Mead comprovou que os papua dos Arapech realizavam grandes festas para todos, para que a colheita fosse coletivamente consumida e a concentração da riqueza evitada. Asch, ao estudar os Hopi do sul dos EUA, mostrou que eles praticavam esportes sem vangloriar o “vencedor”, condenando moralmente a competição entre os indivíduos. Outros estudiosos, por sua vez, fornecem provas de que o uso da terra para a agricultura geralmente efetuou-se entre os povos primitivos por via de distribuição rotativa, para que não houvesse exclusivismo e instituição da propriedade privada (MANDEL, 1976, p. 15-16).
210
problemas de reprodução natural e demográfico; se não suficiente, recorria-se ao
infanticídio como uma das soluções.
Havia por isso uma redistribuição simples, na expressão de
Barry Hindess e Paul Q. Hirst. Ou uma reciprocidade generalizada, para Marshall
D. Sahlins.
Conforme importantes observações de Claude Lefort no texto A
troca e a luta dos homens, trocavam-se não só “bens, riquezas móveis ou imóveis,
coisas úteis economicamente” mas notadamente “gentilezas, banquetes, ritos,
serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas” e ainda que existisse a
imanenticidade da obrigatoriedade na troca, o seu fundamento social excedia o
econômico por estar em xeque o crédito do homem no homem pela troca;
ademais, possuía a troca um valor mágico ligado a acontecimentos do existir
social considerados essenciais, como: as grandes expedições, o casamento,
nascimento, circuncisão, puberdade, doenças, ritos funerais, etc.
A troca tem sobretudo um valor moral, no sentido de que os homens buscam nela a razão de sua concordância e de seu prestígio pessoal. Aquele que não se dá, que recusa tomar ou retribuir é logo tido como inimigo ou como escravo. De resto, muitas vezes a troca não se traduz por nenhum benefício para as respectivas partes (In: ESCOBAR, C. H. [org.]. O método estruturalista. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 66-67 apud SROUR, ob. cit., p. 328, nota de rodapé no 18).
No que concerne à paridade política, vemos que nas sociedades
primitivas operavam-se relações de afinidade de modo bastante instáveis,
baseadas no sexo e na idade, e apesar disso com uma autoridade bastante limitada;
conquanto nas sociedades gentílicas ocorressem relações de parentesco com uma
hierarquização já mais rígida, que destacava os chefes e “maiores” dos demais
devido aos atos em prol do bem-comum, em atividades produtoras de bens raros e
de subsistências com um labor mais penoso. O ponto de encontro entre ambas as
sociedades está na não-segregação total dos “maiores” e prestigiados dos demais,
sem exploração de uma minoria sobre a maioria e nem incidência de autoridades
com poderes ilimitados e alienados da sociedade.
211
Razão pela qual Marx retratou o homem primitivo nas Formen
como ser genérico, o animal de rebanho que não se individualizava (vereinzelt)
mediante o processo histórico. O homem reconhecia-se com o grupo e com a
natureza a qual pertencia, como se compusessem uma unidade. Será a troca que
individualizará o homem, prendendo-o ao mecanismo desumanizante altamente
danoso a si e ao coletivo, emparedando-o numa individualização unilateralizante,
cerceadora da generalidade ontológica da potencialidade hominizante.
À unidade social alia-se a unidade espacial, proporcionada pela
ausência de cercas e de propriedade privada, pois a terra é coletiva e inexistem
clivagens territoriais do tipo espaços público/privado.
Não havendo segregações sociais e espaciais, igualmente falta o
trabalho abstrato. O trabalho é meio de reprodução da vida, mantenedor das
atividades vitais e da comunhão com as forças da natureza. Longe está de espúria
disputa por apropriação formal, por domação e submissão141. Toda a extração dos
frutos que o ambiente proporcionava era acompanhada de exaltação da
prodigalidade havida, com o cuidado devido para que o equilíbrio comunal-
natural se conservasse; por isso que sobreprodutos oriundo do trabalho excedente,
conseqüência da benção destinada aos deuses, se faziam divididos intra e
intercomunalmente com todos os que eram mantidas relações sócio-sexuais
através das grandes festas regadas pela abundância da dadivosa natureza;
inclusive por conta da inexistência de pavor ante as calamidades naturais e porque
a reposição e expansão dos meios de produção eram irrisórias, não havendo
igualmente uma avançada divisão social do trabalho (com educadores, religiosos,
agentes de saúde, administradores, etc.) e nem gastos específicos que precisassem
satisfazer trabalhos desligados da produção direta (como o que se passa com o
modo de produção capitalista).
141 Recordemos a observação de Pierre Castres em La société contre l‘État (1974), sinalizada por Srour, de que vários povos, dentre outros os tupi-guarani e os nômades do deserto de Kalahari, por meio da divisão do tempo de trabalho equivalente em termos sexuais, trabalhavam dois meses em quatro anos e que, por meio do tempo médio estimado, ocupavam menos de quatro horas diárias com as obrigações produtivas, o restante destinando-se ao ócio.
212
O tempo é tido por lento e o espaço por fechado ou mais
propriamente por delgado, trançado à exclusiva reprodução orgânico-material do
grupo e sem que houvesse intenção do progredir material que trouxesse o
interesse por mais elementos materiais e de subsistência que não os que já se tinha
por costume (cultura) de cultivar. O que não significa crer que fosse prescindível a
dinamicidade da relação têmporo-espacial, nem que a história e a geografia desses
povos não pudessem ser refeitas: a curiosidade leva à descoberta e esta a novas
noções e necessidades culturais (saber vem do sabor, do experimentar).
Não havendo razão para o mais abstrato se perseguir e nem
motivo que valesse o desgaste persuasivo a mover os agentes, prestava-se o
trabalho a reconhecer-se como meio de reprodução biológica do gênero humano e
alicerce de humanização do ser nessa fase em que se encontra o modo de produzir
organizado. Dimensão concreta de produção de bens socialmente necessários à
reprodução comunal é como se apresenta.
Se certa relação de propriedade em algumas dessas sociedades
se instalou, não o foi em seu sentido individualista, como propriedade privada.
Havendo, no mais, a relação de propriedade que o indivíduo possui para com as
suas condições objetivas de trabalho.
A propriedade comunal está a espelhar a forma como se
arranjava a divisão econômica do trabalho, numa funcionalidade comunal
fundada no desenvolvimento igualitário-combinado. (Privando-se de hierarquias
compostas por indivíduos não-trabalhadores que vivem do excedente social
alheio, como ocorrem com as sociedades classistas)
Então, com a função de ao homem servir, a forma concreta do
trabalho com ele identifica-se sem fetichismos e alienações ideologizantes.
(Privando-se da estrutura propositadamente armada por camadas hierárquicas que
roubam a cena, noutras formações sociais, com vistas à circularmente domar o
processo sócio-metabólico dos homens entre si e com a natureza, já exteriorizada,
subordinável e rivalizante)
213
Ao se perder a lógica e o conteúdo desse tipo de sociabilidade
passa-se às outras fases (não propriamente subseqüentes) da evolução do homem,
reputadas por Marx como etapas da pré-história humana.
Das formações primitivas e gentílicas fundeadas nas relações de
parentesco e na propriedade comum e temporária do solo (formação primária)
transita-se às sociedades de classes enlaçadas à propriedade privada (formação
secundária).
Mudando-se a base material da produção altera-se a
imaterialidade superestrutural reguladora das sociedades. Modificam-se as
espacialidades, noutras palavras.
Passemos então a tratar das sociedades relativas ao...
2.1.3.2 O modo de produção “asiático” ou
oriental
Divulga-se que Marx não se deteve inicialmente sobre esse
modo de produção, vindo somente a fazê-lo a partir de 1853 quando se dispôs ao
estudo dos modos de produção material de sociedades não-classistas para além do
solo europeu com o objetivo de que compreendesse as especificidades
características à transição societal que apenas em Europa se operou e que
brevemente se arrumava sob o crivo do feudalismo. Superando o que estudou em
Hegel, na fase em que se achava exilado na Inglaterra Marx pôde aprofundar
estudos sobre a China e a Índia, desenvolvendo profundo conhecimento sobre as
sociedades asiáticas.
Apercebeu-se Marx que o modo de produzir capitalista
encontrou no feudalismo europeu a condição uterina e nutriz essencial ao seu
exibir, contrariamente às peculiaridades letárgicas imperantes nas “sociedades
asiáticas” (ausência de classes, de propriedade privada, de mercado livre, de
estruturas de corporações, etc.).
214
Notando haverem disparidades substanciais entre os modos de
produção oriental e o feudal europeu, Marx relevou a existência da estagnação
econômico-social dos orientais como frutos da ausência da propriedade privada,
pela ocorrência da propriedade estatal do solo (cabendo ao Estado gerenciar a
agricultura e a organização pública) e por existir a qualidade da imutabilidade
política, resistente às lutas dinásticas e guerras militares.
Intrigava a Marx as disparidades havidas entre esses dois modos
de produção: as razões que justificavam um Estado superdesenvolvido e uma
“sociedade civil” subdesenvolvida nas sociedades orientais, em contraponto à
“sociedade civil” mais desenvolvida que o Estado na realidade servil ocidental.
O rótulo de “sociedade asiática” é bastante enigmático e talvez a
generalização precoce de alguns elementos tenha gerado mais problemas que
elucidações.
Imenso guarda-chuva. O modo de produção asiático comporta:
(a) desde as primeiras formações humanas havidas em várias partes do globo a
distintas épocas, (b) que de modo independentes já caminhavam à constituição da
ampla sociedade civilizada, (c) tendo como características centrais a segmentação
entre as esferas pública e privada, (d) a divisão entre trabalho comum e trabalho
social, (e) a existência de monarquia absoluta gerindo as comunidades aldeãs
dispersas e (f) o fato de existirem populações que nem na alcunha de camponeses
livres ou de escravos se enquadram (segundo o molde greco-romano antigo).
O modo de produção asiático foi por Marx avaliado como não
confinado ao Oriente e em África e América pré-coloniais outrossim se
concretizando.
A proposição marxiana de que os elementos constitutivos do
modo de produção asiático são as comunidades aldeãs isoladas e auto-suficientes,
que vivem do uso comunal da terra, acenderam variadas controvérsias. Como nas
sociedades asiáticas é o Estado despótico e centralizado quem comanda a
sociedade e organiza o espaço, edificando obras e distribuindo a água que irriga as
culturas, fica-se indiretamente com a impressão de que o despotismo do Estado
abrolha da carência que possuíam tais sociedades em dispor de técnicas e em obter
215
resultados por meio da produção. As perguntas: o que ou quem aí é o Estado?
Como surgiu? A quem servia? O Estado não consta como aparelho de opressão de
uma classe por outra, reproduzindo a sociedade e a si próprio a partir da captura,
distribuição desigual e concentração do mais-trabalho alheio? O Estado pode ser
explicado, como sugere esse modo de produção, unicamente pelas benesses da
proteção e da conquista ou como provedor de obras de engenharia pública? Teria
a noção de Estado ou de dominância aí que ver com o princípio do mal, da
cegueira e do costume social a que aludem La Boétie?
Arquitetado e gerido despoticamente, o mais certo é que a
conformação que recebia o espaço das castas dominantes (prelúdio das classes
sociais) não chegava a ser seriamente ameaçada pelos subordinados e dependentes
das garantias de segurança estatal: segurança econômica com a irrigação e
segurança social com a proteção militar, em essência.
Socialmente não totalmente livre e de certa forma coagido nas
sociedades orientais, presta-se o trabalho à manutenção dos estratos
predominantes em:
Impérios do Oriente: aos soberanos e seus asseclas;
América pré-colonial: aos chefes políticos dos impérios índios, como o da
região mesoamericana do México ou na porção ocidental do continente sul-
americano, particularmente.
Antes que ocorresse de o modo de produção asiático ser
debulhado pelo sistema capitalista que ao Oriente foi arremessado pelos punhos
do império inglês, duas basais características destacaram-se no trabalho das
comunidades aldeãs do modo de produção oriental:
Caráter de vínculo por hábitos e sentimentos internos às comunidades aldeãs;
Atitude de obrigação, pelo qual se realizava a captura da mais-valia pelos
aparelhos de Estado, para a execução do provimento dos estratos superiores e
realização das grandes obras hidráulicas – não à toa alguns autores terem
216
designado sociedades como a da Rússia czarista, a China dos Sung, o Egito
dos mamelucos, a Espanha islâmica, a Pérsia e o Havaí, por exemplo, como
“sociedades hidráulicas”.
Não obstante a riqueza ser apropriada socialmente pelo Estado
despótico, o trabalho é coagido e o pagamento de tributos ato forçado nas
estruturas das cidades-Estados antigas. A obrigatoriedade tinha contudo a
contrapartida social por todos conhecida, relativas a atos de engenharia, ações
belicosas, religiosas e cerimoniais de vários tipos que contribuíam à manutenção
da identidade comunal e reprodução econômico-social de determinado povo
diante dos demais.
Trata-se dum sistema que indispõe de propriedade privada de
terras. Como no sistema oriental (e de forma modificada no eslavo), a propriedade
das terras é comunal, tribal e direta, como se fossem espécies de unidades
agrícolas e manufatureiras auto-suficientes garantidoras da reprodução dos
indivíduos na aldeia com o pagamento de tributos ou produtos excedentes ao
governo para que se cuidasse da defesa/ataque, de serviços religiosos e de
questões de importância estratégica à economia e ao espaço (irrigação,
comunicação, etc.).
A estrutura econômica dessas unidades comunais possuía
natureza “fechada”, encravada no meio rural, porque tão-só em menor plano
surgiam cidades de cuja localização se utilizava os týrannos para comerciar com o
exterior ou realizar trocas de produto excedente por trabalho com os sátrapas
(governantes de províncias), excedente que na expressão de Marx figurava como
fundo de trabalho.
Hobsbawm assevera que o sistema asiático não equivale ao de
uma sociedade de classes, no máximo corresponderia à “forma mais primitiva” e
não ao sistema de classes “plenamente constituído” (1975, p. 36, 38).
Orientado à criação e apropriação de excedente social, nota-se
haver um avanço no nível da cooperação das relações sociais desde a época das
sociedades sem classes.
217
Se se produzia nas sociedades sem classes com vistas à
reprodução da vida por meio de caça e agricultura comunitárias baseadas na
cooperação simples e à comunidade adstrita, nas sociedades que poderíamos
talvez ter por protoclassistas, mais apropriadamente as concernentes ao modo de
produção asiático, a cooperação atinge um nível maior de complexidade e de
escala, como o verificado entre a soberania asiática, do antigo Egito e com os
etruscos. Não importa se secundariamente, o trabalho que garante a subsistência
de todos é forçado à produção de mercadorias (valor-de-troca) a serem cambiadas
com outras comunidades; para não mencionar a prestação de serviços e geração de
excedente (renda-da-terra e tributos) devida aos integrantes da camada superior do
Estado. Ainda que inexistisse classe social hegemônica que se utilizasse do Estado
e tampouco se observasse tendência descontrolada por geração de sobretrabalho,
como costumeiramente se nota em sociedades de classe, os privilégios dos
superiores já mais descolados da base social humana e o despotismo no trato do
corpo social anunciavam diferenciações implicitamente divisórias à evolução
experienciada por esses cantos.
A dificuldade entretanto para caracterizar a sociedade asiática
comprova não apenas porque Marx demorara a iniciar o seu trato como o fato de a
maioria dos marxistas preferir abandoná-la, quando não rotulavam as sociedades
que viam pela frente como escravistas ou feudais (como se fez com as sociedades
africanas e americanas).
Nesse ínterim, aboliu-se não só o modo de produção asiático
como os que, por ventura, pudessem vir à tona pelo prosseguimento dos estudos
nessa senda. Comprova-se com isso que o stalinismo e certas correntes ou autores
do marxismo encontravam-se embebidos pela visão unilinear, para aquém da
teoria marxiana142, a ponto de as atenções neopositivistas popperianas, dentre
outras, se porem no dever de criticar.
142 Rememoremos não apenas a reflexão de Marx sobre a discussão existente sobre o modo de produção que repousava sobre a Rússia (se feudal, capitalista ou asiático) mas sobremodo a sua reflexão sobre a viabilidade de a revolução vir a ser implantada nessa sociedade, naquelas comunidades mais isoladas que não se achavam suficientemente impregnadas pelas relações capitalistas de produção, ou, por outro lado, se a especificidade do modo de produção “semi-asiático” imperante na Rússia serviria mais como freio ao desenvolvimento político conducente ao
218
Podemos pensar sinteticamente que, num primeiro momento, a
formação espacial da sociedade asiática parametrou-se em trabalho e organização
sociais cujas forças produtivas teriam por função engendrar sobreproduto via
trabalho manual coagido e alienado (indiretamente obrigatório) a partir da forma
da armadura social modelada na propriedade privada dos meios de produção
(terras e instrumentos) e na efusão da aceitação ideológica do status quo. Como se
ao lado dos Estados dinásticos houvessem classes política e juridicamente
enraizadas para movimentar a engrenagem que compunham grosso modo a
estrutura da arquitetura societal, no qual o processo de reprodução far-se-ia, num
primeiro olhar, contraditoriamente enlaçado entre possuidores e dominados em
regimes disfarçados e legitimados por forças “militares” e mítico-religiosas.
Um olhar mais acurado revela no entanto que o que foi muitas
vezes considerado como o estado de “escravidão generalizada” torna-se
insuficiente para caracterizar as sociedades asiáticas como que estruturadas em
classes sociais. Tom Bottomore, polemizando o enunciado marxiano-engelsiano
que atesta que o sistema de castas das sociedades asiáticas se constituiria no
pródromo ao surgimento das classes sociais, lembra que as especificidades
existentes na China, Pérsia e Turquia fogem a essa regra.
Em meio a toda a problemática surge uma esquematização
tentando observar esse modo de produção em dois momentos, distintos porém
conectados.
Sob esta visão, duas fases principais poderiam ser enumeradas
nesse modo de produção, dadas às peculiaridades internamente constatadas em
cada uma delas.
Na primeira fase da geografia da organização social asiática,
tem-se:
Trabalho comum;
socialismo, como aludiram Marx e Engels em 1853. O método marxiano e marxista não suprime a idéia de desenvolvimentos multilineares.
219
Propriedade da terra coletiva: seu uso combinando abundante mão-de-obra
com agricultura de irrigação;
Coabitação e co-gerência de toda a espacialidade produzida: consumada na
autarquia política e na auto-suficiência econômica das comunidades isoladas;
Não-divisão entre imposto e renda, quer nos centros urbanos da antiga China,
Índia, México ou no mundo mediterrâneo, por excelência centros político-
religiosos voltados a questões cerimoniais;
Sutil distinção entre cidade e campo: fenômeno derivado de motivos
econômicos, até porque no campo se praticava da mesma forma atividades
não-agrícolas (manufatureiras), ficando as cidades com a função secundária
de servir mais de “acampamentos principescos” ou de sede à camada política
do que como ambientes de produção.
No segundo período do modo geográfico de produção “asiático”
se têm por características:
Trabalho social: entranhado na divisão vivificada pela separação entre
unidades de produção e de consumo, cujo o seu formato especa a
interdependência de comunidades aldeãs estabelecidas em conjunção com a
expansão das trocas de mercadorias e pela modificação na forma da mais-
valia;
Propriedade da terra centralizada: o controle ficando com a camada dirigente
do Estado monárquico, agente que financiava obras hidráulicas de grande
dimensão e escala espacial de abrangência para captação de água e irrigação
de comunidades aldeãs territorialmente isoladas, em ambientes do globo com
peculiaridades edáfico-climáticas bastante inóspitas;
Fixação da divisão jurídico-social do espaço em esferas pública e privada;
Divisão entre renda e imposto: dá-se a privatização da primeira e a
socialização do segundo, resultado da nova forma de mais-valia instituída;
Oposição entre meios urbano e rural: fenômeno derivado da modificação
processada na esfera da produção, com o aumento quantitativo e qualitativo
220
de manufaturas e do comércio no meio urbano, conseqüência do
desenvolvimento, especialização e separação das funções produtivas.
Tratemos mais desse segundo momento, pois a partir dele temos
a divisão econômica do trabalho sendo suplantada pela divisão social do
trabalho. São estabelecidas as funções internas ao grupo sobre quem produz e
quem gerencia e controla o sobre-trabalho. O trabalho distingue-se entre manual e
intelectual, com os produtores imediatos distando-se social e geograficamente dos
religiosos, dos administradores e dos protetores (MANDEL, 1976, p. 25-26, 34,
47-48 passim).
Classes antagônicas soerguem das fendas exibidas no solo
espacial de lenta rachadura. O surgimento da propriedade, da posse do produto e
do elemento de produção faz surgir o espaço dividido da sociabilidade alienada.
Uma dialética de interdependência opositora corporifica-se entre
o indivíduo abstrato e o valor abstrato a ser por ele produzido. O espaço atomiza-
se em público e privado.
Chegam ao fim ou dele aproxima-se a fraternidade e a igualdade
nas sociedades barbáricas ou primitivas e nas “asiáticas” em muitos dos cantos do
mundo, calcadas que eram nos sistemas de parentesco endogenamente
hierarquizadas-organizadas em formas não-antagônicas, em que todos e cada um
de si trabalhavam para o outro, trabalhando ao mesmo tempo para si mesmos e o
coletivo.
A vida começa a organizar-se em princípios aristocráticos que se
vão resguardando mais e mais em espessos cipoais jurídico-legais, tendo em conta
que alguns já trabalham para outros que nada mais investem que à expropriação
do excedente.
O “trabalho comunitário” cede lugar ao “trabalho social” em
hierarquizadas estruturas classistas (KRADER, 1987, p. 299).
221
Muda o trabalho. Substitui-se o metabolismo natural pelo
metabolismo social143.
Às sociedades que vivenciam atomizações internas
individualizantes e antagônicas o trabalho passa a ser obrigatório, imposto não só
pelas necessidades biológicas do homem comum e da natureza exterior carecida
de ser controlada mas como instrumento de tributação impelida socialmente pelos
dominantes à maioria desafortunada; gerando riqueza a mais, alheada e apropriada
privativamente na sua mais volumosa fração pela divisão superior. Contudo, por
ser a maior parcela do trabalho voltada ao consumo coletivo básico, ou seja, a
riqueza curvada à satisfação das carências dos homens para que entre eles se aloje
a felicidade, indispõe o trabalho do caráter essencialmente direcionado à formação
do que se convencionou chamar de riqueza abstrata. A instalação dessa situação
resvala nesse segundo momento do modo de produção asiático, quando a riqueza
perde o caráter ético ao transformar-se em finalidade em-si, com a típica função
crematística.
A organização na sociedade civil e classista corporifica-se em
espaços segregados, vez que na pré-história das famílias das sociedades sem
classes inexistiu diferenciação entre esferas pública e privada.
O desenvolvimento da individualidade é reforçado nessa
segmentação entre as esferas pública e privada144. Abrocham aí os conflitos de
143 Conforme Moreira, aos espaços naturais da relação homem-meio, ou os gêneros de vida de que trata La Blache, superpõe-se os espaços sociais, relação já sociedade-espaço, que se ocuparam Brunhes, Sorre, P. George e M. Santos (MOREIRA, 2002c), porque das sociedades naturais passa-se às sociedades históricas, o que faz com que aquela unidade orgânica se despedace em entes estranhados, de uma organicidade alienada, tal qual abordou Quaini (1991). Se nas primeiras sociedades (naturais) a organização comunal ou o controle social passava pela terra, na sociedade do capital entremeia-se com a alienação do trabalho (MOREIRA, 1988b, p. 78). 144 Nessa como nas sociedades classistas subseqüentes, não deve ser absolutizada a clivagem entre público e privado. Em termos da sociedade capitalista, a título exemplo, foi noticiado no Brasil pelos jornais televisivos a pendenga jurídico-ideológica entre uma família de norte-americanos que tiveram sua propriedade privada rasgada por redes de transmissão de energia à revelia de seu consentimento; exemplo serve de ilustração para o fato de que mesmo a propaganda ideológica da inalienabilidade da propriedade e da individualidade dessa sociedade capitalista possui limites, cabendo ao Estado (e à camada social dominante ao qual representa) transgredir ou reformular tais parâmetros sempre que a acumulação e a reprodução ampliada do capital estiverem em foco. No fundo, a máxima marxiana da lei do mais forte se fazendo presente (seja o forte politicamente – como os tiranos antigos ou os pós-capitalistas stalinistas – seja o forte economicamente – como determinado setor capitalista).
222
interesses entre os produtores imediatos da comunidade e os seus chefes
soberanos. O Estado abrolha da intensificação da individualidade entre as classes
opostas, em função dos interesses econômicos que anima o seu fragmento
dominante.
A individualidade e o sentido de pertencimento à comunidade se
entrechocam. O indivíduo conserva o sentido de comunidade, não obstante sê-lo
agora integrante de uma classe social específica cuja realidade concreta afronta a
abstração genérica, disseminada ideologicamente.
O modo de produção fechado e emperrado aprisiona a sociedade
num mais moderno estado de desenvolvimento das forças produtivas.
A quantidade e a qualidade de aprimoramento produtivo-
gerencial da base material produtiva e administrativa representa o índice da
diversificação abraçada pela sociedade. E o estágio de desenvolvimento do
Estado, como organização político-jurídica a arbitrar a sociedade sob o feitio de
neutralidade, anuncia a medida da maturação conseguida pelas forças produtivas
em sociedades internamente clivadas por classes.
Um modo de produção que, nem tanto como o que largamente
se diz, não era tão estagnante e, como formação social de incipiente diferenciação
classista, continha em seu cerne forças em conflito com os germes de sua
dissolução. Ocorreu porém de o capitalismo se lho interpor em seu decurso,
destruindo-o com a colonização havida Oriente adentro, quando tomou a frente no
jogo das crescentes forças contraditórias esse modo de produção histórico-
espacial baseados em classes sociais145.
O imperialismo britânico avançava com exército e sistema de
comunicação modernos, além de imprensa livre, ferrovias e técnicas que
revolucionavam o território e a materialidade das forças produtivas por possuir a
geograficidade cravada pelo gládio político-estatal, quem realmente ordenava
145 Além desse modo de produção classista, Srour enuncia, como estruturas sócio-produtivas fundeadas em classes sociais, os seguintes modos de produção: modo de produção adstritivo; forma asiática de produção; forma escravista, colonato e parceria adscrita; modo de produção patrimonial; modo de produção feudal; modo de produção capitalista; modo de produção corporativista; modo de produção cooperativista.
223
economicamente a malha espacial a partir do locus citadino, sede da camada
política de então.
Mas conta o fato de que além destes, outros modos de produção
existiram de maneira coetânea ou com certas variações temporais e em recantos
do mundo também diversos.
Vejamos mais alguns deles.
2.1.3.3 O modo de produção escravista
clássico146
O arco semântico sobre esse modo de produção é bastante
extenso, muito embora pela sucessão dos períodos de desenvolvimento histórico
ser quase consenso internamente ao marxismo considerá-lo como atinente às
sociedades antigas, evitando-se o erro habitual de confundi-lo como pertencente
ao mundo antigo.
O grau de precisão também deriva da variância do cristalizar,
porque além de perdurar por mais de dois mil anos apresentou-se geograficamente
sempre de modo disperso, diverso, complexo.
Alguns autores rebatizam o escravismo pelo seu suposto
renascer em espaços coloniais do Novo Mundo, como modo de produção provido
de relações de produção e de trabalho peculiares se comparados aos de Europa.
Outros asseveram que o escravismo moderno não pode ser
considerado modo de produção, nem (sub)sistema social conectado ao modo de
produção do capital no plano internacional e pela esfera da circulação. Comprado
como forma de capital-fixo prontificado a gerar mais-valor, o escravo era já
propriedade voltada à geração de mercadorias que vendidas trariam lucro aos
proprietários, mais portanto do que o aprisionamento à subsistência comum aos
espaços da antiguidade.
