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Jos Eduardo Reis
Universidade Trs-os-Montes e Alto Douro (UTAD)
Instituto de Literatura Comparada (ILC) da Faculdade de Letras do Porto (FLUP)
A genealogia do pensamento de Agostinho da Silva
O filsofo israelita Martin Buber publicou em 1946 em hebraico uma obra de
teor poltico filosfico, traduzida trs anos mais tarde para ingls com o ttulo Paths
in Utopia. Nela, Buber identifica a propenso para a utopia com o anelo da realizao
da ideia geral de justia, ideia que, segundo ele, manifesta-se segundo duas
modalidades, a religiosa, projectada como imagem escatolgica e messinica de um
tempo perfeito, e a filosfica, projectada como imagem ideal do espao perfeito. A
primeira concepo envolve questes do tipo csmico, ontolgico e metafsico,
enquanto que a segunda confina-se ao plano imanente do funcionamento estrutural
das sociedades e da conduta tica do homem. Segundo Buber, a escatologia ou viso
perfeita do tempo distingue-se da utopia ou viso perfeita do espao, pelo facto
daquela decorrer da crena num acto transcendental, proveniente de uma vontade
superior e exterior ao homem, independentemente deste poder vir ou no a
desempenhar um papel activo na preparao do reino futuro. Com a utopia a
vontade decidida e consciente do homem, liberta de qualquer vnculo
transcendncia, que soberanamente intervm na modulao do espao social perfeito.
No entanto, esclarece Buber, desde o sculo das luzes, que a viso escatolgica da
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instaurao de um reino harmonioso na terra por um acto providencial da vontade
divina perdeu a sua fora apelativa dando lugar ideia moderna de progresso.
Convocmos Martin Buber para precisar que a ideia de progresso, tal como foi
formulada pelos livres-pensadores do sculo XVIII e sistematizada pelos seus
continuadores do sculo XIX, assenta em quatro pontos fundamentais, a saber: (i) a
proclamao de uma discernvel continuidade, no isenta de turbulncias, de
hesitaes e de movimentos retrocessivos, da evoluo da histria social e espiritual
do homem, a qual passvel de ser segmentada em fases ou estdios que, pela sua
sequncia, so reveladores de um desgnio imanente de maturao e perfeio ntica
e material; (ii) que essa continuidade governada por leis histricas racionalmente
induzidas a partir da anlise dos eventos gerados pelo homem e no deduzidas da
crena em um esquema providencial de ordenao divina; (iii) que por meio do
conhecimento dessas leis se pode prever a qualidade do avano inelutvel de um
determinado estdio de desenvolvimento para o estdio que lhe sucede; (iv) que esse
avano requer a interveno da vontade e do esforo dos homens para ser realizvel;
(v) finalmente, que este esquema de pensamento uma verso laicizada, como afirma
Buber, duma viso escatolgica da histria assente na ideia do milnio.
E chegmos ao milnio. No ao limiar do segundo lapso de mil anos d. C.,
mas nomeao de um conceito que, para a histria das ideias, crenas e concepes
teleolgicas desempenha uma funo dominante e orientadora na mentalidade do
ocidente judaico-cristo; de um termo, cujo contedo designa, por efeito de
sinonmia, a esperana, o princpio de que se nutre, como o demonstrou Ernst Bloch,
o esprito da utopia orientado para o futuro, os dias a vir, a idade de ouro recuperada,
a entrada nas graas da Stima Idade, a Parsia prometida aos crentes, o reino
terrestre do Messias, a sociedade da justia, o estado final do processo csmico que
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definitivamente sublimar as insuficincias, as calamidades, as faltas acumuladas
pelo homem ao longo da sua mesma e necessria histria, esperana consubstanciada
nos quarto, quinto e sextos versculos do vigsimo captulo da revelao proftica do
Apocalipse de Joo: "Voltaram vida [os mrtires cristos] e reinaram com Cristo
durante mil anos [...].. A segunda morte no tem poder sobre eles; sero sacerdotes
de Deus e de Cristo e reinaro com Ele durante mil anos." (Apoc.20-4; 20-6)..
