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ANAIS DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO DA PUC-CAMPINAS
Colóquio
Giorgio Agamben,
Religião e Política
Campinas, 7 a 11 de maio de 2018
CADERNO DE COMUNICAÇÕES ORAIS
Realização
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião (PPGCR) – PUC-Campinas
Grupo de Pesquisa: Ética, Política e Religião: questões de fundamentação
Apoio
COMITÊ CIENTÍFICO
Prof. Dr. Alex Vilas Boas Oliveira Mariano (PUC-PR)
Profa. Dra. Ana Rosa Cloclet da Silva (PUC-CAMPINAS)
Prof. Dr. Breno Martins Campos (PUC-CAMPINAS)
Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro (PUC-CAMPINAS)
Prof. Dr. Douglas F. Barros (PUC-CAMPINAS)
Prof. Dr. Eli Vagner Francisco Rodrigues (UNESP)
Prof. Dr. Emerson José Sena da Silveira (UFJF)
Prof. Dr. Glauco Barsalini (PUC-CAMPINAS)
Prof. Dr. Oswaldo Giacoia Junior (UNICAMP)
Prof. Dr. Renato Kirchner (PUC-CAMPINAS)
Prof. Dr. Rodrigo Coppe Caldeira (PUC-Minas)
COMISSÃO ORGANIZADORA
Profa. Dra. Ana Rosa Cloclet da Silva (PUC-CAMPINAS)
Aretha Beatriz Brito da Rocha (mestranda) (PUC-CAMPINAS)
Prof. Dr. Breno Martins Campos (PUC-CAMPINAS)
Profa. Cristina Micaroni Hilkner Altieri (PUC-CAMPINAS)
Prof. Dr. Douglas F. Barros (PUC-CAMPINAS)
Fábio Gonzaga Gesueli (mestrando) (PUC-CAMPINAS)
Prof. Dr. Glauco Barsalini (PUC-CAMPINAS)
Jéssica Zaramella (graduanda) (PUC-CAMPINAS)
Mariana Pfister (mestranda) (PUC-CAMPINAS)
Patrícia A. de Almeida (mestranda) (PUC-CAMPINAS)
Prof. Dr. Renato Kirchner (PUC-CAMPINAS)
SUMÁRIO
Apresentação .................................................................................................................. 4
Programação do evento .................................................................................................. 6
A crítica da multidão: Pensando a política a partir de Kierkegaard (Carlos Campêlo
da Silva) ................................................................................................................... 8
A experiência religiosa do apóstolo Paulo à luz da psicologia analítica de Carl Gustav
Jung (Edilza Rodrigues Campêlo da Silva) ...................................................................... 13
A ética cristã anunciada por Michel Foucault (Fábio Gonzaga Gesueli) ....................... 18
Política e teologia pública: aspectos da relação entre religião e espaço público
(Jefferson Zeferino) ....................................................................................................... 23
O pai, o filho e o espírito da lei: uma proposta de leitura acerca da presença da
Autoridade em Brief an den Vater de Franz Kafka (Lucas Carvalho Lima Teixeira) ...... 28
Heidegger, leitor das cartas paulinas: a ênfase na dinâmica de mundo (Luís Gabriel
Provinciatto) .................................................................................................................. 37
Crítica do dispositivo da vontade (Marcelo Hanser Saraiva) ......................................... 43
Jean-Paul Sartre and Giorgio Agamben in dialogue: rethinking the sovereign exception
as the death of god (Marcos Antonio Norris) ............................................................... 50
Interfaces entre as virtudes babilônicas de Boris Gunjevic e o projeto de ética mundial
de Hans Küng (Maria Liliane Oliveira do Nascimento) ................................................... 58
Schmitt e Peterson: um debate acerca da teologia política (Mariana Pfister) ............. 64
Povo sem raiz: o totalitarismo e as “origens” do homo sacer (Patrícia A. de Almeida) ..... 70
A pertinência da teologia política: uma análise comparativa dos textos de Claude
Lefort, Slavoj Zizek e Boris Gunjevic (Pedro Barbosa Lima Junior) ................................ 75
Forma-de-vida franciscana e renúncia ao direito: o estado de necessidade como
exceção ao estado de direito (Ricardo Evandro S. Martins) .......................................... 87
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Anais do PPGCR (PUC-Campinas), Campinas, v. 1, n. 1, p. 1-92, jan.-jun. 2018
APRESENTAÇÃO
O Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da PUC-Campinas e o
Grupo de Pesquisa Ética, Política e Religião: questões de fundamentação (CNPq)1
receberam, nos dias 7 a 11/05/2018, o Professor Colby Dickinson (Loyola University
Chicago) para uma série de atividades acadêmicas na PUC-Campinas, dentre elas a
oferta da disciplina Tópicos Especiais em Ciências da Religião: Religião e Política na
perspectiva de Giorgio Agamben, além de Reuniões Científicas e sessões de discussão
sobre pesquisas com colegas convidados.
Os temas ali debatidos compõem um programa de estudos desenvolvido pelo
referido Grupo de Pesquisa nos últimos cinco anos, cujos resultados dialogam com as
produções dos demais Grupos de Pesquisa vinculados ao mesmo Programa: Ética,
Epistemologia e Religião, História das Religiões e Religiosidades no Brasil e Religião,
Linguagem e Cultura; e, também, com Grupos de Pesquisa conectados com outras IES,
como o CRIm (Crítica e Modernidade), o Continental Philosophy of Religion, Bioética e
Direitos Humanos, além de pesquisadores da UMESP, PUC-MG, UFJF, UNIVEM, UNESP e
PUC-PR.
O material que se segue abaixo expressa parte das discussões realizadas no
evento, na forma de comunicações expostas nas Reuniões Científicas.
O curso ministrado pelo Professor Dickinson resultará, também, na produção
de um livro, que contará com a participação de diversos colegas pesquisadores,
especialistas em Giorgio Agamben e estudiosos de Teologia Política.
Agradecemos imensamente a todos os que colaboraram para a realização deste
evento, que marcou de forma muito positiva e significativa o Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião da PUC-Campinas.
Expressamos especial agradecimento aos Professores Oswaldo Giacoia Junior,
Claudio de Oliveira Ribeiro, Alex Vilas Boas, Caio Henrique Lopes Ramiro, aos membros
1 Ligado ao PPG em Ciências da Religião da PUC-Campinas, linha de pesquisa “Fenômeno Religioso: Dimensões Epistemológicas”.
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do Comitê Científico, da Comissão Organizadora, ao CNPq, à FAPESP e à PUC-Campinas,
pelo inestimável apoio que deram para a realização desse evento.
O conteúdo dos textos reunidos nestes Anais são de inteira responsabilidade
dos respectivos autores.
Boa leitura!
Professor Renato Kirchner
(Coordenador do PPGCR e docente do PPGCR e
da Faculdade de Filosofia da PUC-Campinas)
Professor Douglas Ferreira Barros
(Grupo de Pesquisa Ética, Política e Religião: questões de fundamentação e
docente do PPGCR e da Faculdade de Filosofia da PUC-Campinas)
Professor Glauco Barsalini
(Grupo de Pesquisa Ética, Política e Religião: questões de fundamentação e
docente do PPGCR e da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-Campinas)
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Anais do PPGCR (PUC-Campinas), Campinas, v. 1, n. 1, p. 1-92, jan.-jun. 2018
PROGRAMAÇÃO DO CURSO
E DAS REUNIÕES CIENTÍFICAS
Curso (Disciplina)
“TEMAS ESPECIAIS NAS CIÊNCIAS DE RELIGIÃO: religião e política na perspectiva de
Giorgio Agamben”
Prof. Dr. Colby Dickinson
1.1 Dia 07/05/2018
14:00-18:00 horas: O projeto Homo Sacer e suas implicações religiosas e políticas
Ementa: Esta sessão centrou-se nas principais implicações da série Homo Sacer de
Agamben, incluindo suas reformulações de sacralidade, profanação, sacramentos, posse
/ uso, messianismo, ritual e liturgia e a falência da representação.
1.2 Dia 08/05/2018
14:00-18:00 horas: A leitura de Giorgio Agamben sobre São Paulo (São Paulo)
Ementa: Esta sessão se concentrou na releitura provocadora de Agamben da carta de
São Paulo aos romanos e à reformulação do messianismo de Paulo como um possível
momento de pensamento dialético negativo (a “divisão de divisão” em si) na história da
filosofia.
1.3 Dia 09/05/2018
14:00-18:00 horas: Agamben, Aristóteles e o problema da “potência”
Ementa: Esta sessão explorou as muitas intervenções de Agamben nos dualismos
metafísicos (aristotélicos) que orientam o pensamento filosófico, político e teológico
ocidental, incluindo as divisões entre atualidade / potencialidade, autoridade / poder,
necessidade / contingência, transcendência / imanência e assim por diante.
1.4 Dia 10/05/2018
13:00-18:00 horas: Em diálogo com Martin Heidegger: Explorando o conceito de “The
Open” (“O aberto”)
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Anais do PPGCR (PUC-Campinas), Campinas, v. 1, n. 1, p. 1-92, jan.-jun. 2018
Ementa: Esta sessão investigou a relação entre animalidade, humanidade e divindade
que se torna visívei no diálogo entre o trabalho de Heidegger e as interpretações de
Agamben.
2. Reuniões Científicas
2.1 Reunião Científica dos Grupos de Pesquisa PPGCR PUC-Campinas
Dia 11/05/2018
14:00-18:00 horas: Luzes sobre o contemporâneo: o pensamento de Giorgio Agamben
nos contextos de globalização, economia, religião, política e violência
Prof. Dr. Colby Dickinson
Participações: Prof. Dr. Renato Kirchner, Prof. Dr. Douglas Ferreira Barros, Prof. Dr.
Glauco Barsalini
Ementa: Esta sessão examinou as muitas proposições que o pensamento de Agamben
nos faz revisitar hoje, incluindo suas reformulações significativas da relação entre
política e religião, revelando a relação oculta entre economia e teologia e a busca de
uma forma de violência “divina” que dissolva as formas atuais de guerra civil globalizada.
2.2 Reunião Científica entre Pós-Graduados do PPGCR PUC-Campinas, Departamento
de Teologia da LOYOLA UNIVERSITY, PPGCR UMESP e Departamento de Filosofia da
UNICAMP
Dia 08/05/2018 / 9:00-12:00 horas
Coordenação dos debates: Kimberly Matheson Berkey (Departamento de Teologia
Loyola University Chicago); Mariana Pfister (Grupo de Pesquisa Ética, Política e Religião:
questões de fundamentação – PPGCR PUC-Campinas); Daniel Sousa (PPGCR UMESP);
Marcelo Hansen Saraiva (Grupo de Pesquisa CriM – Programa de Pós-Graduação em
Filosofia UNICAMP)
Ementa: Comunicações das pequisas realizadas pelos mestrandos e doutorandos do
Departamento de Teologia da Loyola University Chicago, PPGCR PUC-Campinas, PPGCR
UMESP e Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNICAMP. Exposição comentada
de pôsteres relativos às pesquisas de graduandos da PUC-Campinas.
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A CRÍTICA DA MULTIDÃO: PENSANDO A POLÍTICA A
PARTIR DE KIERKEGAARD
Carlos Campêlo da Silva
(Mestre em Ciências da Religião, PUC-CAMPINAS)
1. A crítica da multidão
Em 1848 a Dinamarca vivia um período de problemas políticos e agitação social.
Após uma curta guerra contra a Alemanha, o país perdeu partes de seu território (o
Slesvig e o Holstein). E, além disso, mais de dez mil pessoas foram se manifestar em
frente ao palácio do Rei pedindo um governo parlamentar. Kierkegaard, que seguia
atentamente tais acontecimentos, fez a seguinte anotação em seu Diário:
E eis-me tranquilamente sentado, em minha casa. Fora, tudo é agitação, todo
o povo é percorrido por uma vaga de nacionalismo; cada um fala em sacrificar
a sua vida e o seu sangue, cada qual está disposto a isso, mas levado pela
onipotência da opinião. E eu permaneço sentado na calma do meu quarto
(depressa hão de denunciar, sem dúvida a minha indiferença à causa da
nação). [...] Tal é a minha vida, sempre incompreendida [...] (KIERKEGAARD
apud BRUN, 2002, p. 14-15).
Será que Kierkegaard, de fato, deve ser acusado de indiferença a causa da
nação? Ou será que outras acusações mais devem pesar sobre o filósofo? Tais como a
de subjetivista e isolacionista, acusações que lhe são frequentes, uma vez que o autor
do Post-scriptum (1846) afirmou: “A subjetividade é a verdade”. De acordo com Brun
(2002, p. 15), seria um grosseiro contra-senso ver, nas páginas que o filósofo dedicou ao
indivíduo, uma apologia egoísta do individualismo mais mesquinho. “O fato é que ele
sentia o caráter sagrado da pessoa humana e percebia que este logo viria a ser uma
noção perimida por sistemas filosófico-políticos”.
É por essa razão, que Kierkegaard é crítico aos movimentos revolucionários de
cunho socialista, no entender do filósofo, tais movimentos não enxergam a importância
do indivíduo. Porém, Kierkegaard observa que o cristianismo concorda com o socialismo
acerca do fato de que todos os homens são iguais. Entretanto, na concepção cristã, há
um Deus que é inteiramente outro de todos os iguais (DE PAULA, 2016, p. 166):
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Anais do PPGCR (PUC-Campinas), Campinas, v. 1, n. 1, p. 1-92, jan.-jun. 2018
No nosso país e noutras partes, os comunistas lutam pelos direitos do
homem. Muito bem, também eu. É precisamente por isso que combato o
medo do homem. O comunismo terá como resultado, quando muito a tirania
exercida pelo medo do homem (vede como nesse momento a França sofre
com isso); é precisamente aqui que começa o cristianismo. A questão à volta
da qual o comunismo faz tanto barulho é considerada pelo cristianismo como
evidente: todos os homens são iguais diante de Deus, portanto,
essencialmente iguais. Mas o cristianismo estremece diante da abominação
que pretende abolir Deus e pôr no Seu lugar o medo da multidão, da maioria,
do povo, do público (KIERKEGAARD apud BRUN, 2002, p. 15).
As concepções políticas sejam elas conservadoras ou revolucionárias, sempre
privilegiam o número e a opinião. O culto do número e da opinião representa, desde a
Grécia antiga, o fim do indivíduo (DE PAULA, 2016, p. 166). Kierkegaard opõe-se a essa
dissolução do indivíduo na massa, opõe-se a essas escamoteações que querem fazer-
nos acreditar que a massa encarna a voz de Deus. É preciso, portanto recordar, que foi
a multidão que gritou para Pôncio Pilatos: “Crucifica-o!” (BRUN, 2002, p. 14).
O cristianismo não nos manda amar a multidão, [...] o cristianismo pede-nos
para amar o nosso próximo, isto é, cada homem (BRUN, 2002, p. 14). Desse modo, é o
conceito de próximo que Kierkegaard irá explorar, especialmente nas Obras do amor,
publicada em 1847. Nela, o pensador dinamarquês desenvolve uma proposta de ética
cristã baseada no valor evangélico do amor ao próximo (DE PAULA, 2016, p. 166).
2. O amor ao próximo
Segundo Álvaro Valls (2000, p. 119), o título As obras do amor (1847) possui
uma dupla origem, ele é inspirado tanto no Banquete platônico, quanto no Cristianismo.
No Banquete, Sócrates se queixa que a combinação prévia era louvarem o deus Éros,
mas em vez disso, os debatedores se restringiram a expor “as obras do amor efetuadas
no coração dos mortais”, isto é, em vez de elogiarem o próprio amor (Éros), eles
discursavam sobre suas obras, os seus feitos. No caso do amor cristão falar das obras do
amor está inteiramente correto, tendo em vista que ele é um mistério que só pode ser
reconhecido através de seus frutos, das obras (VALLS, 2007, p. 7). Desse modo,
Kierkegaard abre a sua obra afirmando que: “são ‘considerações cristãs’, por isso não
sobre ‘o amor’, mas sim sobre ‘as obras do amor’” (KIERKEGAARD, 1847/2007, p. 17).
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Anais do PPGCR (PUC-Campinas), Campinas, v. 1, n. 1, p. 1-92, jan.-jun. 2018
Percebe-se logo de início a dimensão pragmática dessa obra. O livro trata sobre
o dever de amar e, portanto, não de algo que deve apenas ser estudado, mas de algo
que deve ser vivido na prática (VALLS, 2007, p. 13). O amor cristão tem uma
característica paradoxal, uma vez que ele não pode ser visto, mas somente suas obras.
No primeiro capítulo, o filósofo irá afirmar: “Se tivesse razão aquela sagacidade
presunçosa, orgulhosa de não ser enganada, ao achar que não se deve crer em nada que
não se possa ver com seus olhos sensíveis, então em primeiríssimo lugar dever-se-ia
deixar de crer no amor” (KIERKEGAARD, 1847/2007, p. 19). Mas, se por um lado é
preciso crer no amor, já que não podemos vê-lo, por outro lado as suas obras podem
ser reconhecidas. E tais obras sempre levarão em consideração o próximo. E nós, como
o fariseu da parábola poderemos ainda perguntar: quem é o meu próximo? E a resposta,
encontramos na própria parábola:
E, respondendo Jesus, disse: um certo homem descia de Jerusalém para
Jericó, e caiu entre ladrões, os quais o despojaram e o feriram, e partiram,
deixando-o quase morto. E, por acaso, descia pelo mesmo caminho um certo
sacerdote; e quando ele o viu passou pelo outro lado. E assim também um
levita, quando chegou ao lugar e o viu, ele passou pelo outro lado. Mas um
certo samaritano, estando de viagem, chegou até ele; e, vendo-o, teve
compaixão dele. E, aproximando-se dele, atou-lhe as feridas, derramando
nelas azeite e vinho, e, pondo-o sobre seu próprio animal, levou-o para uma
hospedaria e cuidou dele. E, no dia seguinte, partindo, ele tirou dois denários,
e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: cuida dele, e tudo o que de mais gastares,
na minha volta eu te pagarei. Ora qual destes três te parece que foi o próximo
daquele que caiu entre ladrões? E ele disse: o que mostrou misericórdia para
com ele. Então, disse Jesus: vai, e faze do mesmo modo (Lc 10,30-37).
Por meio dessa parábola Cristo deixa claro quem é o próximo, ou seja, o
próximo é aquele que está mais próximo de ti do que todos os outros:
[...] contudo não no sentido de uma predileção; pois amar aquele que no
sentido da predileção está mais próximo de mim do que todos os outros é
amor de si próprio “não fazem também o mesmo os pagãos?” O próximo está
então mais próximo de ti do que todos os outros (KIERKEGAARD, 1847/2007,
p. 36).
Ao refletir sobre a parábola do Bom Samaritano, Kierkegaard afirma que não é
difícil reconhecer o próximo. Uma vez que a indagação de Cristo ao Fariseu: “qual destes
três te parece que foi o próximo daquele que caiu entre ladrões?” e a resposta correta
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do Fariseu: “o que mostrou misericórdia para com ele” mostra que o Fariseu estava
consciente do seu dever, portanto afirma Kierkegaard: “ao reconhecer o teu dever tu
descobres facilmente quem é o teu próximo” (KIERKEGAARD, 1847/2007, p. 37). Ainda
segundo o pensador dinamarquês: “escolher um amado, achar um amigo, sim, isto
constitui um trabalho exaustivo; porém o próximo é fácil de conhecer, fácil de encontrar,
basta que se queira mesmo reconhecer o seu próprio dever” (KIERKEGAARD,
1847/2007, p. 38).
O próximo, é, segundo Kierkegaard, “o termo de uma verdade absoluta que
exprime a igualdade humana; se cada um amasse verdadeiramente o próximo como a
si mesmo, ter-se-ia incondicionalmente atingido a perfeita igualdade humana”, pois,
“quem ama verdadeiramente o próximo exprime incondicionalmente a igualdade
humana” (KIERKEGAARD, 1859/2002, p. 117). Desse modo, de acordo com Kierkegaard,
o religioso realizaria os sonhos da política, porém alerta-nos:
[Eu] nunca li na Escritura este mandamento: amarás a multidão; e menos
ainda este: na vida ética e religiosa, reconhecerás a multidão como o tribunal
da verdade. Mas, claro está, amar o próximo é renunciar a si; amar a multidão
ou fingir amá-la é fazer dela tribunal da verdade; este caminho conduz
sempre a obtenção de poder e a todas espécies de vantagens temporais e
mundanas – e é ao mesmo tempo a mentira; porque a multidão é a mentira
(KIERKEGAARD, 1859/2002, p. 117).
Desse modo, a proposta política que se pode depreender das reflexões de
Kierkegaard é, de certa forma, contrária a tudo que até então, denomina-se sob este
termo. “Sua proposta é recuperar o tema do amor ao próximo, que é um indivíduo
concreto e determinado. O intuito é alertar os homens para que ainda que eles vivam
em agrupamentos, nunca abram mão de suas individualidades” (DE PAULA, 2016, p.
168).
Referências
Bíblia Sagrada (Versão King James fiel 1611). Niteroi: BV Books, 2015.
BRUN, Jean. Introdução. In: KIERKEGAARD, Søren. Ponto de vista explicativo da minha
obra de escritor (Dois tratados ético-religiosos e O Indivíduo). Tradução João Gama.
Lisboa: Edições 70, 2002.
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Anais do PPGCR (PUC-Campinas), Campinas, v. 1, n. 1, p. 1-92, jan.-jun. 2018
DE PAULA, Márcio Gimenes. A kênosis entre o sagrado e o prafano: a política e a
secularização em Kierkegaard e seu diálogo com algumas teses de Vattimo. In: DE
PAULA, Márcio Gimenes. Kierkegaard em diálogo com a tradição filosófica. São Paulo:
Intermeios, 2016.
KIERKEGAARD, Søren. As obras do amor. Tradução Álvaro L. M. Valls. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2007.
___________. Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor (Dois tratados ético-
religiosos e O Indivíduo). Tradução João Gama. Lisboa: Edições 70, 2002.
LE BLANC, Charles. Kierkegaard. Tradução Maria Appenzeller. São Paulo: Estação
Liberdade, 2003.
VALLS, Álvaro L. M. Apresentação. In: As obras do amor. Tradução Álvaro L. M. Valls.
Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2007.
__________. Sobre o dever de amar. In: VALLS, Álvaro L. M. Entre Sócrates e Cristo:
ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
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A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA DO APÓSTOLO PAULO À LUZ
DA PSICOLOGIA ANALÍTICA DE CARL GUSTAV JUNG
Edilza Rodrigues Campêlo da Silva
(Mestranda em Ciências da Religião, PUC-CAMPINAS)
“Tanto nossa alma, como nosso corpo são compostos de elementos
que já existiam na linhagem dos antepassados. O ‘novo’ na alma
individual é uma recombinação, variável do infinito, de componentes
extremamente antigos”.
Carl Gustav Jung
Desde a sua origem, existe em cada ser humano um sentimento de totalidade
que está relacionado com a essência de cada indivíduo. A este sentimento Jung
denominou de Self (si-mesmo), descrevendo-o como um sentimento poderoso e
completo – a totalidade da psique humana (HENDERSON, 1964/2008, p. 167). No
entanto, o homem moderno tem se afastado cada vez mais da sua essência e de seus
instintos básicos. Mas ainda que, de alguma maneira, tenha se distanciado ou perdido
o contato direto, eles não desapareceram, pois apresentam-se de maneira indireta
(JUNG, 1964/2008 p. 104).
Às vezes, o indivíduo tem a impressão de que seus sonhos e fantasias são
espontâneos e sem conexão. Mas eles geralmente provêm daquilo que Jung
denominou de inconsciente coletivo, ou seja, a parte da psique que retém e transmite
símbolos que fazem parte da herança psicológica comum da humanidade, também
conhecido por símbolos arquetípicos. Sendo assim, os sonhos e fantasias, na maioria
das vezes, apresentam esses símbolos de forma indireta por tratar-se de símbolos
muito antigos, pouco familiares e o homem moderno não consegue compreendê-los e
assimilá-los diretamente (HENDERSON, 1964/2008, p. 138).
