Download - ANNA MARIA CASORETTI
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo
PUC-SP
ANNA MARIA CASORETTI
PICO DELLA MIRANDOLA
O ESOTERISMO COMO CATEGORIA FILOSOacuteFICA
DOUTORADO EM FILOSOFIA
Satildeo Paulo
2020
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo
PUC-SP
ANNA MARIA CASORETTI
PICO DELLA MIRANDOLA
O ESOTERISMO COMO CATEGORIA FILOSOacuteFICA
DOUTORADO EM FILOSOFIA
Tese apresentada agrave Banca Examinadora da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo como exigecircncia parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo sob a orientaccedilatildeo do Professor Doutor Antonio Joseacute Romera Valverde
Satildeo Paulo
2020
BANCA EXAMINADORA
____________________________
Prof Dr Antonio Joseacute Romera Valverde
____________________________
Prof Dr Jorge Luiz Rodrigues Gutiegraverrez
____________________________
Prof Dr Marcelo Perine
____________________________
Prof Dr Maacuterio Ariel Gonzalez Porta
____________________________
Prof Dr Pedro Monticelli
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior ndash
Brasil (CAPES) 888871518022017-00 ndash Coacutedigo de Financiamento 001
This study was financed in part by the Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior ndash
Brasil (CAPES) 888871518022017-00 ndash Finance Code 001
AGRADECIMENTOS
Duas pessoas em comum nascidas sob a marca estelar da
perseveranccedila foram fundamentais para que este trabalho chegasse a
termo meu orientador Professor Antonio Valverde e minha matildee
Adriana A ele devo natildeo apenas as sempre apropriadas elucidaccedilotildees no
decorrer do estudo como natildeo menos importante a sustentaccedilatildeo
ldquoespiritualrdquo para levaacute-lo adiante perante os inuacutemeros empecilhos
ensinou-me a ter como norte apenas a Filosofia Ela sempre presente
deu-me um auxiacutelio inestimaacutevel no suporte das questotildees cotidianas e com
sua sabedoria de vida me incentivou em meus momentos de fraqueza a
dar simplesmente ldquoo proacuteximo passordquo Aos dois minha eterna gratidatildeo
Agradeccedilo aos examinadores presentes na Banca do Exame de
Qualificaccedilatildeo Professores Jorge Gutieacuterrez Pedro Monticelli e Marcelo
Perine ndash trecircs mestres com os quais tive a feliz oportunidade de interagir
em outras circunstacircncias acadecircmicas ndash pelas preciosas sugestotildees
compartilhadas na ocasiatildeo Agradeccedilo ainda aos demais membros
partiacutecipes e suplentes agrave Banca Examinadora da Defesa Professores Luiz
Marcos da Silva Eduardo Kickhoumlfel e Maacuterio Porta pelo aceite de nosso
convite
Por fim natildeo posso deixar de agradecer a meu pai pelo silencioso
acolhimento a meu marido por sempre estar por aceitar minhas
ausecircncias e compreender minhas escolhas a meu filho por me incentivar
e compartilhar de minhas aspiraccedilotildees intelectuais e ainda pelo importante
auxiacutelio instrumental em ocasiotildees essenciais
RESUMO
CASORETTI Anna Maria Pico della Mirandola O Esoterismo como categoria
filosoacutefica 2020 192 p Tese (Doutorado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de
Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2020
O filoacutesofo renascentista Pico della Mirandola teve por principal intento
elaborar a conciliaccedilatildeo entre diferentes doutrinas e sistemas guiado pela
percepccedilatildeo da existecircncia de concepccedilotildees metafiacutesicas passiacuteveis de integraccedilatildeo
em seus graus mais elevados A paixatildeo pela comprovaccedilatildeo de
correspondecircncias leva-o a um percurso de aproximaccedilatildeo reconciliadora
com o passado e agrave consequente construccedilatildeo de estrateacutegias de correlaccedilatildeo
cujo princiacutepio-chave se encontra na ideia de que conceitos concernentes
aos niacuteveis mais altos da realidade se penetram reciprocamente Seu projeto
de convergecircncia teleoloacutegica contempla elementos derivados das mais
diversas perspectivas sejam filosoacuteficas teoloacutegicas ou misterioloacutegicas Em
meio a tais perspectivas identifica-se a presenccedila de tradiccedilotildees que se
perpetuaram em torno a formas de transmissatildeo esoteacuterica como eacute o caso
da misteriologia grega da Cabala judaica e do Hermetismo egiacutepcio bem
como de alguns registros de teor filosoacutefico e de manifestaccedilotildees do
Cristianismo primitivo e posterior que empregaram especiacuteficas formas de
linguagem relacionadas ao sigilo O objetivo desta investigaccedilatildeo eacute apontar
para tais elementos e mostrar que sua repeticcedilatildeo permite caracterizar seu
conjunto como uma categoria presente no pensamento piquiano utilizada
natildeo apenas como recurso retoacuterico mas como possibilidade de ampliaccedilatildeo e
de siacutentese das possibilidades interpretativas Satildeo adotadas como fonte de
investigaccedilatildeo as obras De Hominis Dignitate Conclusiones Nongentae e
Heptaplus
Palavras-Chave Pico della Mirandola Renascimento Esoterismo Concoacuterdia
ABSTRACT
The main intention of the Renaissance philosopher Pico della Mirandola
was to conciliate different doctrines and systems guided by the perception
of the existence of metaphysical conceptions capable of integration in their
highest degrees The passion for the proof of correspondences leads him to
a path of reconciling with the past and the consequent construction of
correlation strategies whose key principle lies in the idea that concepts
concerning the highest levels of reality penetrate reciprocally His project
of teleological convergence contemplates elements derived from the most
diverse perspectives whether philosophical theological or mysteriological
The presence of traditions that have perpetuated themselves around forms
of esoteric transmission such as Greek mysteriology Jewish Kabbalah and
Egyptian Hermeticism is found in the midst of such perspectives as well
as some records of philosophical content and manifestations of primitive
Christianity that have employed specific forms of language related to
secrecy The aim of this investigation is to point out such elements and
show that their repetition allows us to characterize the set as a category
present in Picorsquos thought used not only as a rhetorical resource but as a
possibility of expansion and synthesis of interpretative possibilities De
Hominis Dignitate Conclusiones Nongentae and Heptaplus are adopted
as sources of investigation
Keywords Pico della Mirandola Renaissance Esotericism Concord
LISTA DE ABREVIATURAS
Concl (I) Giovanni PICO Conclusiones secundum opiniones aliorum Parte I in Albano Biondi (org) Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 19952013
Concl (II) Giovanni PICO Conclusiones secundum opinionem propriam Parte II in Albano Biondi (org) Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 19952013
Oratio Giovanni PICO De Hominis Dignitate in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942
Apologia Giovanni PICO Apologia in Paolo Edoardo Fornaciari (org) Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze Sismel Edizioni 2010
De Ente et Uno Giovanni PICO De Ente et Uno in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942
Commento Giovanni PICO Commento sopra una canzona drsquoamore composta da Girolamo Benivieni in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942
Heptaplus Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942
Heptaplus P1 Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione (opcit) ldquoPrimeiro Proecircmiordquo
Heptaplus P2 Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione (opcit) ldquoSegundo Proecircmiordquo
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 11
I ASPECTOS POUCO LEMBRADOS DO RENASCIMENTO 14
II GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA 28
1 A Vida 30
2 As bases filosoacuteficas entre a Academia e o Liceu 41
3 A aproximaccedilatildeo aos estudos miacutesticos 47
III AS CONCLUSIONES NONGENTAE E SUA OCCULTA CONCATENATIO 52
1 A Secreta Conexatildeo 55
2 Religiatildeo ou Filosofia 63
3 Maritare Mundum 69
IV A ORATIO E SEUS ELEMENTOS ASCENSIONAIS 79
1 O tema da Dignidade do homem 81
2 O tema da Concoacuterdia 87
3 O tema da Ascese 91
V RESSONAcircNCIAS CABALIacuteSTICAS E SEU INFLUXO SOBRE PICO 108
1 As fontes hebraicas da tradiccedilatildeo esoteacuterica 110
2 O Cosmo Cabalista 121
3 As divisotildees da Cabala e suas formas de aproximaccedilatildeo agrave divindade 127
VI O HEPTAPLUS Agrave LUZ DA CABALA 137
1 As referecircncias esoteacutericas do Primeiro Proecircmio 139
2 Os Mundos na Cabala no Heptaplus 143
3 A Occlusa Sapientia 152
VII FILOSOFIA ESOTERISMO CONCOacuteRDIA 158
1 O Paradigma Esoteacuterico 158
2 A Concordacircncia teleoloacutegica 166
3 A Morte do Beijo 172
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 177
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 180
Nulla res spiritualis descendens
inferius operatur sine indumento
Nenhuma realidade espiritual que
descenda aos mundos inferiores
opera sem se velar
(Pico della Mirandola Conclusio
secundum doctrinam sapientum
hebraeorum Cabalistarum XXV)
11
INTRODUCcedilAtildeO
A presente tese propotildee identificar a presenccedila de elementos esoteacutericos na obra
do filoacutesofo Giovanni Pico della Mirandola mostrando que a recorrecircncia de tais
indiacutecios permite que lhes seja atribuiacuteda a qualificaccedilatildeo de categoria filosoacutefica Com o
termo ldquocategoriardquo pretende-se significar a presenccedila de um padratildeo discerniacutevel dentro
de um processo reflexivo formado pelo agrupamento de determinadas caracteriacutesticas
que se repetem a ponto de poderem ser classificadas sob uma denominaccedilatildeo comum
O termo ldquoesoterismordquo por sua vez abriga dois principais significados tantas vezes
confundidos Contempla de um lado um conjunto de tradiccedilotildees ou interpretaccedilotildees ndash
de cunho filosoacutefico teoloacutegico ou misterioloacutegico ndash que buscam proteger do puacuteblico
determinados assuntos por meio da manutenccedilatildeo do segredo ou da transmissatildeo oral
comunicando-os apenas a um restrito nuacutemero de adeptos De outro admite amiuacutede
um sentido associado ao ldquomisticismordquo relacionado a praacuteticas que conduzem ao que
chamariacuteamos hoje de experiecircncias fenomenoloacutegicas pessoais As duas significaccedilotildees
encontram-se abrangidas pela obra piquiana Seus registros foram colhidos pelo
Autor a partir de fontes pagatildes cristatildes e hebraicas encontrando-se dispostos de
forma fluiacuteda e harmocircnica lado a lado com categorias do universo filosoacutefico e
teoloacutegico Apontar para a presenccedila de tais padrotildees eacute o intento pretendido Como
objetivo secundaacuterio seraacute sugerida no uacuteltimo Capiacutetulo a existecircncia de um propoacutesito
teleoloacutegico que pede a utilizaccedilatildeo de tais paradigmas para o fechamento de certas
hipoacuteteses sob o arco da estruturaccedilatildeo do pensamento piquiano
Trecircs razotildees permitem inserir esta contribuiccedilatildeo no campo de conhecimento da
Histoacuteria da Filosofia a saber (a) o papel proeminente de seu protagonista uacuteltimo
pensador do Quattrocento italiano no panorama do Pensamento do seacuteculo XV (b) os
aportes derivados da averiguaccedilatildeo de doutrinas pertencentes a culturas e tradiccedilotildees
ocidentais e natildeo-ocidentais e (c) a apuraccedilatildeo da utilizaccedilatildeo de elementos esoteacutericos ndash
tese aqui desenvolvida ndash em cenaacuterio filosoacutefico Em outras palavras (a) Giovanni Pico
natildeo sem fundamento foi elevado agrave condiccedilatildeo de um dos mais significativos
representantes de sua eacutepoca em virtude de sua obra manifestar muitos dos
relevantes fermentos e anseios que caracterizaram seu periacuteodo embora seu quadro
intelectual de referecircncias se encontrasse fora do alcance da maioria de seus
contemporacircneos suas reflexotildees natildeo estavam isentas das principais preocupaccedilotildees de
seu tempo Ademais (b) a adesatildeo do Autor a um novo esquema epistemoloacutegico de
revisatildeo dos saberes com os quais esteve em contato o leva muito aleacutem dos problemas
filosoacuteficos nucleares dos seacuteculos que o antecedem permitindo ao leitor conhecer
doutrinas pertencentes a culturas exteriores agrave Ocidental ndash caso do Hermetismo
egiacutepcio da Cabala judaica e do Zoroastrismo persa ndash integrantes da ampla unificaccedilatildeo
pretendida por Pico Alguns daqueles conteuacutedos ndash natildeo suficientemente estudados ndash
oferecem relevantes aportes agrave Filosofia sobretudo para as temaacuteticas que concernem agrave
sistematizaccedilatildeo do mundo inteligiacutevel Finalmente (c) o estudo de um padratildeo de
pensamento colhido de fontes esoteacutericas natildeo apenas nos coloca em contato com
12
tradiccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas que fizeram uso do segredo para se perpetuar como
fornece novos paradigmas de investigaccedilatildeo e de linguagem O emprego de elaboraccedilotildees
mentais extraiacutedas de tradiccedilotildees orais natildeo eacute simples recurso retoacuterico utilizado pelo
Autor mas aporte necessaacuterio para alcanccedilar certas siacutenteses Ao contraacuterio do que possa
acreditar o senso comum haacute uma forccedila racional presente em grande parte das
doutrinas que se erigem em torno agrave transmissatildeo esoteacuterica mostrando-se seu estudo
uma importante ampliaccedilatildeo das possibilidades interpretativas
A motivaccedilatildeo para apresentar tal conjunto de temas deve-se precipuamente ao
fato de a obra de Pico della Mirandola ter sido pouco estudada no cenaacuterio filosoacutefico
nacional Tanto as traduccedilotildees quanto as interpretaccedilotildees em portuguecircs satildeo escassas
Tem-se agrave disposiccedilatildeo em primeira linha apenas as traduccedilotildees da Oratio de Hominis
Dignitate realizadas por Luiz Feracine e Maria de Lurdes Sirgado nas quais os
autores apresentam prefaacutecios introdutoacuterios ao trabalho de traduccedilatildeo Com relaccedilatildeo agrave
obra Conclusiones Nongentae principal projeto do autor os conteuacutedos
interpretativos natildeo apenas satildeo inexistentes em acircmbito nacional como bastante
exiacuteguos em termos mundiais Ademais com relaccedilatildeo agraves tradiccedilotildees orientais acolhidas
por Pico o material para discussatildeo de suas doutrinas mostra-se em ambiente paacutetrio
insuficiente o que contribui para manter sua obra em um patamar de
impenetrabilidade Essas mesmas condiccedilotildees determinaram a opccedilatildeo por uma
apresentaccedilatildeo mais ampla e integrativa da obra piquiana um trabalho desenvolvido
de forma pontual estruturado apenas em torno aos especiacuteficos pontos esoteacutericos
coletados dos textos piquianos traria uma especificidade soacute aceitaacutevel em um
territoacuterio onde tanto o autor quanto sua obra fossem suficientemente conhecidos
Em termos de divisatildeo dos capiacutetulos segue-se uma apresentaccedilatildeo que se inicia
com os aspectos exteriores ligados agrave sociedade e agrave vida do Autor para em seguida
abordar as produccedilotildees concernentes ao seu pensamento Assim embora natildeo se mostre
uma exigecircncia para o tema desenvolvido o Primeiro Capiacutetulo agrave guisa de ldquosegunda
introduccedilatildeordquo tem por funccedilatildeo dispor o cenaacuterio temaacutetico e reconstituir uma parte da
atmosfera intelectual renascentista preparando o leitor para o acolhimento de alguns
dos elementos fundamentais que compotildeem o universo do pensamento piquiano O
Segundo Capiacutetulo contempla a biografia de Giovanni Pico devida por estar
diretamente vinculada ao desenvolvimento de seu modus cogitandi essa a razatildeo de
ser abordada no mesmo capiacutetulo a formaccedilatildeo de seu pensamento atraveacutes da
apuraccedilatildeo das principais Escolas doutrinaacuterias com as quais o filoacutesofo teve contato
Esse percurso basilar evidencia que Pico natildeo se lanccedila a argumentaccedilotildees de cunho
esoteacuterico como algueacutem desprovido de qualquer bagagem acadecircmico-filosoacutefica Antes
o contraacuterio Eacute a dimensatildeo de tal bagagem que lhe permite vislumbrar os pontos de
convergecircncia entre vaacuterias escolas e linhagens de conhecimento ndash ocorrecircncia que
pouco se verifica nas investigaccedilotildees acerca da filosofia natural ou moral mas mostra-
se de forma significativa em torno aos pontos mais elevados de suas especulaccedilotildees
metafiacutesicas ndash protegidos mais das vezes pela transmissatildeo oral
13
Do Terceiro ao Sexto Capiacutetulos satildeo apresentadas e discutidas trecircs das
principais obras de Pico as Conclusiones Nongentae a Oratio De Hominis Dignitate
e o Heptaplus O influxo do Esoterismo na obra piquiana soacute poderia ser confirmado
por meio da abordagem de certo nuacutemero de obras em seu conjunto a verificaccedilatildeo de
uma uacutenica obra natildeo traria a dimensatildeo fiel de tal influxo podendo caracterizar um
caso isolado Entre os capiacutetulos mencionados o Quinto deve ser entendido como uma
necessaacuteria digressatildeo para introduzir a seccedilatildeo seguinte contentora de informaccedilotildees
pertinentes ao Cabalismo que requerem elucidaccedilotildees porquanto o leacutexico cabaliacutestico e
muitas de suas concepccedilotildees natildeo satildeo usuais na literatura filosoacutefica Finalmente no
Seacutetimo e uacuteltimo Capiacutetulo satildeo alinhavados os capiacutetulos precedentes de forma a lhes
dar uma coerecircncia em forma de epiacuteteto
O desenho do conjunto conforme a sequecircncia de seus capiacutetulos segue um
formato que de certa forma acompanha o desenvolvimento intelectual do Autor
poderia outrossim designar um modelo de trajeto de desenvolvimento gnosioloacutegico
partindo da esfera puacuteblica na qual satildeo apreendidas informaccedilotildees pertinentes ao
ldquoespiacuteritordquo da proacutepria eacutepoca (I) passa pelas experiecircncias de aprendizado e estudos
pessoais (II) que levam agrave elaboraccedilatildeo de ordenaccedilotildees intelectuais decorrentes das
escolas e doutrinas assimiladas (III) permitindo vislumbrar a partir delas
possibilidades de elevaccedilatildeo e de dignificaccedilatildeo do homem (IV) alcanccedilado tal estaacutegio o
pensamento lanccedila-se em especulaccedilotildees metafiacutesicas em torno agraves esferas do Inteligiacutevel
(V e VI) ateacute finalmente alcanccedilar o fim para onde tendem todas as doutrinas (VII)
Sob tal perspectiva a ordem da leitura auxilia de forma complementar a vislumbrar
a siacutentese almejada por Pico della Mirandola norte de suas investigaccedilotildees mais
profundas e fundamento para a recepccedilatildeo das mais diversas doutrinas manifestas ou
natildeo
14
CAPIacuteTULO I
ASPECTOS POUCO LEMBRADOS DO RENASCIMENTO
No ano de 1440 Joatildeo VIII Imperador Bizantino era recebido na casa
florentina de Cosimo il Vecchio1 um dos mais proeminentes integrantes dos Medici
O encontro dos dois poderia ateacute natildeo ser digno de nota natildeo fosse o fato que ali se
encontravam os personagens siacutembolos de duas das mais fecundas ocorrecircncias que a
cidade de Florenccedila vivenciaria naquele seacuteculo para o campo do Pensamento o
Conciacutelio para unificaccedilatildeo das Igrejas e o Mecenato O soberano de Bizacircncio chegara agrave
cidade para aquele encontro ecumecircnico com o qual se esperava conter o avanccedilo dos
turcos2 no que foi seguido por consideraacutevel nuacutemero de teoacutelogos que traziam para o
solo italiano textos ineacuteditos Durante o periacuteodo em que durou ndash entre lsquo39 e lsquo44 em
meio agrave vigecircncia delrsquo Vecchio ndash3 deu-se o encontro entre as figuras mais
representativas do mundo cristatildeo (gregos e latinos) com profiacutecuas consequecircncias
para os seacuteculos XV e posteriores visto que se difundiram informaccedilotildees confrontaram-
se doutrinas e crenccedilas e abriram-se as portas para o afluxo de novos livros sobretudo
dos campos filosoacutefico e teoloacutegico Somada agrave iniciativa de mecenas como Cosimo ndash
que incentivou a aquisiccedilatildeo e traduccedilatildeo de manuscritos ndash as duas ldquoinstituiccedilotildeesrdquo
criaram as bases para a implementaccedilatildeo de um ambiente propiacutecio tanto para o retorno
a fontes antigas quanto para a abertura a novas doutrinas estranhas agrave cristatilde
O encontro de culturas foi um acontecimento sem antecedentes naquele
territoacuterio Embora a Florenccedila do seacuteculo XV natildeo possa ser comparada agrave Bagdaacute do
seacuteculo X ou agrave Toledo do seacuteculo XIII lugares onde ocorreram encontros significativos
entre as trecircs culturas monoteiacutestas mais importantes essa cidade deveria ser
mencionada como bem observa Moshe Idel imediatamente depois delas4 A urbe
toscana assistiu natildeo apenas agrave chegada dos bizantinos como acolheu um nuacutemero
significativo de judeus ndash alguns provenientes de Constantinopla mas a maior parte
expulsos da Espanha e de outros territoacuterios Ainda que a representatividade aacuterabe
natildeo tenha sido expressiva como nas outras duas cidades sua presenccedila em solo
florentino foi garantida atraveacutes dos gregos e judeus que traduziam e difundiam seus
textos entre os latinos As contribuiccedilotildees estrangeiras abriram as portas ao Platonismo
de teor miacutestico-teoloacutegico que dominou alguns ambientes intelectuais da segunda
metade do seacuteculo XV cujos rastros propiciaram a abertura para tradiccedilotildees de teor
esoteacuterico Vejamos como
1 A alcunha ldquoCosimo il Vecchiordquo eacute comumente traduzida por ldquoCosme o Velhordquo ndash assim sem viacutergula Optamos
por manter os nomes italianos em seu idioma original 2 O projeto como se sabe mostrou-se malogrado o seacuteculo XV assiste agrave tomada decisiva do Impeacuterio do Oriente
por Maomeacute II que agrave frente dos otomanos conquista Constantinopla em 1453 3 O Conciacutelio para a uniatildeo das Igrejas iniciara em Basileia em 1431 sendo depois transferido para Ferrara e
finalmente para Florenccedila em 1439 Cosimo dersquo Medici regeu a cidade de Florenccedila entre 1434 e 1464 Para maiores detalhes acerca do Conciacutelio leia-se Joseph GILL Il Concilio di Firenze Firenze Sansoni 1967
4 Moshe IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 34
15
Apoacutes a tomada da capital de seu Impeacuterio pelos otomanos que ocorreria poucos
anos apoacutes o teacutermino do Conciacutelio muitos bizantinos permaneceram na Itaacutelia Alguns
dentre eles antes daquele periacuteodo vinham ajudando a incrementar o ensino do
grego necessaacuterio para o diaacutelogo com os Antigos5 contudo a contribuiccedilatildeo bizantina
mostrou-se bem mais significativa Dois personagens em particular corroboraram a
mudanccedila de paradigma intelectual que estava por vir Basiacutelio Bessarion e George
Gemistos ambos com papeacuteis seminais dentro da organizaccedilatildeo do Conciacutelio Bessarion
chegara agrave Itaacutelia em vestes de arcebispo acompanhado de Nicolau de Cusa revelando-
se um importante sustentador da uniatildeo das Igrejas Gemistos que se tornara
conhecido como George Plethon passara a integrar o Conselho de Florenccedila a partir
de rsquo38 tornando-se conselheiro do Imperador oriental Desde o iniacutecio daquelas
reuniotildees Bessarion mostrara-se preocupado em proteger os uacuteltimos vestiacutegios da
cultura grega de uma provaacutevel extinccedilatildeo assim ao mudar-se para a Itaacutelia de forma
definitiva decide transferir e doar agrave cidade de Veneza sua inteira biblioteca bizantina
exercendo ateacute o fim de seus dias uma incansaacutevel atividade de procura de textos
antigos6 O viacutenculo entre os dois eruditos iniciara ainda na Greacutecia quando durante
seis anos Bessarion frequentara em Mistra a escola de George Plethon mestre que o
introduzira agrave filosofia platocircnica7 Agrave eacutepoca Plethon se apresentava com um
comportamento profeacutetico atraveacutes do qual anunciava o fim das trecircs grandes religiotildees
e o consequente advento da cidade platocircnica8 Mais tarde seria ele o mestre de
Mistra um dos grandes responsaacuteveis pelo florescimento do Platonismo em Florenccedila
Sua presenccedila em solo toscano que de imediato provocaria uma profunda impressatildeo
no ciacuterculo de intelectuais florentinos lhe permitiria exercer um efetivo influxo sobre
seu pensamento sobretudo em duas frentes o estiacutemulo para uma mudanccedila de
orientaccedilatildeo filosoacutefica de Aristoacuteteles em direccedilatildeo a Platatildeo e a abertura para doutrinas
5 Alguns gregos de elevada erudiccedilatildeo como Argiropoulos George de Trebizonda Teodoro Gaza e seu disciacutepulo
Demetrio Calcondila alavancaram o ensino do grego entre os humanistas italianos (Eugenio GARIN Lo zodiaco della vita - La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007 p63) A caacutetedra de grego focircra inaugurada por Manuel Chrysoloras em Florenccedila no seacuteculo anterior sendo recebida com exclamaccedilotildees por Leonardo Bruni ldquoEram setecentos anos que a Itaacutelia ignorava o grego fonte de todas as doutrinasrdquo (Leonardi ARETINI Rerum suo tempore gestarum commentarius in ldquoMuratorirdquo Rev Ital Script XIX 3 1926 p403 apud GARIN LUmanesimo italiano 2008 p48)
6 GARIN Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007 p63 Apoacutes a queda de Constantinopla Bessarion sentiu a necessidade de formar uma biblioteca que protegesse a sobrevivecircncia da civilizaccedilatildeo grega e bizantina Conseguiu comprar ou fazer copiar a maior parte das obras do Helenismo antigo e escolheu como abrigo a cidade de Veneza natildeo somente pela confianccedila em seu sistema constitucional republicano como pelo fato de que ali prosperava uma expressiva colocircnia grega que lhe parecia constituir uma segunda Bizacircncio Os inventaacuterios das vaacuterias doaccedilotildees que foram feitas agrave Biblioteca de San Marco foram elencados por Lotte LABOWSKY em Bessarions Library and the Biblioteca Marciana - Six early inventories Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1979 Para maiores informaccedilotildees acerca de Bessarion veja-se Jonathan MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 sobretudo a nota 120 p 52 para amplas referecircncias bibliograacuteficas
7 Em Mistra antiga Esparta Plethon fundara uma escola filosoacutefico-religiosa de tendecircncias neoplatocircnicas antes de vir para a Itaacutelia participar do Grande Conciacutelio Em duas cartas (uma de 1446-47 e a outra de 1454) Bessarion se refere a seu mestre Plethon como ldquoo mais saacutebio dos homensrdquo e ldquomais semelhante a Platatildeo em sabedoria e qualquer outra virtude do que qualquer outro nascido na Greacutecia desde a Antiguidaderdquo Embora cristatildeo Bessarion sugeria que conforme a doutrina da transmigraccedilatildeo das almas adotada por seu mestre ldquonatildeo se poderaacute negar que a alma de Platatildeo tomou por morada o corpo de Plethonrdquo (John MONFASANI Bessarione La Natura delibera la Natura e lrsquoArte Milano 2014 apud MOLINARI op cit np60)
