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1
o
q u e
a r et r ic a ?
A n ti g a e n o va r et r ic a: d a c i nc ia d o i n di st in to
c i n c i a d a r e sp o s ta m l ti p l a
Para muitos, e desde suas origens, a retrica goza de m re-
putao. Ela vista como o saber do indistinto . Seu terreno o
incerto e o vago, o duvidoso e o conflitante. Alis, foi assim que
ela surgiu na Siclia, quando - uma vez desmoronada a tirania -
se tratou de permitir aos proprietrios espoliados que defendes-
sem sua causa, a fim de recuperar seus bens. Os primeiros advo-
gados foram osintelectuais chamados de sofistas, pois professavam
o emprego da sabedoria para intervir em favor do destino das
vtimas espoliadas. Rapidamente, elesvenderam seus prstimos a
todas ascausas, o que Plato lhes reprovou. Ele foi sempre infati-
gvel em opor a retrica - falso saber, ou sofstica - filosofia,
que se recusa a sujeitar-se s aparncias de verdade para dizer
tudo e tambm seu contrrio, o que condenvel, mesmo que
rentvel. Disso nasceu a idia de que sofisma um raciocnio
falacioso e enganador, mas que no aparece como tal. Tem todos
os indcios de verdade, salvo um, o que conta: ele um erro. O
sofista a anttese do filsofo, assim como a retrica o contrrio
do pensamento justo.
A condenao de Plato foi determinante na histria da re-
trica. Ora assimilada propaganda, ora seduo, a retrica
tem sido, a partir da , freqentemente reduzida manipulao
dos espritos pelo discurso e pelas idias, enquanto filosofia
coube liber-los, como aos prisioneiros da Caverna. Dito isso, a
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M ic he l M ey er
retrica poderia ter ultrapassado a deficincia desse antema, ti-
vesse ela se dotado de contornos claros e de definio precisa, o
que no foi o caso, mesmo em Aristteles, e muito menos ainda
na obra de Plato. Aristteles, entretanto, a leva a srio e atribui
a ela um papel positivo, na realidade uma certa dignidade. Para
ele, a retrica o inverso necessrio da cincia: esta confere cer-
teza em suas concluses, mas um bom nmero de questes da
vida cotidiana, assim como da vida intelectual, no oferece certe-
za alguma. Devem estas, em virtude disso, sair do campo da ra-
zo?fu opinies divergem, os pontos de vista se enfrentam e, na
pol tica, assim como na moral , osindivduos tm modos de pen-
sar divergentes e legt imos. verdade que podemos manipular e
enganar, mas tambm podemos aderir de boa-f e com convico
a proposies no necessariamente compartilhadas por outros.
Nem todos temos os mesmos interesses, as mesmas concepes,
os mesmos pontos de vista, mas preciso que convivamos uns
com os outros e que discutamos tudo o que suscita dif iculdades,
para chegarmos a um esboo de bem comum na Cidade. Assim,
talvez a retrica seja um mal, mas um mal necessrio, que mais se
assemelha a um comunicar do que a um mandar fazer. Da pol-
tica ao direito e a suas argumentaes contraditrias, do discurso
literrio ao da vida cotidiana, o discurso e a comunicao so
indissociveis da retrica. Se esta tem suas armadilhas, tambm
oferece a possibil idade da decodificao e da desmistif icao.
Dessa forma, o melhor antdoto retrica continua sendo a pr-
pria retrica.
Setodos osdomnios a que ela seaplica so dspares, e inclu-
sive se multiplicam, isso se deve ao desmoronar das velhas certe-
zas e das respostas mais bem-estabelecidas, as quais a histria -
que tem pressa - tende a tornar caducas, umas aps as outras.
Tudo fica mais problemtico, mais discutvel , e o que se tomava
aop da letra seimpe como mais metafrico. H algo mais a ser
visto atrs, que deve ser investigado, pois no podemos nos agar-
A re t r ic a
rar svelhas respostas com a mesma inocncia. A histria, ns o
sabemos, sinnimo de paraso perdido e portanto de conflitos,
porm, mais simplesmente, de
diferena:
as coisas j no so em
absoluto o que eram, elas j no o so seno metaforicamente,
no literalmente. A retrica se inscreve, ento, nesse vazio entre
() literal e o metafrico, entre a presena imediata e aquilo que
existe atrs - da, sem dvida, a predileo dos espritos religiosos
pela retrica, mas tambm dos criadores de literatura, que jogam
com a linguagem figurada, tanto na poesia quanto no romance.