146 Sabe-se que Marx e Engels dispunham de extenso conhecimento sobre a antiguidade clássica (greco-romana), ainda que nesse período fossem poucos os materiais e os conhecimentos acumulados sobre o Egito e o Oriente Médio.
224
Desta feita, por essa ótica a sociedade burguesa moderna
européia, controlada pela nova classe econômica soberana, se engrandecia nos
ombros das sociedades modernas escravistas alojadas no Novo Mundo, não se
circunscrevendo a escravidão nem às “sociedades antigas” e muito menos ao
“mundo antigo”.
Diante de tamanha inquietação e de tão pouca precisão, autores
criaram formulações outras para caracterizar as formas histórico-geográficas
concretas da humanidade; feito que não logrou entretanto ganhar destaque
científico entre os marxistas, como o modo de produção de linhagem, o modo de
produção colonial e modo de produção andino, por exemplo.
Aos poucos iremos fornecendo elementos que esclareçam e
subsidiem as similitudes e incongruências do ser escravo ao longo do tempo e dos
lugares.
Por ora, voltando-nos à parte em que o consensual da teoria está
já mais assentado, temos na “pessoa” do escravo, quanto à organização espacial
centrada nesse de que agora tratamos, o elemento precípuo ao trabalho alheado e
criador de sobreproduto social a alimentar todo o corpo social, prioritariamente as
classes dominantes das antigas sociedades greco-romanas, que em seus pilares
detinham a centralidade privada da propriedade sob controle social fortemente
militarizado.
Raros não são os autores entrementes que mencionam a
complexidade e heterogeneidade do binômio estabelecido entre as forças
produtivas e as relações de produção, sobremodo internamente ao Império
Romano, no qual a territorialidade escravista se evidenciava mais na parte Norte e
Ocidental do que na parte Oriental, povoada por outras formas de organização
político-econômicas.
A unidade do antigo império greco-romano teve o auge da
expansão territorial no segundo século da era cristã, compreendendo cerra de 60
milhões de habitantes espalhados por algo próximo a 4 milhões de km2: extensão
que ia da África do Norte (Egito ao Marrocos) passando pela Ásia Ocidental até
tomar quase toda a Europa (Grã-Bretanha inclusa).
225
Um vasto tecido territorial cuja area core punha-se a sugar o
sangue de tributos e taxas pelas artérias da geografia da circulação, em que todos
os caminhos levavam a Roma, não ficando nenhuma comunidade isenta de
encargos e muito menos de eventuais saques em períodos de guerra; ficando de
fora apenas os espaços marginais, as regiões mais fronteiriças.
A “totalidade histórica e social” dessa formação social
possuiria, na opinião de P. Anderson, uma essência (mesmo que frágil)
proveniente mais da unidade cultural do que da homogeneidade econômico-
produtiva coroada por um único modo de produção (escravista). Haveria uma
combinação de modos de produção hegemonizada pelo modo de produção
escravista: mesmo na Itália romana podia ser notada a presença de camponeses
livres e donos de terras juntamente à forte presença de escravos na Sicília.
Unindo-se a essa interpretação, poucos não são os que fazem questão de ressaltar
a complexidade, diversidade e pluralidade de modos de produção existentes nessa
época, nas partes do mundo comandadas pela escravocracia de Roma.
A estratégia espacial romana consistia em se tolerar que nas
províncias se mantivessem indivíduos pertencentes à elite local na administração,
devido aos oportunos conhecimentos do ambiente e da sociedade. Outorgava-se
por essa aliança política de cúpula que fossem conservados os regimes de
propriedade e as relações sociais de produção, além de permitir a preservação da
essência cultural dos diferentes povos. Agindo desse modo o império romano
impedia que se chegasse a um estado de dependência generalizada para com o
governo central, mantendo a unidade do poder político a partir das diversidades
político-econômicas regionais (Fenômeno inverso ao que se verifica no
imperialismo moderno, em que a cultura foi quase que absolutamente
mercantilizada pelo epicentro econômico hegemônico)
Pelo comando político-espacial central de Roma se definiam
táticas e estratégias de produção e circulação de riquezas nos espaços secundários,
como quaisquer planos de defesa e expansão territorial.
Prova disso foi a dominação de o Grande Alexandre sobre o
império persa, ao conjugar o modo de produção antigo e escravista greco-romano
226
ao modo de produção predominante em Ásia (modo de produção asiático), cujas
peculiaridades condiziam com a monarquia absoluta (ao invés das cidades-
Estado) e com populações que não eram formadas nem por camponeses livres e
nem por escravos (segundo a forma greco-romana antiga).
A Grécia clássica não deve se furtar ao debate, pois uma
pluralidade de mundos do trabalho nela igualmente se verifica: enquanto na
Atenas dos séculos V e IV a.C. vigorava o modo de produção escravista, noutras
cidades-Estado mais fronteiriças (como Esparta, Tessália, Etólia, Ilíria e
Macedônia) não ele era ele o predominador.
Nas regiões econômicas da Grécia onde prevalecia a
escravatura, esse modo de produção foi caracterizado pela propriedade privada da
terra, pela supremacia gerencial das cidades-Estado, pela comunidade de cidadãos
e por certa produção de mercadorias.
Já que o escravismo corresponde à segunda forma geográfica de
propriedade manifesta na evolução da civilização, substituindo a antiga
propriedade comunal direta (oriental e eslava), podemos caracterizar essa forma
de propriedade comunal como sistema contraditório e de classes.
O cerne do poder está na cidade. A partir dela se organiza o todo
econômico envolvente e os territórios circundantes (landmark), como a
propriedade comum e os territórios de caça e pastagens da sociedade romana,
utilizados apenas pelos representantes da nação (commonwealth). Baseada
somenos na agricultura e na propriedade rural, o que se tinha não passava de
processo de ruralização da cidade.
A sociedade escravista é expansionista, dinâmica e mutante.
(Difere da sociedade oriental “fechada”)
O núcleo do social identifica-se com a escravidão. Propriedade
adquirida por fatores de hereditariedade, captura, aprisionamento em guerras,
mercantilização, venda dos genitores, abandono de recém-nascidos, rapto,
pirataria ou quitação de dívidas, por meio dela o homem era convertido num bem
ou numa propriedade privada móvel.
227
A cidade de Roma serve de reto exemplo: surgida de nada mais
que da unidade de camponeses reunidos e organizados às tarefas de guerra,
religião e para guarnecer de excedentes a comuna, com o tempo se viu que seus
membros iam quantitativamente crescendo e qualitativamente enraizando e se
enraizando numa estrutura não-igualitária e agregando ingredientes outros que
cooperaram sobremaneira para a expansão da cidade. A transformação do
conteúdo societal romano e o engrandecimento de seu universo urbano condiz
com (a) as diferenciações internas conseqüentes das conquistas e conquistados
que, ainda que recebessem terras agrícolas, encaixavam-se como inferiores na
estrutura social (b) e com o estratagema que permitia a formação de grupos de
parentesco a partir de casamentos intertribais (chamados de casamientos mutuos
pelos espanhóis e de intermarriages pelo Jack Cohen).
A guerra é a mola que impulsiona essa sociedade, quer para
destruir antecipadamente as forças inimigas que se lhe ameaça quer para que
novas terras se fizessem anexadas aos domínios do povo que não parava de
aumentar.
A hegemonia da centralidade da forma de trabalho existente é
que caracteriza tal sociedade como escravista. (O que não significa dizer que a
escravidão não tenha marginalmente se manifestado noutras formações sociais, no
Oriente ou Ocidente, pois o trabalho escravo pode ser observado em variados
cantos e épocas da história humana, como a instituída aos braços indígenas pelas
camadas dominantes autóctones da América pré-espanhola – sobretudo em
México e Peru – ou a existente na Idade Média européia antes que se sobrepusesse
a servidão feudal147)
147 Há que se ressaltar que o trabalho escravo também foi corrente no modo de produção capitalista. A querela sobre a questão é antiga e profunda, estando num extremo os que argüiram que a colonização do Novo Mundo empregadora de trabalho forçado não poderia ser assemelhada àquela clássica, tendo em conta que o trabalho escravo se punha como produtor de mercadorias e voltado à geração de sobreproduto que redundasse pela venda em mais-valia aos mercadores (constituindo-se pois como formas não-assalariadas de trabalho em formações econômicas periféricas capitalistas), ao passo que outros, por seu turno, afiançam que o capitalismo existente em países europeus tão-só se utilizava de formas de trabalho não-salariadas ou escravas para a produção de mercadorias, em formações sociais coloniais pré-capitalistas, como meio de acumulação primitiva à ulterior industrialização.
228
Mãe das sociedades classistas, a contradição do modo de
produção escravista dominantemente permeado pela escravidão também vê ao seu
lado erigir outra relação no mundo do trabalho: trata-se do trabalho assalariado,
excepcionalidade do modo de produção pré-capitalista que se corporifica
especialmente nos mistharnes em Grécia e nos mercenarius em Roma.
A impulsão a esse modo de produção veio com a transição da
economia de subsistência à economia de produção, que possibilitou a realização
de excedentes vendáveis.
Na Grécia antiga a escravidão foi patriarcal durante a idade
homérica. Sequencialmente a esse período deu-se a transição à fase das Guerras
Greco-Pérsicas, quando já se configura a finalidade empresarial orientada ao
laborar dos setores agrícolas, mineralógicos, artesanais, navais e comerciais;
contexto de rentabilidade no qual aparece a classe social dedicada ao aluguel do
escravo, por tempo ou empreitada.
Cativos pertencentes à administração ou aos templos eram cada
vez mais aproveitados em serviços públicos, além de paralelamente serem
empregados como espécie de capital-fixo dimensionado ao fabrico de
mercadorias.
Prova do desprestígio do trabalho manual escravo está na
equiparação feita por Aristóteles à sua condição natural, enquanto não-natural
concebia-o se salariado.
O escravo na polis ateniense desfrutava de certas garantias não
obstante. Há os que advogam que a “pessoa” do escravo também representava
lucro, sendo por isso permitido o casamento, o acúmulo de bens, a compra da
liberdade, a formação de organizações voltadas ao culto religioso, a possibilidade
de introdução na família do proprietário mediante solene cerimonial, a regalia do
convívio e da amizade do proprietário, entre outros meandros marginais ao
remodelar da sociabilidade e do status gozado. A jurisprudência permitia-lhe
tratamento adequado e contrário à crueldade e o direito de defesa mesmo nos
casos em que fosse considerado culpado.
229
Já em Roma a escravidão propaga-se por conta da expansão
política efetivada pelas Guerras Púnicas, ocupando-se majoritariamente com os
afazeres nos setores agrícolas.
A forma de trabalho escravo concorreu para que na Roma antiga
houvesse a desagregação do sistema de produção agrícola pelas pequenas glebas,
levando à miséria os proprietários que não podiam suportar a concorrência com a
produção escrava. Conseqüência: proletarização de pequenos proprietários
considerados cidadãos e que nada mais produziam, vivendo à custa do Estado.
(Ao inverso da maioria dos trabalhadores e cidadãos livres de hoje)
Quando lesivas aos que se achavam livres, a divisão do trabalho
e as transformações espaciais do modo de produção escravocrata impunham aos
escravos a responsabilidade do sustento parasitário, com o Direito validando e
protegendo a hierarquia que regia o período.
Direito romano que ainda classificava os escravos em dois tipos,
quais sejam:
servi publici: utilizados na administração pela magistratura e;
servi privati: atuantes em serviços de particulares.
Porque trabalho não-livre, coagido e obrigatório, aos escravos a
incumbência de abastecerem funcionários e servidores do Estado, classes
soberanas e donos de escravos (patronus). Não deixando de serem salientadas
também as outras formas de trabalho coexistentes, como as de clientela ou as de
cultivo em terras de proprietários fundiários privados.
Constando como força de trabalho fundamental e mantenedora
do funcionamento da engrenagem, o trabalho escravo dos particulares possuía
inúmeras ramificações sócio-espaciais:
No meio rural: a variante escrava do servi privati tinha à sua frente a forma
da família rústica, devendo cuidar da criadagem rural; destaque para o
230
villicus, que eram os escravo-intendentes que na agricultura e na pecuária
superintendiam os demais escravos rurais.
No meio urbano: era a família urbana escrava que se ocupava das atividades
domésticas.
Distintamente do universo grego, o mundo da jurisprudência
romana mostrava-se bastante severo ao escravo, assacando penas rigorosas e
conferindo ao proprietário, pelos direitos sobre o cativo, o poder até sobre a
morte. O direito ao matrimônio também era recusado e as ligações por coabitação
(conturbernium) a qualquer instante poderia ser desatada por vontade do senhor.
O testemunhar do escravo despossuía valor em juízo: a menos
que obtido sob tortura, sua consideração em julgamento apenas se reduzia a casos
de acusação do amo de alta traição, adultério, incesto ou impiedade.
Ao Direito de alforria ou manumissão, dois tipos se
sublinhavam: a manumissio justa e a manumissio minus justa.
Sob quatro moldes organizava-se a manumissio justa:
Adoção como filho: infreqüente;
Adoção por census: raramente;
Liberdade por via testamental: o proprietário o isenta do cativeiro;
Vindicta: o senhor alforria o escravo ao enunciar as palavras liber esto,
tocando sua cabeça com uma vara empunhada na presença do lictor ou do
pretor.
No que concerne a manumissio minus justa: trata-se ao escravo
da ocasião mais propícia à consecução da alforria ou da melhora de status pela
alteração do complexo de obrigações devidos à família do amo, dependendo da
simples vontade do proprietário a sua consumação. A concretização do ato se
operava costumeiramente com a colocação do escravo sobre o píleo, lugar-
símbolo de liberdade, de anunciação da mudança pela alforria ou de delegação do
escravo a funções de confiança (como a tutela dos filhos do senhor); acaso faltasse
231
por desventura às obrigações lhe outorgadas perdia o escravo a condição de
liberto e o nome do senhor que desde então carregava, descumprindo com o
confiado respeito (obsequium) e a devida cooperação (officium).
O modo de produção é sobremaneira adstrito ao consumo. O
trabalho visa ter por efeito o levantar do excedente convolado à reprodução da
existência humana de classes abastadas e parasitárias que supervisionam os meios
geográficos de produção e distribuição do sobreproduto, seja a propriedade
privada móvel seja a propriedade imóvel privada, conjuntamente fato e fator
espaciais de produção.
Então, a forma de reprodução da existência obedece a
circunstância de existir a posse do corpo do indivíduo e dos meios de produção
sociais, sob pena de coerção física severa e direta aos que se posicionassem
avessos às regras do processo segregacionista de reprodução social, dirigido pelos
estratos superiores. A função do trabalho e do produzir identifica-se com a meta
de riqueza ou (sobre)produto que garanta a reprodução desigual do corpo social
em seu expandir quantitativo.
A estrutura social é classista e expansionista. Estipula-se que na
polis ateniense da época a que pertencera Aristóteles, existia para cada trabalhador
livre dois ou três outros escravos, segundo cálculos de V. Ehrenberg, apresentados
por Krader (1987, p. 299).
O escravo era mais naturalmente comercializado se se
demonstrasse desvinculado da terra.
A formatação da sociabilidade empareda-se na laboração do
excedente atrelado às necessidades de reprodução existencial da sociedade,
mesmo que com certa margem de riqueza supérflua a ser fisgada, como jóias e
outros “pertences”: mulheres, objetos e adornos que garantiam invejado status148.
148 Assim como o processo de produção e de trabalho são diferentes nas sociedades primitivas, escravista e burguesa, por exemplo, temos que saber igualmente qualificar o excedente produzido nessas sociedades: se havia um excedente concreto atado ao consumo de todos nas sociedades comunalistas primitivas, por outro lado nas sociedades escravista e burguesa o excedente é capturado grandemente pelos estratos sociais superiores e, além disso, na sociedade burguesa o excedente é abstrato por ser um fim-em-si, voltado à acumulação ampliada e descolado das próprias necessidades de reprodução social dos dominantes (e o que dirá dos dominados!).
232
Pois é comum que, em havendo classes divididas e hierarquizadas, haja busca pela
diferenciação de seus membros, seja por objetos materiais que certifiquem
posição social ou por situações culturais, posturas, comportamentos e trejeitos que
enalteçam a desigualdade; a etiqueta por essa razão tem por “finalidade e função
regular o comportamento dos indivíduos de maneira a mantê-los em suas devidas
classes” (WHITE, 1978, p. 48); ordena-se o espaço a partir do controle da estética
(e ética) comportamental.
Mas há que se dizer que a riqueza em-si não é o fundamento
geral desse estágio evolutivo, condizendo mais aos regalos, limitados, de um
pequeno estrato social. Ficando a maioria do corpo social preocupada com
questões atinentes à criação do melhor cidadão. A riqueza como um fim-em-si é
preocupação de uma minoria do mundo antigo que detém o monopólio do
comércio. (Ou mesmo na sociedade medieval, como os judeus)
A forma em que a sociedade se organiza gesta o complexo de
comportamentos normatizados que miram exclusivamente a reprodução em
termos micro-sociais da lógica que preside o corpo social, colocando classes e
membros em seus devidos lugares, como um dos nexos entre o modo de vida da
sociedade e a sua base produtiva imprecando e punindo os que às regras
simbólicas se acham desconformes, sendo a negação considerada indício do que
mais adiante pode manifestar-se concretamente como séria ameaça. (Ficou
comprovado o tom desafiador que um simples sorriso representava aos religiosos
medievos)
As relações sociais de produção com o tempo entram em
rebuliço com as forças produtivas em metamorfose porque a própria criação da
propriedade privada móvel e da propriedade imóvel privada fazia com que a
ordem social entrasse em decadência, crescendo no interior da sociedade
escravista a divisão do trabalho e a complexificação social que faziam com que os
“cidadãos livres” perdessem status. Abria-se com isso um cenário geográfico que
tinha por marcas:
233
Divisão cidade-campo: intenso discernimento entre o trabalho comercial e
industrial do trabalho agrícola;
Divisão urbana-urbana: distinção entre atividades voltadas às indústrias e
atividades orientadas ao comércio exterior no plano urbano;
Divisão rural-rural: segmentação social e econômica entre homens livres e
escravos;
Empacamento do meio condutor: ao lado da complexificação social pesou do
mesmo modo à dissolvência da sociedade escravista a mordaça que se tinha
por colar, amarrada a sociedade que estava a uma postura guerreira e
expansionista que sobrelevou as atividades belicosas à qualidade produtiva
da relação agrícola-camponesa, criando-se paradoxos entre necessidade de
subsistência/concentração de terras/crescimento das trocas/economia
monetária/conquistas territoriais e agregações populacionais maiores.
A insustentabilidade da relação esgota a reprodução desse
período. A sociedade escravista já se encontra em seu gérmen entravada por
priorizar a conquista e não a sustentação econômica (produtividade) e
organizacional (política) dos espaços geográficos conquistados. A diferenciação
social uterina e o desenvolvimento econômico que se vai realizando em seus
interstícios são os canais que a vai minando149. Mesmo que se tenha valido de
certos subterfúgios ideológicos (como a crença de que o comerciar com
estrangeiros consistia em tarefa perigosa e impródiga e que deveria por isso ficar
em mãos de libertos, clientes ou estrangeiros o lidar com as manufaturas), havia
no máximo a suavização do problema: a escravidão e a obrigatoriedade da
produção continuavam justamente sob poder dos conquistados.
Portanto, a escravidão ou servidão contém os embriões da
propriedade baseada no tribalismo e o auto-esfacelamento da escravidão fortalece-
149 Há autores que afirmam que a decadência do império romano não se deveu unicamente a questões internas referentes à reprodução político-econômica (aumento da corrupção e da crise econômica de reprodução) mas especialmente ao avanço e desenvolvimento guerreiro e bélico de povos que tiveram que se aperfeiçoar para rivalizarem à altura.
234
se com o avanço do processo de hierarquização que opõe proprietários e não-
cidadãos e escravos.
Outro período é inaugurado.
2.1.3.4 O modo de produção servil ou
feudal150
“...E agora, nestes nossos detestáveis séculos, nenhuma está segura,
ainda que a encerre e esconda outro labirinto de Creta,
porque lá mesmo, pelas fendas ou pelo ar,
com o zelo do maldito cuidado lhes entra o amoroso contágio,
e as faz dar com todo o seu recato à costa.
Para segurança delas, com o andar dos tempos, e crescendo mais a malícia,
se instituiu a ordem dos cavaleiros andantes, defensora das donzelas,
amparadora das viúvas, e socorredora dos órfãos e necessitados”
(Da seqüência discursiva na qual o cavaleiro cervantino, tecidas as
comparações entre o outrora e seu agora, divulgava sua missão
histórica na Idade Média a que pertencera: de livrar da dor e
opressão todos os necessitados, filhos bastardos da desigualdade)
(SAAVEDRA, 2002, p. 73).
---------------------------------------------------
“Não posso exprimir‐lhe quanto desprezo têm por nós,
150 Até as Formen, a história agrária e a agricultura da sociedade feudal despertavam pouco interesse em Marx e Engels, ocorrendo se muito menções isoladas à servidão da Europa Oriental (Rumânia, especialmente). Após ser publicado o vol. I d’O Capital é que Marx, juntamente com Engels, passou a dedicar-se mais à temática, estudando profundamente a Georg von Maurer; a ponto de, mais ao fim de sua vida, interessar-se bem mais com a história da evolução da servidão, segundo Hobsbawm (1975, p. 26). Percebe-se que mesmo no vol. III d’O Capital, que trata da renda-da-terra, não há referência à agricultura feudal do Ocidente, por haver Marx se circunscrito aos estudos das origens medievais da burguesia e sobre o comércio e finanças feudais (sistema bancário, preços e moedas). Engels demonstrou maior interesse que Marx em estudar a Idade Média Ocidental, disposição insuficiente entretanto para que sua atenção (como a de Marx) fosse desviada da comunidade camponesa primitiva para o desenvolvimento do regime senhorial.
235
por chamarmos de ignóbeis os artífices e de nobres os que,
não sabendo fazer coisa alguma, vivem no ócio e sacrificam tantos homens que,
chamados servos, são instrumentos da preguiça e da luxúria”
(CAMPANELLA, 2004, p. 27).
Com nível mais avançado de cooperação apresenta-se o modo
de produção feudal, em comparação feita àqueloutros anteriormente arrolados,
manifestando-se esporadicamente e em grande escala na Antiguidade européia e
na Idade Média.
Há quem certifique o nascimento do feudalismo à época dos
carolíngios, os descendentes de Carlos Martel, que pelas bênçãos da Igreja
tornaram-se reis ou suseranos-mores; destaque para Carlos Magno (742-814).
Instituída estava a vassalagem em França, expandindo tais
descendentes o seu poderio militar e o feitio concentrado da administração feudo-
territorial através dos enviados especiais (missi dominici) que para todo o
território eram nomeados a percorrer. Merecedor de menção também foi o
controle social por parte dos decretos: os conhecidos capitulares, que do plano da
justiça aos serviços militar e da educação se estendiam.
O falecimento de Carlos Magno veio pôr termo a isso: o império
esfacelou-se entre os descendentes nas partes oriental e ocidental, o que
ulteriormente veio dar origem à França e Alemanha. Foi desse modo que a
dinastia carolíngia se extinguiu em 987 d.C., favorecendo a fundação do Sacro
Império Romano e da Nação Germânica.
Ao sepultamento do império territorial carolíngio e
fracionamento dum dos primeiros e mais consolidados Estados medievais, outros
se juntaram, como o otoniano e os reinos inglês e anglo-normando.
Esmaece o Estado central, alçado na relação suserano-vassalo.
Robustece-se a “sociedade civil”.
As dificuldades às comunicações e a singularidade da geografia
local da economia, cingida à subsistência, contribuíram para que o domínio
236
efetivo do suserano se confinasse a pequenas dimensões territoriais, não tão
distantes das porteiras do ducado, condado ou da área sob governança do castelão.
Trabalho árduo a toda categorização, por sobre a sociedade
feudal inúmeros obstáculos afloram ao reconhecimento da periodização e
geograficidade do novo fenômeno insurrecto.
Bottomore (2001, p. 353) recomenda que não se deve:
de modo algum dizer que o feudo fosse universal no que chamamos de “sociedade feudal”. Desenvolveu-se principalmente na área compreendida entre os rios Loire e Reno e na Inglaterra normanda, e muitos senhores feudais, particularmente ao sul e a leste dessas áreas, conservavam suas terras de maneira alodial, isto é, como propriedade absoluta. Não obstante, o conceito foi suficientemente forte, como observou Engels, para chegar à sua “expressão clássica da ordem feudal” nas Assizes do efêmero Reino de Jerusalém dos cruzados.
Com o cuidado que se deve ter com as generalizações, no
delinear das genealogias e desenvolvimentos temporais e espaciais desse
fenômeno, observamos que fora na Europa Ocidental, a que Marx mais se reteve,
que a conhecida propriedade feudal ou por estamentos teria se originado a partir
da mistura de instituições dos romanos derrotados com as tribos germânicas
conquistadoras. Sua base identifica-se com a estrutura agrícola que organiza a
vida social rural da população camponesa de rendeiros (tenants) composta de
mão-de-obra familiar espalhada por extensas regiões geográficas.
(Semelhantemente ao que passava com o comunalismo primitivo)
Outro elemento essencial aludia às propriedades manufatureiras
artesanais e independentes, pelas quais os indivíduos seus detentores asseguravam
igualmente os meios de subsistência, organizando-se socialmente em corporações
de guildas, cujas manufaturas detinham maior envergadura que aquelas existentes
no sistema antigo.
Ao ordenamento da geografia do feudo subjazia todo um poder
de controle político identificado na jurisdição erigida sob a forma de tribunais e
cortes senhoriais, com as quais se dirimiam disputas, puniam-se infrações de leis,
237
preservavam-se costumes, impunham-se tributos e recrutavam-se contingentes
militares.
As altercações jurisdicionais se passavam sobremaneira entre os
senhores e o campesinato, não se excluindo determinadas polêmicas entre os
próprios vassalos do reino que compunham a aristocracia militar. Conflitos entre
as duas camadas básicas da sociedade feudal não eram incomuns e disputas na
própria classe dos senhores feudais detinha lá certa freqüência, apesar de os
vassalos militares serem considerados homens livres e de seus direitos de
administração e especialmente de linhagem disporem de relativa autonomia
jurídica (excetuando-se questões de inviolabilidade jurídica). O vassalo poderia
até refazer sua teia de alianças (allégiance) para com outro senhor sem se importar
que sobre seus ombros pesassem acusações verbais de traição, a possibilidade de
novas geopolíticas ou de outra geograficidade vir a se estabelecer era-lhe
razoavelmente assegurada. Isso para o estrato superior.
No concernente à jurisdição dos senhores sobre os camponeses,
sabe-se que a relativa liberdade pessoal que alguns deles gozavam não se traduzia
em direitos de mobilidade e de propriedade da terra – embora a propriedade
jurídica dos senhores sobre as glebas de terras não se aproxime de modo algum ao
sentido jurídico moderno. Pior era a situação dos camponeses não-livres que eram
obrigados a trabalhar na fazenda senhorial (demesne), ofertando tempo de trabalho
não-pago seja com os tributos disponibilizados sob a forma de produtos in natura,
seja os pagos em dinheiro oriundo da exploração familiar, ou pelo cumprimento
das tarefas que lhes fossem estipuladas.
Conquanto não houvesse evolução temporal linear e isotropia
espacial total, foi no século XII maiormente que a geografia da exploração servil
conheceu das suas faces mais opressivas.
