A Representatividade da Personagem Emília... - Silva
Revista Diálogos – set. / out. 2018 – N.º 20 170
A REPRESENTATIVIDADE DA PERSONAGEM EMÍLIA NA
PRODUÇÃO LOBATIANA
Marta Maria da Silva1
d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n20p170
Resumo: Esta pesquisa tem como finalidade a de realizar um estudo
bibliográfico sobre a importância da personagem Emília na obra de
Monteiro Lobato. Inicialmente traremos um resumo da vida e obra do
autor, que iniciou sua carreira como escritor, foi um importante editor,
mas que se consagrou quando resolveu escrever para o público infantil
que estava necessitado de uma literatura diferenciada. Foi ele, o grande
responsável pelas transformações ocorridas na literatura infantil no
Brasil por volta do século XX. Abordaremos ainda, acerca do complexo
universo fictício lobatiano, tendo em vista a relevância de conhecer e
buscar entender o papel de sua personagem principal para que haja uma
possível compreensão da obra. Através de Emília, Lobato transmitiu
aos seus leitores todas as suas inquietações enquanto cidadão que
sonhava com um país justo, mostrando o preconceito e as injustiças que
existia e ainda existem na nossa sociedade. Apresentou ainda conceitos
importantes sobre verdade e vida e repassou conhecimentos científicos
e filosóficos. O estudo está fundamentado nas reflexões de Coelho
(2000), Lajolo (2000), Nunes (2000), Saraiva (2001), Silva (2009),
dentre outros.
Palavras - chave: Monteiro Lobato. Literatura infantil. Emília.
Abstract: This research aims to carry out a bibliographic study on a
subject of the character Emília in the work of Monteiro Lobato.
1 Graduada em Letras/Português pela Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL).
Professora/monitora de Língua Portuguesa da Secretaria Estadual de Educação de
Alagoas (SEDUC/AL).
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Initially, the company began its career as a writer, was an important
publisher, but that consecrated when it solved for the infantile public
that was needed of a differentiated literature. He was the one
responsible for the transformations that occurred in children's literature
in Brazil around the twentieth century. We will also discuss the
complex fictional Lobatian universe, considering a relevance of
knowing and seeking, understands the role of its main character so that
there is a possible understanding of the work. Through Emilia, Lobato
transmitted to his readers all as his anxieties as a citizen who dreamed
of a fair country, showing the prejudice and injustices that existed and
still exist in our society. He also presented important concepts about
truth and life and passed on scientific and philosophical knowledge.
Theoretically this study is based on the reflections of Coelho (2000),
Lajolo (2000), Nunes (2000), Saraiva (2001), Silva (2009), among
others.
Keywords: Monteiro Lobato. Children's literature. Emily.
1 Considerações iniciais
O presente estudo bibliográfico discute sobre a
representatividade da personagem Emília na obra de Monteiro Lobato.
Objetiva-se articular variados olhares que atribuem ênfase à
importância da protagonista do Sítio do Picapau Amarelo com a
finalidade de mostrar a visão da crítica literária em relação a boneca e a
sua influência como uma personagem completa, que mais parecia gente.
Monteiro Lobato, o criador de Emília, foi um grande
contribuinte para o desenvolvimento da literatura no Brasil. Começou
como escritor, depois como editor e após um fracasso em sua carreira
editorial volta a escrever, dedicando-se a literatura infantil onde se
consagrou juntamente com sua encantadora boneca Emília.
A motivação para o estudo dessa personagem deve-se ao fato de
sua relevância para se entender o universo fictício lobatiano. Através de
Emília e de suas aventuras somos levados a refletir o nosso papel
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enquanto cidadãos. A seu modo, a boneca tenta encontrar soluções para
problemas e explicar quase tudo de forma convincente, falando tudo o
que pensa com uma coragem surpreendente que falta em muitos de nós.
A pesquisa está estruturada em três tópicos. No primeiro,
mostra-se um pouco da trajetória de vida e obra de Lobato, sob a
justificativa de que o conhecimento dos dados biográficos do escritor é
de grande relevância para uma melhor compreensão de sua produção
literária. Mostra-se, ainda, de que forma surgiu o Sítio do Picapau
Amarelo e as principais características de seus moradores, destacando a
importância de Emília, sua mais encantadora personagem.
No segundo tópico constam as definições e conceitos de
literatura infantil e juvenil, destacando suas principais características.
Será feito uma abordagem desde o surgimento do gênero voltado para a
criança e o jovem na Europa por volta do século XVII até a sua chegada
ao Brasil nos fins do século XIX. Apresentaremos ainda, o panorama da
literatura infantil no Brasil, dando ênfase ao século XX, momento em
que Monteiro Lobato inaugura uma nova trilha nos caminhos da
produção literária infantil.
Por fim, no último tópico, trazem-se algumas considerações
sobre dois estudos que tratam de Emília, personagem central desta
pesquisa, com a finalidade de mostrar como a crítica literária vem
atribuindo olhares importantes sobre a boneca e a ascendência que ela
exerce sobre a sociedade enquanto protagonista da narrativa.
A pesquisa está fundamentada nas reflexões teóricas dos
seguintes estudiosos: Coelho (2000) no que diz respeito a compreensão
de literatura infantil como arte e no que se refere a importância de
conhecer Emília para compreender o universo de Lobato, Lajolo (2000)
quanto aos dados biográficos e o percurso literário de Lobato, Nunes
(2000) no que se trata das características das personagens centrais da
obra e Silva (2009) que aborda acerca do surgimento do Sítio do
Picapau Amarelo.
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2 A trajetória lobatiana
Visando discorrer sobre a trajetória de vida de Monteiro
Lobato¹, este item parte do princípio da presença marcante do escritor
na primeira metade do século XX. Apontando, para tanto, as
particularidades que o consagraram na literatura brasileira nas interfaces
entre literatura, cultura, sociedade e, com bastante ênfase, em estudos
educacionais em geral. Sob justificativa de que o conhecimento desses
dados biográficos possibilita uma melhor compreensão de sua produção
literária.
Brasileiro, homem estudioso, inquieto, que apostou em
múltiplos empreendimentos, e, com uma vida nada monótona, Lobato
foi o grande responsável pela revolução ocorrida na literatura infantil no
cenário nacional. Nasceu na cidade de Taubaté, em 18 de abril de 1882,
o filho primogênito de José Bento Marcondes Lobato e Olímpia
Augusta Monteiro Lobato. Foi registrado com o nome de José Renato,
tratado pela família de Juca, mas, por volta dos onze anos, já
demostrando toda a ousadia daquele que viria a ser o famoso escritor e
editor Monteiro Lobato, opta por se chamar José Bento, cujas iniciais
estão gravadas na bengala do pai tão desejada por Juca. Sua infância foi
comum a de um menino do interior paulista, cheia de brincadeiras e
diversão, viveu na fazenda Santa Maria em Ribeirão das Almas com os
pais e as irmãs menores, Teca e Judite.
O menino Juca foi alfabetizado em casa pela mãe e, desde cedo,
já demonstra o encantamento pelos livros da biblioteca, nas visitas à
casa do avô materno José Francisco Monteiro, visconde de Tremembé.
Somente mais tarde passa a frequentar as poucas escolas de Taubaté: o
Colégio Americano, o Colégio Paulista e por último o Colégio São
João Evangelista no qual parece terminada a sua vida escolar em
colégios do interior paulista. Aproxima-se, o final do século XIX e Juca
agora parte para São Paulo estudar no Instituto Ciências e Letras da
capital, preparando-se para ingressar no curso de direito. Uma
reprovação na disciplina de Português o obriga a retornar para Taubaté
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e para o Colégio Paulista onde estreia auxiliando no jornalzinho infantil
chamado O Guarany.
Em 1896, retorna a São Paulo, agora aprovado e matriculado no
Instituto ciências e Letras onde fica por três anos preparando-se para o
ensino superior. Nas horas vagas, continua colaborando em jornais
estudantis até que cria seu próprio jornal. Nos dois últimos anos do
século XIX ocorre uma grande mudança em sua vida; com a morte do
pai em 1898 e da mãe no ano seguinte, fica sob a responsabilidade do
avô, o visconde de Tremembé que tinha o obrigado a ingressar na
Faculdade de Direito, curso tradicional para os jovens de sua classe
social naquele tempo. No entanto, o desinteresse do jovem pelos
estudos das leis era perceptível, mas, em obediência à ordem do avô,
enfrentava o curso de direito, apesar de sua vocação pelas artes e pela
literatura.
Conforme Marisa Lajolo (2000), no período de faculdade,
Monteiro Lobato conviveu com um grupo de colegas e amigos que o
aproximava do seu lado artístico. Naquele início de século a literatura
estava presente nas conversas dos jovens universitários. Compartilhou
uma república com Ricardo Gonçalves e Godofredo Rangel à qual
batizaram de “O Minarete”. “No Minarete, muita brincadeira, muita
literatura, muita literatice”. (LAJOLO, 2000, p. 17). O percurso
universitário se encerra com um escandaloso discurso durante a festa de
formatura, elaborado por Ricardo Gonçalves e pela irreverência de
Monteiro Lobato, o que leva autoridades a retirarem-se da festa
causando uma intensa comemoração por parte daqueles jovens.
Após a aquisição do título de doutor, Monteiro Lobato volta
para sua cidade natal onde é recebido com festa, mais não demora muito
para que o jovem doutor sinta-se entediado com a vida parada da cidade
pequena. Seus planos agora envolvem uma jovem professora que
conheceu em São Paulo, Maria Pureza da Natividade, neta de seu velho
professor, o doutor Quirino. Ficam noivos e, no auge da paixão,
Monteiro Lobato proclama em versos de poemas toda a sua admiração
pela amada. Desejando casar-se e formar uma família, o jovem
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promotor pensa em assumir um cargo público, disputa uma promotoria
numa das comarcas da zona, mas não obtém êxito.
Em 1907, Monteiro Lobato tem de contentar-se com uma
nomeação para Areias, cidadezinha (como Taubaté)
também do Vale do Parnaíba, onde escorre uma vida
morna de cidadezinha qualquer. O jovem promotor
transfere-se para Areias, onde fica na expectativa de
remoção que jamais chega. Areias transforma-se em
modelo de Oblívion, de Itaoca e de todas as cidades
mortas cuja imagem percorre a obra do escritor, dando
inclusive nome ao livro de contos que publica em 1919.
(LAJOLO, 2000, p. 20)
Entediado na pequena cidade de Areias, durante as horas vagas,
Monteiro Lobato escreve cartas de amor para a noiva, compartilha
comentários de leituras com o amigo Rangel e ainda tem tempo para
escrever alguns contos, posteriormente publicados. Segundo Silva
(2009, p. 102) “A carreira jurídica não o seduzia, sobretudo no difícil
início”. O então promotor doutor casa-se com Maria Pureza, em 1908,
em São Paulo, onde reside a família da noiva, retornando para Areias
apenas alguns meses depois. Paralelamente ao cargo que exercia,
Monteiro Lobato continua escrevendo para vários jornais e revistas e
ainda muito insatisfeito planeja uma mudança de vida radical.