2 As g r a nd es d ef i ni e s d e r et r ic a
As diferentes definies de retrica podem ser classificadas
em trs grandes categorias:
(1) a retrica uma manipulao do auditrio (Plato);
(2) a retrica a arte de bem falar
ar s b en e d ic en d i,
de Quinti-
liano):
(3) a retrica a exposio de argumentos ou de discursos que
devem ou visam persuadir (Aristteles).
Da primeira definio decorrem todas as concepes de ret-
rica centradas na emoo, no papel do interlocutor, em suas rea-
es, o que atualmente implica propaganda e publicidade. Da se-
gunda, tudo o que diz respeito ao orador, expresso, ao simesmo,
inteno e ao querer dizer. Quanto terceira definio, ela diz
respeito quilo que referimos anteriormente sobre asrelaes entre
o explcito e o implcito, o literal e o figurado, as inferncias e o
literrio. E foi a mescla, ou a adio de tudo isso, que fez da retri-
ca uma disciplina de contornos mal definidos, que, por tratar de
muitas questes, parece ela mesma confusa e sem objeto prprio.
Se verificarmos atentamente, cada um desses trs tipos de
abordagem focaliza uma das trs dimenses da relao retrica.
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Quais so os trs componentes bsicos que fazem com que haja
retrica? preciso um orador, um auditrio ao qual ele se dirija
e uma mdia por meio da qual elesse encontrem, para comuni-
car o que pensam e trocar pontos de vista. Essa mdia sempre
uma linguagem, que pode ser falada ou escrita, mas tambm pic-
trica ou visual . A televiso e o cinema combinam os efeitos re-
tricos tirando partido da imagem, da msica e da linguagem
falada; da a sua fora.
Senos reportarmos s trs definies mencionadas acima, que
encontraremos ao longo de toda a histria da retrica, sob uma
forma ou outra, veremos claramente que a primeira privilegia o
papel do auditrio; a segunda, a importncia do orador; e a tercei-
ra, o peso das proposies e da linguagem que as veicula, o que
confere a aparncia de tornar a retrica mais objetiva e racional.
Mas ser que podemos privilegiar uma das trs dimenses da
relao retrica e ignorar as duas outras? Isso no possvel, o
que faz com que essas definies tenham necessitado evoluir com
o tempo, para integrar asduas dimenses negligenciadas, mesmo
sob o risco de assumir um
status
subordinado, relativamente
quela que havamos escolhido adotar.
Tomemos Aristteles. Para ele, a retrica questo de dis-
curso, de racionalidade, de linguagem. Uma palavra para definir
essas trs dimenses:
lgos.
O
lgos
subordina a suas regras pr-
prias o orador e o auditrio: ele persuade um auditrio pela fora
de seus argumentos, ou agrada a essemesmo auditrio pela bele-
za do estilo, que comove aqueles a quem se dirige. Uma palavra
para qualif icar o auditrio que sequer seduzir , convencer ou en-
cantar:
pthos.
O auditrio passivo, ele se submete ao orador
como se submete a suas prprias paixes, termo cuja etimologia
precisamente
pthos,
em grego. Mas o
lgos
que faz a diferena
entre o discurso racional e aquele que provoca paixes, criando a
emoo e chegando mesmo a fazer com que a razo seja esqueci-
da. A retrica, para Aristteles, um discurso que um orador
22
A re t r ic a
possui e que adequado a persuadir um auditrio, ou a comov-
lo. As trs dimenses esto bem presentes, mas integradas fora
do verbo. ele que produz efeito sobre o auditrio, e essafora
que o orador tem em vista.
Para Plato, o inverso. O pthos, e no a verdade, comanda
o jogo da linguagem, mas tambm a postura do orador, que s se
preocupa com os efeitos, e por vezes muda de lado, no se inco-
modando em defender pontos de vista opostos, ou em obter efei-
tos contraditrios. A razo estranha retrica, porque ela se
pretende unvoca e, conseqentemente, de competncia exclu-
siva da filosofia.