Fora sobremodo desse século em diante que a descentralização
feudal deitou nas mãos de cada senhor – inclusive os que os domínios não
excediam a territorialidade da aldeia – poder para multiplicar a tributação
jurisdicional a todos os habitantes, rendeiros ou não. Com o (meso)poder
densificado no plano feudo-territorial, decaiu ainda mais o nível das taxas
238
recebidas pelos camponeses nos trabalhos obrigatórios a eles endereçados pelos
senhor, quer no moer do trigo, quer no prensar das vinhas no seu lagar ou no cozer
do pão em seu forno. Não obstante tudo isso, em caso de condenações por
delinqüência comprovadas na corte, tinham os camponeses de sujeitar-se a pagar
multas aos senhores; sem mencionar as taxas que tinham de arcar para que
pudessem ver suas filhas casadas e, em caso de falecimento dum membro familiar
seu, dos cuidados para estar em dia com o dispendioso imposto mortuário.
O universo rural, alicerçado pelo espaço do trabalho e pelo
espaço vivido, nalguns mais que noutros momentos e regiões, recebia os laços
asfixiosos do poder daqueles senhores mais tirânicos. E era mediante multíplices
formas de extração de renda que se sustentava o corpo espacial do ser feudal,
nutrindo fundamentalmente as cabeças senhoriais protegidas pelos braços
militares; chefia de cabeças geralmente insanas que conduziam o corpo social
vendado e acompanhado pela camada clerical, que aos ouvidos plebeus sussurrava
total subserviência.
Como variadas foram as formas de absorção da renda, discute-se
se a renda-da-terra fora a central e a renda-de-trabalho periférica no âmbito dessa
sociedade, por ter havido combinações e desconcertos nos mecanismos de
captação de trabalho não-pago, revezando-se no tempo e nas distintas
espacialidades feudais o tipo de renda mais característica.
Alguns estudos nesse sentido apontam que o característico ao
feudalismo do Ocidente perdurado aos séculos XVI e XVIII tenha sido a renda
extraída pelo senhor do trabalho não-pago do camponês na demesne; renda de
trabalho que, com a dissolução do modo espacial de produção feudal ocidental,
viu-se crescentemente enfraquecida, sendo logo substituída pela renda paga como
produto ou dinheiro. Todavia, contrariando o que se passava no Ocidente e para
mais dificultar têmporo-espacialmente o precisar do fenômeno da renda, à época
em que se despedaçavam aqueles espaços feudais dos séculos citados, encimados
na demesnes e no trabalho servil, no Oriente eles ostentavam o seu maior vigor.
A variância no manifestar e obstância no classificar da renda
desdobra-se do fato de que o sangue do trabalhador rural que ela representava era
239
sugado com intensidades e por mecanismos desiguais, o que fazia pulsar
distintamente as partes espaciais corpóreas do “ser feudal” europeu: eis por que,
enquanto fora possante a demesne baseada na renda em trabalho na França
carolíngia do século IX, na Inglaterra do século XIII e Polônia do XVII, tornara-
se decaída em França do século XI, Inglaterra dos séculos XII e XIV e na Europa
Oriental dos XIII e XIV.
Isso significa que além da renda em trabalho ser hegemônica em
espaços de temporalidades distintas (diferenciando-se nos territórios/países
conforme o século considerado), corporificava-se temporalmente com
espacialidades desiguais (diferenciações entre territórios/países de um mesmo
século ou entre os espaços do Ocidente e do Oriente). Poderia haver
heterogeneidade socioeconômica em espaços temporalmente simultâneos e
homogeneidade socioeconômica em espaços temporalmente diacrônicos.
O primaz nesse caso não se remete à questão de saber se era
variegada ou homogênea a forma essencial de renda na Europa Ocidental ou
Oriental. Raiz principal da problemática está em classes definirem-se
fundamentalmente entre possuidores e despossuídos do meio agrário elementar à
produção, numa estrutura em que se opunham servos camponeses de um lado e
senhores feudais e nobreza clerical, doutro. Relembremos que em determinado
momento do medievo a Igreja chegou a deter metade das terras do continente e
que bispos e abades eram grandes senhores feudais, demonstrando ser ela mais
que esfera ideológica direcionadora dos espíritos individuais por firmar-se como
instituidora de cercanias e cerceamentos materiais e imateriais à sociedade.
O trabalho é não-livre na forma e na substância. Servidão de
gleba é o nome que carrega por estar a coação do trabalho atrelada à terra: o
chamado vínculo predial. O camponês feudatário tinha resguardado o direito ao
uso da terra a partir da relação de obrigações firmadas para com o feudo; situação
insuficiente, porém, para que gozasse do direito de propriedade sobre a mesma.
O excedente engendrado pelos camponeses tinha por finalidade
principal suster a família e abastecer a corte, por meio de pagamentos feitos por
dinheiro ou produto.
240
A existência do dinheiro pressupunha o mercado e este se
enredava a uma relação extrafeudal, sinalizando a territorialidades urdidas pela
produção-circulação de mercadorias.
A subsistência dos camponeses quase que os impossibilitava de
vender a produção ao mercado. Do lado dos senhores, a maior parte da produção
nas demesnes encontrava-se voltada ao comércio, além do necessário ao sustento
dos abastados (senhores e clero) e provimento dos cerimoniais luxuosos. A
divisão social do trabalho havia-se ossificado de longa data como espinha dorsal
do corpo geográfico do ser feudal armada para atender a estrutura hierárquica,
abastecendo os que se dedicavam à oração e à guerra.
A estrutura geográfica e social enformada na ruptura dos
membros-trabalhadores da sociedade dos meios espaciais de produção, bem como
o relativo estado de paz atingido por volta do século XI, contribuiu para que o
feudalismo se alavancasse, com os camponeses a produzir expressiva margem de
excedentes, a população aumentando numericamente e um relativo estado de
progresso tecnológico se processando.
Assim, de mãos dadas à expansão de excedentes em terras
senhoriais ou cuidadas pelos campesinos e paralelamente à manutenção dos
hábitos de consumo da alta hierarquia (arcebispos, bispos e abades), que os
herdara do Império Romano como formas de ostentação e poder, iam-se alargando
as trocas para além da geografia das aldeias, crescendo em dimensões os
mercados locais e regionais. Dilatava-se inter-regionalmente a geografia da
circulação que unia pontos esparsos de produção, alcançando o Oriente Médio e o
Extremo Oriente das cobiçadas sedas, especiarias, frutos e vinhos de alta
qualidade, despertando desejos de prazer e sonhos de consumo na nobreza
européia, que os conseguia com o dinheiro tomado por tributos e cobranças,
dentro dos marcos jurídicos da coação feudal não-econômica.
Para atender à demanda aristocrática brotam cidades
estrategicamente localizadas dentro dos feixes comerciais, como os conhecidos
centros mercantis de Veneza, Colônia, Bruges e Londres. A malha do comércio
contemplava as novas cidades que salpicavam o solo europeu, do mesmo modo
241
que a camada aristocrática concentrada nos feudos, sedes das grandes abadias e
bispados, capitais monárquicas e regionais.
Entremeando o comércio internacional ascendente verificou-se o
aparecimento de manufaturas em chãos de Europa, favorecendo que outras regiões
presenciassem novo surto de urbanização e produção manufatureira, como o que
se passou na Itália central e nos Países Baixos particularmente, que
acompanharam a comercialização dos gêneros internacionais com produtos têxteis
de lã de alta qualidade, óleo, vinho, cereais e madeira.
O tripé comercialização-manufatura-urbanização era o
responsável pelo povoamento de cidades com artesãos, mercadores urbanos e
varejistas. Cenário em que os mascates levantavam lojas ou barracas de mercado
para comerciar.
Por incrível que se nos pareça a estrutura social das cidades de
então reproduzia ainda aquela do campo: a oficina do artesão, unidade básica de
produção citadina, assemelhava-se a do meio rural trabalhada pelo camponês
médio. Intensificando-se, as transformações vão colocando no lugar mais alto em
que estavam as aristocracias feudais os novos empreendedores capitalistas,
substituindo as relações do mundo do trabalho dos senhores feudais-camponeses
pela do mundo do trabalho dos capitalistas/trabalhadores: andaimes da nova
formação espacial.
O processo de transição não foi homogêneo em termos espaciais
em virtude das dinâmicas das transformações contarem com intensidades
desiguais: (a) muitas unidades de produção possuíam limitações operacionais e
número reduzido de trabalhadores; (b) situação parecida a das unidades de
comercialização, não sendo volumoso nem o pessoal ocupado no comércio
varejista (que absorvia duas ou três pessoas por unidade comercial) e nem o
alojado no comércio de atacado (os armazéns dos ricos contavam somente com
algumas dezenas de homens); (c) num período em que as cidades possuíam
grande número de desterritorializados e marginalizados que não chegavam,
contudo, a se constituir de imediato em proletariado.
242
O fato é que as cidades medievais pelos idos dos séculos XII e
XIII ainda não representavam substancial antagonismo ao meio rural e nem às
camadas lá residentes, haja vista que o expansivo comércio não se anunciava vilão
a esse modo de produção ou aos seus estamentos. A ordem medieva instituída
pela aristocracia feudal não se sentia ameaçada pela elite burguesa, que nas
cidades que controlavam gozavam de considerável nível de autonomia política e
de privilégios jurisdicionais.
As cidades italianas mais evoluídas mercantilmente à época e
que hegemonizavam o poder em âmbito local, acima da pequena aristocracia
rural, ratificavam a situação de equilíbrio imperante entre esses agentes que social
e territorialmente se encontravam segmentados.
Graves disputas não havia e nem animosidade entre capitalistas
e senhores do mundo agrário. Senhores cada qual de seus espaços,
complementavam-se antes os seus interesses: era comum aos mercadores-
banqueiros-usurários das grandes cidades italianas – à moda do que
experienciavam os pequenos comerciantes das cidades setentrionais –
abastecerem ou emprestarem dinheiro aos governantes feudais e à aristocracia
rural, preferencialmente para que se banqueteassem com a prática das guerras.
O reembolso dos empréstimos pelos que com essa atividade se
ocupavam não era ato de todo acerto, no entanto. Quantias expressivas auferidas
por governantes deixaram de ser restituídas aos seus credores. De sua parte,
alguns dos credores concediam empréstimos à nobreza feudal, já na fase nascente
do capitalismo mercantil, como forma de adiantamento às mercadorias que lhes
seriam oferecidas ao consumo, donde alguma parte do capital far-se-ia recobrada.
Dessa reciprocidade redundaram, inclusive, as expedições
exploratórias e as descobertas-achamentos-reconhecimentos do Novo Mundo.
Pois então, se antagonismos não ocorriam entre senhores feudais
e capitalistas, entre senhores feudais e camponeses o mesmo não poderia se dizer.
Inicial e geralmente expressavam-se os antagonismos de modo latente, noutros
momentos se declaravam abertamente, como o que se presenciou com as revoltas
camponesas do fim da Idade Média, nos conflitos que fizeram reduzir os tributos
243
pagos à classe dominante e ao Estado, aumentando a crise feudal e a autonomia
político-espacial dos camponeses que economicamente já desfrutavam de
autonomia. O poder que se destacava na ordem feudal era o jurídico e mesmo
esse, nas fases de revolta em que os dirigentes usam por costume recuar nas
posições para não perderem totalmente o espaço da batalha, decrescia ante a força
da “sociedade civil”.
Nos períodos em que as contradições sócio-espaciais ainda
podiam ser camufladas era o juramento de fidelidade um importante laço na
relação entre essas camadas sociais. Como ethos da classe dominante feudal, do
qual não se sabe ao certo se reminiscência da cultura de guerreiros germânicos e
de seus chefiados ou da relação entre os magnatas romanos e os seus clientes, fato
é que foi a fidelidade jurada uma espécie de anel cultural a casar deveres e
obrigações.
Os direitos dos camponeses muitas vezes representavam direito
de dever e não de receber, e isso porque a organização social arrumava-se pelo
rural, onde os braços feudais eram mais fortes (cavaleiros, escudeiros, arqueiros,
etc.). A propriedade agrária do feudo (feodum, feudum), propriedade coletiva do
senhor feudal, compunha a base sócio-territorial-militar que organizava essa fase
de desenvolvimento social, e em cada feudo lá estava a prestar os seus serviços ao
estamento explorado dos feudatários, conforme a hierarquia montada pela nobreza
e vigiada pelos seus dependentes armados.
Em se tratando de propriedade, marco jurídico que representava
e regulava a ordem espacial, as formas cardeais se delineavam como:
Propriedade territorial rural: trabalhada pelos servos rendeiros em proveito
dos que se achavam no tope da hierarquia estamental feudal, para a qual
deveria dirigir-se a renda-da-terra reclamada pela coerção não-econômica
(não-mercantil) praticada pelo suserano;
Propriedade artesanal urbana: a cabo de mestres, oficiais, aprendizes e
jornaleiros, eventualmente.
244
Para regular a amplidão da estrutura territorial e a dispersão
populacional valiam-se as camadas superiores de unidades políticas relativamente
grandes, chamadas de monarquias feudais.
Porém, dada a complexidade e heterogeneidade do modo de
produção feudal, duas geograficidades podem ser assinaladas para melhor se
tentar explaná-lo:
Primeira espacialidade do modo de produção feudal: prevalece o elo do
trabalhador com o solo, não sendo facultado o seu transacionar sem a terra
(diferentemente do que sucedia com o escravo do modo de produção
clássico), cujo uso concretizava a exploração do trabalho camponês mediante
a subtração de produtos ou diretamente através dos serviços a que deveria
cumprir se requisitado fosse pela classe dominante; circunstância que não
impedia a possibilidade de o servo acumular certo lucro já que as obrigações
para com o senhor possuíam regularidade e o sobretrabalho suscitado por ele
poderia ser ajuntado através das manufaturas domésticas rurais;
Segunda espacialidade do modo de produção feudal: o trabalho deixa de ser
coagido pela terra e de a ela estar agrilhoado; surge um novo formato de
controle do trabalho nessa fase principesca do capitalismo mercantil: o que
perpassa a coação normativa e contratual de longo prazo que liga a
aprendizagem e os serviços exclusivamente às companhias, guildas e
corporações fechadas.
As formas geográficas de manifestação do ser medievo ilustram
a privação que impele o servo a prestar seus esforços em prol dos possuidores das
terras por “graça e direito divinos”, seja na plantação e colheita para o pagamento
em espécie, seja para o pagamento em tributo monetário ou com dias de trabalho
na semana, quando reparos em estradas e outros quefazeres eram pelos senhores
estipulados; ou ainda, em meio às forças solventes dos espaços de produção
feudais, transitando ao espaço da cidade, espaço da burguesia por excelência,
245
espaço do comércio e duma produção expansiva, espaço do capital mercantil da
geografia nova que começa a ser contornada.
A estrutura é estamental e a organização política personifica-se
diretamente no senhor feudal e em suas assembléias, quer dizer, no Estado
monárquico coligado à Igreja católica romana, prontificados à manutenção do
mecanismo cíclico de regulação e reprodução espacial das economias fechadas,
nas quais a produção se voltava ao consumo ou ao parcimonioso comércio,
igualmente amoldado ao consumo da nobreza.
A função da ordem semelha-se com o comprometimento de
parte da sociedade ter de trabalhar para outra, a exploração se findando na
satisfação (desigual) das necessidades sociais (os superiores espirituais e os de
sangue azul desfrutavam do direito inalienável de regalias). Esporadicamente a
desigualdade se encrava na posse momentânea dos corpos dos feudatários: caso
do “prima-noctis”, quando o senhor feudal apossava-se de noiva alheia nas
núpcias para tê-la nos umbrais da noite, cobertor da desdita.
Há pois, um processo social hierárquico de controle e punição
direta e irrevogável. Domínio efetuado, não obstante e em regra, por meio do
monopólio territorial dos meios de produção social e não diretamente sobre o
subalterno. (Como se executava com o processo de trabalho concernente ao
esclavagismo clássico)
Em termos gerais podemos afirmar que a sociedade feudal,
lastreada pelo modo de produção feudal cuja superestrutura político-jurídica
detinha grande peso, sustentou-se sob duas características especiais: (1) em sua
fase inicial teria o feudalismo se arquitetado espacialmente por meio da garantia
da obrigatoriedade do dever político dos camponeses em ofertar fielmente
excedentes aos senhores feudais, que utilizavam dum ardil extorsivo de conteúdo
mais político que econômico; (2) posteriormente, devido à complexificação
geográfica da sociedade feudal e o crescimento das disputas territoriais, verificou-
se juridicamente a extensão do dever camponês à obrigatoriedade do cumprimento
fiel com as tributações, mormente as de guerra.
246
Ao que respeita ao universo da superestrutura reguladora do
arranjo feudal, sabe-se que realizavam periodicamente assembléias, do
Parlamento e Estados Gerais, para se conciliar da melhor forma possível os
interesses dos senhores de terras e os da elite burguesa ascendente, evitando-se
desavenças que pudessem rachar a cúpula do poder estruturante da sociabilidade e
dos espaços seus de regência socioeconômica.
A propósito, em França e Espanha as assembléias ocorriam
baseadas na divisão-combinação orgânico-tripartida do corpo social sancionada
originalmente pelo clero no século IX como representativa da vontade divina.
Visando representar sócio-espacialmente as forças divinais que rezavam, as forças
militares que lutavam e as forças braçais que trabalhavam, as assembléias eram
constituídas respectivamente pelo clero, nobreza e cidades (“terceiro estado”),
devendo incumbir-se não apenas de emitir sentenças e resoluções como de acusar
de pecado essencial aqueles que as recusassem.
O poder político-religioso dessa doutrina foi tão marcante que só
veio começar a abalar-se por volta do século XVII, quando o ordenamento
progressivo da nova estrutura societária pôs-se em grave desacordo com a
superestrutura político-jurídica arraigada.
Outros agentes vingaram com a urbanização, exigindo sua
acomodação espacial, porém, uma vez rompida a ordem feudal, foi nas sombras
das mesmas bandeiras de harmonia e imutabilidade sociais de outrora que a
burguesia programou o ajuste social.
Mudam-se os ordenadores e o ordenamento político, econômico
e espacial. Mantém-se a obrigatoriedade hierarquicamente estática da ordem.
Da contradição estabelecida entre a geografia das forças
produtivas e o ser das relações sociais de produção originou-se a metamorfose da
espacialidade européia, com a nova formação econômico-social nascendo de seu
ventre, como período histórico de desenvolvimento posterior à fase feudal.
O qualitativo berçário que representou o feudalismo a um modo
de produção subseqüente constituiu-se, na opinião de inúmeros pensadores, uma
247
das suas especialidades distintivas, não encontradiças nos modos de produção
previamente conhecidos.
O sismo geográfico da formação social européia adveio da
colisão da placa espacial do mundo rural com a placa espacial mundo urbano, que
movia e crescia sem cessar.
As cidades de locus do trabalho privado enveredam-se a um
processo de transformação que – imitando os feudos quanto à necessidade de
defesa, competição e influência na estrutura social – muito contribuiu ao despertar
de guildas de mestres artesãos ou comerciantes que, com o tempo, foram se
conflitando com os aprendizes e oficiais por motivo do expandir econômico e
territorial de forças produtivas que se avolumavam, alterando todo o complexo do
ser social medievo e da espacialidade com a qual se alentava.
Quase que adormecida desde o mundo antigo, a cidade acorda
com força suficiente para ajudar a enterrar o feudalismo mais adiante.
Alicerce geográfico do mundo moderno, plataforma industrial e
de maquinarias e base concentradora de populações esparsas, descampesinando
populações e realocando força de trabalho, a cidade far-se-á aos poucos a base
geográfica da nova forma de produzir.
Se no modo de produção grego antigo as cidades representavam
o substrato do poder político (cidades-Estado) de uma espacialidade
genuinamente marcada pela cidadania e trocas de certas mercadorias; assumindo
no modo de produção asiático das sociedades orientais nada mais que a função de
políticos “acampamentos principescos” e criaturas do Estado; no feudalismo
colocar-se-ão como instâncias da seminal divisão espacial engendrada pelo rural-
urbano como unidades independentes politicamente.
A partir das cidades medievais, senão totalmente rasgado no
início, costurou-se o tecido multicolorido do desrespeito e ousadia de artesãos e
mercadores que nelas selavam morada.
Transformou-se ao longo do tempo o conteúdo das cidades
tendo em vista a alteração da lógica organizadora do espaço, e transmutou-se a
248
lógica ordenadora do espaço porque se mexeu no equilíbrio da relação entre
forças produtivas e relações de produção no âmbito do rural-urbano.
O capitalismo fortalecido pela cidade e seu incentivador
deliberado pela primeira vez na história aprofundou significativamente a
incipiente divisão espacial cidade-campo, alimentando uma tensão que não cerrou
em majorar porque as formas e funções existentes se queriam outras que não as de
outrora.
Dimana-se a partir da cidade não apenas a política, como a
economia e a geopolítica nela planeada.
O novo espaço-mundo tem berço nas cidades feudais que vão se
revolucionando em seu transitar para o capitalismo. Instalam-se como sede da
nova camada economicamente dominante (burguesia), como plataforma das
revoluções industriais e palco privilegiado à realização dos valores-de-troca.
Do interior do modo de produção feudal eleva-se a contradição
entre o desenvolvimento das forças materiais de produção e as relações sociais
enrijecidas. O agigantar da produção e o esparramar das trocas colocam-se em
choque com a tradicional expressão jurídica, isto é, com as relações de
propriedade feudais (organizações agrícola e manufatureira auto-suficientes).
Exaurindo o feudalismo, o modo de produção capitalista emerge
das mãos e mentes dos novos atores sociais, que gradualmente vão traçando a
nova geografia socioeconômica que querem por mundial151.
Os laços de cordialidade havida entre agentes feudais e agentes
econômicos vão se tornando mais frouxos152.
151 Ao Marx era ponto resoluto o fato de o capitalismo ter surgido como etapa necessária e sucessória ao feudalismo: absorvendo ou empregando nas manufaturas os egressos do campo que afluíam às cidades; enquanto que os modos de produção escravista, oriental, germânico (não limitado a um povo), eslavo (similar a oriental) e feudal se lhe compareciam mais como fases alternativas à sociedade comunal primitiva. 152 Como entidade periódica de desenvolvimento da formação econômica da sociedade medieva agarrada à servilidade, o modo de produção feudal topou com forças produtivas em notável solavanco; impossível seria o trono social burguês em modelagem dividir em longo prazo a coroa social com cabeças feudais. Apenas em momentos de crises, guerras ou revoluções se torna possível a existência duma formação econômica da sociedade contar com mais que um modo de produção (KRADER, 1987; DOBB, 1963). Superada a fase transitória, tende o modo de produção mais dinâmico a aniquilar os seus antecessores, podendo ou não adir formas particulares e passadas de relações econômicas ao seu metabolismo.
249
Diferindo-se do meio rural em que se operava a propriedade
comunal da terra e outrossim distinguindo-se do meio urbano medievo gerido
pelas guildas que tornavam o trabalhador proprietário dos meios de produção, a
cidade moderna transforma-se em palco da separação entre o trabalhador e as
condições objetivas de produção, peculiaridade que faculta ao capitalismo
espraiar-se mais velozmente não somente na condição situacional da propriedade
da terra (com a proletarização dos camponeses) como por fora dessa (pela divisão
do trabalho no meio urbano).
O capital não advém genesicamente das entranhas da cidade, já
existindo em sociedades anteriores. O modo de produção do capital irrompeu do
ventre da sociedade medieva contudo, como força suprema centrada no trabalho
excedente produtor de valor-de-troca que prima a persecução da riqueza em-si,
ilimitada, desapega do consumo e da satisfação real dos “homens”; algo
absolutamente distinto do feudalismo, que focava valores-de-uso (e talvez
valores-de-abuso).
Ao dissolver das formas de subsunção do trabalho camponês ou
da propriedade feudal (pequenos camponeses, fazendeiros ou arrendatários)
caminha a tendência de formação do contingente de força de trabalho
potencialmente livre e que afluem às cidades que já hospedam ofícios
independentes e não-agrícolas, estruturados em agremiações produtoras de
mercadorias que demonstram hábil capacidade laborativa e organizativa aos
trabalhadores-livres; estes, de sua parte, vêem o seu trabalho ser separado dos
demais elementos de produção sincronicamente ao processo em que os valores-
de-uso são subsumidos aos de troca.
Tudo isso em compasso com o farejar aguçado da riqueza
monetária ainda não constituída em capital e que, acumulada pelo comércio e pela
usura, espera o momento de tomar as rédeas da sociedade, colocando o espaço
citadino, rural, nacional e internacional sob os traços de sua régua e esquadro...
Fê-lo!
2.1.3.5 O modo de produção capitalista
250
“Que se faça o sacrifício. E cresçam logo as crianças”
(Aloha, Legião Urbana).
----------------------------------------------
“Para que uns floresçam, outros crescem atrofiadamente”
(Florestan Fernandes).
--------------------------------------------
“Nós somos o terceiro mundo digital”
(Terceiro Mundo Digital, Capital Inicial).
A denominação capitalismo origina-se tardiamente, se
pensarmos na evolução do pensamento marxiano exposto nas primeiras obras.
Nem no Manifesto ou no livro primeiro de O Capital ela se manifesta; o que não
se verifica com os termos: capitalista e capitalistas, habitualmente empregados.
Somente em 1877, nos escritos enviados a seguidores russos é que esse
substantivo é trazido à luz por Marx.
Não mais que para clarificar a complicação que tolda a
classificação sobre os modos de produção, cremos que a compreensão do
capitalismo detém destacável importância não só pela complexificação e pelo
dinamismo societários inerentes ao seu movimento, como também pelo fato de os
teóricos da economia política burguesa preferirem não só dispensá-lo como negar
as idéias básicas marxianas, robustecendo a luta de classes no terreno teórico-
conceitual e ensombrecendo a ciência da história com fabulas e estórias.
Conheçamos o processo histórico-geográfico da concreção
capitalista para cotejá-lo ao que dele se figura, porque não raramente insurgem
proposições teóricas a quererem situá-lo em épocas longínquas e distanciadas
pelos milênios, confundindo-se capital e capitalismo153.
153 Nas reflexões realizadas (RIBEIRO, 2001b, p. 173 et seq.; idem, 2004c) contrapomos as idéias generalizantes de Weber sobre o capitalismo às teorias marxistas que cuidam de distinguir o capital (existente há mais de três mil anos na história) do capitalismo, que se faz hegemônico como modo de produção ou, diria Harvey, como modo de vida sob a expansão da forma mercantil.
251
O problema maior dos teóricos está na identificação dos
elementos e leis essenciais a essa formação social, que ora acusamos como: (a) o
salariamento por tempo ou tarefa; (b) o trabalho não-pago realizado pela classe
desposada dos meios geográficos de produção; (c) a produção de mercadorias; (d)
o mercado; (e) as relações contratuais da teia político-jurisdicional montada pelo
Estado; (f) a existência do equivalente universal de trocas e unidade a pesos e
medidas, proclamada ordinariamente sob forma monetária, flexível e de maior
liquidez: o dinheiro; e, acima de tudo, (g) a intenção de reprodução ampliada
como meta nuclear do ser capitalista, qual unidade do diverso metamorfoseante
cegado pelo brilho do excedente dilatado e a todo custo perseguido.
Temos que o princípio e o bastião do capitalismo é a produção
de mercadoria, entretanto, não devemos esquecer que, não deixando de
permanecer condição necessária e suficiente, não é a mercadoria a finalidade do
capital mas a sua reprodução ampliada, como expansão permanente, geração e
acumulação de riqueza abstrata (MOREIRA, 1988b, p. 73; RIBEIRO, 2005b, p.
12; BELLUZZO, 2005a, p. 13). Cogente o calvário da produção material de
mercadorias e da exploração da força de trabalho entrementes não inevitável,
como notaram o revolucionário Marx e o burguês inglês John Maynard Keynes
(1883-1946), que perceberam que a acumulação pode operar desvairadamente
pelo realizar da abstração de suas próprias formas particulares (capital-produtivo,
capital-mercadoria, capital-monetário154), aperfeiçoando sua natureza absurda.
Feitas as interpretações de cunho abstrato, percebamos o seu
desdobrar na concretude do histórico-geográfico, na formação do espaço
dominado pela plutocracia econômica.