De acordo com Lajolo (2000), no ano de 1990, inicia-se mais
uma das grandes mudanças na vida de Lobato. Com a morte do
visconde de Tremembé, seu avô, herda uma imensidão de terras de seu
avô e outras tantas de seu pai, o que o torna um grande fazendeiro. É
para a fazenda Buquira, herança deixada pelo avô que se muda com a
esposa e os dois filhos, a primogênita Marta (1909) e Edgar (1910), a
família ainda viria a aumentar com a chegada de Guilherme (1912) e
Ruth (1916). Seu principal objetivo era tornar suas terras rentáveis,
visto que esta estava exaurida, mas as suas tentativas acabam frustradas
por uma política econômica que, segundo os fazendeiros paulistas, não
beneficiava a lavoura. Insatisfeito com a má situação financeira, em
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1914, Monteiro Lobato publica uma carta intitulada “Velha Praga” no
jornal O Estado de São Paulo, onde faz uma crítica ao desastroso
costume do homem do campo de fazer queimadas, impedindo o
desenvolvimento da economia agrícola na região.
Essa carta é uma das explicações para o surgimento do caboclo
Jeca Tatu, personagem-símbolo da obra lobatiana. O protesto teve
grande repercussão, tornando Lobato um homem conhecido e muito
solicitado para escrever artigos em revistas e jornais. Posteriormente,
escreve outro artigo no mesmo tom impiedoso, intitulado “Urupês”,
onde na sua voz ecoa toda a insatisfação dos fazendeiros paulistas que
se julgavam prejudicados pela política em vigor. Conforme Lajolo
(2000, p. 26), “embora relativamente famoso e muito requisitado para
conferências e artigos, ou talvez exatamente por causa disso, Monteiro
Lobato está cada vez mais insatisfeito”, tais acontecimentos não são o
suficiente para acabar com o tédio da vida em Buquira. Inicia-se então
outra grande mudança na vida de Lobato, vende sua fazenda em 1917 e
vai viver em São Paulo com a família. De acordo com Vera Maria
Tieztmann Silva (2009 p. 101) “O gosto pelas letras e o desencanto com
a fazenda levaram o jovem escritor e sua família para São Paulo e para
os livros, sua nova paixão”. Em maio de 1918 dá um passo decisivo na
sua transformação de escritor para escritor-editor, com a compra da
prestigiosa Revista do Brasil, inaugurando com o livro de contos
“Urupês”, lançado com sucesso no mesmo ano.
A colaboração de Monteiro Lobato com a imprensa é recorrente
e os seus planos de lucrar com seus livros se fortalecem com o sucesso
de um livro escrito a partir de uma pesquisa sobre o Saci-Pererê para o
jornal O Estado de S. Paulo. Ao lançamento de Urupês sucedem-se
outros lançamentos com sucesso, seus e de seus amigos Godofredo
Rangel, Ricardo Gonçalves e Waldomiro Silveira. Para Lajolo (2000),
são notórias as mudanças vividas por Monteiro Lobato, “Foi primeiro
aprendiz de escritor, colaborador de jornaizinhos estudantis e
insignificantes. Depois escritor de verdade, colaborador de jornais e
revistas de prestígio. Depois escritor-editor de si mesmo, e finalmente
editor de obras alheias”. (p. 33). A carreira de Lobato como editor o
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afasta de vez da vida interiorana transformando-o em um cidadão
urbano, e essa nova realidade o levou em alguns momentos a um
sentimento nostálgico, no qual sentia saudades de quando lhe sobrava
mais tempo para a literatura.
Durante alguns anos a carreira editorial de Monteiro Lobato vai
muito bem, mas devido à grande crise dos anos 20, paulistas veem um
grande tropeço. Mesmo com a falência da Gráfica Editora Monteiro
Lobato, ele não desiste e, em 1925, muda-se para o Rio de Janeiro e, em
sociedade com Octales Marcondes, funda a Companhia Editorial
Nacional, a primeira das grandes editoras modernas brasileiras. Foi aí
então que surgiu sua maravilhosa invenção: O Sítio do Pica-pau
Amarelo, que começou a circular em 1921, ano em que foi publicado A
menina do narizinho arrebitado. Com a essa criação que Lobato
inaugura a literatura infantil brasileira, com personagens inesquecíveis
como relata Lajolo:
A história de Dona Benta, aquela velha de mais de
sessenta anos, óculos de ouro no nariz, que mora na
companhia da mais encantadora das netas, mergulha na
eternidade. Junto com ela, tia Anastácia, Emília, Pedrinho
e Visconde insuflam vida nova às personagens com que
contracenam, imprimindo dimensão fantástica ao cenário
brasileiro do sítio. Ao desdobrar-se nas aventuras
contadas nos livros que até o fim da vida Monteiro Lobato
publicou aqui e na Argentina, o Sítio do Pica-pau
Amarelo marca a imaginação de gerações e gerações de
brasileiros. (2000, p. 59-60)
Essas personagens seduziram o público infantil e ainda
representam a face de Monteiro Lobato. O seu interesse agora era,
especificamente, a produção de obras infantis, apostando alto na
fantasia e em uma linguagem voltada para os pequenos leitores. Com o
enorme sucesso de seu lançamento para o público infantil, Lobato
concebe a relevância da escola e do estado na propagação da leitura.
Lajolo (2000. p, 61) ainda assinala que “Particularmente nas obras
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produzidas nos anos 30, o sítio se transforma numa grande escola, onde
os leitores aprendem desde gramática e aritmética até geologia e o bê-á-
bá de uma política nacionalista de petróleo”. Pensando nisso, mandou
distribuir gratuitamente quinhentos livros nas escolas públicas paulistas,
levando, posteriormente, o governador paulista Washington Luís a fazer
uma compra de trinta mil exemplares.
Silva (2009) afirma que o grande diferencial da literatura infantil
lobatiana é o registro da linguagem, onde o coloquialismo predomina
em seu discurso, como marca dominante. Lajolo (2000, p, 62) lembra
que: “[...] o narrador de Monteiro Lobato manifesta o gosto moderno
pela oralidade, pelo despojamento sintático, pela criação vocabular”.
Sua intenção era a aproximação com o leitor e com esse perfil moderno
conquistou a fidelidade de seu público. Silva (2009. p, 104) aborda que:
A grande revolução operada por Monteiro Lobato na
literatura infantil brasileira decorre de sua postura
inovadora, da relação de respeito que tinha com seu
jovem leitor. Ele constata aquilo que os demais autores
ainda não tinham percebido: a criança é um ser inteligente
e capaz de juízos críticos. Deste olhar sobre o leitor
partem as inovações propostas por Lobato e que
inauguraram uma nova trilha nos caminhos da produção
literária orientada para a criança e o jovem.
Lobato fortalece cada vez mais o seu perfil revolucionário e
moderno, descobrindo na criança o seu público ideal. Suas obras
infantis constituem uma série, na qual reaparecem os personagens e
espaços, no qual diferentes histórias se referem à outra. Tal
característica foi de fundamental importância para atrair seus leitores.
Comprovando o mérito do seu conceito de série, Monteiro Lobato
deixou de fora da obra completa organizada por ele em 1945 e 1946 a
obra O Garimpeiro do Rio das Garças, isso se explica porque talvez “...
a história não transcorre no sítio e nenhum habitante de Picapau
Amarelo participa dela”. (LAJOLO, 2000 p. 63)
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No ano de 1926, Monteiro Lobato concorre a uma vaga na
Academia Brasileira de Letras e, por falta de entusiasmo, é derrotado.
No ano seguinte, o rumo é os Estados Unidos, muda-se com a família
para Nova York exercendo o cargo de adido comercial brasileiro.
Visando o mercado norte americano, levava consigo o folhetim O
choque de raças ou O presidente negro com o subtítulo Romance
americano do ano de 1928, uma obra polêmica por tratar do preconceito
racial, tema pouco discutido na época.
Lobato se encanta com o progresso americano e sonha com um
Brasil desenvolvido, declarava toda a sua admiração nas
correspondências enviadas aos amigos brasileiros. A mesma autora
descreve que a estada de Lobato em Nova Iorque foi marcada por vários
acontecimentos, o casamento da filha Marta e a doença grave de um dos
filhos não diminuíram o seu fascínio pelos Estados Unidos. Seus planos
incluíam a criação de uma empresa brasileira utilizando técnicas
modernas para converter ferro em aço.
Ele joga na Bolsa de Valores de Nova Iorque e com ela
quebra quando, em 1929, estão no ar os primeiros
sintomas da crise mundial. A mesma crise torna precária a
estabilidade do governo de Washington Luís e
consequentemente, a permanência de Monteiro Lobato no
cargo de confiança que ocupava no exterior. (LAJOLO,
2000, p. 73).
Após perder o cargo no exterior e todo dinheiro que possuía,
Monteiro Lobato retorna ao Brasil onde trabalha duro na revisão de
alguns de seus textos e na criação de outras histórias do sítio. Contudo,
o seu sonho de ver um desenvolvimento no Brasil a partir do
beneficiamento do minério de ferro e da extração do petróleo continua
vivo (ibidem). Mas o projeto e as tentativas de Lobato de convencer as
autoridades sobre a importância desse empreendimento são um
fracasso, o que levou o escritor a publicar no ano de 1936 O escândalo
do petróleo, obra onde ele expõe as dificuldades que enfrentou com o
seu projeto frente a política governamental. Em uma carta dirigida ao
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presidente Getúlio Vargas, Lobato faz uma crítica à política brasileira
de minério, a cada dia a sua convivência com as autoridades torna-se
mais tensa e, em março de 1941, é preso, acontecimento que não
diminui sua coragem de satirizar as autoridades.
Apesar de toda força demonstrada durante o período em que
esteve detido Lobato sai da prisão um homem angustiado e
decepcionado, “... seus dois filhos morrem muito jovens, seu cunhado
suicida-se, sua situação financeira é precária”. (ibidem, p. 78). É em
meio a tantas desilusões que escreve Zé Brasil, seu último texto. Lobato
tornou-se um homem descrente das autoridades brasileiras. Em 1946
vai para a Argentina, onde deposita suas últimas esperanças, juntamente
com alguns amigos, lá ele cria a editora Acteon. Mesmo assim, não se
adapta por lá, sente-se solitário e retorna para o Brasil em 1947.
Monteiro Lobato apresenta reais problemas de saúde, reside no
último andar de um edifício em São Paulo juntamente com a mulher e a
filha, onde recebe a visita de amigos e escreve suas últimas cartas. No
dia 4 de julho de 1948 se encerra a trajetória de vida de Monteiro
Lobato. Como vimos, o escritor teve uma vida marcada por grandes
acontecimentos e transformações como sua carreira política e sua
carreira de editor de sucesso até chegar a sua mais encantadora criação:
Emília, a boneca que encanta leitores de diferentes gerações.
Acreditamos que o conhecimento de tais dados biográficos é de extrema
importância para o entendimento de sua produção.