É através do processo de individuação que o ser humano passa a compreender
e assimilar os conteúdos arquetípicos do inconsciente coletivo. Tal processo inicia-se
quando se busca a conexão com os conteúdos arquetípicos inconscientes, trazendo-os
à consciência. Para isto, é necessário observar os sonhos e fantasias, buscando
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Anais do PPGCR (PUC-Campinas), Campinas, v. 1, n. 1, p. 1-92, jan.-jun. 2018
compreender os símbolos que neles se apresentam, a relação com os conteúdos
arquetípicos do inconsciente coletivo e a identificação do indivíduo com esses
símbolos.
1. Jung e o processo de individuação
Sendo um dos conceitos centrais da obra de Jung, a individuação pode ser
entendida como um processo pelo qual o consciente e o inconsciente do indivíduo
aprendem a se conhecer, respeitar e completar-se um ao outro (FREEMAN,
1964/2008, p. 11). No entanto, essa harmonização do consciente com o inconsciente,
geralmente inicia-se com uma lesão à personalidade acompanhada de consequente
sofrimento. É como se o indivíduo recebesse um choque inicial, mas nem sempre o
reconhece como tal. Quando não é reconhecido, o indivíduo passa a projetar nas
outras pessoas as suas próprias tendências inconscientes. Essas projeções
obscurecem a visão e destroem a possibilidade de relacionamentos autênticos (VON
FRANZ, 1964/2008, p. 221).
É possível observar tal processo ao analisarmos a experiência do Apóstolo
Paulo. Ao perseguir os cristãos, é como se não conseguisse reconhecer os sinais vindos
do seu inconsciente, então projetava em quem contradizia a sua crença acusando-os e
responsabilizando-os por sua frustração. Conforme ele mesmo menciona em Atos dos
Apóstolos 26, 9-11:
[...] Na verdade, a mim me parecia que muitas coisas devia eu praticar contra
o nome de Jesus, o Nazareno, e assim procedi em Jerusalém. Havendo eu
recebido autorização dos principais sacerdotes, encerrei muitos dos santos
nas prisões e contra estes dava o meu voto, quando os matavam. Muitas
vezes, os castiguei por todas as sinagogas, obrigando-os até a blasfemar. E
demasiadamente enfurecido contra eles, mesmo por cidades estranhas, os
perseguia.
No entanto, no caminho de Damasco, onde pretendia prender e castigar os
cristãos, Paulo foi surpreendido por uma “visão”. Ele, na perspectiva da compreensão
elaborada por Jung, parece ter reconhecido os sinais vindos do seu inconsciente e
percebeu que projetava nos cristãos a sua própria sombra – a tendência ou a
propensão de tornar-se um cristão.
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Anais do PPGCR (PUC-Campinas), Campinas, v. 1, n. 1, p. 1-92, jan.-jun. 2018
O conceito de sombra ocupa lugar vital na psicologia analítica. Jung mostra
que a sombra projetada pelo indivíduo contém os aspectos ocultos e reprimidos da
sua personalidade (HENDERSON, 1962/2008, p. 152,153). No entanto, quando o
indivíduo se conscientiza da própria sombra, fica envergonhado por perceber que está
enxergando no outro as suas próprias tendências e impulsos. Assim, ele entra em um
período de silêncio e afastamento, começando então o processo lento e doloroso de
autoeducação (VON FRANZ, 1964/2008, p. 222-223).
Após a experiência na estrada, Paulo fica cego e é levado até Damasco onde
permaneceu três dias sem comer, nem beber. Nesse período, recebeu a visita de um
discípulo chamado Ananias que, ao impor as mãos sobre ele, caíram-lhe como que
escamas dos olhos e, assim, voltou a enxergar. Também se alimentou e sentiu-se
fortalecido (At 9,8-19). No entanto, após estes acontecimentos, não se aconselhou
com outras pessoas e também não voltou para Jerusalém onde estavam os que foram
discípulos antes dele. Foi para a Arábia e depois voltou para Damasco onde
permaneceu por três anos (Gl 1,17).
Quando alguns sinais vindos do inconsciente tornam-se conscientes, a
pessoa fica muitas vezes impossibilitada de realizar o que pretende. Fica também
incapaz de fazer o que outras pessoas querem que ela faça. Neste período, é
necessário afastar-se de suas relações pessoais, para então encontrar-se. Assim, ao
voltar-se sinceramente para o seu mundo interior, buscando conhecer-se, o Self tende
a emergir e o ego encontrar força interior onde se apresentam todas as possibilidades
de renovação (VON FRANZ, 1964/2008, p. 287-292).
Quando o apóstolo Paulo retornou, já estava despido dos preconceitos
arraigados em sua tradição e apto a vivenciar relacionamentos autênticos. Assim, “[...]
apresenta uma construção de relações e contextos de sentido que consegue elaborar
um vínculo que liga as existências individuais e seus vínculos sociais, o mundo seguro
cotidiano e as experiências de crise, com um plano de realidade transcendente”
(SCHNELLE, 2010 p. 118).
2. Diferença entre individuação e individualismo: o aspecto social do Self
No processo de individuação, que acontece de maneira particular e subjetiva,
a pessoa apreende os sinais orientadores que vêm do Self através dos sonhos e
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fantasias. No entanto, é preciso compreender que individuação não é o mesmo que
individualismo, pois enquanto no processo de individuação a pessoa tende a se tornar
autoconsciente, realizada e capaz de se relacionar socialmente de forma autêntica,
passa a reconhecer e retirar as projeções negativas; a pessoa individualista, por não ser
realizada, comporta-se de maneira egoísta, inautêntica e tende a destruir
relacionamentos através de suas projeções. Segundo Jung (1961/2006, p. 490), “A
individuação não exclui o universo, ela o inclui”.
[...] Como acontece em todo processo interior, é o Self que, em última
instância, ordena e regula nosso relacionamento humano, desde que o ego
consciente se dê ao trabalho de detectar essas projeções irreais, ocupando-
se delas no seu íntimo, e não exteriormente. É assim que pessoas que têm
afinidades espirituais e uma mesma orientação descobrem-se umas às
outras, criando um novo grupo, que se sobrepõe às organizações e
estruturações comuns. Tal grupo não entra em conflito com outros; é
apenas diferente e independente. O processo de individuação
conscientemente realizado transforma, assim, as relações humanas do
indivíduo. Laços de parentesco ou de interesses comuns são substituídos
por um tipo de união diferente, vinda do Self (VON FRANZ, 1964/2008, p.
295).
A possibilidade de relacionamentos autênticos dentro da coletividade que a
pessoa adquire quando passa pelo processo de individuação, provêm dos conteúdos
coletivos da psique humana – conteúdos do inconsciente coletivo (SILVEIRA, 1981, p.
88). Estes conteúdos do inconsciente coletivo, segundo Jung (1961/2006, p. 248),
podem ser encontrados em diversos sistemas religiosos e na transformação de seus
símbolos.
Ao observarmos a experiência religiosa do Apóstolo Paulo do ponto de vista da
psicologia analítica, é possível compreender que quando uma pessoa está ocupada com
suas preocupações cotidianas exteriores e, repentinamente, é tomada por uma
profunda experiência interior, questões inconscientes tornam-se conscientes. Ao
manter-se progressivamente em harmonia com esta experiência, por ser única e
subjetiva, passa a ter uma atitude religiosa genuína (VON FRANZ, 1964/2008, p. 287 e
292). Assim, se o Apóstolo Paulo tivesse continuado em sua tradição com todos os seus
preconceitos, vivendo como um tecelão ambulante, e não tivesse atentado para os
sinais que levaram a mudar o rumo de sua vida, não teria se transformado no homem
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que se tornou. Ele encontrou o verdadeiro sentido da sua existência, ao compreender
que em seu íntimo estava a convicção de que era um mensageiro do Evangelho de Jesus
Cristo. “O mito que se apoderou de São Paulo fez dele algo muito maior do que um mero
artesão” (JUNG, 1964/2008 p. 111-112).
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homem e seus símbolos. Tradução Maria Lúcia Pinto. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1964/2008.
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JUNG, C.G. Chegando ao inconsciente, in: JUNG, C.G. [et al.]. O homem e seus símbolos.
Tradução Maria Lúcia Pinto. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964/2008.
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Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2010.
SILVEIRA, N. Jung: vida e obra. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
VON FRANZ, M.L. O processo de individuação, in: JUNG, C.G. [et al.]. O homem e seus
símbolos. Tradução Maria Lúcia Pinto. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964/2008.
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A ÉTICA CRISTÃ ANUNCIADA POR MICHEL FOUCAULT
Fábio Gonzaga Gesueli
(Mestrando em Ciências da Religião, PUC-CAMPINAS)
Pensando genealogicamente, a partir do que Michel Foucault (2017) elucida em
seu artigo de 1971, “Nietszche, a genealogia e a história”2, toda e qualquer busca acerca
de um acontecimento primário que proponha um sentido original será deixado de lado
em suas análises, dando primazia ao que seriam acontecimentos emergentes e que
ocupam um local de afrontamento no qual certas forças se indispõem e dão espaço para
o surgimento de novas regras e práticas. Para Foucault, a história deve ser vista como
esse conjunto de interpretações. Cabe aqui então, a ressalva de que não se almeja de
maneira alguma fazer-se uma exegese canônica ou esgotar o que se pode ter como
cristianismo primitivo ou cristianismo primário. Foucault (CANDIOTTO & SOUZA, 2012)
resolve essa questão epistemologicamente, quando desenvolve a noção de “forma
cultural”, na qual propõem um movimento em que determinada prática não tem,
inerentemente, uma substancialidade. Ao se pensar sobre à “confissão”, por exemplo,
é possível recorrer a vários momentos históricos no qual a mesma prática cultural possui
uma forma totalmente diferente, mas, que em sua minuciosa análise, irão se conectar
por um fio impecável de familiaridade umas com as outras. Foucault irá conceber a
confissão como uma das formas culturais que tem, em sua dinâmica, a função de ligar o
sujeito à verdade de si próprio. Ou seja, a partir de uma forma cultural presente no
cristianismo pode-se estudar determinadas relações – a do sujeito com a verdade – e a
partir disso extrair pontos de familiaridades com aquelas práticas que seriam frutos de
uma modificação estatutária, constituindo assim uma visão acerca do eixo existente
entre o sujeito e a verdade de si, que funciona como gerador dos “[...] processos de
individualização, subjetivação ou dessubjetivação...” (CANDIOTTO, 2012, p. 17).
A genealogia que Foucault busca fazer a partir de seus estudos sobre o
cristianismo diz respeito ao surgimento nos séculos XVI, XVII e XVIII de uma
governamentalidade do Estado que, pela análise do filósofo, se fundamenta na ótica das
2 Veja-se em FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.
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relações existentes no poder pastoral, prática que Foucault analisa em seu curso de
1978, intitulado Segurança, Território e População. É neste estudo que Foucault irá
discorrer acerca das práticas de condução existentes no modelo do poder pastoral, que
para ele, designam o conjunto de ações adotados em relação ao que se denomina de
governo das almas. O pastor deve governar o rebanho como um todo e a cada ovelha
por si própria. Ou seja, o bom pastor é aquele que pode governar a todas, mas tem um
saber individualizado de cada qual, o que irá possibilitar que pelo ato de sua condução
nenhuma ovelha seja deixada para trás. Esse pastor, basicamente, opera pelo que
Foucault (2008) chama de omnes et singulatim, todos e cada um. Busca-se nesse modelo
que o indivíduo seja dócil e útil, o que é característico do poder disciplinar. Mas é com a
leitura dos cursos Do Governo dos Vivos (1980) e A hermenêutica do sujeito (1982) que
vemos irromper em Foucault um deslocamento que nos leva além do poder disciplinar.
Não se trata de dizer que o caráter disciplinador e formador do poder se dissolve, mas,
sim, que os dispositivos de controle que exercem esse poder são reformulados e obtém
uma nova dinâmica de funcionamento. Caso o exercício de poder “[...] não fizesse outra
coisa a não ser dizer não...” (FOUCAULT, 2017, p. 44) não seria possível governar e ter a
condição de obediência daqueles que se prostram a obedecer ao poder. O poder se
apresenta como um saber, e saber esse que é referente ao que se dá por verdade.
Esse novo funcionamento diz respeito ao que Foucault denomina como regimes
de verdade, que seriam conjuntos de dispositivos nos quais o sujeito tem a possibilidade
de encontrar a verdade de si próprio, de atestar a verdade por si próprio, como uma
aleturgia. O sujeito é levado a produzir atos verdadeiros, ou mais precisamente
categorizado “quer dizer, os atos refletidos de verdade” (FOUCAULT, 2014a, p. 76, grifo
nosso). E no cristianismo primitivo existe um regime de verdade, que Foucault exprime
minuciosamente e discorre sobre as práticas que o concernem, buscando elucidar o
processo de subjetivação do homem ocidental, que para ele, e também como a
governamentalidade, são reflexos desse regime de verdade instaurado pelo cristianismo
que busca fazer com que o sujeito possa acessar a verdade – aquela necessária para a
salvação – a partir de um movimento que o coloca como objeto de conhecimento de si
mesmo
Como o homem ocidental está vinculado à obrigação de manifestar em
verdade o que ele próprio é? Como ele vinculou, de certo modo, a dois níveis
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e de duas formas, de um lado à obrigação de verdade, e em segundo lugar ao
estatuto de objeto no interior dessa manifestação de verdade? Como eles se
vincularam a obrigação de se vincular a si mesmos como objeto de saber?
(FOUCAULT, 2014a, p. 92)
O que se apresenta aqui é um regime de verdade no qual a subjetividade dos
indivíduos foi indexada, de maneira que eles não se apresentem apenas como
autômatos3 produzidos pelo poder, mas sim, como sujeitos que são ao mesmo tempo
produzidos e produtores desse poder. É na aula de 30 de janeiro de 1980 em Do Governo
dos Vivos, que Foucault (2014a, p. 76) se pergunta sobre o por que existir uma exigência
que faça com que o indivíduo vá além do “eis-me aqui, eu sou o que obedeço”,
proferindo então “eis o que sou, eu que obedeço, aí está o que eu sou, o que eu vi e o
que eu fiz”. E essa obrigação instaurada pelo cristianismo que vinculou o sujeito em
relação a verdade, e verdade de si próprio, é para Foucault, consequência do ato de
confissão. Não apenas pelo modo de confissão que se conhece hoje, aquele auricular
que deriva de uma relação institucional entre o que confessa e o que é qualificado para
ouvir, mas sim, por todo um processo de formulações e reformulações por quais está
prática foi exposta desde o século II de nossa era. Todo este processo inclui diversas
outras práticas que Foucault (2014a) perscruta na obra de Tertuliano, um “apologista
cristão do século II-III [...] e primeiro autor cristão a produzir obra em latim” (ALVES,
2016) e na obra de João Cassiano, monge e teólogo cristão do século III-IV que elabora
duas obras fundamentais para a institucionalização das comunidades monásticas.
Tanto na obra de Tertuliano quanto na de Cassiano, Foucault nos remete ao
cerne da questão do regime de verdade cristão. Se o cristianismo é a religião da salvação
na imperfeição e o homem tem como seu objetivo o de salvar-se para a vida eterna no
reino dos Céus, temos aqui, a meu ver, pelo menos dois problemas. Um seria aquele
referente a natureza do homem, que já nasce impuro e contendo em si a mancha e a
nódoa dados pelo pecado original4. Este último que segundo Foucault (2014b), ao ser
3 Em Vigiar e Punir, ao discorrer sobre a questão da ótica disciplinar e punitiva, Foucault cita o exemplo da obsessão que Frederico II tinha por autômatos, que não seriam apenas corpos docilizados e habilitados pelo caráter arbitrário das tecnologias disciplinares, mas também conteriam em si uma escala de poder reduzida de maneira que estivessem prontos e dispostos para agir conforme o investimento imperioso e urgente do modelo disciplinar. São bonecos economicamente eficientes e politicamente ineficientes. 4 É na aula de 13 de fevereiro de 1980 em Do Governo dos Vivos que Foucault discorre acerca da concepção que abarca toda a formulação de Tertuliano referente ao pecado original. Trata-se da herança da falta, que diz respeito a natureza do homem e de como o “mal” está sempre presente dentro de si.
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formulado por Tertuliano em Do baptismo e Da paenitentia, adquire um caráter
fundamental para todo o pensamento cristão e para as posteriores formulações de
práticas que fazem conjunto ao tema da confissão e a da renúncia de si mesmo, que irão
desembocar na atitude de obediência constante, em uma forma ininterrupta e que
pauta todas as ações do homem que segue o caminho da verdade. Em Cassiano também
se vê esta questão, quando a discretio5 é proferida em relação as cogitationes, atuando
como um motor de regulação ascética que irá entranhar-se nas profundezas do coração
e fará o papel de uma discrição analítica em relação ao que se pensa e sente.
Já o segundo problema configura-se a partir das práticas e técnicas cabíveis ao
homem para contornar esse problema referente a gênese de sua natureza. De que
forma pode-se purificar a vida, o coração, os atos e falas? De que maneira agir com si
mesmo, para que se afaste toda e qualquer possibilidade de recaída no mal? Como
iluminar a vida em sua generalidade, em todos os momentos, afastando a presença de
Satanás dos arcanos do coração? Tertuliano e Cassiano formulam todo um conjunto de
práticas que devem acompanhar o homem a todo o momento, que devem fazer com
que ele diga a verdade sobre si a todo momento, torne-se um ser ininterruptamente
obediente e renuncie toda e qualquer vontade própria. Tertuliano trará isso em suas
formulações sobre o batismo, a penitência e a direção de consciência, que
consequentemente serão apropriados pela teologia de Cassiano ao aplica-las no modo
de vida monástico que irá se tornar o modelo perfeito para essa economia de uma
salvação na não-perfeição. São essas práticas que irão tomar nossa atenção no
desenvolvimento desse trabalho, de maneira que possamos identificar o modus
operandi dessa ética cristã e, se possível, identificar como ela se propaga na construção
da subjetividade do homem ocidental.
Referências
ALVES, Marco Antônio Sousa. Cristianismo e racionalidade política moderna em Michel
Foucault. Estudos Filosóficos, São João Del-Rei, v. 17, p. 76-88, 2016.
5 Também em Do governo dos vivos na aula de 26 de março de 1980, Foucault irá dizer acerca da discretio e das cogitationes. Segundo Foucault acerca de sua interpretação sobre Cassiano, aqui também vemos uma questão relacionada a natureza do homem, que tem em si a constante presença de Satanás e necessita realizar um conjunto de práticas – ascese – para que possa se destituir da ilusão e tornar a seguir a direção correta.
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Anais do PPGCR (PUC-Campinas), Campinas, v. 1, n. 1, p. 1-92, jan.-jun. 2018
CANDIOTTO, Cesar. Governo e direção de consciência em Foucault. Natureza Humana,
São Paulo, v. 10, p. 89-113, 2008.
CANDIOTTO, Cesar; SOUZA, Pedro de (Org.). Foucault e o cristianismo. Belo Horizonte:
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FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
________________. Microfísica do poder. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2017.
________________. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
________________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1999.
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POLÍTICA E TEOLOGIA PÚBLICA: ASPECTOS DA RELAÇÃO ENTRE
RELIGIÃO E ESPAÇO PÚBLICO
Jefferson Zeferino
(Doutor e Pós-Doutorando em Teologia, PUC-PR)
Recentemente, as publicações que relacionam teologia e sociedade tem utilizado
o termo teologia pública. Apesar do uso, não é possível indicar uma conceituação matriz.
Enquanto recorte de uma pesquisa mais ampla, o presente texto parte de um
mapeamento das obras publicadas no Brasil que tocam o tema teologia pública ou
pertencentes a coleções voltadas ao assunto. Neste contexto, notam-se dois principais
movimentos diante daquilo que poderia se chamar, portanto, de teologia pública: 1. O
debate da teologia na universidade; 2. As relações entre teologia/religião e espaço
público. Além disso, percebe-se a tematização da política como recorrente. O que não
poderia ser diferente, uma vez que a política é viés inescapável na análise da esfera
pública. Entre as palavras-chave detectadas no referido mapeamento, destacam-se:
mensalão/petrolão (BAKKER, 2016, p. 820-843); participação política (DEIFELT, 2010, p.
108-114); política (ADOGAME, 2016, p. 415-438); religião e política/religião politizada
(CALDAS, C; 2015, p. 17-40; FONSECA, 2007, p. 149-185; MOREIRA, 2014, p. 12-42;
RIBEIRO, 2017; SOUZA, 2015, p. 68-92); responsabilidade política (BEDFORD-STROHM,
2014, p. 84-98); teologia política (ROSA, 2016a, p. 1210-1229; 2016b, p. 127-142;
SENGER, 2012, p. 759-773); teoria política (JACOBSEN, 2015c). Estes termos, bem como
os textos que os utilizam denotam uma relação entre fazer teológico e política e, com
isso, a incidência de uma na outra.
Com efeito, são textos que retomam uma longa tradição teológica que se ocupa
com as questões da polis, aspecto que nas elaborações teológicas latino-americanas
possuiu notável efervescência nas teologias de libertação, sendo que alguns
movimentos de teologia pública se inscrevem como possíveis herdeiros desta tradição,
em especial aquilo que está sendo denominado de teologia da cidadania. Por outro lado,
os textos também sustentam a argumentação da factualidade da incidência
política/pública das religiões, isto é, as pesquisas acerca da relação entre religião e
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espaço público são atuais, pertinentes e auxiliam a pensar a própria sociedade brasileira
como um todo.
Entre as palavras-chave acima referidas às publicações sobre política e teologia
pública destaca-se aquela que reúne elaborações sobre religião e política/religião
politizada por reunir a maioria das reflexões deste grupo temático, além de ser bastante
representativa da relação entre religião e espaço público. Com o intuito de compreender
o que se compreende, portanto, por religião e política no contexto da teologia pública,
faz-se uma breve análise destes textos, pensando-os no contexto maior das pesquisas
em teologia pública.
Sobre a relação religião e política no contexto da teologia pública, portanto, cabe
indicar que o teólogo presbiteriano Carlos Caldas (2015, p. 17-40), no texto Religião e
política em Dietrich Bonhoeffer, trata de afirmar uma intensa coerência entre vida e obra
no teólogo alemão. O autor destaca o envolvimento de Bonhoeffer na resistência ao
nazismo, por meio de sua participação na Igreja Confessante e na conspiração direta
contra Hitler, que o levou ao campo de concentração. O autor se ocupa em demonstrar
as obras de Bonhoeffer sobre ética, espiritualidade e vida comunitária estão
diretamente ligadas com os contextos histórico-políticos que o teólogo vivenciou. Por
fim, chega a afirmar que Bonhoeffer poderia ser compreendido enquanto um caso de
teologia pública.
O texto “Deus está do nosso lado”: Excepcionalismo e Religião nos EUA do
diplomata Carlos da Fonseca (2007, p. 149-185) versa sobre a política norte-americana
e dos aspectos religiosos da noção de excepcionalismo, a partir da qual os Estados
Unidos da América se compreende com um papel excepcional/extraordinário de
protagonista no mundo.
Alberto da Silva Moreira (2014, p. 12-42), em seu texto Religião politizada contra
violência institucionalizada: Teologia da Libertação no imaginário religioso mundial,
apresenta a Teologia da Libertação como reação ao que chama de violências
institucionalizadas como as questões de pobreza, desigualdade social e preconceitos.
Em seu resumo, afirma o seguinte: “Neste imaginário um aspecto da TdL que sobressai
é justamente este: uma fé religiosa que assume responsabilidade política diante das
formas estruturais de violência”. Deste modo, “tal imaginário, mesmo se
aparentemente intangível, influencia as práticas e o próprio horizonte da percepção da
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realidade, na religião e na política” (MOREIRA, 2014, p. 12). Com isso, destaca a Teologia
da Libertação como pensamento sistematizado e programático na relação entre religião
e política.
Em Comportamentos normatizados e a noção de profanação na obra de Giorgio
Agamben, Claudio de Oliveira Ribeiro (2017, p. 3-15) trata das noções de estado de
exceção e vida nua, do referido filósofo italiano, para pensar contextos políticos
hodiernos ao que restaria a possibilidade de profanação das estruturas consolidadas de
violência.