Surgido no Norte de Itália, Inglaterra, Países Baixos, Catalunha
e regiões limítrofes, o modo capitalista de produção expandiu-se pelo mundo com
dimensão territorial igualada ao modo escravista clássico de produção, porquanto
o feudal e o “asiático” cingirem-se a certas áreas de Europa e Ásia.
154 Entenda como sinônimo de capital-monetário o capital a juros, por centrar-se no valor-rentista sugado contemporaneamente por via fictício-especulativa e meta-salarial, pela superexploração da força de trabalho.
252
Distintamente das demais, na formação econômica da sociedade
capitalista percebe-se existir níveis mais amplos, complexos, sistemáticos e
estruturais (não-esporádicos) de cooperação humana, dimensionados à produção
de mercadorias comerciadas entre regiões longínquas.
Todavia, se a produção de mercadorias teve apogeu nessa
quadra da história, nela não se originou. O fabrico de mercadorias data de 10 a 12
mil anos no Oriente Médio: fase em que se deu a primeira divisão do trabalho e a
formação das primevas cidades.
Hoje é patente que algumas formas de relações econômicas da
era moderna ou contemporânea já existiam em espaços da antiguidade, não
obstante de modo marginal, como: lucro, salário, mercadoria e capital. Fenômeno
insuficiente para atribuir veridicidade às teses que tentam impetrar o capitalismo
em épocas deveras antigas, tendo em vista que o modo de produção dominante
tem por característica central um elemento que arruma a economia espacial e o
modo de vida sem impedir que coexistam substâncias econômicas de outros
sistemas. Basta notarmos que do mesmo modo que existia salariamento no regime
escravista antigo existe escravidão não-salariada no capitalista coevo, por isso da
importância do entendimento das partes-fenômenos (escravidão, salário, capital,
etc.) na relação com as distintas e determinantes totalidades-sociais.
A propriedade burguesa moderna tem a cidade como base
principal de produção de mercadorias. Aprofundando a já existente separação
cidade-campo, a cidade ampliou ao mesmo tempo a divisão do trabalho entre
produção e comércio no nível cidade-cidade na Idade Média; situação que
propiciou, sincronicamente à divisão interna da força de trabalho, a especialização
produtiva na rede funcional da divisão sócio-territorial do trabalho no plano
produtivo intra, inter e extracitadino.
O comércio abraça grandes distâncias e, do impulso mirado de
com a Índia estar-se a comerciar, novas rotas e novos continentes são descobertos
para gerar riqueza e dar fim ao bloqueio interposto pelo monopolismo árabe à
geografia da circulação existente, que geralmente por navegação de cabotagem ou
253
por travessias continentais se trilhava (objetivo esse almejado significativamente
pelo Portugal da dinastia Avis, no século XIII).
Aos anseios econômicos do capitalismo mercantil contribuíram
o estado de desenvolvimento técnico já alcançado na arte do vogar com a
qualificação de esquadras navais e de tripulantes (destaque para a lusitana Escola
de Sagres), o aprimoramento dos instrumentos de navegação e orientação (o
astrolábio a indicar a longitude, a bússola a assinalar o norte magnético e as naus a
proporcionar maior capacidade de transporte e de velocidade de deslocamento do
que as caravelas), o próspero intercâmbio de informações, o acréscimo
populacional e o refloramento de lendas antigas, como por exemplo o antigo mito
grego das mulheres guerreiras, recuperadas no romper da Idade Moderna e
transplantadas ao Novo Mundo por Francisco de Orellana, que afirmou tê-las
avistado em paradeiros amazonenses, ou a tradição mítica do Eldorado que no
interior de territórios desconhecidos cintilavam, nos picos de serras ou em
profundezas lacustres, fazendo com que muitos, cegos pela força do imaginativo,
intentassem encontrá-la, como ocorrera com caçador de esmeraldas Francisco
Dias Paes, que distâncias vastas percorreu na busca pela serra metálica de
Sabarabuçu e de Vapabuçu, a esmeraldina pousada lacustre; também havia outras
lendas, como a do reino de Prestes João, a da fonte da juventude, do paraíso
terrestre, etc.
A riqueza econômica sobrepôs-se à riqueza cultural. O Outro e o
Novo Mundo foram vistos pelo míope olhar lusocêntrico, hispanocêntrico,
italocêntrico, germanocêntrico... eurocêntrico enfim. Deu-se assim a
modernização conservadora em nível cultural155.
155 As teorias medievais casadas ao processo material em curso ergueram-se como barreira à aceitação da sociodiversidade. Em termo cultural, as desavenças já grandes entre os europeus tornam-se maiores para com o Outro. O método metafísico-idealista pode ser percebido no silogismo formal da teoria dos Três Filhos de Noé=Três Continentes, na tese de que seriam os decaídos do Paraíso ou na afirmação de que o ameríndio seria desalmado (pinçando a tese aristotélica de que escravos são desalmados e que podem ser explorados, até que formalmente a bula papal do III Paulo, de 1537, negasse essa condição). Os juízos de valor respondiam aos imperativos econômicos da burguesia, aliada então dos soberanos e por ideólogos monásticos assessorada. Embora a colisão cultural tenha sido mais degenerativa ao mundo dos ameríndios que tiveram seu modo de produção, ou seu sistema de objetos (se emprestarmos a terminologia de M. Santos), substituído pelo do sistema de técnicas e idéias alienígenas (sistema de idéias), do lado
254
Casava-se a fé pela busca de mercancias que temperaria a
ganância da européia burguesia comercial alvorescente com a ânsia por riqueza e
fama dos que capitaneavam frotas por mares que despistavam a vista.
Os aparelhos ideológicos europeus, do serviço exercido a
territórios feudais fracionados orientando-se aos Estado-territoriais consolidados,
prestados pelas confrarias religiosas da Santa Família Católica, coligadas no
momento ao poder monárquico, foram encarregadas de domesticar os nativos com
a finalidade de colonizar terras e imaginários e para melhor reger os espaços
objetivos e mentais (GRUZINSKI, 2003). Foi tal a maestria a esse feito, que
algumas instituições, como a Sociedade de Jesus, dadas as vantagens de crédito,
liquidez, administração especializada e poder financeiro global capacitado a
resistir a perdas de empreendimentos isolados, chegam a ser comparadas a uma
europeu também houve transformações. As inquietações persistem ainda hoje, transcursados já mais de quinhentos anos do oficial “achamento”. As discórdias podem ser percebidas no que atine à própria gênese desses povos: havia pouco era desacreditada a hipótese da origem autóctone dos povos ameríndios (acaso verdadeiro, para muitos tal princípio confirmaria a sua não-humanidade, por não procederem hereditariamente do Adão bíblico). A sentença da não-nascença dos índios na América ademais, tão-somente presentemente fez-se maculada por peritos antropólogos, e tal por que o mundo continua a mover-se, o “passado” inclusive, por meio das mentes dos que interpelam as versões clássicas das paisagens conceituais rigidificadas, entrechocando informações novas que vão surgindo no presente com aquelas tradicionais. Niéde Guidon aqui se destaca por seus estudos realizados no Nordeste do Brasil, trazendo à luz (no Programa Roda Viva, TV Cultura, 2003) datações que comprovam a presença humana a algo próximo há 50 mil anos, especialmente no Piauí, na região conhecida como Pedra Furada; hipótese sustentada pelo encontro de indícios de fogueiras acendidas intencionalmente com tais datações antigas. Teorias como a do povoamento por migração, pelo Estreito de Bering ou pela Terra do Fogo via Polinésia, dividem terreno com a asserção da arqueóloga de que o movimento populacional poderia ter-se dado de maneira inversa, como quando especula a pensadora sobre a origem do “ameríndio” na América do Sul, a dirigir-se e povoar, na seqüência, os continentes americanos setentrionais. Outra problemática significativa circunda a questão de se as populações habitantes da região amazônica constituíram-se em grandes civilizações e se teriam sido elas portadoras de efetivo desenvolvimento técnico, como ocorreram com as civilizações andinas sul-americanas dos incas e a meso-americana dos maias no que atualmente é território mexicano. Meggers (1977) sempre endossou juízo contrário à idéia da existência de grandes civilizações nessa porção do continente, de que não haveria nem grandes aglomerados populacionais e menos ainda substantivo desenvolvimento técnico na região por tanto tempo considerada como paraíso. Pesquisas recentes na região amazônica, divulgada por Marion Lloyd no The Boston Globe, de 5/1/2005, sinalizam o contrário, com a descoberta de técnicas de enriquecimento dos solos para a prática agrícola, entre outros indicativos que aumentam a força dos que arrogam a veracidade de terem se tratado de sociedades complexas e não tão simples como se costumou crer. Para maiores informações, ver a manchete de Lloyd, intitulada: Amazônia teve nação pré-colombiana, diz estudo. Apenas uma sociedade complexa poderia tornar fértil o solo tropical, no site: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/boston/2005/01/05/ult583u217.jhtm. Sobre as correntes migratórias de povoamento americano, ver: Novos dados lançam dúvida sobre homem americano, disponível em http://www.comciencia.br/reportagens/arqueologia/arq02.shtml. Ou para ler Luzia e a saga dos primeiros americanos, acessar o site: http://www.sciam.com.br
255
empresa multinacional, até porque os jesuítas se recusavam constantemente a
pagar dízimo e taxas alfandegárias, gerando forte ressentimento entre os
colonizadores (MAXWELL, Folha de São Paulo, 8/6/2003, p. 15).
No que respeita ao mundo do trabalho, já se atém à produção de
valores-de-troca, permutado pelo dinheiro que esconde a relação de assalto de
mais-valia e que se presta a cobrir a subsistência do trabalhador no mundo das
mercadorias, vez que apartado definitivamente da terra. Então, o diferencial é que
a propriedade burguesa não mais se apropria de homens (escravos e servos) mas
de mais-trabalho (mais-valia, mais-valor, valor-trabalho, sobre-trabalho,
excedente social abstrato) a partir de camponeses e outros tornados diaristas
“livres”, ocupados em fiações e tecelagens do meio urbano e à margem do
controle de guildas ou corporações de ofício.
Paralelamente ao movimento material, o turbilhão cultural.
Imperativa a transição do pensamento: (a) a natureza não mais deveria ser temida
e o entorno desprestigiado (campo e não-urbano vistos como caos, como era
comum ao continente europeu)156, (b) o corpo não deveria ser envilecido e
unicamente a interioridade aventada, (c) nem o trabalho odiado e aos inferiores
claramente assacado para o glorificar do ócio157. (Como se passava,
respectivamente, com os escravos gregos e os servos das Idades Antiga e Média).
O capitalismo é um modo de produção sistêmico, totalidade e
processo de totalização social de tamanha complexidade e ardileza porque se
156 A visão de natureza e seu conceito vão rápido se modificando: a explicação teológica cede lugar à de objeto a ser naturalmente enlaçado e domado, em um espaço crescentemente desdivinizado, até que, mais adiante, em movimento inverso ao dos fisiocratas do século XVIII que tinham a natureza e o trabalho agrícola como fontes diretas do valor, os economistas clássicos e ideólogos do liberalismo do século XIX (período que se estende de D. Ricardo, T. R. Malthus [1766-1834] até John Stuart Mill [1806-1873]) secundam o papel da natureza na teoria econômica, vendo-a como estorvo ao desenvolvimento econômico e motivo essencial de crises. No fim das contas, teve pouco efeito prático a tentativa de reproduzir na Europa as cidades-jardins para o regozijo com a natureza socialmente produzida em meio à urbe, como se fosse válvula de escape, acalento e retorno a tempos idos para se suportar as agruras sufocantes dos cotidianos residencial e fabril. Processo sem volta, a natureza vai aproximando-se do ápice da desdivinização, até que a dessacralização se completa no século XX, como efeito mais maduro da II Revolução Industrial, quando definitivamente se transita da fase agrário-mercantil à urbano-industrial. 157 Nota-se nesse mix de mutações que o trabalho agora porta o conteúdo que diferencia o homem dos demais animais viventes.
256
utiliza do ensombrecimento cultural para alastrar sua mundividência ideológica
expressa nas dualidades, fragmentos e cacos de turvas interpretações.
Desde a gênese o capital recria dualidades, como a que alude à
terra e ao céu: noções de natureza excludentes traçadas para contestar os valores
seculares e a espiritualidade da natureza com o escopo de afirmar os valores
(valor-trabalho) e a praticidade do novo homem (homo oeconomico).
Homem (corpo) e mundo (natureza) se re-apresentam no olhar
(burguês) conforme ordenança da forma que assume o fazer (acumular).
O dínamo social corporifica-se na camada societal que, imersa e
desenvolvida nos feudos, paulatinamente pôs-se a se defender de senhores feudais
até que, à medida que avançava a divisão do trabalho e a especialização produtiva,
com as demais facções possuidoras veio a se constituir na classe burguesa. Essa
nova classe, distintamente do proletariado despossuído, passou a controlar as
formas geográficas de propriedade que se iam convertendo em capital comercial e
industrial.
Os efeitos do remonte da espacialidade do corpo social pelo
capitalismo são variados, citamos quatro, concernentes ao:
Homem: com os sujeitos divididos sendo ulteriormente unificados na
contradição antagônica que recheia o ser capitalista (divisão social homem x
homem);
Trabalho: técnica e socialmente cada vez mais atomizado (divisão técnica,
social e territorial do trabalho), sendo material e intelectualmente acionado
como o conjunto de atividade humana que, em busca de maior produtividade
na relação com a natureza, fez complexificar o número de necessidades e de
relações sociais, impulsionando a consciência também ao (não obstante
alienado) maior desenvolvimento;
Território: suplantação dos espaços auto-ordenados e co-geridos pela
espacialidade hegemônica expandida e infundida socialmente mediante a
segregação entre detentores e desposados dos meios geográficos de produção,
e que, fundeados em modernas tecnologias, de pontos do espaço distintos-
257
distantes-coligados ordenam a espacialidade com base em vetores
hegemônicos universalizados (capital e Estado), na interescalaridade
traduzida na operação da ocupação-produção-gerenciamento do espaço
global (divisão, compartimentação ou fragmentação do espaço, para Milton
Santos; compressão do espaço para o anglo-americano David Harvey;
diversificação e densificação do espaço, para Ruy Moreira);
Natureza: rotulada como o não-humano, o orgânico e inorgânico do mundo
exterior, a servir de propulsor ao Progresso Social pelo ofertamento de
recursos naturais e energéticos que – pela gênese divinal-natural – não mais
que a isso prestaria (divisão divindade x humanidade, paraíso x terrenalidade,
homem x meio, homem x natureza).
Superada a fase do capitalismo concorrencial dos séculos XVI e
XVII em que predominavam os mecanismos de produção simples (artesanal) de
mercadorias, o capitalismo imperialista, sobretudo a partir da segunda metade do
século XVIII, passa a querer formatar mais decididamente a sociedade no molde
espacial fabril e industrial de reprodução ampliada (máquinas-ferramentas) de
mercadorias, rasgando a realidade dos fenômenos e das coisas que a compõem e,
assim, as classes soberanas recosturam a Natureza no trançado da linha do capital,
na colcha de retalhos que ainda ganha a tintura das cada vez mais poderosas
posições teleológicas secundárias.
Com as espacialidades geografadas com o aparecimento da
civilização, das sociedades de classes; com a alienação e complexificação dual-
polarizante do tecido social; com o espaço e a natureza galvanizando-se como
objetos a segmentar os homens para que riquezas fossem obtidas a custo da
maioria, arquitetaram-se outras tramas teleológico-pragmáticas, agora mistificadas
não mais espontaneamente, mas fetichizadas intencionalmente porque, por sobre a
visão de mundo que deitava no homem o destaque natural divinamente
preconizado ou que a própria evolução material da natureza cuidou de engendrar,
desenvolve-se a concepção que tenta ajustá-lo ao novo acordo na relação homem
x natureza x sociedade, ao se cristalizar o trabalho (concreto x abstrato) como
258
dividido e alienado, dum árduo transpirar que passa a ser ideologicamente
sacralizado, independentemente de ser ou não a natureza ou outro homem (classe
x classe) o que cria as dificuldades para que a satisfação se alcance com
exploração e hierarquização, porque o Julgamento Final a tais questões ao
Homem não caberia (juízo de valor x juízo de fato, espacialidade comunalmente
gerida x espacialidade superestrutural burguesa).
Aquele continuum homem-natureza pré-capitalista ou
extracapitalista quebra-se na descontinuidade dos fragmentos soltos. Do primitivo
espaço concreto fantasiosamente interpretado dirige-se à pseudoconcreticidade do
espaço moderno, falaciosamente interpretado. Neste a volição pela diferenciação a
tudo decompõe, a natureza e tudo o mais, concomitantemente aos reajustes
institucionais que se estabelecem entre os novos atores econômicos emergentes.
Porém, necessário dizer, o desenvolvimento e universalização
do capitalismo só se realizam quando são cultivadas as condições materiais para
tais. Não havia como ter desenvolvimento tecnológico vinculado a cidades que
comerciassem tão-só em âmbito regional e, para que esse prodígio de maior
escalaridade ocorresse, perigos de guerras e de invasões deveriam ser afastados;
além disso, a economia florescente carecia de cânones que contraditassem a de
certo modo ainda territorialmente anarquizada superestrutura vigente, e os foram
moldando paulatinamente: aqui criação de moeda única, acolá unificação
territorial a tornar miríada de insulares feudos em Estados-nacionais, depois
guarnição de fronteiras por exército real permanente, tudo respaldado pela
regulação espacial encimada no aumento do funcionalismo e da burocracia.
Inventividades sucedendo inventividades na nova era luzente.
Nas cidades a divisão do trabalho gera a autonomia das
manufaturas para com as corporações que na Inglaterra e França restringiam-se ao
mercado interno e na Itália e Flandres avançam na conquista do mercado externo,
e os condicionantes disso estavam tanto na densidade populacional que aumentava
nas cidades como no incremento da concentração do capital dentro e fora das
corporações, sobretudo no setor manufatureiro da tecelagem que absorvia os
camponeses feudais, serviçais ou ex-integrantes de exércitos de senhores feudais –
259
lembremos que as guildas os rejeitavam – que migravam às cidades após sofrerem
com as mudanças na estrutura agrária, em especial com os progressos da
agricultura e as transformações de plantações em pastagens.
Enquanto isso, internamente às manufaturas se compunha a
relação entre capitalistas e trabalhadores. Da relação competitiva entre
manufaturas (guerras comerciais, tarifárias e proibições) processou-se o
ordenamento político do mercantilismo em ternos nacionais, entre nações que
passaram a competir entre si. A essa expansão comercial converge a descoberta da
América158 e a da rota que leva à Índia, com a importação de produtos do além-
mar (especialmente ouro) que vão causar duro impacto na propriedade territorial
feudal e nas relações de classes ossificadas.
Esses fatores somados caracterizarão a nova fase do
desenvolvimento histórico que tem a cidade por pólo arrumador dos territórios,
dada às forças produtivas industriais que soterram o corporativismo estreito das
relações de produção das guildas para enfim transbordar geograficamente pelo
mundo, instituindo uma espacialidade desigualmente combinada na sociedade das
mercadorias que se grassa engendrando o processo de urbanização do rural.
Marx e Engels (1996) caracterizaram como dois os períodos
cruciais da indústria: (1) o que vai à metade do século XVII e (2) o que vai do
século XVII ao fim do século XVIII.
A Grã-Bretanha faz-se destacada como potência industrial por
ter-se aproveitado da concentração econômico-espacial do comércio e das
158 Indícios de conhecimento de certas partes do mundo ocidental não se limitam a remos europeus. Pesquisadores ingleses e americanos conjeturam sobre a possibilidade de a China da dinastia Ming, chefiada por Zhu Di e apoiada pelo almirante Zheng He (1371-1433) ter viajado por mais de 37 países no mundo no início do século XV a fim de confirmar a qualidade de uma das potências da época mediante pagamento de tributos das terras longínquas, tendo alcançado a Europa (Portugal, Holanda e França, entre alguns), África (ilhas Pate, nas costas do Quênia) e América (há meio século antes de Colombo, Zheng He teria visitado os atuais México, Caribe, Flórida e Califórnia), contornando o temido Cabo Horn e realizando viagem ao redor do globo aproximadamente 100 anos antes de Fernão de Magalhães (RODRIGUES [ed.], 2005, p. 18-20). Andrade (2000; RIBEIRO, 2001b, p. 31, nota de rodapé no 9) sinalizou para essa mesma questão, afirmando visitas anteriores a essa parte do mundo. Do mesmo modo, Lencioni (2003, p. 50-51) reporta-se a povos como os vikings e os islandeses, sendo que os últimos no ano 1000, quando em dirigindo e por uma tenebrosa tempestade da rota da Groelândia se desviando, teriam acidentalmente atingido o que se convencionou denominar de Novo Mundo, as terras da América do Norte.
260
manufaturas no século XVII, o que lhe permitiu o controle do mercado mundial.
Ademais, a demanda havida por produtos manufaturados que necessitavam de
novas forças industriais produtivas corroborou grandemente ao êxito inglês.
Como os demais modos de produção, o período de
desenvolvimento do capitalismo não se reproduz imunemente às relações sociais
(contraditórias) que desperta porque o capitalismo é múltiplo em movimentos que
interagem contradizendo-se reciprocamente (geografias centrais x geografias
periféricas, relação capital x trabalho, capital x capital), com uma revolução
econômica muitas vezes não se reverberando no padrão político-ideológico
característico, ou seja, sem que a revolução política se efetue em perfeita sintonia.
(Caso do Brasil, que desde o fim do século retrasado é conhecedor principiante do
capitalismo de tipo industrial mas que apenas no último quinto do século XX
passou a reexperienciar gradualmente a plena, ou quase, democracia burguesa)
Confunde ainda a classificação o fato de o capitalismo
retroalimentar-se do desenvolvimento desigual e combinado de relações
econômicas e de espaços distintos e satelizados ao centro de gravidade da
economia nascente européia.
Inicia-se daí uma profunda discussão, entre os que afiançam que
a empresa do Brasil colônia compunha um modo de produção colonial (sistema
colonial) jungido ao modo de produção central e hegemônico europeu (sistema
capitalista em sua fase mercantil de acumulação simples e primitiva), enquanto
outros declaram que o desenvolvimento desigual à época não se processou por
essa combinação de modos de produzir diferentes e hierarquizados, chefiados pelo
regime do capital, crendo que o desenvolvimento desigual processou-se por
dentro do capitalismo, que já nas economias coloniais ou marginais se expressava,
combinando espacialidades desiguais: sejam as centradas na manufatura,
maquinofatura e atividade credora européia dum lado, ou nos espaços produtores
de matérias-primas e produtos de gêneros alimentícios nas economias agro-
exportacionistas assentadas no binômio escravidão-latifúndio, de outro.
Outros ainda conseguiam enxergar atitudes feudais por essas
paragens, basicamente em conta das territorialmente vastas e socialmente
261
concentradas propriedades agrárias, em mãos dos que político-economicamente
detinham o poder em nível local e regional, nos espaços moleculares regidos pelas
unidades autônomas de produção e auto-sustento. (Partidários dessa teoria
costumam alegar inclusive que são os resquícios feudais que deveriam até bem
recentemente ser eliminados por meio de transição efetivamente capitalista no
meio agrário, porque tal estrutura estaria a atravancar o desenvolvimento do
capitalismo no campo)
Alguns dos termos mais incandescentes neste debate aludem ao
caráter do lucro existente no Brasil-empresa, atributo suficientemente sólido para
tê-lo como forma particularizada de manifestação do capitalismo reinante.
Conquanto outros se defenderem argüindo inexistir o elementar característico ao
capitalismo: o fator salário. Na continuidade do debate, as justificativas de o
escravo ter sido o elemento-capital ou o capital-fixo imperante.
Aparenta no fundo que a discussão gira em redor dos que
advogam um caráter já internacionalista dos vetores essenciais do capitalismo
(lucro e propriedades privadas, humana e territorial, dimensionadas uno-
diversificadamente à produção de valores-de-troca) contra os que anunciam um
capitalismo de certas nações européias restrito territorialmente e imaturo
economicamente para expandir-se como sistema universal e hegemônico, senão
pelo meandro mercantil da esfera circulacionista, por meio do qual coligava os
subsistemas semeados pelo planeta.
O turbilhão teórico-interpretativo das formações sociais
européias e mundiais e os estudos por elas entusiasmados, que por sua vez aflui na
hermenêutica dos estudos comparativos voltados à realidade brasileira, está na
dita base da série de considerações sobre a origem, a criação e o caráter do
desenvolvimento da formação social brasileira, entre os que crêem que muitas das
sociedades comunalistas pré-cabralinas foram açoitadas e mescladas a uma
economia feudal, outros tendo a formação sócio-espacial brasileira por um
(sub)sistema escravista, e outros ainda concebendo-a como economia de mercado
que sistemicamente-mundialmente (o sistema-mundo já se confeccionando
internacionalmente, interterritorialmente) punha-se organizada pela essência do
262
capital a partir já de formas secundarizadas-periferizadas de manifestação da
relação-social-capital, que não seria única e homogênea mas hegemônica e
secundariamente heterogeneizada desde então.
Poderia não apenas essa época dominada pela esfera da
circulação ser tachada como propícia à heterogeneidade estrutural das formas de
realização do capital (então mercantil) ou, mais que isso, até a fase atual,
novamente chefiada pela esfera da circulação (agora pela financeirização da
economia), ressuscitaria a proeminência de um trabalho mais polissêmico, como
multicoloridas as formas de sua realização e de captação do excedente social? O
caráter mimético do capitalismo camaleônico e satelizado brasileiro poderia ser
ajustado conceitualmente como forma de entender as distintas colorações básicas:
o amarelo-ouro dos burgueses e o vermelho-sangue dos explorados, salarialmente
ou não nos confins do capitalismo, onde suas formas de regressividades são mais
agudas? Ou haveria uma idéia-molde ao que seria o capital (mais abstrata que
empiricamente), desmerecendo o fato de antes de tudo ser o capitalismo a relação
social-geográfica-histórica que se desenvolve e reenvolve de forma desigual e
combinada e não uniformemente, com todas as demais a imitá-la, purificando-se?
Há fortes indicativos de que nas fases de centralização da
economia pela esfera produtiva dá-se a maior difusão de formas-padrão mais
homogeneizadas de relação social e de trabalho, ao passo que nas centradas pela
esfera da circulação (como ocorrera com o capitalismo mercantil e a que volta a se
repetir com o capitalismo financeiro) torna-se possível a maior heterogeneidade
das normas e formas de realização do capital, como que se a realização de
experimentos fosse até salutar para que, vez inventado um mecanismo novo
otimizador de mais-valia, posteriormente o fosse reproduzido ampliadamente,
sobressaindo-se como nova forma-padrão.
Desacreditamos a idéia de estarmos a atravessar qualquer
transição de modo de produção, em que misturas e heterogeneidades são mais
comuns. Também não entendemos que fatores como a abusiva superexploração da
força de trabalho – que levam juristas e teóricos das mais variadas matizes a se
descabelar na discussão sobre a forma conceitual das relações de “trabalho
263
análogas à escravidão”, ou seja lá as outras denominações atribuídas – sejam
meros fatores culturais entrecruzados à crise conjuntural, aprofundando
negativamente a particularidade histórica de países como o Brasil, expressão
duma história escravista ainda longe de se cicatrizar.
Reforcemos os por quês.
A condição de escravidão que vem do mundo antigo, donde
igualmente provém o capital, a mercadoria e o salário, não deixa de ser processo
combinado e capitalizado de geração de excedente e mais-valia no mundo
colonial, inda que assinalasse o acúmulo gerado preponderantemente no momento
da circulação e não no da produção, enquanto acumulação primitiva, dum
capitalismo mercantil. Só que, se no mundo antigo era a escravidão generalizada e
o assalariamento mecanismo valido de menor assiduidade, a ordem se inverte no
capitalismo atual: o salariamento consta como padrão hegemônico de geração de
valor que, todavia, não desmerece engenhos passados de geração de sobreproduto,
sendo-os englobados na estrutura metabólica de países sobremaneira periféricos
em que são mais amplas e profundas as heterogeneidades das formas de
reprodução mimetizadas do capitalismo, em seu desenvolvimento desigual e
combinado, principalmente nos momentos em que a economia se faz centrada
pela esfera da circulação.