Depois do
lgos
e do
pthos,
resta o
thos,
ou a dimenso do
orador. Essa abordagem tipicamente romana. A eloqncia s
tem sentido se se subordinar virtude
thos
do orador, a seus
costumes exemplares, que so vlidos para todos, qualquer que
seja a profisso ou a origem social.
thos
deu origem palavra
t ica , mas tambm h
mores-
costumes , em latim. A eloqn-
Lia,o bem-falar, a verdade dessa retrica em que aquele que fala
possui a legit imidade e a autoridade moral para faz-lo. Mas essa
retrica baseada na eloqncia deve, ela tambm, integrar as duas
outras dimenses - no caso, o lgos e o p th os -, mesmo que seja
para subordin-las. Para Quintiliano, a retrica a cincia do
bem-dizer, pois isso rene ao mesmo tempo todas asperfeies do
discurso e a prpria moralidade do orador, uma vez que no se
pode verdadeiramente falar sem ser um homem de bern . Mesmo
integrando implicitamente tanto o
pthos
quanto o
lgos
ao valor
oratrio do
thos,
estes aparecem como secundrios. A eloqncia
va i
levar, ento, tanto aos efeitos de estilo lgos como emoo
ou ao atraente
pthos ,
um agradar tpico das sociedades de corte.
retrica romana a primeira a desenvolver uma teoria das figu-
l.IS de estilo, assim como a enfatizar a emoo na linguagem lite-
I Qulntilien
Les ins t it u ti ons o rat o ir es,
1115
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M ic he l M eye r
rria, potica e romanesca. Uma retrica da eloqncia no pode-
ria ignorar o auditrio e a forma, assim como uma retrica
reduzida manipulao das paixes no poderia negligenciar os
aspectos sofsticos da linguagem aplicada e as intenes do rtor.
Com o pdthos, centrado na dominao, encontram-se portanto
um lgos e um thos, talhados sob medida.
Quanto ao
lgos,
ele foi rapidamente inserido em um quadro
no qual havia uma pessoa que se dirigia a outra. Para Aristteles,
a retrica era to-somente o estudo de tcnicas destinadas a per-
suadir. Dois mil e quinhentos anos depois, em 1958, para Perel-
man a retrica continuou sendo o estudo que consiste em pro-
vocar ou aumentar a adeso dos espritos s teses que se lhes
apresentam ao
consentimento .
Ao fazer isso, algum age, visan-
do obter o acordo do auditrio. Os argumentos justos permitem
consegui-lo: basta simplesmente que o orador se amolde, e o
auditrio o seguir. Estamos no quadro de uma racionalidade
imanente do
lgos,
mas tanto o orador como o auditrio vem-se
dessa vez explicitamente presentes na definio, ainda que conti-
dos pela razo do razovel e do verossmil. Destitudo de paixo,
como em Aristteles, porque em Perelman o lgos somente
argumentativo, e o aspecto formal do estilo agradvel ou emocio-
nal esvaziado, ou, antes, disciplinado, ao passo que em Arist-
teles ele ainda era dominante, sem dvida em razo da condenao
platnica que Aristteles queria delimitar.
Toda essa impreciso fez com que asdefinies de retrica se
desviassem ao longo do tempo, se cindissem e at fossem de en-
contro uma outra, pois a retrica que visa agradar ou at mes-
mo agitar aspaixes no a mesma coisa que uma argumentao
que se esfora para convencer por meio de
razes.
Encontramos,
assim, a retrica no jogo de paixes, na literatura, na pol tica, no
tribunal, na linguagem natural, no raciocnio no-cientfico, na
2.Perelman e Olbrechts, Letrait de/ argumentation p.S.
24
A re t r ic a
opinio, no bem-falar , no implcito, na inteno que se esconde
atrs do implcito, no figurativo, portanto no inconsciente que
codifica sua linguagem; em resumo, a retrica, longe de se res-
tringir, se propagou, em decorrncia da perda de sua unidade
primeira. O desafio atual consiste em tentar dar a ela novamente
uma d ef in i o, abrangente mas especfica, que permita acomodar
tanto a argumentao judiciria quanto o discurso publicitrio,
tanto o raciocnio provvel quanto a linguagem literria e suas
figuras de estilo, tanto a retrica do inconsciente quanto asregras
do debate pblico, em que as opinies se afrontam ou se esva-
ziam pela ideologia.
Da a pergunta: onde encontrar tal viso unificada da retri-
ca? No constitui um autntico desafio, depois de dois milnios
de fragmentao?