2.1 O criador do Sítio do Pica-pau Amarelo
É comum entre os que admiram a produção lobatiana, entre eles,
crianças e adultos, certa reverência aquela que foi sua mais conhecida
criação: O Sítio do Picapau Amarelo, por ser considerada uma obra
bem acabada e conhecida do público em geral. Uma das explicações
possíveis sobre a criação desta obra nos vem por intermédio das
considerações de Vera Maria Tieztmann Silva (2009). Segundo ela:
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Uma conversa de fim de tarde em sua editora (lá
acontecia o que hoje se chama happy hour), um caso
contado por um amigo sobre um peixinho que morre
afogado, foi o germe que logo se transformaria no seu
primeiro livro infantil, A menina do narizinho arrebitado
(1921). Esta história, que ele argutamente faz circular nas
escolas, vai-se ampliando com a criação de novos
episódios, e consolidando seu sucesso junto ao seu
público leitor. Lobato embarca nessa aventura, e os títulos
se sucedem. As primeiras histórias ganham sua versão
definitiva como Reinações de Narizinho, em 1931,e, até
meados dos anos 40, as aventuras do Sítio do Picapau
Amarelo se multiplicam e adquirem o status de marco
inaugurador de uma nova literatura para crianças. São
textos que atiçam a imaginação, que instigam o leitor a
pensar, a criticar, a tirar conclusões sobre o mundo a sua
volta. (p. 101-102)
A Menina do Narizinho arrebitado, portanto, foi o pontapé
inicial na carreira de Lobato como escritor de literatura para o público
infantil. Ele sentiu a necessidade de uma adequação para uma maior
compreensão da criança, o que não existia na sua época, onde quase não
existiam obras infantis e as poucas que havia apresentavam uma
linguagem inadequada a compreensão do leitor infantil.
O desejo de produzir para as crianças torna-se cada vez mais
evidente levando o escritor a transferir-se para o gênero infantil. Em
1931, organizou a publicação de várias histórias infantis, lançando
Reinações de Narizinho, onde reuniu as histórias do Sítio já publicadas,
expressando na obra seus projetos culturais básicos.
Conforme Sônia Salomão Khéde (1986) é em Reinações de
Narizinho é que Lobato exibe os traços das personagens centrais de sua
obra: Dona Benta, Tia Nastácia, Narizinho, Pedrinho, Emília, Visconde
de Sabugosa, Rabicó, Faz-de-Conta e o Burro falante. Fato que
demonstra sua aguda capacidade criadora na elaboração dos perfis de
seus personagens, uma vez que no decorrer da obra encontramos seres
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que representam a natureza humana, aspectos do maravilhoso entre
outros aspectos.
Desse modo, percebe-se a presença de dois planos: O plano real,
com personagens representados por Dona Benta, Tia Anastácia,
Narizinho e Pedrinho e o plano do maravilhoso com criaturas
fantásticas como a boneca Emília e o Visconde de Sabugosa, um
sabugo de milho que adquire sabedoria. Os personagens intermediários
da obra são em sua maioria, os animais falantes.
Monteiro Lobato foi um dos poucos autores de seu tempo que
conseguiu levar seu leitor a uma viagem para um mundo fascinante
repleto de sonho e magia. Ele conseguiu resgatar o universo mágico que
existe no universo da criança e as fez sonhar com um mundo que só
existe na fantasia infantil. Assim, ajudou muitas crianças na boa
formação do caráter, uma vez que suas obras além de conter muita
criatividade, retratam o certo e o errado de maneira sutil e delicada para
que a criança consiga interpretar.
Este mundo encantado fica localizado no Sítio de Dona Benta,
uma senhora serena e cheia de simpatia. Cada personagem desse sítio
possui suas virtudes, contudo, o grande encanto da fábula vem da
imaginação e astúcia das crianças: Narizinho e Pedrinho. Personagens
emblemáticos que marcaram diversas gerações de públicos das mais
variadas classes sociais no Brasil.
Sobre esses personagens mágicos que seduziram os leitores
brasileiros de diversas faixas etárias e continuam seduzindo até os dias
atuais, Cassiano Nunes (2000) traz as seguintes apreciações:
Na saga Lobatiana, Narizinho representa a feminilidade
com discrição e encanto. Pedrinho tem caráter forte e é
simpático. Dona Benta une o caminho materno (ser avó é
ser mãe duas vezes) a lição de ética e saber. Tia Nastácia
tem sentimentos igênuos e puros. A boneca Emília
constitui o protesto contínuo, a rebeldia criadora, como o
próprio Lobato seu inventor [...] O Marquês de Rabicó é a
sujeição aos instintos orgânicos. O visconde de sabugosa
tem os lados bom e mau da erudição (p. 23 - 25).
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Monteiro Lobato aposta alto na fantasia, proporcionando às
crianças, seus principais leitores, personagens cujas ações se pautam
pela curiosidade, pela imaginação, pela independência, pelo espírito
crítico e pelo humor. São essas características das personagens de
Lobato que vem assegurando o grande êxito do Sítio do Picapau
Amarelo ao longo das gerações.
O autor anteriormente citado ainda destaca que no Sítio, tudo é
descrito vivamente e de forma rápida, trata-se de um lugar onde a
realidade e a fantasia não se diferenciam. O autor antes de tudo louva a
vida e acredita na inteligência da criança. A rapidez com que as
histórias são narradas e a credibilidade que o escritor ofereceu as
crianças constituem-se nas grandes responsáveis pelo sucesso da obra
até os dias atuais.
Silva (2009) afirma que é na série infantil de Lobato que iremos
encontrar a criança como de fato ela é, “[...] meninos, meninas e
bonecos dotados de vontades e ideias próprias, às vezes obedientes,
outras vezes rebeldes, inquiridores, curiosos (“reinadores”, diria
Lobato), dotados de grande imaginação”. (p. 104). Dessa maneira, ele
foi o primeiro escritor brasileiro a enxergar a criança como ela
realmente é e a constatar a sua inteligência e capacidade de criticidade,
o que os demais autores da época ainda não haviam percebido. A partir
dessa visão sobre o seu leitor, originam-se as inovações propostas por
Lobato, inaugurando uma nova trilha nos caminhos da produção
literária infantil/juvenil.
Como destaca Gregorin Filho (2009) “A contestação e a
irreverência infantis sem barreiras começam a ter espaço e a ser lidas e,
adquirem maior concretude com as ilustrações das personagens do Sítio
do Picapau amarelo” (p. 28). Dessa forma, é possível constatar que
Lobato proporcionou a criança o direito de voz ativa, e isso pode ser
visto na ênfase que é dada à Emília, a boneca de pano que encanta não
só as crianças, mais o público em geral.
As mudanças que Lobato trouxe para a literatura infantil
aconteceram de forma gradual, estabelecendo nesse cenário literário
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uma discussão sobre o papel do homem num mundo em constante
transformação. Mudanças que deram lugar de destaque as vozes de
variados contextos sociais e culturais presentes na formação do povo
brasileiro e, acima de tudo, representaram o imaginário infantil nos
livros, através de imagens e variadas formas de linguagens destinadas
ao público infantil.
Uma das maiores descobertas na obra de Lobato foi unir o
imaginário com o real, demonstrando que o maravilhoso pode ser
vivido por qualquer pessoa, ele torna possível acontecimentos que
normalmente seriam impossíveis de acorrerem no mundo real. Com
relação a esta fusão do real com o maravilhoso nas obras de Lobato,
Coelho (2000) traz as seguintes considerações:
Evidentemente a linguagem que expressava tal fusão foi
elemento fundamental. Fluente, coloquial, objetivo,
despojado e sem retórica ou rodeios, o discurso que
constrói a efabulação de A Menina do Narizinho
Arrebitado é dos que agarram de imediato o pequeno
leitor. Principalmente pelo humor que o impregna. À
medida que os livros vão-se sucedendo, mais dinâmico
vai se tornando o humor lobatiano (outra das grandes
novidades que a literatura infantil trazia...) (p. 138).
Mediante o que foi destacado pela autora não resta dúvidas que
Lobato foi o grande responsável pelas grandes inovações que ocorreram
com o texto literário infantil. O primeiro diferencial da sua obra foi o
registro da linguagem, onde o coloquialismo predomina em seu
discurso. Além do poder da linguagem, o humor foi outra característica
que também marcou a individualidade do escritor, obtido de várias
maneiras, como por exemplo, pelos trocadilhos, por neologismos, pela
quebra de simetria numa enumeração etc. A origem desse humor é
proveniente sempre da mesma personagem, Emília, espécie de boneca
de ventríloquo, falando por seu criador.
No entanto, Monteiro Lobato não fez o uso do maravilhoso
desde o início de sua obra infantil. Na primeira versão de A Menina do
A Representatividade da Personagem Emília... - Silva
Revista Diálogos – set. / out. 2018 – N.º 20 185
Narizinho Arrebitado percebe-se que o autor se restringe mais aos fatos
reais. Atitude compreensível, levando em consideração que o escritor
foi formado com um pensamento materialista/positivista e ainda
enxergava o mundo real e o fantástico completamente delimitados. Isso
pode ser também explicado pelo fato de a obra ter sido escrita com a
finalidade de leitura escolar, o que a obrigava nesse início de século a
ser um exemplo para a criança, apresentando “modelos” de
comportamento exigidos na época.
Entretanto, em sua versão Reinações de Narizinho é visível a
fusão do elemento real com o maravilhoso. Nessa época, o escritor já
estava bem mais qualificado e seguro para definir seu estilo e procurar
mais criatividade para seus textos. Lobato passou a expressar em suas
obras, de uma forma leve, muita imaginação e magia, elementos
capazes de levar o leitor a sonhar e a viajar para um mundo fantástico.
A escrita lobatiana incorpora o sonho e magia nos livros,
fazendo com que o imaginário se apresente de modo verossímil,
transportando seu leitor para o mundo encantado das histórias infantis, e
assim, fazer parte da história de um sítio onde tudo pode acontecer. O
Sítio é o espaço da imaginação e, portanto, longe do formalismo, das
regras e dos rumores contínuos da cidade grande que começam e
terminam todas as aventuras vividas pela turma.
Nessa fantástica viagem há de tudo, vários personagens e
situações inusitadas que aguçam a imaginação dos leitores. De acordo
com Silva (2009) a extensão da obra infantil lobatiana, bem como a
pluralidade de interesses e inventividade de seu criador faz com que se
multipliquem os personagens presentes na sua obra. A autora cita como
exemplo Reinações de Narizinho, que se trata de uma narrativa
aglomerada de personagens.
No entanto, há um núcleo de destaque que se mantém ao longo
de todas as obras e que forma efetivamente “o pessoal do sítio”. Trata-
se e personagens que pertencem ao domínio da realidade: Dona Beta,
Tia Nastácia, Pedrinho e Narizinho; e aqueles que pertencem ao mundo
fantástico: os bonecos Emília e Visconde, Rabicó, Conselheiro e
Quindim, animais falantes.