8 Franccedilois MASAI Pleacutethon et le Platonisme de Mistra 1956 pp 300-314 Para maiores detalhes sobre a vida de George Plethon vejam-se as obras de Christopher WOODHOUSE George Gemistos Plethon - The last of the Hellenes Oxford Clarendon Press 1986 (pp 154-170) Arnaldo DELLA TORRE Storia dellrsquoAccademia platonica di Firenze Firenze 1902 Eugenio GARIN Rinascite e Rivoluzioni Bari Laterza 1975
16
estrangeiras ndash de cunho misterioloacutegico ndash que apresentavam viacutenculos teoreacuteticos entre
si
Assim pode-se dizer que a presenccedila grega em territoacuterio italiano natildeo propiciou
apenas o aprendizado de um idioma e o afluxo de manuscritos trouxe outros
desdobramentos Nas discussotildees em que defendiam a originalidade do pensamento
grego frente aos latinos os padres gregos contribuiacuteram em algum niacutevel e mesmo que
de forma involuntaacuteria a acelerar a crise da filosofia escolaacutestica no Ocidente atraveacutes
da instauraccedilatildeo de um certo ambiente de repuacutedio a Aristoacuteteles em seus ciacuterculos em
linhas gerais difundiam a opiniatildeo que os silogismos do Estagirita nada acresciam agrave
Teologia estranhando a forma como seus contemporacircneos latinos sustentavam teses
a partir de arsenais dialeacuteticos9 Cabe observar que certos fundamentos da tradiccedilatildeo
monaacutestica bizantina corroboravam tal direcionamento seus mosteiros eram
marcados pela miacutestica e pelo pietismo faces de uma especiacutefica forma doutrinal que
levava muitos padres gregos a se identificarem mais intimamente com os teores
neoplatocircnicos10
As discussotildees teoloacutegicas somaram-se agraves entatildeo existentes discussotildees
acadecircmicas que dividiam humanistas e aristoteacutelicos11 Um dos principais atores a lhes
fornecer municcedilatildeo foi George Plethon ao escrever um polecircmico opuacutesculo que em
breve tempo se tornaria objeto de intenso debate nos ciacuterculos de imigrados gregos ndash
sobretudo aqueles reunidos em torno a Bessarion ndash passando a verter para os
nuacutecleos latinos12 O opuacutesculo sustentava o ldquoprimadordquo de Platatildeo o que provocou a
reaccedilatildeo de seu conterracircneo George de Trebizonda que sairia em defesa de Aristoacuteteles
atraveacutes de sua Comparatio philosophorum Aristotelis et Platonis de 1458 A questatildeo
assume ressonacircncia puacuteblica levando o entatildeo cardeal Bessarion a efetuar uma
contrarreacuteplica Surge assim em 1459 a primeira versatildeo em grego do In
calumniatorem Platonis texto de capital importacircncia no qual sem atacar Aristoacuteteles
ndash cujos escritos ensinados por dois seacuteculos nas universidades europeias eram
considerados superiores em clareza e ordem expositiva ndash Bessarion se esforccedila por
mostrar que as razotildees habitualmente utilizadas para justificar a preferecircncia pelo
Liceu eram inconsistentes pois originadas de uma incompreensatildeo das verdadeiras
9 Jean DEacuteCARREAUX Les Grecs au Concile de lrsquoUnion Ferrare-Florence 1438-1439 1970 p106 Ainda para
as reaccedilotildees contra o Aristotelismo veja-se Joseph GILL Il Concilio di Firenze 1967 p270 10 A partir de 1347 a igreja bizantina havia adotado a doutrina esicasta que representava mais do que uma
retomada de posiccedilotildees neoplatocircnicas Para muitos patriotas bizantinos era uma forma de inovaccedilatildeo que andava em direccedilatildeo contraacuteria tanto agrave Igreja ortodoxa quanto agrave antiga tradiccedilatildeo filosoacutefica ligada ao Aristotelismo (cf James HANKINS Plato in the Italian Renaissance Brill Leiden 1990 pp 193-197 apud MOLINARI opcit np60) Natildeo nos cabe aprofundar uma reflexatildeo em torno agraves complexas discussotildees teoloacutegicas entre gregos e latinos que influiriam em seus direcionamentos filosoacuteficos nossa intenccedilatildeo eacute pincelar alguns matizes que conduzem aos conteuacutedos a serem tratados
11 As disputas entre aristoteacutelicos e platonistas perpassam o seacuteculo XV sendo comprovadas atraveacutes de grande quantidade de material epistolar A Filosofia quattrocentesca eacute efetivamente marcada pela presenccedila de dois principais troncos a disputar o mesmo seacuteculo De um lado perpetua-se o pensamento escolaacutestico herdado dos medievais representado pela cidade de Paacutedua verdadeira rocha da tradiccedilatildeo aristoteacutelica-averroiacutesta de outro consolida-se o receacutem-nascido pensamento humanista com sua sede na eleita Florenccedila que em muitas narrativas define a ideologia do seacuteculo em questatildeo Maiores detalhes sobre o tema podem ser lidos em Paul Oskar KRISTELLER Studies in Renaissance Thought and Letters 1996 Eugenio GARIN LUmanesimo italiano 2008 Francesco BAUSI E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza 1998
12 O opuacutesculo de George Plethon seria publicado em latim apenas no seacuteculo seguinte sob o tiacutetulo De differentiis Platonis et Aristotelis
17
intenccedilotildees que estavam na origem dos Diaacutelogos A forma enigmaacutetica da obra
platocircnica acentuada pelo uso de mitos e de imagens poeacuteticas nascia natildeo de uma
escassa preparaccedilatildeo loacutegica de seu Autor ou de um suposto desprezo pelo rigor
cientiacutefico mas sim em razatildeo da elevada altitude metafiacutesica de seu discurso que natildeo
poderia nem deveria ser expresso em termos a todos compreensiacuteveis A ideia de
conteuacutedos que natildeo poderiam ser revelados na obra de Platatildeo enfatizada por
Bessarion frutificaria sobretudo entre os ciacuterculos que viriam a frequentar a
Academia de Florenccedila
Outro fator concorrente para a orientaccedilatildeo da vida intelectual italiana que
tomaria um rumo de crescentes conotaccedilotildees miacutesticas foi a chegada de rabinos
miacutesticos e estudiosos de teosofia hebraica provenientes dos lugares mais distantes da
Diaacutespora que souberam desenvolver escolas de estudo e laboratoacuterios de escrita e
estampa a ponto de exercerem um influxo original sobre a cultura europeia13 Assim
enquanto a primeira metade do Quatrocentos presencia o influxo bizantino na
segunda metade do seacuteculo estreitam-se as relaccedilotildees entre os intelectuais cristatildeos e os
judeus sobretudo em razatildeo da toleracircncia exercida pelo neto de Cosimo Lorenzo e
pelos ciacuterculos ligados a Pico della Mirandola14 As trocas entre judeus e cristatildeos
gregos ndash ambos depositaacuterios da antiga sabedoria helecircnica ndash natildeo eram novidade
ocorrecircncia que podia ser verificada ainda em solos bizantinos15 Dessa vez as
contribuiccedilotildees do nuacutecleo intelectual hebraico somadas agrave bagagem trazida pelos
bizantinos voltavam-se agrave latinidade cristatilde Ademais uma significativa quantidade de
mestres hebreus tornou propiacutecia a divulgaccedilatildeo de textos ateacute entatildeo desconhecidos no
seacuteculo XV seja em razatildeo da dificuldade de traduccedilatildeo dos originais ndash gregos hebraicos
ou aacuterabes ndash seja em razatildeo do caraacuteter sigiloso de alguns textos hebraicos ndash que devido
a certas contingecircncias comeccedilaram a ser divulgados16
13 Gianfranco BURCHIELLARO ldquoIntroduccedilatildeordquo a Mantova e la Qabbalah 2001 14 IDEL opcit 1998 pp 39-40 Tais relaccedilotildees satildeo comprovadas por epiacutestolas como uma carta de Ficino de
1485 que relata os frutiacuteferos encontros entre doutos hebreus e cristatildeos (Ficino Opera I pp903-904 apud Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 64) Lorenzo dersquo Medici teve uma especial benevolecircncia com os judeus acolhendo em sua casa meacutedicos (a legislaccedilatildeo eclesiaacutestica proibia que cristatildeos fossem tratados por meacutedicos judeus mas as terras florentinas natildeo seguiram essa vedaccedilatildeo) muacutesicos como Guglielmo da Pesaro e filoacutesofos ligados ao seu amigo Pico della Mirandola Houve pregadores especialmente das Ordens Mendicantes que tentaram levantar a populaccedilatildeo contra os judeus como em outras eacutepocas mas as consequecircncias de suas pregaccedilotildees foram bastante limitadas e controladas nesse periacuteodo Sobre o teacutermino da benevolecircncia com os judeus a partir do advento de Savonarola leia-se Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p54 Para maiores detalhes acerca da aceitaccedilatildeo dos judeus em solo toscano veja-se Lamberto CROCIANI Chiesa fiorentina e comunitagrave ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico ibid 1998 p85Veja-se ainda Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 pp56-61 Cesare VASOLI ldquoQuadro drsquoInsiemerdquo in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 5
15 George Plethon por exemplo antes de chegar agrave Itaacutelia estudara por muitos anos na escola de um renomado mestre hebreu Elisseo (Elischa) que por sua vez era sequaz dos inteacuterpretes aacuterabes de Aristoacuteteles Elisseo foi um importante transmissor natildeo apenas da cultura aacuterabe como da grega e persa tendo sido ele a iniciar Plethon no pensamento de Zoroastro que mais tarde chegaria agrave Academia florentina (cf MASAI opcit pp 57-60)
16 IDEL opcit 1998 p 34 Em resposta agrave nova segregaccedilatildeo dos judeus que viria no seacuteculo XV e da queima de seus livros sagrados houve um incremento de publicaccedilotildees de textos judaicos considerados segretos como forma de reaccedilatildeo agraves perseguiccedilotildees e frente ao perigo de aniquilamento da proacutepria cultura (Giulio BUSI Mantova e la Qabbalah 2001 p 28)
18
Conquanto desde o iniacutecio do lsquo400 alguns humanistas cristatildeos seguissem aulas
com professores de hebraico17 foi somente a partir da segunda metade do seacuteculo que
alguns doutos hebreus se tornariam renomados entre os ciacuterculos natildeo-hebraicos
passando a se expor em um clima de liberdade e de proficuidade sem precedentes na
histoacuteria intelectual judaica18 Antes desse periacuteodo o pensamento judaico natildeo havia
exercido nenhuma influecircncia decisiva sobre os maiores representantes do
pensamento cristatildeo salvo raras exceccedilotildees como foi o caso do influxo do Guia dos
Perplexos de Maimocircnides sobre Tomaacutes de Aquino e da influecircncia de A Fonte da
Vida de Avicebron sobre a teologia franciscana19 Agora bem mais que mediadores
linguiacutesticos os judeus mais ilustrados interpretavam textos criativamente e
capacitavam seus patronos cristatildeos a apreender formas de pensamento mais antigas e
ateacute entatildeo inacessiacuteveis em razatildeo de seus idiomas originais Alguns judeus tornaram-se
assim mestres requisitados como foi o caso dos ceacutelebres Flaacutevio Mitridate e Elia del
Medigo que mediavam o conhecimento hebraico e o aacuterabe bem como de Yohanan
Alemanno que teve acesso agraves mais importantes obras platocircnicas e neoplatocircnicas a
partir da tradiccedilatildeo filosoacutefica judaico-aacuterabe ndash trecircs autores aos quais seraacute feita uma
aproximaccedilatildeo nos proacuteximos capiacutetulos
A partir do uacuteltimo quartel do seacuteculo XV verifica-se uma significativa mudanccedila
de direccedilatildeo nas reflexotildees daqueles trecircs mestres sintomaacutetica da nova atmosfera
intelectual que se firmava ou quem sabe de uma maior liberdade que permitia o
afloramento de seus verdadeiros interesses temaacuteticos Conteuacutedos filosoacuteficos de teor
metafiacutesico passam a ser relacionados com conteuacutedos maacutegicos em diferentes
formatos que emergem em linha paralela com o interesse intelectual cristatildeo
passando a contaminar os ciacuterculos de Florenccedila A interpretaccedilatildeo com feiccedilotildees maacutegicas
da Cabala aparece seja nas traduccedilotildees latinas de Mitridate como nos escritos de
Alemanno na mesma eacutepoca em que Ficino traduz textos ldquomaacutegicosrdquo colhidos de obras
neoplatocircnicas e hermeacuteticas20 Contudo e apesar da reciacuteproca atraccedilatildeo por assuntos de
magia entre estudiosos dos dois grupos religiosos os autores judeus gozavam de
maior liberdade intelectual do que os autores cristatildeos que se encontravam sob a mira
da Igreja21 Assim fontes neoplatocircnicas e hermeacuteticas ndash e no caso de Giovanni Pico e
seus amigos judeus tambeacutem cabaliacutesticas ndash podem ser encontradas nos escritos da
eacutepoca unidas em amaacutelgamas que caracterizam uma forma original de pensamento
Da mesma forma como ocorreu com os gregos os judeus mais eruditos
receberam amplos incentivos de mecenas tanto cristatildeos quanto pertencentes ao
17 Caso de Poggio Bracciolini e Giannozzo Manetti 18 Sobre o tema leia-se Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 pp274-278 19 IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e
Cabalistas 2008-b p 457 20 Moshe IDEL efetua uma anaacutelise acerca do significativo paralelo que se estabeleceu entre os intelectuais
judeus e cristatildeos precisamente no mesmo periacuteodo e na mesma aacuterea geograacutefica considerando esse um dilema interessante da histoacuteria intelectual ainda natildeo esclarecido (1998 pp 23-25) Franco BACCHELLI (Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p 36) confirma a reciprocidade de tais influxos muitas marcas das discussotildees sobre Magia e Astrologia mantidas entre Pico e Ficino ndash no contexto das duas longas polecircmicas que perpassaram o seacuteculo ndash encontram-se nas obras posteriores de Alemanno
21 Segundo Idel existem registros de encontros entre magos cristatildeos e judeus durante o Renascimento (2008-b np464) Sobre a sutil fusatildeo de elementos neoplatocircnicos com aspectos do misticismo judaico vejam-se na mesma obra as paacuteginas 499-501 Ainda Giulio BUSI La Qabbalah 2011 pp28-29
19
nuacutecleo hebraico Agrave eacutepoca de Lorenzo dersquo Medici a tradiccedilatildeo familiar do mecenato
hebraico alcanccedilou seu maacuteximo esplendor atraindo para Florenccedila numerosas
personalidades do mundo hebraico no mesmo periacuteodo a Academia florentina se
abria para o mundo22 Suas contribuiccedilotildees juntamente com as discussotildees entre padres
gregos e latinos ajudaram a disseminar a filosofia neoplatocircnica enquanto em modo
simultacircneo se renovava o interesse pela mensagem velada natildeo-escrita George
Plethon de forma preciacutepua embora falecendo quase dez anos antes do surgimento
do ciacuterculo de estudos platocircnicos seria o responsaacutevel por transmitir consistentes
sementes que se desenvolveriam dentro daquele ambiente vindo a dar frutos a partir
da segunda metade do seacuteculo
A Academia antigas tradiccedilotildees novas traduccedilotildees
A chegada de Plethon agrave cidade dos Medici entusiasmou o velho Cosimo que
costumava estar entre aqueles que ouviam os discursos do filoacutesofo bizantino Plethon
vindo para o Conciacutelio que ajudaria a pacificar os acircnimos religiosos aproveitou para
dar a seus ouvintes latinos todos enamorados de Aristoacuteteles uma ideia da grandeza
de Platatildeo Cativado por tais discursos apaixonados foi sendo concebido no Patriarca
natildeo sem as devidas sugestotildees do amigo grego o desenho de um plano para instaurar
um centro de estudos de vieacutes platocircnico em solo toscano Em certo ponto Cosimo
decide realizar tal obra e escolhe o filho de seu meacutedico o ainda jovem Marsilio Ficino
para levar a termo tal empreitada Assim no ano de 1462 ndash ano considerado de
fundaccedilatildeo da Academia ndash Cosimo daacute a Ficino uma villa em Careggi incumbindo-o da
traduccedilatildeo e comentaacuterios de alguns diaacutelogos platocircnicos23 O proacuteprio Ficino batiza o
local com o nome ldquoacademiardquo homenagem agrave antiga escola fundada por Platatildeo A
Academia de Careggi preluacutedio da Academia de Florenccedila que floresceria mais tarde
sob os auspiacutecios drsquoil Magnifico Lorenzo natildeo foi um organismo legalmente
constituiacutedo como uma instituiccedilatildeo mas um simples convecircnio de doutos reunidos em
nome de um mesmo interesse cultural Suas portas se abriram para receber os mais
diversos interessados desde pensadores ilustres como Angelo Poliziano Cristoforo
Landino e os irmatildeos Benivieni ateacute poetas oradores sacerdotes homens de governo
muacutesicos juristas meacutedicos e o proacuteprio Lorenzo
Do lado de fora o cenaacuterio florentino era incrementado pelo despertar do
interesse e do envolvimento cultural de crescente nuacutemero de habitantes da cidade
tatildeo amplo na segunda metade do seacuteculo que ultrapassava os meios acadecircmicos
estendendo-se aos burgueses meacutedicos funcionaacuterios puacuteblicos artesatildeos A discussatildeo
de obras difiacuteceis como De Ente et Uno de Pico della Mirandola de temaacutetica abstrata
e aparentemente reservada a poucos especialistas despertava o interesse de um
22 CASSUTO opcit 1918 pp301-303 O patriarca Yehiel da Pisa foi um dos grandes dinamizadores de
literatura e poesia da eacutepoca e seu neto tambeacutem Yehiel que viveu agrave eacutepoca de Lorenzo dersquo Medici acolheu em sua casa florentina por vaacuterios anos uma verdadeira corte de literatos hebreus Na casa de Yehiel Yohanan Alemanno foi criado desde ainda menino educado e instruiacutedo de forma ldquoamorosardquo como conta em ldquoPrefaacuteciordquo ao seu livro Chesel Shelomograve (apud CASSUTO ibid np303)
23 GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006 pp15-16
20
puacuteblico consideraacutevel a ponto de entusiasmaacute-lo24 O habitat florentino em si com seu
fervor cultural representava uma experiecircncia culturalmente importante para os
jovens estudantes que chegavam agrave cidade pela primeira vez como narraria Yohanan
Alemanno em uma de suas obras25 Enquanto isso dentro da Academia ocorria um
movimento de renovaccedilatildeo da feacute encabeccedilado por Ficino que fundamentando-se nas
especulaccedilotildees de Plethon postulava a comunhatildeo entre Religiatildeo e Filosofia buscando
acomodar aquela aos novos tempos26 A unificaccedilatildeo entre o Cristianismo e os
redescobertos temas da filosofia platocircnica e neoplatocircnica ndash em grande parte
originalidade sua ndash juntamente com sua vasta obra de traduccedilatildeo foram os dois
importantes legados deixados por Ficino
Efetivamente as traduccedilotildees foram uma dimensatildeo importante do Renascimento
florentino promovidas sobretudo pelo mecenato dos dois Medici avocirc e neto Dois
grandes conjuntos de obras foram traduzidos na comitiva de Lorenzo o de idioma
grego que incluiacutea textos neoplatocircnicos e hermeacuteticos e o hebraico que contemplava
tratados natildeo apenas filosoacuteficos como cabaliacutesticos27 Assim ao iniacutecio da deacutecada de lsquo60
Ficino traduz Alciacutenoo Especircusipo os ldquoVersosrdquo outorgados a Pitaacutegoras e o texto
lAssioco atribuiacutedo a Xenoacutecrates Mais adiante os hinos atribuiacutedos a Orfeu a
Homero os de Proclo e a Teologia de Hesiacuteodo Em lsquo84 inicia a traduccedilatildeo das
Eneacuteadas de Plotino e entre lsquo88 e lsquo93 traduz Teofrasto Porfiacuterio Jacircmblico Prisciano
Sineacutesio Miguel Psello Pseudo-Dioniacutesio e os fragmentos de Atenaacutegoras Junte-se a
essas a traduccedilatildeo de trinta e seis obras platocircnicas e vaacuterias outras28 A magnitude da
obra de traduccedilatildeo ficiniana natildeo suficientemente destacada viria a ter um notaacutevel
influxo no pensamento renascentista europeu aleacutem de propiciar agravequela cultura um
patrimocircnio ateacute entatildeo desconhecido em sua complexidade Ora nos seacuteculos anteriores
a essa eacutepoca os textos de Platatildeo natildeo eram lidos diretamente da fonte original trecircs
seacuteculos antes de Ficino o abade Guglielmo de Saint Thierry escrevia sobre o amor
24 Esses detalhes da vida na cidade podem ser avaliados atraveacutes de cartas trocadas entre Pico e cidadatildeos
comuns que natildeo apenas se mostravam interessados como estavam aptos muitas vezes a debater ideias filosoacuteficas bastante eruditas (cf Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p96)
25 Alemanno escreve na obra Hay ha-olamim (Lrsquoimmortale) que a cidade digna de se tornar a meca ideal de todo jovem desejoso de aprofundar seus conhecimentos era ldquoFirenze in terra di Toscanardquo O autor elenca as virtudes dos florentinos assim efetuando um verdadeiro elogio humanista agrave Repuacuteblica de Florenccedila (M MORTARA Catalogo dei manoscritti ebraici della biblioteca della comunitagrave israelitica di Mantova Livorno I Costa e C 1878 pp22-29 apud Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 51)
26 George Plethon vivera uma ldquofeacuterdquo neoplatocircnica procurando explicar questotildees teoloacutegicas de forma racional Ficino por sua vez torna-se padre catoacutelico e embora pretendendo seguir os cacircnones de sua feacute cristatilde natildeo consegue renunciar agrave formulaccedilatildeo de uma teologia racional capaz de dar agrave feacute religiosa um fundamento filosoacutefico (Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano p71) Sobre as afinidades entre o Platonismo e o Cristianismo veja-se COPENHAVERndashSCHMITT Renaissance philosophy A History of Western Philosophy 1992 p152
27 Segundo Moshe IDEL (1998 pp 19 24) a obra grega traduzida por Ficino e o conjunto cabaliacutestico traduzido por Mitridate foram as fontes mais importantes para o desenvolvimento intelectual dos pensadores florentinos do final do seacuteculo XV e da Europa como um todo Suas contribuiccedilotildees foram devidamente reconhecidas pelos estudiosos as traduccedilotildees de Ficino de forma especial por Paul Oskar KRISTELLER (La tradizione classica nel pensiero del Rinascimento 1975) Jaacute as traduccedilotildees do hebraico mais recentemente foram analisadas detalhadamente por Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticis 19871989)
28 Como infere Mariateresa BROCCHIERI (opcit p24) ldquoem momentos proacutesperos da Histoacuteria ocorrem afortunados fenocircmenos de encontro entre o poder e a cultura trecircs seacuteculos antes na rica Andaluzia muccedilulmana o califa Abu Yarsquoqub Yusuf passara a Averroacuteis a tarefa de traduzir e comentar Aristoacutetelesrdquo dando o pontapeacute inicial para um longo periacuteodo de estudos aristoteacutelicos Agora era a vez de Cosimo Ficino e a abertura para os estudos platocircnicos
21
platocircnico baseado em fontes indiretas como Ciacutecero ou Agostinho Mas agora no
seacuteculo de Pico podia-se ler Platatildeo diretamente e as suas palavras tornavam-se pontos
de referecircncias primaacuterias29
Em meio ao material filosoacutefico houve ainda dentro da esfera intelectual da
Renascenccedila um amplo espaccedilo para temaacuteticas de cunho ldquotranscendenterdquo de
acentuado teor esoteacuterico apresentadas muitas das vezes revestidas por uma
roupagem filosoacutefica entretecida de tendecircncias neoplatocircnicas hermeacuteticas e ndash menos
perceptiacuteveis ndash cabaliacutesticas Um dos responsaacuteveis por instigar tal atmosfera fora
George Plethon cuja influecircncia natildeo se dera apenas em relaccedilatildeo ao Platonismo ele
tambeacutem trouxera Hermes Trismegisto e Zoroastro para Florenccedila jaacute devidamente
sistematizados pelo bizantino Miguel Psello no seacuteculo XI30 A partir das traduccedilotildees de
Ficino para o latim conteuacutedos permeados de misticismo e magia passam a ser
transmitidos a vaacuterios nuacutecleos da sociedade embora tal gecircnero de interesse se
mostrasse anterior tendo percorrido o seacuteculo por inteiro A relevacircncia dada ao tema
permite algumas especulaccedilotildees Para o homem meacutedio31 a religiatildeo apresentava uma
dicotomia mateacuteria-espiacuterito entatildeo natildeo mais tanto satisfatoacuteria a mateacuteria era causa de
afliccedilotildees e o reino do espiacuterito mostrava-se distante demais A intuiccedilatildeo de mundos
intermediaacuterios corroborada pelas discussotildees astroloacutegicas trazia possiacuteveis respostas agrave
sua precaacuteria existecircncia ao mesmo tempo em que o conhecimento de formas de magia
permitia natildeo se deixar dominar pelo fatuum32 Criava-se assim um espaccedilo entre a
religiatildeo e a mateacuteria preenchido pelo acesso agravequelas realidades intermeacutedias como
observou Eric Weil ldquoo homem renascentista iacutea agrave missa e depois ao astroacutelogordquo33
Ademais a crenccedila na Astrologia se intensifica em razatildeo de um difundido
anseio por unificaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o cosmo ao seu redor ndash tema estimado pelo
ldquoespiacuteritordquo do seacuteculo e razatildeo do incremento daquele estudo em meio aos humanistas
da Academia A invenccedilatildeo da prensa graacutefica tornou possiacutevel determinar com certo
grau de precisatildeo quais obras eram consideradas essenciais ou populares agrave eacutepoca
atraveacutes da detecccedilatildeo de quais conteuacutedos foram impressos mais cedo e em maior
nuacutemero a quantidade de volumes dedicados agrave Astrologia no Quattrocento italiano
aponta para a disseminaccedilatildeo de tal interesse juntamente com sua centralidade nas
29 COPENHAVER-SCHMITT opcit pp133 ss No ldquoPrefaacuteciordquo ao Supplementum ficinianum Giovanni
GENTILE escreve que Ficino eacute importante natildeo apenas para o entendimento do Renascimento italiano como do Platonismo europeu que sobreviveria dois seacuteculos depois dele portanto para o entendimento de muito da Filosofia Moderna de cujo desenrolar se plasmou o pensamento de nosso tempo (KRISTELLER Supplementum ficinianum 1937) Eugenio GARIN por sua vez ajuiacuteza que ldquoacerca da ressonacircncia enorme causada pela traduccedilatildeo de Ficino nunca se diraacute o suficienterdquo (op cit 2007 p73)
30 Arthur FIELD The Platonic Academy of Florence in Allen-Rees (org) Marsilio Ficino his Theology his Philosophy his Legacy 2002 pp 359-376 Ainda para o tema veja-se IDEL 2008 p499
31 A menccedilatildeo ao homem ldquomeacutediordquo eacute usual em textos intelectuais da eacutepoca como os de Ficino e Pico para indicar homens natildeo partiacutecipes do mundo do pensamento Veja-se por exemplo De Hominis Dignitate Heptaplus De Ente et Uno e scritti vari 1942 p396
32 Natildeo poucos textos de conteuacutedos declaradamente maacutegicos circulavam no Quattrocento Eugenio Garin considera que o tema da magia encontra-se no centro do quadro renascentista tal constataccedilatildeo faz o autor se distanciar sob esse quesito de Jacob Burckhardt e Giovanni Gentile (cf Michele CILIBERTO Prefaacutecio a GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006) Sobre o fatuum veja-se GARIN ibid p42