Sandra Duarte de Souza (2015, p. 68-92), em Secularização, laicidade e espaço
público: uma conversa sobre gênero, religião e política no Brasil contemporâneo, trata
da incidência pública da religião no espaço público e político. O texto conclui com uma
alarmante situação:
A discussão da laicidade no Brasil demanda não somente perguntar pelo lugar
da religião na sociedade, por seus espaços de atuação e pela plausibilidade
de suas ações. Também não basta identificar a relação entre o nível de
secularização da sociedade e a maior ou menor incidência da religião sobre
os sujeitos sociais. Há algo pouco discutido nesse debate, e tem a ver com a
ação política de grupos religiosos hegemônicos no processo de definição das
fronteiras do público, deixando “de fora” as mulheres, não importa se
católicas, evangélicas, de outras religiões ou sem religião. Na disputa pela
legitimidade política da afirmação de sentidos, hegemônicos ou contra-
hegemônicos, a religião tem larga vantagem em relação às mulheres,
religiosas ou não (SOUZA, 2015, p. 89-90).
Das apresentações dos textos de Caldas, Fonseca, Moreira, Ribeiro e Souza, se
percebe uma ampla variedade de temáticas tratadas dentro do âmbito da relação entre
religião e política. Com efeito, isso reforça a polissemia característica das publicações
sobre teologia pública. Contudo, também se percebe que o fazer teológico não pode
olvidar as discussões concernentes ao espaço público-político, o que carece, contudo, é
de linguagem e metodologias adequadas às suas interlocuções.
Por fim, como modo de aterrissagem do anteriormente disposto, cabe notar a
política como assunto da teologia pública. Em 1976, ao defender sua tese doutoral,
Clodovis Boff inscrevia de forma metodológica o político como assunto da teologia
latino-americana. O autor recebe os impulsos da Teologia da Libertação, caracterizada
em virtude de sua força de tradução política da fé cristã. Com isso, se percebe que
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pensar a coisa política em sua relação com a teologia não é novidade por aqui, assim
como também não é algo novo na Europa, na América do Norte, ou em qualquer outro
continente. Contudo, a emergência da questão pública, sempre renovada pelos desafios
de cada tempo é desafio perene às teólogas e teólogos preocupados com a relevância
da ciência teológica.
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SOUZA, S. Secularização, laicidade e espaço público: uma conversa sobre gênero,
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O PAI, O FILHO E O ESPÍRITO DA LEI: UMA PROPOSTA DE
LEITURA ACERCA DA PRESENÇA DA AUTORIDADE EM BRIEF AN
DEN VATER DE FRANZ KAFKA
Lucas Carvalho Lima Teixeira
(Mestrando em Filosofia, UNIFESP)
Em Carta ao Pai (1919), Kafka nos oferece uma série de reflexões cujos traços
desvelam o espírito possessor que assina o movimento da história ocidental. A relação
moderna entre o pai e o filho é a medula deste mito da autoridade, o fundamento do
subjectum soberano maximizado enquanto essência do Estado, enquanto essência do
direito. Sua essência histórica é promessa de sua própria totalização e, portanto, da
vitória avassaladora sobre a finitude. Que significa isto? Significa que o seu espectro
destinal não esmorece com a ruína de um poder atual. Ele se espraia e seduz, até que
aqueles que outrora estiveram sob a ameaça do direito transformem-se naqueles que
passam a ser a ameaça do direito, até que os filhos tornem-se pais. O desenvolvimento
da carta de Kafka conduz, pois, à tentativa de se reapropriar do sofrimento oriundo do
relacionamento com o pai, Hermann Kafka. Logo de saída, Kafka pontua sem floreios o
mote desta experiência, a saber, o sentimento de culpa (cf. KAFKA, 2011, p. 20). Culpa
(Schuld) é o único vocábulo que aparece sublinhado na carta de Kafka.6 Contudo, o que
começa com isto que parece ser uma simples interjeição elucida-se, posteriormente,
como uma decisiva consciência de culpa (Schuldbewusstsein), como o amálgama nodal
que conecta as duas figuras dessa relação.
O pai exerce sobre ele uma força terrível e inatingivelmente superior. Nada do
que fizesse poderia jamais satisfazer o eu autossatisfeito do pai, pois o que ali reside é
algo que para Kafka, na posição de filho, estaria para sempre interditado; assim, o pai
manifesta ao filho aquilo que ele mesmo é, porém que ao filho é preciso um esforço
previamente espanado para ser. Com efeito, resta a esse penitente somente algo como
uma não-experiência continuamente atrofiada pela falta, pelo espaço de vazio negativo
entre ele e o patriarca. O corpo paterno se impõe permanentemente sobre o corpo do
6 Conforme nota de Marcelo Backes (cf. KAFKA, 2011, p. 20).
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filho enquanto um ordenador onipotente de fins. Assenta-se aqui, aliás, aguçada
percepção de Benjamin sobre o movimento da obra de Kafka: “Desse modo, inclusive o
pai vive do filho e pesa sobre ele como um enorme parasita nas famílias de Kafka. Não
consome apenas as forças do filho, mas o seu direito de existir. O pai é ao mesmo tempo
o juiz e o acusador” (BENJAMIN, 1975, p. 79).
Constituída como entidade que efetivamente age mas, sobretudo, como
entidade que pode agir, a figura paterna enlaça a exata medida da autoridade ao
concentrar, em si mesma e a partir de si mesma, o expediente secreto da verdade das
coisas. A partir daqui, a ordem sobre o mundo, o nómos, se dá a partir de uma verdade
lastreada na própria palavra soberana. A precedência concerne, como recordará Schmitt
em sua leitura de Hobbes7, à própria autoridade enquanto emissora soberana da ordem;
nesse sentido, a verdade se reveste de um teor radicalmente a-nômico, pois sua emissão
essencializa-se enquanto a verdade que é, em sentido forte, a palavra da autoridade:
Da tua poltrona, tu regias o mundo. Tua opinião era certa, qualquer outra era
disparatada, extravagante, meschugge, anormal. E tua autoconfiança era tão
grande que tu não precisavas de maneira alguma ser consequente e mesmo
assim não deixavas de ter razão. Também poderia acontecer de em algum
assunto nem sequer teres opinião e, consequentemente, todas as opiniões
possíveis relativas ao assunto eram, necessariamente e sem exceção, erradas
(KAFKA, 2011, p. 28-29).
Se é a palavra da autoridade – a palavra soberana do pai – aquele centro de
gravidade absoluto que arrasta todas as coisas e as concentra conforme à sua própria
intensidade, então ela irrompe ao mesmo tempo como a “última instância” capaz de
dizer a verdade sobre o mundo e, portanto, como a única com o poder de decidir sobre
cada meandro da sua existência. Nesta senda, assumindo-se como o subjectum
supremo, é a existência mesma que é reduzida ao nada ante a sua vontade.
O mundo do pai é, em termos gerais, um mundo de captura permanente de
contingências. A necessidade que ele mesmo é, enquanto autoridade que precede e
determina a verdade e, por conseguinte, a ordem, redunda ao mesmo tempo numa
necessidade fundadora de si, fundadora da necessidade de seu nómos, e raiz da
fundação inevitável da possibilidade do desvio; no limite, a fundação da autoridade,
7 “Autoritas, non veritas facit legem [La autoridad, no la verdad, hace la ley]” (SCHMITT, 2009, p. 33).
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concentração secreta da verdade sobre as coisas, opera em segredo precisamente para
que a contingência retroalimente sua essência soberana. Destarte, a fundação da lei
vem ao mundo enquanto condição de possibilidade e inauguração da sua própria
transgressão, pois, de outro modo, o que seria do pai não fosse o inerente caráter
contingente do filho? Como poderia sequer haver o pai sem haver, concomitantemente,
o filho? De fato, ele já não seria centro de coisa alguma, tampouco sobre coisa alguma
exerceria seu domínio. Não seria subjectum de nada. Aquele corpo enfraquecido,
simultaneamente disposto ao seu poder e antecipadamente imerso no desvio, é o corpo
do qual o pai se alimenta para manter o segredo da sua autoridade.
É que eu já estava esmagado pela simples materialidade do teu corpo.
Recordo-me, por exemplo, de que muitas vezes nos despíamos juntos numa
cabine. Eu magro, fraco, franzino, tu forte, grande, possante. Já na cabine eu
me sentia miserável e na realidade não apenas diante de ti, mas diante do
mundo inteiro, pois para mim tu eras a medida de todas as coisas (KAFKA,
2011, p. 27).
Ao filho, por cortesia da posição de filho em si mesma considerada, a miséria;
ao pai, em função de uma razão autolegitimada, o reino. É por isso que, no mundo de
Kafka, a figura do pai é a perfeita encarnação da tirania: “Tu assumias para mim o caráter
enigmático que todos os tiranos possuíam, cujo direito está fundado sobre sua pessoa
e não sobre o pensamento” (KAFKA, 2011, p. 29). Pois, afinal, o que distinguiria o reino
e a miséria se ambos estivessem submetidos a uma só Lei transcendental, se ambos
fossem, por assim dizer, iguais aos olhos de Deus? Dito de outro modo, a principal
característica do pai consiste em agir no âmbito da exceção, ou seja, em residir num
espaço de permanente suspensão dos seus fins, restando apenas a tonalidade radical
do seu meio, isto é, o ordenar anômico da autoridade. Em termos agambenianos, resta
somente a força de lei.
A gente tinha de prestar atenção para que nenhum resto de comida caísse ao
chão, debaixo de ti estava a maior parte no final das contas. [...] Por favor,
pai, me entenda bem, esses pormenores teriam sido totalmente
insignificantes em si; eles só me oprimiam porque o homem que de maneira
tão grandiosa era a medida de todas as coisas não atendia ele mesmo aos
mandamentos que me impunha (KAFKA, 2011, p. 33).
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Kafka nos oferece nessa passagem dois temas da mais cara importância. Em
primeiro lugar, a impossibilidade do cumprimento da lei; em segundo, a distância
infinita da autoridade. A porta para o cumprimento da lei está fechada ao filho. Nada
que ele faça pode conduzir à correspondência com a ordem paterna, pois ao segredo da
verdade de sua lei ele não tem qualquer acesso. A culpa, a não-experiência, o vazio, a
falta, constituem para ele a condição mais extrema de sua existência; jamais poderá
cumprir a lei porque, com efeito, também desconhece absolutamente, enquanto filho,
aquilo que a lei realmente é, pois a sua verdade reside a uma distância infinita dos seus
olhos e permanecerá igualmente distante independente de quantas portas ele atravesse
na tentativa de alcançá-la.8 A consciência de culpa que se arrasta pela vida de Kafka jaz
instalada bem no meio desses dois expedientes, entre a ordem soberana do pai distante
e a simultânea impossibilidade de cumpri-la. Aqui, o único a quem é permitido o acesso
à verdade da lei é aquele mesmo que a funda: o pai. Tal como Benjamin alerta, não é a
história da autoridade que guarda o fundamento da sua lei, porém, sim, a sua pré-
história, lá onde
Leis e normas prescritas permanecem [...] como leis não escritas. O homem
pode violá-las sem saber que o faz e incorrer, assim, no castigo. Mas,
conquanto se possa ferir cruelmente a quem não o espera, o castigo, no
sentido do direito, não é um acaso, e sim destino, que se revela aqui em sua
ambiguidade (BENJAMIN, 1975, p. 80).
Assim, a existência do pai acarreta necessariamente a fundação da culpa e do
castigo perpétuos sobre a miséria do filho. Não há fundamento algum para a autoridade
de sua lei exceto pelo fato de reduzir a existência deste último à sua soberania. Se a
verdade da lei reside, portanto, em sua pré-história, na anomia paterna onde não
restam leis escritas, claras ou distintas mas, tão somente, o mando fundante, então o
efetivo cumprimento da lei apenas será possível quando o filho finalmente deixar de sê-
lo, quando o filho se tornar o pai. Pois a pré-história do direito nos revela o seu
fundamento máximo, isto é, a violência instauradora de toda legitimidade, ou, o que é
o mesmo, o nada de lei.
8 O tema das portas infinitas da lei é um dos pontos altos de O Processo (Der Prozess): Josef K. é apresentado ao conto dos porteiros da lei, os quais alertam a um camponês, ansioso por atravessar a porta e conhecer a justiça, que muitas outras portas e porteiros o estariam aguardando para além daquela. O processo nunca chega ao fim.
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No limite, a decisão sobre a vida e a morte aponta para o paroxismo do
relacionamento do filho com a figura paterna: “Mais uma vez, era o que ficava
parecendo à criança, a gente continuava vivo por causa da tua misericórdia e levava a
vida adiante como se fosse um presente imerecido que nos davas” (KAFKA, 2011, p. 38).
Pois é à misericórdia do pai que se deve9 a vida daqueles que se encontram sob seu
reino. Ser filho, por outro lado, concerne a uma dívida insanável da qual jamais se verá
livre. No fim, “O resultado visível mais imediato de toda essa educação”, dirá Kafka, “foi
que fugi de tudo aquilo que, mesmo a distância, me lembrasse de ti” (KAFKA, 2011, p.
48). Entramos, agora, no âmbito propriamente problemático da relação entre pai e filho,
a saber, a educação (Erziehung). É também aqui que pretendemos encontrar a chave de
compreensão do problema indexado à mímesis do mito da autoridade, ou seja, o mito
da autoridade enquanto destino.
O autor declara em diversas alturas do texto que sua existência ante ao pai
ampara-se numa relação de ensino. Sendo assim, admitamos que todo o esquema
anteriormente analisado entre a autoridade paterna e a miséria filial, a soberania e a
culpa, configura-se desde o início como mecanismo de educação. O que se ensina ao
filho, esta é a pergunta para a qual buscamos uma resposta. Porém, torna-se antes
necessário perguntar: quem é o pai no interior desse mecanismo? Ao que Kafka assinala:
[...] uma vez que eras meu educador verdadeiro, isso repercutiu por tudo em
minha vida. [...] O fato é que as tuas medidas educativas acertaram o alvo;
não me esquivei a nenhuma investida da tua parte; assim como sou
(naturalmente não levando em conta os fundamentos e influências da vida),
sou o resultado da tua educação e da minha obediência (KAFKA, 2011, p. 36,
grifo nosso).
O pai, pois, é o próprio educador. Mais do que isso, o pai é o educador
verdadeiro, o único vetor legítimo de ensino e formatação da existência do filho. Em
9 Remetendo aos diários de Kafka, Marcelo Backes pontua a dimensão da dívida que se abre com a fundação da autoridade paterna (cf. KAFKA apud BACKES, 2011, p. 19). Também Walter Benjamin, ao tratar do culto à economia capitalista, assinala que a vida de todos os seus “penitentes” está de antemão submersa na dívida, na culpa: “O capitalismo presumivelmente é o primeiro caso de culto não expiatório, mas culpabilizador. [...] Uma monstruosa consciência de culpa que não sabe como expiar lança mão do culto, não para expiar essa culpa, mas para torná-la universal, para martelá-la na consciência e, por fim e acima de tudo, envolver o próprio Deus nessa culpa, para que ele se interesse pela expiação” (BENJAMIN, 2013, p. 22). Saliente-se, ainda, que o termo original utilizado por Benjamin nessa passagem, “consciência de culpa”, é idêntico ao utilizado por Kafka no texto original em alemão de Carta ao Pai, a saber, Schuldbewusstsein.
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uma só palavra, o que o pai ensina é, pela condição de sua própria natureza enquanto
tal, lei. Ao filho, por seu turno, aquilo que se espera que aprenda ressoa naquilo sem o
qual a lei não faz sentido algum, ou seja, a obediência. Com efeito, o que ele aprende
redunda puramente na obediência à palavra paterna, em atentar-se ao comando e não
ao que se ordena que faça. Tal como não existe pai sem filho, na mesma medida não
existe lei sem obediência. Não obstante, a obediência é apenas um lado do método
educacional vigente na relação entre o pai e o filho. Qual é a sua outra face? Em suma,
é o elemento um tanto mais radical da educação que subjaz ao mito da autoridade, a
saber, a repetição ela mesma, a mímesis do pai.
[...] é significativo que até hoje tu apenas me encorajes de fato naquilo que
te afeta pessoalmente, quando se trata do teu amor-próprio, que eu firo (por
exemplo, com meu propósito de casamento) ou que é ferido em mim (quando
Pepa me insulta, por exemplo) (KAFKA, 2011, p. 26-27, grifo nosso).
Ora, o que o pai está de fato ensinando ao filho? O que é que o frustra e o
engrandece ao mesmo tempo em passagens como as em que Kafka não consegue,
independente do que faça, agradar ao pai? Pois bem, reside sob esse tema a fibrosa
ambivalência atinente à relação de cunho educacional que nos propusemos analisar: o
que o pai ensina ao filho não se encerra na obediência, na miséria e na culpa, pois o que
o pai ensina ao filho é, no limite, a ser ele mesmo, isto é, a ser pai. A ambivalência
conduz, num mesmo movimento, à satisfação de quem vê sua obra ser finalizada e, por
outro lado, ao horror ante à morte súbita. Testemunhar o filho tornar-se pai, vê-lo
fundar suas próprias leis e à sua autoridade submeter seus próprios filhos desdobra-se
simultaneamente em gozo e destruição aos olhos do “pai atual”, e isto porque o
aprendiz enfim descobriu a essência mais preciosa do ensinamento de seu educador, a
herança que só é legada após o mergulho profundo na violência original, no clamor e no
sacrifício: “destrói-me e torna-te eu!”, eis o mito e o amor-próprio (Selbstgefühl) da
autoridade que o filho repete ao fundar sua casa.
Esta mímesis afigura-se, afinal, na incisiva angústia experimentada por Kafka
em relação ao significado do casamento, que tanto vivifica a promessa da emancipação,
quanto o destina a transformar-se naquele que, antes de tudo, o afogou na miséria, na
fraqueza e no sentimento de culpa; assim, um primeiro relance de olhos nos convence
de que “O casamento é, por certo, a garantia da mais nítida autolibertação e
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independência. Eu teria uma família, o máximo que em minha opinião pode ser
alcançado, ou seja, o máximo que também tu alcançaste” (KAFKA, 2011, p. 87). Sem
embargo, com a fundação de uma outra família ele apenas assinala a repetição do início
mais vetusto, retomando o ciclo mimético entre o soberano e o miserável, o pai e o filho,
os vitoriosos e os derrotados. Na angústia frente à mímesis vem à tona a outra face do
casamento:
É como se alguém estivesse aprisionado e tivesse não apenas a intenção de
fugir, o que talvez fosse alcançável, mas também e na verdade ao mesmo
tempo, a de transformar reformando, para uso próprio, a prisão num castelo
de prazeres. Mas se ele foge, não pode fazer essa reforma, e se ele faz a
reforma, não pode fugir (KAFKA, 2011, p. 87-88).
A melancolia angustiante que encharca a letra kafkiana é a manifestação
dilemática de alguém que ousara experimentar a radicalidade do que estava posto na
fundação da própria casa (oikos), de alguém fascinado pela possibilidade de exorcizar o
fantasma do pai mas que, efetuando-o, lhe estaria mais próximo do que jamais esteve.
Foi o que Benjamin notou ao analisar o mito da autoridade em sua forma maximizada
enquanto um Estado (de) Direito, mito essencial que se cumpre, com a repercussão
massiva da educação paterna, como destino (Schicksal) da modernidade:
A lei dessas oscilações consiste em que todo poder* mantenedor do direito,
no decorrer do tempo, acaba enfraquecendo indiretamente o poder*
instituinte do direito representado por ele, através da opressão dos anti-
poderes* inimigos. [...] Isso dura até que novos poderes* ou os anteriormente
oprimidos vençam o poder* até então instituinte do direito, estabelecendo
assim um novo direito sujeito a uma nova decadência (BENJAMIN, 1986, p.
174-175).10
E assim até que não sobre mais carne para torcer e retalhar. Nada mais haveria
reservado para o destino dos homens além dessa violência (Gewalt) mítica (cf.
BENJAMIN, 1986, p. 171s), viciada em seu próprio ciclo de morte. O direito encarnado
no pai lutará até o fim para cauterizar qualquer potência que se levante contra o
monopólio da sua própria; não obstante e paradoxalmente, a disputa pelo poder
soberano consiste precisamente naquilo que ele instiga. Em termos claros, muito
embora o pai deseje, por esforço de sua própria essência enquanto tal, perpetuar sua
10 O asterisco indica a palavra Gewalt no texto original, cujo sentido indica, ao mesmo tempo, poder e violência.
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condição de subjectum frente ao mundo – bem assinalou Kafka, como “a medida de
todas as coisas” –, o caráter mítico dessa subjetividade desponta também como
reconversão letal para ela, e isto porque o mito da autoridade, enquanto destino, vence
toda e qualquer finitude. Que o filho assuma essa herança maldita constitui a válvula
necessária pela qual transpassará o destino.
Tal qual o dragão nietzschiano, que traz em suas escamas tudo aquilo que foi,
tudo aquilo que é e tudo aquilo que um dia ainda será, “Esta organização”, diz Benjamin,
“se assemelha ao destino” (BENJAMIN, 1975, p. 89). A fórmula da autoridade, a direção
patriarcal que recai sobre cada ser espalhando-se em diferentes níveis de intensidade
através do corpo social, da simplíssima relação entre pai e filho e do funcionário inserido
na malha burocrática até a “última instância” político-jurídica do Estado, deflagra a mais
crua oiko-nomia da civilização moderna. Ausente qualquer concessão, nesta oiko-nomia
todos estão submersos na viscosa ambivalência entre a obediência miserável e a
subjetividade autoritária, de modo que todos devem responder a alguém e,
submetendo-se, aprender a ordenar. Toda potência, isto é, tudo aquilo que não é de
alguma maneira controlado e indexado ao regime cíclico do mito da autoridade, deve
inexoravelmente ser aplacado.
Na literatura e no cinema de horror, costuma-se concentrar todos os medos
confusos e cativos numa só criatura monstruosa, normalmente pensada para ocupar a
posição de símbolo da real essência do que se teme, muito embora isto que se tema
circunscreva, no final das contas, a essência daquilo por que se tem mais apreço. Por
conseguinte, não nos pareceria absurdo conceber que, no espetáculo real da
modernidade, o Estado moderno desponte como o monstro horrendo que espreita a
todo momento nossas vidas assombradas, todavia que nada mais exiba aos nossos
olhos, amedrontados e apaixonados, do que a face do próprio sujeito moderno. Sobre a
presença desta permanente ambivalência entre medo e desejo, ou seja, o mito mesmo
da autoridade alçado a oiko-nomia de todas as almas, Kafka nos diz algo de assertivo:
“por um lado ela tem, sem dúvida, algo subjugantemente franco, de certo modo
primitivo, mas por outro, no que diz respeito à lição propriamente dita, ela é
inescrupulosamente moderna” (KAFKA, 2011, p. 81, grifo nosso).
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Referências
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KAFKA, Franz. Carta ao Pai. Edição comentada. Tradução, organização, prefácio,
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Madrid: Editorial Trotta, 2009.
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HEIDEGGER, LEITOR DAS CARTAS PAULINAS: A ÊNFASE
NA DINÂMICA DE MUNDO
Luís Gabriel Provinciatto
(Doutorando em Ciência da Religião, UFJF)
Introdução
As preleções Problemas fundamentais da fenomenologia (1919-1920) e
Introdução à fenomenologia da religião (1920-1921) – ambas do filósofo alemão Martin
Heidegger (1889-1976) – possuem um ponto em comum: nelas o conceito “mundo”
(Welt) recebe um sentido existencial, sendo caracterizado enquanto mundo circundante
(Umwelt), mundo compartilhado (Mitwelt) e mundo próprio (Selbstwelt). Isso, no
entanto, precisa ser compreendido em consonância com o seguinte: filosofia e ciência
possuem pontos de partida diferentes. Note-se: a ciência se diferencia da filosofia
justamente por possuir um âmbito objetivo muito bem determinado. Esse âmbito
objetivo é o que propriamente forma o contexto no qual se desenvolve a ciência, logo,
quanto mais notável for o contexto, mais determinado será o âmbito objetivo e, por
consequência, a investigação científica. A filosofia, porém, “não se deixa alcançar
através da ordenação num conjunto geral, objetivo e configurado das coisas”
(HEIDEGGER, 2010, p. 13), ou seja, não se compreende a filosofia colocando-a em um
contexto evidente. A filosofia escapa ao sistema. Esse será um ponto determinante para
Heidegger desenvolver a filosofia como fenomenologia hermenêutica: só se alcança a
filosofia partindo da dimensão experiencial e nela permanecendo, de modo que alcançá-
la não significa conhecê-la; trata-se, na verdade, de compreendê-la. O ponto inicial da
filosofia é a experiência fática da vida (faktische Lebenserfahrung); aquilo que se
experiencia na vida fática é denominado por Heidegger como mundo (Welt) e não como
objeto (Objekt): mundo não é o equivalente filosófico ao âmbito objetivo da ciência.