3. U m a n o va d ef in i o d e r et r ic a
De tudo o que foi dito, decorre que o thos, o
pdthos
e o
lgos
devem ser postos em p de igualdade, se no quisermos cair em
uma concepo que exclua as dimenses constitutivas da relao
retrica. O orador, o auditrio e a linguagem so igualmente es-
s nciais. Isso significa que o orador e o auditrio negociam sua
diferena, ou sua distncia, se preferirmos, comunicando-a reci-
procamente. O que constitui a sua diferena, e mesmo o seu di-
r
.rencial, certamente mltiplo, e pode ser social, poltico, tico,
ideolgico, intelectual- e sabe-se l o que mais - , mas uma coisa
( certa: se no houvesse um problema, uma pergunta que os se-
parasse, no haveria debate entre eles, nem mesmo discusso. A
linguagem, o
lgos,
tem por vocao traduzir o que constitui pro-
lilcrna. Se nada fosse questionvel, um nem sequer se dirigiria ao
CHilro,e, se
tudo
fosse um problema, eles no poderiam faz-lo.
Assim
sendo, a r et r ic a a n eg oc ia o d a d ife re n a e ntr e o s i nd iv -
dl S s ob re u ma q ue st o d ad a.
5
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Essa questo inclusive a medida dessa diferena, do que
separa, e que ope mesmo os protagonistas, uma medida da dis-
tncia simblica que traduz sua diferena. Sem questes, j dizia
Aristteles, no haveria duas escolhas contrrias, todos teriam o
mesmo ponto de vista e no consultariam seno a si prprios
para esclarecer as coisas. Dessa forma, a retrica a anlise dos
questionamentos que so feitos na comunicao interpessoal e
que a suscitam ou nela se encontram.
O que negociamos pela retrica? A identidade e a diferena,
a prpria, a dos outros; o social que as enrijece, o poltico que as
legit ima e por vezes assacode, o psicolgico e o moral em que elas
flutuam. Observemos que a distncia simblica, que o estatuto
social consagra, afirma-se retoricamente pela excluso de todo
questionamento possvel, o que exige formas que reafirmem a
distncia. No limite, o uniforme especfico da patente no exr-
cito, do bispo na Igreja, do chefe no trabalho, com sua vestimen-
ta e seu protocolo prprio. A diferena negociada por esses sm-
bolos que a perpetuam, e uma retrica: ela resolve, a seu modo,
o problema de uma distncia que assim seafirma e seconfirma.
Negociar a distncia no acertado antecipadamente, na
maioria dos casos, e a relao interpessoal ento marcada por
uma problematicidade que no desti tuda de
autoridade.
A ne-
gociao da distncia no consiste forosamente em reduzi-la. O
insulto, por exemplo, um procedimento retrico que tem por
funo assinalar ao outro que o fosso que o separa do locutor ,
dali em diante, no-negocivel. Isso explica sem dvida por que
se utilizam nomes de animais, com essa finalidade: eles acentuam
uma distncia intransponvel ou, de qualquer forma, que no
desejamos ver abolida. Mas a negociao habitual felizmente tem
outros objetivos.
verdade que se trata de obter uma resposta,
mas esta sinnimo de acordo; de onde a idia de adeso ou de
persuaso, pela qual, de Aristteles a Perelman, a argumentao
foi singularizada.
6
A re t r ic a
Para concluir, a retrica atua na identidade e na diferena
entre indivduos, e desse tema que ela trata, por meio de ques-
tes particulares, pontuais, que concretizam sua distncia. Quan-
do a negociamos a part ir da questo, do que constitui uma ques-
to, estamos no ad rem res
=
coisa , em latim, portanto a causa,
o que est em causa), e quando o fazemos a part ir da intersubje-
rividade dos protagonistas, estamos no
ad hominem
pois nos di-
r igimos aos homens, ao que eles so, ao que acreditamos que eles
ejam, ao que gostaramos de acreditar que elesfossem, ou aoque
recusamos que eles sejam. Todavia, no pode haver uma real se-
parao entre o ad rem e o ad hominem; alm disso, freqente-
mente ofendemos as pessoas, quando no aderimos ao
que
elas
dizem ou propem, prova de que elas se identificam com o que
dizem. Assim sendo, uma boa retrica passa muitas vezes de um
plano a outro, do
ad rem
ao
ad hominem
sobretudo se os argu-
mentos acabam por faltar.