33 Eric WEIL La Philosophie de Pietro Pomponazzi Pic de la Mirandole et la Critique de lrsquoAstrologie 1986 p66 Weil acrescenta que o homem do lsquo400 vivia em si uma divisatildeo interna estanque ele se via cristatildeo iacutea agrave igreja cumpria todos seus deveres religiosos ele sabia da existecircncia da alma e que essa tinha um valor mas era um saber ldquomortordquo pois o que ocorria no mundo material natildeo tinha relaccedilatildeo com a sua alma
22
discussotildees metafiacutesicas34 a presenccedila constante de instacircncias profeacuteticas na vida
poliacutetica as representaccedilotildees artiacutesticas (a imagem do homem coacutesmico onde cada parte
ou oacutergatildeo do corpo se encontra ligada a um corpo celeste torna-se comum nos
tratados astroloacutegicos) e a importacircncia do papel do astroacutelogo ndash que se torna um ator
social requisitado Todas indicaccedilotildees de um fenocircmeno central e caracterizante de uma
eacutepoca35
Sob tal clima homens letrados recepcionam o Picatrix manuscrito aacuterabe de
conteuacutedo maacutegico36 Bem mais que um manual de magia cerimonial o texto
contempla uma mescla de temas filosoacuteficos teoloacutegicos e praacuteticos apresentando um
nexo ldquoentre pressupostos teoacutericos e praacuteticas operativas entre hermetismo
especulativo de vieacutes platonizante e magia entre teurgia e teosofia orientalrdquo37 Lecirc-se
em suas linhas que ldquoa ciecircncia procede por graus conhecido um logo surge outro a
ser apreendidordquo e que ldquoatraveacutes da ciecircncia o homem faz milagres compreende tudo
consegue ser tudordquo38 Chamaria a atenccedilatildeo da Academia o conceito de ldquoNatureza
Perfeitardquo uma entidade espiritual agrave qual os filoacutesofos participam em graus diversos
qual um caminho iniciaacutetico que se desvela agrave medida que se caminha ndash um segredo
escondido dentro da Filosofia No proacuteprio Picatrix encontra-se sua definiccedilatildeo atraveacutes
de um belo discurso atribuiacutedo a Hermes Trismegisto ldquoA Natureza Perfeita eacute o
espiacuterito do filoacutesofo e do saacutebio conjugado ao planeta que o governa Eacute ele que abre as
portas da ciecircncia que o faz compreender as coisas que de outra forma natildeo poderia
compreender e das quais procedem as operaccedilotildees da natureza tanto em vigiacutelia como
no sono Daiacute resulta claro que a Natureza Perfeita se comporta no saacutebio e no filoacutesofo
como o mestre em relaccedilatildeo ao disciacutepulordquo39
O que interessa destacar eacute como as correspondecircncias entre conteuacutedos supra-
mundanos despertaram a atenccedilatildeo de estudiosos como Ficino levando-os a perceber
34 A chamada ldquopolecircmica da astrologiardquo colocaria em evidecircncia a multiplicidade de temas com ela convergentes
ou contrastantes deixando como heranccedila uma vasta quantidade de material literaacuterio O debate que perpassa todo o seacuteculo XV envolvendo um total de pelo menos trecircs seacuteculos torna partiacutecipes tanto homens de inegaacutevel conhecimento cientiacutefico como Paolo Toscanelli quanto homens de profunda religiosidade como Ficino cujas conhecidas praacuteticas astroloacutegicas contrastavam com seu pensamento cristatildeo Tanto Toscanelli quanto Ficino apesar de terem ambos colocado em duacutevida a validade das previsotildees astrais continuavam dependentes das prescriccedilotildees astroloacutegicas como observa Cesare VASOLI em seu ldquoPrefaacuteciordquo agrave obra de Garin (2011) A cidade de Ferrara um dos principais redutos de intelectuais abrigava ciacuterculos de doutos que se reuniam para tentar decifrar os significados que se escondiam nas intrincadas relaccedilotildees formadas entre os astros eram homens de razatildeo que comungavam da mesma ldquofeacuterdquo nas estrelas (Ernst CASSIRER Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1935 pp165 ss) Para os impactos sociais da Astrologia leia-se GARIN Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007
35 Franz BOLL Sphaera Neue griechische Texte und Untersuchungen zur Geschichte der Sternbilder Hildesheim Georg Olms reprinted 1967 p415 ss (apud GARIN Giovanni Pico della Mirandola 2011 p173)
36 O Ghayat al-hakim (O propoacutesito do Saacutebio) ou Picatrix foi um ceacutelebre tratado aacuterabe de autor incerto cuja versatildeo latina manuscrita circulou na Itaacutelia especialmente na segunda metade do lsquo400 ocasionando tanto admiraccedilatildeo quanto indignaccedilatildeo entre alguns cristatildeos e muccedilulmanos ndash como o estudioso Ibn Khaldun ndash por ser visto como um manual de necromancia Giovanni Pico possuiacutea uma coacutepia do manuscrito em sua biblioteca Ludovico Lazzarelli o utilizou bem como no seacuteculo seguinte Cornelio Agrippa Giordano Bruno e Tommaso Campanella A obra encontra-se atualmente no Manuscrito de Munique 214 f51r (Moshe IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e Cabalistas 2008-b np463 p474) Para o tema leia-se GARIN La diffusione di un manuale di Magia la cultura filosofica del Rinascimento italiano Firenze 1961 pp159-165
37 Cf GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006 p47 38 Picatrix III vi trad Henry CORBIN Lrsquohomme de lumiegravere dans le soufisme iranien 1971 pp29-46 39 Picatrix III vi trad CORBIN (opcit)
23
que muitos temas do Picatrix estavam expostos no Pimander hermeacutetico ndash a ser
abordado adiante ndash confirmando a estreita conexatildeo entre Hermetism0 Magia e
Astrologia Indo aleacutem o Picatrix expunha um saber operativo capaz de colocar em
praacutetica as doutrinas hermeacuteticas receacutem-descobertas Com efeito Ficino e Pico se
interessaram pela efetuaccedilatildeo das experiecircncias maacutegicas contidas na obra O clima
excepcional de abertura ao sincretismo de pensamento existente em Florenccedila natildeo
impediu contudo que Ficino sofresse perseguiccedilotildees da Igreja Vozes maliciosas
acusavam-no de ter continuado a realizar praacuteticas maacutegicas juntamente com Pico no
periacuteodo em que este se encontrava confinado apoacutes a condenaccedilatildeo de sua obra
Conclusiones Nongentae e mesmo depois de Ficino ter sido ameaccedilado de
condenaccedilatildeo eclesiaacutestica40 O proacuteprio padre confessava ter utilizado o Picatrix em seu
Terceiro Livro do De Vita ao tratar das propriedades terapecircuticas dos talismatildes
reconhecendo ldquoatraveacutes de longa experiecircnciardquo que a concentraccedilatildeo de influxos celestes
sobre uma imagem realizada segundo as corretas regras apresentava um singular
efeito terapecircutico41 Fato eacute que enquanto Ficino era acusado de praacutetica de magia a
obra De Vita via suas ediccedilotildees se multiplicarem
A Simetria entre as Antigas Teologias
Um ano apoacutes Cosimo ter pedido a Ficino que traduzisse algumas obras
platocircnicas eis que o monge Leonardo de Pistoacuteia chega da Macedocircnia trazendo para
Florenccedila uma coacutepia do Corpus Hermeticum O impacto do surgimento desse material
eacute tatildeo extraordinaacuterio que Ficino se vecirc obrigado a suspender a traduccedilatildeo das obras de
Platatildeo para dedicar-se imediatamente ao novo manuscrito Em uma tradiccedilatildeo que fora
inaugurada por Miguel Psello o pensamento bizantino vinha mantendo por seacuteculos
o Corpus Hermeticum em um lugar de honra dentro do ensinamento platocircnico42 e os
mestres chegados de Bizacircncio para o Conciacutelio de Florenccedila cerca de duas deacutecadas
antes haviam sido os primeiros a apontar para a afinidade existente entre o
Hermetismo e o Platonismo no que concernia agrave sistematizaccedilatildeo do cosmo e agrave
ldquoantropologiardquo presentes em seus textos43 A suposta anterioridade de Hermes
Trismegisto em relaccedilatildeo a Platatildeo e a superioridade espiritual dos egiacutepcios sobre os
gregos ndash entatildeo paradigma maacuteximo do conhecimento ndash sugerida nas palavras
40 GARIN 2006 pp42-49 Nas paacuteginas do Picatrix eacute possiacutevel encontrar um compecircndio de foacutermulas maacutegicas
nas quais satildeo utilizados ingredientes como o oacutepio o haxixe e outras plantas psicoativas cujo consumo induziria a estados alterados e favoraacuteveis agrave clarividecircncia (GARIN 2007 pp51 ss)
41 Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano 1970 p71 Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 38
42 Miguel Psello foi uma das personalidades mais importantes da cultura bizantina poliacutetico conselheiro de imperadores professor da Universidade de Constantinopla autor de numerosos escritos e conhecido em particular por suas obras de Histoacuteria envolveu-se na recuperaccedilatildeo da cultura claacutessica ndash interesse que encontrou a hostilidade dos ciacuterculos tradicionalistas da Igreja Bizantina Comentador de Aristoacuteteles e Platatildeo Psello tambeacutem se interessou pelas obras dos neoplatocircnicos Psello efetuou um recolhimento das coleccedilotildees gregas referentes aos materiais hermeacutetico e caldeu a partir de fragmentos encontrados em Plotino Proclo e outras fontes similares tardias (cf Stephan FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses (1486) The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 pp486-487 A relaccedilatildeo de seus escritos pode ser vista em Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquo Oratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 p19
43 O tema eacute desenvolvido por Paul Oskar KRISTELLER em El pensamiento renacentista y sus fuentes (1982 pp 206-224)
24
atribuiacutedas ao rei-sacerdote44 talvez tenham sido duas entre as razotildees para que os
Diaacutelogos fossem deixados temporariamente de lado
Na medida em que tiveres o poder oacute rei que tudo pode
preserva a qualquer custo este discurso de toda traduccedilatildeo para
que misteacuterios assim grandes natildeo cheguem aos Gregos e a sua
orgulhosa fala com falta de forccedila natildeo faccedila empalidecer e natildeo
anule a gravidade a robustez a virtude operativa dos vocaacutebulos
de nossa liacutengua Pois que os Gregos oacute rei dispotildeem apenas de
discursos vazios afeitos a produzir demonstraccedilotildees e nisso na
realidade consiste toda a sua filosofia em um barulho de sons
Noacutes diversamente natildeo nos utilizamos simplesmente de
palavras mas de sons plenos de eficaacutecia45
O gesto de Cosimo de pedir a traduccedilatildeo de Hermes antes de Platatildeo natildeo estaria
livre de significados o contato com aqueles textos enigmaacuteticos marca com uma
impronta o acircmbito intelectual florentino e o Hermetismo passa a ser uma doutrina
cultuada em toda a sua complexidade maacutegica e teoloacutegica ademais seus ecos seratildeo
fortemente ouvidos no seacuteculo posterior como pode ser constatado atraveacutes de vasta
literatura46 Antes das novas traduccedilotildees o Asclepius um dos tratados hermeacuteticos
havia circulado no Medievo de forma que algumas de suas doutrinas natildeo eram
desconhecidas e vinham sendo estudadas por alguns sobretudo por intermeacutedio das
obras de Lactacircncio e Agostinho ndash o primeiro com seus elogios o segundo com suas
condenaccedilotildees47 Ficino conhecera o Asclepius sete anos antes de iniciar a traduccedilatildeo dos
demais tratados tendo copiado alguns de seus capiacutetulos em um manuscrito pessoal
De toda forma eacute somente a partir de seu amplo trabalho de traduccedilatildeo que o
44 Os humanistas do Renascimento natildeo tinham duacutevidas acerca da antiguidade e da autenticidade daqueles
textos ndash mais tarde revelados pseudoepigraacuteficos dos primeiros seacuteculos da era vulgar ndash e tampouco sobre Hermes ter sido um real sacerdote egiacutepcio
45 Corpus Hermeticum XVI 2 (ed NOCK-FESTUGIEgraveRE 2006 pp429 ss) όσον οΰν δυνατόν έστί σοι βασιλεΰ πάντα δέ δύνασαι τόν λόγον διατήρησον άνερμήνευτον ίνα μήτε είςΈλληνας έλθη τοιαΰτα μυστήρια μήτε ή τών Ελλήνων υπερήφανος φράσις καί έκλελυμένη καί ώσπερ κεκαλλωπισμένη έξίτηλον ποιήση τό σεμνόν καί στιβαρόν καί τήν ενεργητικήν τών ονομάτων φράσινΈλληνες γάρ ώ βασιλεΰ λόγους έχουσι κενούς αποδείξεων ενεργητικούς καί αΰτη έστίν Ελλήνων φιλοσοφία λόγων ψόφος ήμεΐς δέ ού λόγοις χρώμεθα άλλα φωναΐς μεστάΐς τών έργων Traduccedilatildeo do grego feita por Andregrave Festugiegravere traduccedilatildeo para o portuguecircs de nossa responsabilidade
46 Agrave primeira ediccedilatildeo latina do Corpus Hermeticum publicada em 1471 e ateacute entatildeo desconhecida no Ocidente seguiram-se ao menos vinte e quatro ediccedilotildees nos dois seacuteculos posteriores Somente o Pimander primeiro dos tratados teve dezesseis ediccedilotildees entre o final do seacutec XV e o final do seacutec XVI (cf KRISTELLER Studies in Renaissance thought and letters 1956 p223 ss) O impacto da obra hermeacutetica natildeo poderia deixar de atingir o mundo das Artes uma bela representaccedilatildeo de Hermes Trismegisto encontra-se no mosaico de maacutermore feito por Giovanni di Stefano em 1488 para a Catedral de Siena comprovando a aceitaccedilatildeo do saacutebio pagatildeo em territoacuterio cristatildeo Para as repercussotildees do tema veja-se Frances YATES ldquoThe Hermetic Tradition in Renaissance Sciencerdquo in Art Science and History in the Renaissance Baltimore Johns Hopkins Press 1968 pp 255-274 Eugenio GARIN Ermetismo del Rinascimento Pisa ed Della Normale 2006 James HEISER Prisci Theologi and the Hermetic Reformation in the Fifteenth Century Texas Repristination Press 2011 Luisa ROTONDI SECCHI TARUGI LErmetismo nellrsquo Antichitagrave e nel Rinascimento Milano Nuovi Orizzonti 1998
47 As citaccedilotildees hermeacuteticas de Lactacircncio partem da versatildeo de um escrito grego o Loacutegos teacuteleios difundido tambeacutem em versatildeo copta Em carta a Cosimo (contida no Proacutelogo agrave traduccedilatildeo do Pimander) Ficino faz referecircncia agraves acusaccedilotildees de Agostinho acerca das possiacuteveis origens divinatoacuterias ou demoniacuteacas das doutrinas de Hermes no Asclepius (De civitate Dei VIII 23-26) Por tal razatildeo o padre-filoacutesofo teria optado por seguir os juiacutezos mais favoraacuteveis de Lactacircncio Petrarca Coluccio Salutati e Nicolau de Cusa tambeacutem atestam conhecer o conteuacutedo do Asclepius sempre atraveacutes dos olhos de Lactacircncio e Agostinho Para as referecircncias das obras desses autores veja-se GARIN 2006 pp10 ss
25
Hermetismo passa a contribuir e natildeo pouco com a disseminaccedilatildeo de ldquouma nova
sensibilidaderdquo que incrementa ldquoo gosto pelo misteacuterio e pelo ocultordquo conforme ajuiacuteza
Eugenio Garin48
Dentre os dezoito tratados que compotildeem o Corpus49 o Pimander primeiro a
iniciar a ordenaccedilatildeo expotildee um relato sobre a criaccedilatildeo do mundo o homem e sua
Queda Os tratados seguintes descrevem a ascensatildeo da alma pelas esferas dos
planetas para o reino divino e seus processos de regeneraccedilatildeo O Asclepius ou
Discurso Perfeito ndash opuacutesculo desassociado dos demais tratados cuja traduccedilatildeo foi
erroneamente atribuiacuteda a Apuleio de Madaura por natildeo poucos filoacutelogos ndash50 trata da
religiatildeo dos egiacutepcios e seus ritos sacerdotais alguns polecircmicos por serem destinados
a atrair as forccedilas do cosmo para as estaacutetuas de seus deuses O ensinamento nuclear
do Pimander mostra conformidades com o processo de uniatildeo ao Inteligiacutevel descrito
no manual de magia Picatrix que natildeo deixariam de ser percebidas nos dois textos
mestre e disciacutepulo se unificam o diaacutelogo do ser eacute com o noucircs no primeiro e com a
ldquoNatureza Perfeitardquo no segundo ldquoPimander eacute o noucircs que acompanha sempre o
disciacutepulo eacute pois a Natureza Perfeitardquo51
Esse tipo de conteuacutedo tanto em suas partes teoreacuteticas quanto teuacutergicas seria
reconhecido outrossim em meio aos enunciados caldeus introduzidos na urbe por
Plethon Os Oraacuteculos Caldeus atribuiacutedos ao sacerdote persa Zoroastro foram
manuscritos muito bem recepcionados pelo seacuteculo XV tal como ocorreu com os
hermeacuteticos52 Seu conteuacutedo de acordo com juiacutezo de Darby Nock apresenta fortes
semelhanccedilas com escritos do Gnosticismo cristatildeo ndash que em muitos pontos
coincidem com o conteuacutedo do Platonismo dos seacuteculos II e III ndash como o anelo por
certeza e revelaccedilatildeo a propensatildeo agraves abstraccedilotildees metafiacutesicas e a preocupaccedilatildeo com a
alma e sua salvaccedilatildeo53 Des Places descreve o conteuacutedo dos Oraacuteculos como uma seacuterie
de ideias ldquosobre Deus os daimons a alma o cosmordquo aleacutem de indicaccedilotildees sobre ritos
teuacutergicos54 Algumas passagens satildeo descritivas revelando a natureza de Deus do
intelecto e das hipoacutestases derivadas do Uno outras prescritivas formulam
instruccedilotildees que o teurgo deve seguir para purificar suas almas racional e irracional e
o corpo com o objetivo de se juntar agrave fonte original55 Haacute um grande nuacutemero de
48 GARIN 2006 p74 49 A ordenaccedilatildeo foi realizada por Darby Nock que distingue o Corpus Hermeticum do Asclepius e de outros
fragmentos atribuiacutedos a Estobeu Entretanto o todo da obra hermeacutetica eacute chamado a grosso modo Corpus Hermeticum O manuscrito original encontra-se em Florenccedila na Biblioteca Riccardiana 709 ff10r-12r
50 A autoria do Asclepius manteacutem-se desconhecida Ficino atribui a Apuleio a traduccedilatildeo mais antiga do corpus ldquoE multis denique Mercurii libris duo sunt divini praecipue unus de voluntate divina alter de potestate et sapientia dei Ille Asclepius hic Pimander inscribitur Illum Apuleius platonicus latinum fecit alter usque ad haec tempora restitit apud graecosrdquo (Marsilio FICINO Pimander in Opera Omnia KRISTELLER-SANCIPRIANO 1962 p1836)
51 A siacutentese eacute de Eugenio GARIN (2006 pp45-46) conforme sua leitura do Picatrix 52 Ficino traduziu os Oraacuteculos a partir da versatildeo grega de Plethon acrescentando a eles seu proacuteprio comentaacuterio
(FARMER op cit p486) Fontes antigas propotildeem que o verdadeiro autor dos Oraacuteculos Caldeus ou Loacutegia Chaldaikaacute tenha sido Giuliano o Teurgo filho de Giuliano o Caldeu que viveu agrave eacutepoca de Marco Aureacutelio em cerca de 150 dC Sobre a recepccedilatildeo aos textos de Giuliano na Academia veja-se Bohdan KIESZKOWSKI Studi sul platonismo del Rinascimento in Italia 1936
53 Cf ldquoPrefaacuteciordquo de Arthur Darby Nock ao Corpus Hermeticum opcit p 16 54 Edouard DES PLACES Oracles chaldaiumlques 1971 p12 55 Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquoOratio indagine sui presupposti cabbalistici della
concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 p18
26
elementos que remetem ao Timeu platocircnico uma das razotildees que provavelmente
levou Plethon a colocar os Oraacuteculos como fundamento de sua teologia identificando-
os como a fonte das doutrinas zoroastrianas que se encontravam na origem da
teologia platocircnica Em resposta a George Scolario Plethon com efeito atestava ldquoQue
Platatildeo fez dessa filosofia a sua proacutepria eacute demonstrado pelos Oraacuteculos que nos
chegaram de Zoroastro e que concordam em todos os aspectos com as doutrinas de
Platatildeordquo56
Sabe-se que a mentalidade renascentista apreciava os arranjos simeacutetricos de
forma que todas essas traduccedilotildees pertencentes a tradiccedilotildees que natildeo somente detinham
uma prerrogativa de sabedoria como ainda apresentavam uma simetria entre seus
conteuacutedos seriam facilmente absorvidas pelos meios intelectuais sobretudo na
Academia Para muitos humanistas do lsquo400 as formas e os fenocircmenos religiosos
mais antigos eram em certo sentido verdadeiramente puros por se encontrarem
mais proacuteximos da forma original revelada pelo divino aos homens Assim havia um
terreno propiacutecio para o cultivo daqueles temas que contemplavam desde o fasciacutenio
do antigo Egito e seus rituais maacutegicos ateacute a concepccedilatildeo de uma renovaccedilatildeo religiosa
ademais proclamavam o lugar privilegiado do homem ndash tema que seria retomado
por alguns humanistas57 Ficino natildeo demora a incorporar aquelas doutrinas a seus
pensamentos percebendo semelhanccedilas com a filosofia platocircnica e descobrindo
correspondecircncias em Plotino Jacircmblico e Proclo reconhece simetrias teoreacuteticas
sobretudo nos enunciados pertinentes a sistemas cosmoloacutegicos e metafiacutesicos que
passariam a ser enfatizadas em suas obras58
A similaridade encontrada entre esses materiais constituiram para Ficino um
testemunho de arcana mysteria Na concepccedilatildeo ficiniana de inspiraccedilatildeo plethoniana
existiria uma antiga corrente de ensinamentos filosoacuteficos transmitidos por profetas-
teoacutelogos que teriam concebido uma organizaccedilatildeo dos planos inteligiacuteveis
fundamentada em revelaccedilotildees recebidas Sob seu olhar natildeo distante da visatildeo de
outros filoacutesofos ligados ao Neoplatonismo a atividade filosoacutefica coincide com a
teoloacutegica na medida em que prepara a alma-intelecto para acolher a ldquorevelaccedilatildeordquo Os
antigos teoacutelogos prisci theologi satildeo pois aqueles que conhecem por revelaccedilatildeo a
verdade sempre a mesma por se tratar de realidade natildeo sujeita ao devir Seguindo
uma tradiccedilatildeo ininterrupta as doutrinas de Trismegisto foram sendo transmitidas a
outros saacutebios da Antiguidade chegando ateacute Platatildeo compondo o que seria uma secta
philosophorum ndash como escreveria Ficino em sua carta a Cosimo dersquo Medici59
ldquoHermes por primeiro foi chamado teoacutelogo [primus igitur theologiae apellatus est
autor] o seguiu como segundo teoacutelogo Orfeu depois Aglaofemo Pitaacutegoras e
56 A passagem eacute citada e traduzida por S GENTILE Sulle prime traduzioni dal greco di Marsilio Ficino in
ldquoRinascimentordquo nr 30 1990 pp 64-65 apud CORAZZOL opcit p20 57 Para o influxo do Hermetismo sobre os Humanistas leia-se Paul Oskar KRISTELLER El pensamiento
renacentista y sus fuentes 1982 pp 206-219 58 Brian COPENHAVER Hermes Trismegistus Proclus and the Question of a Philosophy of Magic in the
Renaissance in Merkel-Debus (org) Hermeticism and the Renaissance Intellectual History and the Occult in Early Modern Europe 1988 pp 79-110
59 KRISTELLER Studies in Renaissance Thought and Letters 1996
27
Filolau mestre de nosso divino Platatildeordquo60 Plethon havia antecedido Ficino em sua
Prisca Theologia iniciando seu elenco com Zoroastro Certamente o influxo da
concepccedilatildeo intuiacuteda pelo mestre bizantino faria efeito sobre Ficino visto que em seu
ldquoproecircmiordquo agrave traduccedilatildeo das Eneacuteadas plotinianas de 1492 Hermes e Zoroastro seriam
colocados juntos em primeiro lugar como iniciadores da pia philosophia61
Nos anos proacuteximos agrave composiccedilatildeo do De Vita Ficino volta-se cada vez mais
para a traduccedilatildeo de obras de maior cunho esoteacuterico como eacute o caso do De Mysteriis
atribuiacutedo a Jacircmblico e do texto hieraacutetico de Proclo De sacrificio et Magia62 As
concepccedilotildees acerca da existecircncia de uma cadeia formada por antigos ldquoteoacutelogosrdquo a
abertura ao Platonismo estimulada pelos mestres bizantinos as repercussotildees do
misticismo hebraico as traduccedilotildees de Ficino as polecircmicas acerca da Astrologia e da
Magia que perpassam o seacuteculo satildeo todas caracteriacutesticas que se aliam para compor
um ldquoesprit du siegraveclerdquo abrindo espaccedilo para teologias estrangeiras que natildeo poderiam
deixar de influir na composiccedilatildeo do pensamento de Pico della Mirandola Resta
observar que a paulatina mudanccedila de consciecircncia trazida pela renovatio do
Quatrocentos deve-se em grande parte aos pressupostos metafiacutesicos trazidos pela
redescoberta de antigas doutrinas que fundamentaram muitos dos postulados
filosoacuteficos e teoloacutegicos da eacutepoca
60 Marsilio FICINO Proacutelogo ao Pimander (Opera Omnia Kristeller-Sancipriano (org) 1962 vol II p1836)
Para um estudo completo acerca da Prisca Theologia ficiniana leia-se DPWALKER Spiritual and demonic magic from Ficino to Campanella London The Warburg Institute 1958
61 Marsilio FICINO Opera Omnia opcit vol II p1537 ldquoFactum est ut pia quaedam philosophia quondam et apud Persas sub Zoroastre et apud Aegyptios sub Mercurio nasceretur utrobique sibimet consona nutriretur deinde apud Traces sub Orpheo atque Aglaophemo adolesceret quoque mox sub Pythagora apud Graecos et Italos tandem vero a divo Platone consummaretur Athenisrdquo
62 GARIN 2006 p68
28
CAPIacuteTULO II
GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA
Giovanni Pico foi um ser fascinante Mas natildeo feliz Seus mais intensos
projetos foram malogrados Todavia foi aclamado pelos criacuteticos como um dos mais
notaacuteveis representantes da Filosofia Renascentista por seus contemporacircneos como
o mais saacutebio filoacutesofo de sua eacutepoca1 Fruto de seu seacuteculo ou quem sabe de uma
personalidade marcada por contrastes seu pensamento natildeo estaacute livre de
contradiccedilotildees A mais visiacutevel que extravasa para a sua inteira obra encontra-se na
dicotomia entre feacute e ratio ou entre o piedoso servo da Igreja e o filoacutesofo que se liberta
de todo o dogma para investigar os mais diversos caminhos2 Tais contrastes ao se
aliarem a um forte carisma agrave fama de gecircnio multifacetado3 e a um conjunto de
circunstacircncias extraordinaacuterias ndash tais como uma vida marcada pela trageacutedia e a morte
prematura aos 31 anos ndash contribuiacuteram para criar uma atmosfera de encanto em
torno de seu nome a ponto de a cerca de trecircs deacutecadas de sua morte ainda ser
chamado de ldquohomem quase divinordquo por Maquiavel4
Enaltecimentos natildeo lhe faltaram A despeito dos elementos contrastantes em
sua obra ndash ou justamente por causa deles ndash seu legado pode ser considerado como a
siacutentese que agrega algumas das investigaccedilotildees mais marcantes de sua eacutepoca (ldquoas
causas das coisas os processos da natureza a razatildeo do universordquo)5 o que fez com que
ganhasse o interesse de famosos intelectuais europeus ao longo dos seacuteculos e
recebesse elogios de pensadores tatildeo diversos quanto Erasmo de Rotterdam Pierre
Gassendi Kepler e Voltaire6 O apreccedilo de Thomas More pela obra piquiana fez com
1 Giovanni Pico foi considerado ainda o mais jovem nobre e belo filoacutesofo de seu tempo O escolaacutestico Angelo