Para Norman Cohn, autor de In the Pursuit of the Millenium (Na Senda do
Milnio), esta noo de salvao caracteriza-se por ser de tipo colectivo na medida
em que extensvel a um grupo de fiis , terreal pela promessa de ser efectivada
neste mundo , iminente pois dever ocorrer em breve e de sbito , total quanto
ao grau de perfectibilidade alcanado e ser concretizada por efeito de uma
interveno exterior, sobrenatural.
Mas limitemo-nos ao sucedido na civilizao ocidental. Dos adeptos do
Livre-Esprito, na Idade Mdia, s Testemunhas de Jeov, no sculo XX, passando
por variadssimos movimentos religiosos sectrios gerados em diferentes pocas,
regista-se a espantosa sobrevivncia de uma mesma frmula ideolgica de inspirao
apocalptica sobre o devir do mundo, a contnua reproduo da crena no valor de
verdade literal da profecia escatolgica anunciada no ltimo livro cannico da Bblia.
No seu diferenciado modo de interpretar o texto sagrado e de agir seja pacfica seja
violentamente a partir dessa interpretao, os milenaristas manifestam, grosso
modo, a sua vontade salvfica segundo duas posies, a saber, a de esperarem
convictamente a vinda ou a de se prepararem activamente para a consumao do
reino prometido de justia, paz e abundncia, que dever preceder um estdio
ulterior, esse sim, final da histria do mundo terreno, correspondente, na viso de
Joo, descida dos cus da Nova Jerusalm (Apoc. 21).
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Como se pode verificar, o conceito de milnio, apesar da sua simples
derivao etimolgica e originria determinao semntica, reveste-se de subtilezas e
complexidades acrescidas que derivam: (i) quer das divergentes interpretaes dos
textos proftico-apocalpticos que esto na origem daquelas duas atitudes sectrias,
(ii) quer dos prprios contributos tericos de pensadores e autores alinhados por uma
viso teleolgica-transcendente da histria, (iii) quer ainda das propostas de
interpretao dos estudiosos e exegetas do fenmeno milenarista.
A irresistvel atraco pelo tempo futuro , portanto, uma modalidade do
pensar e do agir que, na tradio ocidental, adquiriu uma forte colorao escatolgica
por via da influncia duma crena original de entre as vrias crenas religiosas dos
povos da antiguidade do povo judaico: a de se ter auto constitudo e auto
proclamado como o agente humano da realizao de um plano necessariamente
benigno e salvfico do Criador do Mundo, tido pelo nico e verdadeiro Deus. Da
que, talvez, a concepo providencial, segmentada e apocalptica da histria, assente
na ideia de tempo linear, progressivo, apotetico-finalista, e que conheceu larga
fortuna no ocidente, tenha por original ilustrao mtica a crena semita numa
aliana, que narrada no captulo 17 do Gnesis, firmada entre Deus e um
descendente de No, Abro, depois rebaptizado Abrao, o pai dos povos, a quem foi
prometida a posse futura de uma terra de segurana e abundncia.
So os profetas da poca da invaso sria e, depois, do exlio, Isaas,
Jeremias e Ezequiel, que do nfase e promovem esta forte mitificao da vinda do
Messias-Salvador. Cerca de seis sculos depois de Isaas, por volta do ano 165 a. C.,
outro profeta, Daniel, compor aquele que considerado o mais antigo e completo
apocalipse cannico do antigo testamento, revelando porque a revelao lhe foi
dada tambm em sonhos ao rei que oprimia ento o seu povo, Nabucodonosor, o
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sentido dos dois sonhos que este tivera e que o deixara to intrigado. Esses sonhos
reais, envolvendo, respectivamente, (caps. 2 e 7) quatro animais e uma esttua
polimrfica, simbolizariam, na interpretao do profeta, a queda dos quatro grandes
imprios terrestres que se sucederam no Prximo Oriente ( e que a exegese bblica
identifica com o Assrio; o Persa; o Helnico, de Alexandre Magno; o Romano), e
que deviam preceder a iminente fundao do quinto, o ltimo, de inspirao divina.