4 R e t ri c a e a rg u m en ta o
Aristteles opunha a dialtica, que pertence ao domnio da
disputa oratria, retrica. Atualmente, fala-se de argumentao
e no mais de dialtica. Ele as v como as duas facetas de uma
mesma pea, mas no precisa jamais em que consiste sua comple-
mentaridade. O lgospode agradar, comover, instruir, mas tam-
bm convencer por meio de argumentos. Como dar conta de
todas essas diferenas?
A, uma vez mais, essencial nos remetermos ao questiona-
mento. Ele define a originalidade da concepo integrada da re-
trica que ns defendemos.
A grande diferena entre a retricae a argumentao deve-seao
foto de que aprimeira aborda apergunta pelo visda resposta apre-
sentando-a como desaparecida portanto resolvida ao passo que a
argumentaoparte daprpria pergunta que ela explicitapara cbe-
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M ich el M ey er
g ar a o q ue r es ol ve a d ife re n a, o d ife re nc ia l e ntr e o s i nd iv d uo s.
No
fundo, no h incontveis maneiras de proceder, mas somente
duas: ou partimos da pergunta, ou da resposta, e agimos como se
a pergunta nela contida no mais fosse feita, estando resolvida
por esse procedimento, que se assemelha a um gesto de varinha
de condo, a uma fico, a um
w i sh f ul t h in ki ng .
Isso explica o
lado manipulatrio da retrica. Abordar uma pergunta pelo vis
daquilo a que ela responde pode ser ilusrio. Pois o simples fato
de oferecer a resposta a respeito do que problemtico, como se
a pergunta, s por isso, tivesse desaparecido, revela por vezes um
ato de fora: a soluo no uma nica, no argumentamos, s
fizemos uso de um belo estilo para anestesiar ou cativar o lei tor
ou o cliente. A questo fica resolvida unicamente pelo fato de a
termos abordado pelo ngulo da resposta? Seria timo, mas no
assim que funciona. A forma e o estilo preenchem a funo de
revestir o problemtico como se ele t ivesse desaparecido. Da o
papel da forma e do bem-falar , em retrica, que desempenham
um papel menor na argumentao. A verossimilhana da respos-
ta pode alis ser um excelente procedimento retrico: um roman-
ce policial cativa o lei tor desenvolvendo a resoluo de um enig-
ma gradativamente ( a investigao), mesmo a histria toda
sendo fictcia.
Compreendemos ento que a retrica se tenha identificado,
ao longo dos sculos, quilo que chamamos de
gnero epid c ti c o .
O que vem a ser isso, mais exatamente?
5.
O s g n er o s r et ri c os
Aristteles distinguiu trs grandes gneros em retrica, com-
parveis aos que se encontram em literatura, como o romance ou
a poesia. Em retrica, trata-se do
gnero epidc ti co ,
centrado no
estilo atraente e agradvel , em que o auditrio desempenha um
papel preciso, pelo fato de comandar o louvor ou a aclamao ou
A re t r ic a
,I
censura. Tem-se o
gne ro jud ic idr io ,
em que se determina se
uma ao justa ou no; e o
gnero de li bera t ivo ,
em que se deve
decidir agir em funo do ti l ou do prejudicial.
Esses trs gneros tm todos um componente de
thos,
de
f/ Ithos
e de
lgos.
O auditrio julga se belo (epidctico), justo
(judicirio) ou ti l (deliberativo). Temos a o
pdthos,
quer dizer,
,IS
reaes da alma, das paixes, que so ativadas. O orador, ou
rthos,
intervm igualmente nesses trs gneros de modo distinto,
pois defende, ornamenta ou delibera. Quanto ao
lgos,
nos trs
I ,ISOS
ele repousa sobre o possvel: o que teria sido possvel , o que
e o que o ser. Mas o verdadeiro problema aqui no distin-
gllir o
thos,
o
pdthos
e o
lgos
nesses trs gneros, mas sim com-
prccnder por que estes se reduzem a trs, o que limita a retrica
I somente trs tipos de problemtica, uma vez que os gneros,
rrn retrica como em literatura, definem
a pr i ori
as questes que
,lO tratadas e portanto colocadas pelo auditrio ou pelos leitores,
pcrrnitindo-lhes saber
a p ri or i
do que se trata e, conseqente-
nu-rue, aquilo que eles aguardam, como forma de respostas.