Poliziano se referia ao amigo em suas cartas como o ldquodivino Picordquo (sacer Picus) a ldquofecircnixrdquo (phoenix) o ldquosemideusrdquo (heros) a ldquoluz de todo o aprendizadordquo (lux omnium doctrinarum) e ldquoaquele que eacute bonito como ningueacutem e mais eminente em todos os ramos do aprendizadordquo (quo nec pulchrior alter mortalium nec in omnibus arbitror doctrinis excellentior) Para essa e outras passagens veja-se POLIZIANO Letters Shane Butler (org) Cambridge Harvard University Press 2006 1 36-37 118-19 134-35 193 Acerca da beleza do conde avultam as descriccedilotildees ldquoEra cosigrave bello colle chiome doro svolazzanti sul volto radioso quasi novello Adone come ce lo dipinge il Ramusio [Girolamo Ramusio] in un carme latinordquo (FLAMINI Girolamo Ramusio in Atti e Memorie di R Acc di Padova 1899-1900 vol XVI pp 11-37 apud Giovanni SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola - La Fenice degli Ingegni 1921 p9) Ver tambeacutem Joseacute Vitorino de PINA MARTINS Jean Pic de la Mirandole - Un portrait inconnu de lrsquohumanisme 1976
2 Como acentuou Newton BIGNOTTO Pico ldquofoi prisioneiro das duacutevidas que assaltavam os que se dispunham a lidar com novas ideias e continuar a viver no interior da feacute cristatilderdquo (Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola 2010 p147)
3 Tornou-se proverbial a prodigiosa memoacuteria de Pico Detinha na mente numerosas obras que o faziam ter uma habilidade enciclopeacutedica de oratoacuteria Sua capacidade de retenccedilatildeo era tal que podia recitar a inteira Divina Commedia de traacutes para frente iniciando do uacuteltimo verso ndash podendo fazer isso com qualquer poema que acabasse de ler (Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)
4 Nicolau MAQUIAVEL Histoacuteria de Florenccedila livro VIII 2007 p557 Tal obra foi escrita entre 1520 e 1527 portanto nos uacuteltimos anos da vida de Maquiavel
5 PICO De Hominis Dignitate Heptaplus De Ente et Uno et scritti vari 1942 p130 ldquoQuasi rerum causas naturae vias universi rationem []rdquo
6 Veja-se respectivamente Marc LAUREYS The Reception of Giovanni Pico in the Low Countries in Gian Carlo GARFAGNINI Giovanni Pico della Mirandola Convegno internazionale di studi nel cinquecentesimo anniversario della morte (1494ndash1994) 1997 p629 Brian VICKERS Critical Reactions to the Occult Sciences during the Renaissance in The Scientific Enterprise - The Bar-Hillel Colloquium Studies in History Philosophy
29
que a difundisse ao puacuteblico inglecircs em larga escala seja atraveacutes das traduccedilotildees das
cartas e pequenos textos de Pico seja por sua livre traduccedilatildeo do livro Vita de
Gianfrancesco Pico que constitui a primeira biografia impressa em inglecircs7 Em
tempos contemporacircneos foi alccedilado ao tiacutetulo de ldquoFecircnix dos Engenhosrdquo por Giovanni
Semprini ldquoAlma do Renascimento italianordquo por Eugenio Garin e ldquoAurora
inacabadardquo por Henri de Lubac8
A principal marca de Pico foi natildeo se ter entregue inteiramente a nenhuma
corrente de pensamento fosse filosoacutefica ou teoloacutegica Com isso suas ideias o
colocaram em constante linha de fogo cruzado natildeo lhe permitindo pertencer de
forma plena a nenhum ciacuterculo Nem mesmo as vestes de sua cepa aristocraacutetica foram
vestidas de forma confortaacutevel seu entusiasmo por ideias novas a paixatildeo pela
investigaccedilatildeo e a rapidez febril com as quais expunha suas opiniotildees afastavam-no da
prudecircncia tiacutepica de um bom cortesatildeo9 ademais a escolha de uma vida filosoacutefica natildeo
fazia parte do repertoacuterio da nobreza no seacuteculo XV cujo caminho usual passava pelo
clero ou pela corte A resposta a Andrea Corneo que o exortava a abraccedilar esta uacuteltima
indica a verdadeira propensatildeo de Pico
Me escrevestes lsquoaproxima-se o tempo em que deveraacutes colocar-
te a serviccedilo de algum dos grandes [priacutencipes] da Itaacuteliarsquo Parece-
me que ignoras a opiniatildeo que tecircm de si os amantes da Filosofia
Esses de acordo com Horaacutecio se consideram reis natildeo sabem
servir e adequar-se aos costumes de outros vivem consigo
mesmos contentes da proacutepria serenidade se bastam e natildeo
precisam de nada que esteja fora de si mesmos [] E eu
partilhando dessa opiniatildeo anteponho a minha pequena cela [no
claustro] os meus estudos os prazeres que me propiciam os
meus livros agraves salas reais aos negoacutecios puacuteblicos aos favores da
corte10
Seus pensamentos e escritos determinaram os acontecimentos de sua
trajetoacuteria Veremos que as accedilotildees sofridas e o fato de sua obra mais grandiosa natildeo ter
tido a chance de ser concluiacuteda foram consequecircncias dramaticamente ligadas agrave
originalidade de suas premissas
and Sociology of Science ed Edna Ullmann-Margalit Dordrecht 1992 nr 4 p 75 Sheila RABIN Keplerrsquos Attitude toward Pico and the Anti-Astrology Polemic in Renaissance Quarterly 50 1997 pp 750-70 Para as avaliaccedilotildees de Voltaire sobre Pico veja-se Henri De LUBAC Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions 1974 p 13
7 Essa e outras referecircncias podem ser encontradas na ldquoIntroduccedilatildeordquo de Michael DOUGHERTY agrave sua obra Pico della Mirandola New Essays 2008 pp 1-2
8 As criacuteticas embora de menor vulto tambeacutem natildeo faltaram Dentre os comentaristas Lynn THORNDIKE eacute o que faz uma das mais duras avaliaccedilotildees da obra de Pico considerando o autor ldquoimaturordquo (A History of magic and a experimental science vol 4 1934 p485)
9 Conforme relata o sobrinho Gianfrancesco agrave velocidade intelectual de compreensatildeo e de apreensatildeo correspondia em Pico uma escrita raacutepida nervosa algumas vezes difiacutecil de entender Escrevia em toda a parte em folhas soltas tanto que apoacutes sua morte foi bastante trabalhoso para o sobrinho pocircr ordem naqueles escritos muitos deles incompletos (Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p97)
10 PICO Carta de 15 Outubro 1486 in Opera omnia ediccedilatildeo Basileia 1557 (apud Albano BIONDI Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pVIII) NOTA As traduccedilotildees para o portuguecircs das citaccedilotildees presentes neste capiacutetulo satildeo de nossa responsabilidade
30
1 A Vida
A primeira biografia de Giovanni Pico escrita pelo sobrinho-escritor
Gianfrancesco11 conta que durante seu nascimento foi visto um brilhante ciacuterculo
iacutegneo pairando sobre a cama da matildee parturiente ali permanecendo por algum
tempo O fato ocorreu em 24 de Fevereiro de 1463 no castelo do condado de
Mirandola12 A imagem foi prontamente associada agrave perfeiccedilatildeo do pensamento de
Pico que ldquocomo o fogo estaacute sempre voltado agraves coisas celestesrdquo Essas palavras
completam a narrativa incomum publicada apoacutes a morte do biografado o autor
sabia que a descriccedilatildeo soacute seria bem aceita pelo puacuteblico se o personagem central fosse
detentor de uma reputaccedilatildeo que permitisse tal associaccedilatildeo13
Filho temporatildeo Giovanni cresce sob estrito zecirclo da matildee donna Giulia dei
Boiardo no coraccedilatildeo de uma nobre famiacutelia em meio a conflitos familiares (que
levariam agrave morte anos mais tarde do sobrinho-bioacutegrafo)14 Aos catorze anos eacute
encaminhado para estudar Direito Canocircnico em Bolonha seguindo o costume que o
destinava agrave vida eclesiaacutestica A cidade conhecida por transmitir as ideias humanistas
da Itaacutelia para a Europa foi responsaacutevel por despertar a atraccedilatildeo do jovem pela ordem
dominicana aleacutem do gosto pelas preacutedicas dos frades envolvidos com assuntos
acadecircmicos Apoacutes dois anos da mudanccedila ocorre o falecimento da matildee e o rapaz
encontrando-se oacuterfatildeo vecirc-se obrigado a tomar suas decisotildees dali em frente sozinho15
11 A primeira biografia sobre Pico foi escrita por seu sobrinho Gianfrancesco Pico della Mirandola e publicada
na primeira ediccedilatildeo da Opera Omnia em Bolonha em 20 de marccedilo de 1496 Com base em sua obra e ainda com um conjunto de 120 cartas sobreviventes eacute possiacutevel estabelecer uma biografia de Pico bastante detalhada A Opera Omnia foi traduzida para o inglecircs posteriormente por Sir Thomas More e impressa em Londres em 1510 (Thomas MORE Giovanni Pico della Mirandola His Life by His Nephew Giovanni Francesco Pico ed J M Rigg- D Nutt London l89o) A moderna ediccedilatildeo chamada apenas Vita denomina-se Ioannis Pici Mirandulae viri omni disciplinarum genere consumatissimi vita per Ioannem Franciscum illustris principis Galeotti Pici filium conscripta (ed B Andreolli Aedes Muratoriana Modena 1994) Vejam-se mais dados biograacuteficos em E GARIN Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina 2011 L VALCKE Pic de la Mirandole un itineacuteraire philosophique 2005 D BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola cenni e documenti inediti in Rivista contemporanea 1859 pp7-56 H de LUBAC Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions 1974 W CRAVEN Pico della Mirandola Bologna 1984 J JACOBELLI Pico della Mirandola 1986 G SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola-La Fenice degli Ingegni 1921
12 Daiacute ser chamado Giovanni Pico dos condes de Mirandola e Concoacuterdia 13 A reflexatildeo estaacute em BROCCHIERI opcit pp5-8 Natildeo se deve julgar precipitadamente o sobrinho-bioacutegrafo
por um suposto enaltecimento do tio Seus escritos mostram que natildeo haacute uma exaltaccedilatildeo mas antes o contraacuterio em muitos momentos Gianfrancesco eacute bastante severo e criacutetico acerca do pensamento de Pico Sobre as circunstacircncias do nascimento veja-se Felice CERETTI Giulia Boiardo in Atti e Memorie 1881 vol 4 part 3 p 213 Jacob BURCKARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1902 pp 142 e 232 Acerca das relaccedilotildees com a matildee ldquoDonna Giuliardquo veja-se SEMPRINI op cit pp1-3
14 Conforme historiadores durante o periacuteodo de Senhorio da famiacutelia Pico que durou quatro seacuteculos (ateacute 1710) os habitantes do condado gozaram de prosperidade econocircmica e estabilidade legislativa e poliacutetica aleacutem de certa liberdade religiosa que levou ao florescimento de novas ordens como a dos ldquoMendicantirdquo Da colaboraccedilatildeo com os Mendicantes nasceu em Mirandola o ldquoDesco dei Poverirdquo e o Monte do Pietagrave aleacutem do mosteiro feminino das Clarissas (cf BROCCHIERI opcit p4) Apoacutes a morte do pai que ocorre quando Giovanni era crianccedila seus irmatildeos Galeotto e Anton Maria viveram em perene discoacuterdia em razatildeo da posse do feudo A luta familiar terminaria por extinguir o sobrinho de Giovanni Gianfrancesco assassinado em 1533 por um de seus parentes (cf Felice CERETTI Biografie pichensi 1909 pp91-127)
15 Pasquale VILLARI Girolamo Savonarola 1910 pp 21-23 SEMPRINI opcit pp3-4 BROCCHIERI opcit pp4-5 GARIN 2011 pp3-5 Vejam-se dados biograacuteficos em ldquoProgetto Picordquo convecircnio entre a Universitagrave degli Studi di Bologna e a Brown University
31
Assim aos dezesseis anos abandonando a futura carreira de jurista parte para
Ferrara cidade das mais pujantes e populosas da Itaacutelia prestigiada por seu
endereccedilamento ao estudo das Humanidades Ferrara passaria a ser o local em que
Giovanni daria seus primeiros passos em direccedilatildeo agraves disciplinas filosoacuteficas e para onde
voltaria vaacuterias vezes em seus uacuteltimos anos de vida16 Na nova cidade passa a
frequentar os ciacuterculos de discussotildees acadecircmicas chamando a atenccedilatildeo por ser o
integrante mais jovem Entre as principais pessoas que vem a ter conhecimento estatildeo
Battista Guarino mestre que lhe apresenta um tipo de conhecimento laico ateacute entatildeo
desconhecido e o frei Girolamo Savonarola encontro que mais tarde seraacute
determinante em sua vida17 Apoacutes dois anos de intenso aprendizado o nuacutecleo de
Ferrara antes repleto de novidades passa a mostrar-se limitado Pico cada vez mais
interessado em escarafunchar conventos e bibliotecas atraacutes de novos volumes18
sente-se atraiacutedo por um ambiente mais renomado e vivo de disputas acadecircmicas19
Paacutedua
Em 1480 agora com dezoito anos Pico chega a Paacutedua Na mais famosa
universidade italiana da eacutepoca onde permaneceraacute por dois anos estudando o pupilo
abraccedila definitivamente a Teologia e a Filosofia20 A formaccedilatildeo aristoteacutelica iniciada em
Ferrara seria mantida uma vez que a Escola de Paacutedua seguia uma linha de tradiccedilatildeo
notadamente averroiacutesta O ambiente de estudos padovanos o satisfaz amplamente
como demonstra uma carta escrita ao novo amigo Ermolao Barbaro21 Uma das
razotildees encontrava-se no fato de ter contato com pessoas que viriam a ter significado
fundamental em seu desenvolvimento e em sua vida Aleacutem de Barbaro tornado
doutor e titular da caacutetedra de Filosofia Moral aos vinte e trecircs anos com o qual a
identificaccedilatildeo foi imediata Pico conheceu Nicoletto Vernia original professor que o
fez conhecer a concepccedilatildeo averroiacutesta de unidade do intelecto pela primeira vez ndash tema
que teria forte impacto sobre sua formaccedilatildeo e ao qual voltaria tempos depois22 O
mestre aristoteacutelico foi de certa forma tambeacutem o primeiro a influenciaacute-lo sobre a
harmonia de pensamento entre Platatildeo e Aristoacuteteles projeto que seria perseguido por
Pico durante os proacuteximos anos de sua vida Ainda em Paacutedua Pico conhece o coetacircneo
Elia del Medigo23 jovem brilhante que como ele teraacute uma morte prematura O
cretense douto hebreu e precoce tradutor de Averroacuteis e de outros textos aacuterabes
16 GARIN ibid pp 3-8 SEMPRINI opcit p5 17 SIRGADO GANHO Comentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitate 2001 pp 15-16 SEMPRINI opcit p4
GARIN 2011 p8 18 SEMPRINI ibid p6 19 As chamadas ldquodisputasrdquo eram debates de alto niacutevel que ocorriam nos ambientes acadecircmicos tendo o caraacuteter
do que hoje conhecemos por simpoacutesio ou congresso 20 BROCCHIERI op cit p9 DELLA TORRE Storia dellrsquoAccademia Platonica di Firenze 1902 p752
GARIN 2011 p10 Sobre a importacircncia de Paacutedua como centro averroiacutesta veja-se BURCKHARDT op cit pp 242-244 SEMPRINI op cit p12
21 Na carta ao filoacutesofo aristoteacutelico Ermolao Barbaro lecirc-se que de todos os ldquoginaacutesiosrdquo da Itaacutelia aquele de Paacutedua era o que mais o agradava (DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole en France 1879 p 9) Acerca das cartas de Pico deve-se frisar que graccedilas ao primoroso trabalho de recolhimento das epiacutestolas organizado por Leacuteon Dorez tornou-se possiacutevel acompanhar muitos detalhes da vida de Giovanni Pico
22 SEMPRINI op cit pp11-12 A concepccedilatildeo de unidade do intelecto eacute uma das marcas do pensamento do filoacutesofo aacuterabe Averroacuteis tradutor das obras de Aristoacuteteles no seacuteculo XII O tema seraacute retomado no proacuteximo item
23 Elia del Medigo mestre de filosofia oriental falece com apenas trinta e trecircs anos Maiores detalhes podem ser vistos em RAGNISCO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo Padova 1891 Para as circunstacircncias do encontro com Pico veja-se Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 BROCCHIERI opcit p9
32
imediatamente aprecia a aguda inteligecircncia daquele jovem ldquoapesarrdquo do visiacutevel gosto
por Platatildeo que nele comeccedilava a despontar ndash coisa mal vista por um aristoteacutelico
ortodoxo como Elia Tal encontro se mostraraacute um dos principais elementos
responsaacuteveis pela aproximaccedilatildeo do Mirandolano ao pensamento aacuterabe-hebraico ndash que
o levaraacute por vias indiretas ao estudo da Cabala24
Pouco antes de completar vinte anos talvez em razatildeo da receacutem-editada obra
de Marsilio Ficino a Theologia Platonica de immortalitate animorum observa-se
uma mudanccedila de direcionamento doutrinaacuterio Pico comeccedila a voltar-se fortemente ao
Platonismo Uma carta de final de lsquo82 testemunha o pedido feito a Ficino para que
aceite ser seu guia no novo caminho de estudos atraveacutes do qual pretende integrar
Aristoacuteteles e Platatildeo25 Coincidecircncia ou natildeo nessa mesma eacutepoca seu amigo Angelo
Poliziano26 o convida a participar do movimento literaacuterio florentino Ademais chega-
lhe a notiacutecia de que uma forte tradiccedilatildeo de estudos hebraicos propaga-se em Florenccedila
Essas podem ter sido as principais motivaccedilotildees que o fizeram deixar o centro
padovano e partir para a cidade do Arno27 Assim em 1484 receacutem liberto de
preocupaccedilotildees de ordem financeira28 Pico muda-se para a urbe entatildeo regida por
Lorenzo dersquo Medici patrono de personalidades como Michelangelo e mecenas do
ciacuterculo platocircnico ndash que dava agora as boas-vindas a seu mais novo ingressante
Em pouco tempo comeccedilam a ocorrer encontros de cristatildeos e hebreus na casa
do mais novo morador da cidade Um ciacuterculo de orientalistas reuacutene-se com
frequecircncia para discutir o Aristotelismo29 Natildeo raro podia ser encontrado Elia del
Medigo ndash o jovem mestre que seguindo os passos do aluno foi ter em Florenccedila ndash
sustentando debates filosoacuteficos e religiosos com outro hebraiacutesta o entatildeo convertido
Flavio Mitridate ndash que mais adiante viria a ser o proacuteximo professor do Conde30
24 Para Elia del Medigo assim como para outros acadecircmicos padovanos Aristoacuteteles representava ldquoo pai de
todos os filoacutesofosrdquo e Averroacuteis era ldquoo seu mais fiel comentadorrdquo Assim que a atitude de Del Medigo em relaccedilatildeo agrave Cabala natildeo seria tatildeo positiva quanto a de Pico ou como seraacute visto a de seu outro mestre hebreu Yohanan Alemanno justamente em razatildeo do forte acento neoplatocircnico encontrado naqueles textos Cf Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p284 ss BROCCHIERI opcit pp10-11 GARIN 2011 p11
25 Para essa e outras cartas veja-se DOREZ-THUASNE opcit p 10 Para a chegada em Florenccedila DELLA TORRE opcit p 747 SEMPRINI opcit pp16-17 GARIN 2011 p15
26 Entre os Humanistas era comum a substituiccedilatildeo do proacuteprio nome por outros Acircngelo Ambrogini nascido em Montepulciano era conhecido como Poliziano Tinha cerca de dez anos a mais que Pico e morreu no mesmo ano que ele 1494 Poliziano aos trinta anos era um filoacutelogo rigoroso preceptor dos filhos de Lorenzo dersquo Medici e conhecido em toda a Europa por manter em alta o nome do Studium florentino com suas liccedilotildees de literatura grega e latina aleacutem de defensor incansaacutevel de Pico Cf SEMPRINI opcit p18 SIRGADO GANHO opcit p17 BROCCHIERI opcit pp31-33
27 O interesse pelo ciacuterculo hebraico eacute hipoacutetese alccedilada por DOREZ-THUASNE especialmente em razatildeo da repercussatildeo dos estudos hebraicos empreendidos pelo humanista Gianozzo Manetti (Pic de la Mirandole en France 1485-1488 Paris 1897 p13)
28 Em 1483 os irmatildeos de Pico chegam a um acordo em seu conflito testamentaacuterio e fazendo uma reparticcedilatildeo deixam um terccedilo das rendas para Pico Seu irmatildeo mais velho passaria a administrar seu patrimocircnio Assim livre de quaisquer preocupaccedilotildees de ordem praacutetica Pico pode continuar sua vida de estudos Cf SEMPRINI opcit pp14-15 GARIN 2011 p15 ldquoMemorie storiche della cittagrave e dellantico ducato della Mirandolardquo tomo unico Mirandola 1874 II
29 GARIN 2011 p23 30 Flavio Mitridate era o nome do judeu siciliano convertido Guglielmo Raimondo di Moncada Trata-se de
figura enigmaacutetica tradutor de textos aacuterabes e hebraicos e favorito de Sexto IV Pico em suas cartas o apresenta como um mestre intransigente em relaccedilatildeo agrave natildeo-propagaccedilatildeo de seus ensinamentos tidos como misteacuterios sagrados Detentor de um caraacuteter irasciacutevel coleacuterico arrogante e impaciente inclusive com seus alunos de idiomas (os quais ele pretendia que passassem imediatamente agrave leitura dos textos antigos sem preacutevios estudos) desfrutava
33
Graccedilas em boa parte agrave influecircncia e ao estiacutemulo daqueles encontros a cidade de
Florenccedila se transforma sobretudo de lsquo86 em diante e assim permanecendo por
alguns anos em um local de relevantes contatos entre duas culturas em virtude das
eruditas discussotildees que corroboravam a formaccedilatildeo de intelectuais cristatildeos e hebreus
Dentre eles Yohanan Alemanno que tatildeo logo chega a Florenccedila pede para ser
apresentado ao entatildeo renomado conde de Mirandola31 ndash com o qual dividiraacute mais
tarde o entusiasmo pelos misteacuterios da Cabala Sob tal atmosfera natildeo eacute difiacutecil
entrever que a casa florentina de Pico transforma-se em um ambiente concorrido por
abrigar debates de vaacuterias vertentes ali podiam ser encontrados filoacutesofos de vaacuterias
correntes ndash aacuterabo-hebraicas aristoteacutelicas platocircnicas ndash poetas literatos estudiosos
de Petrarca e de Dante32
Durante o periacuteodo florentino Pico dedica-se ao aprendizado de idiomas como
o hebraico o caldeu e o aacuterabe A reconciliaccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Platatildeo ndash cujas
afinidades haviam sido apontadas por Nicoletto Vernia ndash toma ares cada vez mais
concretos levando-o entre lsquo85 e lsquo86 a transferir-se para o nuacutecleo de Paris principal
centro de teologia escolaacutestica onde teria agrave disposiccedilatildeo uma quantidade maior de
material medieval para ampliar seus estudos O ambiente dos teoacutelogos da Sorbonne
acolhe fortemente suas ideias aqueles passam a consideraacute-lo um dos seus ndash a ponto
de defendecirc-lo diante do perigo em futuro natildeo muito distante33 De volta a Florenccedila
imerge nos textos neoplatocircnicos de Proclo e investiga os textos hebraicos contando
com a ajuda de Elia del Medigo e de seu mais recente mestre Flavio Mitridate34
Debruccedila-se sobre os misteacuterios platocircnicos hermeacuteticos e caldeus dos quais o amigo
Ficino era tenaz estudioso Em certo ponto convence-se de que suas reflexotildees jaacute
estatildeo maduras o suficiente para serem colocadas agrave prova Passa a preparar entatildeo
com certo iacutempeto vaacuterios textos pertinentes a um debate puacuteblico organizados de
forma a alcanccedilar grande ressonacircncia O que natildeo estava previsto eacute que a partir da
primavera do mesmo ano importantes acontecimentos alterariam o rumo de sua
vida de forma definitiva
de uma vida um tanto licenciosa de acordo com seus bioacutegrafos Cf CASSUTO opcit 1918 BROCCHIERI opcit pp 15-16
31 Uma das comprovaccedilotildees do renome de Pico nos ciacuterculos intelectuais encontra-se no fato que ao completar vinte e um anos eacute escrita uma comeacutedia em sua homenagem por Tommaso Mezzo (BROCCHIERI op cit pp 16 47) Sobre o encontro de Pico e Alemanno veja-se Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento Firenze 1918 p305 Alberto AMBESI Giovanni Pico della Mirandola-Cenni biografici e presentazione dellrsquoopera 1996 p I Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 53
32 GARIN 2011 p23 Dante acolhido pelo Humanismo florentino do final do Quattrocento era finalmente perdoado por ter escrito em vulgar toscano Nas uacuteltimas deacutecadas daquele seacuteculo seus escritos eram retomados por muitos literatos e filoacutesofos de Florenccedila graccedilas ao impulso dado por Leonardo Bruni e sua obra Vita di Alighieri publicada em 1436 Dante que havia sido um aristoteacutelico estudioso de Tomaacutes transformava-se agora aos olhos dos humanistas em ldquoum platocircnico puro e profundo um delesrdquo (cf BROCCHIERI 2011 p51) Pico tambeacutem nutria profunda simpatia por Dante ldquoalma rude aacutespera mas atormentada por problemas mais amplosrdquo Seu vigor algumas vezes horridus asper strigosus sempre trazia uma ldquonutriccedilatildeo vitalrdquo (apud GARIN ibid p21)
33 GARIN 2011 p25 BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 p 7 34 BIONDI ldquoIntroduzionerdquo in Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 1995 pp X-XI
34
1486 o iniacutecio dos revezes
O ano de 1486 eacute crucial para Pico que se encontra com vinte e trecircs anos Nem
soacute de livros aulas e projetos extraordinaacuterios vive o jovem No mecircs de maio daquele
ano pouco depois de regressar de Paris Pico vive uma desafortunada e breviacutessima
aventura amorosa que tem Arezzo como pano de fundo Em rota para Roma para
onde se dirigia com o intuito de preparar sua proacutexima obra apaixona-se pela jovem e
bela ndash e casada com um Medici ndash Margherita Planeja um rapto que natildeo apenas
termina frustrado como expotildee de forma ampla os dois amantes impedindo-o de
prosseguir com a viagem35 O escacircndalo lhe traz aleacutem de arrependimento o ingresso
em um duradouro periacuteodo de austeridade com a consequente retomada dos estudos
Conforme juiacutezo de Garin ldquosua dor se transmuta em um iacutempeto de pesquisa capaz de
trazer renovadas forccedilasrdquo com as quais enfrentaria os obstaacuteculos que viriam no ano
sucessivo Acresce o historiador que aquele ldquoardor multiforme insaciaacutevel de gloacuteria
de amor de saber e no final de renuacutencia e miacutesticardquo formariam o ldquosubstrato
psicoloacutegico da celebraccedilatildeo piquiana da dignidade do homemrdquo36
Recolhido assim em seu retiro de Fratta proviacutencia de Perugia em meio aos
meses de veratildeo de rsquo86 o escritor comeccedila a elaborar aquele que seria seu projeto mais
audacioso Em complexa empreitada potildee-se a redigir inuacutemeras teses acerca de
muacuteltiplos temas passando da escolaacutestica ao averroiacutesmo das tradiccedilotildees hermeacuteticas e
persas agraves filosofias aacuterabe e judaica chegando agraves ciecircncias ocultas Tambeacutem nesse
periacuteodo esboccedila um elogio agrave concoacuterdia entre os vaacuterios sistemas filosoacuteficos parte do
qual viraacute a compor a segunda parte da De Hominis Dignitate A renovada motivaccedilatildeo
transparece em carta escrita a um amigo proacuteximo ldquoem breve saberaacutes quanto seu
amigo Pico colheu de vantagens da contemplaccedilatildeo durante esses meses de vida
obscura e solitaacuteriardquo37 Tendo por propoacutesito inicial organizar em Roma no mesmo
ano um convecircnio de intelectuais ndash a chamada Disputa Romana ndash para debater suas
proposiccedilotildees com doutos da Filosofia e da Teologia publica em 7 de dezembro de
1486 as Conclusiones Nongentae juntamente com o convite aos interessados no
debate O opuacutesculo fixado em vaacuterias universidades pode ter incomodado a alguns
levando-se em conta a idade do autor38
Giovanni Pico Mirandolano Conde de Concoacuterdia disputaraacute