A continuidade entre as preleções pode ser assim percebida: a vida fática se
expressa enquanto mundana e não enquanto objetualidade. Heidegger encontra a vida
fática enquanto mundana nas primeiras comunidades cristãs, a partir da leitura
fenomenológica das cartas paulinas. Disso decorre a proposta deste trabalho: a leitura
empreendida por Heidegger das cartas paulinas é realizada tendo em vista o sentido
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existencial do conceito “mundo” em sua tripla acepção, isto é, a dinâmica de mundo, tal
qual apresentada em ambas as preleções, direciona Heidegger às cartas paulinas, pois
elas são expressão dessa dinâmica, logo, da vida fática. Isso também traz consequências
para a compreensão que se tem de experiência religiosa.
A ênfase na dinâmica de mundo e a proximidade com as cartas paulinas
A dinâmica de mundo acima referida está assim apresentada:
“Mundo” [Welt] é algo no qual se pode viver (num objeto não é possível
viver). O mundo pode ser formalmente articulado como mundo circundante
[Umwelt], como aquilo que nos vem ao encontro, ao qual pertencem não
apenas coisas materiais, mas também objetualidades, ideias, ciências, artes,
etc. Nesse mundo circundante também está o mundo compartilhado
[Mitwelt], isto é, outros homens numa característica fática bem determinada:
como estudante, docente, parente, superior, etc. – não como exemplar do
gênero homo sapiens das ciências naturais e assim por diante. Finalmente, aí
está também o eu mesmo [Ich-Selbst], o mundo próprio [Selbstwelt], na
experiência fática da vida (HEIDEGGER, 2010, p. 16).
Note-se: não há indicação alguma a respeito de uma primazia de alguma das
três divisões apresentadas. Isso não é sem importância: antes de falar de um “eu”, de
um “outro” ou de uma “coisa” em sentido isolado, Heidegger prefere lidar com a
existência a partir da relação. A dinâmica de mundo, portanto, revela o sentido de
relação (Bezugssinn) da existência: a vida é consigo mesma, com os outros e com as
coisas. O que isso significa? A princípio, que o nexo dos acontecimentos, isto é, o mundo
no qual eles se manifestam e a partir do qual eles são compreendidos acontece pela
compenetração entre os mundos circundante, compartilhado e próprio. O sentido – o
caráter de significância (Bedeutsamkeit), conforme denomina Heidegger – provém,
portanto, da compenetração dessa tripla acepção de mundo. Em outras palavras: a
significância da experiência não provém enquanto teoria, mas enquanto relação, à qual
se soma um conteúdo e uma realização. A dinâmica de mundo mostra o sentido como
compenetração do sentido de relação, do de conteúdo e do de realização.
Isso, no entanto, já pode ser lido nas preleções de 1919-1920:
A vida nesse mundo circundante, o ser nele, a existência circumundana, essa
condicionalidade instável [labile Zuständlichkeit], é determinada a partir de
uma peculiar compenetração dos mundos circundante, compartilhado e
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próprio, não de sua mera soma, de modo que as relações de compenetração
não são pura e simplesmente teóricas, mas são de maneira emocional
(HEIDEGGER, 1993, p. 39).
A partir dessa dinâmica de mundo já presente nas preleções de 1919-1920 já
pode ser antevista a proximidade com as cartas paulinas, o que ocorre, explicitamente,
nas preleções de 1920-1921. A ênfase na dinâmica de mundo representa um momento
de quebra com o olhar objetivante da ciência. E mais: “o olhar objetivante/teorético
perde de vista algo fundamental. Não só o perde de vista, transforma-o em outra coisa”
(ILARI, 2016, p. 36). Dessa maneira, a análise fenomenológica empreendida por
Heidegger de um “fenômeno religioso concreto” não tem a finalidade de extrair um
sistema religioso, porque, na verdade, “o decisivo da experiência cristã não são seus
conteúdos […]. Trata-se, pois, da atitude, do modo que o cristianismo primitivo vive,
relaciona-se e realiza os conteúdos que lhe vêm ao encontro” (LARA, 2007, p. 32).
Isso traz uma consequência fundamental para a leitura fenomenológica
empreendida das cartas paulinas: elas não expressam só as vivencias de Paulo ou só a
vida da comunidade em si. As cartas paulinas expressam essa dinâmica de mundo, de
modo que aí estão justapostos mundo próprio, mundo compartilhado e mundo
circundante. A atenção se volta à experiência religiosa cristã porque, conforme afirma
Vattimo, “a experiência religiosa é aquela que não pode se dar a não ser como um
empenho pessoal, como uma resposta que não pode constitutivamente se limitar à
consideração ‘objetiva’ de um conteúdo” (VATTIMO, 2004, p. 154). Ou seja, Heidegger
detém sua atenção na significância que provém da experiência religiosa, da qual as
cartas paulinas são expressão. A significância, porém, não é algo colado ao que se
experiencia, pois diz respeito ao modo e não ao conteúdo. O que isso significa? No limite,
significa que o sentido não pode provir senão da relação, mas não relação entre um
sujeito e um objeto, pois isso já é reflexão teórica. A relação aqui aludida é a mundana,
ou seja, o sentido advém da compenetração entre mundo próprio, mundo circundante
e mundo compartilhado. Logo, a significância provém também da compenetração do
sentido de relação, de conteúdo e de realização.
Tome-se, por exemplo, o episódio da conversão de Paulo, tal qual por ele
mesmo relatado na Carta aos Gálatas (Gl 1,11-24): a conversão não pode ser
compreendida a partir da exposição de um contexto objetivo. O relato paulino aos
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Gálatas ultrapassa a barreira objetiva porque o que aí está explícito é uma escolha, uma
decisão. Em outras palavras: a conversão se dá a partir de uma relação consigo mesmo,
que, no entanto, não está cindida do mundo circundante e do mundo compartilhado. A
Carta aos Gálatas, portanto, se inicia com uma nota explícita ao sentido relacional da
existência em sua totalidade. Isso pode ser percebido ainda nas anotações
metodológicas das preleções Introdução à fenomenologia da religião, quando
Heidegger afirma:
Eu mesmo, em momento algum, experimento meu eu em separado, mas já
sou e estou sempre preso ao mundo circundante. Esse autoexperimentar-se
não é uma “reflexão” teórica, não é uma “percepção interior” entre outras,
mas experiência do mundo próprio, porque o experimentar mesmo possui
um caráter mundano; possui a tonalidade significativa, de tal forma que, de
fato, a experiência do mundo próprio em si, faticamente falando, não é mais
retirada do mundo circundante (HEIDEGGER, 2010, p. 18).
Dessa maneira, a leitura fenomenológica empreendida por Heidegger não
chega a nenhum sistema religioso (teológico) a partir das cartas paulinas. A
fenomenologia da religião que aí se opera tem em vista justamente a demonstração da
experiência religiosa fundamental, pois ela se mostra como decisão e o sentido que dela
provém mostra o nexo eminente da estrutura mundana da vida fática. Por isso, a
“interpretação fenomenológica visa destacar como é que a experiência fática da vida é
trazida à fala no texto” (FERNANDES, 2016, p. 108). E mais: a ênfase, a princípio, está no
sentido de relação (Bezugssinn), ou seja, “como Paulo se comporta com aquele
conteúdo de experiência, com aquela significância” (FERNANDES, 2016, p. 108). O
sentido de conteúdo (Gehaltssinn) não é abandonado: ele recebe a mesma importância
que o sentido de relação e o sentido de realização (Vollzugssinn), pois, caso contrário,
não seria possível afirmar que as cartas paulinas são expressão da vida fática.
Priorizar o sentido de conteúdo seria abordar as cartas paulinas a partir de uma
perspectiva pura e simplesmente objetiva. Isso atende às expectativas de um projeto de
construção da religião como uma estrutura, mas não como uma experiência, como uma
escolha, ou seja, não atende aos parâmetros metodológicos da fenomenologia proposta
por Heidegger. Priorizar o sentido de conteúdo significaria, na verdade, pré-determinar
o sentido da experiência religiosa. A religião deixaria de ser experiencial e passaria a ser
objetiva: ela abandonaria a mundanidade e passaria a ser um objeto “puro”, de modo
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que se deveria “abandonar nosso lugar de participantes, nossa subjetividade, nossa
história, para nos elevar ao reino da impessoalidade (garantia da universalidade)” (ILARI,
2016, p. 35).
Considerações finais
A ênfase na dinâmica de mundo a partir da ótica fenomenológica faz perceber
o seguinte: não há algo como religião “pura”, isto é, como se a religião fosse constituída
à parte do solo fático da existência. Cindir-se da facticidade significa perder a dinâmica
de mundo, logo, o caráter existencial no qual ela se funda. Querer projetar uma religião
“pura” significa a eliminação de qualquer aspecto experiencial no interior da religião.
Em outras palavras: ela deixa de ser experiência religiosa e passa a ser estrutura, “objeto
puro”. Quando isso acontece o que mais lhe interessa é manter a estrutura em
funcionamento. No limite, o aspecto experiencial lhe oferece um risco, porque ele
rompe com a estrutura de funcionamento, fazendo novamente valer a dinâmica de
mundo. Aqui se percebe a importância das cartas paulinas: elas expressam a dinâmica
de mundo e, portanto, dão especial atenção ao aspecto experiencial da religião,
delegando à estrutura de funcionamento uma importância de segunda ordem. O
sentido de conteúdo é tão importante quanto o de relação e o de realização. O sentido
da experiência religiosa enquanto fala (texto) não provém da correta exposição do
contexto de seu acontecimento. A religião, assim, se apresenta como uma possibilidade
de interpretação e não como determinação da existência: o existente, portanto, precisa
decidir por ela. Disso decorre o fato de que a leitura das cartas paulinas não é um ponto
isolado no projeto fenomenológico de Heidegger ao qual se somariam aspectos
metodológicos da fenomenologia. Trata-se, na verdade, de uma etapa decisiva para
compreender qual o propósito filosófico da fenomenologia, à qual Heidegger está dando
uma guinada hermenêutica.
Referências
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.
FERNANDES, Marcos Aurélio. Heidegger e o método da explicação fenomenológica das
cartas de Paulo. Reflexão, Campinas, v. 41, n. 1, jan./jun., 2016, p. 95-111.
42
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HEIDEGGER, Martin. Fenomenologia da vida religiosa. Petrópolis: Vozes; Bragança
Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2010.
HEIDEGGER, Martin. Grundprobleme der Phänomenologie (1919-1920). Frankfurt am
Main: Vittorio Klostermann, 1993.
ILARI, Blanco Ignacio. Significatividad y mundo en los escritos del joven Heidegger.
Conjectura: filosofia e educação, Caxias do Sul, v. 21, n. 1, jan./abr., 2016, p. 27-57.
LARA, Francisco de. Heidegger y el cristianismo de San Pablo y San Agustín. Eidos:
Revista de filosofía de la Universidad del Norte, n. 7, jul./dez., 2007, p. 28-46.
VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo:
Record, 2004.
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CRÍTICA DO DISPOSITIVO DA VONTADE
Marcelo Hanser Saraiva
(Mestrando em Filosofia, UNICAMP)
1. Crítica dos dispositivos
Karman – Breve trattato sull’azione, la colpa e il gesto (2017), livro de Giorgio
Agamben recentemente publicado, nos dá o ensejo para a reavaliação de temas caros à
sua obra anterior e ao seu projeto filosófico como um todo. Como costumeiro em seu
gesto arqueo-genealógico, também neste livro o canteiro histórico da investigação é
instaurado no interstício entre filosofia, direito e teologia (sobretudo no feixe
cronológico correspondente à passagem do mundo antigo greco-romano ao mundo
medieval). Com um gesto filosófico característico deste autor, será o distanciamento em
relação ao nosso tempo presente e uma paciente imersão investigativa nesta camada
arcaica da história do Ocidente, que permitirá o acesso aos dispositivos ético-políticos
fundamentais da cultura ocidental, sob cuja égide nós ainda estamos, hoje, aferrados.
Cumpre meditar incialmente sobre os conceitos, a um só tempo metodológicos e
ontológicos, mobilizados por Agamben no tratamento dos conteúdos histórico-
concretos.
Enquanto análise de dispositivos, o que se investiga é o nexo que articula a vida
com as suas formas possíveis – o nexo que modula a sua potência – nas palavras de
Agamben, trata-se expor “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de
capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as
condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”11. Assim, o nexo dispositivo
entre vida e forma implica aqui uma análise de caráter pragmático – isto é, os
dispositivos constituem estratégias pelas quais é produzido um modo de vida e não
outro (num movimento que reciprocamente exclui uma parcela da vida como resto não-
qualificado – vida nua ou não-humanidade); estratégias, então, pelas quais a pura
potência inerente à matéria bruta da vida é declinada em tal ou qual direção, evitando
tal ou qual possibilidade, sob os imperativos desta ou daquela necessidade.
11 AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Traduzido por Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009, p. 40.
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Essa abordagem de caráter pragmático comporta um procedimento de análise
dos dispositivos estratégicos subjacentes à nossa atualidade. Mas por isso mesmo, não
deixa de ser uma crítica dos dispositivos, na medida em que, ao fim e ao cabo, eles não
são em si mesmos necessários, não constituem nenhuma verdade antropológica
incontornável, tampouco a lei da história humana. Ainda que o homem esteja
constantemente em jogo aqui, os dispositivos não deixam de ser contingentes; ainda
quando visam, por exemplo, objetivar o homem cientificamente ou subjetivá-lo jurídica,
política e eticamente, eles não deixam de extrair sua justificativa de uma “ficção”, que
é, como tal, infundada. O ser humano e o sujeito não são aí pensados como
pressupostos ou fundamentos, senão como o resultado das operações próprias aos
dispositivos; igualmente, a linguagem, não é aqui entendida em dimensão apofântica
(que atribui predicados verdadeiros ou falsos ao mundo “real”), senão como um
investimento de força imaterial que decide, sempre e a cada vez, sobre os corpos e o
status daqueles a quem ela diz respeito, sendo por isso essencialmente ligada aos
fenômenos ético-políticos da subjetivação e dessubjetivação.
Os dispositivos, que visam portanto a modulação e regulação da potência
própria à vida, tem como superfície privilegiada e paradigmática de emergência histórica
aquele interstício denominado arcaico – onde direito, filosofia e teologia se
interpenetram. Cumpre lembrar da ambiguidade constitutiva contida no termo grego,
do qual “arcaico” e “arqueologia” derivam – arkhē como começo e arkhē como
comando. De modo que a análise de dispositivos é sim, em certa medida, análise da sua
estrutura interna de funcionamento, mas só na medida em que essa continue
inseparável da análise dos “acontecimentos” a partir dos quais os dispositivos se
constituíram no fluxo da história, nos documentos e monumentos da tradição – e
sobretudo naquelas camadas mais opacas e esquecidas da mesma. A essa materialidade
corresponde o trabalho hermenêutico – e, no caso de Agamben, particularmente
filológico, da análise histórica de dispositivos. Porém, mais do que isso e acima de tudo
– trata-se de uma crítica de determinados dispositivos, na medida em que se visa
desativar a arkhē – isto é, o “peso de comando” – que esses acontecimentos arcaicos
ainda tem sobre nosso atual modo de ser, pensar e agir. É aqui que reside a
performatividade própria às obras de Foucault e de Agamben, os quais, apontando para
a gênese do dispositivo e desvelando-a, esperam igualmente contribuir também para a
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sua neutralização, desnaturalização e desativação – o que coincide, em Agamben, com
o gesto que os abriria para um “novo uso”.
Dentre os dispositivos analisados por Agamben, há certamente dois deles que
saltam aos olhos de qualquer que se debruce sobre a sua obra. Entrelaçados, eles não
cessam de reaparecer: primeiramente, o dispositivo da linguagem (a esse respeito,
lembremos que o principal problema de Agamben ao longo das décadas 1970 e 1980 é
o da linguagem12; e que também o projeto Homo Sacer, a partir da déc. de 1990, é
impensável sem as glosas sobre filosofia da linguagem); e, em segundo lugar, o
dispositivo do direito (e da teologia) – ambos os quais teriam uma certa analogia
estrutural bastante sugestiva com o da linguagem.
No caso do direito, todo o esforço de Agamben em Homo Sacer (e depois em O
Que Resta de Auschwitz) foi o de fazer convergir no dispositivo da exceção soberana o
modelo jurídico-político (ou modelo da Lei) e o biopolítico de gestão da vida, mostrando
exatamente a “estrutura originária” pela qual Lei se refere a vida, produzindo a cisão
entre vida qualificada e vida nua – a vida ao mesmo tempo matável e insacrificável (o
livro Estado de Exceção vem, em grade medida, como forma de dar mais consistência
filogenética às teses anteriores, desenvolvendo a oposição entre autorictas e potestas);
o mesmo problema da articulação moderna entre soberania e biopolítica é conjugado
em outros termos quando Agamben analisa os dispositivos governamentais em O Reino
e a Glória, a partir de sua assinatura teológica – a cisão é agora entre Deus e mundo;
entre o paradigma do ser e o paradigma da práxis; entre transcendência e imanência;
entre Pai e Filho; entre teologia política e teologia econômica. Em Sacramento da
Linguagem, por exemplo, trata-se de mostrar o juramento como o dispositivo que liga
o homem à sua própria palavra, comprometendo-o igualmente e por isso mesmo em
suas ações.
Em Karman (2017) continua em questão o mais perene problema de Agamben
– a relação entre lei e vida. A diferença é, antes de tudo, o enfoque: enquanto os
primeiros livros do projeto Homo Sacer tinham um acento político visível, inclinado aos
dispositivos governamentais, Karman (e também Opus Dei¸ de 2015) seguem uma
direção complementar, é certo, porém voltada à ética. Trata-se, sobretudo, de mostrar
12 A centralidade desse problema durante esses anos é atestada pelo próprio Agamben no prefácio à edição francesa de Infância e História (1978).
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como o paradigma ético dominante no Ocidente tem um lastreamento eminentemente
jurídico, o que equivale a dizer que o alvo a ser criticado por Agamben é a interiorização
da lei na ética moderna. A figura decisiva desse processo de interiorização, objeto do
livro em questão, é a invenção do dispositivo que liga vontade-ação-imputação (Karman,
p. 126), pelo qual “um sujeito é postulado e produzido na esfera da práxis como centro
de imputação da ação voluntária” (ibid., p. 127).
Passemos à exposição – um pouco sumária, devido ao tempo – desse
dispositivo.
2. O dispositivo da vontade-ação-imputação
O primeiro passo do argumento de Karman é mostrar como, no direito romano,
se formou o dispositivo de imputação, mediante o qual os atos se tornam causas (em
sentido jurídico) e o sujeito torna-se legalmente responsável pelas suas ações. “Causa”
e “culpa”, nesse contexto, funcionam como os limiares do direito, que marcam a entrada
dos atos ou fatos na esfera da lei. E o operador fundamental do dispositivo é a sanção
(sanctio): é ela que torna a lei, de um lado, sagrada e inviolável e, de outro, o indivíduo,
um sujeito culpável e punível. A generalização desse dispositivo na modernidade seria
reconhecível não apenas no aumento concreto da amplitude do Estado (e portanto do
dispositivo jurídico que lhe é ínsito), mas também no fato de que, cada vez mais, a
acusação não precisa ser formulada para que os homens tornem-se culpáveis – é como
se todo homem, pelo fato mesmo de que vive, fosse chamado em causa e acusado; aliás,
é como se todo homem se tornasse o próprio acusador e caluniador.
Significativo nesse contexto, que em O Processo de Kafka, o inspetor admita a
Joseph K., logo no início, não saber qual é a acusação que recai sobre K.; e que, depois,
ao longo do processo, K. busque obstinada e teimosamente pelo acusador e juiz
responsáveis, mesmo quando estes insistem em se esquivar e ignorá-lo. O conteúdo da
culpa (a acusação propriamente dita) e o possível desenlace do processo na sentença e
na pena não importam tanto aqui: o essencial é que o processo ele mesmo se torna, na
modernidade, a sentença e a condenação, o efeito por excelência do direito sobre a vida
– e isso num sentido também extra-jurídico e informal: a vida encontra-se num estado
de perpétuo julgamento (e não haveria definição teológica mais exata do inferno). A
apoteose da culpa seria contemporânea à era de subjetivação da lei – mesmo quando
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falte o litígio real, intervirá o aguilhão da consciência, como a juíza incansável, que fareja
o erro e o crime no mais corriqueiro dos gestos.
Difícil não notar, nestas reflexões recentes de Agamben sobre a culpa, a
ressonância de uma formulação pronunciada vinte e dois anos antes, em Homo Sacer:
“A culpa não se refere à transgressão, ou seja, à determinação do lícito e do ilícito, mas
à pura vigência da lei, ao seu simples referir-se a alguma coisa. (...) [E] nesse sentido o
direito ‘não possui por si nenhuma existência, mas o seu ser é a própria vida dos
homens’” (Homo sacer. O poder soberano e a vida nua, 1.6). Entre um momento e outro,
entre Homo Sacer I e Karman, o giro essencial (ou o suplemento notável) é a posição da
subjetividade moderna como veículo de transmissão e reforço da violência originária da
lei, acentuando de maneira inaudita as tendências que Agamben já via se formar na
virada do mundo antigo para o medieval.
Mas entre o direito romano e os emblemas sombrios da modernidade kafkiana,
tiveram lugar alguns eventos essenciais. O processo de interiorização da culpa não teria
alcançado tamanha força se não houvesse uma elaboração teológico-cristã prévia da
noção de vontade. O dispositivo da vontade já havia sido analisado em O Reino e a Glória
(4.14), a partir de sua função na economia trinitária. Dividindo a potência divina em
absoluta e ordenada, ele permitiu refrear as consequências inaceitáveis da onipotência
de Deus (e, mais em geral, de toda doutrina da potência – incluindo do homem, criado
“à imagem e semelhança de Deus”), tentando a todo custo impedir assim que o ovo
anárquico da potência chocasse. A grosso modo, a vontade de Deus serve para o
controle da própria potência divina – afirmação cujas aporias apareceram lá e
reaparecem aqui. Mas agora o interesse de Agamben não é entender a economia
trinitária (da qual os paradigmas modernos de governo ainda estariam impregnados),
senão antes investigar a participação do dispositivo da vontade na gênese da ética cristã
e moderna. Um empreendimento em direta continuidade com o livro Opus Dei (2014).
Em Karman, Agamben aponta alguns precedentes greco-romanos importantes
(que não teremos como desenvolver aqui), mas em geral o que se salienta é a ruptura.
Não haveria nem mesmo, entre os gregos, um termo exato para vontade, no sentido de
ação livre responsável, no máximo, um germe aristotélico; e, em geral, segundo
Agamben, seria um pensamento inclinado à potência e não à vontade e ao sujeito. O
essencial é que os teólogos e depois a modernidade, em especial representada pela
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deontologia kantiana, atualizam as discussões aristotélicas sobre a correlação entre
potência e ato, tendo como principal estratégia sua regulação e controle a partir de uma
espécie de princípio soberano, a Vontade (Cf. Karman, 3.1). Por trás da ideia de vontade
livre, estaria na verdade o dever e o comando. Para caracterizar o caráter anômalo do
processo, Agamben faz questão de usar o termo “enxerto” (innesto), enxerto da vontade
na potência, operação cirúrgica destinada a coagular o jorro anárquico desta última.