O estudo de Norman Cohn, circunscrito a movimentos milenaristas que
despontaram no norte da Europa ao longo da Idade Mdia, por de mais esclarecedor
quanto s potencialidades revolucionrias da interpretao literal da profecia
atribuda a So Joo. De 431 em diante, isto , aps o Conclio de feso, a crena no
milnio inspirar, sobretudo, sentimentos religiosos populares e ser devidamente
explorada e utilizada por auto-proclamados profetas iluminados e guias messinicos
como eficaz expediente ideolgico para animar prticas religiosas heterodoxas, ergo
herticas, e conduzir revoltas sociais protagonizadas pelas famintas e crdulas legies
de pobres a quem fora prometido, pelo Cristo-Redentor, o reino dos cus. No de
estranhar, portanto, que a teologia escolstica medieval, com S. Toms de Aquino
(1224/25-1274) cabea, tenha reiteradamente reprovado qualquer veleidade de
explicar o curso da histria humana com base em interpretaes profticas,
incentivando, antes, a auto-vigilncia ideolgica contra qualquer insidiosa irrupo
mental utpica-quilistica.
Mas o esprito da utopia no aprisionvel e sopra quando e donde menos se
espera. No fim do sculo XII, o monge cisterciense Joaquim abade do mosteiro de
Curazzo, na Calbria, onde nascera em 1135, e fundador, em Fiore, de um mosteiro e
de uma ordem monstica que perdurou at 1570 formulou, a partir do intenso
estudo das Escrituras, e com o benefcio de vrias iluminaes espirituais, uma leitura
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salvfica e proftica-utpica da histria da humanidade. E f-lo sob o estmulo e com
o prprio beneplcito do Papa Lucius III, dentro do corpo institucional e doutrinal da
Ecclesia Romana, de que era devoto insuspeito, sem nunca ter sofrido, ao longo de
toda a sua vida, a reprovao e o estigma da prtica de heresia.
sua maneira, Joaquim de Fiore foi uma espcie de filsofo da histria
empenhado em subministrar um sentido lgico e uma explicao coerente do curso
temporal do mundo. Para tal, fundou toda a sua teoria acerca do significado do devir
histrico num princpio de razo elementar, capaz de discernir o propsito da ordem
passada, presente e futura das coisas humanas. Claro que no sculo XII europeu esse
princpio de razo no podia ser suficiente nem imanente, mas necessariamente
transcendente, induzido da teologia crist e do contedo narrativo da Bblia, do livro
matriz que enformava toda a verdade essencial acerca da histria do mundo, dos
desgnios de Deus e da sua progressiva revelao. Para Joaquim de Fiore,
condicionado que estava pelos "dolos" do seu tempo, a Bblia cannica, a que foi
sendo fixada pelos diferentes conclios, era o livro em que Deus fizera escrever a sua
vontade e feito comunicar a sua una e tridica natureza de Pai, Filho e Esprito Santo,
mas tambm o livro em que cripticamente anunciara um plano de progressiva
iluminao ecumnica que requeria ser decifrado. Nele se continha a smula da
histria do passado espiritual do gnero humano e, simultaneamente, a chave da sua
histria futura, a qual, em ltima anlise, s podia ser coerentemente compreendida e
interpretada luz daquela vontade e daquela natureza divinas.
A histria estaria assim dividida em trs fases ou trs estados (status): o do
Pai, o do Filho e o do Esprito Santo. Cada um destes trs estados dividir-se-ia em
sete perodos (e o nmero sete, que j havia sido utilizado por S. Agostinho para
estabelecer a sua prpria cronologia do mundo, tem o seu fundamento bblico por
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analogia com os sete dias da Criao), os aetates, cada um deles designado pelo
nome de uma personagem clebre da histria sagrada.
discordante e impura vida activa estaria, portanto, para suceder a
concordante e pura vida contemplativa praticada pelo novo homem espiritual, um ser
de sabedoria e paz, sintonizado com a recta lei de Deus e liberto da servido das ms
inclinaes. peremptria a convico de Joaquim acerca do futuro estado do
homem, quando afirma: "Ns no seremos o que fomos, mas principiaremos a ser
outros".
afinal uma convico fidesta no compassado e benigno devir da histria,
na ascenso faseada da humanidade em direco ao bem e felicidade teleolgicas,
que, margem da doutrina oficial da igreja romana de raiz agostiniana e de
essncia tomista , despertou e legitimou as expectativas de mudana e as
movimentao sociais dos deserdados ao longo da Idade Mdia. Mas tambm uma
convico que viria ulteriormente a secularizar-se em teorias de emancipao social e
em filosofias do progresso, anunciadoras de um tempo ltimo e perfeito da durao
da histria, e que, entre muitas outras concepes postuladas pelos livres-pensadores
do sculo XVIII e XIX, vo desde a representao do estado da religio positivista de
August Comte comunidade fraternal de Robert Owen, sociedade comunista
esboada por Karl Marx, passando pelo projectado estado Prussiano de Hegel a
consumao acabada da Ideia absoluta (Ideia, que o princpio hegeliano de
explicao da objectivao do mundo).