publicamente acerca das seguintes novecentas proposiccedilotildees
dialeacuteticas morais fiacutesicas matemaacuteticas metafiacutesicas teoloacutegicas
maacutegicas e cabaliacutesticas sejam proacuteprias que dos sapientes
caldeus aacuterabes hebreus gregos egiacutepcios e latinos []39
35 Referente ao estado de acircnimo de Pico apoacutes o rapto de Margherita e os reflexos do episoacutedio sobre algumas
passagens da obra Commento sopra una Canzone drsquoamore composta da Girolamo Benivieni veja-se Pier Cesare BORI Pluralitagrave delle vie - Alle origine del Discordo sulla Dignitagrave umana di Pico della Mirandola 2000 pp11-21 Para maiores detalhes sobre o episoacutedio veja-se DELLA TORRE opcit pp758-59 SEMPRINI opcit pp56 ss BROCCHIERI opcit pp55-56 CASSUTO opcit p289
36 GARIN 2011 p26 37 BROCCHIERI opcit p64 38 Jules DUKAS Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 np47 39 BIONDI opcit pXII Como esclarece o tradutor italiano das Conclusiones natildeo se tem informaccedilotildees sobre a
distribuiccedilatildeo do opuacutesculo na Itaacutelia Fora da Itaacutelia o material foi reproduzido em Ingolstadt no ano sucessivo 1487
35
A possibilidade da discussatildeo agita os ciacuterculos teoloacutegicos de Roma devido natildeo
apenas agrave presenccedila em meio ao opuacutesculo de alguns nomes ldquohereacuteticosrdquo como tambeacutem
de palavras suspeitosas como Magia Astrologia e Cabalismo Roma achava que ali
disfarccedilado sob o verniz do humanismo florentino encontrava-se o sequaz praticante
ldquodas escolas de Paacutedua e de Paris o disciacutepulo de Averroacuteis de Alexandre de Afrodiacutesia e
dos hebreusrdquo40 Assim a intenccedilatildeo original de travar uma contenda ldquosobre todas as
coisas conhecidasrdquo (omni scibili) termina por despertar opositores inclusive entre os
amigos41 tanto em razatildeo do projeto ser visto como fruto de orgulho pretencioso
quanto pela alegaccedilatildeo da presenccedila de supostas heresias naqueles conteuacutedos E as
coacutepias publicadas acabam gerando consequecircncias desdobradas em um crescendo de
gravidade cada vez maior
De iniacutecio o papa Inocecircncio VIII manda imediatamente suspender o debate das
Conclusiones e dois meses apoacutes a publicaccedilatildeo do opuacutesculo constitui uma comissatildeo
para examinaacute-lo sob a presidecircncia de Giovanni Monissart Em seu breve deixava
claro que ldquoalgumas dessas teses desviam do caminho da ortodoxia da feacute outras satildeo
obscuras confusas e intrincadas e outras tem ar de heresiardquo de forma que as
mesmas deveriam ser confiadas ao reverendo senhor Giovanni bispo de Tournai que
teria ldquoa tarefa de revecirc-las discuti-las e avaliaacute-lasrdquo42 Em um segundo momento Pico eacute
convidado a dar esclarecimentos acerca de algumas Teses nessa ocasiatildeo reafirma
vigorosamente seus pontos de vista acerca do conteuacutedo relacionado agrave Magia e agrave
Cabala aleacutem de acusar seus juiacutezes de padecerem de ignoracircncia Poucos dias depois o
trabalho da comissatildeo se conclui com a condenaccedilatildeo daquelas teses O acusado
convocado para apresentar-se novamente e escutar o veredicto final natildeo comparece
Em sua ausecircncia a comissatildeo decide proceder ao julgamento sem sua presenccedila
Enquanto isso rendendo-se ao fato de que as Teses natildeo seriam debatidas nem em
Roma nem em qualquer outro lugar cristatildeo Pico decide redigir a Apologia43
composta de treze disputationes que comporiam sua defesa Mesmo sem
conhecimento do novo texto Inocecircncio VIII autoriza o tribunal em 6 de Junho a
punir o culpado por heresia conforme as leis canocircnicas fato que o leva em 31 de
e um exemplar estaacute descrito no British Museum - General Catalogue of Printed Books vol 189 London 1963 col612 (ibid pXIII) ldquoDe adscriptis numero noningentis Dialecticis Moralibus Physicis Mathematicis Metaphysicis Theologicis Magicis Cabalisticis cum suis tum sapientum chaldeorum arabum hebreorum graecorum aegyptorum latinorumque placitis disputabit publice Johannes Picus Mirandolanus Concordiae Comes etc []rdquo
40 GARIN 2011 p32 41 Em carta a Roberto Salviati o veneziano Ermolao Barbaro escrevia que ldquosem duacutevida o nosso Pico obteraacute dessa
distinta iniciativa uma gloacuteria imortal dando aos seus amigos uma incomparaacutevel felicidaderdquo Por outro lado com certa maliacutecia comparava seu amigo Pico ao sofista Goacutergias dando a entender que tal promoccedilatildeo de discussotildees puacuteblicas visava apenas ao enaltecimento da vaidade do autor
42 A iacutentegra do breve papal pode ser vista em DOREZ-THUASNE op cit pp114-115 Os verbais das reuniotildees ocorridas para o questionamento das Teses foram descobertos por Dorez em um manuscrito da Biblioteca do Seminaacuterio arcebispal de Malines e publicados na obra compilada em parceria com Thuasne (Pic de la Mirandole en France 1897)
43 A primeira ediccedilatildeo da Apologia eacute datada 31 de Maio de 1487 (ldquoDie ultima Madij Anno Domini MCCCCLXXXVIIrdquo) A data correta de publicaccedilatildeo eacute posterior mas para natildeo parecer uma afronta agrave condenaccedilatildeo papal ela eacute retrodatada para antes da condenaccedilatildeo Na obra dedicada a Lorenzo dersquo Medici Pico retoma temas presentes na Oratio
36
Julho a fazer ato de submissatildeo agraves decisotildees dos comissaacuterios pontiacutefices jurando natildeo
mais sustentar posiccedilotildees que os juiacutezes natildeo julgassem aceitaacuteveis44
A submissatildeo contudo chega tarde a repercussatildeo da Apologia explodia
justamente nesse periacuteodo fazendo chegar aos ouvidos do Papa que Pico havia feito
circular novos escritos sem esperar o veredicto final45 A obra apesar do tom doacutecil
incentivava a investigaccedilatildeo da magia natural e da interpretaccedilatildeo cabaliacutestica
reafirmando ainda a liberdade de crenccedila (libertas credendi)46 Com isso sua
situaccedilatildeo torna-se praticamente irreversiacutevel Em 5 de agosto do mesmo ano Inocecircncio
VIII natildeo apenas condena todas as Conclusiones como encarrega a comissatildeo de
intervir com um novo instrumento o da Inquisiccedilatildeo com ldquoautorizaccedilatildeo para citar
interrogar e punir conforme as faculdades canocircnicasrdquo47 Em paralelo o bispo de
Tournai impotildee que quem possua uma coacutepia das Conclusiones a entregue agraves
autoridades para serem ldquoanuladas pelo fogordquo Por fim o cardeal espanhol Pedro
Garzias que mais tarde escreveria uma confutaccedilatildeo formal da Apologia de Pico
solicita a intervenccedilatildeo do temido Torquemada entatildeo agrave frente da Inquisiccedilatildeo espanhola
para resolver a questatildeo Ora Pico lia com entusiasmo os textos hebraicos escutava e
comentava os ensinamentos de seus amigos e mestres hebreus acreditava que nos
segredos da Cabala podia-se encontrar explicaccedilotildees inclusive para a verdade dos
eventos cristatildeos o homem que magnificava a sabedoria dos hebreus dificilmente
seria absolvido48
Percebendo o perigo iminente o Conde decide afastar-se da Itaacutelia refugiando-
se na Franccedila torna-se com essa atitude um herege declaradamente reincidente um
relapsus um homem caccedilado que poderia ser capturado e lanccedilado ao caacutercere49 A
proibiccedilatildeo de discutir as treze teses condenadas por sua vez lanccedila todas as demais
teses em desgraccedila jaacute que ldquoum pouco de fermento pode corromper toda a massardquo
Com essa metaacutefora Antonio Flores membro da comissatildeo que havia condenado as
treze teses pede ajuda agrave Universidade de Paris para que Pico seja capturado na
Franccedila50 Entretanto os professores daquela universidade aleacutem de toda a corte do rei
Carlos VIII compartilham da mesma simpatia pelo ldquodoutiacutessimo e desventuradordquo
italiano a ponto de ajudaacute-lo pouco tempo depois51 em janeiro de lsquo88 quando Pico eacute
44 DOREZ-THUASNE op cit p140 ldquoEu Giovanni della Mirandola tendo sob os olhos aquilo que pensam e
decidem o nosso Senhor Santiacutessimo e os senhores deputados de Sua Santidade acerca de minhas teses confesso que as teses satildeo tais e quais determinam que sejam Sua Santidade e os juiacutezes e mantenho formalmente esta opiniatildeo Natildeo sustentarei mais nenhuma posiccedilatildeo sobre essas porque Sua Santidade e os juiacutezes julgam que natildeo devam ser sustentadas E assim jurordquo Para maiores detalhes sobre a questatildeo veja-se DOREZ-THUASNE op cit ldquoBreve 6 Giugnordquo pp144-46 SEMPRINI op cit pp87-89
45 Quando recebe a notiacutecia da Apologia o papa descobre que outros teoacutelogos externos agrave comissatildeo ldquoe pouco prudentesrdquo haviam convalidado seu conteuacutedo
46 DOREZ-THUASNE op cit p125ss Veja-se Apologia - Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione (org Paolo Edoardo FORNACIARI 2010)
47 DOREZ-THUASNE op cit pp144-146 BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti Torino 1859 p47 SEMPRINI opcit p89 BIONDI opcit pp XXI-XXII
48 Lembremos que na Espanha agrave mesma eacutepoca era feita a conversatildeo forccedilada dos judeus 49 BIONDI opcit p XXXI 50 BROCCHIERI opcit p68 51 No ano anterior agrave fuga para a Franccedila durante as discussotildees teoloacutegicas acerca da condenaccedilatildeo de Pico Jean
Cordier importante acadecircmico parisiense natildeo firmara o verbal de processo de Pico Apoacutes ter escutado as explicaccedilotildees do filoacutesofo italiano chegara agrave conclusatildeo de que as treze teses incriminadas eram ldquocatoacutelicasrdquo Poucos anos depois Cordier viria a ser reitor da Sorbonne (BROCCHIERI opcit pp 69 71)
37
feito prisioneiro no castelo de Vincennes satildeo daqueles nuacutecleos franceses juntamente
com alguns italianos que se levantam protestos contra sua prisatildeo Tais pressotildees
associadas com os pedidos de Lorenzo dersquo Medici ao Papa fazem que Pico seja
libertado ndash apesar de natildeo absolvido ndash com a condiccedilatildeo de permanecer apenas em
territoacuterio florentino sob a proteccedilatildeo do Magniacutefico Ali em Florenccedila Pico permaneceraacute
pelo resto de seus dias52
Apoacutes a proibiccedilatildeo da discussatildeo das Teses e sua consequente condenaccedilatildeo Pico
atravessa um momento difiacutecil de sua vida Como infere Garin os anos seguintes
presenciaram um homem ferido e ldquodobrado sobre si mesmordquo a condenaccedilatildeo do
supremo liacuteder do Cristianismo mesmo para um espiacuterito livre era recebida naquele
seacuteculo como um acontecimento graviacutessimo53 Mais do que o perdatildeo da Igreja Pico
esperava uma reparaccedilatildeo verbal atraveacutes da qual a Igreja o aceitasse novamente como
seu filho54
De toda forma os anos sob vigilacircncia em Florenccedila foram os de maior fervor
criativo O resultado eminente daquele periacuteodo de reclusatildeo seraacute o Heptaplus
dedicado a Lorenzo e publicado no outono de lsquo89 Uacuteltimo trabalho completo de Pico
o Heptaplus conhece imediato sucesso o que alivia em parte as frustraccedilotildees que havia
sofrido55 A obra eacute entusiasticamente recebida por um nuacutemero significativo de
intelectuais sobretudo humanistas muitos escrevem para expressar sua admiraccedilatildeo
entre eles Matteo Vero Girolamo Donato Cristoforo Landino Bartolomeo Fontio e
Ermolao Barbaro56 Poreacutem aos olhos do Papa o livro apresenta-se como uma
continuaccedilatildeo das tendecircncias hereacuteticas demonstradas nas Conclusiones fazendo que a
absolviccedilatildeo se mantenha como uma esperanccedila natildeo realizada No ano seguinte eacute
publicado o breve De Ente et Uno sobre alguns pontos da proposta de acordo entre
Platatildeo e Aristoacuteteles o texto contudo natildeo eacute finalizado Pouco tempo depois eacute
publicada a uacuteltima e mais longa obra piquiana a Disputationes adversus
astrologiam divinatricem acerca da qual o autor compotildee doze dos treze livros
pretendidos e sobre cujas circunstacircncias ainda hoje pairam duacutevidas entre os
inteacuterpretes como seraacute abordado adiante
Em 18 de Junho de 1493 o Papa Alessandro IV Borgia sucessor de Inocecircncio
VIII absolve Pico da condenaccedilatildeo de 148757 O novo Pontiacutefice mostra interesse por
alguns dos assuntos que haviam concorrido para a condenaccedilatildeo das Conclusiones
como a Magia e a Astrologia ademais vecirc o jovem filoacutesofo com simpatia sentindo-se
impelido a escrever um resumo contando suas desventuras ndash texto que
52 Crofton Black eacute de opiniatildeo que a atitude papal foi uma ldquosoluccedilatildeo pragmaacutetica para uma situaccedilatildeo
potencialmente embaraccedilosardquo Pico e suas ldquodoutrinas insalubresrdquo permaneceriam afastados de Roma e ele seria confinado agrave ldquoatmosfera rarefeita de bibliotecas florentinas e ao grupo de intelectuais agrave volta de Lorenzordquo (BLACK opcit pg 8) Para toda a questatildeo da fuga em Franccedila veja-se DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole en France (1485-1488) 1897 pp56-101
53 GARIN 2011 p39-40 54 BROCCHIERI opcit p41 55 BLACK opcit pg 8-9 BROCCHIERI op cit p86 56 Para as referecircncias das cartas trocadas a esse respeito veja-se BLACK ibid np10 57 Leacuteon DOREZ Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) in Giornale Storico della Letteratura
italiana 1895 I pp358-361
38
posteriormente seraacute publicado junto agrave ediccedilatildeo das obras piquianas em 1572 Em sua
absolviccedilatildeo descreve-o ainda como homem iluminado pela ldquoDivina Piedade e um fiel
filho da Igrejardquo58 O erudito Papa parecia entrever no Hermetismo e na Cabala
preacircmbulos significativos e prestigiosos da religiatildeo cristatilde exatamente como havia
pretendido comprovar o conde de Mirandola59
Os uacuteltimos anos e a relaccedilatildeo com Savonarola
Nos uacuteltimos anos da vida de Pico entre rsquo90 e rsquo94 desenvolve-se uma relaccedilatildeo
complexa e intensa com Girolamo Savonarola Durante os anos de estudos iniciais
em Bolonha o frade predicador chamara a atenccedilatildeo do ainda muito jovem aprendiz
ldquoem razatildeo de suas maneiras simples e rudes os olhos viviacutessimos a fronte sulcada
pelas rugas e a pele morena que contrastava com suas vestes brancasrdquo60 Assim era
Savonarola em seus vinte e cinco anos tatildeo emagrecido pelos jejuns e abstinecircncias
que ldquoa vecirc-lo passear pelos claustros mais parecia uma sombra que um homem
vivordquo61 A atraccedilatildeo pelos discursos de vieacutes aristoteacutelico foi o iacutematilde que o ligou ao frei
quando teve a oportunidade de escutaacute-lo em uma disputa escolaacutestica Seria
improvaacutevel pensar naquela ocasiatildeo que aquele homem douto austero e riacutegido teria
importacircncia singular em sua vida62
O reencontro se daacute quando Pico natildeo obtendo a absolviccedilatildeo esperada da Igreja
decide procurar Savonarola que entatildeo pregava na Itaacutelia setentrional pedindo-lhe
para intervir por ele junto ao principal dos Dominicanos O pedido sobre o qual seu
amigo Lorenzo continuava a insistir com o Pontiacutefice63 eacute frustrado mas de alguma
forma serve para reaproximar aquelas duas personalidades de maneira definitiva a
pedido de Pico Savonarola acaba sendo chamado pelo Medici ndash a ldquocontragostordquo ndash
para reger a Igreja de San Marco em Florenccedila a partir de Abril de rsquo8964
Tal relaccedilatildeo teria exercido um poderoso influxo nas mudanccedilas de
direcionamento do pensamento de Pico ensejando especulaccedilotildees de cunho
58 BROCCHIERI opcit p100 59 Para Henri de LUBAC a absolviccedilatildeo definitiva de Pico e de seus escritos ocorreraacute apenas duas deacutecadas
adiante graccedilas ao gesto do entatildeo Papa Leatildeo X que em Abril de 1519 autorizaraacute Gianfrancesco a republicar integralmente as obras do tio (Pico della Mirandola Lrsquoalba incompiuta del Rinascimento p453)
60 SEMPRINI opcit p4 61 Pasquale VILLARI Girolamo Savonarola 1910 Essa e outras descriccedilotildees encontram-se nas pp 21-23 62 Para maiores detalhes veja-se Joseph SCHNITZER Savonarola 1931 vol1 sobretudo a partir de pp101 ss
BROCCHIERI op cit p39 63 Como elucida Giulio Busi Inocecircncio VIII levou muito a seacuterio o projeto de ldquoutopia sapiencialrdquo do Conde de
Mirandola Em resposta a Lorenzo que insistia para que o amigo Pico fosse perdoado escrevia que ldquoisso eacute um caso importantiacutessimo coisa diversa de gratificar o jovem filho de Lorenzo em questotildees que natildeo satildeo casos de feacuterdquo Ou seja para o Pontiacutefice era coisa de menor importacircncia conferir a dignidade de cardeal ao filho de treze anos de Lorenzo de que transigir sobre o escacircndalo provocado pelas Teses piquianas (BUSI Pico fede ragione e Inquisizione in Il Sole-24 Ore 28082018)
64 AMBESI opcit p III Girolamo Savonarola tambeacutem conhecido como Jerocircnimo de Ferrara manteacutem-se agrave frente de San Marco ateacute 1994 Nesse ano apoacutes a morte de Pico e a queda de Piero filho de Lorenzo o frei toma o poder em Florenccedila Quatro anos depois em maio de 1498 seraacute enforcado e queimado (cf Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 54)
39
psicoloacutegico entre os estudiosos da obra piquiana65 A influecircncia de Savonarola natildeo
pode ser negada seja qual for seu vetor Em reflexatildeo sobre o tema ajuiacuteza Garin que
Pico e Savonarola eram ldquoduas almas tatildeo ardentes e originais quanto diferentes em
suas tendecircncias e atitudesrdquo No entanto ldquohavia algo na alma de Pico que somente
com o frei poderia ser identificadordquo66 Ambos amavam os livros de forma apaixonada
e neles viam natildeo apenas fontes de cultura mas respostas espirituais Moviam-se em
uma atmosfera distante daquela que respiravam os literatos contemporacircneos Os
problemas espirituais natildeo eram vistos como curiosidades intelectuais pertencentes ao
mundo dos doutos eram uma ldquoquestatildeo de vidardquo como prossegue Garin67 E ambos
buscavam verdades que natildeo enxergavam na Igreja do lsquo400 nem tampouco entre os
humanistas em geral Nas palavras do historiador
A existecircncia representava para ambos uma tarefa uma missatildeo
[] O mundo do espiacuterito natildeo se encontrava separado da vida
concreta a sua luz deveria permeaacute-la fundir-se a ela
transformaacute-la68
Certo eacute que durante o periacuteodo de isolamento acentuam-se em Pico claras
tendecircncias miacutesticas tornando-se Savonarola seu padre espiritual Tambeacutem chama a
atenccedilatildeo o fato de seus escritos do uacuteltimo periacuteodo apresentarem uma mudanccedila
substancial de concepccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas o autor chega a negar muitas das
teses anteriores e parece voltar-se a uma posiccedilatildeo mais ortodoxa Tal mudanccedila de
pensamento estaacute bem clara na obra Disputationes adversus astrologiam
divinatricem de forma acentuada nos uacuteltimos trecircs livros em que Pico trata com
desprezo a ciecircncia astroloacutegica dos egiacutepcios e caldeus fazendo uma minuciosa criacutetica
histoacuterica que parece lanccedilar por terra os ecircxitos daquelas antigas culturas Tal mudanccedila
de posicionamento natildeo passaria despercebida pelos criacuteticos levando a inuacutemeras
polecircmicas natildeo sem razatildeo a confutaccedilatildeo da Astrologia mateacuteria combatida de forma
ferrenha pelo frei e mentor dominicano representava um ataque que se colocava em
oposiccedilatildeo direta agraves doutrinas partilhadas pelas tradiccedilotildees agraves quais Pico prestara
homenagem em suas obras anteriores como o Hermetismo a Cabala o
Zoroastrismo o Neoplatonismo Em tentativa de esclarecer as mudanccedilas de rumo
da inacabada obra o editor Gianfrancesco Pico alegaria que as mesmas eram devidas
ao progressivo isolamento e agrave crescente religiosidade vividos por seu tio que o
levaram a passar por um processo de conversatildeo Entretanto essa afirmaccedilatildeo tem sido
colocada em duacutevida por alguns comentadores69
65 Para os efeitos psicoloacutegicos de Savonarola sobre Pico veja-se GARIN 2011 pp5-9 Para detalhes mais
completos sobre a relaccedilatildeo veja-se GARFAGNINI (org) Savonarola tra Giovanni e Gianfrancesco Pico In Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) 1997 pp 237-279 Ainda SEMPRINI opcit p4
66 GARIN 2011 p8 67 Idem 68 Idem As missotildees seja do mentor que do pupilo encontravam-se ligadas a certas formas de reaccedilatildeo a valores
religiosos e morais Suas atitudes contudo eram anacrocircnicas Pico buscava no passado a renovaccedilatildeo moral do presente Savonarola em suas preocupaccedilotildees doutrinais era um precursor das disputas religiosas que viriam no seacuteculo sucessivo (idem)
69 O tema da suposta conversatildeo de Pico e os comentaacuterios de vaacuterios inteacuterpretes podem ser conferidos na obra de William CRAVEN Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age Modern Interpretations of a Renaissance Philosopher 1981 pp 77-87 131-154 Para maiores detalhes acerca da mudanccedila de direccedilatildeo nas Disputationes
40
A hipoacutetese de conversatildeo seja espontacircnea ou relacionada com o eventual
influxo de Savonarola eacute enfraquecida diante de um interessante testemunho que
expotildee as verdadeiras convicccedilotildees e o entusiasmo conciliador de Pico ndash o mesmo de
seus anos anteriores Pietro Crinito membro fervoroso dos piagnoni ndash nome dado
aos seguidores de Savonarola ndash relata um encontro entre o Frei e o Conde na
biblioteca de San Marco Nessa ocasiatildeo os dois travam um intenso debate acerca do
valor da sabedoria dos Antigos no qual o Frei posiciona-se entre outros contra
Platatildeo e Aristoacuteteles70 Em resposta e referindo-se agraves doutrinas cristatildes acerca da
imortalidade da alma e do caraacuteter absoluto de Deus Pico efetua uma ampla e
eloquente defesa dos Prisci Theologi muito semelhante agraves posiccedilotildees sustentadas por
Ficino71 ldquoao longo de toda a vida dos mortais existiram alguns priacutencipes os maiores
em juiacutezo e em conhecimento das coisas como Moiseacutes Pitaacutegoras Mercuacuterio Zoroastro
e Soacutelon os quais com consenso unacircnime (qui omnes pari consensu) natildeo apenas
creram nessas coisas como tambeacutem as afirmaram maximamenterdquo72 Seu discurso
pretendia sinalizar que muitos saacutebios entre pagatildeos e cristatildeos compartilhavam dos
mesmos princiacutepios Quando o debate termina como prossegue Crinito Savonarola
mostra estar rendido perante a erudiccedilatildeo do jovem abraccedila-o e reconhece que ele eacute o
uacutenico em seu tempo a conjugar um conhecimento exaustivo tanto da Filosofia dos
Antigos como das doutrinas e leis cristatildes comparaacutevel apenas ao dos grandes Padres
da Igreja do Oriente e Ocidente73
As palavras de Pico trazem por um lado a constataccedilatildeo de uma natildeo irrestrita
anuecircncia agraves orientaccedilotildees do dominicano por outro a confirmaccedilatildeo da preservaccedilatildeo das
mesmas certezas de outrora em relaccedilatildeo ao tema da concordacircncia entre antigas
tradiccedilotildees Sob a luz de tal testemunho arrefece a suposiccedilatildeo de conversatildeo e mudanccedila
de direcionamento doutrinaacuterio E solidifica-se a hipoacutetese alccedilada por alguns de
adulteraccedilatildeo de alguns textos publicados postumamente por parte de seu religioso
sobrinho e editor sob a eacutegide de Savonarola74 Outro sinal que afasta a possibilidade
de conversatildeo pode ser verificado no discurso de post-mortem do Mirandolano no
qual o Frei demonstra com desilusatildeo que ldquoesperava mais do jovemrdquo ldquoEle demorou a
veja-se Anthony GRAFTON Giovanni Pico della Mirandola Trials and Triumphs of an Omnivore in Commerce with the classics Ancient Books and Renaissance Readers 1997 pp 93-134 Veja-se ainda Charles SCHMITT Gianfrancesco Picorsquos Attitude toward his Uncle in Llsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo pp 305-313 Stephen FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 pp 151-179 Eugenio GARIN Ricordando Giovanni e Gianfrancesco Pico della Mirandola in Giornale critico della filosofia italiana nr 74 1995 pp 5-19
70 Pietro CRINITO De honesta disciplina III 2 Roma Fratelli Bocca editori 1955 p 104 O debate eacute citado por Francisco BASTTITA HARRIET Recepcioacuten de los textos hermeacuteticos en el platonismo florentino del Quattrocento Marsilio Ficino y Giovanni Pico della Mirandola In Hermes Platonicus Hermetismo y Platonismo en el Medioevo y la Modernidad temprana 2016 p 218
71 Conforme expostas no Capiacutetulo I 72 CRINITO opcit pp 104-105 ldquoSed principes - inquit- in omni mortalium vita extiterunt aliquot et iudicio et
rerum cognitione maximi ut Moses Pythagoras Mercurius Zoroastres Solon qui omnes pari consensu non modo haec crediderunt sed maxime affirmaruntrdquo
73 CRINITO idem Na narrativa de Crinito dentre os Padres da Igreja aos quais Pico eacute igualado estatildeo Agostinho Gregoacuterio Dioniacutesio Jerocircnimo e Basiacutelio
74 BASTTITA HARRIET 2016 p 218 Para Alberto Cesare AMBESI a orientaccedilatildeo concordista de Pico contraacuteria agrave religiosidade de Savonarola que se manifestava de forma agressiva e intolerante elimina a hipoacutetese de conversatildeo que muitos quiseram crer (opcit p IV) Em razatildeo das incertezas de autoria que pairam sobre as Disputationes adversus astrologiam divinatricem preferimos nos abster de quaisquer comentaacuterios sobre a obra
41
abraccedilar a religiatildeo [] [mas] digo-vos que a alma dele em razatildeo das oraccedilotildees dos
frades e de algumas obras boas que realizou em vida estaacute no Purgatoacuteriordquo A ldquodemorardquo
em abraccedilar a religiatildeo deveu-se ao fato de o filoacutesofo natildeo se ter deixado convencer pelas
conversas com o padre que gostaria de tecirc-lo visto com o haacutebito dominicano75
Pico falece em 17 de novembro de 1494 em decorrecircncia de uma febre suacutebita e
violenta Logo surgem em Florenccedila suspeitas de assassinato76 Vestia na morte o
haacutebito dominicano aquele que em vida havia se recusado a usar No mesmo ano seu
sobrinho Gianfrancesco della Mirandola publica aquela que passaria agrave Histoacuteria da
Filosofia como a mais original contribuiccedilatildeo de Giovanni Pico a De Hominis
Dignitate
2 As bases filosoacuteficas entre a Academia e o Liceu
A recuperaccedilatildeo dos diaacutelogos platocircnicos transcorrida nos mesmos palcos em
que eram relidos os comentadores aristoteacutelicos levou ao nascimento de uma
polecircmica bastante aacutespera entre os sustentadores de cada uma daquelas linhagens
filosoacuteficas Apesar do florescente encantamento por Platatildeo sobretudo no nuacutecleo
florentino seria um equiacutevoco pensar que Aristoacuteteles tivesse sido esquecido na
segunda metade do seacuteculo XV Nas principais escolas por onde Pico passara ndash