Muitos criam que a formação social de um país, ou a formação
sócio-espacial, far-se-ia continente de variados modos de produção, sem se
aperceberem que a unidade capitalista se reproduz mediante a heterogeneidade
estrutural das formas e relações sociais.
Em acordo com o sociólogo marxista Florestan Fernandes
(1920-1995), entendemos que não dá para continuar alimentando aquele:
ideal simplista de cientificação (que) levou sociólogos, historiadores (geógrafos) e economistas a suporem que as sociedades nacionais são totalidades autônomas e autodeterminadas, que contêm dentro de si mesmas as forças de sua organização, expansão e evolução (1995, p. 42, parênteses nossos).
264
Ou o Brasil teria relativa autonomia e inventividade nessas fases
primevas (colonial e imperial) de organização sócio-territorial para registrar as
suas marcas no mundo da produção e do trabalho, desde que não oponentes aos
interesses europeus? Brasil, extensão passiva e país-empresa fabricado a priori
pelo capitalismo europeu? Comporia ele região econômico-produtiva integrada a
posteriori no modo especificamente capitalista de produzir?
Perguntas que não querem calar.
Dum lado, os autores a teorizar sobre a extensibilidade passiva
do capitalismo na periferia do sistema, a atestar que a história econômica
brasileira fez-se como capítulo da expansão mercantil européia, como pensaram
Caio Prado Júnior e Celso Furtado, por exemplo. Outros, como A. B. Castro,
sinalizaram às leis próprias e autônomas do desenvolvimento do país para com os
determinantes mundiais. Em meio a essa discussão os que, como Moreira (2002a,
p. 43-44), creditam relativa autonomia e correspondência dialética entre o espaço-
tempo mundo e o espaço-tempo Brasil, a explicar o desenvolvimento promovido
internamente pelas elites nacionais em meio a um quadro internacional de crise.
Ainda assim, cremos que nada esteja a obstar a formulação
duma correspondência dialética, gérmen do desenvolvimento desigual-combinado
do espaço-tempo mundo e do espaço-tempo Brasil, desenvolvimento esse
endógena e exogenamente dinamizado pela luta capital x capital inter x nacional,
não se pondo a anular deste modo a tese do metabolismo do capital como mais
polissêmico, complexificado, mimetizado e heterogeneizado nas quadras
dominadas pela esfera da circulação, com uma possível diferença apenas:
condizente ao perfil novo da forma-valor-rentista capturada na atualidade,
enquanto em estruturas pré-capitalistas estaria a renda a reproduzir-se sob molde
não-capitalista. Outra questão de digno destaque atine aos moldes em que se
executam a correspondência dialética do espaço-tempo mundo e do espaço-tempo
Brasil desde sua fundação: se ocorridas por dentro dos marcos do capitalismo ou
pela combinação desigual desse como formações não-capitalistas; e essa é a
discussão fundamental aqui: saber se o capitalismo mercantil, de predominância
da esfera da circulação, já não era um complexo total metabólico metamorfoseado
265
epidermicamente nas colônias como “não-capitalistas”, “sistemas coloniais”,
etc.
A discussão sobre a formação sócio-espacial brasileira ser ou
não capitalista desdobra-se a outra.
Se o salariamento for visto como condição-central e não como
condição-exclusiva do capital; se a reprodução ampliada do valor for vista como
condição-central do capital e não como condição-exclusiva (e ao invés de ser
relacionada à produção de mercadorias); se a guarnição e regulação dos direitos
sociais e trabalhistas pelo Estado-de-direito for visto como a condição-central e
não como condição-exclusiva do capitalismo; se a separação entre espaços
públicos e espaços privados for vista como condição-central e não como condição
exclusiva do capitalismo; se então essas ponderações forem consideradas, teremos
o capitalismo como unidade diversificada, substancialmente estabilizada, mas
epidérmica, secundária e momentaneamente deformada de realização e isto
porque é absolutamente impossível ele se apresentar homogeneamente, e mesmo
nos períodos em que o modo de produção encontra-se centrado pela esfera da
produção, pois será ele relativa ou extremamente desigual seja no que concerne à
manifestação espacial (entre regiões-cidades-campos, cidades/campos,
países/continentes) seja a que se refere à expressão social (como relação capital-
capital, burguesia-burguesia, setores e ramos produtivos/setores e ramos
produtivos, ramos produtivos e ramos improdutivos, camponês/burguesia,
camponês e operário, proletário e proletário, assalariado e dessalariado, escravo
assalariado e escravo dessalariado, produtores e distribuidores,
produtores/consumidores, etc.).
O capitalismo é essencialmente a afirmação dum modo de
produção que, como unidade, reproduz-se pela contradição de seus elementos,
tentando regular o impressionante jogo de forças colidentes. Como unidade
contraditória, unidade de negações, o trabalhador é menos “livre” do quer a
representação ideológica do salariamento. Mas se os gregos se autoproclamavam
pertencentes a uma “democracia” por que os capitalistas perderiam essa chance,
deixando de universalizar a sua particular e abstrata noção de “liberdade”?!
266
O “ser escravo” e o “ser livre” são movimentos têmporo-
espaciais de formas e de funções sociais159.
Chega por isso, a escravidão do trabalho ao presente, mas
contrariamente a dos espaços coloniais não mais coisificada socialmente e
também não mais como regime de trabalho dominante como o fora na Colônia
mas como estratagema subsidiário à escravidão assalariada da força de trabalho.
Impregnando a existência com seus dissabores. Embora não poucos historiadores,
advogando tais teses da escravidão como anacrônicas e simplificações veiculadas
pelos instrumentos midiáticos, alegarem se tratar tão-somente de relações de
trabalho análogos à escravidão ou trabalho compulsório, superexplorado,
escravidão por dívida e não a escravidão propriamente dita160.
159 Num já citado momento problematizamos com a Profa Ana Clara Torres Ribeiro se não deveríamos demonizar, ao contrário de sacramentar, os conceitos burgueses de “liberdade” e “democracia”, tachando-os de “escravidão do salário” ou “escravidão capitalista” (cf. RIBEIRO, 2001b) o que costumeiramente tomamos por normais. Provocativamente disse-nos ela que caberá a movimentos sociais tal julgamento. Resposta interessante, já que habitualmente essas questões não mais saem que do âmbito da academia (e é sabido que a maioria absoluta dos historiadores abomina essa perspectiva), num círculo de pensadores explícita ou indiretamente conservadores, quando os verdadeiros interessados e, segundo a teoria marxista, os mais aptos de julgá-los são exatamente a classe parteira doutra história; os acadêmicos exercem o papel de ideólogos do sistema, investindo na pactuação da ordem burguesa (excetuando-se os raros entendimentos de Lênin e Lukács a esse respeito). Com esse sentido, de distanciamento do atrelamento direto à economia ou política oficial, o diretor dinamarquês Lars von Trier, em seu filme Dogville ilustra as formas de poder e sujeição, um tema mais adiante retomado como crítica à escravidão moderna que pode, como ele aventou, originar-se do sentimento, como a “escravidão emocional” que novamente veio a retratar em seu segundo filme da trilogia América, chamado Dogma 95 (PAOLA, 2005). No filme Círculo de Fogo, referente à invasão alemã na Rússia, uma discussão inicia-se sobre a questão do novo homem entre os dois protagonistas principais, quando um deles, decepcionado pela perda da mulher amada para o amigo – o que o leva a traí-lo –, argumenta que o socialismo é em vão, porque sempre existirão ricos e pobres: “ricos no amor” e “pobres no amor”. Entendemos não obstante, que esta contradição se identifica como não-antagônica, incapaz unicamente de pôr sob perigo toda a estrutura social. 160 Como menu conceitual, temos que: “escravidão por dívida ou compulsório”, de acordo o art. 1o da Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, relacionar-se-ia com o “estado ou condição resultante do fato de que um devedor tenha se comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou de alguém que ele tenha autoridade, se o valor desses serviços não for equitativamente avaliado no ato da liquidação da dívida ou se a duração desses serviços não for limitada, nem sua natureza definida”; “servidão”, conforme também a Convenção Suplementar, atine à “condição ou estado de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo costume ou por um acordo a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a essa pessoa, contra remuneração ou gratuitamente, determinados serviços sem poder mudar sua condição”; ao passo que sobre o “trabalho forçado” as Nações Unidas assim pondera: “o termo ‘trabalho forçado’ não é sinônimo de escravidão, mas refere-se a um trabalho que funcionários governamentais obrigam os cidadãos a realizar, sob ameaça de punição se houver recusa. A
267
Se o anacronismo deve ser evitado, o estruturalismo lingüístico
também. Os conceitos são movimentos e, nesse caso, movimentos de realidades
menos dessemelhantes do que se crê, e que devem ser lidas com algo mais que os
óculos da oficialidade da jurisprudência.
Poderia a fase da geografia dos espaços coloniais brasileiros ser
a extensão do capitalismo mercantil de Europa, entretanto sem deter os traços de
seu paradigma produtivo e trabalhista, ainda não universalizado, fazendo com que
na empresa colonial brasileira a escravidão não-assalariada fosse a regra, ao
contrário do que estava a se consolidar naquele outro continente? Poderia apenas
o capitalismo ter mudado de epiderme e, ao invés de transformação de sistema
econômico, ter apenas havido a modificação do paradigma econômico, que na
República especialmente caminhava rumo ao salariamento, pela universalização
dos vetores político-econômicos europeus (salariamento na economia e
“liberdade” e individualidade de direitos na política) a todos os quadrantes do
mundo?
Entendemos que a atual escravidão não-salariada capitalista
(impressa a índios, nordestinos e outros mais) convive com multifacéticas formas
de realização do trabalho no capitalismo: formal e informal, salariado,
dessalariado ou não-salariado, produtivo e improdutivo, por exemplo.
No espaço exprimem-se os troços e os destroços reveladores
dessas mutações e permanências. Orgânica e dialeticamente indissociável das
relações sociais é a outra face do ser social.
Já foi dito ser o tempo tríbio, coexistindo passado, presente e
futuro. Percepção similar sobre o espaço foi-nos apresentada por não-geógrafos,
como Florestan Fernandes, que ressaltou que pelo deslocamento no espaço do país
se é possível atravessar estágios históricos diferenciados, de idades histórico-
sociais distintas que se confundem e se entrecruzam temporalmente161. Não
Convenção sobre Escravidão de 1926 afirma que o Estado tem o direito de obrigar as pessoas a realizar trabalho de certos tipos em algumas circunstância especiais” (ANTI-SLAVEY INTERNATIONAL, 1999, p. 50 e 51). 161 FERNANDES, F. Relaciones de raza en Brasil: realidad y mito. In. Brasil Hoy, México: Siglo XXI, 1968, p. 123 apud FERNANDES, 1995, p. 9 (Introdução de Osvaldo Coggiola). Consta que
268
obstante as díspares idades históricas das formas não atrapalharem a unicidade
espacial, posto a heterogeneidade das formas e das paisagens técnicas disporem
duma única funcionalidade social a lhes penetrar e coligar economicamente.
Ao promover a empiricização do tempo no espaço, o
capitalismo contemporâneo conta com o conjunto grandioso dos objetos técnicos
de idades diferenciadas (SANTOS, 1996b, 2000; MOREIRA, 1996).
A unicidade espacial aí está: ao proveito econômico dos
poderosos.
Que arquitetura está ela a se expressar nestes tempos-espaços
que correm?
2.1.3.5.1 Indicativos da nova economia
política espacial do capital: as
transformações no mundo do trabalho e no
espaço vivido
A centralidade até havia pouco exercida pela produção perde
espaço à da circulação. Difere essa atual na igualdade àquela de outrora, haja vista
que a economia agora se faz caracterizada mais pela financeirização,
securitização, pelos fundos de pensão, pelos fundos mútuos, pelos hedges162,
pelas bolhas das finanças que na mais suave turbulência estouram, explodindo
economias inteiras pelo efeito dominó, predominantemente as mais fragilizadas e
com alto “risco-país”.
a observação surge inicialmente na edição francesa publicada em 1967: Les Temps Modernes (FERNANDES, 1995, loc. cit.). 162 Os hedges correspondem geralmente às praças fortes dos países centrais por onde trafegam grandes somas de capital-fictício. O mecanismo concerne à atuação de agentes que, operando nas diversas praças financeiras internacionais, usam crédito bancário para especular e acumular ativos denominados nas diversas moedas nacionais, como o que ocorreu com as mega-valorizações auferidas com a aquisição de empresas estatais de países emergentes; empresas que, privatizadas, engordaram os balanços de muitas matrizes transnacionais e asseguraram ganhos de capital nas bolsas de valores; como fenômeno montanha-russa, foram tais valorizações por sua vez que ajudaram a repercutir no aumento das bolhas financeiras e nas fusões de empresas pertencentes aos setores produtivos.
269
Nada obstante, novos suspiros de industrialização e controle da
circulação se ensaiam com a “economia de mercado” que se cristaliza no Oriente,
controlando-se o câmbio (a China se nega a desvalorizar sua moeda) e a
movimentação do capital de modo nada neoliberal. Parece que a centralidade da
geografia econômica do Ocidente deslocar-se-á ao Oriente, com Japão, Índia e
China, particularmente, em seu posto de comando; até por que a hegemonia norte-
americana há tempos se sustenta à base de alto endividamento interno e
diminuição dos níveis orçamentários destinados aos investimentos produtivos e
sociais.
Não se trata de mudança apenas na forma de realização do valor
mas na ordem da hierarquia, gerando-se a nova economia política e espacial do
capital. Uma nova geografia de forças, uma nova cartografia de fluxos.
Natural é ao capitalismo que de sua base material seja criada a
superestrutura política que sustenta o fosco Estado Democrático. Momentos em
que leis veneradas (como a que preza o salário como base da estrutura material) se
esmaecem (permitindo que formas de trabalho não-salariadas se espalhem)
revelam que em seu movimento o capitalismo debela as próprias “leis” instituídas:
recriando, burlando ou adiando-as. Lembremo-nos que se está na natureza do
capitalismo a rapina da mais-valia mediante apropriação de trabalho não-pago sua
natureza mais profunda espelha a viva contradição de negar-se a si próprio.
De tão forte, o velho antagonismo entre forças produtivas e
relações sociais163 culminou na política do neoliberalismo, com a contradição
sendo levada ao nível político(ideológico)jurídico de regulação da propriedade
privada transnacional, enlevando-se mecanismos: de combate à pirataria, de
proteção da propriedade intelectual (lei de patentes, copyright, etc.), forte
163 Para alguns, a responsabilidade da evolução das contradições entre forças-produtivas e relações-de-produção causam disputas entre facções pela dominância social. Já outros, como Pirenne, entendem que as contradições responsáveis pela evolução social emanam de disputas pela hegemonia entre facções da classe dominante, sendo que a vitória de uma delas imprime à sociedade um padrão de regulação espacial e de crescimento econômico ao incitar o desenvolvimento das forças produtivas. Para um aprofundamento: DOBB, 1963.
270
desestatização de setores econômicos e desregulação das economias nacionais164,
entre outros.
Na reestruturação aposta o capital.
Incapazes nesse ínterim de conter o inflamar das contradições no
palco:
Político: crise de governabilidade, região x Estado, Estado x Estado
(município/Estado federativo/União) e região x região, com os líderes
nacionais ou bancadas políticas tendo de acertar periodicamente acertos
(“acordões”) re-definidores da trajetória a se perseguir;
Econômico: capital x capital e capital x trabalho165, com todos na sociedade
se relacionando como se estivessem no fio tenso, já que é impossível a
satisfação total (individual, grupal e coletiva) no sistema, ademais no estágio
paroxístico chegado e inclusive porque ninguém sabe o que realmente ela
representa (alienação na base das crises existenciais, do “eu” confuso que
vaga na geografia estreita e opaca da história burguesa);
Societário: trabalho x trabalho, com os trabalhadores se devorando no
canibalismo competitivo por vagas de empregos e aumentos salariais devido
à crise econômica e à “falta de oportunidades”, dado o individualismo
incrustado desde cedo pelos bancos escolares, pelas instituições religiosas e
pelos demais aparelhos ideológicos que pregam a “salvação” atomizada; e
também porque há dessintonia entre a demanda empregatícia dos novos
setores produtivos e as instituições formadoras de mão-de-obra;
164 No período pós-1960, os defensores da desregulação da economia são quase todos premiados pelo Nobel de Economia, endossando de modo unânime a necessidade de o capitalismo se livrar dos resquícios keynesianos; dentre eles destacam-se: o austríaco Friedrich Hayek, o monetarismo do norte-americano Milton Friedman, a escola das expectativas racionais da economia política de Marcur Olson, a teoria da escolha pública de James Buchanan, além do também norte-americano Robert Lucas. Como prioridades defendidas estão a abertura do mercado ao capital estrangeiro, diminuição de impostos aos investidores, privatização e retirada do Estado de setores produtivos e de serviços e liberação das importações (BELLUZZO, 2005b; BARROS, 2005, p. 9). 165 A despeito da ideologia burguesa que propaga a extinção das classes pela capacidade demonstrada de a classe trabalhadora ter desenvolvido poder econômico suficiente para realizar poupança, investimento em pequenos negócios e a participar do mercado de ações, estudos comprovam o caráter irrisório do fenômeno, incapaz de apagar ou borrar as diferenças de classes.
271
Territorial: país x país166 e região x região ou município x município, as duas
últimas polarizações como lutas por atração de empresas mediante guerras
fiscais, oposição a legislações liberativas ou proibitivas a algo específico167.
Os maiores embates ensejam protrair ou dissolver. Cada vez que
o intentam, tende potencialmente a engrandecer os agentes e reagentes para o
novo. E isso ocorre, dentre outros fatores, porque a exacerbação da dominação e
da riqueza, que empregam maior contingente de trabalhadores, noutro extremo –
distintamente dos modos de produção pré-capitalistas – potencia o poder de
gestação da consciência de classe orgânica e sistematizada por parte dos
oprimidos, quer em termos de qualidade (força e confiabilidade) ou quantidade
(número de trabalhadores, de dominados e inconformados). Aí a cooperação
abstrata dos iguais da sociedade capitalista perde virtualmente168 espaço à
confecção da cooperação classista dos expropriados contrariados com a coerção.
O capitalismo fez o que nenhum modo de produção pretérito
fora capaz sequer de imaginar. Planetarizou e colocou sob sua chancela o domínio
da sociedade, do trabalho social combinado e total e privatizou a superfície
terrestre. Dialeticamente, no entanto, tende a sofrer com a magnitude das forças
que move em seu proveito e que ora ou outra podem se lhe configurar adversárias.
166 Recrudescem no mundo os movimentos xenófobos e neonazistas contra os migrantes “ladrões de empregos”. Extrema contradição, já que o próprio capital por vezes investe no tráfico de pessoas. Confira no site da Folhaonline a matéria: “ONGs lançam no Rio campanha contra tráfico de pessoas”; segundo a reportagem de 8/6/2005, o Brasil responde por dez por cento de todo o tráfico de pessoas no mundo, o que em números condiz com setenta mil pessoas aliciadas para servirem de mão-de-obra escrava ou à exploração sexual no exterior. Ironicamente, após criarem os problemas pela extorsão da riqueza via pagamento de dívidas, implantação de multinacionais, etc., estabelecem uma geografia segregacionista, quase feudal, ao fechar suas fronteiras aos migrantes não-convidados, como fazem os europeus ou os norte-americanos que cogitam erguer um muro na fronteira com a América Latina. 167 Exemplo disso envolveu recentemente a questão da soja transgênica que opôs o governo representante dos plantadores sul-rio-grandenses ao governo dos sojicultores paranaenses, com a instituição de uma Medida Provisória (MP) para mitigar o conflito. 168 O ciberespaço é bastante emblemático nesse sentido: de um lado governistas conservadores tentando criar meios para monitorar os suspeitos sociais ao sistema, doutro os que se utilizam o espaço virtual da rede informatizada para transmitir saberes paralelos ou alternativos (copy-left substituindo o copy-right, popularização do acesso e da constituição de enciclopédias, etc.). A hegemonia também é mantida pela informação, e as forças contra-hegemônicas não podem dispensá-la.
272
A história da evolução da consciência de classe pela cooperação
humana (opressiva e injusta) não poderia permanecer neutra frente ao
engrandecimento das contradições sociais propaladas na evolução das forças
materiais produtivas/destrutivas. Inclusive por que a unidade que o capital confere
ao espaço contém potencialmente os meandros de sua revelação e oposição. O que
foi manifestação prematura, incipiente e esporádica da consciência de classe dos
produtores imediatos nos antigos Estados e Impérios da Ásia, África, Europa e
Novo Mundo, tende a tornar-se, qualitativa e quantitativamente, algo de
proporções e propensões sistemáticas na sociedade capitalista moderna, a rumar à
re-evolução das formas de trabalho e co-operação humana.
A função da economia política espacial do capital é fazer com
que muitos trabalhem para poucos, para os alienadores de trabalho e riqueza. O
homem não mais trabalha para viver, segundo o sentido da sociedade primitiva.
Sob o capital, a vida humana visa à produção e a produção espreita a riqueza
abstrata. Porque abstrata, a produção é descolada do homem concreto que, tornado
também abstrato (mera força de trabalho destituída dos meios de produção), tem
somente na troca o momento de sua realização: quando a mercadoria que medeia a
troca de todas as demais mercadorias entra em cena como princípio-fim da
sociedade, como ponto do nascer e destino dos indivíduos, como ligadura entre a
reta e o círculo espacial em que vagueia o atomizado e flagelado corpo social.
A troca não visa igualização de ações e produtos humanos. (Não
calha aos moldes das sociedades comunalistas primitivas e nem mais se isola das
ditas sociedades pré-capitalistas brasileiras, de comunidades indígenas,
pescadoras, ribeirinhas, camponesas, ou qualquer outra, como crê certa linhagem
teórica169)
169 O capitalismo anexou o mecanismo pré-capitalista da renda ao seu momento áureo, de hegemonia imperialista econômico-financeira atual. O excedente que era pago ao proprietário pelo “aluguel” ou arrendamento dos meios de produção (terra e instrumentos) agora é pago por toda a sociedade, pela centralidade alcançada pela financeirização da economia, a creditização do território e a securitização da economia. Formas pré-capitalistas de realização econômica, como a renda e o não-salariamento de trabalhadores, firmam-se como as suas expressões mais “modernas” de desenvolvimento desigual e contraditório, da natureza metabólica e mutante de realização de riqueza abstrata. Outras formas de extração de riqueza “ressuscitadas” pelo poder do capital são a cobrança de impostos pelo tráfego de pessoas nas rodovias privatizadas (similar à imposta pelos
273
A troca coloca-se como processo fetichizado de realização
última e da mais alta arquitetura alienante efetuada no momento da produção,
entre proprietários e despossuídos, e figura como fim e início da troca desigual
entre o salário recebido e o trabalho a mais roubado, entre o financiamento
recebido e o crédito a mais pago, entre a renda social gerada e os inúmeros gastos
econômicos tendo de ser arcados, etc.
O diferencial do sistema do capital está já na função da
produção. Não mais balizada no consumo, ganha asas e torna-se um fim-em-si. A
riqueza ou excedente abstrato é infinito, de um processo sem fim que ambiciona
primeiramente o lucro, o mais-trabalho incorporado no tempo socialmente
necessário de produção dos objetos-mercadorias.
As formas espaciais de reprodução da existência humana
diferenciam-se. A organização social estatal é impessoal, tecnocrática, legalizada
e, quase sempre, apenas indiretamente governada – não condizendo ao que
costumeiramente se atina. O comando mantém-se na posse dos meios de produção
e reprodução da existência que disfarçadamente impele os desposados a se
sujeitarem à subserviência (em princípio com o constrangimento físico, pelas leis
contra a “vagabundagem”170).
senhores feudais) e o mecanismo ocorrido recentemente em Estados da região Centro-Oeste brasileira em que produtores de soja, ao invés de realizarem o pagamento de salários pelos serviços prestados por seus funcionários, resolveram pagar-lhes com sacas da mercadoria produzida (espécie de pagamento em produto que igualmente lembra o regime feudal, no entanto nesse período eram os trabalhadores quem transferiam a renda em produto aos senhores). Para não mencionarmos as relações de trabalho da escravidão por dívida que acorrentam milhares de trabalhadores no interior do país, com a particularidade de que, movido talvez pelo ideal de compromisso, honra e memória, muitos dos filhos deixam-se empregar de modo não-remunerado para pagar as dívidas deixadas pelos falecidos pais para com os antigos empregadores (BRETON, 2002; MARTINHO, 2005); condição que lembra a hereditariedade da escravidão das sociedades antigas, todavia pesar atualmente o elemento de escravidão subjetiva criado pela ideologia dominante não existente em tempos idos, quando a coisificação era mais objetiva que subjetiva. 170 Esse fenômeno se manifesta pela violência e constrangimento físico e moral. Basta recordarmos que a história do proletariado tem início no trabalho forçado assacado aos nômades e vagabundos errantes do final da Idade Média arruinados pela crise econômica e social da época, quando foram recrutados à força pelo Henrique VIII e pelo “bom rei” Henrique IV às oficinas de trabalho forçado (Workhouses) – tendo o primeiro mandado enforcar mais de 70 mil “proletários”. O constrangimento moral pode preceder ou suceder o físico (Muito da história e do momento atual dos indígenas do país confirmam isso, quando a ideologia da preguiça ou a da superioridade se fazem usadas. Para não dizer da moralmente humilhante política assistencialista norte-americana, empregada como forma indireta de mostrar os “fracassados” que não sabem aproveitar “a terra das oportunidades” e de fazer minorar os gastos previdenciários). O fato é que a situação de trabalho
274
No capitalismo predomina o trabalho assalariado
(crescentemente subsalariado). O trabalho é formalmente livre, sem que
indiretamente deixe de ser coagido, cabendo ao trabalhador, se assim achar
melhor, a troca de patrão ou de país. (Diferencia-se dos modos de produção pré-
capitalistas nos quais era não-livre na forma e na substância)
A estrutura é de classes não apenas opostas. Reina a contradição
antagônica. O capitalista constrói e concentra riqueza a partir do trabalho alienado
do dominado. O grau do acúmulo depende do nível técnico alcançado, priorizando
a mais-valia relativa pela modificação da composição orgânica espacial do capital
e, em nível empresarial individual, da crueza estabelecida no processo de
trabalho, na duração e intensidade da jornada171, além do nível de destinação do
quantum da fração da soma total ao trabalhador (mais-valia absoluta). A estrutura
de produção guarda de forma homóloga outras contradições: como à referente ao
modo de produção-relações de produção, produção-distribuição, concentração de
riqueza/socialização de fome e de danos ecológicos, engendramento e profusão de
necessidades/frustração de subjetividades172, fatores de urbanização e consciência
espaciais/relações sociais de produção, etc.