A Representatividade da Personagem Emília... - Silva
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Ao proporcionar todas essas aventuras incríveis, Lobato assume
uma grande responsabilidade, uma vez que por meio da literatura ele irá
adentrar no universo das crianças e debater assuntos que até então eram
inadequados para esses leitores utilizando-se de elementos mágicos ou
maravilhosos. Desse modo, a autora citada anteriormente destaca que
“para Lobato não existia uma fronteira que separasse assuntos de adulto
e assuntos de criança”. (p.118)
Considerando as palavras de Silva, nota-se que Lobato acreditou
na inteligência da criança e na sua capacidade de compreender qualquer
assunto, desde que, seja produzido de acordo com o seu entendimento e
numa linguagem compatível com a sua. Foi a partir dessa nova visão
em relação a criança que o escritor cria tramas em torno de temas que
eram considerados inadequados para o leitor infantil.
Outra contribuição de Monteiro Lobato para a literatura, foi
reunir duas modalidades paralelas de leitura: a do aprendizado e a da
diversão. Para Silva (2009) “Lobato acreditava firmemente que, para as
crianças, aprender coisas novas era também uma modalidade de prazer”
(p. 105). Dessa forma, percebe-se um esforço na criação de obras que
ensinam disciplinas escolares, onde a informação e a aprendizagem se
unem a aventura.
Portanto, as histórias presentes no Sítio do Picapau Amarelo
além de cumprir uma função didática, também contribuíram no
desenvolvimento e formação humanizadora dos pequenos leitores, que
passam a questionar e a tirar conclusões, características, que até aquele
momento não haviam sido postas em primeiro plano no cenário da
literatura e educação.
3 Literatura infantil x literatura juvenil
Conforme Lajolo (1982) já foram várias as tentativas de definir
literatura e identificar as características de um texto literário e não
literário. Quando finalmente parecem chegar a uma conclusão quanto o
seu conceito, surgem novas e diferentes formas de produção que exigem
novas teorias e novas discussões. A autora argumenta que: “Não existe
A Representatividade da Personagem Emília... - Silva
Revista Diálogos – set. / out. 2018 – N.º 20 187
uma resposta correta, porque cada tempo, cada grupo social tem sua
resposta, sua definição para Literatura”. Portanto, dificilmente se
chegará a uma definição única e exata, as respostas podem variar de
acordo com a ideologia de cada indivíduo.
A literatura infantil surgiu na Europa por volta do século XVIII,
ligada as transformações estruturais que aconteceram na sociedade;
período esse, onde se estabeleceu o modelo burguês de família
unicelular, causando uma modificação na forma de se enxergar a
criança e todas as instituições com ela relacionadas, entre as quais, a
família e a escola passaram a ser vistas como as mais importantes. É
importante destacar que até o século XVII a infância não era vista como
uma fase onde se constituía a mentalidade do homem, isso só começou
a acontecer a partir do século XVIII com as mudanças estruturais
ocorridas na sociedade europeia, onde a infância passou a ser vista
como uma fase de grande valor no desenvolvimento e constituição do
adulto que está porvir.
Desse modo, compreende-se que a literatura infantil está
diretamente ligada a um modelo de texto exclusivo para as novas
práticas pedagógicas que estavam se estabelecendo na educação. O
gênero literário infantil surgiu como uma forma literária menor, visto
como uma espécie de brincadeira, entretenimento ou como um auxílio
no processo de aprendizado das crianças. Inicialmente, os textos foram
produzidos a partir de modificações de textos direcionados ao leitor
adulto, nesse sentido, a linguagem era adaptada para uma maior
percepção infantil. Como destaca Nelly Novaes Coelho (1985),
popularmente a expressão “Literatura Infantil” já está associada a ideia
de livros lindos, cheios de cores e ilustrações, destinados a diversão e
prazer da criança no ao de ler, folhear ou ouvir as estórias contadas por
alguém. Trata-se de um gênero literário marcado por características
inverossímeis, repleto de magia, brincadeiras, diversões e sonhos.
Sendo assim, Hênio Tavares (1967, p. 15) assinala que:
A criança na fase inicial da existência, ignorando sua
própria individualidade e a realidade externa, refugia-se
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nos meandros de seu espírito ingênuo e curioso buscando
nele a concepção simbólica da vida e do universo.
Passando por essa refração, o universo despoja-se de seu
realismo objetivo, impregnando-se de espanto e
admiração, e transformando-se num mundo encantado e
de brinquedo.
Dessa forma é possível perceber a imensidão da natureza lúdica,
repleta de sonhos e magias que constituem o universo da Literatura
Infantil. A criança, com toda sua inocência idealiza um mundo
fantástico, portanto ela há de se sentir bem nesse universo maravilhoso
cheio de criaturas imaginárias que compõe essas obras literárias. Esse
contato com o imaginário, o lúdico e o fantástico é de fundamental
importância para a criança, pois ao ler ela estará trabalhando a mente e
estimulando o aprendizado. Mesmo com a intensa imaginação do autor,
que na grande maioria das vezes se distancia da sua realidade, a criança
através do contato com o texto literário infantil passa a entender e dar
um significado ao mundo real.
Diante do que foi abordado, logo surge uma discussão por parte
da maioria dos autores que abordam o tema: A literatura infantil é uma
prática pedagógica ou uma arte literária? Coelho (1985, p. 45) inicia
com a seguinte reflexão sobre o assunto:
Literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor, é
arte: fenômeno de criatividade que representa o mundo, o
homem, a vida, através da palavra. Funde os sonhos e a
vida prática, o imaginário e o real, os ideais e sua
possível/impossível realização.
Nas palavras da autora a literatura infantil é uma arte que através
da palavra proporciona ao homem a possibilidade de descobrir seu
mundo real por maio do universo da ficção, ou seja, é o resumo da vida
real transformada em arte. A grande responsabilidade pela constituição
do conhecimento de mundo das crianças e jovens é atribuída ao livro, e
é a literatura infantil que assume essa difícil responsabilidade, com a
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função de atuar em uma sociedade que vive em constante mudança,
exercendo o papel de agente formador de cidadãos.
A mesma, ainda assinala que ao longo dos séculos, uma das
principais questões quanto a natureza da literatura infantil é chegar a
uma conclusão quanto a sua forma literária ou pedagógica. As ideias
quanto a esse problema se diferenciam e parece não está perto de se
chegar a uma conclusão.
Entretanto, se analisarmos as grandes obras que através
dos tempos se impuseram como “literatura infantil”,
veremos que pertencem simultaneamente a essas duas
áreas distintas (embora limítrofes e as mais das vezes,
interdependentes): a da Arte e a da Pedagogia. Sob esse
aspecto, podemos dizer que, como “objeto” que provoca
emoções, dá prazer ou diverte e, acima de tudo,
“modifica” a consciência-de-mundo de seu leitor, a
Literatura Infantil é Arte. Por outro lado, como
“instrumento” manipulado por uma intenção “educativa”,
ela se inscreve na área da Pedagogia. (COELHO, 2000. p.
25)
Por meio das considerações da autora é possível perceber que
mesmo em quantidades diferentes a diversão e o ensino estão presentes
nos mais diferentes tipos de textos da literatura infantil. Em certos
momentos da história um aspecto se impõe em relação ao outro, mas
par que haja um equilíbrio já existe uma produção literária para o
público infantil e juvenil que conseguiu unir a diversão, o prazer e a
emoção a transmissão de conhecimentos. O mesmo texto que leva a
criança a viajar para um mundo fantástico e imaginário tem o poder de
despertar novas formas de pensar e se preparar a vida em um mundo
cheio de diferenças.
Ainda em relação a sua forma, Maria José Palo e Maria Rosa D.
Oliveira (1986) destacam que, desde seu surgimento, o papel utilitário-
pedagógico da literatura infantil a transformou em uma prática mais
pedagógica do que literária. Para as autoras: “Dentro do contexto da
literatura infantil, a função pedagógica implica a ação educativa do livro
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sobre a criança”. (p. 13) A pedagogia surge, portanto, como um método
de capaz de interferir no universo da criança por meio do livro infantil,
dirigindo e orientando o texto literário adequado para a criança nas mais
diferentes fases de seu raciocínio. Através dos livros, os valores sociais
poderão ser propagados de tal forma, a desenvolver na criança a
capacidade de associar a ficção com a realidade, ou seja, através do
contato com o texto literário infantil, o jovem leitor poderá vir a
assimilar a verdade social.
Observando as diferentes fases do raciocínio da criança, Coelho
(1985) classifica o leitor infantil da seguinte forma:
a) Pré-leitor: (dos 15 meses aos cinco anos) Trata-se da fase
inicial onde o indivíduo ainda não possui capacidade para decifrar a
linguagem verbal escrita, portanto, a presença do adulto é
indispensável, uma vez que a criança irá começar a reconhecer a
realidade do mundo em que vivem através do toque, do afeto e das
imagens que possuem um domínio absoluto nesse primeiro momento da
formação do leitor.
b) O leitor iniciante: (a partir dos seis anos) Nessa fase a criança
já começa a adquirir a capacidade de leitura, é o momento onde se
inicia o processo de socialização e de racionalização da realidade,
portanto, a presença do adulto ainda se faz necessária. Embora a palavra
escrita já tenha adquirido algum espaço, a imagem ainda exercerá
predominância nesse momento.
c) O leitor em processo: (a partir dos oito anos) Nessa fase a
criança já tem o domínio dos mecanismos de leitura e o interesse pelo
conhecimento do mundo é estimulado pela organização do pensamento
lógico A presença do adulto como agente motivador e estimulador é de
grande importância.
d) O leitor fluente: (a partir dos 10 anos) Fase onde o leitor
passa a refletir e amadurecer, nesse momento o domínio dos
mecanismos de leitura é consolidado e desenvolve-se a capacidade de
compreender o universo presente no livro. A presença do adulto não é
mais necessária, a partir desse momento o leitor desenvolve sua
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capacidade de concentração e o pensamento hipotético dedutivo,
aprofundando ou ampliando seu conhecimento e percepção de mundo.
e) O leitor crítico: (a partir dos 12 anos) Fase de completo
domínio do processo de leitura, onde o pensamento crítico e reflexivo
do leitor alcança uma maior profundidade e o leitor adquire a
capacidade de refletir e atingir sua visão de mundo presente no texto.
Portanto, para que haja uma maior intimidade entre leitor os
diferentes tipos de texto, faz-se necessário que sejam adequados as
diferentes fases do desenvolvimento infantil/juvenil. Lembrando que a
formação desse leitor vai além do ato de alfabetizar, uma vez que a
criança tem seus primeiros contatos com a literatura desde os primeiros
meses de vida ao ouvir uma cantiga, uma poesia ou uma historinha e
conforme vai amadurecendo irá desenvolvendo o gosto pelo texto
literário escrito. Para que a criança adquira afeição e sinta-se
intimamente a uma obra é necessário que a escolha seja adequada a sua
categoria de leitor, considerando que o texto literário traz consigo uma
linguagem exclusiva e sua interpretação pode variar de acordo com os
conhecimentos e experiências de cada criança/jovem. Essa escolha
torna-se uma tarefa complexa, uma vez que, mudam-se os tempos e as
crianças também passam por transformações, portanto, torna-se
necessário que os escritores acompanhem essas mudanças, oferecendo
obras que estejam adequadas a maturidade da criança de cada época.