Vejamos algumas das implicações do dispositivo teológico da vontade:
Um dos problemas básicos com os quais se tem de lidar é o fato de haver ações
que o homem poderia ou deveria fazer e não pode mais fazer. Em outras palavras: como
responder a algo que não posso fazer? A vontade intervém neste momento para
sancionar e governar esta crise da potência, transformando o insignificante “eu não
posso” em um pecaminoso “eu não quero”. A impotência torna-se culpa e pecado e a
ação humana torna-se condenada a realizar aquilo que ela efetivamente não pode,
numa espécie de débito infinito e insanável.
Além disso, a vontade humana deve funcionar na criatura como modo de
traduzir a vontade divina infinita, em si mesma incapaz de efetuação. O homem é
pensada como instrumento na economia salvífica de Deus. O que significa também que
a vontade humana deve permanece absolutamente imprópria, vicária da vontade
divina. Expresso em termos morais, a vontade humana só pode ser boa, enquanto
permanece imprópria, isto é, veículo dos comandos divinos. Toda tentativa de
apropriação da própria vontade é Queda e pecado.
É exatamente esse dispositivo da vontade que parece estruturar até hoje nosso
pensamento ético, como tanto Karman quanto Opus Dei mostram numa extensão que
não poderá ser explorada aqui. Destacadamente, a obra de Kant, eleita por Agamben
como a principal responsável pela secularização de um paradigma a princípio jurídico e
teológico.
Referências
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Einaudi, 2005.
______. Il regno e la gloria: per una genealogia teologica dell’economia e del governo.
Vicenza: Neri Pozza, 2007.
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_______________. The archaeology of comandment.
http://www.egs.edu/faculty/giorgio-agamben/videos/the-archaeology-of-
commandment/ Acessado em 08/06/2015.
_____________. The form of the commandment.
https://www.youtube.com/watch?v=v-9u0aMbGh8 Acessado em 08/01/2015.
_____________. The archaeology of comandment. Seminário na Kingston University
(28/03/2011). http://backdoorbroadcasting.net/2011/03/giorgio-agamben-
%E2%80%93-what-is-a-commandment/ Acessado em 08/06/2015. [Texto transcrito:
https://waltendegewalt.wordpress.com/2011/04/01/giorgio-agamben-what-is-a-
commandment-απομαγνητοφώνηση/
_____________. Opus dei: arqueologia do ofício (Homo Sacer, II, 5). São Paulo:
Boitempo, 2013.
_____________. Karman. Breve trattato sull’azione, la colpa, il gesto, Torino: Bollati
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_____________. Qué es un paradigma? In: Signatura rerum: sobre el método.
Traducción de Flavia Costa y Mercedes Ruvituso. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2009.
_____________. O sacramento da linguagem. Arqueologia do juramento (Homo sacer
II, 3). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011.
_____________. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Traduzido por Vinícius
Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.
_____________. O que resta de Auschwitz: o arquivo e o testemunho (Homo Sacer III).
São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
COSTA, Flávia. Entrevista com Giorgio Agamben. Revista do Departamento de
Psicologia – UFF, vol. 18, n. 1, Rio de Janeiro, p. 131-136, jan/jun. 2006. Disponível na
internet: <http://www.scielo.br/pdf/rdpsi/v18n1/a11v18n1.pdf> Acessado em
08/06/2015.
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JEAN-PAUL SARTRE AND GIORGIO AGAMBEN IN DIALOGUE:
RETHINKING THE SOVEREIGN EXCEPTION AS THE DEATH OF GOD
Marcos Antonio Norris
(Doutorando em Teologia, Loyola University Chicago)
The theoretical death of God resulted for Sartre, as it did for Friedrich Nietzsche
a century before, in the transvaluation of society’s most sacred and authoritative values.
Without God there are no eternal moral principles, no inherent meaning to life, and,
most significantly for Sartre, no pre-given human nature to which our choices must
remain faithful. It is precisely because human beings lack the imago Dei, precisely
because “there is no God to conceive” of our nature, that we possess sovereign control
over our identities to levy the power of self-originating choice through volitional acts of
signification (SARTRE, 2007, p. 22). The freedom upon which Sartre founds his notion of
existential authenticity logically emerges in a world without God, so the philosopher is
critical of secular positions that base their metaphysical theories on, what he calls, the
desire to be God. As John Gillespie writes: “This exultant atheism demonstrates that
Sartre’s liberty is a freedom without God. His theoretical writings seek to refute the idea
of God, but … returning as they frequently do to the notion of the divine, [they] both
reject it and incorporate it” (GILLESPIE, 2013, p. 85). To this end, Sartre describes human
consciousness – what he calls being-for-itself – as a lack of being that naturally strives
to become an essence, or being-in-itself.
The for-itself is the being which is to itself its own lack of being [he writes] The
being which the for-itself lacks is the in-itself. … Thus human reality is the
desire of being-in-itself. The fundamental value which presides over this
project is exactly the in-itself-for-itself; that is, the ideal of a consciousness
which would be the foundation of its own being-in-itself by the pure
consciousness which it would have of itself. It is this ideal which can be called
God (SARTRE, 1953, pp. 723-24).
The nothingness, or lack of being, upon which Sartre founds human
consciousness strives to become a self-identical essence that he here identifies with the
Judeo-Christian God. Sartre is critical of this metaphysical stance because it endows
ontology with a divine-like authority which itself derives from the theological
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presupposition that God is the foundation of being. For Sartre, then, to be “in-itself-for-
itself” is to be like God, so any philosophical stance that prioritizes the metaphysical
authority of pure essence is, at its core, a sublimated theological belief. This
ontotheology, as Sartre calls it, disguises the for-itself as the in-itself, concealing
nothingness, or non-being, within an absolute essence. As Jerome Gellman writes, it “is
not possible for anything to be both the in-itself and a for-itself”, which is why Sartre
will conclude that “God does not exist” (132). Sartre’s atheism grows out of his
ontotheological critique, for one cannot exercise his free consciousness, or lack of being,
if he is also bound by a fixed ontological essence. Sartre concludes, on this basis, first,
that God does not exist, and, second, that human consciousness is radically free as a
pure nothingness, or lack of being, that logically emerges in a world without God.
In a brief description of the ancien régime, Giorgio Agamben observes that,
prior to the French Revolution, the king’s sovereignty was “divinely authorized” (2017,
p. 106). In this sense, the legal system enforced under the king of France was ultimately
decreed by God, whose sole ability to establish transcendental moral laws placed him,
rather than the king, at the top of a political hierarchy. Theoretically speaking, then, God
was the origin of power; the king was his political representative. In other words, the
king’s executive powers merely enforced transcendental laws that, under a theocratic
monarchy, were thought to originate with God, who retained the sole capacity to create
or abolish laws. Agamben describes the executive power of the king as a “force of law
without law”, which is to say, in other words, that the king enforces not his own will but
the will of a sovereign deity, from whom the king’s authority is derived (AGAMBEN,
2005, p. 199). Under this form of government, God alone decides on laws which the king
then performs, or executes, through brute military force.
The distinction between executive power and legislative power, between the
power to enforce laws and the power to create them is similarly depicted in Sartre’s
1943 play The Flies. The character of Zeus says to King Aegistheus, “You may hate me,
but we are akin; I made you in my image” (No Exit 1989, p. 100). Aegistheus lacks
sovereign control over his identity and enforces not his own will but the will of the deity
who made him. In other words, the actions of Aegistheus are, to quote Agamben,
“divinely authorized”, while the free choices of Orestes, who shirks the ontic
responsibilities of a king, derive their authority from Orestes alone. For Sartre, these
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contrasting models of personhood represent the sovereign subject, who, as the paragon
of authenticity, takes full responsibility for his freedom, as well as, by contrast, the
essential subject, who acts according to the nature of his ontic vocation and thereby
reveals an unconscious desire to become like God. This is why freedom, for Sartre, is
thought to profane divine authority. Aegistheus performs his identity as one exercising
the executive powers of a king, while Orestes, fully equipped with both executive and
legislative capabilities, exercises sovereign control over his identity though volitional
acts of free will. “I am doomed to have no other law but mine”, he states (SARTRE, 1989,
p. 119). This freedom to create laws that run counter to and exert authority over the
eternal laws of God represents, for Sartre, a profane challenge to ontotheology.
It is therefore important at this juncture to make explicit where Sartre and
Agamben are in agreement, as it will help to clarify, in the coming pages, where exactly
their theories diverge. To begin, both Agamben and Sartre share the distinction between
executive power and legislative power, but Sartre uses a different terminology to
communicate these ideas. Executing a law, for Sartre, is the same as performing – by
acting in accordance with – the laws of nature, just as a theocratic king, in both his and
Agamben’s accounts, acts according to nature by enforcing the divine laws handed down
to him from above. Likewise, both Agamben and Sartre share an understanding of
legislative power, though Sartre describes this law-making capacity as a negative
ontology, or lack of being, that gives humanity the power to make sovereign, self-
originating choices. But a lot of people utilize this power in bad faith and conceal the
freedom of being-for-itself within the absolute essence of a fixed, ontological identity.
This represents, for Sartre, a sublimated desire to become a pure essence like God.
Though Agamben will give a very different account of the divine nature, he agrees with
Sartre that theological beliefs are sometimes sublimated, or repressed, in
ontotheological form. He gives an account of the political implications of theological
repression in his 2005 book Profanations:
Secularization is a form of repression. It leaves intact the forces it deals with
by simply moving them from one place to another. Thus the political
secularization of theological concepts (the transcendence of God as a
paradigm of sovereign power) does nothing but displace the heavenly
monarchy into an earthly monarchy, leaving its power intact. Profanation,
however, neutralizes what it profanes. Once profaned, that which was
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unavailable and separate loses its aura and is returned to use. Both are
political operations: the first guarantees the exercise of power by carrying it
back to a sacred model; the second deactivates the apparatuses of power and
returns to common use the spaces that power had seized (p. 77).
Sartre’s atheistic stance would appear to profane, rather than merely
secularize, the sovereign authority of God. He describes the subject’s attempt to
become a pure essence as an ontotheological tendency in human beings who, in the
very manner described above by Agamben, sublimate their desire to become God by
concealing within their feigned ontological essence a capacity for sovereign, self-
originating choice. But I will argue that it is precisely his legislative powers as a free
subject that makes the individual most like God, for Agamben, whose account of
sovereign decisionism also comprises his political theory of the state.
Therefore, Sartre’s atheism does not profane the metaphysical authority of God
but redirects it from the deity to mankind (2013, p. 82). In this sense, I agree with
Agamben scholar Colby Dickinson that modern atheistic thought “has not removed God
from the scene”, but has rather “intensified theology’s hold on humanity” by turning, as
it has, “to a repressed form of secularity” (DICKINSON; KOTSKO, 2015, p. 130). I examine
Agamben’s account of nothingness in the pages that follow to show how existential
choice models the repressed theological foundation of Sartre’s theory, for Sartre’s
atheistic critique of ontotheology is itself ontotheological, in Agamben’s view. It
assumes the power, in the aftermath of God’s disappearance, to create moral laws in
much the same way that a sovereign political leader will create new laws during a state
of emergency (2013, p. 82).
To understand Agamben’s critique of ontotheology, I turn to his 1991
publication Language and Death: The Place of Negativity, where he develops a theory
of language that profoundly informs his political analyses in the decades to come. It is
also here that Agamben begins building a critique of sovereign decisionism that will help
me draw out the violent political consequences of Sartre’s philosophy. Agamben traces
the key existential concept of nothingness back to the scholarship of ancient Greek
grammarians, who significantly informed the theological perspectives of St. Thomas
Aquinas, St. John of Damascus, and Alain de Lille, in Agamben’s view. Noting the
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Anais do PPGCR (PUC-Campinas), Campinas, v. 1, n. 1, p. 1-92, jan.-jun. 2018
influence of the grammarians on medieval theology, Agamben proposes a linguistic
understanding of the divine nature, writing that:
The link between grammar and theology is so strong in medieval thought that
the treatment of the problem of the Supreme Being cannot be understood
without reference to grammatical categories. In this sense, despite the
occasional polemics of theologians opposed to the application of grammatical
methods to sacred scripture (Donatum non sequimur), theological thought is
also grammatical thought, and the God of the theologians is also the God of
the grammarians (AGAMBEN, 1991, p. 27).
The origin of grammar, according to Agamben, was attributed by the ancient
grammarians to Plato and Aristotle, who believed that language was inseparable from
the categories of being. “A decisive event in this context came”, he writes, “with the
connection of the pronoun to the sphere of the first substance (prote ousia), made by
Apollonius Disculus, an Alexandrian grammarian from the second century A.D.”
(Language 1991, p. 20). The connection took on an even greater currency with
grammarians in the second half of the fifth century who identified the pronoun with
“pure being in itself, before and beyond any qualitative determination” (AGAMBEN,
1991, p. 20). The basic idea was that pronouns remained indeterminate until entering
discourse, where they could be attributed a determinate meaning in context.
This “privileged status of the pronoun” would reemerge in modern linguistic
theories by Roman Jakobson and Émile Benveniste who described the pronoun as an
empty signifier that pointed to the very event of language itself, which is to say, the
mere fact of existence before any determinate meaning is given to it (AGAMBEN, 1991,
p. 20). Pronouns “become ‘full’ as soon as the speaker assumes them in an instance of
discourse. Their scope”, Agamben writes, “is to enact ‘the conversion of language into
discourse’ and to permit the passage from langue to parole” (1991, p. 24). According to
Agamben, the grammatical distinction between entities and the mere fact of existence,
between signification and language as an abstract system of potential meanings also
plays a role in the history of Christian thought. It is here that the ontological category of
nothingness takes on an ontotheological significance.
To better understand the theological underpinnings of Sartre’s theory, I shift
the focus to ancient Hebrew and medieval Christian theologians who saw the divine
nature, according to Agamben, as a kind of nothingness, an originary potential that
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passes into actuality through divisive, signifying acts of creation. As Agamben explains,
the capacity to create ex nihilo cuts to the heart of the divine nature which, as the
“negative foundation of human discourse”, is paradoxically natureless – a realm prior to
signification and the representational divisions that bring intelligibility to our world
(1991, p. 30). Agamben traces this belief back to the secret and unspeakable name of
God, the tetragrammaton, which St. Thomas Aquinas, St. John of Damascus, and Alain
de Lille all identified with God’s pre-linguistic nature, the originary potential from which
all determinate entities would finally emerge. “[A]t this extreme fringe of ontological
thought”, Agamben writes, “where the taking-place of being is grasped as shadow,
Christian theological reflection incorporates Hebrew mystical notions of the nomen
tetragrammaton, the secret and unpronounceable name of God” (1991, p. 30). On this
basis, the ancient Hebrews would conclude that God was “no longer an experience of
language but language itself, that is, its taking place in the removal of the voice” (1991,
p. 30).
In other words, God, or “the taking place of language”, as Agamben refers to
him, “appears thus as the negative ground on which all ontology rests, the originary
negativity sustaining every negation. For this reason, the disclosure of the dimension of
being is always already threatened by nullity”, which is to say, in other words, that
nothingness, or the unbound potential at the heart of existence, lies within and thus
renders contingent every ontic reality, or positive instance of being (Language 1991, p.
36). As Agamben writes in Potentialities, “To be potential means: to be one’s own lack,
to be in relation to one’s own incapacity. Beings that exist in the mode of potentiality
are capable of their own impotentiality; and only in this way do they become potential.
They can be because they are in relation to their own non-Being” (1999, p. 182). God,
then, for these theologians and religious believers, was not an essence, as Sartre
imagined him, but the nothingness that precedes our ontological becoming.
One can certainly see, then, striking parallels in how Sartre and Agamben
formulate their conceptions of freedom, which is to say, the negative ground of ontology
that both refer to as nothingness. This nothingness is ontologically prior to essence and
therefore holds the capacity, as an indeterminate consciousness, to construct the world
ex nihilo through the power of decision, just as the Judeo-Christian God is believed to
have created the cosmos out of nothing, and just as the sovereign leader of the state is
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thought by Agamben to dictate the boundaries of legal behavior during a state of
emergency. Articulating these parallels more explicitly, we have, under the heading of
existence, being-for-itself and what Agamben calls a divine potentiality, whereas, under
the heading of essence, we have what Sartre calls being-in-itself and what Agamben calls
the actualization of ontological entities. Existence precedes essence as a potentiality
that precedes actuality. The parallels between Sartre’s and Agamben’s theories bear a
striking resemblance.
The crux of their disagreement, on which my own argument depends, concerns
what both philosophers describe as a sublimated desire to become God. As we have
already seen, Sartre argues that the for-itself strives to become a fixed ontological entity
in order to mimic the self-identical nature of God. As a result, the for-itself is concealed
within the in-itself, and the free subject goes on to behave, in bad faith, as if he lacked
the freedom to act in violation of the purportedly fixed boundaries of his ontic vocation.
In a direct reversal of this order, Agamben casts the divine nature as a pure potentiality,
not as a fixed ontological essence, so humanity’s desire to become God does not result
in the vanishing of the for-itself, but, by contrast, in the reformulation of the in-itself,
which takes on a drastically different mold, for, in Agamben’s depiction of ontotheology,
the in-itself is made contingent upon the for-itself, which dictates the boundaries of a
mutable but no less authoritative ontic reality through the power of self-originating
choice. Thus, “pure potentiality and pure actuality are [made] indistinguishable” from
each other, Agamben writes, giving way to a “zone of indistinction” that founds the
sovereign subject, in addition to the sovereign authority of the state (2017, p. 42).
This is why free choice, for Agamben, like the divine nothingness at the heart
of language, “is that through which Being founds itself sovereignly, which is to say,
without anything preceding or determining it … other than its own ability not to be”
(2017, p. 42). Self-origination is thus the highest expression of ontotheology, for
Agamben, who argues that sovereign leadership operates under this metaphysical
paradigm during a state of emergency to justify its violation of constitutional law.
Executive powers and legislative powers – actuality and potentiality – combine as a
single force in this “zone of indistinction” to police the laws that it alone has the ability
to create. While Aegistheus, in Sartre’s play The Flies, performs his identity as one
exercising the executive powers of a king, Orestes exercises the sovereign control of a
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divinity as one fully equipped with both executive and legislative capabilities. From
Agamben’s perspective, then, it is Orestes, rather than Aegistheus, who models a
sublimated desire to be like God. Of particular importance to this analysis is the role that
language plays in Agamben’s study, for human decision-making activates the transition
from langue to parole, from potential meaning to articulated meaning, and gives birth
to juridical divisions that dehumanize the non-citizen members of society in accordance
with the sovereign structures of signification. It is my belief that Agamben’s take on
secularized theism can be more widely applied to Sartre’s philosophy as a whole because
existential choice, like the sovereign exception, creates a zone of indistinction between
potentiality and actuality that founds its sovereign authority on nothingness.
References
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E. Pinkus with Michael Hardt. University of Minnesota Press, 1991.
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______. The Omnibus Homo Sacer. Stanford UP, 2017.
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DICKINSON, Colby and Adam Kotsko. Agamben’s Coming Philosophy: Finding a New Use
for Theology. Rowman & Littlefield International, 2015.
GELLMAN, Jerome. “Jean Paul Sartre: The Mystical Atheist”, European Journal for
Philosophy of Religion 2, 2009.
GILLESPIE, John. “Sartre and God: A Spiritual Odyssey? Part 1”, Sartre Studies
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Macomber. Yale UP, 2007.
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INTERFACES ENTRE AS VIRTUDES BABILÔNICAS DE BORIS
GUNJEVIĆ E O PROJETO DE ÉTICA MUNDIAL DE HANS KÜNG
Maria Liliane Oliveira do Nascimento
(Mestranda em Ciências da Religião, PUC-CAMPINAS)
A terminologia “interfaces”, aplicada nesta abordagem, justifica-se pela
complexa busca de pontos convergentes entre os dois autores estudados, os quais,
embora sejam de confissões religiosas diferentes, a trajetória acadêmica de ambos e
principalmente a visão crítica, aberta e progressista, em muito se assemelham. Hans
Küng13 e Boris Gunjević14 enfatizam em suas obras a importância da ética na teologia
política ou dimensão política, a universalidade das virtudes cristãs, bem como a
preocupação com o futuro da humanidade.
Na concepção de Küng (1999, p. 210), entre os novos paradigmas de teologia
para a pós-modernidade, está a dimensão política, que se caracteriza por “uma relação
teórico-práxis”, onde toda a teologia deveria aprender a pensar de um modo político
prático precisando, portanto, de uma “hermenêutica político-prática que tome uma
posição crítica em face à politização da religião– como meio de legitimização ou
estabilização de determinadas relações de poder” (KÜNG, 1999, p. 211). Para Gunjević
e Zizek (2015, p. 30), a política tanto na versão liberal-tolerante quanto na
fundamentalista “é concebida com a realização de posicionamentos éticos (sobre
direitos humanos, aborto, liberdade...), que preexistem à política [...] não só que toda
13 Nascido na Suíça em 1928, padre católico romano, ordenado em 1954. Estudou filosofia e teologia na Gregoriana em Roma, foi professor na universidade de Tübingen (1960-1996) onde dirigiu o instituto de pesquisa ecumênica. Exerceu papel central na redação do documento final do Vaticano II, do qual a convite do Papa João XXIII foi consultor teológico. Marcou presença na Igreja questionando as doutrinas tradicionais e a infalibilidade papal. Proibido em 1979 pelo Vaticano de atuar como teólogo católico, foi alvo de debate internacional. Nesta época foi nomeado pela universidade para a cadeira de teologia ecumênica, tarefa na qual foi imbuído de grande liberdade se dedicando prioritariamente à união dos povos, das raças, das religiões, enfatizando o que há de comum entre elas e relativizando o que as separa. Atualmente mantém boas relações com a Igreja e é presidente da fundação Ética Global em Tübingen (KÜNG, 2004). 14 Teólogo e pensador Croata. Estudou na Faculdade de Teologia Católica em Zagreb, onde cursou o doutorado em 2012. Gunjević foi professor da Faculdade Matthias Flacius Illyricus e pastor evangélico luterano na Igreja da Croácia. Atualmente, Gunjević é professor na Westfield House em Cambridge e pastor na Igreja da Inglaterra. Ele é um orador regular na Europa e nos Estados Unidos e publicou numerosos artigos acadêmicos em revistas especializadas (LECTURALIA. Boris Gunjević. Disponível em: <http://www.lecturalia.com/autor/21785/boris-Gunjević>. Acesso em: 02 dez. 1917).
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política é fundada numa visão teológica da realidade, mas que toda teologia é
inerentemente política”.
Percebemos que os autores abordam, em suas concepções referentes à
teologia e à política, uma intrínseca relação com a realidade enquanto práxis.
Destacaremos, a seguir, as interfaces entre os autores partindo da corrupção capitalista
e do princípio de universalidade católica de Gunjević e da ética universal para todas as
grandes religiões defendida por Küng. Posteriormente, trataremos de uma descrição das
virtudes babilônicas na visão de Santo Agostinho e das virtudes dos mandamentos
humanos do projeto de ética mundial.
1. Corrupção e universalidade
O imperialismo romano e o imperialismo capitalista têm suas bases sustentadas
pelo desejo de poder. Gunjević relata esta semelhança ao reescrever esta análise de
HARD e NEGRI:
Como diz Santo Agostinho, os grandes reinos são apenas projeções aumentadas de
pequenos ladrões. Agostinho de Hipona, entretanto, tão realista em sua ideia
pessimista de poder, perderia a fala diante dos pequenos chefes do poder monetário
e financeiro de hoje; de fato, quando o capitalismo perde sua relação como medida
de exploração individual e como norma de progresso coletivo, ele surge
imediatamente como forma de corrupção (HARD; NEGRI, 2001, p. 413, apud
GUNJEVIĆ, 2015, p. 61).
Gunjević relata que é preciso reler Império (Michael Hard e Antônio Negri) junto
com Cidade de Deus (Agostinho), pois a intenção de ambos é mostrar como a multidão
se torna “sujeito político”. Küng, no entanto, descreve esta preocupação com o
capitalismo desumano que visa apenas o lucro e que leva a sociedade globalizada a se
corromper, argumentando:
Se no atual processo de globalização for imposto como critério supremo, único e
exclusivo a busca do lucro, temos que estar preparados para enfrentar graves
conflitos e crises sociais. A atual força do capital e a relativa fraqueza dos sindicatos
não permitem que nos enganemos. Pois não é de supor que a sociedade como um
todo aceite sem resistência uma recaída no liberalismo do século XIX ou no
capitalismo puro (KÜNG, 2001, p. 104).