Os trs grandes gneros retricos correspondem a uma gra-
l r a o
no tratamento das respostas. Tem-se uma questo, portan-
10 lima alternativa, ou inmeras, e nenhum meio de decidir - o
.k hate ganha entusiasmo, o
pdthos
muito forte, pode-se inclu-
IVI falar de paixes que se desencadeiam: o gnero deliberativo
1111
poltico. A problemtica diminui, mas h os meios de resolv-
1 1 :
o direito. E, por fim, o problema consiste em fazer de tal
uunlo que no haja problema: o gnero epidctico, que se en-
1IIIIIra
no elogio fnebre ou na conversa cotidiana. Fazemos de
III0do
a no colocar em dvida a imagem do defunto; seja o que
1II1 que ele tenha feito em vida, aparamos as arestas e os proble-
111.1\
o discurso suave e, portanto, no pode ser seno belo e
1 luqucnte. Em nossa vida diria, quando perguntamos a algum
1
lido
bem? e o outro responde E voc, tudo bem? , damos a
nnprrsso de nos interessarmos pelo que acontece com a outra
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M ic he l M ey er
pessoa, o que ela tambm faz, para evitar qualquer questiona-
mento possvel sobre um assunto mais sensvel, a fim de ameni-
zar o aspecto agressivo que possa decorrer do fato de nos dirigir-
mos a ela como que mirando um alvo, e de por vezes nos
impormos a ela, unicamente pela presena corporal . Sempre so-
mos uma pergunta para o outro e,ao afast-la numa expresso de
polidez, tentamos ser agradveis para ele e minimizar a agressivi-
dade potencial que toda diferena implica .
Ai
ainda, a distn-
cia entre os indivduos que precisa ser negociada, e o epidct ico,
porque visa anul-la, cumpre sua funo com perfeio.
Na realidade, o prprio Aristteles o diz, esses trs gneros se
sobrepem com muita freqncia. Invocamos o justo em pol ti-
ca, ou o que til ao bem comum em direito, o que torna pouco
defensvel essatipologia das questes retricas. Qual ento nos-
sa soluo para essa questo dos gneros retricos? Caberia, de
preferncia, falar de
thos,
de
lgos
e de
pdthos
como fontes de
respostas, que podem ser argumentos ou espaos para argumen-
tar , mais do que isol-los em gneros distintos, o thos para o di-
reito, o
pdtbos
para a poltica e o
lgos
para o raciocnio argumen-
tativo ou para as figuras retricas.
Foi isso que cindiu a retrica, j que uma vez mais se isola
uma dimenso retrica das duas outras, mesmo em seu detri-
mento, levando ao limite a autonomizao da dimenso privile-
giada, para fazer dela
a
retrica como um todo. Com o
thos,
o
pdthos
e o
lgos,
somos remetidos aos trs problemas extremos e
inseparveis que o homem coloca para simesmo desde sempre: o
eu com o
thos,
o mundo com o
lgos
e o outro com o
pdthos.
Com a retrica, o eu, o outro e o mundo so implicados em uma
interrogao em que o outro solicitado como auditrio, como
juiz e como interlocutor, posto que instado a responder e a
3.Cf. , em relao a esse aspecto, Esther Goody,
Questions and polit n ss
Cambridge,
1978.
30
A r e t r ic a
negociar . Com a cincia, dada a obrigao de objetividade, no
deveria haver essa tripla dimenso, mas a vida em sociedade
f(:irade forma tal que as opinies so mltiplas, problemticas, e
t
essaproblematicidade que a retrica se esfora para afrontar.
6 . O s m o m e nto s c ha v e d a h is t ri a d a r et ri ca
Mal havia nascido, a retrica ficou deslocada. A oposio
entre retrica e argumentao, ao lado da pulverizao de gne-
lOS,
rapidamente prejudicou sua unidade. Para os gregos, a ret-
r i ca encarna a pluralidade das vozes na pol tica, a possibilidade
d.1democracia, que se baseia na discusso dos meios e dos fins na
(:iuade. Plato no aprecia nem um pouco essa disciplina, ao
passo que Aristteles v nela uma utilidade e quer integr-la sua
filosofia, porque v o bem comum como o fruto de uma elabora-
~.l
progressiva, que seja discutida por todos e entre todos no seio
d.ls assemblias democrticas. Em todo caso, ele no revelado
de imediato ao esprito daqueles que o nascimento ou a fortuna
pl ivi legiaram. Com Ccero e Quintil iano, ainda estamos no rei-
110
do
t o s
apesar de o primeiro encarnar a Repblica que fin-
d.lva, e o outro, um sculo e meio depois, o Imprio que nascia.