Tavares (1967) apresenta as seguintes características que
diferenciam a Literatura Infantil da Infanto-juvenil:
Fase infantil: mundo fantasmagórico, habitado por entes
fantásticos, despido de qualquer indício de similaridade
ou verossimilhança, império absoluto do sonho e da
magia.
Fase infanto-juvenil: mundo mítico já sustentado sob
certo aspecto na realidade externa, em que perpassam as
aventuras audazes e heroicas (para os garotos), e os
entrechos meigos e galantes (para as mocinhas). (p. 402)
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O autor classifica como idade infantil o período que vai dos dois
aos dez anos de idade, dividido em três fases: período maternal, onde a
imaginação da criança ainda não tem se manifestado e ela é atraída
apenas pelos seres, objetos e pessoas com quem convivem; pré-
primário, fase em que surgem a magia e a fantasia na imaginação da
criança, onde entram em cena as estórias clássicas como Chapeuzinho
Vermelho, Dona Baratinha etc. e fase escolar, onde a criança inicia suas
primeiras experiências de leitura, geralmente as estórias de animais, de
aventuras e de encantamentos são a preferência nesse momento. A
idade juvenil, ainda segundo Tavares (1967), é a fase que vai dos dez
aos dezoito anos, onde o jovem desperta seu interesse para o universo
das aventuras, romances, mistérios, dramas amorosos, obras de caráter
informativo etc.
Diante do que foi abordado, é possível perceber que por
intermédio da literatura a criança busca se proteger em um mundo de
sonhos criado por meio de sua própria fantasia. Inicialmente, os sonhos
e a magia serão superiores a qualquer semelhança com a realidade, a
relação com o real virá a surgir à medida que essa criança vai
amadurecendo, surgindo assim, a necessidade de descoberta do mundo
ao seu redor. Portanto, a literatura infanto-juvenil, principalmente
contemporânea, é constituída diante de personagens com características
reais, trazendo para esse leitor a possibilidade de se identificar e
compreender melhor o mundo real.
Nesse sentido, Antônio D’Ávila (1961) assegura que: a
Literatura Infanto-Juvenil “[...] é a literatura acomodada a psicologia
infantil e juvenil, capaz de ser por eles, crianças e adolescentes
compreendida e apreciada” (p.25). No entanto, para que esse objetivo
seja alcançado se faz necessário que os autores que dirigem esse público
preencham as mais precárias condições de sua psicologia,
disponibilizando uma literatura capaz de despertar a imaginação da
criança e escrita com um léxico exclusivo adaptado a sua compreensão,
atendendo as exigências intelectuais e espirituais do jovem leitor. Isso
não significa que escrever literatura infantil e literatura juvenil seja
apenas escrever de uma forma simples ou infantil, considerando que
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atualmente, na era da informática em que estamos vivendo, a criança
vive rodeada de informações e tem se transformado em um público
difícil de satisfazer. Portanto a literatura, em especial a infantil, deve ser
encarada como o caminho fundamental para a formação do pensamento
de uma sociedade que vive em constante transformação.
3.1 Panorama da literatura infantil no Brasil
A literatura infantil começou a ser produzida no Brasil nos fins
do século XIX. Inicialmente, os textos infantis eram importados, sendo
a maioria obras traduzidas, vindas de Portugal, apresentando um estilo
europeu completamente distante da realidade da criança brasileira.
Tratava-se de uma literatura de alto custo financeiro devido a falta de
editoras no país, portanto, poucos tinham acesso.
No que se refere ao surgimento do gênero, D’Ávila (1961)
ressalta que a literatura para crianças e adolescentes no Brasil,
inicialmente era de cunho didático, não existia a pretensão de criar e
redigir obras direcionadas especificamente a esse leitor, o caráter
recreativo foi deixado de lado. Ainda predominava a velha concepção
psicológica de que a criança é um adulto em miniatura e a infância era a
redução da idade adulta. Dessa forma, eram poucos os textos escritos
direcionados especialmente para o leitor infantil/juvenil, a grande parte
das leituras dirigidas a esse grupo de leitores era as obras de literatura
adulta, adaptadas ou em sua versão original.
O texto infantil durante um longo período foi utilizado pela
escola como um transmissor de ensinamentos e de regras
comportamentais, a fim de ensinar e doutrinar as crianças. Mais ao
longo dos tempos esse quadro foi se modificando, cada época conteve e
apresento uma literatura de forma diferente. Com o surgimento de
muitos autores novos, o gênero infantil foi se transformando e
oferecendo obras diferenciadas para seus leitores.
A primeira fase do desenvolvimento da literatura infantil no
Brasil ocorreu do século XIX ao início do século XX, período onde se
delinearam as tentativas iniciais de formação de um público leitor
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infantil. Saraiva (2001, p. 36) constata que “o compromisso
pedagogizante, que marca a produção dessa época, revela a posição
assumida pelos intelectuais, preocupados nesse momento histórico com
um projeto: a modernização do país”. Portanto, acreditava-se que
somente por meio da escola haveria a possibilidade de alcançar esse
objetivo de modernizar a nação e estimular a valorização da pátria
começando pelas crianças. Enxergou-se a literatura infantil como um
dos principais caminhos para alcançar essa meta.
Conforme Albino (2011, s/p)
No final do século XX, vários elementos convergem pra
formar a imagem do Brasil como um país em processo de
modernização, entre os quais se destacam a extinção do
trabalho escravo, o crescimento e a diversificação da
população urbana e a incorporação progressiva de levas
de imigrantes à paisagem da cidade. Visto que essas
massas urbanas começam a configurar a existência de um
virtual público consumidor de produtos culturais, o saber
obtido por meio da leitura passa a deter grande
importância no emergente modelo social que se impõe,
fazendo com que a escola exerça papel fundamental para
a transformação de uma sociedade rural em urbana.
Essa nova realidade brasileira desperta o interesse de intelectuais
e de educadores para um modelo de produção didática e literária
direcionada exclusivamente para a criança. Com isso, propaga-se uma
inquietação devido a ausência de obras adequadas para a leitura do
público infantil do país, uma vez que as obras disponíveis eram somente
os clássicos infantis europeus, adaptados ou traduzidos, apresentando
uma linguagem completamente diferenciada da língua materna do leitor
brasileiro.
Portanto, o processo de instauração da literatura infantil no
Brasil foi marcada por uma série de problemas, devido não só o
distanciamento linguístico entre o português que esses textos eram
impressos e o falar típico dos brasileiros, mas também quanto a
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representação de mundo, resultando em problemas de identidade
cultural.
A segunda fase da consolidação da literatura infantil brasileira
ocorreu nos anos de 1920 a 1945, período de agitação política,
intelectual e artística. A educação foi afetada por uma efervescência
social, a realidade precária de um sistema escolar debilitado foi
denunciada e com isso desenvolve-se o pensamento da necessidade de
uma melhor formação do homem brasileiro a fim de que o país fosse
inserido entre as maiores nações do mundo. Fundou-se então a Escola
Nova, trazendo uma série de mudanças na educação, propondo um
ensino intelectual, mais também pragmático, no intuito de educar o
indivíduo também através de trabalhos pragmáticos e pela atuação em
atividades desportivas.
Albino (2011, s/p) apresenta dois conceitos determinantes no
processo de produção da literatura infantil brasileira do início do século
XX: modernização e modernismo. A consolidação da classe média, o
crescimento da escolarização dos grupos urbanos e a nova situação da
literatura e da arte motivam o aumento de obras infantis e a adesão de
escritores envolvidos com o aspecto novo da arte nacional, tornando o
mercado a favor dos livros como nunca havia se visto antes. Durante os
anos 20 e 30 o gênero se consolida e recebe prestígio por parte das
editoras, o que causa um grande crescimento da produção e a adesão de
novos escritores da geração modernista, que trazem algumas inovações
para as obras literárias, como a valorização da cultura nacional e a
oralidade.
No entanto, mesmo com a renovação e o sucesso do gênero, o
que predominava nas obras era o caráter pedagógico. A produção era
estimulada apenas para suprir às necessidades do mercado escolar, que
por sua vez exigia dos escritores a adequação de seus textos para
atender apenas as necessidades educativas que estava em vigor na
sociedade brasileira da época, restringindo a fantasia e a criatividade,
em decorrência da determinação do Estado.
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No início do século XX, o surgimento de um escritor inovador
viria a mudar essa situação e marcar a literatura infantil brasileira, como
destaca Saraiva (2001):
O percurso da literatura infantil foi marcado pelo
momento histórico-cultural e, especialmente, pelo ano de
1921, quando nascia oficialmente pelas mãos de Monteiro
Lobato. Ela recebeu uma roupagem nova, visível na
inovação temática das histórias e na aproximação entre
linguagem e o tom coloquial que caracterizava a fala
brasileira. (p.37)
A partir da produção lobatiana, nasce aquilo que podemos
considerar como o preâmbulo da literatura infantil no Brasil. O escritor
com uma visão inovadora enxerga na criança um ser inteligente e capaz
de juízos críticos, propondo e inaugurando uma nova trilha nos
caminhos da produção literária infantil. Lobato trouxe para esse cenário
uma transformação de pensamento em relação ao tipo de texto
produzido para a criança e o jovem, rompendo com convenções
estereotipadas e inovando seus textos com uma linguagem coloquial e
popular, bem próxima da realidade de seu leitor.
Lobato, através de termos adequados passa a escrever para as
crianças sobre temas que pertenciam apenas ao mundo do adulto, sendo
o primeiro escritor brasileiro a dar crédito na inteligência da criança, na
sua curiosidade intelectual e capacidade de compreensão. Sua obra
insere o leitor em um projeto de exercício de consciência crítica,
constituindo uma nova literatura que permite o desenvolvimento da
criticidade do leitor. Além de despertar o interesse da criança através do
imaginário, Lobato conscientiza com sua literatura denunciadora,
tratando de forma leve fatos políticos, econômicos e sociais através de
seus personagens contemporâneos.
José Nicolau Gregorin Filho (2009) enfatiza que do final do
século XIX até o surgimento de Monteiro Lobato, os modelos que
estavam em vigor a Educação e na prática de leitura no Brasil eram o
nacionalismo, o intelectualismo, o tradicionalismo cultural com seus
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modelos de culturas a serem imitados e o moralismo religioso, com as
exigências de retidão de caráter, de honestidade, de solidariedade e de
pureza de corpo e alma em conformidade com os preceitos cristãos. Por
intermédio da obra lobatiana a criança passa a ter voz e espaço no
cenário da literatura.