Ferrara Bolonha Pavia e especialmente Paacutedua ndash os ensinamentos aristoteacutelicos
continuavam a fervilhar77 Mesmo entre os humanistas de vieacutes platocircnico mais
acentuado Aristoacuteteles era uma leitura obrigatoacuteria por representar a antiacutetese do
Platonismo servindo de fundamento aos mais amplos debates Tais debates
envolveriam alguns dos mais fundamentais filoacutesofos do periacuteodo de Nicolau de Cusa a
Pietro Pomponazzi passando por Ficino e deixando marcas em quase toda a
produccedilatildeo literaacuteria do seacuteculo78 A complexa temaacutetica da pressuposta antiacutetese entre o
pensamento de Platatildeo e o de Aristoacuteteles que dividia uma parcela dos acadecircmicos
ocupou uma relevante parte dos interesses de Giovanni Pico que trabalhou no
problema desde a De Hominis Dignitate ateacute o De Ente et Uno Aleacutem de todo seu
esforccedilo empregou na questatildeo a consistente bagagem que possuiacutea preenchida de
forma equacircnime pelo peso das duas vertentes que abasteciam sua biblioteca79
75 GARIN 2011 pp43 135 76 Leacuteon DOREZ apresenta a tese da morte por envenenamento por parte do secretaacuterio de Pico Cristoforo di
Casal Maggiore por razotildees financeiras ou poliacuteticas Pico havia feito empreacutestimos e destinado um lauto legado a Cristoforo (La mort de Pic de la Mirandole et lrsquoeacutedition aldine des oeuvres drsquoA Politien in Giornale St Letteratura italiana vol 32 1898 pp360-364)
77 Tambeacutem Florenccedila respirava um clima aristoteacutelico Desde o final do seacuteculo XIII e ateacute parte do lsquoXV o filoacutesofo mais estudado pelos grandes cidadatildeos de Florenccedila havia sido Aristoacuteteles Soacute no lsquo400 foram feitas trinta e duas novas traduccedilotildees de suas obras a maior parte em Veneza e em Florenccedila nesta uacuteltima durante o periacuteodo em que jaacute prevalecia em seu solo a filosofia platocircnica (cf BROCCHIERI 2011 p24)
78 Paul Oskar KRISTELLER Movimenti filosofici del Rinascimento in Giornale critico della Filosofia Italiana 1950 29
79 A biblioteca de Pico tornou-se famosa por ser uma das maiores de seu seacuteculo Ademais suas fontes eram todos os livros das bibliotecas de seu tempo segundo Giovanni DI NAPOLI (Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo 1955) tornando seu leque de referecircncias fora do alcance de seus
42
Seus primeiros anos de estudos foram ocupados com as problemaacuteticas em
torno ao Aristotelismo e as subsequentes questotildees alccediladas por seus comentadores
Em uma carta de 1485 em resposta ao humanista Ermolao Barbaro tem-se o
importante testemunho do enraizado conhecimento de suas doutrinas e da gratidatildeo
que Pico nutria por aquela Escola em aberto elogio aos ldquograndes mestres aacuterabes e
latinos da Idade Meacutediardquo relata que a eles dedicou ldquotodos os dias e noitesrdquo daqueles
que por seis anos consecutivos teriam sido seus ldquomelhores anos de estudordquo A carta
reproduz ademais a defesa dos grandes conteuacutedos em detrimento da filologia e da
retoacuterica humanista ndash defendida por Barbaro ndash tendo se tornado um documento de
elogio agrave Filosofia ldquonatildeo seremos ceacutelebres nas escolas dos gramaacuteticos []mas sim
onde se indagam as razotildees das realidades humanas e divinasrdquo80 Seus argumentos e
justificativas somam-se para defender o meacutetodo escolaacutestico tornando-se
emblemaacuteticos das discussotildees ensejadas no periacuteodo renascentista ndash em que os
defensores da elegacircncia linguiacutestica encontravam-se em oposiccedilatildeo aos defensores dos
conteuacutedos filosoacuteficos81
Fato certo eacute que nas linhas da escolaacutestica latina especialmente a mais tardia
Pico encontrara uma riqueza de pensamento que o ajudaria a solucionar muitas de
suas duacutevidas filosoacuteficas Eis a razatildeo para dedicar ao periacuteodo nada menos que 94 de
suas Conclusiones entre as quais se encontram proposiccedilotildees dos principais
representantes do Aristotelismo cristatildeo estudados em Paacutedua e Paris como Alberto
Magno o teoacutelogo Enrico de Gand e seu contemporacircneo Egidio Romano o
dominicano Tomaacutes de Aquino o franciscano Duns Escoto e seu disciacutepulo Francisco
de Meyronnes Sua trajetoacuteria de estudos inicia-se com Tomaacutes com o qual passaria
um longo periacuteodo de instruccedilatildeo que continuaria com o percurso das demais
interpretaccedilotildees latinas82 Impulsionado por seu crescente interesse em torno ao Liceu
em breve tempo Pico seria conduzido ao encontro com o pensamento aacuterabe a
Universidade de Paacutedua sobretudo agrave sua eacutepoca seguia uma linha majoritariamente
averroiacutesta83 O relevo dispensado a essa corrente de pensamento reflete-se em suas
contemporacircneos Apoacutes sua morte e conforme deixado em testamento a biblioteca foi herdada por seu irmatildeo Anton Maria que a vendeu ao cardeal Domenico Grimani amigo de Pico e de Elia del Medigo estudioso de filosofia oriental Outras informaccedilotildees sobre a biblioteca de Pico podem ser colhidas de GARIN Giovanni Pico della Mirandola 2011 pp 106 ss
80 A carta de Junho de 1485 eacute reproduzida dentre outros por Eugenio GARIN (org) Prosatori latini del Quattrocento Milano-Napoli 1952 pp804-823 Eugenio ANAGNINE examina com precisatildeo tal epiacutestola em seu Giovanni Pico della Mirandola 1937 pp 18 ss Veja-se ainda Francesco BAUSI E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza 1998 e alguns comentaacuterios de GARIN em sua traduccedilatildeo do De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 pp7 ss e em sua obra de 2011 p7
81 A carta para Barbaro tornou-se conhecida como De genere dicendi philosophorum ou ainda ldquoil manifesto del pensiero moderno allrsquouscire dalla sua infanzia drsquoun secolordquo (cf GARIN op cit pp22-23) O veneziano Ermolao Barbaro era disciacutepulo ferrenho de um novo Aristoacuteteles compreendido agrave luz do movimento humanista que rompia com a escolaacutestica medieval Em sua visatildeo aquela forma de interpretaccedilatildeo dogmatizava o Estagirita vinculando-o agrave loacutegica e a um padratildeo de pensamento teoloacutegico para ele ldquocoisa de conventordquo Acerca da polecircmica entre Ermolao Barbaro e Giovanni Pico veja-se Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos del Renacimiento Italiano p82 GARIN (org) Prosatori latini del Quattrocento Milano-Napoli 1952
82 Eugenio ANAGNINE (Giovanni Pico della Mirandola Sincretismo religioso-filosofico 1937 p32) de forma singular acentua a influecircncia tomista no pensamento de Pico
83 Em Paacutedua a pesquisa universitaacuteria em torno do aristotelismo-averroiacutesta ganhara uma notoacuteria dimensatildeo especialmente na deacutecada de 70 do seacuteculo XV Esse fato contribuiu para que acorressem ao burgo diversos jovens humanistas aacutevidos em aprofundar o conhecimento aristoteacutelico Paralelamente diversos tipoacutegrafos introduziram sua arte na cidade no uacuteltimo quartel daquele seacuteculo e por via da accedilatildeo tipograacutefica foram grandes divulgadores dos
43
82 teses dedicadas aos inteacuterpretes aacuterabes de Aristoacuteteles quase se igualando em
nuacutemero agraves dedicadas aos comentadores cristatildeos Dentre aqueles o estudioso
debruccedilou-se sobre o filoacutesofo persa Ibn Sina conhecido como Avicenna e seu mestre
de origem turca Al-Farabi e de forma singular sobre o andaluz conhecido como
Averroacuteis cujas obras ocupavam grande parte de sua biblioteca84
Em seus estudos de especulaccedilatildeo oriental a obra de Averroacuteis desempenharia
um papel fundamental muito graccedilas a seus mestres de Paacutedua Nicoletto Vernia e
sobretudo Elia del Medigo que efetivamente incitaram Pico a aprofundar-se no
pensamento do comentador de Aristoacuteteles Eacute bastante provaacutevel que Elia leitor atento
da concepccedilatildeo da ordem metafiacutesica averroiacutesta tenha sido o primeiro a lanccedilar na
mente de seu aluno a semente da ldquoverdade uacutenicardquo sobretudo exposta por Averroacuteis em
seu De animae beatudine determinante para as primeiras concepccedilotildees piquianas em
torno da concordacircncia final entre doutrinas que se desenvolveria nos anos
seguintes85 Outras duas concepccedilotildees averroiacutestas certamente tiveram efeito em seus
escritos quais sejam o encontro da unidade da verdade com a unidade do espiacuterito
que a busca ndash e que define a unidade uacuteltima do intelecto inteligente e inteligiacutevel ndash e a
cogniccedilatildeo racional que ocorre entre pensadores individuais que formam uma
continuidade de pensamento levando a um complemento do real que apenas assim
se atua de forma plena Pico estava disposto a debater essa uacuteltima concepccedilatildeo durante
a pretendida Disputa Romana pois dentre as teses atribuiacutedas a Averroacuteis lecirc-se que ldquoa
alma intelectiva eacute uacutenica em todos os homensrdquo86 Mas de forma particular foi a
doutrina que postula a possibilidade de uniatildeo do intelecto humano com a mente
divina que mais fortemente ecoaria e se repetiria na obra de Pico87 Na forma
pressuposta pelo filoacutesofo aacuterabe
Aquele intelecto entatildeo ascenderaacute pelo ato agrave assimilaccedilatildeo das
realidades abstratas e compreenderaacute ser seu o que eacute pelo ato o
intelecto88
comentaacuterios de Averroacuteis a Aristoacuteteles Sobre a accedilatildeo tipograacutefica em Paacutedua veja-se G ANTONELLI Sulle Opere di Aristotele col commento dellrsquoAverroe impresse in Padova dal Canozio negli anni 1472 73 e 74 (Ferrara 1842) A Escola de Paacutedua graccedilas aos sistemas cientificistas adotados em seus estudos foi a responsaacutevel por cunhar a expressatildeo ldquomeacutetodo cientiacuteficordquo para questotildees de acircmbito filosoacutefico
84 Em seu ldquoAppendicerdquo a Giovanni Pico della Mirandola (2011 pp 106 ss) no qual se encontra a relaccedilatildeo de obras que compunham a biblioteca de Pico escreve GARIN que o pensador do qual Pico ldquonatildeo sem significadordquo possuiacutea mais obras era justamente Averroacuteis (p118) Comentador de Aristoacuteteles por excelecircncia Abu al-Walid ibn Rushd mais frequentemente conhecido no Ocidente por Averroacuteis havia feito entre outras interpretaccedilotildees um comentaacuterio da Metafiacutesica agrave luz do Coratildeo A biblioteca de Pico continha vaacuterias de suas traduccedilotildees e comentaacuterios em aacuterabe hebraico e latim Para um maior enquadramento da problemaacutetica averroiacutesta veja-se a obra de Ernest RENAN Averroegraves et lrsquoAverroiumlsme 1852
85 Acerca do influxo de Averroacuteis sobre a concepccedilatildeo de concoacuterdia piquiana veja-se GARIN 2011 pp12 ss 84 ss 86 PICO Concl (I) II I 2 (p20) ldquoUna est anima intellectiua in omnibus hominibusrdquo Dentre as teses
atribuiacutedas por Giovanni Pico aos comentadores aacuterabes de Aristoacuteteles 41 foram dedicadas a Averroacuteis O tema da unidade de alma dos filoacutesofos eacute tratado na obra do filoacutesofo aacuterabe Destructio destructionum disp I fol 20 I-21 a ldquoSoacutecrates eacute diverso de Platatildeo em nuacutemero e contudo ele mesmo [Soacutecrates] e Platatildeo satildeo o mesmo na forma que eacute almardquo (ldquoSocrates est alius a Platone numero et tamen ipse et Plato sunt idem in forma quae est animardquo)
87 A uniatildeo da mente humana com o divino eacute concepccedilatildeo presente na inteira obra piquiana colocada por outras vias e atraveacutes de outras formas filosoacuteficas ou teoloacutegicas como seu objetivo final Sobre a especiacutefica reflexatildeo do tema averroiacutesta na obra de Pico veja-se Guido DE RUGGIERO La filosofia del Cristianesimo 1920 p56
88 AVERROacuteIS De animae beatudine Opera volIX 153 AB ldquoAscendet tunc ille intellectus is actu ad assimilationem rerum abstractarum et intelligit suum esse quod est actu intellectus []rdquo O tratado De animae beatudine foi uma compilaccedilatildeo posterior de dois curtos textos de Averroacuteis sobre o intelecto (Tractatus De animae
44
A ideia da conciliaccedilatildeo do indiviacuteduo com o intelecto universal e a ideia da
unidade de alma existente entre os filoacutesofos seriam colhidas e ajudariam a compor o
substrato do pensamento piquiano89 Tais concepccedilotildees muito provavelmente
fizeram-no abraccedilar com mais veemecircncia o Platonismo com o qual encontraria
similitudes conceituais ndash como na questatildeo da afinidade existente entre a parte da
alma capaz de entender as Ideias e a realidade inteligiacutevel permitindo sua uniatildeo Cabe
ressaltar que a inspiraccedilatildeo averroiacutesta de Pico foi de tal profundidade que o levou a
afastar-se dos tradicionais nuacutecleos de Paacutedua em razatildeo de divergecircncias em relaccedilatildeo a
especificidades daquela doutrina A cisatildeo com o academicismo padovano fez com que
Barbaro o chamasse de ldquotraidorrdquo na famosa carta de rsquo85 incomodado pela
aproximaccedilatildeo do amigo ao Platonismo o peripateacutetico atribuiu seu afastamento a uma
suposta adesatildeo incondicional agrave filosofia do ciacuterculo de Ficino Mas ao contraacuterio do
que tantos quiseram crer seu afastamento foi mais consequecircncia dos argumentos
retirados de seus intensos estudos sobre o pensamento aacuterabe aliados a uma forma
diferenciada de ler Averroacuteis90 Mais do que ter sido ldquoroubadordquo de Averroacuteis por Platatildeo
Pico foi impelido pelo Comentador ao Platonismo pois havia algo naquela filosofia
que dava espaccedilo para a transcendecircncia91
Embora seja redutivo outorgar agrave filosofia de Averroacuteis o creacutedito por uma
aproximaccedilatildeo ao nuacutecleo de pensamento da Academia cabe lembrar que o Pico que se
lanccedila com interesse sobre a ficiniana Theologia Platonica em 1482 tem a mente jaacute
moldada por uma robusta bagagem averroiacutesta que natildeo seria desprezada Seu
primeiro texto relevante o Commento sopra una Canzona drsquoamore composta da
Girolamo Benivieni92 apresenta um claro vieacutes platocircnico A inegaacutevel orientaccedilatildeo de seu
primeiro escrito mostra que embora o nuacutemero total de teses dedicadas ao
Platonismo na sucessiva obra de rsquo86 tenha sido menor a admiraccedilatildeo por suas
concepccedilotildees natildeo se mostra inferior do que a experimentada com as correntes
aristoteacutelicas Eacute bastante possiacutevel que ao aproximar-se de Platatildeo e dos neoplatocircnicos
Pico jaacute o faccedila trajando as vestes do conciliador que busca harmonizar os motivos
centrais do Liceu e da Academia Sob tal enfoque chama a atenccedilatildeo o fato de Proclo
beatudine - Aristotelis Opera cum Averrois Commentariis Venetiaa Junctas 1562 [reprinted Frankfurt 1962] Vol IX pp 148r-155r)
89 A concepccedilatildeo de que o intelecto eacute capaz de entender o agente primeiro e a si mesmo a partir da virtude racional eacute uma tese de Al-Farabi que Pico encontra tambeacutem em Avempace e em Maimocircnides (Doctor perplexorum I 68) neste uacuteltimo conforme elucida Salomon MUNK Le Guide des Egareacutes Paris 1856 volI n p 304-308 (GARIN 2011 p65)
90 Um detalhamento da interpretaccedilatildeo de Pico que o levou a divergir dos demais averroiacutestas nos afastaria do tema traccedilado Para o tema veja-se GARIN 2011 pp12 ss 84 ss
91 Conforme infere Moshe IDEL Averroacuteis ldquoo mais ortodoxo entre os aristoteacutelicos medievais e ao mesmo tempo conhecido por permitir a possibilidade da uniatildeo epistecircmica do humano com o Agente Intelectordquo eacute entendido por oferecer uma metafiacutesica e uma epistemologia que podem conter alguns elementos miacutesticos Trata-se pois de ldquoum racionalista que natildeo conseguindo justificar todas as coisas plenamente atraveacutes da razatildeo aceita a revelaccedilatildeordquo (IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 28-29)
92 Durante sua permanecircncia em Fratta apoacutes o fracasso amoroso com Margherita Pico concluiu seu comentaacuterio agrave canccedilatildeo de amor redigida pelo amigo Benivieni o chamado Commento obra que se tornou famosa e foi bastante comentada nas cartas do periacuteodo O texto foi editado uma primeira vez em 1519 no contexto das obras piquianas e em 1731 como texto autocircnomo com o tiacutetulo Dellrsquoamore celeste e divino - Canzone di GB fiorentino col comento di G Pico della Mirandola (Alberto Cesare AMBESI ldquoGiovanni Pico della Mirandola Cenni biografici e presentazione dellrsquooperardquo in Heptaplus 1996 pV)
45
ser homenageado com 55 teses dez a mais que seu estimado Aquinate Essa
quantidade revela natildeo apenas o apreccedilo de Pico pelo filoacutesofo grego como muito
provavelmente a vontade de dar continuidade ao projeto que aquele havia iniciado
jaacute entatildeo uma tentativa de levar a termo a conciliaccedilatildeo entre as duas escolas
filosoacuteficas93 Ademais assim como ele o uacuteltimo grande mestre neoplatocircnico
considerava como elemento preliminar agrave carreira filosoacutefica o entendimento das obras
loacutegicas de Aristoacuteteles Certo eacute que a ideia de encetar um estudo de verificaccedilatildeo da
concoacuterdia entre os dois grandes da Antiguidade iniciara pouco antes de seu
estabelecimento em Florenccedila ocorrido em rsquo84 encontrando-se expressa na epiacutestola a
Barbaro do mesmo ano na qual afirma ser apenas aparente tal discoacuterdia
Parece-me que em Platatildeo haacute dois aspectos a eloquecircncia
homeacuterica que se ergue ateacute os ceacuteus da poesia e um total acordo
com Aristoacuteteles se se vai a fundo Portanto se olharmos a
forma nada concorda entre os dois mas se natildeo olharmos a
forma nada se opotildee entre os dois94
O momento para retomar aquele projeto maior mantido vivo desde antes da
elaboraccedilatildeo das novecentas teses ocorre apoacutes o fracasso de seu intento com as
Conclusiones Para levaacute-lo a termo muniu-se de fundamentos encontrados tanto nas
similitudes descritas pelos comentadores que o influenciaram quanto em sentido
contraacuterio nas diferenccedilas entre os dois Filoacutesofos acentuadas sobretudo por George
Gemistos Plethon anos antes95 Assim durante os anos de rsquo90 e lsquo91 Pico se dedica
exaustivamente agrave ldquoconcordia Platonis et Aristotelisrdquo conseguindo concluir em 1492
o texto embrionaacuterio De Ente et Uno dedicado ao amigo Poliziano96 Nesse percurso
ocorre seu retorno agrave Escolaacutestica que pode ter sido decisivo assim como o
Averroiacutesmo anos antes o aproximara a Platatildeo Tomaacutes de Aquino seu mestre inicial
o reaproximava agora a Aristoacuteteles ndash natildeo sem a influecircncia da convivecircncia com
93 Em sua ldquoIntroduccedilatildeordquo agraves Conclusiones Pico esclarece que o acordo entre Platatildeo e Aristoacuteteles ldquopor muitos
considerado possiacutevelrdquo natildeo havia sido por ningueacutem ldquosuficientemente provadordquo Por ldquomuitosrdquo Pico referia-se a Boeacutecio Simpliacutecio Agostinho e Joatildeo Gramaacutetico ldquoBoeacutecio [] parece que nunca cumpriu o que sempre disse querer fazer Simpliacutecio entre os Gregos tinha sustentado a mesma coisa quem dera tivesse mantido quanto prometera Ateacute mesmo Agostinho no livro Contra os Acadecircmicos escreve que muitos foram os que tentaram provar que a filosofia de Platatildeo e de Aristoacuteteles satildeo uma mesma filosofia Assim Joatildeo Gramaacutetico que afirma que Platatildeo difere de Aristoacuteteles soacute para os que natildeo percebem o texto de Platatildeo deixou aos vindouros a demonstraccedilatildeordquo (Concl p145) Naomi GOLDFELD observa que o mestre Elia del Medigo foi outro dentre os que encontraram dificuldades para conciliar Platatildeo e Aristoacuteteles seguindo os passos de Averroacuteis que por sua vez havia encontrado dificuldades quase trecircs seacuteculos antes ao tentar essa conciliaccedilatildeo (Elia del Medigo e lrsquoaverroismo hebraico in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 43-44)
94 PICO Carta de 6 de Dezembro de 1484 in De Hominis Dignitate etc p9 (I 22) ldquo[] duo in Platone agnoscere et homerican illam eloquenti facultatem supra prosam orationem sese attollentem et sensum si quis eos altius introspiciat cum omnino communionem Ita ut si verba spectes nihil pugnantius si res nihil concordiusrdquo
95 Eacute bastante provaacutevel que a polecircmica de algumas deacutecadas gerada pelo opuacutesculo posteriormente intitulado De Differentiis que exerceu forte influxo nas concernentes discussotildees do seacuteculo XV ndash no qual o mestre de Mistra aborda as diferenccedilas entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash tenha afetado o jovem Pico Conforme foi visto no Capiacutetulo I a polecircmica sobre as divergecircncias ou similaridades entre os dois Filoacutesofos perpassou o seacuteculo de certa forma graccedilas agrave continuidade do debate mantida por George de Trebizonda e Basiacutelio Bessarion Para maiores detalhes acerca da questatildeo leia-se MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 James HANKINS Plato in the Italian Renaissance 1990 pp193 ss GARIN 2011 p128
96 A iacutentegra da obra pode ser encontrada na ediccedilatildeo de Vallecchi (org Eugenio Garin) da De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 Para dados adicionais sobre a discussatildeo do De Ente et Uno leia-se GARIN 2011 entre pp 79 e 98 sobretudo as pp80-81
46
Savonarola Como infere Di Napoli o retorno a Tomaacutes com sua ldquosiacutentese de superaccedilatildeo
da distinccedilatildeo entre Platatildeo e Aristoacutetelesrdquo seria ldquodeterminanterdquo para que Pico
embasasse sua concoacuterdia97 O esteio tomista traria a sustentaccedilatildeo necessaacuteria para
discorrer acerca da relaccedilatildeo entre o Uno e o Ser proscecircnio de uma das importantes
disputas entre acadecircmicos aristoteacutelicos e platocircnicos nas discussotildees teoloacutegicas do
seacuteculo Solucionar um dos grandes contrastes teoreacuteticos da eacutepoca cria o eixo de De
Ente et Uno para a fundamentaccedilatildeo do qual Pico apoia-se sobretudo na Metafiacutesica
de Aristoacuteteles e no Parmecircnides de Platatildeo98 Apesar de o intento natildeo ter sido
terminado e a concordacircncia portanto natildeo concluiacuteda nos moldes pretendidos a obra
aborda conceitos metafiacutesicos obrigatoacuterios para a questatildeo retratando de acordo com
Garin uma ldquonotaacutevel posiccedilatildeo especulativardquo99
A soacutelida estrutura preparada ao longo de anos para sustentar aquele que seria
um de seus mais importantes projetos filosoacuteficos o de dirimir as diferenccedilas entre os
dois Gregos permitiu-lhe especular sobre esferas metafiacutesicas elevadas Apesar de
uma exposiccedilatildeo mais ampla do De Ente et Uno mostrar-se secundaacuteria para a
composiccedilatildeo do tema aqui proposto tomar conhecimento de seu nuacutecleo e sobretudo
de para onde aponta seu fim eacute condiccedilatildeo devida para que se complete o cenaacuterio dos
alicerces que constituem o pensamento piquiano O nuacutecleo da obra concentra um
motivo de cunho ontoloacutegico visto que trata da discussatildeo acerca da unidade ou
multiplicidade do Ser tomando por base as visotildees aristoteacutelica e platocircnica referentes
ao Ser e ao Uno Partindo da passagem da Metafiacutesica ldquoo Ser eacute Unordquo100 que se opunha
agrave ldquoprioridade do Uno em relaccedilatildeo ao Enterdquo sustentada na Academia101 Pico pretende
averiguar se a Unidade eacute inerente ao Ser O fim de sua obra para o qual se orienta a
tentativa de dirimir o presumido conflito eleva-o para a esfera dos Princiacutepios ndash um
interesse relacionado agrave Origem protoloacutegico portanto Essa informaccedilatildeo deve ser
guardada Em torno a essa esfera e natildeo abaixo dela concentram-se muitas das
demais argumentaccedilotildees piquianas algumas de acircmbito supra filosoacutefico sobretudo as
que recorrem a argumentos retirados da dimensatildeo esoteacuterica como seraacute visto Seus
interesses de ordem religiosa ou miacutestica procuram justamente encontrar o ponto de
convergecircncia entre aquelas doutrinas e os Princiacutepios
97 Giovanni DI NAPOLI Pico e la problematica dottrinale del suo tempo 1965 p223 Para o influxo de Tomaacutes
de Aquino sobre o pensamento de Pico em seus uacuteltimos anos veja-se Andreacute-Jean FESTUGIEgraveRE Studia Mirandulana in Archives drsquohistoire doctrinale e litteraire du Moyen acircge 1933 pp151 e ss ANAGNINE (opcit p32)
98 A discussatildeo do Parmecircnides envolveu muitos eruditos no seacuteculo XV como Bessarion e Ficino que enxergavam no diaacutelogo o coraccedilatildeo da teologia platocircnica Alguns pontos da obra contrapuseram Pico ndash que considerava a obra apenas como um exerciacutecio dialeacutetico ndash a Ficino que diria ldquono Parmecircnides Platatildeo encerrou a inteira teologiardquo (Ficino Opera Henricpetrina Basilea 1576 p1137 apud MOLINARI opcit p81) Ainda GARIN LrsquoUmanesimo Italiano 2008 pXVII As interpretaccedilotildees dos dois autores renascentistas sobre o pensamento de Platatildeo exerceraacute uma influecircncia profunda nos seacuteculos seguintes alcanccedilando desde os Platocircnicos de Cambridge ateacute a literatura alematilde atingindo Winckelmann Herder Goethe Schelling e Hegel (cf CASSIRER ldquoFicinorsquos Place in Intelectual Historyrdquo in Journal of the History of Ideas nr 6 1945)
99 GARIN 2011 p42 Como reflete o comentador em outra obra Pico mergulhou na problemaacutetica da discoacuterdia natildeo para eliminar seu dissenso mas para integrar ndash e distribuir em niacuteveis distintos ndash seus conteuacutedos (GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo 1965 p17) Mesmo natildeo tendo concluiacutedo a obra de conciliaccedilatildeo entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash tema que continuaraacute em todo o seacuteculo XVI ndash soacute o fato de tecirc-la proposto em termos novos e tecirc-la iniciado mostram como era forte a necessidade de suplantar certas posiccedilotildees humanistas do lsquo400 e como jaacute despontavam em Pico questotildees que seriam a tocircnica do seacuteculo vindouro (GARIN 2008 p 98)
100 Metaphysica IV 2 1003b-23 ldquoens et unum idem et eadem natura suntrdquo 101 PICO De Ente et Uno p389
47
3 A aproximaccedilatildeo aos estudos miacutesticos
O contato com a consistente corrente d0 pensamento padovano natildeo trouxe
apenas a convicccedilatildeo de conciliar Platatildeo e Aristoacuteteles Jaacute agrave eacutepoca de seus estudos
iniciais havia-se encastelado na mente de Pico aquele que viria a ser seu desafio
maior encontrar os pontos de acordo entre sistemas filosoacuteficos e doutrinas religiosas
pertencentes a tradiccedilotildees distintas102 Natildeo por acaso observa-se em sua biografia uma