Efeitos do processo contraditório. O capitalista não existe sem o
trabalhador, mormente, mas não exclusivamente, do assalariado. Salvo quando
forçado tende a formar “objetivamente” a consciência de classe entre eles e, posteriormente, a “consciência de si” (como foi o caso do proletariado das oficinas medievais, por exemplo). 171 Malaguti (2000) traz estudos comprovando que no toyotismo as pequenas empresas tendem a explorar bem mais a classe trabalhadora que aquelas verticalizadas e de maior porte, pois para que possam crescer no mercado, mantendo-se em níveis de concorrência, elas abdicam dos direitos trabalhistas resguardados pela lei e optam por contratos temporários de emprego. Outras táticas de exploração da força de trabalho empregadas pela sociedade atual podem ser analisadas a partir da bibliografia, como exemplos: TEIXEIRA, 1994; ANTUNES, 2000; RIBEIRO, 2004c. 172 As necessidades humanas podem ser agrupadas em dois tipos gerais, como viscirogêrica ou psicogênica, conforme conceituação de Henry A. Murray: a primeira especifica o caráter biológico-natural do organismo humano e a segunda corresponde a necessidades socialmente adquiridas, como posse, poder e consideração (DORIN, 1980a, p. 218). Na concepção de Marx, recapitulada por Mandel, teríamos a emersão de necessidades “histórico-morais” ou “necessidades novas”, adquiridas pelo sujeito ao longo da vivência e sendo incorporadas às que atendem ao “mínimo vital normal”, às necessidades mínimas de reprodução da existência (MANDEL, 1976, p. 68-69, 73; RIBEIRO, 2004b, p. 15, nota de rodapé nº 21). Ao sistema é comum a criação de formas espectrais no processo humano-genérico em que se desenrola a globalização, para em seguida impor-se a frustração, instalando-se formas regressivas, diria Giovanni Alves (RIBEIRO, 2001b, p. 178). Isso por vivermos imersos no mundo da fábula, arremataria M. Santos (SANTOS, 2000; CARVALHO et al., 2000).
275
intervém o Estado, no entanto, para secretariar as ações da classe dominante para
que ela não se autodestrua, está a classe dominante corriqueiramente a pôr em
perigo o nível mínimo vital de reprodução da classe trabalhadora. O que faz a
gosto, se a contento enfileirar-lhe o exército de braços de trabalhadores reserva.
Como sugere a epígrafe deste item, a contradição é a pedra
angular de todo o edifico do capital. Perpassa classes e também nações, mais
propriamente o gap dos espaços na era da globalização.
Este o maior problema: a contradição como cria do capital e
proeminente adversário.
Por conta disso opiniões se alinham e se opõem a respeito do
abismo econômico crescente entre as nações. Dum lado está o que o apologista do
imperialismo norte-americano, o estrategista Barnett, avalia como o “núcleo
funcional da globalização”, isto é, o núcleo duro e mais globalizado da economia
internacional que abrange dois terços da população global, com a América do
Norte, Europa, Rússia, China, Brasil, Chile, Índia, Japão, Coréia do Sul, Austrália,
Nova Zelândia e África do Sul à frente, e cujo perigo de guerra, no sentido
tradicional, é bastante remoto. Noutro extremo estariam as regiões que
concentram a maior parte dos conflitos desde o fim da Guerra Fria e que
convivem sob forte influência do tráfico de drogas, de grupos terroristas (o que se
entende e se quer fazer entender disso), incidência de estupros em massa, limpeza
étnica e genocídios, guerras civis e crianças desde cedo estimuladas ao guerrear,
cujo mapa geográfico englobaria grande parte do Caribe, a porção andina da
América do Sul, boa parte da África, os Bálcãs, Ásia central, Cáucaso, Oriente
Médio e muito do Sudeste Asiático.
A reprodução da hegemonia norte-americana (por Barnett
negada) na nova geopolítica mundial passa pela pregação ideológica da missão de
pressão massiva dos países do núcleo para melhorar a situação dos do fosso,
contra os “governos do mal”. Exemplo típico à América do Sul é o dos países do
fosso com os quais o Brasil divisa e que portam perigo de guerra ou intervenção,
situados na região da floresta amazônica.
276
Em relação ao campo internacional extra-americano, para
Barnett o perigo maior aos EUA estaria no Oriente Médio, locus de atuação de
“terroristas transnacionais”, e no governo da Coréia do Norte que deverá sofrer
pressão dos norte-americanos e chineses, além da possibilidade de a pressão
interna e das forças locais se agigantarem a ponto de conseguir depor Kim Jong II.
Acredita piamente o estrategista que, inversamente à maior parte
dos países do mundo, o que funda os E.U.A e que os garantem identidade não é o
território e sim uma idéia173 e, por isso, certo da remoção dos obstáculos
existentes hoje no plano político-econômico internacional, vislumbra o profeta do
imperialismo que até 2.050 doze países virarão Estados americanos: além do
México que economicamente já faz parte dos E.U.A (e que poderá ser ajuntado a
uma “América” maior), enumera outros, sobremodo os do Oriente Médio, pois
para ele o que está em jogo “Não é apenas uma questão de alguém desaparecer,
mas de se juntar a algo maior que todos vejam como benefício” (EXPEDITO
FILHO, 2004, p. 41). Quem sabe a boa intuição do Estado Imperial formulada por
Belluzzo (2005a, p. 17; idem, 2005b, p. 8) venha bem a calhar a esse cenário.
Se realmente é em uma idéia que se funda os E.U.A, é ela a
idéia do excedente ilimitado.
O capital não tem pátria, conforme teoria marxiana. As
burguesias nacionais e hegemônicas remodelam a noção de pátria, por enquanto.
Impérios transnacionais ou regionais, descontínuos territorialmente e conectados
na rede econômico-política parece sinalizar-se como estação ao trânsito.
O capitalismo é a unidade do diverso (Marx), complexo de
complexos (Lukács). São estruturalmente mais heterogêneos os mecanismos de
acumulação engendrados em economias periféricas. O que torna o seu
metabolismo um complexo fenomênico de alto mimetismo, típico ao caráter
camaleônico ou franksteiniano da fase atual, centrada novamente pela esfera da
circulação (RIBEIRO, 2001b, 2004c). Parece-se com um ornitorrinco
173 A nosso ver não fica bastante clara qual idéia é essa. Provavelmente seja a idéia de democracia ou do modo de vida americano, a esconder a idéia de superioridade, do lucro a custo de guerras ou seja lá quais forem os custos materiais que garantam a ideada unidade norte-americana.
277
(OLIVEIRA, 2003), a uma hidra aparentemente invencível (REVISTA
PRINCÍPIOS, 2005).
A fuga horizontal planetarizou o capital como modo de
produção hegemônico na função e heterogeneamente nas formas, no Ocidente e
Oriente. Sem segregação entre os ramos produtivos e improdutivos, nuns cantos
mais que outros a correlação de forças pende mais a um lado: seja ao produtivo
seja à especulação e financeirização extrapolada, como se uma espécie de
regionalidade econômico-espacial se fizesse desde então regulada pelas instâncias
transnacionais, espécies de agentes ou governos globais (FMI, BIRD e, por que
não, o Banco Central dos E.U.A, por exemplo).
Guiada pelo que alguns chamam de “globalização americana”,
a nova geografia socioeconômica do capital traz à luz o novo mapa da
regionalização econômica: nele se percebe que as transformações financeiras
afetaram a base produtiva e a divisão internacional do trabalho, determinando a
direção e o mapa dos investimentos estrangeiros e os rumos do progresso técnico
vis-à-vis ao fenômeno de redirecionamento dos fluxos do comércio, pois se já
existia comércio intrafirmas nos anos do pós-guerra, ganha ele a companhia do
global sourcing, com a des(re)localização ulterior dos investimentos
produtivos174.
Efeito da “globalização americana”, o mapa da regionalização
atual indica que: (a) mais nitidamente dum lado, temos economias nacionais ou
regiões que se inserem num quadro de perspectivas de comércio e investimento
externo direto na produção (b) e, mais a outro estremo, se agrupam as que se
inserem na economia internacional mediante a abertura de conta de capitais.
Os países presos ao ardil de manutenção do saldo da balança
comercial e da acumulação de reservas teriam, na nova regionalidade, a função de
financiar o déficit em conta corrente dos E.U.A, seja os atinentes aos gastos com
guerras ou para financiar o ônus de políticas populistas175.
174 Caso do setor manufatureiro, que na década de 1990 chegou com magnitude e para ficar nas economias asiáticas, China preferencialmente. 175 Ver: BANCO SAFRA, O Imparcial, 26/1/2003 e, para notar que os E.U.A não são assim tão iguais a “nós”, BETTING, 1985; ANTUNES, 2000.
278
Se a asfixia da economia perdura, impedindo que novos surtos
econômicos se encetem em grande parte do mundo civilizado em períodos de
tempos mais demorados, diminuem-se gradativa e silenciosamente as conquistas
do Welfare-State, de modo a não promover grandes descontentos e turbulências
sociais. Os proletários dos países centrais, se num primeiro momento os seus
Estados de tudo improvisavam para que permanecessem imunes a essa
conjuntura, passam a sofrer com o “escasseamento” do “desenvolvimento” social,
tendo de acumular mais empregos e menos renda que outrora.
Em tal conjuntura, até os que parecem economicamente mais
sólidos não estão isentos de crises.
A China, beneficiada economicamente pelas relações comerciais
com os norte-americanos, a guisa de exemplo, vê crescer cotidianamente os
problemas com as economias da região:
A rápida industrialização da China e dos países do Sudeste Asiático está deslocando uma fração importante da demanda global para os produtores de matéria primas e alimentos. Como é de conhecimento geral, a China sustenta um saldo positivo muito elevado (mais de U$ 162 bilhões em 2004) com os Estados Unidos. Mas seu déficit é crescente com o resto da Ásia e com os demais parceiros comerciais. O bloco industrializado da Ásia, sobretudo a China, funciona como uma engrenagem de transmissão entre a demanda gerada nos Estados Unidos e a oferta das economias “exportadoras de recursos naturais” (BELLUZZO, 2005a, p. 16-17).
Obviamente que a situação experienciada por esse país o coloca
em situação de destaque, na região prioritariamente elencada aos investimentos
produtivos e captação de divisas no planeta; o que permite que mantenha seu
acelerado crescimento sem desvalorizar sua moeda na medida do que desejam os
E.U.A, como fizemos notar antes.
O mapa da regionalidade dos fluxos econômicos internacionais
torna o espaço tão flexível como o arranjo que lhe dá a economia e a sociedade.
O paradigma toyotista que irrompe nas economias centrais e que
muitas vezes se miscigena e se torna caboclo em países periféricos como o Brasil,
denota a reestruturação em curso que tenta superar a fixidez dos processos
produtivos fordista-taylorista (tempo-padrão de produção-em-massa pelo
279
operário-massa para ser consumido pela sociedade-de-massa dominada cultura-
de-massa). A idéia basilar é a de um produtivismo instantâneo flexível e atado a
uma demanda esteticamente mais seletiva (pseudo-personalização maior dos
produtos pela variabilidade das formas e das cores).
Por isso que no estádio atual do paradigma do produtivismo
comumente designado por sociólogos e economistas de just-in-time, vai cada vez
mais o espaço se metamorfoseando simultânea e ligeiramente na dimensão
relacional prontificada à instantaneidade e fluidez, para que a seletividade e
individualidade toyotista que se verifica na produção e no consumo tenham
melhor arquitetado seu processo como produtividade just-in-place, na acepção de
M. Santos.
Os megaconglomerados inclusive diversificam suas áreas de
atuação, na seara produtiva e especulativa.
Não há ramo salvo de riscos, como se pensava inicialmente
sobre a high-tec negociada em bolsas especificamente criadas a ela.
Foram as inovações estonteantes do universo da tecnologia que
levaram apressados teóricos a ratificarem que a centralidade da geração de riqueza
transitava do mundo do trabalho para o mundo da tecnologia e da produção
automatizada. Tentando-se via idealismo subjetivo, ao eliminar a importância da
qualidade absoluta do trabalho (capital variável), findar juntamente com o próprio
trabalho (valor-trabalho) na teoria econômica.
Menospreza-se a centralidade do trabalho apenas no plano do
bombardeio ideológico porque no nível concreto da economia a necessidade de
filtragem e seletividade aos investimentos econômicos cada vez mais cresce como
racionalidade técnico-instrumental de uso dos espaços.
Aprofundemos na questão, pela essencialidade que possuí ao
entendimento da nova economia política espacial hodierna. Pode o trabalho perder
centralidade hoje, em países pós-capitalistas e maiormente em países capitalistas?
Cremos que não, e que as teses que negam a centralidade do
trabalho na presente sociedade podem ser inferidas como tombadas na barreira do
erro da conceituação atomística e cartesiana.
280
Expliquemos pois a lógica causal e silogística de tais visões.
Saltam de imediato à vista análises que se desvirtuam da teoria
do valor, por enxergarem a sociedade (pós)moderna como regida e reflexo do
terceiro setor (serviços e finanças destacadamente), tendo nas máquinas e na
intelectualização-especialização do trabalho o seu novo motor, como fazem André
Gorz (1987) e o Grupo Krisis (1999)176. Esquecem-se, pois, que a coluna da
sociedade produtora de mercadorias, inclinada totalmente à reprodução ampliada
do capital, continua a coligar-se ao valor-trabalho, não obstante o distanciamento
(e não desligamento) da forma clássica de acumulação à especulação extrapolada,
dirigida pela forma-valor-rentista e pelas múltiplas manifestações do trabalho-
social-total na economia do espaço-mundo, diferentemente combinado na
atualidade. Crêem que o valor-trabalho perde centralidade paralelamente à
extinção gradual do trabalho (que tomam como sinônimo de emprego, do
proletariado e da classe trabalhadora177), quando na verdade ocorre, se muito, sua
diminuição apenas na esfera formal da economia (supressão de postos de
emprego); e mesmo assim não homogeneamente em termos têmporo-espaciais,
em virtude da maior transferência de setores de parques produtivos, de massas de
mão-de-obra e ou de empresas e finanças em várias regiões do mundo.
176 Os pesquisadores coligados a essa visão, por tendência mais terminológica que teórica, negam a teoria do trabalho, marxista e não-marxista, como central à sociedade. Ao identificarem, por via de estruturalismo lingüístico (teórico-conceito), o trabalho como exploração, defendem que o trabalho deve ser eliminado, quando na teoria marxiana a revolução social visa transformar o trabalho abstrato em concreto, dada à sua centralidade não somente à economia burguesa (capitalista ou pós-capitalista) como à existência humana. 177 Gorz argumenta que a classe trabalhadora não deixou de existir objetivamente porque em seu entender não teria ela nunca existido mais do que como mito e ideologia. Para ele a “revolução informática” abolirá as possibilidades de revoluções sociais e, agarrado na errônea idéia do fim do trabalho, não apenas critica a possibilidade da democracia num Estado socialista como esgota antecipadamente qualquer projeto histórico socialista. Teóricos como Gorz – permitimo-nos a analogia – se parecem com os personagens narrados por Robert A. Johnson (1987), que tanto programaram a viagem, nos mínimos detalhes e com exaustiva riqueza, que esgotaram a própria vontade de viajar no ato do sonho, sem pôr em prática as idéias pensadas, isto é, após elaborar utópico-idealisticamente o projeto descartam a realidade como se necessária e inequivocamente se correspondessem a priori. Por incrível que pareça, a Gorz (1987, p. 101-102) a liberação das pessoas do exercício do trabalho, por adentramo-nos na era do não-trabalho, possibilitará que caminhemos ao “socialismo pós-industrial”, em que todos terão tempo livre para desenvolver a subjetividade. Já vimos – e mais adiante outros exemplos serão listados – os efeitos de pensamentos que apostam na evolução gradual e passiva da sociedade, embasados numa economia política metafísica que realiza seus prognósticos pelo em-si e pelo isolacionismo, seja via metafísica da tecnologia ou por qualquer outro elemento.
281
A centralidade do trabalho não tomba pois com a classe que
historicamente o realiza nesse regime social.
Ao tornar-se mais complexificada a forma-valor e polissêmico o
trabalho, inevitavelmente configura-se mais ampla e abrangente a classe
trabalhadora.
A classe que dominantemente vive-da-venda-de-sua-força-de-
trabalho ou que vive-da-exploração-não-assalariada-da-sua-força-de-trabalho está
mais complexificada, heterogeneizada, diversificada, hierarquizada e abrangente.
A economia política espacial do capital lucra com o jungir do mais arcaico com o
ultramoderno, englobando os que produzem ou participam do processo de
valorização do capital mediante a manifestação do valor-renda extraído pelas
diversas formas do trabalho social total, seja o produtivo, reprodutivo ou
improdutivo (serviços e lazer; finanças; prostituição e pedofilia; trabalho de
gestão, planejamento, educação, marketing, pesquisa, designer, projeção de
softwares, etc.), masculinizado, feminilizado, infantilizado178, concretamente
assalariado ou tão-somente incorporado pela ideologia da imaterialidade do
salariamento (MALAGUTI, 2000), como os trabalhadores formais e informais, os
precariamente remunerados (GONÇALVES, 2004) ou os não-salariados,
escravizados nacionalmente179 (RIBEIRO, 2001b) e internacionalmente180.
178 Ler a manchete Infância roubada, datada de 25/9/2005 em www.reporterbrasil.com.br/reportagens/freihenri/iframe.php. Ver igualmente: Justiça condena fazendeiros a pagar indenização de R$ 1 milhão, no site: www.folhaonline.com.br, de 27/7/2005, que também denuncia casos de menores aliciados à escravidão. 179 Para informações mais recentes, ver entrevista em que o Coordenador da CPT explica violência no Sul do Pará no site anteriormente citado; nela fica evidente que a polícia no sul deste Estado é privatizada, muitos policiais trabalhando para fazendeiros, sem contar delegados e juízes que não ousam contrariá-los (alguns até participando de máfia e esquemas de tráfico de drogas na região de Tucumã); inclusive porque algumas dessas são grandes empresas nacionais e internacionais, dos setores produtivos e bancários. Para não dizer das milícias armadas, torturas, assassinatos, cárcere e reclusão em fazendas, contratação de menores de idade, situação de péssima alimentação, abusiva cobrança pelos instrumentos de trabalho ou de alimentação “consumida”, exposição à vigilância armada, pressão psicológica, etc. Dissemina-se pelo país a escravidão por dívida, quando anteriormente se fazia mais comum nas regiões Norte e Centro-Oeste, como em Goiás (Justiça condena ex-prefeito por submeter pessoas a trabalho degradante, por Mariana Campos, de 6/8/2005 no Folhaonline) e Mato Grosso (Fiscalização do trabalho liberta 1.200 pessoas de destilaria no MT, referente a 17/6/2005) por exemplo, e agora se multiplicam casos no Paraná (Reflorestadora é acusada de trabalho escravo no Paraná, matéria de Mari Tortato, exposta no Folhaonline, em 24/5/2005), Maranhão (Preso pecuarista acusado de submeter funcionários a trabalho escravo, dia 24/6/2005, no Folhaonline) e Bahia (Justiça
282
A lógica do pensamento pós-marxista que há pouco tratávamos
parece igualar-se no fundo a dos pensadores da economia política clássica, que
fixavam os ganhos distribuídos aos partícipes segundo a justa contribuição e
esforço prestados pelas partes no acordo, findando o conflito pela igualdade da
troca dos iguais. A diferença é que a contradição erguia-se para aqueles por sobre
a questão salarial e por dentro do mundo do trabalho, que deveria ser regulado
pelo mercado, enquanto para os teóricos atuais a querela não se centra e nem se
resolverá por dentro dos marcos do trabalho mas pelo do não-trabalho, e isso
talvez por saberem que na essência o mundo do trabalho não mais comporta
ideologias dos tipos do “pleno emprego” e da “troca dos iguais”.
Época em que até os socialistas utópicos são raros, os
apologistas mais ardorosos do sistema, seguros com a “vitória” do capitalismo e
com a infertilidade de florescimento doutros modos de produção sociais, chegam
a bradar aos quatro ventos a ineliminabilidade da desigualdade das trocas entre os
partícipes geradores de riqueza, e que os que nem míseras remunerações
detiverem que se silenciem e aceitem passivamente para não sofrerem as
conseqüências181.
A igualdade para os utópicos e economistas burgueses derivaria
da esfera da “justa” circulação, na distribuição da riqueza cumulada no mundo da
produção (e da abstinência burguesa).
A igualdade e a liberdade para os pós-modernos e pós-marxistas
agora são radicadas ao mundo do não-trabalho (o trabalho para Gorz é contingente
condena fazendeiros a pagar indenização de R$ 1 milhão, matéria do dia 27/7/2005, também no site anterior). Também ver: ARANHA, 2004. 180 Exemplo da maioria dos bolivianos recentemente introduzidos irregularmente no país para serem superexplorados em 15 horas/diárias por coreanos nas tecelagens paulistas (Polícia localiza bolivianos em condições análogas à escravidão em SP, matéria de 5/9/2005 acessada em 18/9/2005, no site www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u112745.shtml. 181 Postura revelada pelo então presidente do Banco Central, Armínio Fraga, num programa de TV. Simbolicamente, foi como se a direita brasileira (monetarista e entreguista) desse o seu recado de resignação aos movimentos socialmente organizados, rejeitando ao mesmo tempo a ideologia desenvolvimentista pregada recentemente pelas burguesias brasileira e mundial, que vendia a idéia de desenvolvimento-industrialização-empregabilidade-redistribuição de renda para, com isso, generalizar a lógica conformista às classes (aproximando a sua religião ideológico-econômica da religião de castas indianas). Com a conjuntura de crescimento econômico internacional atual, alguns países em tese com governos desenvolvimentistas, como o Brasil, tentam investir em programas desenvolvimentistas-industrializantes para geração e distribuição de renda.
283
e exterior). Claramente processa-se o embaralhamento da matriz do pensamento
de Marx, que validava o princípio do não-trabalho como termômetro de medição
da verdadeira riqueza gerada no marco histórico socialista e liberto das travas do
complexo social capitalista, quando o homem tiver se libertado do reino das
necessidades; estado que estamos longe de vivenciar, vez que prevalece o reino
das necessidades individuais/individualistas ligadas sobremodo à
macronecessidade do capital: acumular à custa do trabalho não-pago por inexistir
mecanismo concreto de geração de valor que se dê à margem e desconexo do
mundo do trabalho.
Os que asseguram a “marginalização do trabalho socialmente
necessário” através da informatização e tecnificação do mundo da produção,
como Gorz (1987, p. 93) – a supostamente engendrar desemprego e ineliminável
alienação-passivização-indisposição às revoluções – se esquecem que máquinas,
se produzem, não consomem nem realimentam a estrutura do sistema e que a
força de trabalho não pode em absoluto ser desprezada, portanto.
Tal perspectiva não dá conta de discernir que o trabalho é que
move as forças produtivas, inclusive as novas forças produtivas (novas
tecnologias ou a dita “revolução informática”) que não podem realizar-se sem o
trabalho. Nesse sentido, esses teóricos acabam retrocedendo teoricamente ante a
teoria burguesa keynesiana.
Postulados como o Jürgen Habermas, arqueados ao descolar e
sobrevalorizar da tecnologia e da ciência em relação ao trabalho, concebido em
vias de abolição ou marginalização, não dão conta, como temos dito, de aperceber
a centralidade do trabalho e da substância do valor-trabalho no mundo que alguns
têm chamado de pós-moderno, outros titulado de alta-modernidade; temo-lo como
ultramoderno, correspondente ao neo-capitalismo substantivado por Lefebvre.
Imaginar, como fazem Claus Offe e Johannes Berger, que
vivenciamos a sociedade de serviços e pós-industrial sugere o apelo do mesmo
modo ao dualismo.
Inda que refluída ou adormecida em termos de consciência, a
concretude da classe sobrevive; potencialmente de forma até mais forte dada à
284
difusão das contradições inelimináveis e cumulativas do capital para além do
mundo geográfico do trabalho.
A classe não fora ela eliminada, como querem entre outros, além
de Gorz e Offe, Jan Pakulski e Malcolm Waters.
Não podendo ser abolida por dentro do capitalismo e sim
conjuntamente a ele, a lei do valor foi apenas alterada na economia política
hodierna. Permanece no entanto a determinidade ontológica do valor abstrato ou
do trabalho não-pago na regência da sociedade capitalista, sendo até mesmo
elevado ficticiamente ao na forma da bolha do valor-rentista.
A crise do mundo do trabalho que sugere a morte da classe
proletária que trabalha e o enterro de seu papel social estratégico, na verdade
espelha superficialmente a crise do trabalho abstrato ou dos empregos; sem afetar
absolutamente sua centralidade.
A centralidade do trabalho pode ter-se deslocado espacialmente:
transitando hegemonicamente do mundo geográfico do trabalho concreto-fabril
internacional ao mundo geográfico do trabalho abstrato-financeiro e de serviços
transnacional. Da esfera da produção à da circulação, da esfera fixa da produção à
esfera fluida da circulação em rede.
O “fim do trabalho” não condiz com a tese do fim do
proletariado ou fim da classe trabalhadora e de sua ideologia, como querem
Dominique Meda ou Jeremy Rifkin (1995).
Precárias são de igual modo as idéias que abalizam o fim da
necessidade da emancipação humana também pelo trabalho, pois como
observamos o trabalho é condição fundante-estrutural a essa e a outras sociedades.
Imprescindíveis os cuidados com o analítico e a ressintetização
do teórico no plano do concreto dialético, para que juízos de valor acrítico não se
transfigurem em ostracismo e conservantismo do corpo social.
Flexibilização no entanto é a palavra de ordem. Flexibilizam-se
as relações de trabalho (priorizam-se os sistemas políticos tripartites, os sindicatos
de empresa, guiados pela participação e cooperação – partnership). Flexibilizam-
se os processos de trabalho (automação, combinação homem-várias máquinas,
285
multifuncionalidade, polivalência182). Flexibilizam-se as regras contratuais e os
direitos trabalhistas (perdas salariais e de direitos conquistados, contratos
reduzidos a curtos períodos pelo desejo burguês de subcontratar e subsalariar).
Flexibilizam-se processos de produção (desverticalização empresarial, economias
de escala primando a horizontalização coligada a pequenos fornecedores
autônomos e terceirizados para que lugares selecionados pela triagem da
lucratividade possam ser descartáveis com a perda das expectativas).
Flexibiliza-se, como resultado, a subjetividade do ser com a
substituição de relações estáveis por instáveis no mundo do trabalho e do além
trabalho, deturpando caracteres ao torná-los mais plásticos e flexíveis (SENNET,
2001).
Interligando pressurosamente as localidades na sincronicidade
do espaço-tempo do capital globalizado, os fluxos de informação vencem as
distâncias geométricas para o capital. Tenderá a pagar contudo por aumentar o
abismo socioeconômico dessas distâncias geográficas.
A pulverização dos espaços regionais, o acondicionamento ou
substituição pelo espaço econômico organizado em rede (MOREIRA, 2006),
significou algo parecido à desregionalização ou desidentificação sociocultural dos
grupos socioeconômicos e parlamentares com as convenções político-territoriais
anteriores, devido à nova arquitetura universal engendrada pelo capital.
A reestruturação do capital é mais veloz e eficaz em curto prazo
do que a reestruturação social da consciência de classes183, quase que com a
consciência nacional ele rompeu. Assim, temos que as histórias e os espaços dos
sujeitos no capitalismo estão cada vez mais convoladas numa sociedade em crise
(reestruturação transnacionalmente desigual). Os danos de ambos passam a ser
identificados ideologicamente como tragédia (farsa) a todo o custo a ser evitada.
182 Alguns autores defendem que em lugar da polivalência deve a sociedade, emancipando-se, buscar a politecnia do trabalho. 183 Não bastasse a identidade que se quer impor entre as classes capitalista e a trabalhadora, que deixariam de possuir identidades de classes para vestir a camisa identitária da empresa, o capital suga a subjetividade do trabalhador com as premiações pagas àqueles que fizerem descobertas úteis à ampliação da produtividade fabril. Podemos imaginar o quão preso está esse funcionário à lógica mercantil, quantas noites de insônia não passa no espaço vivido para melhor remuneração alcançar no espaço do trabalho; descoberta a qual crê poder melhorar a vida no além-trabalho...
286
Como a transição se dá entre paradigmas e não entre modos de
produção, o que podemos aferir desse panorama são as praças preferenciais do
capital e as que guarda mais reservas, pelo medo de perturbações.