O autor apresenta dois momentos bem distintos vividos pela
literatura infantil brasileira:
a) Momento anterior a Monteiro Lobato: responsável
por veicular valores com o individualismo, a
obediência absoluta aos pais e às autoridades, a
hierarquia tradicional de classes, a moral dogmática
ligada a concepções de cunho religioso, vários tipos
de preconceito, como o racismo, uma linguagem
literária que visa a imitar padrões europeus. Desse
modo, a literatura para crianças se torna um mero
instrumento pedagógico, elaborada para uma criança
vista como um adulto em miniatura.
b) Momento atual, pós-lobatiano: momento em que a
literatura para crianças mostra uma individualidade
consciente, mundo com antigas hierarquias em
desagregação, moral flexível, luta contra os
preconceitos, linguagem literária que busca a
invenção e o aspecto lúdico da linguagem, ou seja,
uma literatura que mostra um mundo em construção
para uma criança que passa a ser vista como um ser
em formação. (2009, p. 31 e 32)
A partir da produção de Lobato, uma nova literatura infantil é
inaugurada. Por meio das inovações que o escritor trouxe para o gênero
foi que surgiu uma produção literária artística para o leitor infantil, onde
as funções principais são o lúdico, o catártico e o libertador, além do
cognitivo e do pragmático, que busca preparar a criança para viver em
um mundo cheio de diferenças, bem diferente da produção anterior, que
era tratada apenas como um simples recurso pedagógico.
Por se tratar de um entusiasmado nacionalista, o autor rompe
com o círculo das dependências dos padrões literários provindos da
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Europa desenvolvendo para seu leitor infantil e juvenil, aventuras com
características bem brasileiras, valorizando a vida do campo e
resgatando a tradição folclórica do país. É possível perceber claramente
essas características em O Sítio do Picapau Amarelo, onde Lobato dar
ênfase a vida do homem no campo e a cultura brasileira.
Segundo Cavéquia (2012), a publicação de A menina do
narizinho arrebitado de Monteiro Lobato em 1921 foi um fato que viria
a mudar para sempre e irremediavelmente o rumo da literatura infantil e
juvenil brasileira. Lobato propôs inovações linguísticas, dando
prioridade a uma linguagem coloquial, neologismos e onomatopeias,
buscando aproximar-se o máximo do estilo infantil. Em suas obras, o
autor também estimula a criticidade do seu leitor, incitando-lhes a
enxergar a realidade social, política, econômica e cultural através de
seus próprios conceitos a partir das reflexões e discussões trazidas pelos
personagens. Dessa forma, observa-se que o escritor foi um grande
revolucionário, rompendo com paradigmas de uma literatura
pedagógico-conservadora, tornando-se a maior referência da literatura
infantil brasileira.
Nas décadas de 40 a 60 inicia-se um novo ciclo da literatura
infantil no Brasil. Foi um período marcado por uma fértil produção
literária, onde os autores se profissionalizaram, as editoras e os
escritores se especializaram e o mercado literário se expandiu. O grande
prestígio adquirido pelas publicações dessa época provocou certo
conflito. Ao mesmo tempo em que se ver o setor editorial progredir,
apareceram obras repetitivas, buscando manter o sucesso, apresentando
características culturais estrangeiras, principalmente da cultura norte-
americana. Conforme Albino (2011, s/p):
Em termos gerais, a literatura do período destinada ao
público jovem afirma-se pela negação: além de não
abdicar de sua tradicional missão patriótica não deu lugar
à expressão popular, nem a ruptura das cadeias de
dominação. Por isso, sentiu-se à vontade para copiar
processos da cultura de massa, não apenas porque eles a
beneficiavam, mas também porque correspondiam ao
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padrão de qualidade a ser atingido segundo as exigências
do mercado.
Dessa forma, se comparada com a geração de Lobato, é possível
perceber que a produção literária desse período representa uma falha
quanto a sua qualidade no que diz respeito à produção infantil no Brasil.
As obras desse período apresentam características menos popular, para
um público específico e culturalmente mais qualificado.
Nas décadas de 60 a 80 a literatura infantil vem a se consolidar,
tanto no aspecto de sua produção e consumo, como no conteúdo das
obras. Nesse período, a produção de literatura para crianças foi marcada
por um grande aumento de autores e de obras disponíveis ao público.
Contudo, o saldo mais positivo que se pôde observar, está relacionado
com os caminhos seguidos pela narrativa e pela poesia e com o
tratamento dispensado por ambas aos temas e a linguagem. O caráter
didático pedagógico foi deixado de lado e a linguagem reencontrou os
caminhos inovadores abertos por Monteiro Lobato. Distanciando-se da
linguagem culta, o coloquialismo voltou a ser privilegiados, com a
presença de gírias, dialetos e falares regional. Como mostra Albino
(2011, p.), a seguir:
Em termos de renovação, a literatura infantil dos anos 60
e 70 assumiu também traços que a aproximam tanto de
uma produção literária não infantil contemporânea,
quanto a fazem recuperar o atraso por meio da
incorporação de conquistas já presentes na literatura
adulta desde o Modernismo de 22. Caracteriza-se ainda
essa produção o “desaparecimento” do compromisso com
a História oficial e com os conteúdos escolares mais
ortodoxos e a adesão a uma vertente originada na cultura
de massa, como a história policial e a ficção científica.
Conforme vimos, nota-se que a literatura infantil brasileira
passou por uma série de transformações ao longo de diferentes épocas.
Em alguns momentos constatou-se o predomínio da quantidade, em
outros o da qualidade. Entretanto, a literatura infantil produzida
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Revista Diálogos – set. / out. 2018 – N.º 20 200
atualmente segue o caminho proposto por Lobato no ano de 1921. A
qualidade estética que reveste as produções destinadas à criança na
atualidade permite ao professor a possibilidade de apresentar o mundo
mágico da literatura como suporte para as atividades de alfabetização.
4 Olhares da crítica sobre Emília
As considerações aqui expostas constam de olhares críticos
sobre estudos que tratam da personagem Emília do Sítio do Pica-pau
amarelo, mostrando como a crítica literária vem atribuindo olhares
importantes sobre a boneca e a sua influência enquanto personagem do
sítio.
O estudo de Izabel Cristina Vieira Antônio (2005), após uma
breve explanação sobre a obra de Monteiro Lobato, aponta algumas
questões importantes no contexto da obra Memórias de Emília
enfatizando que a obra possui diversas particularidades que retomam
definições filosóficas sobre verdade e vida e, também, o que tange a
língua e a esperteza da personagem Emília.
A primeira informação importante que o autor apresenta é a
visão de Lobato sobre os seus personagens, onde Emília é representada,
em toda a sua constituição, pela ficção, ou seja, sabendo que se trata de
uma boneca de pano, o escritor trás para a sua protagonista,
particularidades ficcionais que nunca poderiam existir no mundo real.
Antônio (2005) lembra que em sua essência, Emília já
surpreende os leitores da forma em que avança em cada obra.
Primeiramente, aparece como uma boneca qualquer, totalmente
dependente de Narizinho, sua dona, e recebe cuidados de Tia Nastácia,
que a fez com retalhos de pano, quando necessário. Dessa forma, com o
passar do tempo, toma uma pílula falante que a faz falar, andar e se
comportar como um ser humano, porém, com uma esperteza que
surpreende o leitor a cada obra.
Por meio da personagem Emília, Lobato vem mostrar a sua
visão de mundo e como ele queria que a sociedade fosse impactada. Na
fala da personagem, o autor apresenta os seus modos de pensar, faz suas
A Representatividade da Personagem Emília... - Silva
Revista Diálogos – set. / out. 2018 – N.º 20 201
críticas e, ao mesmo tempo, se diverte em pensar que o mundo seria
melhor e mais democrático se esses pensamentos fossem levados a
sério.
Antônio (2005) ressalta outro ponto importante que é sobre o
jogo de palavras na escrita lobatiana no decorrer da narrativa, isto é, a
maneira em que, por meio do texto, faz com que haja uma viagem em
meio à leitura do texto. Essa característica é também responsável pela
sua magnitude na literatura infanto-juvenil brasileira, em que é
consagrado como escritor.
Um dos aspectos citados por Izabel Cristina Vieira Antônio
(2005) que mostra a capacidade crítica de Lobato na fala de Emília se
dá quando a boneca põe em questão a sua definição de verdade, como
sendo “uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém
desconfia” (LOBATO, 1987, p. 8). Nesse trecho da obra, pode-se
observar que, na época, a verdade era tida pelo discurso da classe
dominante, e que isto inquietava, e muito, o autor.
Acreditando nisso, Emília, em diferentes obras da saga Sítio do
Pica-pau Amarelo, desconfia de muitas verdades que lhe são ditas; até
quando são realmente verdades. E, com o seu extinto investigativo,
acaba desvendando muitos mistérios que lhe são confiados, sem temer
personagens folclóricos como a cuca, o saci Pererê entre outros.
Entre as diversas características que norteiam a personagem
lobatiana, a que mais surpreende o leitor é o fato de o criador ter dado
voz ativa a sua criatura, ou seja, Emília não é apenas uma boneca
falante, ela vai se desenvolvendo dentro da narrativa, transformando-se
em uma personagem dotada de dinamismo e cheia de vontades próprias.
Mesmo sendo uma boneca de pano, Emília se apresenta como
uma protagonista de muita influência no sítio. Isso mostra, levando a
discussão à crítica social feita por Lobato, a pensar o quão sutil foi o
autor em pensar o papel de um ser até então de menor expressividade
com voz ativa, podendo interferir em decisões tomadas pelos seres
humanos.
Mais a frente, Antônio ressalta que a boneca apresenta um
discurso tão influente que chega a fazer o uso da linguagem de forma
A Representatividade da Personagem Emília... - Silva
Revista Diálogos – set. / out. 2018 – N.º 20 202
convincente, pois é por intermédio da linguagem que se faz conquistas
significativas, uma vez que ela chega a referenciar a frase de Dom
Pedro II em sua fala em um dos trechos na narrativa: “Independência ou
morte!”.
Outra questão apresentada na já referenciada seção do texto é
que o momento em que Emília começou a falar, ela conquista a
independência, e, nesse sentido, veio gritar por liberdade de maneira
irônica, como uma forma de manifestar a privação que estava sofrendo
sem poder se comunicar e ser influente no contexto onde foi feita com
retalhos de pano.
Antônio (2005) também lembra que em diversos momentos
Emília surpreende o leitor com o seu discurso quando faz o uso da
ironia, pois ela chega a filosofar quando mais uma vez a boneca vem
definir a vida, afirmando que “Viver é isso. É um dorme e acorda”
(LOBATO, 1987, p.13). Aí dar-se a ver o quanto a boneca sabe
empregar o conhecimento filosófico quando aborda diferentes temas até
então estudados pelos seres humanos.
Ao citar Cademartori (1987, p. 51), Antônio (2005) assinala que
“Monteiro Lobato cria entre nós, uma estética da literatura infantil, [...]
sua obra estimula o leitor a ver a realidade através de conceitos
próprios”. Essa autora destaca, também, que a estética da obra lobatiana
estimula o senso crítico do leitor, da maneira em que faz com que
retomemos conceitos históricos, filosóficos, políticos e etc. Isso se
tornou uma marca registrada de Lobato.
Assim, para finalizar essa noção de liberdade relacionada ao
papel de Emília na obra lobatiana, Antônio (2005) finaliza que para se
refletir a verdade é preciso que estejamos livres e prontos a identificar
as irregularidades e incompreensões da realidade, da maneira em que se
possam utilizar, por meio do conhecimento, formas de discussão através
da fala e da escrita.