Küng ainda ressalta que “a busca pelo dinheiro e pelo poder levaram muitas
pessoas na área da economia a transgredirem mandamentos elementares da vida
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Anais do PPGCR (PUC-Campinas), Campinas, v. 1, n. 1, p. 1-92, jan.-jun. 2018
humana como: mentir, dar falso testemunho, enganar e furtar” (KÜNG, 2001, p. 103).
Com efeito, pelo projeto de ética mundial, Hans Küng tem o intuito de unir as religiões
em torno de princípios éticos em que as pessoas se tornem “mais humanas”.
Contatamos que ao longo da história da humanidade, tanto na decadência do
Império Romano descrito por Santo Agostinho, como atualmente as crises financeiras
mundiais e as crises sociais causadas pelo capitalismo sem valores humanos, foram
decorrências da falta de princípios éticos morais por parte daqueles que detêm o poder.
A universalidade como possível saída da decadência e da crise do mundo moderno é
destacada pelos autores da seguinte forma:
Nenhuma comunidade limitada poderia ter êxito e oferecer uma alternativa para o
domínio imperial, só uma comunidade universal, católica, reunindo toda a
população e todas as línguas numa jornada comum poderiam conseguir isso. A
cidade divina e a cidade universal dos estrangeiros, juntando-se, cooperando,
comunicando-se (HARD; NEGRI, 2001, p. 227, apud ZIZEK; GUNJEVIĆ, 2015, p. 63).
Não há dúvida de que existem múltiplas ameaças, políticas econômicas e militares
contra o mundo e o futuro da humanidade. Diante desta situação, a transição de
uma mentalidade particular para uma universal, e de uma teologia de controvérsia
para uma teologia ecumênica, é um desafio inevitável (KÜNG, 1999, p. 209).
Neste relato é perceptível que os autores trazem presente a comunidade e as
religiões como espaços possíveis de se viver a universalidade e o princípio ético do bem
comum.
2. As virtudes babilônicas e os mandamentos da humanidade
Pela descrição de Gunjević (2015, p. 72), sobre as virtudes do Império Romano
elencadas por Santo Agostinho, o autor retrata que este tornou-se grandioso por coisas
simples como: “o empenho das famílias e a administração justa no exterior, o espírito
objetivo e livre de liberação, não motivado pelo crime e pela injustiça e a riqueza pessoal
modesta junto a um rico tesouro público”. Este império não se tornou vasto e poderoso
por causa dos aliados políticos ou forças armadas, mas sim, porque depois de sujeitar
outras nações, os romanos as incluíram no estado romano comuns, com direitos e
privilégios que poucos tinham antes. A crítica de Agostinho defende que as virtudes
romanas não podem ser consideradas sem a desconstrução do império, pois, segundo
o argumento de Agostinho, os romanos não se tornaram uma nação porque não eram
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justos. Pois, “sempre chegavam à paz pela violência, lançando-se sobre os povos
sujeitados com o direito do poder” (GUNJEVIĆ, 2015, p. 74). Estas práticas injustas
levaram alguns séculos depois o Império Romano à decadência.
Para Agostinho, a Babilônia é metáfora para uma cidade fundada na violência
da guerra civil e na qual não há metas políticas boas por sua natureza intrínseca, sendo
que, as virtudes babilônicas só servem para manter o domínio, por isto serem rejeitadas.
Uma das afirmações mais importantes da Cidade de Deus é que “uma sociedade pagã
deixa não só de considerar a justiça mais a virtude em geral” (MILBANK apud GUNJEVIĆ,
2015, p. 76). Portanto, se a comunidade deseja ser justa, a comunidade deve ter a
convicção da justiça infinita, em cujos termos situamos o amor. Agostinho também
ressalta o exercício ascético–renúncia voluntária ao desejo pela glória e a sede do poder
–como caminho de superação das virtudes babilônicas que prevaleceram até os dias
atuais devido “a sua diabólica adaptabilidade ao mercado” (GUNJEVIĆ, 2015, p. 82).
Em concordância com Gunjević, porém, usando outro caminho metodológico,
Hans Küng enumera os grandes mandamentos da humanidade como meios de superar
as virtudes babilônicas baseadas na sede de poder do paganismo. Estes mandamentos
estão presentes na obra Ética global ou ética mundial, esboçada e apresentada para
mais de 200 delegados, representantes de várias religiões, no II Parlamento Mundial das
Religiões, em Chicago no ano de 1993, que teve grandes repercussões para o diálogo
inter-religioso. O núcleo da “ética global” é formado pelos quatro “grandes
mandamentos do gênero humano”, um código de conduta prático que possui validade
em todas as religiões universais: não matarás, não furtarás, não mentiras, não fornicarás
(HASSELMANN, 2003, p. 26). Estes mandamentos na concepção de Hans Küng se
desdobram em quatro âmbitos conclamando todos os homens, todas as instituições e
todas as nações a assumirem a sua responsabilidade: Por uma cultura da não violência
e do respeito a toda vida; por uma cultura da solidariedade e uma ordem econômica
justa; por uma cultura da tolerância e uma vida de veracidade; e, por uma cultura de
igualdade de direitos e de companheirismo entre homem e mulher. O segundo âmbito
ou preceito “por uma cultura da solidariedade e uma ordem econômica justa” enfatiza
a importância da ética baseada na caridade e justiça:
Contudo, nas grandes religiões antigas e nas tradições éticas da humanidade,
encontramos o ensinamento: não roubarás! Ou, em termos positivos: sê honesto! E,
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de fato, nenhum homem tem o direito de roubar ou despojar – de nenhuma maneira
– outros seres humanos ou o bem público. Reciprocamente, nenhum ser humano
tem o direito de usar seus bens sem se importar com as necessidades da sociedade.
Onde reina a pobreza extrema ocorrerão roubos, muitas vezes por necessidade de
sobrevivência, se o completo abandono e o desespero esmagador ainda estiverem
reinando. E onde o poder e a riqueza são acumulados sem piedade, sentimentos de
inveja, ressentimento e, sim, ódio mortal, inevitavelmente brotarão nos
despossuídos. Isso leva todos facilmente a um círculo diabólico de violência e contra-
violência. Não existirá uma paz global sem uma ordem global justa (KÜNG; MAURER,
2005, p. 80-81, tradução nossa).
Este preceito é um apelo a todos os crentes e não-crentes a viverem a
solidariedade baseada na justiça e na honestidade.
Conclusão
Em concordância com Gunjević (2015, p. 81), que enfaticamente adverte que
“é preciso buscar práticas alternativas que possam ser justapostas às virtudes que o
império glorifica”, percebemos que os mandamentos do gênero humano e os quatro
preceitos do projeto de ética mundial baseados na paz, no respeito à vida, na justiça, na
solidariedade, na tolerância, na verdade e na igualdade, podem ser virtudes alternativas
às virtudes imperialistas babilônicas ou capitalistas.
O sujeito-político revolucionário retratado por Gunjević e o sujeito-humano
ecumênico defendido por Küng, embora distintos nos pontos de vista dos autores,
possuem em comum o ideal do amor universal e da disciplina ética onde a racionalidade
capitalista não seria capaz de dominá-lo. Percebemos que a visão de Agostinho em
relação aos pagãos precisa ser atualizada. Com efeito, a modernidade e o secularismo
nos serviram para acreditar que os princípios éticos da justiça e do bem comum podem
ser vividos por todas as pessoas, quer sejam céticas (pagãs) ou religiosas.
Referências
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2012.
HARDT, Michael; NEGRI, Antônio. Império. Tradução de Berilo Vargas. 2. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2001, p. 227-413.
63
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HASSELMANN, Christel. A Declaração sobre Ética Global de Chicago 1993. Concilium,
Petrópolis: Vozes, n. 302, 2003, p. 25-39.
LECTURALIA. Boris Gunjević. Disponível em:
<http://www.lecturalia.com/autor/21785/boris-Gunjević>. Acesso em: 02 dez.
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KÜNG, Hans. Teologia a caminho: Fundamentação para o diálogo ecumênico. São Paulo:
Paulinas, 1999.
KÜNG, Hans. Projeto de ética mundial: Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência
humana. 4. ed. São Paulo: Paulinas, 2003.
KÜNG, H.; MAURER, A. R. La ética mundial entendida desde el cristianismo. Madrid:
Trotta, 2005.
ZIZEK, Slavo; GUNJEVIĆ, Boris. O sofrimento de Deus. Inversões do Apocalipse. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015, p. 30-83.
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SCHMITT E PETERSON: UM DEBATE ACERCA DA
TEOLOGIA POLÍTICA
Mariana Pfister
(Mestranda em Ciências da Religião, PUC-CAMPINAS)
Em O Reino e a Glória, Agamben investiga os primeiros séculos da teologia
cristã fazendo uma genealogia da oikonomia baseada em dois paradigmas derivados
desta teologia, nos quais se inscreve a tradição ocidental: a teologia política e a teologia
econômica. “Os dois paradigmas convivem e entrecruzam-se a ponto de formar um
sistema bipolar” (AGAMBEN, 2011, p. 81) – constituindo a máquina jurídico-política do
Ocidente. Como fundamentação para tal empreitada, ele se utiliza da famosa discussão
recheada de antagonismos teóricos engendrada por dois intelectuais do século XX – Carl
Schmitt e Erik Peterson. O primeiro paradigma é notoriamente representando por
Schmitt, cujo fundamento é a exata correlação entre Deus e a transcendência do poder
soberano terreno. Schmitt inaugura o paradigma teológico político em 1922 com a
famosa frase: “Todos os conceitos concisos da teoria do Estado moderno são conceitos
teológicos secularizados” (SCHMITT, 2006, p. 34), tendo como seu grande debatedor o
teólogo Erik Peterson. Os debates sobre teologia política dos dois amigos-adversários
ocorreram entre 1935 a 1970 mas, afirma Agamben que, tácita e veladamente, omitiram
abordagens sobre a teologia econômica, ou melhor dizendo, sobre o paradigma
teológico da oikonomia. A hipótese de Agamben de que há um duplo paradigma
resultante da teologia cristã, apresenta a história da cultura ocidental, da política de
maneira geral, como uma história contínua de separações e cruzamentos entre esses
dois paradigmas – político e econômico, os quais formam um sistema bipolar. Esse
sistema é demonstrado na relação, em Estado de Exceção (2003), entre auctoritas e
potestas e, no Reino e a Glória (2011) assume a fórmula: Reino e Governo, Glória e
Oikonomia.
Para Schmitt há a necessidade da presença permanente de um poder soberano
que seja capaz sobretudo de constituir a sociedade, ou seja, que seja hábil para decidir
sobre a ordem jurídica. Sob uma perspectiva teísta, a democracia se estrutura na
personificação unitária do presidente – é ele quem personifica a vontade de todos em
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uma só, dessa maneira o jurista reproduz o jargão: vox populi, vox Dei – a voz do povo,
é a voz de Deus. Schmitt faz uma adequação com as pessoas da santíssima trindade aos
termos do estado moderno: Deus é personificado na pessoa do presidente (tal como
ocorre no momento na consagração da liturgia católica em que o pão se transforma no
corpo de Cristo), o Filho seria o povo e o Espírito Santo o poder que a todos envolve –
todos estão juntos numa mesma unidade. Na decibilidade do poder soberano (do
presidente) quanto à exceção da lei está o milagre – a exceção é o milagre, pois é o
próprio Deus que opera na pessoa do soberano, logo pode agir tal como deseja. Defende
a soberania como um poder de decisão – tanto sobre a normalidade como também
sobre a exceção, sendo assim o poder soberano é apenas um, bem como o Estado sobre
o qual ele atua também deve ser.
Para a teologia política, fundamentada por Schmitt, a modernidade não está
fundamentada apenas na destruição de uma dada “verdade” num mundo totalmente
secularizado, mas no fato de que a autoridade colocada para sucedê-la, ou melhor,
substitui-la, não deixou de convocá-la, ou seja, a modernidade e suas figuras de
representatividade de poder ainda clamam pela metafísica, pela teologia de maneira
geral. A tese schmittiana aponta não só para uma analogia estrutural entre conceitos
teológicos e conceitos implícitos na formação do Estado moderno, sem a qual não é
possível compreender a origem e o processo de legitimação desse Estado, mas também
sugere veladamente uma relação “mais intima e ampla” entre os dois. Entretanto, não
se trata de estabelecer relações puras e duradouras entre teologia e estado, mas de se
admitir que, na origem estrutural alicerçante do Estado Moderno, estão fincados
conceitos teológicos, de maneira que toda política moderna parte do pressuposto de
uma metafísica, ou de uma teologia. Essa estrutura sincrônica da modernidade –
teológica e política – resulta na produção de um arcabouço conceitual de explicação do
mundo totalmente livre de qualquer transcendência promovendo uma cisão ontológica
entre razão e natureza.
Outro pilar da discussão acerca da teologia política, é um importante teólogo
bastante citado por Agamben – Erik Peterson, com o qual Schmitt debaterá sobre a
legitimidade da teologia e política. Sua grande obra de maior repercussão foi O
Monoteísmo como problema político publicada em 1935 aparecendo como um
desdobramento de sua laboriosa tese Heis Theós.
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O teólogo propõe uma arqueologia sobre o termo “monarquia” partindo do
caso de Aristóteles que, não utiliza o vocábulo “monarquia”, mas sim a ideia – no seu
sentido duplo de que a monarquia divina é o único poder coincidindo com o “ser
poderoso” (único detentor desse poder). Peterson explica que a meta do livro 12 de
Metafísica era apresentar Deus como algo que transcende todo o movimento e, para tal
feito, o autor faz alusão ao movimento tático dos guerreiros no exército, seguindo um
plano de batalha do general que está oculto. No escrito Sobre o mundo, em vez disso,
Deus é um tipo de manipulador de fantoches que, movendo um único fio, produz a
multiplicidade de movimentos do mundo (tradução nossa). Nesse tratado, o autor não
destaca o monarca, mas deixa-o permanecer oculto em seu palácio, velado como o
artista das marionetes, Peterson defende que, o que se vê é apenas sua força atuando
no mundo como um poder invisível representado na forma – “O rei reina, mas não
governa”.
Os apologetas Justino, Taciano e Teófilo de Antioquia também empenharam-
se em discutir sobre o conceito de monarquia e, segundo Peterson, este conceito está
enraizado com o conceito de monarquia do judaísmo alexandrino, o qual era
definitivamente um conceito político/teológico que consistia em fundamentar a
superioridade religiosa do povo judeu frente ao paganismo – algo que mais tarde os
cristãos o fariam: toda a literatura missionária da Igreja Católica utilizaria o conceito
político-teológico da monarquia divina para se sobrepor como o “povo de Deus”, da
Igreja de Cristo, sobre os demais gentios, politeístas. Eusébio de Cesaréia, conhecido
também como “pai da história eclesiástica” dá um passo a mais ao fazer uma relação
direta entre o império romano e o cristianismo afirmando que esta relação não era
somente coincidência providencial, mas uma ligação causal de natureza teológica – o
imperador Augusto, seguido de Constantino, ao proporcionar paz a todos seria o claro
sinal da existência do único Deus no céu. Essa era a paz escatológica prometida pelos
profetas e alcançada no império de Augusto/Constantino.
Peterson considera que a doutrina trinitária desfere um golpe mortal em todas
as tentativas de se instrumentalizar o religioso pelo político e vice-versa e, é com
Gregório de Nazianzo que esta doutrina ganha força. Nazianzo repele totalmente as
ideias de Eusébio de Cesaréia – não existe nenhuma analogia entre a monarquia divina
e realidades criadas, ou seja, a transcendência de Deus é absoluta, seguindo na mesma
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linha de Agostinho ao negar qualquer identificação entre o império romano e a cidade
de Deus. Já em vias de terminar seu tratado Erik Peterson argumenta fragilmente que
os Padres da Igreja tinham consciência de que o monoteísmo é de origem judia e que,
portanto, o monoteísmo como problema político surgiu da fusão entre a cultura
helenística e a fé judia em Deus. Para o teólogo criou-se uma espécie de amálgama entre
a monarquia divina e o princípio monárquico advindo da filosofia grega, o que funcionou
para o judaísmo como um slogan político teológico, pois à medida em que a igreja ia se
expandindo através do império romano, também assumia como propaganda o conceito
político teológico que, mais tarde, vai se chocar com a concepção pagã de teologia
política. Peterson encerra sua obra reiterando que com a doutrina da Trindade finda
teologicamente a questão do monoteísmo como problema político, libertando
completamente a fé cristã de qualquer relação com o império romano – “Somente em
um terreno judeu ou pagão pode surgir algo como uma ‘teologia política’”15. O
monoteísmo trinitário representa para Peterson algo como uma antiteologia política.
É Carl Schmitt, na segunda parte de Teologia Política (1969), que havia
provocado novamente o debate, embora seu debatedor já estivesse falecido há nove
anos. O jurista retoma, então, a principal obra petersoniana: “A legenda diz que aquele
curto tratado de 1935 teria resolvido, terminantemente, toda Teologia Política”
(SCHMITT, 2006, p. 62). Faz análise detalhada argumentando ponto a ponto as teses do
teólogo.
Schmitt conclui o tratado de Peterson basicamente em três sentenças, que são:
1) a doutrina da monarquia divina e a interpretação da Pax Augusta na escatologia cristã
teriam que fracassar frente ao dogma da trindade; 2) O monoteísmo como problema
político então está resolvido e o cristianismo liberto das amarras do império romano,
rompendo-se também com toda e qualquer “teologia política”; 3) Somente no campo
do judaísmo e paganismo poderia haver algo como uma “teologia política”.
Aprofundando-se em cada uma delas, o jurista afirma à vista disso, que estaria
“resolvido, teologicamente, o monoteísmo como problema político”.
O embate torna-se mesmo pujante na retomada da expressão latina rex regnat
sed non gubernat (o rei reina, mas não governa) pelo teólogo Erik Peterson, com a qual
15 “Sólo en un suelo judío o pagano puede levantarse algo así como una ‘teología política” (PETERSON, 1999, p. 95, tradução nossa).
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centraliza-se toda a discussão do monoteísmo judaico e pagão. Schmitt diz que Peterson
quer interpretar um pensamento que para ele é judaico-helenístico com uma teologia
política monoteísta quando, na verdade, essa fórmula não é teologia e sim “pura
metafísica” não tendo originalmente nenhum sentido político-teológico. Com esse
argumento histórico Schmitt quer enfraquecer Peterson: “considero justamente essa
intercalação, nesse contexto, como a mais interessante contribuição apresentada por
Peterson – talvez inconscientemente – à Teologia Política” (SCHMITT, 2006, p. 97).
Todavia, o que Erik Peterson desejava demonstrar era: a proposição que diz Deus reina,
mas não governa, deriva então a consequência gnóstica de que o reino de Deus é bom,
mas o governo do demiurgo – das forças demiúrgicas, que podem também ser
consideradas sob a categoria dos funcionários – é mau ou, em outras palavras, o governo
sempre erra” (PETERSON, 1999, p. 54, tradução nossa).16
Para o teólogo, a distinção entre reino e governo tinha suas raízes apenas na
teologia política judaica e pagã, contudo encontra-se também nos teólogos cristãos dos
séculos III e V, quando já elaboraram a distinção entre ser e oikonomia, entre
racionalidade teológica e racionalidade econômica. Essa separação rendeu a Agamben
um aprofundamento rigoroso na distinção entre Reino e Governo.
Agamben compreende que, mesmo não sendo seu objetivo, o legado de
Aristóteles à política ocidental é o de um paradigma divino no mundo atuando como um
sistema duplo – de um lado representado pela transcendência e de outro pela imanência
de ações e causas segundas, de maneira que o deus aristotélico relaciona-se ao
paradigma Reino – Governo: “O deus de Aristóteles [...] é um roi fainéant, um rei
folgazão: o rei reina, mas não governa”. O pensamento medieval e, por conseguinte a
teologia cristã recebem do aristotelismo o princípio do paradigma do ser transcendente
e todo problema ontológico da relação entre Deus e o mundo. A conclusão que chega
Agamben é a de que existe uma dupla estrutura, definindo a máquina governamental
do Ocidente, de modo que todo poder tipicamente soberano articula-se segundo essas
duas polaridades: dignitas e administratio, Reino e Governo, titularidade e execução, o
poder de julgar e o exercício do julgamento.
16 “La proposición que dice que Dios reina, pero no gobierna, lleva a la conclusión gnóstica de que el reinado de Dios es bueno, pero el gobierno del demiurgo, o sea, de las –fuerzas demiúrgicas, que después serán vistas bajo la categoría de funcionarios-, es malo; en otras palabras, que el gobierno nunca tendrá razón” (PETERSON, 1999, p. 54).
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O sentido original desta distinção entre poder primário e secundário, segundo
o pensador, é o bom funcionamento da máquina governamental, ou seja, essa divisão
dos dois poderes é, sobretudo, a garantia da possibilidade do governo dos homens no
mundo. O poder apresentado como Reino e Governo tem seu verdadeiro germe
inaugurado com a divisão na própria divindade, entre o ser de Deus e sua ação salvífica
no mundo, cujo imbróglio é resolvido pela oikonomia – a economia é, o dispositivo que
permitiu compreender as pessoas da trindade como uma disposição econômica e não
como uma fratura ontológica.
A tradução de oikonomia não se restringe apenas ao “plano divino” mas o
paradigma teológico econômico, ao se impor como atividade/encargo, foi decisivo para
forjar uma história da humanidade muito mais “gerencial” e “governamental” (mais
economia/menos política, mais poder executivo/menos poder legislativo).
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O Reino e a Glória: uma genealogia teológica da economia e do
governo. São Paulo: Boitempo, 2011.
PETERSON, Erik. O Monoteísmo como problema político. Madrid: Trotta, 1999.
SCHMITT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
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POVO SEM RAIZ: O TOTALITARISMO E
AS “ORIGENS” DO HOMO SACER
Patrícia A. de Almeida
(Mestranda em Ciências da Religião, PUC-CAMPINAS)
Retornando séculos atrás, a história dos direitos humanos remonta da Idade
Média, passando pela era das revoluções e adentrando a contemporaneidade. Inicia-se
com a construção de uma consciência histórica, empreendida a partir de discussões
realizadas nos campos teológico (religioso) e filosófico, que buscavam, primeiramente,
conceituar o ser humano, em sua importância e dignidade, sob a qual se promovia,
pouco a pouco, a concepção de um sujeito requerente de direitos elementares; bem
como na datação dos primeiros marcos constitutivos como, por exemplo, a Magna Carta
(1215) e, alguns séculos adiante, as Revoluções Americana e Francesa, das quais
emergiram influentes declarações de direitos. Na contemporaneidade, as duas grandes
guerras do século XX desafiaram de modo absoluto os direitos humanos, os quais
ressurgiram como valor de primeira grandeza após a devastação e o caos gerados,
sobretudo, pela Segunda Guerra (1939-1945). Para tanto, criaram-se organizações em
defesa dos direitos fundamentais dos seres humanos, como a Organização das Nações
Unidas (ONU), em 1945.
Quase dois séculos após a Revolução Francesa, perante a incidência das duas
grandes Guerras Mundiais, um período de consequências catastróficas se instalou, em
que os rastros deixados eram de profundo desequilíbrio, acometendo a comunidade
europeia, nas diversas esferas norteadoras: política, econômica e cultural. Na descrição
de Hannah Arendt, em Origens do Totalitarismo (2012)17, fora um período de “declínio
do Estado-nação” em que os direitos do homem ora difundidos pelas declarações –
francesa e americana – se encontravam em extinção.18
17 Como estamos trabalhando com obras traduzidas, vale ressaltar que as obras originais [primeira publicação] em sua grande maioria datam de outros períodos. 18 “Sua situação angustiante não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles, nem que seja para oprimi-los. Só no último estágio de um longo processo o seu direito à vida é ameaçado; só se permanecerem absolutamente ‘supérfluos’, se não se puder encontrar ninguém para ‘reclamá-los’, as suas vidas podem correr perigo” (ARENDT, 2012, p. 402).