Num extremo, a temida tendência de inflação nos ativos, com o
conseqüente enchimento/estouro das bolhas dos mercados de bônus, imóveis,
commodities e moedas. Noutro extremo, o medo de deflação nos preços, serviços
e bens de consumo durável e não-durável, dado o excesso de capacidade
produzida em âmbito internacional. Juntamente a isso e numa posição não menos
extrema está a tendência crescente da demanda chinesa e do nível atual das baixas
taxas de juros poderem favorecer posições especulativas altistas nos mercados de
commodities.
A ideologia que hoje se despeja sobre a necessidade de
“neutralidade” dos Bancos Centrais passa por aí – tese que rendeu o Prêmio Nobel
a um economista.
Tentam-se livrar os bancos das amarras político-estatais para
que consigam enxergar os acenos da Mão Invisível do mercado, antecipando-se às
quatro bolhas e ao risco de aceleração inflacionária/deflacionária: gangorra
capitalista que tira os sonos dos economistas burgueses.
Daí os esforços não medidos para exaurir a regulação estatal de
países satélites sobre o capital nas questões cruciais à economia global; fenômeno
que encobre, para Belluzzo, o direito da “exceção permanente” e do “Estado
Imperial”, de quem é mais forte na economia, na política e nas armas, sobre as
outras territorialidades nacionais.
O entrelaçamento entre os setores produtivo e especulativo torna
o mercado bastante sensível aos riscos associados à flutuação dos preços dos
ativos e à contração da liquidez que resultariam em dramáticos crash’s não fosse a
interferência praticada pelos bancos centrais hegemônicos. Os bancos centrais
devem (pré)ocupar-se atualmente tanto com as valorizações como com as
desvalorizações descomunais dos estoques de riqueza, com o
valorizar/desvalorizar das moedas. Acontecimentos que descontrolados poderiam
tornar-se catastróficos à economia burguesa.
287
O domínio da lógica financeira pende na corda bamba da
economia entre a euforia contida e o pânico disfarçado, promovendo em países
pouco estruturados como o Brasil – pelo menos é como entende a camada política
governante – a subsunção da política fiscal à política monetária, limitando na
prática o poder de gasto/investimento do Estado, não importa se sob o painel de
relativo equilíbrio orçamentário.
Até o momento, o Mercado de Riqueza e as taxas de
crescimento da economia global têm-se sustentado com base nas políticas
monetárias e nos arranjos cambiais. O capitalismo coevo tem-se balizado desse
modo pela financeirização, pelo parasitismo, pelo alto montante de depósitos
bancários e pela concentração de riqueza econômica e poder184, além de
compra/venda de títulos de dívidas pública e privada que juntos somaram U$ 118
trilhões em 2003, mais de três vezes o PIB mundial, numa bolha instável a
qualquer possante ventania política.
Para entendermos o fenômeno da financeirização
contemporânea compreendamos primeiramente as formas preliminares animadas
entre o final do século XIX e o primórdio do XX a partir das indicações de
Belluzzo (2005a).
Segundo ele, os principais fundamentos à época correspondiam:
(a) ao fato de os financiamentos e pagamentos internacionais passarem a ser
concretizados sob égide dum padrão monetário global, (b) operando-se também a
metamorfose no sistema de crédito, com os bancos modelando suas funções e
formas de operações a partir das indústrias, que comandavam a economia, (c)
verificando-se do mesmo modo a cristalização da nova divisão social do trabalho,
edificada na crescente separação técnico-econômica entre departamento de meios
de consumo e departamento de meios de produção – o que veio a impulsionar o
desenvolvimento das forças produtivas, com o consumo das massas se
desprendendo dos condicionantes “naturais”, subordinando-se o trabalhador de
184 Para se ter uma idéia dessa era atual do capitalismo monopolista, basta citarmos que no ano de 1780 a diferença de riqueza entre os países ricos e pobres era de 3 por 1 e que hoje é de 70 por 1, e que das 500 maiores empresas multinacionais existentes no mundo, 227 (45%) são norte-americanas. Cf.: “80 anos sem Lênin. Lênin e o imperialismo”, no site: www.pstu.org.br
288
modo real à condição de simples apêndice da máquina, (d) num período no qual
estava a hegemonia inglesa a produzir, via internacionalização da economia, a
industrialização dos E.U.A e da Europa numa ponta e enquadramento duma
periferia produtora de matérias-primas e gêneros alimentícios, noutra. No que se
referia à órbita monetário-financeira, o sistema de crédito subordinava-se à lógica
da acumulação produtiva, propiciando, além disso, a expansão autônoma do
capital vagabundo, que estará na origem dos arroubos especulativos e das crises
de crédito dos períodos mais recentes.
Já no bojo da crise financeira dos anos 70 do século recém-findo
é que se lastreia efetivamente o terreno à dominância financeira, reflexo da
globalização financeira e da nova configuração adotada pela dinâmica sistêmica
recente do capital liderada pela plutocracia dos Estados centrais e possibilitada
pelo aparato técnico-científico-informacional. Elementos que levam A. Sérgio
Barroso (2005) a diferençar o “padrão de gestão institucional” da riqueza
financeirizada atual da fase do imperialismo do início do século XX, desvelado
com maestria tanto pelo Lênin em 1916, no seu Imperialismo, fase superior do
capitalismo, como também pelo J. Hobson e R. Hilferding.
Hoje, novos circuitos de valorização do valor se interpõem
àquele originariamente produzido no chão da fábrica do final do século retrasado
e começo do dobrado.
Condição insuficiente, para Barroso (2005, p. 7), para crermos
na tese da recente “configuração particular do capitalismo” (como quer François
Chesnais), pois tal julgamento implicaria, a seu ver, na crença da irreversibilidade
da “globalização financeira” e no esquecimento de que a financeirização decorre
de medidas programáticas enredada pelo império norte-americano ligadas ao fim
do padrão euro-dólar em 1971, à flutuação das taxas de câmbio em 1973 e à
elevação das taxas de juros pelos Estados Unidos em 1979 e 1981.
O novo padrão sistêmico de geração de riqueza financeira
primordialmente estimulado nos E.U.A decorre, dentre inúmeros fatores: (a) da
alteração do sistema monetário-financeiro, que com o declínio da moeda e dos
depósitos bancários como bases de financiamento foi substituído por ativos que
289
geravam lucro; (b) do processo de securitização da economia (modalidade flexível
de emissão e negociação de títulos) que cada vez mais interconectava os mercados
creditício185 e de capitais; (c) da constituição de grandes conglomerados de
serviços financeiros; (d) do aprofundamento e alargamento da concorrência
financeira; (e) do aumento da conjunção das operações financeiras com as
produtivas; (f) do mais constante fenômeno de transnacionalização de bancos e
empresas; (g) da variância interdependente das taxas de lucro; (h) do déficit
público financeiro tornado endógeno; (i) do dimensionamento e conformidade
crescente do Banco Central em relação ao mercado; (j) e da retificação do dólar
como moeda estratégica global.
Protagonistas da nova economia espacial do capital, voltam-se
os grandes bancos, fundos mútuos e de pensão e tesouraria de empresas a
expandirem a riqueza em seu portfólio (carteira de títulos).
Percebemos pelo exposto, o divisor histórico ao capitalismo
afixado pela geopolítica dos países centrais.
Num primeiro momento tem-se o boom do pós-II Guerra
Mundial, dos trinta anos gloriosos, dos anos dourados ou belle èpoque dos países
centrais agarrado firmemente aos setores produtivos, na era da culminância do
Estado Intervencionista e do Bem-Estar que buscava suprir as necessidades
sociais e incluir a maioria da sociedade no mercado de consumo, guiando-se a
partir da aplicação política de critérios diretamente sociais186. Nessa fase a cega
185 O sistema de crédito engloba a circulação monetária, a administração de meios de pagamento e o gerenciamento da riqueza, e as conseqüências advindas do comando despótico que sobre ele verte se desdobram nas decisões sobre gastos e sobre produção, determinando os níveis de emprego e renda dos despossuídos. Vale saber que “Em sua forma mais simples, o credito é uma aposta, sujeita a perdas, no acréscimo de valor a ser criado no processo de produção – entendido como a utilização da força de trabalho assalariada e dos elementos do capital fixo e circulante na transformação de bens – com o propósito de gerar mais dinheiro na venda das mercadorias produzidas” (BELLUZZO, 2005a, p. 14). 186 Poucos não foram os pensadores que eternizaram metafisicamente a fase de desenvolvimento do capitalismo, como se não mais tivesse fim, como notamos anteriormente (RIBEIRO, 2004a, 2004c). Lucien Goldmann (1968) foi um dos: acreditando que o problema da sociedade seria a mais a geração de alienados e de pobreza cultural do que de miseráveis. Outro foi Celso Furtado (1920-2004), que discordava das teses marxianas da tendência decrescente da taxa de mais-valia, da ampliação do desemprego e da manutenção de capitais ociosos (FURTADO, 1977). Outro autor é Francisco de Oliveira, que na opinião de Jacob Gorender equivocadamente expressou (no artigo A economia política da social-democracia – publicado no no 17 da Revista USP –, bem como no
290
ratio do capital fazia-se contornada mediante dois fatores básicos: (a)
predominância dos créditos bancários sobre securities (b) e “repressão
financeira”, vez que a superestrutura político-econômico separava bancos
comerciais de outros agentes financeiros, controlando a oferta de crédito, impondo
tetos-limites às taxas de juros e restrições aos movimentos de capitais, o que, por
fim, permitia aos Bancos Centrais melhores chances de intervenções e menores
crises de liquidez; razão de terem surtido efeito as políticas anticíclicas da era
keynesiana voltadas à contenção dos fenômenos de “desvalorização do capital”.
Num segundo momento, ainda segundo Barroso, posteriormente
ao auge do Welfare-State e da política econômica keynesiana de intervenção-
investimento-regulação econômica entornada à manutenção do efetivo de
demanda187, o sistema depara-se com o fenômeno da superacumulação de capital
(especialmente no setor manufatureiro) e vê decair acintosamente as taxas de
lucro e de crescimento econômico. Inicia-se a era da cegueira crescente pela
perseguição do valor-rentista, no qual a ratio do capital aparenta mais e mais a tal
da “exuberância irracional” (não tão irracional assim, se compreendemos a
microcosmovisão do capital).
concurso de admissão para o cargo de professor titular da USP) a opinião de que os países desenvolvidos portam um modo de produção social-democrata, com certas características socialistas já presentes, e que essa seria a fase transitiva ao modo de produção dominantemente socialista. Isso creu por entender que a natureza do capitalismo far-se-ia regulada pela atuação de um “Estado social-democrata” possuidor de autonomia fiscal, sobretudo na segunda metade do século XX e que, ao investir no circuito do antivalor, desviaria supostamente da esfera privada à pública as reservas do fundo público, retirando a regulação da economia do crivo da lei do valor; teses que Gorender vigorosamente rebate, demonstrando inexistir a tal desmercantilização e desnecessidade da forma mercadoria da força de trabalho, tampouco autonomia total do Estado na questão dos investimentos, dado o embate de forças sociais e parlamentar existente; sem contar ser infundada para Gorender a tese de que o fundo público sai da esfera privada dividindo-se entre as esferas privada e pública (na última como antivalor), pois o valor continua a reger a sociedade pelo investimento feito na melhora dos níveis de consumo, no bem-estar e no valor da mercadoria força de trabalho (GORENDER, 1994). Como as demais, a tese de Oliveira rui com a crise inflacionária do final dos anos 1970, demonstrando que o Welfare-State correspondeu a uma agenda político-econômica específica à fase em que se conseguiu conciliar vertiginoso crescimento econômico de empresas transnacionais com relativa distribuição de renda, inclusive com o objetivo de ventilar os espectros vermelhos e revolucionários para longe das economias ocidentais dominantes. 187 A política reguladora e anticíclica keynesiana preconiza o cuidado com as oscilações no volume de inversões, quando a exacerbação do processo de formação de poupança interferiria no emprego e na demanda. Furtado (1977, p. 55) lembra, entretanto, que: “A análise dos fatores que induzem o empresário a inverter é, certamente, a parte mais pobre da obra de Keynes”.
291
A periodização acena a espacialidades inconfundíveis: de um
mundo do trabalho aprisionado mais ao valor-trabalho centrado no capital-
produtivo da fábrica transita-se ao mundo do trabalho atado ao valor-rentista
nucleado pelo capital-monetário das finanças.
O nó espacial mais importante da rede econômica do capital
deixa de ser as indústrias e passa a ser os bancos e as bolsas de valores.
Desindustrializam-se (grandes) cidades, desverticalizam-se
(grandes) indústrias, reposicionam-se os fatores produtivos, especulativos e
reprodutivos sem que o capital consiga eliminar o trabalho produtivo-assalariado
encarnado na manada de mercadorias que estoura em cada estação. O capital se
descentra da indústria, não se desliga dela e talvez por isso seja um erro considerar
a sociedade atual como pós-industrial, ainda que se esteja a vivenciar a hegemonia
dos bancos.
Há um laço material e um imaginário econômico reais
entrelaçando o espaço do capital produtivo e o espaço do capital fictício.
O crescimento aí está, em que pese não possuir nem o caráter
mais alongado que o demonstrado em períodos anteriores e nem a consistência de
outrora. A bolha financeira aí está, por demais sensível às menores oscilações e
imprevisibilidades do mercado. Eis por que, sem embargo, no pós-1970 interpôs-
se momentos de recuperação econômica a vários países centrais, sobretudo no pós
1981-83 e em especial nos E.U.A e Japão. Contudo, como lembrou R. Brenner,
tratando d’O boom e a bolha, o crescimento verificado nos E.U.A entre os anos
70 e meados dos 90 deveu-se às freqüentes desvalorizações do dólar diante do
marco alemão e do iene japonês, ao arrocho salarial e revitalização da indústria
manufatureira; fenômenos que para Barroso, ao inverso do que pensa substancial
parte dos teóricos marxistas, corrobora com dois aspectos da teoria marxista,
quais sejam: (a) a recuperação econômica estrutural-sistemática nos períodos
posteriores às crises e (b) a expectativa de diminuição da potencialidade de
sustentação dos níveis precedentes de produção industrial, com paralela
dificuldade de perpetração dos níveis empregatícios nas regiões urbanas e notável
minoração das taxas de investimentos.
292
Outro aspecto essencial das crises atuais e que as individualizam
das precedentes liga-se à instabilidade macroeconômica (monetária, cambial e
fiscal), hoje redundante da esfera financeira que destroça aquela produtiva188.
Tais choques econômicos não se materializam, entretanto, a
expensas da atuação de agentes e soma de esforços que tentam sempre regular as
vicissitudes da economia, com um escalão de profissionais prontificados a avaliar
o padrão de qualidade dos títulos de dívida e de propriedade, cuidando da criação
e administração da liquidez, entre outras especialidades; prontos para entenderem
e se antecipar às leis de movimento do mercado. O que comprova que a
financeirização não corresponde a uma deformação mas ao aprimoramento do
capitalismo: “aperfeiçoamento” que não desfaz, antes exaspera, as contradições da
sociedade, desvalorizando a força de trabalho, expandindo o capital fixo espacial
para além dos níveis que as relações de produção tendem a suportar.
Universaliza-se o trabalho abstrato pela planetarização da forma
da subsunção real.
E criado por cabeças que têm a função na divisão social do
trabalho de elaborar imagens e fantasias antes mesmo que produtos, como
mercadorias imateriais pré-objetivadas (pesquisas de opinião, designer,
marketing) em universidades, empresas e instituições que atuam como fábricas de
ideologias, o trabalho abstrato assume na grade do trabalho polivalente, total e
combinado, produzido por homens-fragmentos, função tão crucial como o
trabalho manual. Porque potência e ato metabólico (físico e mental) do homem na
relação com seus pares e com a natureza, o trabalho é imprescindível à produção e
à reprodução da sociedade, operando na era burguesa, já que estranhado e
alienado, como fator de pesquisa e efusão de valores mercadológicos,
direcionadores de mentalidades, controladores de cultura e de subjetividades.
188 O nível de especulação é tão alto que pode ser percebido no mercado de ações norte-americano: o setor de alta tecnologia (telecomunicações, fibras óticas, internet, mídia, etc.) se valorizou de U$ 1,5 trilhão para U$ 19,5 trilhões entre 1980 e 1999, ao passo que de março de 2000 a março de 2003 sofreu forte desvalorização, caindo para U$ 11,4 trilhões; já no final de 2004 ascendera vertiginosamente para U$ 15,8 trilhões. Esse processo de des(re)valorização afeta, qual efeito dominó, vários países do mundo, como o que se deram com os E.U.A em 1987, o Japão em 1989-90, E.U.A e Reino Unido entre 1991-92, México em 1994, Ásia, Turquia, Rússia, Venezuela e Brasil em 1997-98, Brasil novamente em 1999 e E.U.A, Europa e Japão em 2001-2002.
293
Nem Adam Smith (1723-1790) poderia imaginar, na Inglaterra revolucionada pelo
industrialismo, tão grande divisão social e técnica do trabalho, a ponto de as
funções se subdividirem exponencialmente entre homens que fazem e homens que
pensam, chegando agora a serem estendidas às máquinas que fazem e às máquinas
que pensam.
Com isso, o trabalho abstrato transborda dos espaços subjetivos
da mente técnica, reconfigurando o conteúdo espacial e a forma paisagística na
intrincada interação entre os espaços mentais do operário, sugados pelo capital (e
chamado capital intelectual) e os espaços geográficos externos. Associados pelo
capital, o mundo do trabalho e o espaço vivido, o espaço mental subjetivo e
individual e o espaço social objetivo e coletivo.
Eis porque apenas epidermicamente apresentam-se tais
dimensões sócio-espaciais segregadas, com o mundo da morada e da reprodução a
se descolar do da produção (RIBEIRO, 2004a, 2005a). Na raiz do processo: o
regime do capital a fragmentar a totalidade ontológica do ser social, tatuando
traumas na subjetividade do trabalho (THOMAZ JR., 2003a, p. 8).
No encalço da trilha da manutenção das taxas de lucro – e
paradoxalmente, causando o encurtamento da mesma, pela tendência histórico-
ontológica à queda de suas taxas médias, pelo investir no capital constante que
vem alterar a composição orgânica espacial do capital – o mundo da automação
tende a adensar o fenômeno do desemprego e este, por seu turno, imediata ou
indiretamente, pressiona subjetivamente o trabalhador a ser mais circunspeto,
assisado, dedicado, produtivo e passivo (DIAS, 1999).
Tudo (valores econômicos e político-culturais) arrastado pelo
espectro econômico adjetivado por “globalização” (de afazeres e idéias), que ao
gosto dos mais poderosos grupos e nações tomou o posto do de mundialização no
encalço da teleinformática (telemática e satélites), avançando pela estratégia de
liberalização e desregulamentação econômico-financeira, sussurradas primeiro por
lábios americanos, depois japoneses (CHESNAIS, 1996) e, por certo período de
tempo, dando a idéia de quase absoluta planetarização.
294
Por esse sobe e desce fica demonstrado que o maior atributo do
capitalismo está nessa capacidade de “multiplicar-se” a partir da autonomização
de suas formas histórico-geográficas particulares (capital-produtivo, capital-
mercadoria, capital-monetário), com dinâmicas que se contraditam no
metabolismo capitalista de acumulação de riqueza abstrata, donde se vê
hodiernamente sobrelevar-se o capital-monetário ao capital-produtivo.
O presente cenário é de recuperação à economia mundial – ou
aos países que a estão sabendo tirar proveito –, não obstante as eminentes ameaças
de crises.
Grosso modo, podemos dizer que presenciamos a modificação
da balança comercial e dos índices de crescimento econômico entre as duas
bandas do mundo, Oriental e Ocidental, o que contradita a tese da tendência
inexorável à estagnação do capitalismo na era dos monopólios, como creram
apressados teóricos marxistas norte-americanos que proclamaram o fim dos ciclos
econômicos a partir da realidade de seu país, num desenrolar que demonstrava, na
opinião de Sérgio Barroso (2005, p. 10), a:
superpotência em decadência histórica, com desequilíbrios estruturais, dívidas e déficits cada vez maiores, “oficialmente” com 36 milhões de pobres, mais de 20% de suas crianças abaixo da linha de pobreza, com seus 2,5% de presidiários, a grande maioria em idade produtiva.
Na banda oriental, é bem mais visível o desenvolvimento da
China189, da Índia (com taxas de crescimento de 9% e 7%, respectivamente) e do
grupo ASEAN-4, composto por Indonésia, Malásia, Filipinas e Tailândia (com
média de 5% a 6% de crescimento anual); destoa de tal conjuntura por enquanto o
Japão, por não estar demonstrando capacidade de reação significativa em meio à
redivisão econômico-comercial global, com a nova divisão internacional e
189 Contra o entusiasmo que toma conta do mundo e que na defesa de uma multipolarização do mundo projeta a China como maior superpotência dentro de poucas décadas, a lei marxista que afirma que os períodos de crescimento tendem a ser cada vez mais curtos. Ou seja: haverá tempo para isso? Romperá essa formação social pós-capitalista, ao contrário do que fizeram as soviéticas, com o capital? Como ficará a questão da concentração de renda, pois se a classe média lá cresce – fenômeno que não é a regra no mundo – efetua-se contudo, segundo Rodrigues (2005, p. 32) dentro de um quadro social no qual 1% da população detém 40% da riqueza nacional?
295
interindustrial do trabalho aliada ao novo arranjo do mapa espacial dos fluxos e de
curta hospedagem do capital-fictício.
Aos que não se desenvolvem ou os que não crescem
economicamente, ou que crescem em pequena e insuficiente escala, situando-se
de modo mais passivo e subserviente na economia globalizada que orbita agora o
que se tem chamado de Terceira Revolução Industrial190, nota-se o avolumar do
desemprego estrutural, qual deformação ontológica ao qual não conseguem burlar;
e não apenas nos países periferizados e satelizados, posto que nem sempre o
crescimento econômico se encontra acompanhado pelo acrescentamento dos
postos de emprego, ainda que seja inegável que nações controladas pela
“lupemburguesia” (como tachou André Gunder Frank), por envolver atores
econômicos nacionais que se auto-elegem sócio-menores das multinacionais, são
os que sofrem os maiores danos com os tremores vindos do epicentro da
economia política espacial do capital. 190 Como características das três revoluções industriais, temos: 1) a I Revolução Industrial (1780-1830) ocorreu inicialmente na Inglaterra, sendo marcada pelo paradigma manchesteriano, além de estar centrada economicamente no ramo têxtil do algodão (ramo que concentra a maior parte da classe operária, formada sobremodo por mulheres e crianças) e de ter como principais modais de transporte e comunicação a ferrovia e a navegação marítima; como fonte energética tem-se o carvão. No Brasil tal revolução chega apenas no fim do século XIX, em municípios como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Em termos políticos, percebe-se uma tendência à ausência do Estado (políticas salariais e outras formas de regulação da política econômica), o que possibilitou caracterizar esse período de liberal; 2) a II Revolução Industrial começou em fins do século XIX, só principiando a ter traços mais definidos no início do século XX (1870-1950), destacadamente nos Estados Unidos; tendo a I e a II Guerra Mundial por mola propulsora. No pós-1950, os elementos e indústrias da I Revolução Industrial migram dos países centrais para os países agrários da América Latina, Ásia e África (uma vez que começa a esboçar-se a III Revolução Industrial nas nações hegemônicas). É assim que, por volta de 1950, a II Revolução Industrial chega ao Brasil. O aço agora é o material básico e o setor automobilístico nucleariza a indústria. O sistema técnico e de trabalho predominante são conhecidos como paradigmas fordista e taylorista. Os meios de transporte típicos são a rodovia e navegação aérea e o petróleo é a fonte energética principal da qual desenvolve-se a petroquímica – além de outras formas de eletricidade. O Estado atua fortemente no investimento e organização da economia, o que faz distinguir esse período do anterior, dada à força que a política do keynesianismo exerceu, defendendo-se a participação, regulação e intervenção do Estado; 3) a III Revolução Industrial (1950-) é cria do século XX e surge nos Estados Unidos, com o desenvolvimento da tecnologia básica do computador; todavia, essa revolução só vem a desenvolver-se efetivamente no Japão, e com forte apego à informática. O paradigma econômico é denominado toyotismo por originar-se na fábrica da Toyota a partir da perspicácia do engenheiro Taichii Ono. Na política, percebe-se o alastrar-se dos países centrais da ideologia neoliberal que prima ausência do Estado, o que possibilitou cognominá-lo de período do neoliberalismo (mais ideologia que sugestão de superação da crise, visto que nem os países centrais seguem os postulados teóricos que ditam aos quatro ventos); no plano energético, a energia atômica e a baseada na biomassa parecem destacar-se, além de alguns outros em processo de estudos laboratoriais ou experimentais. Maiores detalhes: MOREIRA, 1998; ANTUNES, 2000.
296
Seqüelas estruturais inequívocas do processo de
desenvolvimento desigual e combinado estão no fato de que quase metade da
população mundial vive com menos de U$ 2 por dia nesse início de milênio; 6,5%
da população economicamente ativa encontram-se desempregada, segundo dados
de 2002 (e a perspectiva é de que os números não parem de crescer); 730 milhões
de pessoas estavam subempregadas conforme a Organização Internacional do
Trabalho (OIT); além de os países da OCDE gastarem mais em pesquisa do que o
PIB gerado pelos 80 países mais pobres do mundo, que vêem suas dívidas
externas subirem rápido aos céus.
2.1.3.6 O modo de produção de capital
pós-capitalista
“Para nós, não se trata de reformar a propriedade privada,
mas de aboli‐la; não se trata de atenuar os antagonismos de classes,
mas de abolir as classes; não se trata de melhorar a sociedade existente,
mas de estabelecer uma nova”
(A visão de Marx e Engels não foi capaz de notar estações outras
entre o capitalismo e o comunismo, além do socialismo).
Contrário às relações sociais de produção capitalistas, as
formações sociais que no século XX pipocaram essencialmente em chãos de
Europa, Ásia e América não conseguiram superar completamente o seu sistema
metabólico. Uns as têm como continentes do sistema de produção de capital pós-
capitalista191. Havia não obstante, em meados do século XX, aqueles que apenas
191 Caso do filósofo húngaro marxista István Mészáros e daqueles que no Brasil se filiam a sua tese, como o sociólogo R. Antunes.
297
se negavam a tachar economias como a soviética de comunista, tendo-a como uma
particular manifestação socialista192; assim o socialismo soviético comporia a
realização prática e concreta das múltiplas teorias acumuladas no campo teórico
da esquerda193. Também houve os que o chamaram de socialismo de caserna ou
capitalismo de Estado194, de capitalismo monopolista de Estado195; conquanto
outros afirmassem o capitalismo de Estado como a degeneração do socialismo196.