Após explanar essas questões, parte-se para alguns
apontamentos sobre a crítica e a consciência da personagem. Nessa
linha de pensamento, a principal finalidade é mostrar como o discurso
ativo de Emília é consciente e apropriado ao conhecimento do ser
A Representatividade da Personagem Emília... - Silva
Revista Diálogos – set. / out. 2018 – N.º 20 203
humano, ao tempo em que aponta olhares críticos para os fenômenos
que permeiam o mundo desencontrado dos seres humanos.
Um aspecto interessante mencionado no texto A atuação da
personagem Emília na obra de Monteiro Lobato: Memórias de Emília
de Izabel Cristina Vieira Antônio (2005) é a reflexão que a esperta
protagonista faz sobre o termo cão. Da forma em que a boneca ver as
pessoas se ofendendo ao serem comparadas com um cão, sendo esse
animal considerado o melhor amigo do homem.
A boneca faz uma comparação entre o mundo animal, onde não
se fala e tudo corre muito bem e o mundo dos humanos e seus
desencontros e conclui que as maiores catástrofes do mundo estão
relacionadas com problemas de linguagem, se os humanos não
falassem, talvez não existissem tantos conflitos entre os mesmos.
São características como essa que transformam Emília em uma
personagem completa, livre e consciente dos desencontros que existem
entre os homens. Outra particularidade da boneca, enfatizada por
Antônio (2005), é o seu senso crítico. Monteiro Lobato em suas obras
declarou toda sua insatisfação com a situação de declínio e
subserviência vividos pela sociedade brasileira naquele período, o
personagem Jeca Tatu representa muito bem essa realidade do povo.
Em Memórias de Emília não foi diferente, Através de toda sua
genialidade de brincar com as palavras, utilizando termos simples e
sinceros o escritor fez o uso de sua encantadora personagem também,
para fazer críticas sociais.
Antônio (2005) destaca a esperteza de Emília, que tira vantagens
do bondoso e ingênuo Visconde de Sabugosa, se aproveitando de todo
carinho e atenção que ele tinha para com ela. Foi Visconde quem
vivenciou e escreveu as memórias, mais todo o mérito foi a boneca que
recebeu, fato que já havia acontecido anteriormente em Aritmética de
Emília, que foi escrita por Visconde e o mérito foi dado para a esperta
Emília. Com isso, através dessa personagem fantástica, Lobato faz
duras críticas aos abusos cometidos por aqueles que se encontram no
poder e que utilizam métodos ilegais para benefícios próprios.
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A pesquisadora continua enfatizando a respeito da esperteza da
boneca quando traz um diálogo entre a protagonista e Visconde no qual
o sábio sabugo de milho apresenta argumentos convincentes de que era
ele o autor das memórias que ela assinava como se fossem suas. Emília
responde sem se intimidar: “[...] Ser esperto é tudo [...] Se eu tivesse um
filhinho lhe daria um único conselho: seja esperto meu filho.”
(LOBATO, 1987, p.76). Mesmo tendo consciência de suas habilidades
de escritor, Visconde sabe que não pode competir com Emília e toda
sua esperteza, dessa forma a boneca segue se apropriando e se
beneficiando dos trabalhos alheios.
Em seguida, Antônio (2005) faz uma abordagem referente ao
preconceito, tema que também marcou presença na obra de Monteiro
Lobato. É através da personagem Emília que a autor retrata acerca do
preconceito presente na nossa cultura até os dias atuais, dando ênfase ao
preconceito racial pelo fato de esse apresentar uma maior dimensão.
A pesquisadora ressalta a capacidade humana de atitudes
contraditórias em um curto espaço de tempo, como o fato de praticar
uma boa ação e em seguida, devido a intensidade da vida, ser capaz de
atos desprezíveis e preconceituosos. Isso acontece com Emília, que ao
se descontentar com Tia Nastácia a ataca de forma preconceituosa. São
atitudes como essa que demonstra a semelhança da boneca com o
homem, visto que ao se deparar com uma situação contrária a sua
vontade, os mesmos acabam procurando alguém para ofender ou
condenar.
Citando Lobato (1987) Antônio traz um trecho que demonstra
todo rancor e preconceito da boneca para com a empregada negra. “[...]
Burrona! Negra Beiçuda! Deus te marcou, alguma coisa em ti achou.
Quando ele preteja uma criatura é por castigo [...] Tia Nastácia rompeu
em choro alto.” (p. 81). As atitudes preconceituosas de Emília se
estendem ainda em outros momentos durante a narrativa.
Incomodado com o comportamento da boneca, Visconde
manifesta críticas em suas memórias. Mesmo concordando com as
críticas, ela continua culpando Tia Nastácia, alegando que só é assim
porque a negra a fez dessa forma, portanto, ela era a única culpada. “[...]
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Cada um de nós dois Visconde, é como Tia Nastácia nos fez. Se somos
assim ou assado, a culpa não é nossa é da negra beiçuda.” (LOBATO
1987, p. 90).
Através da atitude de Emília, quando admite que sua existência
só foi possível graças a Tia Nastácia, Lobato deixou a mensagem de que
mesmo enfrentando diversos preconceitos ao longo das épocas, o povo
negro contribuiu e continua contribuindo de diversas formas na
sociedade até os dias atuais.
Adiante, Antônio (2005) faz algumas apreciações referentes a
pretenciosa e sonhadora Emília, destacando o momento em que a
boneca resolve terminar suas memória dispensando os trabalhos de
Visconde como a maior evidência de suas pretensões.
A boneca começa a narrar de forma pretensiosa e sonhadora
sobre uma viagem que supostamente teria feito para Hollyood
acompanhada pelo anjinho e o Visconde, dizendo que já não suportava
mais a vida no sítio. “Fomos para Hollyood. Eu já andava enjoada de
bolinhos, de pitangueiras, de países da gramática [...]” (LOBATO,
1987, p.91). Depois de demonstrar desprezo pela vida que levara no
sítio, a boneca exalta a língua inglesa, segundo ela, seu novo idioma.
A soberba e imaginação de Emília ganham tanta proporção que
se transformam em algo muito engraçado durante a narrativa,
principalmente no trecho onde ela conta sobre seu encontro com a
estrela de Hollyood Shirley Temple. Emília sonha alto, narra que
tornou-se amiga da famosa atriz. Segundo a boneca, Shirley afirmou já
conhecer todas as suas histórias e que sonhava em conhecê-la. Foi a
partir dessa viagem, literalmente sonhada por Emília, que se inicia seu
sucesso internacional.
Antônio (2005) encerra suas considerações acerca da
personagem Emília enfatizando a importância da figura de Visconde de
Sabugosa, aquele que segundo ela foi o grande responsável pelo
prestígio e popularidade que a boneca adquiriu. A autora faz referência
a Lobato (1987) em um trecho que demonstra todo o desejo da
personagem de ficar viúva de Rabicó, para enfim, ser esposa do
Visconde. “[...] Todos pensaram que Rabicó fora assado. Emília pulou
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Revista Diálogos – set. / out. 2018 – N.º 20 206
de alegria. Estava viúva! Podia finalmente casar-se com Visconde de
Sabugosa.” (p. 91).
Dessa forma, os dois são obrigados a se comportar apenas como
os bons amigos que sempre foram, e mesmo com toda a esperteza da
boneca, o sábio sabugo de milho continua fiel e obediente, atendendo
aos pedidos e as ordens da marquesa de Rabicó.
Outra característica marcante da amizade de Visconde e Emília
trazida por Antônio (2005) é a sinceridade. Mesmo com toda obediência
à boneca, em alguns momentos Visconde se irrita com certas atitudes e
exigências e começa a escrever seus pensamentos a respeito de sua
“pessoa”. Emília sente-se traída com alguns dos protestos de seu fiel
amigo, mas em seguida concorda e da razão a Visconde. Essa atitude de
concordar em receber críticas é um fato que demonstra certo
amadurecimento da personagem.
Com isso, Emília decide terminar suas memórias, surpreendendo
os leitores com toda sua magia e bom humor, fazendo reflexões sobre
si, levando grande parte do leitor a acreditar que ela era muito mais que
uma simples boneca de pano.
Emília agora passa a apresentar um sentimento de tristeza, ao se
deparar com tantas injustiças no mundo, o que ela definiu como a maior
desgraça do universo. A boneca percebe que era muito mais feliz
quando desconhecia a leitura, uma vez que somente quando começou a
ler passou a ter conhecimento de fatos que a deixara triste. Concluindo
que a verdadeira felicidade estava no lugar em que ela sempre viveu: no
Sítio do Picapau Amarelo.
Como vimos, através das reflexões trazidas por Izabel Cristina
Vieira Antônio (2005), é possível perceber nitidamente a importância
da personagem Emília na obra de Monteiro Lobato. Mesmo com toda a
complexidade que constitui o estudo de personagens, a pesquisadora
consegue fornecer para o leitor de forma objetiva a trajetória e a
importância da mais conhecida criação de Monteiro Lobato.
Em seu trabalho, Antônio (2005) deixa bem claro o fato de o
escritor fazer o uso de sua personagem para fazer protestos contra as
injustiças sociais vividas pelo povo brasileiro. Através de Emília,
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Lobato se mantém vivo até os dias atuais, uma vez que a esperta boneca
de pano se mantém viva e atual dentro da literatura infantil ao longo dos
anos, falando tudo o que pensa sem nenhum receio de desagradar
alguém. Essa característica de rebeldia da personagem, nada mais é do
que uma representação do seu criador que sempre incomodou muita
gente com suas ideias revolucionárias.
As atitudes da boneca surpreendem ao leitor em diversos
momentos durante a narrativa. Ainda mais, quando ela passa a aceitar as
críticas feitas por seu fiel amigo Visconde de Sabugosa. A personagem
eloquente que fala tudo o que pensa, admite algumas de suas falhas
tornando-se imprevisível. Emília é uma sonhadora, e através de suas
aventuras leva leitores de diversas faixas etárias a viajar na imaginação
junto com ela. Sua liberdade fica marcada em toda a narrativa lobatiana,
sendo ela, a grande estrela do Sítio do Picapau Amarelo.
Outro trabalho significativo que discute a importância da
representatividade de Emília trata-se da obra Literatura infantil: teoria,
análise, didática de Nelly Novaes Coelho (2000). A autora reconhece
que para que haja uma possível compreensão do universo fictício de
Monteiro Lobato é de fundamental importância o estudo de sua
protagonista.
Emília se diferencia de todos os personagens que constituem o
Sítio do Picapau Amarelo, por ser a única que vive em constante tensão
dialética com os demais. Os outros representam exemplos de seres
humanos comuns cuja função dentro da narrativa é servir de
contraponto a Emília. Narizinho e Pedrinho desempenham o papel de
crianças saudáveis e felizes, D. Benta é o modelo de avó sonhado pela
maioria das crianças e Tia Nastácia criada humilde e amorosa,
representando a raça negra presente desde a origem do nosso povo.