No Portugal de seiscentos, a tese proftica-utpica da quinta monarquia,
inspirada em fontes bblicas, teve, como se sabe, na pessoa do padre jesuta Antnio
Vieira (1608-1697) um dos seus mais estrnuos defensores. Mas no foi o nico. No
sculo XVII, a conjuntura ideolgica, poltica e social do nosso pas foi
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particularmente propcia a sondagens visionrias sobre o devir da ptria e do mundo.
As posies proftica-milenaristas de teor lusocntrico que se divulgaram e
propagaram em Portugal, sobretudo nos decnios que decorreram entre 1630 e 1670,
isto durante o perodo que mediou entre o crescendo da expectativa popular da
restaurao e a fase da reconsolidao da soberania nacional, caracterizaram-se pela
irrupo mais ou menos generalizada duma eufrica esperana messinica-
nacionalista e por aquela voltagem ideolgica revolucionria indutora de utopismo -
j registada, por exemplo, na Crnica de D. Joo I de Ferno Lopes.
Sendo o milenarismo do jesuta portugus de tipo hermenutico,
essencialmente derivado da leitura da Bblia, no que concerne s condies do
advento ou instaurao do reino de mil anos dos santos (portugueses), ele aguardava
por uma resoluo final da histria que nitidamente pressupunha uma interveno
transcendente, providencial - na qual o Papa, o monarca e o povo portugueses
desempenhariam um papel instrumental decisivo - e que daria incio idade de mil
anos profetizada no Apocalipse.
Como fervoroso catlico que era, Vieira procurou conformar o seu
milenarismo utpico aos dogmas da Igreja, conformidade difcil de ser dialectizada e
sustentada num sculo fortemente marcado pela intolerncia entre diferentes credos
religiosos e particularmente feroz na perseguio movida aos judeus. Do ponto de
vista eminentemente religioso, Vieira parece, portanto, conceber o quinto Imprio
como sendo doutrinalmente uno, unidade no imposta, voluntariamente reconhecida
pela revelao universal da suprema verdade na pessoa de Cristo, mas permevel
diversidade de culto. Do ponto de vista existencial seria um estado caracterizado pela
pr-libao das glrias futuras, governado pelas leis fsicas da vida temporal, uma
espcie de condio ontolgica refundida, digamos assim, um preldio terrestre da
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eterna bem-aventurana, no qual, os homens, conhecendo finalmente uma paz
perptua de mil anos, viveriam saudveis e dotados de uma longevidade excepcional:
entregues s suas actividades normais, pratic-las-iam de modo fraterno e santificado.
Num apontamento que Vieira deixou incompleto e que foi recentemente editado, em
apndice, na Apologia das Coisas Profetizadas pode ler-se: " A 1 felicidade
temporal deste bem-aventurado Reino ser aquela sem a qual nenhuma outra se pode
chamar verdadeira felicidade, e a qual em si mesma abraa todas ou quase todas as
que se podem gozar nesta vida, que a paz. Haver paz Universal em todo o mundo,
cessaro as guerras e armas em todas as naes e ento se cumpriro inteiramente as
profecias to multiplicadas em todos os profetas to variamente explicadas pelos
expositores, e nunca bastantemente entendidas" (Vieira 1994: 287). Essa paz
promoveria uma tal revoluo de hbitos, seria acompanhada por uma tal mudana
no esprito da vida, que na terra ver-se-ia cumprida finalmente a profecia de Isaas
que refere a convivncia do lobo com o cordeiro.