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No cenário apresentado por Hannah Arendt, visualiza-se no contexto das duas
grandes guerras, bem como no período de espaçamento entre elas, a ocorrência de um
amplo movimento de formação de minorias, apátridas e refugiados, acarretados pelos
efeitos e devastações das próprias guerras, revoluções, e governos totalitários. Fora um
período de extrema violação dos direitos humanos, contexto este que antecedeu e
motivou os processos que ocorreram em sequência, marcantes na história dos direitos
humanos.
É para essa condição, descrita claramente por Arendt, que aponta a
constatação realizada por Giorgio Agamben, filósofo italiano contemporâneo, que
estabelece associação do termo do direito romano homo sacer – presente em sua
discussão referente a exclusão humana – à figura do refugiado, remetendo também ao
apátrida.
Elencando dois sublimes pensadores que refletiram de maneira bastante
incisiva a problemática realidade política contemporânea, Giorgio Agamben (2010)
realiza leitura e estabelece diálogo com as contribuições fornecidas pela própria Hannah
Arendt, além de Michel Foucault, filósofo francês. Agamben, que lerá Foucault, utiliza-
se do conceito de biopolítica, distinguindo-se apenas em relação ao período que este
modelo entraria em vigência. Assim, enquanto Foucault compreende que a biopolítica
teria se estabelecido na modernidade, no final do século XVIII e século XIX em diante,
Agamben interpreta que a biopolítica estaria presente desde o pensamento clássico na
política ocidental.
Foucault (2005) denomina o modelo de atuação do Estado contemporâneo
(iniciando-se ao final do século XVIII) com o conceito de biopolítica, em que o campo de
atuação política deixa de ser única e exclusivamente o território, tornando-se a vida
humana. As implicações dessa mudança de campo favoreceriam a função dominadora
do Estado que, através das novas técnicas e ferramentas pautadas no biopoder, são
executadas, visando o maior controle da sociedade, e com a finalidade de se manter
concentrado o poder nas “mãos” estatais.
Os estudos de Arendt concentram-se na instância, em que a biopolítica é
melhor representada: o campo de concentração. No entanto, apesar das investigações
da autora se debruçarem sobre o campo de concentração, Agamben destaca que o
limite na produção de Arendt é a falta de perspectiva biopolítica, pois apesar de em sua
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obra apresentar concepções que possam permitir que se enxergue este caráter
biopolítico, a autora não utiliza o conceito. Em suma: “Que os dois estudiosos que
pensaram talvez com mais acuidade o problema político do nosso tempo não tenham
conseguido fazer confluir as próprias perspectivas é certamente índice da dificuldade
deste problema” (AGAMBEN, 2010, p. 117).
Contextualizadas, mesmo que brevemente, a contribuição dos autores
apontados é crucial para compreendermos alguns pressupostos dos quais Agamben
parte para desenvolver sua releitura crítica da tradição política. Nesse diálogo
estabelecido com Arendt e Foucault, o autor italiano identifica as potencialidades e os
limites nas obras dos dois filósofos, trazendo à luz uma figura que em sua obra possui o
ponto de intersecção entre as potencialidades dos autores, sendo uma lente aonde se
faz convergir as contribuições levantadas com a figura que utiliza como chave para sua
interpretação da realidade política moderna. Estamos nos referindo ao homo sacer.
Em sua reflexão sobre a exclusão, Agamben utiliza-se do termo romano homo
sacer, conceito que se referia ao sujeito que poderia ser morto (dado em sacrifício) sem
que essa ação gerasse punição a quem o executasse, pertinente à ideia de sacrifício
impuro, por isso passível de banimento; nesse limiar, o homo sacer estaria desamparado
de qualquer instância a seu favor, tanto terrena (Direito, Política), quanto divina, assim
como se questiona no seguinte trecho: “O que, é então, a vida do homo sacer, se ela se
situa no cruzamento entre uma matabilidade e uma insacrificabilidade, fora tanto do
direito humano quanto daquele divino?” (AGAMBEN, 2010, p. 76).
Conforme Agamben, na contemporaneidade existem sujeitos que podem ser
equiparados ao homo sacer, resultantes da gênese [violenta] em que se calca o poder
soberano, na figura do Estado. Estabelece analogia do modelo político vigente, ao
campo de concentração e problematiza a efetivação da democracia nas sociedades
ocidentais, destacando o “caráter ambíguo” (AGAMBEN, 2010).
A partir da leitura que realiza do Estado moderno (ocidental), caracteriza-o
como regendo-se pelo estado de exceção, e discorre que este estaria sendo adotado
como um paradigma de governo. Nesse sentido, a democracia estaria se assemelhando,
a partir dessa prática, a lógica que regeria os regimes totalitários, conforme o trecho: “O
estado de exceção não é um direito especial (como o direito de guerra), mas, enquanto
suspensão da própria ordem jurídica, define seu patamar ou seu conceito-limite”
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(AGAMBEN, 2005, p. 15) Concluindo, acerca da exclusão gerada, é diante desse quadro,
que o filósofo desenvolve crítica aos direitos humanos.
Considerando os pressupostos teóricos apresentados, elenca-se a associação
que Agamben faz, do refugiado ao homo sacer, classificando-o como figura em que a
concepção de cidadania é negada. Analisando os atuais acontecimentos referentes aos
refugiados, é contundente a seguinte colocação:
O essencial é que, todas as vezes que os refugiados não representam mais
casos individuais, porém um fenômeno de massa (como aconteceu entre as
duas guerras e novamente agora), tanto essas organizações como cada um
dos Estados, malgrado as evocações solenes dos direitos inalienáveis do
homem, demostraram-se absolutamente incapazes não só de resolver o
problema, mas também, simplesmente, de enfrentá-lo de modo adequado
(AGAMBEN, 2015, p. 26-27).
Diante da emergência atual, verificam-se posturas contraditórias por parte de
alguns países perante à situação dos refugiados; advindas principalmente de países da
Europa, devido à proximidade aos conflitos e principalmente por ser o destino previsto
por grande parcela dos refugiados, as disparidades em relação à questão, no entanto,
não se restringem apenas aos países desse continente, como se nota no caso dos
Estados Unidos. Posturas que têm se afirmado abertamente por meio de figuras
políticas, em posições decisórias ou não, que ao pronunciarem declarações categóricas
de oposição aos imigrantes, vêm tornando, nesse sentido, questionável a adesão à
Declaração Universal dos Direitos Humanos, resgatando resquícios de um passado da
Europa não tão distante (CARTA CAPITAL, 2015; COSTA, 2016; CRISP, 2015).
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2005.
_____. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. 2. ed. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2010.
_____. Meios sem fim: Notas sobre a política. Trad. Davi Pessoa Carneiro. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015.
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
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CARTA CAPITAL. Perguntas e respostas: crise imigratória na Europa. In: Carta Capital,
2015. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/internacional/perguntas-e-
respostas-crise-imigratoria-na-europa-9337.html>. Acesso em Novembro 2016.
COSTA, Antonio Luiz M. C. O nacionalismo excludente ressurge na Alemanha. In: Carta
Capital, 2016. Disponível em:
<http://www.cartacapital.com.br/revista/920/nacionalismo-excludente-ressurge-na-
alemanha> Acesso em Novembro de 2016.
CRISP, Jeff. Austrália e Europa: falhando com os refugiados globais. In: Politike, Carta
Capital, 2015. Disponível em: <http://politike.cartacapital.com.br/australia-e-europa-
falhando-com-os-refugiados-globais/> Acesso em Dezembro de 2016.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. 4. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2005.
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A PERTINÊNCIA DA TEOLOGIA POLÍTICA:
UMA ANÁLISE COMPARATIVA DOS TEXTOS DE CLAUDE
LEFORT, SLAVOJ ZIZEK E BORIS GUNJEVIC
Pedro Barbosa Lima Junior
(Mestrando em Ciências da Religião, PUC-CAMPINAS)
Introdução
O presente artigo visa prioritariamente analisar e dialogar com duas obras:
Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade (1981), obra
clássica de Claude Lefort, especificamente o capítulo “Permanência do Teológico-
político?”; e a obra O sofrimento de Deus: inversões do apocalipse (2015), escrita por
Slavoj Zizek e Boris Gunjevic. Buscamos identificar o não desaparecimento da teologia
do contexto político, sendo esse, continuísmo presente não somente nos dias atuais,
mas desde que se pretendeu fazer uma separação institucional entre essas duas esferas:
teologia e política.
Queremos, sobretudo, ratificar a importância da pesquisa voltada à teologia
política como área de conhecimento não só para a(s) Ciência(s) da Religião, mas como
para outras áreas das ciências humanas, visto que, na atualidade, este tema está a cada
dia mais presente nas discussões formais e informais, mas, infelizmente, com pouco
esclarecimento, e o que é pior, carregadas de cegas paixões conservadoras e/ou
progressistas, com pautas pouco proveitosas para o sadio debate entre as partes.
Retomando a discussão das obras em questão, percebemos que existe uma
relação muito próxima entre elas (e nos três pensadores) referente a constância da
religião ou da teologia na esfera política. Não nos referimos aqui a uma união das
instituições religiosa e política, que, como bem assegura Lefort, estão separadas há
muito tempo, ficando as crenças religiosas retraídas às esferas privadas (LEFORT, 1981,
p. 251); mas, porém, salientamos a uma conservação do religioso na política sob novas
representações e configurações que se instalou tão profundamente tornando-se
irreconhecível exatamente para quem considera esgotados seus efeitos (LEFORT, 1981,
p. 251).
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O filósofo Slavoj Zizek e o teólogo Boris Gunjevic partem desse mesmo princípio
– as vezes discordando, outras convergindo seus pontos de vista – realizando uma
investigação crítica das três principais religiões monoteístas. O teólogo discorre sobre a
mistagogia da revolução, sendo mistagogia, numa linguagem puramente mística, um
termo que designa uma pedagogia para o mistério, uma condução das pessoas para
penetrar nos mistérios sagrados; o que pode ser analogamente preservada dentro dos
ideais revolucionários.
Gunjevic parte da suposição que a permanência do teológico pode ser descrito
através de exemplos na história de alguns episódios bem particulares. O autor entende
e explana sua tese através de dois exemplos. O primeiro é o discurso proferido por Lenin
no Congresso Pan-Russo dos trabalhadores de Água em 1921, onde o líder bolchevique
leu a seguinte frase escrita em um cartaz: o reino dos operários e camponeses durará
para sempre, interpretada por ele como uma certa incapacidade daquela comunidade
na compreensão das lutas revolucionárias contra as instituições, não entendo, portanto
– na visão do teólogo – a mensagem do slogan como uma “perigosa” subversão
teológica (ZIZEK, GUNJEVIC, 2015, p. 9). O segundo exemplo refere-se a história de
Giovanni Boccacio e sua crítica a obra clássica de Dante Alighieri A divina comédia,
compreendendo-a como uma obra de teologia, chegando a defender que a “teologia
não é nada mais que poesia divina [...] que poesia é teologia, e teologia é poesia” (ZIZEK,
GUNJEVIC, 2015, p. 13); destacando, por conseguinte, que a Divina Comédia pode
revelar uma exaltação dos indivíduos na presença de um Deus que não se revela como
pessoa, mas como o próprio Paraíso.
Zizek, por sua vez, faz uma reflexão sobre a ética, como sobrevivente suspensa
da teologia-política. Nesta nos deparamos com duas provocações geniais. A primeira a
respeito da suposta “morte de Deus” presente no pensamento de Jacques Lacan,
desembocando na clássica passagem do monumental romance de Fiodor Dostoiévski Os
irmãos Karamázov: “se Deus não existir, então tudo é permitido”. Contudo, logo em
seguida, Zizek esclarece e contextualiza dizendo que, “Dostoiévski nunca a proferiu (o
primeiro a atribuí-la a ele foi Sartre, em O ser e o nada)” (ZIZEK, GUNJEVIC, 2015, p. 37).
É diante dessas duas provocações que o livro se desenrola, e, deste modo, em
diálogo com a texto de Lefort, queremos compreender, ou tão somente confirmar essa
permanência do teológico nos debates da filosofia política.
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Porém, antes de continuar, faz-nos necessário contextualizar o fenômeno da
secularização que, notadamente, talvez seja um dos temas mais discutidos no campo
da(s) Ciência(s) da Religião e que pode lançar luzes para a reflexão que pretendemos
realizar.
1. O contexto da secularização
Comumente, a maioria dos trabalhos acadêmicos em estudos da religião cita a
problemática da secularização, tendo muitas vezes o pesquisador que escolher, de
antemão, uma das narrativas para iniciar sua discussão. “Secularização”, “Pós-
secularização”, “Dessecularização”, são alguns dos termos usados. Ou até a troca por
termos mais genéricos, como “Modernidade” e “Contemporaneidade”.
A guisa de uma alternativa menos regulamentadora, uma contribuição atual e
muito lúcida é a da antropóloga Paula Monteiro para quem “o conceito de
“secularização” talvez tenha deixado de ser útil como categoria analítica, tendo-se
deslocado, progressivamente, para a esfera normativa”. Muitas vezes o debate
exaustivo sobre o conceito “secularização” deixou de trazer grandes novidades
epistemológicas para área, permanecendo apenas como uma “condição sine qua non da
emergência de uma esfera pública democrática” (MONTEIRO, 2009, p. 9).
Diferentes conceituações, análises, perspectivas foram feitas em relação ao
tema, o que gerou grandes e profícuos debates. Roberlei Panasiewicz, no artigo
Secularização: o fim da religião? faz um panorama do tema, definindo a secularização
como uma “emancipação da sociedade (laicização), a perda do valor sacral do mundo e
do humano (dessacralização) e a emancipação do humano perante o Mistério (ateísmo)”
(PANASIEWICZ, 2012, p. 9). O autor recorda que o fenômeno possui um caráter dinâmico
que contém uma realidade duplamente crítica, quais sejam, a perda de sentido das
religiões e, paradoxalmente, o nascimento de novas espiritualidades.
De um modo geral, a secularização representa uma crítica moderna à religião.
No mundo secularizado, a sociedade se afasta da fase da heteronomia, ou seja, onde
era comum ao ser humano a prática de transferir as respostas da vida a um Deus
cristalizado, em detrimento de sua autonomia e desejos; e percebemos que se inaugura,
“um saber que provoca o questionamento, primeiramente de si, e consequentemente
na situação existencial que se encontra” (VILLAS BOAS, 2013, p. 159).
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Por sua vez, a religião tentou dar respostas a este fenômeno da secularização e
de perca de sentido. O saudoso teólogo jesuíta João Batista Libanio as descreve como
reações da teologia, classificando-as em três movimentos: 1) De forma negativa: defesa
da religião, combatendo a onda do secularismo e ateísmo; 2) De forma positiva:
entendendo a secularização como uma purificação da fé, dos excessos de preceitos
religiosos, fazendo aparecer a essência da fé em Cristo; 3) A interpretação e o
entendimento do fenômeno da secularização como fenômeno religioso, encontrando
no diálogo o melhor caminho (LIBANIO, 2011, p. 45-46). Outro teólogo, Mario França
Miranda, admite que esta era secular, apresenta uma sociedade em que a fé em Deus
deixou de ser algo partilhado por todos (MIRANDA, 2009, p. 110)19.
Dentro dessa sociedade secular e plural existe também o ateísmo que não
desapareceu do cenário cultural do Ocidente. Diferente do ateísmo gestado no
Iluminismo, com sua crítica ferrenha à religião que estava aliada ao Estado Absolutista
que, por sua vez, engessava as liberdades políticas e econômicas da época; bem como,
destoando-se, da consolidação do ateísmo do século XIX que procurava “matar a Deus”
afirmando a primazia do humano; vemos aparecer, na contemporaneidade, os novos
ateísmos, que não se dão ao trabalho de raciocinar sobre a existência ou não de Deus,
mas, a priori, pertencentes de uma indiferença religiosa, esses ateus do novo século
permanecem atados “a uma nostalgia e a outros valores teoricamente ‘mais
verdadeiros’”. Em outras palavras, os novos ateus desqualificam as religiões e não Deus.
Para eles o conceito Deus pouco interessa, mas, o discurso religioso que gera violência,
ódio e várias formas de preconceitos, esse sim deve ser denunciado e combatido, no
desejo de levantar um mundo sem religião. Deste modo, a ideia “Deus” seria
automaticamente eliminada (BINGEMER, 2013, p. 130-135).
Interessante notar a provocativa reflexão a respeito do atual ateísmo que Zizek
faz na introdução de seu livro O sofrimento de Deus. Partindo da inversão que Lacan faz
da frase de Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski, “se Deus não existir, então tudo é
permitido”, Zizek escreve:
19 Nesta obra, o capítulo que faço referência, “Um cristianismo inédito”, do teólogo Mário de França Miranda faz uma reflexão sobre o processo histórico de secularização a partir da volumosa obra de Charles Taylor, comentada em aula expositiva pelo professor Douglas F. Barros, no curso de Teologia Política, como referência para os estudos sobre a secularização.
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O ateu moderno pensa que sabe que Deus está morto; o que ele não
sabe é que, inconscientemente, ele continua acreditando em Deus. O
que caracteriza a modernidade não é mais a figura-padrão do crente
que nutre em segredo dúvidas intimas sobre sua crença e se envolve
em fantasias transgressoras. O que temos hoje é um sujeito que se
apresenta como hedonista tolerante dedicado à busca da felicidade,
mas cujo o inconsciente é o lugar das proibições – o que está reprimido
não são desejos ou prazeres ilícitos, mas as próprias proibições. “Se
Deus não existir, então tudo é permitido” significa que quanto mais
você se percebe como ateu, mais seu inconsciente é dominado por
proibições que sabotam seu gozo (ZIZEK, GUNJEVIC, 2015, p. 24).
Nota-se que, dos três autores que estamos debatendo, um é religioso luterano,
o outro é ateu convicto e o terceiro, Lefort, apesar de não mencionar, parece-nos, pela
sua biografia, ser um ateu ou um agnóstico. Saliento isso porque, cada um, a sua
maneira, levanta questionamentos e desenvolve argumentações sobre a política e a
permanência da religião no imaginário e no comportamento do indivíduo e das massas.
Traz também, como não poderia ser diferente, autores clássicos e eventos históricos
que corroboram para a investigação da relação da teologia no político, e do político que
retém características do teológico. É por essas vias que iremos caminhar no próximo
item, tentando captar algumas pistas deixadas pelo caminho, e que podem revelar a
permanência do teológico-político.
2. A insistência do teológico-político – comparando os textos
Quando colocamos este título para o terceiro item, queremos responder
positivamente à pergunta que Lefort fez em seu capítulo “Permanência do teológico-
político?”. Justamente por ser um filósofo, Lefort se afasta de categorias fechadas do
conceito político oriundos das ciências políticas para priorizar a tarefa de pensar e
repensar o político com o cuidado de levar em conta as questões que emergem da
experiência de nosso tempo, mostrando-se avesso a toda e qualquer sistematização de
suas ideias – não apresenta, portanto, uma única definição do conceito em sua obra.
Em Claude Lefort, o político é entendido como o princípio gerador de toda
sociedade, ou ainda, das diversas formas de sociedade de maneira que cada sociedade
possui sua forma de organização política apresentada de uma determinada maneira
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específica, conforme sua constituição. Toda organização política do social é produzida
de acordo com a identidade própria de cada sociedade, exatamente porque “uma
sociedade se distingue de outra por seu regime, ou melhor, por uma certa mise en forme
da coexistência humana” (LEFORT, 1981, p. 254).
Slavoj Zizek e Boris Gunjevic parecem comungar desse mesmo pensamento
filosófico, ao menos no que tange a compreensão dos fenômenos políticos e religiosos
que remetem à noção de símbolo pois, um e outro mediam a apresentação do mundo
para o homem de acordo com suas específicas determinações de sentido. Os dois
autores de O sofrimento de Deus discutem por meio de obras literárias e do pensamento
filosófico esse sentido permanente do sagrado que forjou o mundo ocidental e que
precisam ser analisadas através do esforço intelectual.
Um dos problemas levantado por Lefort foi o de compreender as relações
políticas e sociais numa configuração de forças. Por isso, é importante para o teórico
perguntar como essas relações acontecem, e como muitas vezes elas passam
despercebidas e/ou legitimadas pelos atores históricos e agentes sociais.
Seu problema é então, justamente, dar conta de um processo de
interiorização da dominação. Porém, resolve-o buscando fora das
fronteiras da política a origem e a natureza desse processo, recorrendo
aos mecanismos da representação, tal como os demarca nas esferas
do direito, da religião, ou do conhecimento técnico científico (LEFORT,
1981, p. 256).
Esses elementos de investigação abrem novas interrogações, como sobre o
sentido da aventura humana que se libera nas diversas formas de sociedade política,
sendo exigida por nossa experiência do político. Torna-se imperativo para o filósofo se
perguntar como, então, se articulam ou se desarticulam o político e o religioso na
história.
Contudo, o filósofo se encontra em outra situação: ao pensar no político
(politique) e os princípios geradores da sociedade, ele inclui os fenômenos religiosos em
sua reflexão. “Em suma, tanto o político quanto o religioso põem o pensamento
filosófico em presença do simbólico [...] no sentido em que um e outro comandam [...]
um acesso ao mundo” (LEFORT, 1981, p. 258). Ou seja, um sentido.
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Um dilema então emerge para Lefort: como admitir que o religioso se confinou
a esfera do privado, sem perder a ideia de sua dimensão simbólica, constitutiva das
relações do homem com o mundo? Do mesmo modo que se levanta outro dilema para
Zizek e Gunjevic: como compreender o aspecto teológico na formação histórica do
mundo ocidental e sua ação ética no tempo presente, ao mesmo tempo que
testemunhamos uma diminuição da ação da religião na esfera pública e no mundo
secularizado? Para os três autores, parece-me que a resposta possui uma similaridade:
o da persistência do teológico-político ou do fundamento religioso na ordem política, e
de uma religião que se reinventa em sua narrativa ética e se consolida numa nova
hermenêutica. Frente a isso, é papel da filosofia pensar. A filosofia não pode se abster
da compreensão dessa natureza humana e sua relação com Deus; a filosofia jamais pode
ignorar sua própria relação com a religião moderna. Sendo mais didático:
O pensamento filosófico não pode se apropriar, sob pena de trair seu
ideal de inteligibilidade, da afirmação que o homem Jesus é filho de
Deus, porém, é necessário que dê conta do sentido do advento da
representação do Deus-Homem, pois apreende aqui uma mudança
pela qual se refaz, nos dois sentidos aos quais nos referimos, a
abertura da humanidade a si mesma (LEFORT, 1981, p. 260).
Frente a essa realidade, notamos que as religiões históricas monoteístas têm
mostrado sucessivas contradições no âmbito ético, social e moral. Recentemente
testemunhamos casos de fundamentalismo terrorista islâmico; os crimes de pedofilia
cometidos pelo clero, e na maioria das vezes acobertados pelos seus superiores; o
carreirismo clerical em detrimento das causas fundamentais e preferenciais do
Evangelho; a cobiça de pastores (protestantes) e bispos (católicos) por dízimos; a
pregação de uma teologia da prosperidade que usurpa a fé de pessoas mais simples; e
demais exemplos que tem trazido ou afirmado a desconfiança das pessoas na religião
institucional. Entretanto, não obstante a todas essas mazelas, alguns teólogos20
defendem que existe um eixo comum e fundamental entre o ateísmo e a fé, que se
revela a partir de uma autocrítica das duas instâncias: a defesa do gênero humano em
todas as suas possibilidades.
20 A título de exemplificação citamos Andrés Torres Queiruga, e seu livro Revelação de Deus na realização humana, São Paulo, Paulinas, 1990, pp. 38-39, de onde tiramos a fonte argumentativa do final do parágrafo.
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Isso é notório quando vemos que a solução encontrada por Zizek – ateu radical
– aos problemas atuais é justamente a adoção da teologia em sua dimensão
apocalíptica; e que o posicionamento do teólogo Gunjevic é o de garantir as virtudes
ascéticas da teologia agostiniana para formar um sujeito revolucionário capaz de lutar
contra o chamado Império, ou seja, o capitalismo. Por sua vez, observamos que Lefort
testifica esse esforço presente nos dois autores acima afirmando o papel da filosofia em
sua ligação com a teologia, argumentando que, uma sociedade que propositadamente
queira se esquecer de seu fundamento religioso automaticamente viverá na ilusão de
uma pura imanência de si mesma e não conseguirá responder a questões fundamentais
para o entendimento da própria sociedade (cf. LEFORT, 1981, p. 261).