alternacircncia de temaacuteticas de pesquisa que transitam entre Filosofia e doutrinas ligadas
ao campo da Revelaccedilatildeo Essas uacuteltimas satildeo retomadas no periacuteodo imediato ao retorno
da Franccedila para Florenccedila quando ocorre a aproximaccedilatildeo ao misticismo hebraico
atraveacutes de uma renovaccedilatildeo nos estudos biacuteblicos Em fase de introspecccedilatildeo inicia-se a
redaccedilatildeo de uma seacuterie incompleta de comentaacuterios sobre os Salmos e embora natildeo
comprovado uma nova traduccedilatildeo e alguns comentaacuterios sobre partes do Livro de Joacute
Nessa fase tocado pelo estado de espiacuterito de seu amigo Lorenzo escreve para o
embaixador papal em Roma Giovanni Lanfredini contando que Pico ldquovive muito
piamente como um monge canta os Salmos e escreve conteuacutedos teoloacutegicosrdquo E
acresce que ldquopoucos satildeo os homensrdquo que lhe despertam ldquotanta estimardquo103 A carta ndash
uma tentativa para a reabilitaccedilatildeo do sentenciado ainda natildeo absolvido de sua
condenaccedilatildeo ndash termina sendo malsucedida pois Inocecircncio VIII considera intoleraacutevel o
interesse contiacutenuo de Pico em Teologia preferindo que ele ldquose dedique agrave poesiardquo104
Esse tipo de interesse pelas Escrituras natildeo era novo Quando ainda estudante
em Paacutedua lanccedilara-se com premecircncia ao estudo do idioma hebraico em um primeiro
momento buscava apenas compreender as traduccedilotildees e interpretaccedilotildees hebraicas dos
pensadores aacuterabes e seus comentaacuterios referentes a Aristoacuteteles contudo em fase
posterior os textos originais hebraicos foram objeto de profundo interesse para a
busca de confirmaccedilotildees da verdade de suas crenccedilas cristatildes ndash interesse despertado
sobretudo pelo contato com Elia del Medigo durante o periacuteodo florentino A
proficiecircncia do idioma seria incrementada por Flaacutevio Mitridate ndash mestre que natildeo
apenas o ajudaria nas traduccedilotildees de alguns textos como se tornaria seu principal
instrutor de liacutenguas orientais105 Aleacutem do hebraico iniciou-o no aramaico e no aacuterabe
este entre outras coisas para que pudesse ler Maomeacute no original Assim em dado
periacuteodo o aprendiz lia simultaneamente o Coratildeo os Oraacuteculos Caldeus atribuiacutedos a
102 GARIN 2011 p13 BROCCHIERI opcit p13 103 A carta foi escrita em 13 de junho de 1489 Os conteuacutedos teoloacutegicos referem-se tanto aos Salmos quanto
presumivelmente ao Heptaplus (BLACK opcit pg 9) As cartas entre Giovanni Lanfredini e Lorenzo dersquo Medici podem ser vistas em Domenico BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti 1859 pp51-52 Ainda para a questatildeo veja-se GARIN 2011 pp39-40
104 Em 2 de Outubro de 1489 o embaixador Giovanni Lanfredini assim responderia a Lorenzo ldquoEt dixe [il papa] lsquoQueste cose della fede sono troppo tenere et non posso tollerarle Se lui [Lorenzo] gli vuole molto bene [a Pico] che lo facci scrivere opere di poesia et non cose theologiche percheacute saranno piugrave de sua denti percheacute il conte non egrave bene fondato et non ha visto tanto quanto bisogna ad chi scrive theologiarsquordquo (MS Firenze Archivio di Stato MAP 58 96 apud Raffaella Maria ZACCARIA Critiche e difesa dellrsquoHeptaplus in Pico Poliziano e LrsquoUmanesimo di fine Quattrocento 1994 pp 76-77)
105 Para os estudos com Mitridate leia-se Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 88 Domenico BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti in Rivista contemporanea 1859 pp36-37
48
Zoroastro e o Livro da Criaccedilatildeo pilar do misticismo judaico ndash buscando extrair seus
pontos de conversatildeo106
O contato com os mestres hebreus que frequentavam o ciacuterculo florentino
ligado agrave Academia acentuou ademais seu interesse pelo Esoterismo Elia del
Medigo natildeo lhe apresentaria apenas Averroacuteis e as filosofias orientais em carta ao
aluno no provaacutevel ano de rsquo85 mencionava a principal doutrina miacutestica judaica
afirmando que ldquopoucos entre os Antigos entenderam a Cabalardquo107 Ademais
continuava a carta seus textos obscuros pediam uma hermenecircutica especial que
possibilitasse a decodificaccedilatildeo das doutrinas secretas laacute ocultas ele Elia seria o
mestre capaz de fornecer a Pico os preciosos elementos para a compreensatildeo da gnose
hebraica108 Assim embora natildeo se tendo limitado aos ensinamentos de Elia que
nesse sentido foram um tanto escassos as primeiras indicaccedilotildees para seus estudos da
Cabala foram-lhe transmitidas por aquele jovem mestre que insistia para que fossem
extraiacutedas as partes teoreticamente mais profundas da miacutestica hebraica Elia colocava
e ressaltava continuamente o problema da convergecircncia entre Filosofia e Teologia
(ldquoo outro caminho para acreditar-se na Lei aleacutem da feacute se daacute pela via filosoacuteficardquo)109 ndash
uma concepccedilatildeo essencial para a formaccedilatildeo do pensamento piquiano
Natildeo somente Elia lhe abriria as portas para esse gecircnero de interesse A forte
dicotomia entre a leitura literal e natildeo literal era uma caracteriacutestica constante e
enfaacutetica da tradiccedilatildeo judaica medieval ainda mantida viva no seacuteculo XV e
apresentava evidentes paralelos com os modelos de transmissatildeo esoteacuterica greco-
cristatildeos tais ideias tinham portanto uma ressonacircncia contemporacircnea sendo objeto
de discussotildees teoacutericas na Itaacutelia ainda agrave eacutepoca em que Pico escrevia o Heptaplus110 De
forma que a postura hermenecircutica ali desenvolvida natildeo se fundamenta apenas na
miacutestica judaica mas encontra raiacutezes entre os primeiros inteacuterpretes latinos e gregos
Dentre as vaacuterias fontes agraves quais Pico teve acesso e que foram certamente utilizadas
em suas pesquisas verificam-se desde representantes do Cristianismo primitivo
quanto do meacutedio e novo Platonismo como Plutarco Dioacutegenes Laeacutercio Clemente
106 A questatildeo do aprendizado de liacutenguas estaacute bem documentada em vaacuterias cartas Veja-se Gian Francesco PICO
Vita di Giovanni Pico (org Sorbelli) 1963 DUKAS opcit pp69-70 CASSUTO op cit pp 282 299-300 GARIN 2011 pp97-98 Em resposta a uma carta de Ficino de setembro de 1486 em que esse lhe pede de volta a versatildeo latina do Coratildeo Pico conta-lhe sobre seu mecircs de esforccedilos para aprender o hebraico aleacutem de levar adiante os estudos do aacuterabe e do aramaico A carta pode ser lida em Chaim WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1987 pp 3-4 Escreve Wirszubski que ldquoo quanto Pico aprendeu em hebraico em termos de proficiecircncia eacute difiacutecil dizer natildeo eacute de forma alguma insignificanterdquo E na p 6 ldquoPico aprendeu muito com as traduccedilotildees de Mitridate infinitamente mais do que ele poderia ter aprendido com os originais hebraicos uma vez que tentou lecirc-los sem traduccedilotildeesrdquo
107 HELIAE CRETENSIS De efficientia mundi in RAGNISCO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo 1891 Veja-se ainda Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 BROCCHIERI opcit p9
108 CASSUTO opcit pp284 e ss Ainda para o tema BROCCHIERI opcit pp10-11 GARIN 2011 p11 SIRGADO GANHO opcit p17
109 HELIAE CRETENSIS De efficientia mundi fol 255 in RAGNISCO opcit A carta de Elia del Medigo foi publicada pela primeira vez por Jules DUKAS em Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 ldquo[] si quid tamen dictum sit contrarium Legi non mirum est quia tantum intentiones Philosophorum secundum fundamenta eorum dicere volui scitur nam quod via Legis cui magis creditur alia est a via Philosophicardquo Complementando a colocaccedilatildeo acima cabe observar que na visatildeo de Elia segundo Naomi GOLDFELD a feacute estaacute fundada sobre a razatildeo (ldquoElia del Medigo e lrsquoaverroismo hebraicordquo in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze 1998 p 43-44)
110 BLACK opcit pp 131-132
49
Euseacutebio Plotino Porfiacuterio e Jacircmblico Tendo sido adotada por alguns dentre os
primeiros exegetas cristatildeos a abordagem esoteacuterica foi mantida em circulaccedilatildeo por
intermeacutedio da tradiccedilatildeo neoplatocircnica mais tardia ndash levada adiante por Macroacutebio
Pseudo-Dioniacutesio e Simpliacutecio ndash depois que a mesma havia deixado de ser utilizada111
Jaacute em relaccedilatildeo agraves interpretaccedilotildees relativas ao Gecircnesis cujos sinais se mostram
na De Hominis Dignitate e em caraacuteter preciacutepuo no Heptaplus eacute bastante certo que
um limitado nuacutemero de textos tenha sido extraiacutedo das exegeses gregas da escola
alexandrina particularmente referentes a escritos de Oriacutegenes e de Fiacutelon A obra De
opificio mundi de Fiacutelon foi bem recepcionada por Ambroacutesio cujo pensamento
influiria sobre Agostinho mas apoacutes essa recepccedilatildeo cristatilde no seacuteculo IV sua utilizaccedilatildeo
parece ter desaparecido em grande parte112 Eacute possiacutevel que Pico tenha tido acesso ao
conteuacutedo de Fiacutelon atraveacutes de Ambroacutesio ou Agostinho
Passar do esoterismo grego e cristatildeo ao oriental foi um passo Pico percebia
atraveacutes de suas leituras que havia outros sistemas que em comum com aqueles
partilhavam de certo pendor por questotildees de cunho teoloacutegico ndash quando natildeo
puramente miacutestico Ainda antes de chegar a Florenccedila o jovem de Mirandola fora
atraiacutedo pelo Platonismo de Ficino um Platonismo de vieacutes teoloacutegico que tentava a
conciliaccedilatildeo com o Cristianismo O entatildeo ordenado padre via na obra platocircnica uma
filosofia divinamente inspirada na qual estava sintetizada toda a tradiccedilatildeo
especulativa oriental e grega113 Na concepccedilatildeo ficiniana todos os campos do real
encontravam-se convergentes em virtude de uma uniatildeo vital do mundo tal reflexatildeo
contemplava a perspectiva de uma pia philosophia na qual estariam alinhados
Zoroastro e Moiseacutes Hermes Trismegisto e Platatildeo os pitagoacutericos e os neoplatocircnicos
O legado de Ficino natildeo deixaria de acrescer importantes elementos na construccedilatildeo do
pensamento piquiano embora natildeo sem ressalvas114
Sobretudo os textos hermeacuteticos de acordo com as traduccedilotildees ficinianas teriam
exercido influecircncia nas reflexotildees do Conde alguns de seus temas como a liberdade
da alma em relaccedilatildeo ao corpo e a natureza mediadora do homem seriam amplamente
desenvolvidos nas obras posteriores a lsquo86115 Para alguns comentadores a
111 BLACK ibid p 147 O tema seraacute retomado no Capiacutetulo VII 112 BLACK idem Natildeo estaacute claro se esta obra foi incluiacuteda entre os manuscritos de Fiacutelon pertencentes agrave biblioteca
de Lorenzo Por outro lado ela estaacute atestada em dois manuscritos do Vaticano que foram incluiacutedos nos inventaacuterios de 1475 1481 e 1484
113 Para Ficino existia uma uacutenica Filosofia que consistia na ldquoreflexatildeo sobre as verdades eternas as Ideias que como tais permanecem inalteradas no tempo e transcendem a Histoacuteriardquo (cf Sebastiano GENTILE Il ritorno di Platone dei platonici e del lsquocorpusrsquo ermetico Filosofia teologia e astrologia nellopera di Marsilio Ficino in Vasoli-Pissavino (org) Le filosofie del Rinascimento 2002 pp 193-228)
114 Nem tudo foi apenas uniatildeo de ideias entre Ficino e Pico No Commento sopra una canzona drsquoamore da Girolamo Benivieni Pico faz aacutesperas criacuteticas a uma das obras de maior sucesso de Ficino o Commentarium in Convivium criticando a concoacuterdia estabelecida por Ficino de forma muito faacutecil entre o pensamento de Platatildeo e a doutrina cristatilde especialmente em pontos essenciais como a figura do Cristo Como escrevia Pico ldquoeacute preciso estar atento em natildeo confundir o filho de Deus [o demiurgo no texto de Platatildeo] com o filho de Deus dos teoacutelogos cristatildeos jaacute que este eacute de mesma essecircncia que o Pai criador e natildeo criaturardquo (GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento Firenze 1965 p28)
115 O conceito do homem-mediador na obra de Hermes Trismegisto eacute bem desenvolvido por SCOTT - FERGUSON em Hermetica The Ancient Greek and Latin Writings which Contain Religious or Philosophic Teachings Ascribed to Hermes Trismegistus 1924-36 p 120 ss
50
ldquoantropologiardquo foi um dentre os principais interesses extraiacutedos daquele
conhecimento em razatildeo do paraacutegrafo inicial da De Hominis Dignitate em que eacute
citada a ceacutelebre sentenccedila do Asclepius ldquoMagnum o Asclepi miraculum est homordquo116
uma entre diversas passagens hermeacuteticas que exaltam a grandeza do homem Ficino
havia citado a mesma passagem mais de dez anos antes em sua Theologia
Platonica117 mas com Pico a teoria hermeacutetica seraacute aprofundada e decisiva para a
questatildeo da dignidade Os escritos atribuiacutedos a Trismegisto foram ademais a fonte
utilizada para desenvolver seus pontos de vista sobre a magia branca capaz de
ldquocomungarrdquo o homem com o divino ndash tema a ser retomado no proacuteximo Capiacutetulo ndash
embora seus muacuteltiplos interesses o fizessem se envolver tambeacutem com certas
alquimias de conotaccedilatildeo praacutetica extraiacutedas do manual Picatrix118
Na Academia Pico inicia portanto a construir uma estrada proacutepria a partir ndash
natildeo da fusatildeo mas do encontro ndash de componentes comuns extraiacutedos de domiacutenios
distintos da teologia cristatilde da filosofia neoplatocircnica de escolas iniciaacuteticas egiacutepcias e
persas da miacutestica judaica A siacutentese daqueles estudos se mostraraacute na fase de reclusatildeo
no mosteiro de San Marco apoacutes o retorno da Franccedila uma nova etapa na qual o
pesquisador voltar-se-aacute para pensadores que fizeram da experiecircncia religiosa seu
campo de reflexatildeo Mergulhando de iniacutecio nas reflexotildees teoloacutegicas de Maimocircnides
adentra definitivamente pela porta do pensamento hebraico E ao trilhar essa
estrada comeccedila a vislumbrar a ideia de ter encontrado uma soluccedilatildeo para seus
problemas referentes agrave dificuldade em aliar Filosofia e Cristianismo119 A alegria de
encontrar no pensamento hebraico a confirmaccedilatildeo da identidade profunda entre
aquelas reflexotildees e suas crenccedilas ndash e ainda com as de outras culturas ndash seria relatada
posteriormente no Heptaplus
No ambiente de isolamento a cultura hebraica de Pico comeccedila efetivamente a
desabrochar Isso ocorre mormente atraveacutes das reflexotildees conduzidas junto a
Yohanan Alemanno Elia o tinha guiado em seus primeiros passos atraveacutes do
pensamento aacuterabe-hebraico mas o vieacutes aristoteacutelico de Elia natildeo permitia um maior
aprofundamento na Cabala com Flavio Mitridate natildeo haacute duacutevidas as cogniccedilotildees sobre
o tema se estenderam mas agora com Alemanno Pico consegue de modo efetivo
avanccedilar em suas intuiccedilotildees acerca da aplicaccedilatildeo dos meacutetodos cabaliacutesticos na soluccedilatildeo
das antiacuteteses entre Religiatildeo e Filosofia120 Os interesses de Alemanno comprovados
em sua bibliografia apresentavam muitos pontos de contato com a interpretaccedilatildeo
biacuteblica em geral e particularmente com o conteuacutedo desenvolvido no Heptaplus
116 PICO Oratio p 102 O tema seraacute retomado no Capiacutetulo IV 117 Marsilio FICINO Theologia platonica XIV 3 2 (ed Bompiani p1299) ldquoQuod admiratus Mercurius
Trismegistus inquit lsquoMagnum miraculum esse hominem animal venerandum et adorandum qui genus daemonum noverit quasi natura cognatum quive in deum transeat quasi ipse sit deusrsquordquo
118 Para a relaccedilatildeo de Pico com a magia extraiacuteda do Hermetismo leia-se Frances YATES Giordano Bruno e a Tradiccedilatildeo Hermeacutetica 1995 pp 84-116 Algumas questotildees relacionadas agrave magia praacutetica e alquimia satildeo descritas por Pietro CRINITO conta por exemplo que Pico ficou dias a preparar uma foacutermula alquiacutemica agrave base de certos venenos para curar Ermolao Barbaro E em eacutepoca de peste experimentou algumas misturas de venenos para encontrar a cura ldquoex oleo scorpionum linguisque aspidum et aliis eiusmodi venenis confectumrdquo (De honesta Disciplina I 7 p12 apud GARIN 2011 p44)
119 GARIN 2011 p27 120 GARIN 2011 pp38-39 WIRSZUBSKI op cit pp256-257
51
Atraveacutes da interpretaccedilatildeo cabaliacutestica poderia ser promovida a possiacutevel conciliaccedilatildeo
entre as Escrituras e a Filosofia como seraacute visto no Capiacutetulo VI Da mesma forma
que a Teologia cristatilde havia identificado ecos de suas doutrinas nos manuscritos de
caldeus e egiacutepcios como mostravam as recentes descobertas do Platonismo
florentino121 Pico tentaria encontrar nas Escrituras conteuacutedos que teriam derivado
das doutrinas cabaliacutesticas ndash natildeo com o intuito de subordinar umas agraves outras mas
com a firme vontade de dar verdade aos textos sagrados dentro da Filosofia que
buscava122
Com a apresentaccedilatildeo das Conclusiones Nongentae Giovanni Pico teria a
chance natildeo apenas de expor como de debater finalmente o cabedal de conhecimento
aprendido naqueles anos de estudos filosoacuteficos teoloacutegicos orientais e em parte
esoteacutericos Tendo sido apresentadas as circunstacircncias ao seu redor e os caminhos
atraveacutes dos quais se estruturou seu pensamento seraacute possiacutevel prosseguir em direccedilatildeo
ao objetivo traccedilado qual seja mostrar de que forma Pico mesclou em suas
argumentaccedilotildees paracircmetros de teor natildeo-filosoacutefico
121 Essa era a ideia prevalente no ciacuterculo de Ficino A relaccedilatildeo entre essas doutrinas e sua aceitaccedilatildeo na Academia
podem ser confirmadas pela recepccedilatildeo dos textos atribuiacutedos a Hermes do Egito e ao persa Zoroastro conforme abordado no Capiacutetulo I A aceitaccedilatildeo de Hermes como ldquoum dos seusrdquo pela Igreja pode ser comprovada atraveacutes do grande trabalho de marchetaria feito no piso do Duomo de Siena nos anos rsquo80 do seacuteculo XV onde Hermes Trismegisto estaacute representado de forma extraordinaacuteria mostrando sua recepccedilatildeo em territoacuterio cristatildeo
122 Bohdan KIESZKOWSKI Averroismo e Platonismo in Italia in Studi sul Platonismo del Rinascimento in Italia 1936 capVII
52
CAPIacuteTULO III
AS CONCLUSIONES NONGENTAE E SUA OCCULTA CONCATENATIO
As Conclusiones Nongentae1 ou Novecentas Teses formam em seu conjunto
a primeira obra de Giovanni Pico a ser estampada ndash e seu trabalho mais
desafortunado Os acontecimentos em torno ao assunto ocorreram em um ritmo
muito veloz A redaccedilatildeo foi concluiacuteda em 12 de Novembro de 1486 em 7 Dezembro o
manuscrito foi levado para ediccedilatildeo em Roma pelas matildeos de Eucharius Silber2 sem
que fosse aguardado o usual parecer de catolicidade por parte da comissatildeo pontifiacutecia
Em breve tempo algumas daquelas primeiras coacutepias seriam vetadas e em Marccedilo de
lsquo87 a comissatildeo ligada ao prelado proibiria definitivamente sua difusatildeo Treze teses
foram inicialmente censuradas Pico julgado e finalmente a totalidade das teses
condenada A proacutexima publicaccedilatildeo das Conclusiones somente ocorreria na segunda
metade do seacuteculo XVI na Basileacuteia terra natildeo catoacutelica3
Voltando-se atraacutes alguns meses para o periacuteodo de sua elaboraccedilatildeo verifica-se
que o principal projeto de Pico seguiu uma bem estruturada sistematizaccedilatildeo na
preparaccedilatildeo dos fundamentos erigida ao molde das construccedilotildees teoreacuteticas medievais
Em posse do conhecimento dos formatos escolaacutesticos o autor daria iniacutecio a uma
ordenaccedilatildeo das vaacuterias vertentes e escolas com as quais tivera contato com o objetivo
de apresentar seus pontos de analogia Assim a organizaccedilatildeo do conteuacutedo obedece a
uma sequecircncia de proposiccedilotildees extraiacutedas de sua criacutetica-histoacuterica organizada por
grupos de pensamento Em termos de estilo e aproveitando-se do meacutetodo de
argumentaccedilatildeo atraveacutes de nuacutemeros (calculationes) apreendido nos cursos de loacutegica
seguidos em Pavia Pico se serve do modelo de escrita ldquoparisiensisrdquo tendo por base a
loacutegica aristoteacutelica4 Tal estilo utilizado tanto nas Conclusiones quanto na Apologia
1 O tiacutetulo original conforme a editio princeps eacute Conclusiones DCCCC dialecticae morales physicae
mathematicae publice dispuntandae Romae Anno ab incarnatione Domini MCCCCLXXXVI die septime Decembris Sobre a escolha do nuacutemero de teses Pico explicaria em carta escrita a Girolamo Benivieni que seu intento inicial era o de escrever 700 teses chegando depois a 900 embora tivesse material para um nuacutemero maior O 900 seria o nuacutemero certo por seu significado miacutestico acerca do qual Pico apenas sinalizaria ldquose efetivamente a nossa ciecircncia dos nuacutemeros eacute digna de feacute tal cifra simboliza a alma que retorna a si apoacutes ter sido revolvida pela inspiraccedilatildeo das Musasrdquo (cf Leacuteon DOREZ Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) in Giornale Storico della Letteratura italiana XXV 1895 p358)
2 Eucharius Silber alias Franck era considerado o melhor tipoacutegrafo de Roma (cf Giulio BUSI Pico fede ragione e Inquisizione in ldquoIl Sole-24 Orerdquo 28082018) O texto original das Conclusiones estaacute contido atualmente em quatro manuscritos conservados e distribuiacutedos entre as cidades de Viena Munique e Erlangen (respectivamente nas seguintes bibliotecas Osterreichische Nationalbibliothek lat 14708 Bayerische Staatsbibliothek lat 11807 Universitatsbibliothek lat 646) Cf Mauro ZONTA Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 185
3 Para maiores detalhes sobre as circunstacircncias da publicaccedilatildeo veja-se Albano BIONDI ldquoIntroduzionerdquo a Conclusiones Nongentae 1995 ppV-XIII Ainda Edoardo FORNACIARI ldquoIntroduzionerdquo agrave traduccedilatildeo de Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p9 Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p63 Por mais de cinco seacuteculos as Conclusiones permaneceram em olvido com acesso apenas a poucos especialistas suas poucas ediccedilotildees remetem quase todas ao seacuteculo XVI sendo que sua uacuteltima ediccedilatildeo completa eacute de 1619 Apoacutes essa data a obra passou por um longo periacuteodo de esquecimento ateacute ser finalmente editada por Kieszkowski em 1973
4 PICO Concl (I) p7 ldquo[] in quibus recitandis non Romanae linguae nitorem sed celebratissimorum Parisiensium disputatorum dicendi genus est imitatusrdquo O ldquostylus parisiensesrdquo foi especialmente desenvolvido
53
constituiacutea a base da vulgata scholastica e comeccedilava a ser objeto de criacuteticas por parte
dos humanistas em razatildeo de sua linguagem considerada obstinadamente teacutecnica No
que concerne agrave discussatildeo puacuteblica para a qual as Teses haviam sido preparadas o
meacutetodo escolhido ndash sempre escolaacutestico ndash teria sido o das quaestiones5
A obra compotildee-se de novecentos aforismos ndash ou breves proposiccedilotildees ndash que natildeo
contemplam sua anaacutelise ou fundamentaccedilatildeo filosoacutefica Com efeito ao folhear as
paacuteginas das novecentas Conclusiones verifica-se uma sucessatildeo de sinteacuteticos
conteuacutedos filosoacuteficos teoloacutegicos cientiacuteficos e misterioloacutegicos6 que encerram aquilo
que seria uma revisatildeo de posiccedilotildees parte delas de autores ou escolas comentadas por
Pico (as primeiras quatrocentas) e as demais de autoria do proacuteprio Pico (as
quinhentas seguintes) O planejamento do conjunto previa pois a apresentaccedilatildeo de
propostas de discussatildeo ndash ponto fundamental para a compreensatildeo das consequecircncias
desencadeadas ndash e natildeo a discussatildeo em si Certamente obtendo o bom resultado que
o Autor esperava no debate o intento seria levado adiante
Contrariando no entanto aquela que seria a vontade de seu Escritor o vasto
material parte de um projeto natildeo finito e natildeo devidamente esclarecido difundiu-se
rapidamente A ediccedilatildeo das novecentas proposiccedilotildees embora tendo transgredido as
formalidades eclesiaacutesticas tinha por honesto intento uma devida apresentaccedilatildeo e
discussatildeo com os eruditos ndash antes de qualquer apresentaccedilatildeo puacuteblica A indevida
publicaccedilatildeo da obra de certa forma serviu para aumentar a notoriedade do jovem
conde que jaacute desfrutava de grande fama fazendo-o passar a ser reconhecido como
ldquodoutor universal dono de um saber privilegiado acerca do homem e da natureza dos
anjos e de Deusrdquo7 Mas nem todos naqueles finais do Quattrocento enxergaram as
Teses com tamanho otimismo Algumas vozes consideraram a obra na melhor das
hipoacuteteses uma tentativa superficial de fusatildeo de doutrinas outras a julgaram ldquoaudazrdquo
ldquotemeraacuteriardquo e ldquovangloriosardquo especialmente em razatildeo de sua imoderada dimensatildeo e do
abarcamento de vaacuterias aacutereas de conteuacutedos diversos em uma uacutenica obra8 Eacute irocircnico
durante a permanecircncia de Pico em Paris entre 1485 e 1486 (cf GARIN 2011 p24) Os ldquocalculatoresrdquo do seacuteculo XIV aplicaram a matemaacutetica para problemas tratados qualitativamente na fiacutesica aristoteacutelica (Stephan FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) 1998 np467) Veja-se ainda BIONDI (1995 pXI)
5 Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 pp 7-8 Conforme observa o comentador as especulaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas dos trecircs seacuteculos anteriores foram fundamentadas sobre esse meacutetodo Para maiores detalhes sobre os meacutetodos mencionados veja-se BIONDI ldquoIntroduzionerdquo e ldquoPremessa ai testirdquo em Conclusiones Nongentae opcit ppXI 4
6 O nuacutemero de distinccedilotildees temaacuteticas mencionadas por Pico na abertura das Conclusiones eacute maior ldquosatildeo proposiccedilotildees dialeacuteticas morais fiacutesicas metafiacutesicas teoloacutegicas maacutegicas e cabaliacutesticasrdquo (ed BIONDI p7) As proposiccedilotildees do tipo que hoje aceitariacuteamos como cientiacuteficas ndash que contemplam campos da fiacutesica biologia e astronomia ndash apresentam-se em nuacutemero bastante limitado Veja-se como exemplo a Conclusio 7 segundo Alberto Magno ldquoO som eacute levado conforme seu ser real ateacute o ponto onde inicia o nervo oacuteticordquo (II 7) Ou ainda a Conclusio 9 segundo Egidio Romano ldquoO calor poderaacute gerar o fogo mesmo quando natildeo estiver em contato diretordquo (IIVI 9)