I lm elege o direito e a defensoria como local privilegiado do re-
i r i c o ali onde Quintiliano se preocupa em especial com uma
r l oq nc i a da corte, j invadida pelas figuras destinadas a agradar.
A retrica renasce sempre que um modelo dominante de
p lIsamento empalidece e que aquele que o suceder sefazespe-
1.11. ornpreende-se que, quando a mitologia grega se imps
111110
uma fico e deixou de ser tomada ao p da letra, a retri-
tenha surgido como a anlise e a descrio dessa linguagem
I11l
j no se pode mais considerar de forma literal. Mas tam-
111 11\,
na ausncia de um discurso nico que seja tido por todos
10 ideologicamente vlido, os homens desenvolvem diferen-
11 \
pontos de vista sobre uma mesma questo e se enfrentam
31
-
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M ich el M ey er
naquilo que acreditam serem as boas respostas. A Grcia dos so-
fistas se completa, com a Cidade livre e autodeterminada, na sis-
tematizao de Aristteles.
A retrica conheceu um florescimento comparvel ao da Re-
nascena, quando o velho modelo escolstico-teolgico, por seu
turno, desmoronou. D-se o mesmo no sculo XX, quando des-
falecem asideologias que tanto o marcaram com o Muro de Ber-
lim: Toulmin e Perelman antecipam essa renovao. Sua aborda-
gem centrada no lgos; Habermas e Burke, nos Estados Unidos,
privilegiam o papel do thos, enquanto a retrica americana ou a
hermenutica sevoltam principalmente ao papel do auditrio, do
leitor, do interlocutor - em resumo, do pthos. Essa pulverizao
tambm nos lembra o que aconteceu na Renascena, pois thos,
pthos e lgos voltam ao primeiro plano, mais uma vez em ordem
dispersa. Na Renascena, a argumentao - a dialtica - desapa-
recepouco a pouco, engolida pelo discurso do mtodo e pela cin-
cia. Quanto retrica que se preocupa com o thos ou com o p -
thos, ela rapidamente se faz tragar pela moral, pela religio. A
paixo no antes de tudo pecado? A concupiscncia, a luxria, a
vaidade pertencem ao domnio do pecado original. Como todos
os interesses sensveis, elas so objeto de teologia, da relao de
Deus (que intelecto puro) com a natureza humana, que pro-
priamente centrada neste mundo em razo do pecado, de paixes,
do sensvel. Assim, da retrica no resta seno o lgos das figuras
[de linguagem] da linguagem estilizada, que pura ornamenta-
o, o que d lugar a essecatlogo de tropos, ou floreios de lingua-
gem, que atravancam a retrica desde Dumarsais (1730) e Fonta-
nier (1830). A retrica no outra coisa a no ser epidctica,
quando Perelman, em 1958, a revoluciona, identificando-a ar-
gumentao, recolocando esta ltima na ordem do dia.
Tem-se o sentimento, sem dvida exagerado, de que o mo-
delo dominante da Antigidade foi , apesar de tudo, o thos, com
sua retrica centrada no orador, a despeito de Aristteles e Pla-
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A re t r ic a
to. Esse movimento se acentua sob a influncia do mundo ro-
mano, mas j os gregos privilegiavam a virtude. Em seguida, a
part ir da Renascena, tem-se direito preeminncia do pthos:
podemos ver, a, a relao com Deus, mais transcendente e enig-
mtica do que nunca (protestantismo, Contra-Reforma), a emer-
gncia do poltico e da poltica (o outro) nas cidades-estado da
Itlia, mas ele tambm discurso anestesiado na figuratividade
das imagens ornamentais, em conformidade com o que se exige
na corte dos monarcas europeus, que se pretendem absolutos.
Por fim, na poca contempornea o lgos que domina. A ret-
rica torna-se discurso sobre o discurso racional, que nem por isso
c :
cientf ico, com suas concluses to-somente verossmeis, e
issoque se entende por argumentao .
Hoje em dia, no se pode mais privilegiar a argumentao
em desfavor da retrica, ou o contrrio, e realmente necessrio
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ificar a disciplina.
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