Autores como Gorender preferiram utilizar o termo socialismo
de Estado, negando a tese de que tais países teriam sido nada mais que
protagonistas dum capitalismo de Estado, haja vista ter ocorrido a expropriação de
capitalistas e de grandes proprietários de terra com a revolução russa, além do fato
desses não serem regidos pelas leis da economia mercantil capitalista, pois, apesar
de existirem categorias como dinheiro, preço, lucro e salários, o comportamento
dessas seguiam os parâmetros ditados pela economia de comando administrativo,
pelo planejamento central burocrático197. Isso não somente fez com que a lei do
valor ficasse impedida de se manifestar – evitando-se simultaneamente a
concorrência, a diminuição do valor por produto e a lentidão do progresso
tecnológico – como demonstrou o fracasso desses países não apenas na arena da
produção de valores, mas sobretudo de valores-de-uso, uma vez que se
empregavam excessivos trabalhos e recursos na geração de produtos de baixa
192 Como a considerou Lefebvre, que endossava que no comunismo não deverá haver Estado. 193 Cf. Moreira, Do socialismo utópico ao socialismo real, s/d. 194 Termos empregados por Robert Kurz. Como fez notar Gorender (1994), Kurz, na obra sobre O colapso da modernização, chegou a incluir o bloco de países integrantes da ex-União Soviética e os do Leste europeu como pertencentes ao sistema capitalista, taxando-o como “capitalismo de Estado”. Como conseqüência da lógica de seu raciocínio, o autor diz que a crise veio a se manifestar primeiro nas nações do Terceiro Mundo, posteriormente nas do Segundo Mundo (que pertenceriam os países “capitalistas” estatistas) para então galgar os do Primeiro Mundo. Nesse ponto Gorender se junta aos críticos de Kurz, como José Arthur Giannotti, Bresser Pereira, Francisco de Oliveira e Fernando Haddad, negando o presumido caráter capitalista destas nações. 195 Terminologia foi cunhada por Lênin para caracterizar a fase transitória do capitalismo ao socialismo, em que a propriedade de alguns setores deveria estar sob controle do Estado para fazer frente ao capitalismo ainda controlador da economia. 196 Tese defendida por Léon Trotsky (1879-1940). 197 Apoiado em Harry Magdoff, Mészáros (2003) afirma que, enquanto a economia capitalista é planificada com vistas à produção para o lucro, a produção na economia soviética era planificada para a própria produção (o desperdício e o descuido eram aceitos pelos trabalhadores como pré-requisitos certificadores do dinamismo produtivista, para que se atingissem – a qualquer custo – as metas estabelecidas pelo governo central), substituindo o que deveria ser a produção para o uso.
298
qualidade, produtos esses tanto mais precários quanto mais próximos do
consumidor (como notara Trotsky).
Em favor da tese sobre o conteúdo não-capitalista das formações
sociais sacudidas pelas revoluções da primeira metade do século XX, conta
igualmente a nova geograficidade criada pela e na economia da URSS, com o
impedimento de empresas transnacionais investirem e operarem no bloco que
substituíra a propriedade jurídico-política burguesa pela estatal.
No que concerne à China, o rótulo de sistema híbrido, a tentar
superar a burocracia e lentidão do socialismo politicamente centralizado com a
desigualdade inerente às forças econômicas capitalistas na criação e distribuição
de empregos e renda, foi cunhado para tentar caracterizar esse país, segundo
divulgação do governo de Hu Jintao. Tenta-se com isso, readequar uma economia
socialista de mercado que, na opinião do Premiê Wen Jiabao, busca atualmente
substituir o centralismo e os pacotes governamentais por um maior liberalismo e
por leis de mercado, conferindo maior liberdade a bancos e a investidores
privados na geografia da infra-estrutura de produção e circulação; mas embora
atue ainda sobre questões macro-estruturais de financiamentos e nas decisões
sobre quais regiões geográficas devem se desenvolver, as ações ou iniciativas
estão mais soltas que outrora198.
Seja como for, o jogo geopolítico estatal ou privado, nacional ou
transnacional nas configurações das geografias desigual-combinadas da
produção/circulação dos espaços pós-capitalistas não foram suficientes para que o
ideal de socialismo morresse com os experimentos iniciais concretizados.
Houve oxigenação das teorias com as práticas, como vela o bom
e velho método dialético materialista. Inclusive porque, diz o rifão, na prática a
teoria é outra, particularmente se forem as revoluções antecipadas a conjunturas
menos propícias a significativos avanços.
198 Cf. RODRIGUES (ed.), 2005, p. 30 et seq. Em entrevista concedida a Wolffenbüttel (2005) são tecidas por Paulo Cunha considerações e comparações entre os modelos brasileiro e chinês, especialmente, em que fica nítida a crítica aos gastos governamentais da máquina falida e ineficaz brasileira, que consome cerca de 40% do PIB.
299
Como conseqüência, direta ou indiretamente, o complexo do
capital, no porão da economia marginal ou em um mercado regulamentado e
planificado, conseguiu sobreviver às forças que intentavam primeiramente
destruí-lo.
Por que não conseguiram?
Várias as respostas possíveis. Destacamos as que se entornam às
problemáticas da(o):
Produção: não se conseguiu desvencilhar dum trabalho abstrato, produtivista
(molde fordista-taylorista), alienado, parcelário, passivo, manual e executor
porque, segundo alguns, houve nos territórios sob mandarinato soviético a
necessidade de se priorizar a implantação de indústrias pesadas que no médio
e longo prazo subsidiariam o desenvolvimento econômico mais duradouro,
com maior geração de riqueza e melhora dos níveis de vida dos
trabalhadores, por cujo preparo patriótico e teórico deveriam aceitar o
sacrifício199. Houve com isso um natural desgaste com a falta de alimentos e
de bens de consumo básicos, quando simultaneamente se inchava o paiol
atômico e se navegava no espaço sideral, com grandes e desproporcionais
somas de excedentes sendo derramados no ralo nada socialista dos gastos
governamentais da (cada vez menos fidedigna) “ditadura do proletariado”;
Estado: ao invés de perecer após a ditadura do proletariado, que ocuparia o
vazio da ditadura burguesa, não o fazendo e nem se preocupando com a
preparação da transição, fortaleceu-se como força supra-social controlada por
estratos da sociedade que reproduziam a desigualdade, os privilégios e o
status em ampla escala. Assim, a vanguarda que deveria dirigir certo(s)
estratos(s) social(is) (operariado e ou campesinato, a depender da sociedade)
e que em nome de toda a sociedade comandaria a revolução para, depois de
concretizada, negar-se a si pela educação das massas que se embrenharia
199 O ex-líder soviético Mikhail Sergeevich Gorbachev (1987) voltou a lembrar no momento da transição da perestroika e da glasnost que somente na fase do comunismo valeria a tese que afirma: “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”, e que até que isso fosse possível o povo deveria aceitar em muito contribuir e o possível usufruir.
300
numa nova cultura geral, desviou-se desse propósito, consolidando-se como
camada dirigente substancialmente autônoma e segmentada autocraticamente
do restante da sociedade: efeito direto disso foi a utilização dos sindicatos
como simples “correias de transmissão”, na expressão de Stálin, dos
ideários definidos pelo alto escalão do governo. A velha cultura autocrática
da política czarista acabou, por essa via, impedindo que, superando-se o
inverno do capital, raiasse a nova estação da primavera social (como se
tentou fazer na Tchecoslováquia de 1968-69);
Segmentação e segregação social: a distinção social e imposição das normas
geraram crescente desidentidade, enfraquecimento dos referenciais
socialistas, dos coletivos operários (soviets) que deveriam gerir a sociedade e
as unidades fabris, com guerras interétnicas e interculturais (intransigência
religiosa) rachando o solo social que se queria cultivar, pulverizando um
pouco mais internamente o espaço do bloco socialista já à força implantado
nos países vizinhos. Quis-se negar a sociodiversidade cultural por decretos e
fechamentos de templos religiosos (nos moldes talvez de um combate
feuerbachiano da religião), aumentando o inútil estado de animosidade da
heterogênea sociedade civil, em simultaneidade à exportação territorial da
revolução pela ocupação militar dos Estados vizinhos, como o que ocorreu
em especial com os países libertos da ameaça nazista no pós-II Guerra
Mundial, porque se vivia sob a influência de duas grandes argumentações: a
que primava a internacionalização do socialismo e a que fechava com a idéia
do socialismo num só país;
Luta ideológica: contra a fortíssima propaganda ocidental consumista e
narcisista (como a que se dava na Alemanha dividida) que, satisfazendo
(fantasiosamente) melhor a subjetividade de um ser igualmente faminto por
beleza, colaborava para que se fendesse e erodisse o espaço da sociedade
socialista que se queria semear. O que comprova que o capitalismo sempre
encontra brechas para se esgueirar em meio à sociedade e não haveria
301
“cortina de ferro” na “guerra fria”200 que poderia lhe conter
significativamente se tais sociedades não dispusessem de meios de
comunicação e informação próprios, mas ajustados aos interesses da classe
trabalhadora (aparelhos de Estado pós-capitalistas);
Apressamento do movimento e desvio de rota: parece ter-se esquecido que a
destruição do complexo do capitalismo só pode ser operada através da tripeça
fundante: trabalho abstrato-capital-Estado, pois a ordem do capital e a
desigualdade (mais política que econômica, inicialmente) se restituem mais
facilmente no persistir de qualquer um dos vetores;
Fechamento de horizontes: com o desvio de rota realizado pela estatocracia
pós-capitalista, a dialética foi ossificada na cartilha do “marxismo”
estruturalista (stalinismo): as massas foram conservadas à distância e numa
situação de ostracismo social, a intelectualidade foi menospreza e os líberes
opositores refugiados tornaram-se alvos caçados pelo mundo. A sociedade
“socialista” soviética ou o seu sistema de capital pós-capitalista, nesse
ínterim, derrubou alguns dos muros antigos para se erguer novos, tapando-se
os olhos para o fato de que o capitalismo só pode ser destruído em sua
totalidade histórica e geográfica universalizada através duma revolução
permanente e continuada, planetariamente, que mine suas forças, ocupando
todos os espaços geográficos em que possa recobrar fôlego à retomada do seu
processo geral e desumanizante. É por esse motivo, como consideram alguns
marxistas, que as revoluções socialistas – contudo louváveis tenham sido
alguns dos êxitos obtidos nas sociedades agrárias que a protagonizaram – não
se desenvolveram nos períodos mais propícios a elas, quando específicas
condições de crise econômica (questionamento da sociedade burguesa), crise
social (transparecer da concentração da riqueza e ampliação generalizada da
pobreza) e de crise política (afrontamento e derrubada do poder burguês) se
confluem com grande força; consideração que afiança que a revolução não
depende apenas da vontade subjetiva, como esperam os alquimistas da
revolução. 200 Expressões forjadas pelo ex-primeiro-ministro inglês Winston Churchill.
302
Talvez o fenômeno da “aceleração contemporânea”, a que se
reportava costumeiramente M. Santos, tenha também surtido seus (de)efeitos nas
sociedades pós-capitalistas que tinham Stálin à dianteira. Sabe-se afinal que nelas
foram priorizadas mais a “corrida militar”, a “corrida espacial”, a “corrida por
medalhas”201 do que a corrida teórica e intelectual para que o movimento não se
fizesse travado e engarrafado por várias vezes ao cientificismo tecnológico e
pragmático.
A reta estrutural ou o círculo do movimento antidialético do
método stalinista desviou a práxis concreta e teórica da história e dos espaços
“socialistas” para o rumo do des-envolvimento em-si, distando-se enormemente
das teses clássicas envolvidas com o comunismo, e essa uma das justificativas do
afastamento posterior da China “socialista” ou pós-capitalista do bloco espacial
regido pelo Nikita Kruschev, que se aproximava do governo norte-americano.
Não se conseguiu perceber de fato que:
O socialismo não vem para ficar, ele vem para se extinguir, porque realmente o objetivo não é criar uma sociedade socialista, mas chegar ao socialismo (...). É a revolução dentro da revolução, no seu pico mais alto (FERNANDES, 1995, p. 69).
A revolução, para Florestan, foi produzida de “cima para
baixo” pela União Soviética aos países do Leste, criando partidos únicos nos
mesmos que, de socialistas ou anarquistas, só tinham o nome (ibidem, p. 207-
208), quando verdadeiramente, a revolução não pode ser imposta militarmente
“de fora para dentro” e “de cima para baixo” ao menos que com aprovação
popular que a veja como libertação, isto por que: “Se ela não atinge as cabeças e
os corações dos seres humanos, ela oscila e se aniquila” (ibidem, p. 207, 208).
201 Recentemente revelou-se que equipes olímpicas da então URSS incitavam suas atletas ao procedimento da gravidez seguido de aborto, como forma de aumentar seus rendimentos nas competições.
303
Apesar dos relativos ganhos sociais e econômicos, a invasão militarizada ao invés
de politização criava barreiras psicossociais e aversão ao regime, muitos
ingressando o movimento revolucionário.
O valor tem papel essencial, dá cara ao trabalho que engrena a
sociedade em determinado rumo, traçando e combinando o tipo de espacialidade
social a ser adotada. Por isso que ao desenvolvimento material da sociedade torna-
se fundamental a preocupação com o desenvolvimento “espiritual” da mesma,
porque o capital não é apenas um fator mas uma relação social revestida de um
colorido camaleônico que se entranha e se envereda pelos dutos da sociabilidade
até viciá-la e entorpecê-la novamente com seu veneno. Eis o porquê da acalorada
polêmica havida entre o Ernesto “Che” Guevara e o francês Charles Bettelheim
sobre os rumos das economias socialistas no século XX, em torno de discussões
sobre como deveriam as empresas se estruturar202, como igualmente os
referenciais de estímulos a serem lançados à sociedade203.
Polêmicas à parte, sabe-se que a política soviética desaprovava
experimentos sócio-econômicos do bloco, que distassem de suas consagradas
máximas.
Quem sabe, talvez no fundo da questão retomada pelo Che
estivesse a fórmula mais correta de se coligar o indivíduo com a coletividade sob
moldes totalmente novos e desapegos da cultura individualista fortemente
enraizada no capitalismo, em que comparece quase que como objetividade
natural.
Um debate como este que se arrastava havia séculos,
contrapondo marxistas, ideólogos burgueses e ou teorias filosóficas direta e
202 Che era da tese de que se deveria promover a transferência de recursos de uma para outra empresa, tanto para se evitar estagnação em alguns setores como para controlar a superacumulação doutros setores, para que outras esferas econômicas se aquecessem de modo interdependente. Che pretendia que o desenvolvimento duma nova cultura, do trabalho e mais geral, promoveria o desenvolvimento das relações de produção e estas, numa relação dialética, acionaria e dinamizaria o desenvolvimento da economia cubana de forma planificada. Bettelheim era de opinião avessa, acreditando ser necessário que todos os esforços se direcionassem primariamente ao desenvolvimento das forças produtivas. Outros detalhes: GUEVARA, 1991. 203 A esse respeito Che apostava que as recompensas sociais aos trabalhadores deveriam possui um conteúdo mais simbólico do que material, para que os valores e os princípios não se desvirtuassem do novo homem que se objetivava criar.
304
politicamente não assumidas como conservadoras. De um lado aqueles que, tal
qual La Rochefoucauld, Bauer e Stirner, equipados dum individualismo idealista,
criam que os sentimentos humanos tenderiam para o individualismo e para
interesses privados, sendo o homem fundamentalmente “mal”, lobo de si mesmo
(Thomas Hobbes), como reforçava o cristianismo e reitera o pessimismo
moderno204. De outro lado os que aspiravam, por intermédio de construções
idealísticas, congregar interesses particulares com interesses coletivos no
capitalismo, como o filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1832), que creu que
os interesses coletivos deveriam estar em harmonia com os particulares (situação
impossível no capitalismo, tendo em conta que o interesse geral e coletivo é
impossível a todos em igualdade e reciprocidade). O fato – e os teóricos burgueses
não se vergam em aceitá-lo – é que o indivíduo isolado e de interesses privados é
criatura burguesa e do século XVIII, do período em que mais desenvolvidas e
complexas tornaram-se as relações sociais, porque até esse momento da história o
indivíduo se via mais facilmente como pertencente a um todo, à família, tribo ou à
comunidade natural; na teia de fetiches e segregações capitalísticas, o indivíduo
não poderia se manifestar em sua forma plena. O homem não é naturalmente
“bom” (Rousseau, Montaigne, Rabelais) ou “mal” (Maquiavel, Hobbes, Voltaire),
já que não é sua consciência que determina o seu ser. Ao marxismo, o homem
apresenta-se como a mistura histórica de possibilidades confusas entre o “bom” e
o “mau” (excetuando-se os que eventualmente sofressem de anormalidades e
psicopatologias), que a vida social vem depois orientar (MARX; ENGELS, 1996;
MARX, 1999; MANDEL, 1976; LEFEBVRE, 1981; DURANT, 2000; RIBEIRO,
2001b, 2004a, 2005c).
Uma problematização com essa, proposta pelo revolucionário
argentino, serve de ilustração para a relação dialética ao qual se deve ter atenção,
entre a esfera das forças produtivas e a esfera das relações sociais de produção,
integrando paralelamente a essa planificação a preocupação com o
desenvolvimento psíquico-cultural do ser social, nos termos da individualidade- 204 Quem sabe haja nesse ponto uma filiação com os postulados de Aristóteles, que sagravam a diferenciação e a hierarquização entre os sujeitos na escravatura, em prol da aristocracia e em combate ao comunismo idealista de Platão.
305
coletividade e no melhoramento material-espiritual (espiritual-material)
correspondente.
Outras questões poderiam ser ainda aventadas. Uma delas atine
aos danos ambientais que sustentaram um tal surto desenvolvimentista, que deixa
ainda marcas nas populações das ex-nações soviéticas localizadas próximos aos
maiores conglomerados industriais e mineradores. Poluição e doenças causadas
numa corrida mais ideológica com a maior nação capitalista do mundo (EUA) do
que como conseqüência de um necessário estágio de “esforço” e “sacrifício”
social para que os frutos fossem mais à frente colhidos por todos. Afinal, formas
alternativas de geração de energia não deveriam ser justamente buscadas por uma
sociedade que auto-nomeada socialista deveria primeiramente cuidar para o
progresso sócio-ecológico, da sociodiversidade e da biodiversidade, do homem e
de sua morada, o planeta?
Marx sabidamente não fora e nem poderia ser capaz de
pressentir esse estágio da evolução humana, tal qual se apresentara, de um modo
de produção de capital não-capitalista que ainda resiste no Oriente, mormente na
China, além do reduto americano cubano, que outros vêem como um tipo
particular de socialismo (uma das possíveis etapas ao comunismo) ou como uma
sociedade estatocrata parecida com o stalinismo.
Numa concepção marxiana, antes de destruído deveria o
capitalismo ser levado ao ápice possível de sua maturação, para que miséria e
escassez não correspondessem às únicas coisas passíveis de socialização. O
problema é que se quis que o desenvolvimento e a socialização do sobreproduto
social se fizesse por dentro dos marcos da sociedade pós-capitalista, sem
conseguir romper com o capital e, a mais grave implicação disso, sem se refletir
sobre a questão de que se é o capitalismo uma totalidade, obviamente que tal
totalidade não pode ser destruída desestruturando-se unicamente uma ou algumas
de suas partes.
O capital mantém-se vitorioso, imiscuindo-se nessas grandes
reservas de mão-de-obra e de mercado de consumo que se abrem, seja como
economia planificada de capital pós-capitalista, seja como meio classicamente
306
tipo por certa ala da esquerda mundial como a forma da transição mais adequada
para o socialismo, em que do próprio capital se angaria as forças para o necessário
desenvolvimento das forças produtivas que haverão de negá-lo, superando-o.
Outros asseveram a existência de formas embrionárias de
manifestação do socialismo possível ou socialismo real, estágio de aprendizado e
desenvolvimento coetâneo a certas formas de manifestação do capital. O exemplo
chinês é emblemático nesse sentido, tendo recebido do governo brasileiro, seu
aliado na luta pela multipolarização político-econômica global, a menção de
reconhecimento de “economia de mercado”205. Pelas contradições inelimináveis
da economia de mercado, sofre as conseqüências da concorrência por parte da
China e já lhe impõe restrições em alguns setores (brinquedos e tecelagem,
maiormente); e aí de fato, pouco tem feito de prático esse país, economicamente,
para desviar-se do modelo político-econômico imperialista dos EUA.
A China, com uma estratégica política internacional pacífica de
desenvolvimento apresentada até o momento206, ganhando aos poucos mercado e
posição de destaque ante a economia norte-americana e mundial, apóia e patrocina
partidos e governos de esquerda e ou centro-esquerda pelo mundo, ao passo em
que estreita laços políticos com nações consideradas socialistas no cenário
internacional, como Vietnã, Cuba e Rússia – a última nos aspectos científico e
militar, sobretudo com o objetivo de conquistar o respeito/temor ocidental
capitaneado pelos norte-americanos. Internamente, realiza encontros e promove
discussões, como forma de gerar o aprendizado que diminua as chances de erros
na geoestratégia e nos rumos do desenvolvimento da economia e do socialismo
vindouro. 205 Grande parte dos economistas nega e repudia essa posição. Para eles a sociedade e a economia chinesas não se fazem deliberadamente governadas pela lei do valor e nem cumprem com as regras do receituário (neoliberal) da cartilha econômica global. 206 A tensão regional afigura-se momentaneamente assim por ainda não terem sido tomadas por parte do governo chinês ações mais incisivas contra Taiwan, embora em termos de discurso as ameaças sejam periódicas. A instabilidade política entre esses países decorre do fato de Taiwan ter sido ocupada pelos mais de dois milhões de integrantes e adeptos do movimento nacionalista de direita MKT que, após confrontar o PCC de Mao, foi exilado no pós-II Guerra naquele território hoje reivindicado. Tal situação reacende o medo nipônico e, por conseguinte, a atenção norte-americana de um confronto de maior monta, por haver, segundo alguns analistas, outras áreas oceânicas muito além da costa chinesa que estariam a fazer parte dos planos expansionistas daquele governo.
307
Segundo Theuret (2005, p. 54), “A China atual se considera
apenas na primeira etapa da construção do socialismo, que deve durar uns 100
anos!”.
Como externou o jornal do Exército Popular de Libertação
chinês, enfatizando o que a eles compareceria como legado de sua milenar
paciência (e que, talvez diferentemente dos ex-soviéticos, fugiria da cobiça
política de manutenção do poder hierárquico):
a realização do comunismo é um processo histórico que se desenvolve de maneira não-linear. O desenvolvimento da sociedade humana sempre avançou por espirais e ondas. Nós devemos forjar um ideal de uma luta de longo fôlego e realizar uma boa luta ideológica para enfrentar todas as formas de dificuldades e de fracassos. Se a causa comunista internacional continuar sofrendo fracassos, devemos nos manter prudentes nos momentos de perigo e sempre manter a convicção de que o socialismo triunfará e que o comunismo, com certeza, prevalecerá (apud THEURET, 2005, p. 59).
Senão suficiente para se crer que a multipolarização a ocorrer
quiçá ainda nessa primeira metade de século XXI conterá como tônica a redivisão
geográfica do mapa político internacional (socialismo x capitalismo), o
movimento anuncia entretanto uma tendência no mínimo de deslocamento do eixo
econômico do Ocidente para o Oriente, pelo peso que os chineses, japoneses e
indianos exercerão, mexendo na balança do poder político e econômico, tanto
capitalista como socialista ou pós-capitalista.
Preferem crer ou indiretamente “avisar” por seus escritos, como
o fez o homem do Pentágono, Barnett, que a China e os EUA terão boas relações
econômicas, por estar ela movida pelo capitalismo, tornando-se enormemente
dependente de recursos naturais, e é com base nisso que ele não vê razões para se
acreditar em “uma nova guerra fria. Apenas alguns idiotas em altas esferas que
ainda sonham com esse nonsense” (EXPEDITO FILHO, 2004, p. 41).
Há que se saber entretanto, que existem fortes indícios de que o
socialismo não apenas não figurará no mapa com o que atualmente se descreve no
plano das forças existentes como será substancialmente diverso das lutas
socialistas reinantes na primeira metade do século XX, tendo em vista que ao
308
contrário daquelas, o novo avanço socialista engendrar-se-á objetivamente da
expansão, crise e paradoxos do sistema capitalista atual, quando já não mais tiver
capacidade de reestruturar-se por meio de seu avançar horizontal207.
O espaço, a história ou o real contudo, não são só desejo e
representação de alguns, como creram não poucos filósofos e pragmáticos, é
movimento racionalmente governado e potência possível de concretização.
Contarão os espaços do século XXI com formações sócio-
espaciais distintas de manifestação do novo homem, a disputarem corpos e
mentes da classe dos dominados fundamentais? Ou será ele palco de formas
territoriais distintas de manifestação do velho capital, e de lutas interimperialistas
entre impérios do Oriente e do Ocidente, sem romper por completo com os
marcos do capital?
A economia política espacial do capital só poderá ser suplantada
por uma economia política espacial da classe trabalhadora.
O aprofundamento no espaço histórico recente e no que se
arranja talvez possa ajudar-nos a aguçar as vistas para antever melhor o terreno.
207 A teoria do “remedio espacial”, compreendido por Hegel como o estender econômico e territorial do capitalismo com vistas ao alcance do estado de equilíbrio, qual fuga horizontal, foi e será incapaz, entrementes, de negar a contraditoriedade uterina de sua estrutura vertical (HARVEY, 1999, p. 50, 52 passim; RIBEIRO, 2001, p. 256; idem, 2004a, p. 5).
309
3. Palavras Finais
A forma como a sociedade se geo-grafou ao longo do tempo foi
diferenciada. Em termos gerais, multíplices igualmente foram os mecanismos de
análise: da visão cosmo-teo-lógica (ordem divina) transitou-se a um naturalismo
cosmo-lógico (ordem externa, da natureza-totalidade), superadas mais
recentemente por uma cosmo-logia dialética (ordem/desordem espácio-temporal
de natureza social). Nos dois últimos trajetos percebe-se um trilhar teórico da
metafísica para a física.
O eu e a subjetividade entorpeceram tanto o saber que muitos
teóricos assumiram como recurso metodológico o primado do irracionalismo da
ciência e do real; outros se excursionam pelo pluralismo e ecletismo metódico;
outros ainda se somam ao princípio da práxis do ser concreto, do “como” está-aí,
descarregado de apriorismos. Contudo, é possível ou mesmo necessária a cisão
metódica entre teoria-prática ou prática-teoria, se são e estão uma na outra, sendo
ambas movimento interpenetrante e ininterrupto?
Na ribanceira de tudo, a espacialidade altiva do imperialismo.
Grosso modo, respostas vindas de cima para os movimentos sociais e sobretudo
aos cientistas que dizem não procurar respostas (pós-modernos), aos que se
agarram às formas (positivismo), a movimentos “livres” e desgovernados
(irracionalismo), a relações de causa-efeito mecânicas (pluralismo) ou aos que
despolitizados tecem associações assistemáticas, defensistas e limitadas entre os
eventos e os entes do real (ecletismo), entre inúmeras outras seqüelas que mantém
dentro a todos e tudo na pista cíclica em que se move e morre a sociedade
motorizada pelo capital.
Vai-e-vem de teorias cosmoteológicas e cosmonaturalistas: na
primeira corrente a dominância de cosmometafísicas e, na segunda,
predominância do cosmo-empirismo (com certa dose de metafísica).
Compreendido o cosmo como ordem e disciplina, nada mais propomos que uma
cosmogeografia que se ponha como busca pelo entendimento do conteúdo da
310
organização da territorialidade grafada como formas espaciais, desviando-se das
divagações idealistas, metafísicas e suprafísicas.
Não se trata entrementes de inventariar o passado. Tais correntes
teóricas, seus conceitos e métodos flutuam e se fixam no mundo hodierno,
possuem seus seguidores.
Grafias espaciais rabiscadas em distantes outroras persistem
inda hoje. As de hoje prenunciam a geografia do amanhã.
As teorias e os métodos, exemplarmente o método do
materialismo histórico-geográfico, podem ser a luz científica a clarear a relação
do caminho-teórico com a práxis-do-caminhar. Reinventando-se os dois.
Dos referenciais ôntico e ontológico se conhece o ser. Das
paisagens das formas e dos conteúdos processuais e funcionais estruturados
socialmente de modo alienado é donde se revela ser-no-mundo (ou o ser, o
mundo, o mundo-do-ser e o mundo-no-ser).
A relação-social-capitalismo está nas formas empíricas das
paisagens e, hegemonicamente, nas formas imateriais da linguagem. Lê-lo é
fundamental, não para reescrevê-lo mas para apagá-lo espacialmente.
Que a teoria e os métodos aqui citados e as tensas
processualidade e materialidade do mundo por nós enxergado possam ajudar a
sabermos quem somos e o que queremos.
311
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208 Os títulos dos filmes, assim como os anos referendados, não correspondem aos do local da produção, e sim aos que receberam quando da disponibilização à locação no Brasil. 209 Filme de Bernt Capra, baseado no livro O ponto de mutação, do irmão Fritjof Capra.
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