No contexto da cultura literria portuguesa do sculo XX, Fernando Pessoa
(1888-1935) retomou com impressionante vigor e com consciente deliberao a
utopia-proftica-milenarista (ou, nas suas palavras, o mito) do quinto imprio,
requalificando o seu contedo, alijando-o das suas mais imediatas implicaes
bblico-teolgicas e procurando fundament-lo no como mera possibilidade formal,
mas como possibilidade objectivamente real. semelhana de Vieira, tambm
Pessoa recorda para demonstrar, reprova para desmistificar, lamenta para sublimar,
exorta para estimular, prediz para utopizar. Pessoa, na linha do pensamento de Padre
Antnio Vieira, - e esse o sentido da segunda parte da sua obra potica Mensagem -
recorda ento para demonstrar aquilo que poderamos designar a funo utpica do
conhecimento do "mar portugus", entendido este mar no tanto como uma expresso
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adjectiva da grandeza nacional, mas antes como uma dupla alegoria representativa (i)
das possibilidades reais, das possibilidades possveis - digamos com nfase
pleonstico -, as que conduzem efectiva descoberta do novo, mas tambm (ii) das
possibilidades simblicas de transcendncia do mundo dado, do mundo histrico, o
dos (quatro) imprios materiais. Ora, de entre os cinco nacionais smbolos,
enunciados por Pessoa, que configuram o sonho (utpico) portugus, o segundo tem
por ttulo O Quinto Imprio. Porm mais do que procurar definir ou determinar a
sua possvel natureza, este imprio -nos apresentado como uma imprescindvel
figurao do descontentamento anmico, como uma necessidade lgica ou causa final
da indagao humana, como uma realidade possibilitada pela idealizao activa, anti-
conformista, obreira do desejo profundo ou da viso da alma.
No contexto da cultura portuguesa da segunda metade do sculo XX,
Agostinho da Silva quem recebe e quem magnifica o testemunho da esperana
milenarista, quem prolonga o olhar de um Vieira e de um Pessoa num indefectvel
futuro de jbilo e de apaziguamento existencial trazidos ao mundo pelo concurso,
pelo exemplo ou pelo "sacrifcio" da nao portuguesa. Melhor dizendo, da nao
ideal portuguesa. Daquela que, nas suas grandezas reais/simblicas, mas tambm nas
suas faltas simblicas/reais, Agostinho historiou/mitificou at exausto em escritos
vrios, sempre com o assumido propsito de apresent-la como pea instrumental ou
cifra de um processo csmico que, necessariamente e com o concurso da liberdade
humana, h-de finalizar com a esperada redeno do mundo. Na pura tradio, de
raiz hebraica, proftica-messinica da cultura ocidental, a nao portuguesa, pelo que
fez e deve fazer, pelo que cumpriu e deve continuar a cumprir, vale, tambm, para
Agostinho da Silva, enquanto smbolo de uma esperana ou de um desejo ntimo de
teor escatolgico: a histria, mas tambm a cincia, a filosofia, a literatura, a cultura,
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todas as criaes do esprito humano interessaram-no enquanto frmulas de
demonstrao ou auxiliares de conhecimento e de entendimento para a consumao
desse processo, em que as melhores das idiossincrasias nacionais ou os mais
positivos e significativos eventos da histria de Portugal - dos quais o navegar
bolina pelo mar ignoto e sem fim sob o benefcio e orientao dos astros, o descobrir
novas linhas do horizonte, o ligar e religar continentes separados, o unir e casar
gentes e culturas distantes e desconhecidas entre si - configuram, pelo seu valor de
revelao e de reconstituio planetria da ideia-utpica-limite-da-unidade-essencial-
do-ser, o acontecimento simblico supremo. este Portugal de vocao messinica e
milenarista, o Portugal do mito e o da utopia, ou talvez, em expresso mais ousada, o
do mito utpico, e no o Portugal da ideologia e da histria poltica, este Portugal
inspirado pela fora do mistrio e pelo jogo da descoberta, e no o Portugal agitado
pela ambio do domnio e pelo jogo do poder imperial, este Portugal do ser e no
o Portugal do ter, este Portugal de esperana, de viso, de irmandade, de sacrifcio
voluntrio e silencioso, representado por figuras-modelo como o rei poeta D. Dinis e
a Rainha santa Dona Isabel - (acolhendo no reino os franciscanos espirituais,