Se referindo diretamente aqueles que acusaram Lobato de
racismo pela criação de uma personagem negra e grosseira, Coelho
(2000) menciona que não existe preconceito racial nenhum nas obras do
escritor, visto que na narrativa todos tinham respeito e carinho por Tia
Nastácia. Sua intensão foi mostrar a realidade daqueles que eram
excluídos da sociedade.
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A referida autora analisa ainda que em diferentes situações,
Emília denota-se como o protótipo-mirim do “súper-homem”
nietzschiano, devido ao seu desejo de domínio e ao intenso
individualismo evidente em suas ações e falas. A boneca de pano se
revela autoritária, impondo todas as suas vontades e opiniões para com
aqueles que estão a sua volta. Isso fica explícito desde o início das
“Memórias de Emília” quando ela impõe que Visconde seja seu
secretário sem sequer lhe dar opção de escolha.
Em seguida Nelly Novaes Coelho (2000) destaca um trecho de
um diálogo entre Emília e Visconde sobre a autoria das “memórias”,
onde fica bem claro a intensão que Lobato teve de denunciar as práticas
ilícitas cometidas pelo homem, que é capaz de explorar o seu
semelhante na busca de receber reconhecimento e sucesso através do
esforço do outro.
- Sabe escrever memórias, Emília? Repetiu o Visconde
ironicamente. Então isso de escrever memórias com a
mão e cabeça dos outros é saber escrever memórias?
- Perfeitamente, Visconde! Isso é o que é importante.
Fazer coisas com a mão dos outros, ganhar dinheiro com
o trabalho dos outros, pegar nome e fama com a cabeça
dos outros: isso é que é saber fazer as coisas. Ganhar
dinheiro com o trabalho da gente, ganhar nome e fama
com o trabalho da gente, é não saber fazer as coisas. Olhe,
Visconde, eu estou no mundo dos homens há pouco
tempo, mas já aprendi a viver. Aprendi o grande segredo
da vida dos homens na terra: a esperteza! Ser esperto é
tudo. O mundo é dos espertos. Se eu tivesse um filhinho,
dava-lhe um só conselho. “Seja esperto meu filho!”
- E como explicar o que é ser esperto? Indagou Visconde.
- Muito simplesmente, respondeu a boneca. Citando o
meu exemplo e o seu, Visconde. Quem é que fez a
“Aritmética”? Você. Quem ganhou nome e fama? Eu.
Quem é que está escrevendo as memórias? Você. Quem
vai ganhar nome e fama? Eu...
O Visconde achou que aquilo estava certo mas era um
grande desaforo. (p. 145-146)
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Tal postura da personagem lobatiana pode ser analisada de
forma positiva ou negativa ao mesmo tempo, pois por um lado leva a
grandes realizações ao nível social e, por outro, facilmente resvala na
exploração do homem pelo próprio homem. O caráter ambíguo é
facilmente percebido nas atitudes dos personagens de lobato,
especialmente em sua protagonista, Emília.
Coelho (2000) dar seguimento propondo que tal dualismo devia
ter raízes bem fundas em Lobato, visto que em certos momentos o autor
valoriza o individualismo de sua personagem favorita, ao lhe conceder o
espírito de liderança, a ascendência mandona, mas brejeira com aqueles
que convivem com ela, em outros momentos ele o satiriza quando deixa
evidente o consciente despotismo com que Emília age em determinadas
ocasiões, numa verdadeira imitação do mundo real, onde os poucos que
estão no poder usufruem das riquezas geradas através do esforço e do
trabalho de multidões de desvalidos.
Ao analisar Memórias de Emília, Coelho (2000) faz uma intensa
crítica a ambiguidade presente na narrativa lobatiana. Conforme a
autora, o sentido crítico e satírico nos textos do autor pode ser
considerado impróprio para as crianças, que podem não estar orientadas
nem preparadas para compreender aquilo que ele escreveu com a
intenção de crítica e entender como um elogio ou incentivo as práticas
que ele desejava combater.
Nelly Novaes Coelho (2000) mostra outro exemplo do caráter
ambíguo de Lobato na obra A Chave do Tamanho:
Jogando de maneira divertida e incrivelmente inteligente,
com a relatividade de valores, Lobato cai, entretanto em
frequentes distorções da verdade comum das coisas ou
emite conceitos tão desumanos que espantam. Entre estes,
está a enfática aceitação da violência para obter a paz. É
o que Emília defende quando justifica que milhões de
homens morram (por serem incapazes d se adaptar do dia
para a noite ao terem sido reduzidos ao tamanho de
insetos), para que não haja mais guerras. (p. 147).
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Embora a intenção do escritor tenha sido censurar algumas
práticas cotidianas, sua postura torna-se perigosa, pois os desmandos e
arbitrariedades de ação praticados pelos adultos pode ser entendido por
crianças e jovens como um exemplo a ser seguido. Dessa forma, Coelho
(2000) sugere que esse livro seja destinado ao leitor pré-adolescente
devidamente orientado a fazer uma análise crítica do mundo atual e não
apenas para entretenimento.
Contudo, a autora admite que essas características da escrita
lobatiana não pesa na leitura. A explicação para isso talvez seja
atribuída a dois fatores, de um lado a necessidade do leitor
contemporâneo de questionar o mundo; e de outro, porque a brejeirice,
imaginação e graça da fábula neutralizam o ceticismo do escritor
presente na obra.
Coelho (2000) encerra sua análise fazendo uma referência ao
capítulo final das Memórias de Emília, o único que foi escrito pela
própria boneca, caracterizando-o como algo que soa muito falso pela
falta da irreverência que marcou a protagonista durante toda a narrativa.
O capítulo apresenta um tom emotivo, diferentemente daquele
que o leitor estava habituado, conforme pode se observar no trecho a
seguir:
... Antes de pingar o ponto final quero que saibam que é
uma grande mentira o que anda escrito a respeito do meu
coração. É falso. Tenho, sim, um lindo coração – só não é
de banana. Coisinhas à toa não o impressionam; mas ele
dói quando vê uma injustiça. Dói tanto, que estou
convencida de que o maior mal deste mundo é a injustiça.
Quando vejo certas mães baterem nos filhinhos, meu
coração dói. (COELHO, 2000, p. 149).
A pesquisadora ressalta que o próprio Lobato deve ter percebido
que sua intenção satírica poderia ser confundida pelo leitor e terminou
as Memórias de Emília com um capítulo que foi considerado capítulo-
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defesa de sua protagonista e, por consequência do próprio escritor, uma
vez que para muitos a boneca é o alterego de seu criador.
Como vimos, através das apreciações da crítica literária sobre
Emília, é possível afirmar que ela é uma personagem de grande valor, e
sem dúvidas, a maior personagem de Monteiro Lobato, um marco na
Literatura Infantil brasileira, que desde seu surgimento teve mudanças
significativas e jamais voltará a ser a mesma. Com certeza, essa boneca
de pano é uma das mais encantadoras criaturas da nossa literatura e vem
conquistando leitores de diversas faixas etárias ao longo das gerações.
Ao acompanhar as aventuras de Emília o leitor é surpreendido
por ricas e diversificadas aventuras que transformam a leitura em algo
agradável provocando um maior interesse pelas suas histórias e
consequentemente, pela leitura. A inteligência e a esperteza da boneca
de pano no decorrer da narrativa são surpreendentes, ela faz definições,
críticas e questiona algumas verdades instituídas mostrando diferentes
formas de enxergar a vida.
5 Considerações finais
Monteiro Lobato é considerado o precursor da literatura infantil
no Brasil e o grande responsável pelas transformações nos textos
produzidas para crianças e adolescentes ocorridas no século XX. O
escritor foi um nacionalista realista que não teve medo de falar o que
pensava e de lutar pelos seus ideais, chegando a desagradar a muitos. A
sua maior conquista foram as crianças, para quem dedicou grande parte
da vida.
Foi com a publicação de A Menina do Narizinho Arrebitado que
Lobato se consagra como escritor infantil. O autor deu uma nova
roupagem aos textos, propondo inovações linguísticas, apostando alto
na fantasia e em uma linguagem voltada para a realidade de seus
leitores. O Sítio do Picapau Amarelo foi sua mais bela e conhecida
invenção, onde apresenta seus personagens inesquecíveis, que ficaram
marcados pela curiosidade, imaginação, independência, espírito crítico
e bom humor.
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Dentre os personagens lobatianos, Emília é a sua preferida e a
que mais incendeia a imaginação do leitor, visto que suas aventuras são
ricas e diversificadas tornando-se algo prazeroso e significativo para
aqueles que acompanham. Como se observou, a boneca representa o
protesto e a rebeldia de seu criador que não aceitava as injustiças sociais
e de alguma forma, queria dar a sua contribuição para a ascenção social
do Brasil.
Emília surpreende o leitor em diversos momentos durante a
narrativa com sua inteligência e esperteza, trazendo definições
filosóficas sobre verdade e vida e afirmando a importância de ser
esperto para se obter vantagens. Outro fato que nos chamou atenção foi
o comportamento autocrítico da personagem que em certo momento,
apresentou uma conduta diferente a que todos estavam acostumados e
passa a assumir muitas de suas fraquezas.
A esperta boneca de pano é apaixonada pela vida, cheia de
irreverência e atitudes imprevisíveis, age como gente, fazendo críticas,
questionando muitas verdades impostas e sempre apresentando novas
formas de enxergar a vida. Além de sua esperteza e inteligência, Emília
se apresenta uma personagem sonhadora e com muito bom humor,
características que aparecem de forma intensa no final das memórias,
quando ela narra sua suposta viagem para Hollyood e afirma ter
aprendido inglês fluentemente.
Mesmo diante do julgamento de parte da crítica que considerava
a obra de Lobato imprópria para a formação das crianças, devido a
ambiguidade presente em seus textos, não se pode negar que o autor foi
o grande responsável por unir a literatura infantil e o prazer na
formação do pequeno leitor. Através de Emília, a criança adquiriu o
direito de se expressar. A contestação e a irreverência infantis passam a
ganhar espaço e a ser lidas através das aventuras dos fantásticos
personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo e especialmente, por meio
da atuação de sua protagonista.
Foi possível constatar, nesta pesquisa, que Emília é a chave para
a compreensão do polêmico universo fictício lobatiano. Ela tornou-se
um marco no que se refere à construção de personagens voltados ao
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público infantil. A personalidade da esperta boneca fica marcada em
toda narrativa de Lobato, sendo ela a grande responsável pelo
reconhecimento de seu criador e por todo o sucesso que a obra
alcançou.
6 Referências
ANTONIO, I. C. V. A ATUAÇÃO DA PERSONAGEM EMÍLIA
NA OBRA DE MONTEIRO LOBATO: MEMÓRIAS DA EMÍLIA.
Monografia (Especialização em Língua Portuguesa – Fenômeno Social
e Político), Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC, 2005.
ALBINO, L. C. D. A literatura infantil no Brasil: origem, tendências
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http://www.litteratu.com/literatura_infantil.pdf> . Acesso em: 15.
Jan. 2017
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