Portanto, temos que na compreensão da história, ou melhor, da filosofia da
história, os textos dos três autores em seus embates e reflexões com outros autores
clássicos, nos dão mais elementos dessa conservação do teológico-político.
Lefort, por exemplo, recorre a compreensão do evento histórico da Revolução
Francesa, a partir do pensamento do historiador romântico Michel Michelet a fim de
constatar sua indagação inicial: o da permanência do teológico-político. Para Michelet,
a revolução trouxe a mudança do local sagrado dos reis do Antigo Regime para a
sagração do povo – uma categoria que agora recebe uma carga simbólica renovada
(LEFORT, 1981, p. 277-278). Existe uma mística da Revolução Francesa de uma plenitude
dos tempos segundo a fórmula dos textos bíblicos paulinos (LEFORT, 1981, p. 278), e a
concepção de que, com a revolução, o povo se cinde, ou seja, se torna dono de si. Nas
palavras do próprio Michelet: “o povo é tudo, e designa o verdadeiro rei que é o povo”.
Eis, então, o ressurgimento do mito teológico-político da dupla natureza do rei. Michelet
mostra essa desconstrução na análise particular do julgamento de Luís XVI, dizendo que
a condenação do rei possuía uma dupla utilidade: “devolver a realeza ao seu verdadeiro
lugar, no povo [e] lançar luz sobre esse ridículo mistério que durante tanto tempo, foi
convertido em religião pela humanidade” (LEFORT, 1981, p. 284). A encarnação é
passada do rei (agora morto e decapitado) ao povo que o vê sem cabeça.
Zizek segue o caminho interpretativo de uma máxima dita por Sartre, mas
reconhecida mundialmente como sendo de Dostoiévski na obra Os irmãos Karamázov:
“Se Deus não existir, então tudo é permitido”. Entretanto, seguindo a psicanálise
lacaniana, Zizek reflete no sentido da frase invertida por Lacan: “Se Deus não existir,
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então tudo é proibido”. Para o filósofo húngaro, nesta inversão, os hedonistas ateus
estariam presos aos seus próprios controles morais e éticos; e os fundamentalistas
religiosos, que vivem numa relação direta de obediência a Deus, suspendendo a ética
em favor do cumprimento de uma “missão” de Deus de matar e humilhar inocentes,
estariam, caso Deus não existisse, perdidos e sem referencial para sua Causa “sagrada”
maior. “Sem ela teríamos de sentir todo o peso do que fazemos, sem nenhum Absoluto
sobre o qual descarregaríamos nossa responsabilidade final” (ZIZEK, GUNJEVIC, 2015, p.
39).
Uma outra inversão de Lacan que Zizek traz para a reflexão é “Se Deus existir,
então tudo é permitido”, vista por alguns cristãos como a superação da Lei pelo amor.
Ora, habitando agora no amor divino, é desnecessário as leis proibitivas, pois o homem
não sente vontade de fazer o mal. Essa aporia teológica é encontrada numa famosa frase
de santo Agostinho: “ame a Deus e faça o que tiver vontade”. Ou outra versão: “ame e
faça o que tiver vontade”. Zizek encontra na frase uma ambiguidade. Para o filósofo, na
verdade, “não é que você simplesmente possa ‘fazer o que quer’: seu amor por Deus, se
verdadeiro, garante que você seguirá os padrões éticos mais supremos naquilo que
quiser fazer” (ZIZEK, GUNJEVIC, 2015, p. 41). E a ironia escondida na frase de santo
Agostinho está na justificativa do cristão fundamentalista de sempre fazer o mal, pois,
“você sempre correrá o risco de usar seu amor por Deus como legitimação para os feitos
mais horrendos” (ZIZEK, GUNJEVIC, 2015, p. 41).
Finalmente, o teólogo Boris Gunjevic, discorrerá sobre a teologia de santo
Agostinho, todavia, para corrigir a leitura que Michael Hardt e Antônio Negri fez do bispo
de Hipona na tentativa de debater o capitalismo no livro escrito pelos dois chamado
Império. Gunjevic critica dizendo que os dois autores fizeram uma versão agostiniana de
Espinosa, além de criar uma visão romanceada de são Francisco de Assis, como um
exemplo a ser seguido no combate ao Império capitalista.
Os autores de Império entendem Agostinho como uma poderosa forma de luta
contra o pós-modernismo imperial, que serão vencidos através da ascese, por exemplo:
“pela recusa, pela deserção, pela aceitação deliberada do êxodo, da mobilidade e do
nomadismo” (ZIZEK, GUNJEVIC, 2015, p. 63). A crítica de Gunjevic inicia neste ponto.
“Como é possível desertar, se tudo que existe é o trabalho imanente nas superfícies do
Império, interligado a sistemas de regras soberanas?” (ZIZEK, GUNJEVIC, 2015, p. 63). A
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que, depois de uma longa e primorosa exposição do pensamento agostiniano contidas
na obra Cidade de Deus, Gunjevic afirmará que
Em sua crítica das virtudes do Império, que sempre aumentam o
capital e legitimam várias formas de terror, Agostinho sugere que se
removam os apoios dessas práticas decadentes e corruptas reunindo
pessoas para a prática eclesial, realizando uma contraposição às
virtudes imperiais que moldam o caráter dos membros da Cidade de
Deus (ZIZEK, GUNJEVIC, 2015, p. 81).
Ora, o ascetismo pedido por Agostinho é do tipo disciplinado, justamente o que
falta no ativismo de Hardt e Negri.
Contudo, apesar da crítica a Hardt e Negri, o teólogo faz um elogio dizendo que
Agostinho é um excelente interlocutor do atual debate político, porém, ele não poupa
uma crítica irônica aos dois autores colocando-os como comunistas insuficientes
radicais. Dirá:
Como interpretar a declaração de que Francisco de Assis é um modelo
pós-moderno para o ativista que personifica a alegria de ser
comunista? A visão neocomunista agostinianizada e espinosesca de
Hardt e Negri os impede de ver além do que está imanente nas
superfícies do Império (ZIZEK, GUNJEVIC, 2015, p. 80).
As virtudes ascéticas de Agostinho e Francisco de Assis devem ser, na visão do
teólogo, um combate ao Império feito de maneira assertiva e cirúrgica para a formação
de um sujeito revolucionário. Aqui retomamos a ideia de uma mistagogia revolucionária
defendida por Gunjevic em sua introdução do livro, quando o mesmo reclama dos
“recursos encarnacionais” necessários para a mudança da realidade, e que, segundo o
teólogo, somente a teologia pode fornecer as ferramentas ou recursos corretos para
mudar o mundo (ZIZEK, GUNJEVIC, 2015, p. 22).
Para Gunjevic, munido dos recursos encarnacionais certos, “tal sujeito político
seria revolucionário, e a racionalidade capitalista não seria capaz de domá-lo” (ZIZEK,
GUNJEVIC, 2015, p. 83).
Assim, passando pelas argumentações dos três pensadores, percebemos a
pertinência de uma reflexão honesta e séria sobre a incidência do teológico no político.
São situações que merecem ser analisadas e compreendidas, e posteriormente
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nomeadas, sem com isso buscar, lógico, uma sistematização rasa sobre a relação tênue
– e as vezes confusa – entre teologia e política.
Conclusão
Nossa suspeita inicial neste trabalho era a de que os três autores – Lefort,
Gunjevic e Zizek – discutiam a permanência do teológico-político à luz de obras clássicas
da história, filosofia e literatura, respectivamente. Parece-nos que quanto mais se queira
discutir política, mais os filósofos terão que compreender a teologia. É um mundo que
se apresenta num labirinto cheio de armadilhas, mas que pode ser instigante quando se
pensa o passado, analisa o presente e calcula o futuro; além de considerar as várias
formas de governo existentes: monarquia, teocracia, oligarquia, democracia,
plutocracia, etc.; e tudo isso através de referências teóricas mais abrangentes e que
podem oferecer uma investigação mais crítica.
Quando abordamos a questão da secularização, não pretendíamos fazer uma
contextualização normativa dos trabalhos acadêmicos, mas, a priori, situar-nos dentro
de uma estrutura de realidade onde a permanência do teológico-político se dá.
A constatação do não desaparecimento da teologia e da religião no mundo
secularizado, bem como o continuísmo presente dessas categorias no campo da política,
nos oferece mais perguntas que respostas. Ora, seja para uma dimensão menos otimista
e mais apocalíptica, como reitera Zizek; seja por caminhos de ascese espiritual no
combate real e objetivo ao capitalismo, como Gunjevic; ou ainda, como em Lefort, para
uma indicação de que os pensamentos políticos e teológicos estão mais voltados a
assumir a condição trágica do homem (pós)moderno; percebemos que, as portas que se
abrem revelam outros corredores, e esses, a novos labirintos ainda mais tortuosos.
Portanto, mais do nunca, nos interpela a emergência e a exigência de se
consolidar os estudos de teologia política nos cursos de graduação e Pós-Graduação em
Ciência(s) da Religião para a compreensão deste fenômeno religioso nas sociedades.
Ora, não cabe mais o julgamento de que Teologia Política não faça Ciência(s) da Religião,
e muito menos que esse tipo de discurso venha justamente do corpo docente. Sei que
o debate é longo e denso, mas se a compreensão do papel da(s) Ciência(s) da Religião
ainda pautar por uma visão meramente teleológica e religiosa catequética, todos os
esforços – que não são de hoje – para a concretização de uma epistemologia autônoma,
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de defesa de uma metodologia interdisciplinar e da culminância de uma maturidade
acadêmica, será em vão. Por isso, a persistência.
Referências
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. Modernidade, Pluralismo e crise de sentido: a
orientação do homem moderno. Petrópolis. Vozes, 2005.
BINGEMER. Cf. O mistério e o mundo: paixão por Deus em tempos de descrença. Rio de
Janeiro: Rocco, 2013.
LEFORT, Claude. Pensando o Político: Ensaios Sobre Democracia, Revolução e
Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1981.
LIBANIO, João Batista. “A Religião no início do milênio”. In: Teologia e Ciências da
Religião: a caminho da maioridade acadêmica no Brasil. CRUZ, Eduardo R. da; MORI,
Geraldo de (Orgs.). São Paulo: Paulinas; Belo Horizonte, MG: Editora PUC-Minas, 2011.
MIRANDA, Mario de França. Igreja e sociedade. São Paulo: Paulinas, 2009.
MONTEIRO, Paula. Secularização e espaço público: a reinvenção do pluralismo religioso
no Brasil. Etnográfica [Online], vol. 13 (1), 2009, p. 9. URL:
http://etnografica.revues.org/1195; DOI: 10.4000/etnografica.1195.
PANASIEWICZ, Roberlei. “Secularização: o fim da religião?”. In: Secularização: novos
desafios. ANDRADE, Paulo Fernando Carneiro de, BINGEMER, Maria Clara (Orgs.). Rio
de Janeiro: PUC-Rio, 2012.
VILLAS BOAS, Alex. Teologia e Literatura como Teopatodiceia: Em busca de um
pensamento poético teológico. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em Teologia, Rio de Janeiro, 2013.
ZIZEK, Slavoj. GUNJEVIC, Boris. O sofrimento de Deus: inversões do apocalipse. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015.
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FORMA-DE-VIDA FRANCISCANA E RENÚNCIA AO DIREITO: O
ESTADO DE NECESSIDADE COMO EXCEÇÃO AO ESTADO DE DIREITO
Ricardo Evandro S. Martins
(Doutor em Direito, UFPA)
Introdução
Giorgio Agamben dá continuidade à tradição da teologia política. E ele o faz por uma
leitura genealógica ousada e singular sobre a tradição jurídica, suas implicações biopolíticas e
sua relação com teologia católica. Neste ensaio, tenho por objetivo pôr em discussão a
hipótese geral de que Agamben propôs uma saída para a “captura” daquilo que chamou de
vida nua por meio de um ehtos inspirado na forma vitae da Ordem de São Francisco. Tal ética
seria como um modelo secularizado de renúncia à máquina biopolítica do poder soberano,
que se realiza por ordem jurídica em exceção permanente. Elaborarei minha hipótese,
interpretando os conceitos de vida nua, forma de vida e estado de exceção, desde uma leitura
possível da obra Altissima porvetá (2011) e partindo das antigas, e ainda atuais, Querelas dos
Universais e da Pobreza.
As querelas dos universais, da pobreza e a forma-de-vida como modelo ético contra a
máquina biopolítica
Em Altissima porvetá (2011), Agamben encontra no franciscanismo um modelo de
vida que lida com a ordem jurídica de modo Desconectado da ordem jurídica de toda maneira.
Diz Agamben que a regula vitae da Ordem de São Francisco é a “regra da vida” que coloca o
irmão (menor) franciscano numa postura de “abdicação” total diante do mundo, sendo assim
“(...) não é uma norma imposta à vida, mas um viver que, no ato de seguir a vida de Cristo, se
dá e se torna forma” (AGAMBEN, 2014, p. 111). E tal abdicação dos franciscanos somente
pode ser melhor explicada se eu recordar aqui as famosas Querela da Pobreza e a Querela dos
Universais, conectadas implicitamente.
No século XIV, Guilherme de Ockham defendeu a Ordem de São Francisco contra as
acusações feitas pelo Papa João XXII sobre a suposta forma de ilegalidade que viveriam os
franciscanos. Esta ilegalidade se realizaria pelo fato de os Frades menores não possuírem a
formal propriedade dos bens que utilizavam, como terras, roupas, comida etc. Na Opus
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nonaginta dierum (1330-1332), Ockham argumentou em defesa de seus irmãos de Ordem que
a reivindicação do Papa era impossível de ser cumprida. Eles não poderiam ser proprietários
de qualquer bem. A regra de São Francisco os proibia de possuir o dominium sobre qualquer
coisa na Terra. Obedecendo à regra de Francisco, Ockham então propôs sua tese de defesa
contra o Papa. Ele alegava que, mesmo estando proibidos pela forma vitae estabelecida pela
Ordem, o uso de bens pelos franciscanos também não seria algo de antijurídico.
De acordo com o que o inceptor da via moderna (Ockham) diz, mesmo sem direito de
propriedade reconhecido pelo lugar onde viviam (jus fori), em outros termos, mesmo sem
título de propriedade ou declaração de posse sobre um bem fundado em Lei positiva humana,
ainda sim, seria possível falar em uma licença dada por Deus para que os seres humanos
usassem o que a natureza tem a oferecer. Esta licença é o direito vindo do céu (jus poli). Trata-
se do direito natural fundado na reta razão ou direito divino tirado da vontade divina revelada
– que autoriza o mero uso de fato das coisas na Terra (OCKHAM, 2001, p. 50-51).
Basicamente, a despeito dos ataques do Papa João XXII, que invocava a tradição do
Direito Romano sobre os direitos das coisas, o objetivo de Ockham era o de mostrar que o uso
de um bem sem dono, abandonado ou simplesmente sem impeditivos legal por uma norma
jurídica positiva (jus fori), não levaria à conclusão de que os Frades menores estariam se
apropriando deste bens, tampouco que eles estariam incorrendo em um uso sem resguardo
jurídico. De acordo com Ockham, os Frades menores estavam usando bens por meio de uma
licença de uso. Tal licença está fundamentada na ideia de que, sempre que não houvessem
impeditivos de jus fori, os Frades menores não poderiam renunciar ao direito natural de usar
estes bens (OCKHAM, 2001, p. 57).
Com isto, historiadores do direito como Michel Villey, em La formation de la pensée
juridique moderne (1968) afirmaram que foi Ockham quem desenvolveu a noção de direito
natural como direito subjetivo, enquanto possibilidade, faculdade, liberdade fundada em uma
vontade divina revelada, como em Gênesis 1:29-30 (VILLEY, 2006, p. 224). Mas Agamben
propôs uma interpretação diferente. Talvez Ockham não estivesse somente elaborando uma
transformação sobre a antiga concepção de physikón díkaion de Aristóteles para torna-la
direito subjetivo enquanto possibilidade de se agir livremente quando não for proibido. Em
verdade, parece que Agamben está mostrando como a vida franciscana se faz pela
performance de uma vivência que é a própria forma de viver em exceção. De acordo com
Agamben, esta exceção própria dos franciscanos, que se faz pela renúncia à regra da
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apropriação pelo direito positivo (jus fori), é em verdade a própria forma de vida dos Frades
menores (AGAMBEN, 2014, p. 121).
No entanto, não se trata da exceção permanente imposta pelo soberano à ordem
jurídica. A exceção franciscana referida por Agamben se trata de um modo de viver pela
renúncia da ordem jurídica positiva, através da renúncia do direito de propriedade. O estado
de exceção dos franciscanos é o estado de extrema necessidade. E ouso afirmar que tal forma
de vida funciona como uma “contra-exceção”. Uma exceção à exceção. Sobre o tema,
Agamben alerta para a sutileza da defesa ockhamiana. De acordo com o que o filósofo italiano
diz, há uma inversão da visão do que seria o normal sobre a relação entre os homens e o uso
das coisas. A estratégia de Ockham foi a de tentar manter a situação dos Frades menores “fora
e dentro do direito” porque “(...) no estado normal, em que aos homens cabem direitos
positivos, eles não têm direito algum, mas apenas licença de uso; no estado de extrema
necessidade, eles recuperam uma relação com o direito (natural, não positivo) (AGAMBEN,
2014, p. 120).
Aqui, posso interpretar o alerta de Agamben como sendo a explicação sobre como os
Frades menores encaram o estado normal das normas jurídicas positivas por meio da
excepcionalidade de suas formas-de-vida – grafada com hifens. Pois, como eles vivem em
permanente estado de necessidade, que gera exceção ao direito normal, positivo, então
permite-se a eles usarem bens sem o gozo do direito de propriedade, mas, ao mesmo tempo,
respaldados pelo direito natural encontrado pela reta razão e pela vontade divina disposta em
Escritura. Deste modo, os Frades menores se livram da captura do direito, suspendendo-o.
Aliás, como sabemos, para Agamben, o direito já normalmente se faz por exceção
permanente, produzindo “vida nua”. Logo, proponho a hipótese de que Agamben vê a forma
de vida franciscana como um modelo, um exemplo, de como se se livrar desta exceção
permanente do atual estado de direito, que captura a vida pelo dispositivo biopolítico.
Minha hipótese é a de que seria possível suspender aquela primeira suspensão que
a ordem jurídica realiza. E esta suspensão, defendo, poderia ser feita via secularização dos
efeitos da forma-de-via franciscana. Pois, viver à forma de abdicação seria um modo, então,
de “excepcionalizar” a exceção. Uma resposta à ordem jurídica já suspensa. Como disse
anteriormente, uma espécie de “contra-exceção”. E é isto que os Frades menores fazem ao
viver de modo extralegal. Mas tal extralegalidade precisa ser lida com cuidado. O “legal”, em
que se vive fora – “extra” –, é o do direito positivo, da ordem jurídica instaurada pelo
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soberano. Os Frades menores em verdade ainda sim vivem sob legalidade. Mas resguardados
pela juridicidade direito natural, que a partir de Okcham passa a ser visto não mais como a lex
naturalis de Aquino, mas, sim, como defende Agamben (2014, p. 147), contrariando Villey: um
tipo de radicalização da negação da vontade, do ânimo de se apropriar, por meio da união
entre regra e vida, isto é, pelo sintagama “forma-de-vida”.
E com talvez isto seria possível, efetivamente? É preciso lembrar que a estratégia
argumentativa de Ockham está fundada na sua versão do nominalismo. Para além da
problemática sobre licença de uso e propriedade, Ockham também se preocupava sobre como
seria possível pensar por meio de uma efetividade existencial, ou, em termos mais simples,
por meio da ideia da existência do individual em detrimento do universal. Pois, se, como diz
Ockham na primeira parte, na Lógica dos termos, da Suma logicae (1341), “(...) nenhum
universal é uma substância fora da alma” (OCKHAM, 1999, p. 161); e como as proposições são
compostas por termos gerais, universais, elas somente podem existir, ou melhor, referirem-
se a alguma coisa existente, somente se forem expressas pela fala, pela escrita ou quando
considerada mentalmente (OCKHAM, 1999, p. 164-165), então, conclui-se, nenhum universal,
como o termo “propriedade” o é, poderia ser uma substância existente.
Isso fundamenta o que Agamben diz quando fala sobre como para os franciscanos,
na defesa contra Papa João XXII, alegavam não ter propriedade de suas coisas, nem mesmo
quando as consumiam, pois a propriedade somente poderia existir efetivamente no âmbito
intencional ou procedimental (AGAMBEN, 2014, p. 141). Em outras palavras, os franciscanos
não possuíam propriedade de seus bens por: 1) não incorrerem em qualquer ânimo (intenção)
de se apropriar; e 2) por estarem proibidos de se apropriar de um bem, ou seja, de possuírem
título de propriedade fundamentado em direito positivo humano, passível de ser protegido,
por processo judicial (procedimento), através de um direito persecutório.
Nesse sentido, Agamben diz que a “[f ]orma vitae designa, nesse sentido, um modo
de vida que, ao aderir estreitamente a uma forma ou modelo, de que não pode ser separado,
se constitui por isso mesmo como exemplo (..)” (AGAMBEN, 2014, p. 101). E, como vimos pela
Querela da Pobreza, os franciscanos viam a vida como uma forma de viver no sentido em que
tal sintagma não reduz um termo em sobreposição ao outro. É por causa disto que Agamben,
em Mezzi senza fine (1996), pode afirmar que vida e forma são uma coisa só (AGAMBEN, 2015,
p. 13). Portanto, quanto à noção de forma de vida franciscana, abdicar do direito de
propriedade foi um ato de coerência dos Frades menores em relação à vida vivida na pobreza.
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Pois, ainda com a Altíssima porvetá (2011), diz Agamben: “(...) a vida dos Frades menores não
é definida pelo officium, mas unicamente pela pobreza” (AGAMBEN, 2014, p. 124).
Pensar, então, a forma-de-vida como paradigma político poderia ser uma maneira de
se escapar do poder do soberano, que está em exceção permanente, para se legitimar. Para
Agamben: “(...) [a] vida, no estado de exceção tornado normal, é a vida nua que separa em
todos os âmbitos as formas de vida de sua coesão em forma-de-vida” (AGAMBEN, 2015, p.
16). Deste modo, vejo que o estado de exceção permanente é um modo de reduzir a uma só
forma as infinitas possibilidades de se viver, inclusive daquele modo de vida que quer abdicar
dos próprios direitos e garantias positivados. E este modo único de se viver é o da vida nua. A
da vida em risco, vida sobrevivente. Então, resta saber, de que modo pode-se profanar os
dispositivos por meio de uma forma de se viver através de uma vida não-política, no sentido
de não estar sob o resguardo arriscado do soberano sempre excepcional, como os
franciscanos faziam?
Considerações finais
Acredito que Agamben pôde elevar a noção de forma-de-vida como sendo, não
apenas um meio pelo qual se pode compreender como a linguagem se funda num conjunto
de atividades vividas por uma comunidade. A forma-de-vida seria um ethos. E um ethos em
que o falar e o agir estariam conectados – algo como John Austin já pôde ter dito com a teoria
dos atos de fala e, posteriormente, algo como Judith Butler também pôde elaborar sobre as
implicações da fala performativa em torno da questão de gênero. Forma-de-vida seria uma
ética sobre os diversos modos de se viver e ao mesmo tempo uma ética capaz de ser “exceção
à exceção” jurídica permanente. Em outros termos, a forma-de-vida da renúncia ao direito
pode ser capaz de neutralizar a captura econômica da máquina biopolítica. Forma-de-vida
pode ser, portanto, um ethos para uma política que vem, para uma vida humana depois do
Juízo final.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Altíssima pobreza. São Paulo: Boitempo, 2014.
______. Meios sem fim. São Paulo: Autêntica, 2015.
OCKHAM, William. Lógica dos termos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
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Anais do PPGCR (PUC-Campinas), Campinas, v. 1, n. 1, p. 1-92, jan.-jun. 2018
______. A letter to the Friars Minor and other writtings. Cambridge: Cambridge University
Press, 2001.
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes,
2006.