discpulos de Joaquim de Fiore e propagadores do culto do Esprito Santo) -, mas
tambm representado pelo Infante Santo - (expiando e redimindo, com o seu
martrio, o maquiavelismo palaciano que trocou a razo de estado pelo amor fraterno,
i.e. que trocou a preservao das fronteiras contingentes e limitadoras do imprio
material pela fidelidade infinita liberdade do imprio do esprito) -, representado
por Lus de Cames - (escrevendo sobre a Ilha dos Amores, e tomando-a no tanto
como prmio da viagem ndia, mas antes como amostra de uma condio
nostlgica-oracular, a do paraso a reaver) -, representada por Ferno Mendes Pinto -
(o peregrino da aventura e da efabulao, de polimorfa identidade circunstancial,
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vivendo segundo a 'metafsica do imprevisvel' em permanente estado de espanto e
de superao da adversidade) -, este Portugal, o do Vieira e o do Pessoa, profetas
do V Imprio - (transcendendo a "apagada, austera e vil tristeza", como diz o verso
camoniano, dos tempos de medocre desvitalizao e asfixiante represso em que
viveram, e apontando, por diferentes vias hermenuticas, outras possibilidades de
ser) -, mas tambm o Portugal dos municpios, dos baldios, da boda comunitria, das
festas do Pentecostes, das cortes consultivas, da governao democrtica e popular,
da partilha pelos homens-bons da administrao das coisas pblicas, das descobertas
geogrficas, da fruio positiva, aventurosa e contemplativa da vida, este Portugal
ideal, disseminando-se pelos diferentes continentes ao longo dos sculos,
sobrevivendo mais como lngua sem fronteiras do que ptria ou ptrias confinadas
geografia do seu territrio, tudo isto que, no essencial, constitui o ncleo da
identidade nacional prefigurador da ideia do V imprio de Agostinho da Silva. A
histria de Portugal, melhor dizendo, uma certa histria de Portugal, mais
assumidamente mtica do que real, opera como uma espcie de mnada prospectiva
ou esboo da utopia do V imprio no pensamento de Agostinho, o qual confere,
semelhana de Pessoa, maior valor de conhecimento lgica do mito - tomado como
smula de uma verdade perene e desejada -, do que metodologia da histria -
entendida como especioso e, em ltima anlise, subjectivo processo de reconstituio
de uma irreconstituvel objectividade dos factos pretritos.
O seu texto Considerando o Quinto-Imprio (1960) uma espcie de guia
ou manual de instrues para os adeptos desse projecto, escrito no esprito mais
espiritualmente empenhado do seu autor e onde se pode ler, como o eco de uma regra
monstica, uma sistemtica de princpios gerais de organizao social e de aco
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potencializadora da vocao de perfectibilidade e de transcendncia do ser humano.
A escreve Agostinho.
Teremos como ideal de governo o no haver governo, como o no havia no
Paraso, e a toda a Histria veremos como a lenta e segura preparao, no pela
sabedoria do homem , mas pela pacincia e a tenacidade de Deus, para que, passando
por cima de todas as teocracias e de todas as aristocracias e de todas as democracias,
cheguemos quela tambm soluo da antinomia governante-governado.
Teremos como ideal de economia o no haver economia, como no a havia
no Paraso, sendo apenas dever de cada um o florir como pode e direito de cada um o
encontrar o que precisa: destruamos tambm aqui a antinomia de produtor e
consumidor, de liberdade e segurana.
Teremos como ideal de gente aqueles em que tambm se tiver destrudo a
antinomia de criana e de adulto, de ignorante e de sbio, de homem e de mulher;
esperemos que no Quinto Imprio no haja nem escolas nem livros nem casamentos:
como no Cu.
E teremos, finalmente, como ideal de pensar, donde tudo arranca, a fuso
plena de sujeito e objecto um no-pensar. Para o pr em termos mais ou menos
teolgicos, queremos ver do Pai e do Filho, o lao do Esprito que os une: ou de, na
realidade, nos absorvermos na inconscincia dele. O que novamente traria a terreiro,
desta vez sem heresia, o velho Joaquim de Flora, e seu Reino do Esprito-Santo e seu
Imprio da Flor-de-Lis" (Silva 1989: 197-200).
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