7 Albano Biondi extrai essa imagem outorgada a Pico de uma carta do famoso poeta carmelita Battista Spagnoli de Mantova mestre de Filosofia e Teologia em Bologna (BIONDI ldquoIntroduzionerdquo opcit p VI)
8 Na De Hominis Dignitate elaborada como introduccedilatildeo agraves Conclusiones Pico antecipara a defesa das provaacuteveis criacuteticas que receberia justificando que a ideia de realizar um debate no molde praticado por respeitados filoacutesofos como Platatildeo e Aristoacuteteles era uma forma favoraacutevel para a obtenccedilatildeo da verdade ldquodo mesmo modo que as forccedilas do corpo se robustecem com a ginaacutestica assim tambeacutem sem duacutevida nesta espeacutecie de palestra do espiacuterito a energia da alma se torna mais forte e firmerdquo (Oratio p135) Ademais seu debate natildeo tinha como intenccedilatildeo ldquomostrar engenho e erudiccedilatildeordquo (idem) mas ldquoapenas a formaccedilatildeo de sua alma e o conhecimento da verdaderdquo (ibid p133) Em relaccedilatildeo agrave elevada quantidade de teses escritas considerada por muitos ambiciosa e ldquoacima das forccedilasrdquo do autor (ibid pp 133 139 147) Pico escreveria ldquoProcurei reduzir a discussatildeo ao menor nuacutemero possiacutevel de pontos Se eu
54
observar que o Autor que tanta atenccedilatildeo dedicou agrave questatildeo doutrinaacuteria da natildeo-
divulgaccedilatildeo de certas concepccedilotildees sigilosas de ordem universal assistiu agrave indevida
publicaccedilatildeo das Teses e sua decorrente leitura por mentes despreparadas conjuntura
que o levou a sofrer consequecircncias nefastas e ateacute quase seu atestado de morte
A rejeiccedilatildeo agrave obra alcanccedilou a contemporaneidade porquanto as Conclusiones
foram pouco entendidas e muito criticadas Alguns criacuteticos talvez por natildeo terem
colhido a ideia seminal contida em seu projeto acreditaram tratar-se de uma
miscelacircnea de pensamentos que natildeo faziam sentido ou que se encontravam
inconclusos Outros viram nas Conclusiones uma combinaccedilatildeo excecircntrica de
problemas incompatiacuteveis uma curiosidade literaacuteria sem qualquer coerecircncia interna9
Eugenio Garin foi dos poucos a apontar que aquele conglomerado de sistemas deveria
ser apreciado a partir de suas referecircncias aos maiores problemas filosoacuteficos da
Histoacuteria do Pensamento O historiador completa que a tentativa de conciliaccedilatildeo de
diferentes doutrinas filosoacuteficas deve ser entendida como a consciente percepccedilatildeo da
existecircncia de uma pluralidade de pontos de vista que podem ser integrados10 Apesar
de aparentemente fragmentaacuteria a obra de Pico acolhe torna suas e finalmente
refaz sob outros prismas as perguntas filosoacuteficas mais difiacuteceis procurando em
sentido contraacuterio ao errocircneo julgamento de querer demonstrar uma magnitude de
conhecimentos ldquoreduzirrdquo todo o seu scibile a compactas 900 teses11
A quantidade de temas pertencentes a cada setor de pensamento natildeo estaacute
distribuiacuteda de forma uniforme dentro da recomposiccedilatildeo piquiana alguns eleitos pelo
escritor recebem mais atenccedilatildeo do que outros Eacute o caso do amplo espaccedilo dado a
questotildees de Teologia ndash concernentes a tradiccedilotildees distintas ndash a especiacuteficas aacutereas da
Filosofia ndash como a Metafiacutesica as questotildees acerca da Alma e o campo que chamamos
de Cosmologia ndash e a algumas doutrinas pertencentes ao campo da Misteriologia ndash
caso por exemplo do grupo de teses voltadas agrave Magia ao Orfismo e agrave Cabala Os
toacutepicos a seguir procuraratildeo mostrar que tais escolhas obedecem a um planejamento
Apoacutes a averiguaccedilatildeo da estrutura das Conclusiones necessaacuteria para o entendimento
do desenho geral da obra e de algumas teses relacionadas aos temas filosoacuteficos
mencionados seratildeo verificadas as questotildees teoloacutegicas condenadas e sua relaccedilatildeo com
as crenccedilas do autor por fim as disposiccedilotildees de acircmbito misterioloacutegico
tivesse querido dividir e desmembrar as suas partes mdash como eacute habitual outros fazerem mdash teria escrito certamente uma quantidade inumeraacutevel de tesesrdquo (ibid p163)
9 Um desses criacuteticos foi J BRUCKER (Historia critica Philosophiae Lipsia 1766 pp57 ss) que escreveria que a obra ldquomistura tudo inadequadamente e nos confunde uns aos outrosrdquo no que foi seguido por vaacuterios (apud GARIN 2011 n p 74)
10 GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo 1965 p17 Em outra obra Garin considera que o que pareceria um ldquofloreio filosoacuteficordquo eacute na verdade a ldquoexaltante procura da pequena mas lsquoimortal contribuiccedilatildeorsquo que cada homem grego romano cristatildeo aacuterabe judeu dava agrave eternidade do pensamentordquo (GARIN 2011 pp72-76)
11 Joseacute Vitorino PINA MARTINS julga ainda que a obra eacute fruto do amadurecimento do autor decorrente de suas profundas reflexotildees (Cultura Italiana Lisboa 1971)
55
1 A Secreta Conexatildeo
O conjunto de novecentas teses divide-se em dois grupos No primeiro
composto de quatrocentas proposiccedilotildees Pico apresenta as teorias de vaacuterios
pensadores que o marcaram ligados a diferentes Escolas12 Nessa seccedilatildeo eacute realizada
uma siacutentese histoacuterico-doutrinaacuteria que introduz ao leitor o nuacutecleo do pensamento
piquiano Pouco mais da metade das teses desse grupo satildeo dedicadas aos autores de
tradiccedilatildeo aristoteacutelica divididos entre os escolaacutesticos cristatildeos ndash entre eles Tomaacutes de
Aquino e Joatildeo Escoto ndash os peripateacuteticos orientais ndash como Avicena Averroacuteis e
Maimocircnides13 ndash e os gregos ndash Alexandre de Afrodiacutesia e Teofrasto entre outros14 A
outra metade da primeira parte eacute formada por filoacutesofos da Escola neoplatocircnica ndash com
Plotino e Proclo entre seus principais representantes ndash seguidos por quatro seacuteries de
doutrinas singulares Tais seacuteries finais destacam-se das precedentes por contemplar
temas ligados a teologias natildeo cristatildes De fato as uacuteltimas teses do primeiro grupo
tratam da matemaacutetica pitagoacuterica e das doutrinas caldaicas hermeacuteticas e cabaliacutesticas
Cabe observar que embora aos autores aristoteacutelicos seja dedicado enquanto
conjunto um nuacutemero relativamente maior de teses o autor isolado ao qual satildeo
destinadas mais proposiccedilotildees eacute Proclo seguido pelas doutrinas cabaliacutesticas que
fecham o grupo15
O segundo grupo com as quinhentas proposiccedilotildees seguintes constitui a
primeira delineaccedilatildeo precisa de uma doutrina da pax unifica marcando a especulaccedilatildeo
original de Pico16 Essa seacuterie de teses denominadas secundum opinionem propriam
detinha um caraacuteter de novidade ao lanccedilar em debate inusitados campos de reflexatildeo
Distribuiacutedos entre onze sessotildees os temas dividem-se entre os denominados
ldquoparadoxais voltados a conciliar os pronunciamentos de Aristoacuteteles e Platatildeo seguidos
de outros doutos que se encontram em maior discoacuterdiardquo os ldquoem dissenso com a
filosofia correnterdquo17 os ldquoparadoxais que introduzem novas posiccedilotildees na filosofiardquo e os
teoloacutegicos ldquobastante diversos da comum formulaccedilatildeo dos teoacutelogosrdquo completam o
12 Na primeira parte da obra Pico mostra seu reconhecimento agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica das Escolas porquanto a
sequecircncia de autores eacute ordenada por sua filiaccedilatildeo doutrinaacuteria Natildeo satildeo inseridas citaccedilotildees originais dos autores escolhidos mas interpretaccedilotildees pessoais de alguns passos ou doutrinas a eles atribuiacutedos (e que Pico poderia ter recebido atraveacutes de outras fontes) De qualquer forma os conteuacutedos correspondem com maior ou menor exatidatildeo a informaccedilotildees que podem ser encontradas nos escritos daqueles autores (cf ZONTA MAURO Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 195)
13 Apesar de Maimocircnides ndash o chamado Moyse ldquoegiacutepciordquo - ser um filoacutesofo sefardita Pico o inclui no grupo dos aacuterabes (ldquosecundum doctrinam Arabumrdquo) possivelmente em razatildeo de Maimocircnides ter vivido no Egito e no Marrocos
14 As teses referentes agrave tradiccedilatildeo peripateacutetica estatildeo assim distribuiacutedas 94 dedicadas a seis autores escolaacutesticos latinos 82 distribuiacutedas entre oito filoacutesofos orientais e 29 dedicadas a cinco filoacutesofos gregos que professam o Aristotelismo O total de 205 teses que agraciam os disciacutepulos do Liceu reflete o acolhimento dado agravequela Escola durante os seis anos a ela dedicados conforme testemunha a carta escrita a Ermolao Barbaro vista no Capiacutetulo II
15 Dentre o elevado nuacutemero de fontes mencionadas por Pico (gregas latinas hebraicas e aacuterabes) algumas permanecem natildeo identificadas ateacute esta data Uma grande parte delas inclusos os autores aacuterabes e hebreus encontra-se identificada na obra de Stephan FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies Temple 1998
16 Eacute praticamente consensual a qualificaccedilatildeo da segunda parte das Conclusiones como sendo a expressatildeo da originalidade de Pico Veja-se BIONDI 1995 p XVIII
17 Natildeo apenas nesse especiacutefico grupo de teses como em linhas gerais Pico reconhecia que suas proposiccedilotildees apresentavam-se em linha contraacuteria aos haacutebitos argumentativos tradicionais tanto em relaccedilatildeo ao estilo quanto ao conteuacutedo (BIONDI idem)
56
conjunto as teses platocircnicas matemaacuteticas oacuterficas maacutegicas e mais uma vez outras
tantas relacionadas agraves teologias dos caldeus e dos cabalistas18 Curiosamente
constam nesse grupo dez teses sobre as doutrinas de certo filoacutesofo aacuterabe de nome
Abucaten Avenan19 Nas teses ldquoparadoxais conciliantesrdquo estatildeo lanccediladas as bases de
seu projeto de conciliaccedilatildeo entre pensadores e escolas que professavam doutrinas
tantas vezes entendidas como divergentes como os escolaacutesticos Tomaacutes e Duns
Escoto ou os aacuterabes Averroacuteis e Avicena ndash e que Pico mostraria em debate serem
concordantes20
A distribuiccedilatildeo estrutural das proposiccedilotildees certamente natildeo eacute ocasional
Tomando-se a primeira seacuterie de quatrocentas teses observa-se a seguinte sequecircncia
os pensadores aristoteacutelicos os neoplatocircnicos a teologia pitagoacuterica a caldaica a
hermeacutetica a cabalista Natildeo seria errado sugerir que essa ordenaccedilatildeo segue a
cronologia dos estudos percorridos por Pico21 Entretanto tal hipoacutetese natildeo explicaria
a colocaccedilatildeo da Cabala ao final de tudo visto que os estudos cabaliacutesticos iniciaram
muito provavelmente em periacuteodo anterior a alguns dentre aqueles Uma segunda
hipoacutetese pode ser proposta a partir do reconhecimento da existecircncia de uma
aproximaccedilatildeo gradual a filosofias relacionadas agrave Revelaccedilatildeo Ou seja a divisatildeo temaacutetica
responde a uma ordem sucessoacuteria que partindo do niacutevel aristoteacutelico-teoreacutetico vai ao
encontro das escolas neoplatocircnicas ndash em que a presenccedila de abstraccedilotildees metafiacutesicas eacute
maior de que no grupo anterior ndash e alcanccedila finalmente as uacuteltimas escolas de
proeminente conteuacutedo teoloacutegico-soterioloacutegico A hipoacutetese de uma gradativa
aproximaccedilatildeo a tais temaacuteticas se adequa ademais agrave criaccedilatildeo de condiccedilotildees
preparatoacuterias para receber o segundo grupo de teses aquelas tecidas ldquosegundo a
opiniatildeo do autorrdquo Essas iniciando-se com resoluccedilotildees e conciliaccedilotildees de acircmbito geral
filosoacutefico passam por questotildees de ordem teoloacutegica platocircnica e matemaacutetica
concluindo-se com aquele que seria um corpo uacutenico formado pelas doutrinas
misterioloacutegicas quais sejam o Zoroastrismo o Orfismo a Magia e a Cabala que
mais uma vez da mesma forma significativa como na primeira parte fecha a segunda
parte da obra
Nesse sentido a sequecircncia das proposiccedilotildees aponta para a existecircncia de uma
intencional organizaccedilatildeo ndash natildeo informada por Pico tampouco esclarecida por seus
comentadores Malgrado a escassez de informaccedilotildees expressas tais indiacutecios satildeo
18 ldquoConclusiones numero quingentae secundum opinionem propriam quae denaria diuisione diuiduntur in
Conclusiones Physicas Theologicas Platonicas Mathematicas Paradoxas dogmatizantes Paradoxas conciliantes Caldaicas Orphicas Magicas et Cabalisticasrdquo
19 Pico presume que Abucaten Avenan seja o autor de uma das mais ceacutelebres obras de cunho neoplatocircnico da filosofia medieval o Liber de Causis obra que Pico teria facilmente lido na versatildeo latina realizada por Gerardo de Cremona em torno a 1175 A questatildeo da identificaccedilatildeo desse autor que se manteve por muito tempo obscura foi talvez resolvida em 1998 quando se encontrou na lista de tradutores aacuterabes-islacircmicos presentes no grupo de al-Kindi (Bagdaacute seacuteculo IX ) fornecida no Cataacutelogo (Fihrist) do biblioacutegrafo aacuterabe medieval al-Nadim (m 987) o possiacutevel nome do personagem em questatildeo tratar-se-ia de Zaruba al-Nagravelsquoimi al-Himsi autor aacuterabe cristatildeo vivido no Iraque por volta do ano 850 (cf Mauro ZONTA Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 188)
20 Oratio p147 ldquoAddidimus autem et plures locos in quibus Scoti et Thomae plures in quibus Averrois et Avicennae sententias quae discordes existimantur concordes esse nos asseveramusrdquo
21 Conforme foi visto no capiacutetulo anterior Pico iniciou seus estudos pelas portas das universidades de Paacutedua Pavia e Ferrara nuacutecleos aristoteacutelicos apenas mais tarde aproximou-se do Platonismo e ainda depois atraveacutes da influecircncia de Ficino aproximou-se ao estudo de Hermes no nuacutecleo de Florenccedila
57
confirmados pelo proacuteprio quando poucos meses apoacutes a publicaccedilatildeo das Conclusiones
para justificar-se da acusaccedilatildeo de que seu trabalho representava um amontoado
caoacutetico de enunciados o reacuteu faria menccedilatildeo em sua Apologia22 agrave existecircncia de uma
ldquoocculta concatenatiordquo que traria significado e unidade agraves Teses23 A revelaccedilatildeo de
existecircncia de uma concordacircncia oculta nunca esclarecida pede que o leitor olhe de
forma discernitiva para o conteuacutedo das teses bem como para a quantidade de
enunciados atribuiacutedos a cada campo de conhecimento Verifica-se que mesclados aos
assuntos que passam por conceituaccedilotildees de fiacutesica astronomia biologia ontologia e
matemaacutetica firma-se uma prevalecircncia de determinados temas que se interligam
mais do que uma terccedila parte da totalidade das teses encontra-se distribuiacuteda entre
questotildees pertinentes agrave alma humana e questotildees relacionadas ao processo hieraacuterquico
do cosmo ndash parte dessas dedicadas agrave astrologia de ordem esoteacuterica Ademais uma
fraccedilatildeo relevante das teses trata de questotildees teoloacutegicas Esses temas concorrem a
compor uma importante faceta do pensamento piquiano e como seraacute visto no uacuteltimo
toacutepico integram os nuacutecleos das doutrinas misterioloacutegicas abordadas por Pico sendo
a possiacutevel chave da secreta conexatildeo sinalizada
Embora natildeo caiba aqui a anaacutelise individual de cada Conclusio24 uma pequena
amostra de cada um dos dois primeiros temas acima mencionados eacute benvinda para
retratar o panorama geral das Conclusiones O terceiro tema referente agrave Teologia
seraacute abordado no toacutepico seguinte Dentre as 900 teses uma quantidade miacutenima25 de
167 satildeo dedicadas agraves questotildees relacionadas agrave Alma ndash universal humana e suas inter-
relaccedilotildees ndash nas especiacuteficas nomenclaturas e subdivisotildees que recebe como Intelecto
Agente Intelecto Possiacutevel ou Mente26 Eacute o caso das natildeo poucas proposiccedilotildees filosoacuteficas
pertinentes ao processo dialeacutetico que se realiza dentro de um cenaacuterio epistemoloacutegico
22 A Apologia foi o texto escrito imediatamente apoacutes a condenaccedilatildeo das Teses preparado por Pico para defender-
se das acusaccedilotildees perante a comissatildeo romana Nela satildeo apresentadas extensas confutaccedilotildees acerca de cada uma das 13 teses inicialmente condenadas que Pico reformula em um total de 45 Vejam-se detalhes na fundamental organizaccedilatildeo de Paolo Edoardo FORNACIARI (Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze 2010) A Apologia firma-se como ldquoum documento exemplar que anuncia a grande reviravolta intelectual da Idade Modernardquo de acordo com Giulio BUSI que assim narra ldquoFu dunque nel mese di aprile 1487 che il Conte della Mirandola scrisse di getto in latino un testo appassionato difficile a tratti insolente con cui voleva mettere fine una volta per tutte alle accuse e insinuazioni sul suo conto Nacque cosigrave lApologia una delle creazioni piugrave significative dellintero Rinascimentordquo (Pico fede ragione eInquisizione in ldquoIl Sole -24 Orerdquo 28082018)
23 PICO Apologia fol235 ldquoin omnibus meis conclusionibus semper occulta quaedam est concatenatiordquo 24 O esforccedilo hercuacuteleo foi realizado por Stephan Farmer que apresenta ateacute o momento presente a mais completa
ediccedilatildeo comentada das novecentas teses em seu Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) de 1998 Em termos de ediccedilotildees criacuteticas das Conclusiones existem outras duas obras entre as publicaccedilotildees modernas atuais a realizada por Bohdan Kieszkowski em 1973 baseada no manuscrito de Erlangen (que segundo Farmer parece conter vaacuterios erros) e a publicada por Albano Biondi em 1995 acompanhada de traduccedilatildeo italiana (a primeira em quinhentos anos) Essa se baseia no manuscrito de Erlangen e na editio princeps contraposto aos manuscritos de Viena e de Mocircnaco (cf BIONDI p3) tratando-se da ediccedilatildeo aqui majoritariamente empregada para as traduccedilotildees das citaccedilotildees A ediccedilatildeo de Farmer acima mencionada baseia-se na verificaccedilatildeo de duas coacutepias da editio princeps presentes na British Library de Londres e na Biblioteca Apostoacutelica Vaticana em Roma Os detalhes acerca das trecircs ediccedilotildees satildeo comentados na obra de FARMER (1998 pp186-188)
25 Trata-se de um valor miacutenimo possivelmente sendo de ordem maior A obscuridade de certas proposiccedilotildees natildeo permite sequer sua classificaccedilatildeo temaacutetica
26 Nas teses ldquosegundo opiniatildeo dos platocircnicosrdquo conclusio nr 19 (ed Biondi II p 97) o proacuteprio Pico esclarece que a parte racional da alma que ele chama de ldquoIntelecto Possiacutevel seguindo os peripateacuteticosrdquo eacute aquela capaz de operar ldquosem conjunccedilotildees com os produtos da fantasiardquo
58
como se vecirc em algumas das asserccedilotildees extraiacutedas do Aristotelismo ndash grego e aacuterabe ndash
do Neoplatonismo e da Matemaacutetica27
Quando Aristoacuteteles sustenta em Metafisica IX que as
realidades separadas e divinas satildeo por noacutes totalmente
conhecidas ou totalmente ignoradas deve ser entendido tratar-
se daquele conhecimento pertinente agravequeles que jaacute alcanccedilaram
a primeira atuaccedilatildeo do intelecto28
(Conclusio secundum Alexandrum 5)
Felicidade uacuteltima do homem eacute a contiguidade entre intelecto
agente e intelecto possiacutevel do qual esse se faz forma29
(Conclusio secundum Auenroen 3)
Felicidade uacuteltima do homem eacute quando o nosso intelecto
particular se conjuga completamente com o intelecto total e
primordial30 (Conclusio secundum Plotinum 7)
Como os objetos da matemaacutetica se assumidos absolutamente
natildeo completam em nada o intelecto se assumidos como
imagens das realidades superiores nos conduzem pela matildeo
imediatamente para a especulaccedilatildeo dos Inteligiacuteveis31
(Conclusio de mathematicis 4)
Ainda compondo as questotildees concernentes agrave Alma verifica-se que um nuacutemero
substancial de asserccedilotildees eacute reservado para tratar em linguagem teoloacutegica ou filosoacutefica
do tema da Queda ou distinccedilatildeo de um princiacutepio de unidade e de seu consequente
retorno agravequele estado de acordo com cada Escola Os exemplos abaixo satildeo tomados
de teses referentes ao Peripatetismo grego ao Neoplatonismo e ao misticismo
hebraico
27 A classificaccedilatildeo das teses segue a formataccedilatildeo estabelecida por Albano Biondi (Conclusiones Nongentae Le
novecento Tesi dellrsquoanno 1486 1995) que efetua uma divisatildeo conforme grupos doutrinaacuterios A traduccedilatildeo das teses para o portuguecircs eacute de nossa responsabilidade tendo sido utilizada como guia a ediccedilatildeo de Biondi
28 PICO Concl (I) III IV 5 (p34) ldquoCum dicit Aristoteles nono Metaphysicae separata et diuina aut totaliter scriri a nobis aut totaliter ignorari intelligendum est de ea cognitione quae his contigit qui iam ad summam intellectus actuationem perueneruntrdquo A ediccedilatildeo de FARMER apresenta diferente posiccedilatildeo das teses a quinta de Alexandre de Afrodiacutesia em BIONDI corresponde agrave sexta de FARMER
29 Concl (I) II I 3 (p20) ldquoFelicitas ultima hominis est cum continatur intellectus agens possibili ut forma quam continuationemrdquo Segundo Stephan FARMER o problema da ldquounidade do intelectordquo colocado por Averroacuteis nasce sobre o comentaacuterio do De Anima 35 provavelmente segundo o autor o texto aristoteacutelico mais debatido entre os escolaacutesticos medievais (1998 np 252)
30 Concl (I) IV I 7 (p36) ldquoFelicitas hominis ultima est cum particularis intellectus noster total primoque intellectui plene coniungiturrdquo Provavelmente a concepccedilatildeo eacute extraiacuteda de Eneacuteadas I4 embora colocada com palavras de Pico O Autor elaborou essas teses seis anos antes de Ficino publicar a sua traduccedilatildeo das Eneacuteadas ndash que o proacuteprio Pico o havia incitado a realizar em 1484 ndash fato que apoia a hipoacutetese de que Pico tenha sido o primeiro filoacutesofo em seacuteculos a debater publicamente aquelas opiniotildees (FARMER ibid np 296-298)
31 Concl (II) VII 4 (p106) ldquoSicut subiecta mathematicorum si absolute accipiantur intellectum nihil perficiunt ita si ut imagines accipiantur superiorum immediate nos ad intelligibilium speculationem manu ducuntrdquo
59
Creio que o intelecto agente que apenas ilumina seja em
Temiacutestio a mesma coisa que na Cabala eacute Metraton32
(Conclusio secundum Themistium 2)
Natildeo toda descende a alma quando descende33
(Conclusio secundum Plotinum 2)
O intelecto agente natildeo eacute outra coisa que a parte da alma que
permanece no alto e natildeo participa da Queda34
(Conclusio secundum Adelandum Arabem 1)35
Quando a alma teraacute compreendido tudo aquilo que poderaacute
compreender e se uniraacute agrave alma superior se despiraacute de suas
vestes terrenas se extirparaacute de seu lugar e se conjugaraacute com o
divino36 (Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum
hebraeorum 44)
Outro grupo temaacutetico pode ser delineado a partir das teses que abordam
questotildees relacionadas a teorias de organizaccedilatildeo do cosmo verificadas em quantidade
proeminente e de forma mais especiacutefica do processo de gradaccedilatildeo dentro do desenho
universal Tal tema encontra representaccedilatildeo entre outras doutrinas na escolaacutestica e
na neoplatocircnica bem como em todas as misterioloacutegicas mencionadas por Pico
(tratadas na parte final)
As processotildees nas realidades divinas se distinguem segundo
intelecto e vontade37
(Conclusio secundum Henricum Gandauensem 3)
O artiacutefice ou construtor do mundo sensiacutevel eacute o seacutetimo da
hierarquia intelectual38 (Conclusio secundum Jamblichum 2)
32 Concl (I) III V 2 (p34) ldquoIntellectus agens illuminans tantum credo sit allud apud Themistium quod est
Metraton in Cabalardquo FARMER (p294) comenta que Pico transforma o Metraton cabaliacutestico em princiacutepio filosoacutefico
33 Concl (I) IV I 2 (p36) ldquoNon tota descendit anima quum descenditrdquo Segundo FARMER os argumentos mais similares da proposiccedilatildeo encontram-se em Eneacuteadas IV81 ss (opcit np297)
34 Concl (I) IV II 1 (p36) ldquoIntellectus agens nicbil est aliud quam pars animae quae sursum manet et non caditrdquo
35 Adelando Aacuterabe eacute na verdade Adelardo di Bath (cf FORNACIARI 2010 p LXIV) 36 Concl (I) IX 44 (p60) ldquoCum anima comprehenderit quidquid poterit comprehendere et coniungetur
animae superiori expoliabit indumentum terrenum a se et exstirpabitur de loco suo et coniungetur cum diuinitaterdquo
37 Concl (I) IV 3 (p16) ldquoProcessiones distinguuntur in diuinis penes intellectum et voluntatemrdquo A biblioteca de Pico continha as principais obras de Henrique de Gand ndash Summa Theologica Quodlibeta e uma compilaccedilatildeo de seus escritos (Pearl KIBRE The library of Pico della Mirandola 1936)
38 Concl (I) IV IV 2 (p40) ldquoOpifex sensibilis mundi septimus est hierarchiae intellectualisrdquo Muitas das conclusiones atribuiacutedas a Jacircmblico foram extraiacutedas do comentaacuterio de Proclo ao Timeu que preserva fragmentos do comentaacuterio perdido de Jacircmblico para esse diaacutelogo Outras tantas foram extraiacutedas do primeiro livro do De Mysteriis parte do qual Ficino traduziu para o latim dois anos apoacutes Pico ter publicado as 900 teses (FARMER np 310)
60
A particular temaacutetica da continuidade hieraacuterquica do real encontra em Proclo
de Liacutecia seu principal emissaacuterio Agraves doutrinas daquele que representava o uacuteltimo anel
da cadeia dos platocircnicos Pico destina 55 teses que sintetizam alguns conteuacutedos que
abrangem natildeo somente as processotildees como complexas questotildees astroloacutegicas Apoacutes
ter realizado uma preliminar carreira filosoacutefica debruccedilado sobre as obras de
Aristoacuteteles o neoplatocircnico instalara-se sobre a filosofia hieraacutetica e teuacutergica39 passos
similares aos que Pico agora seguia Em relaccedilatildeo ao visiacutevel realce que lhe foi deferido
e como bem observa Albano Biondi esse ldquoeacute um caso em que a quantidade demonstra
adequadamente a relevacircncia atribuiacuteda a um estilo de pensamentordquo40
Os deuses intelectuais trazem os elementos unificantes do Uno
primevo as substacircncias das realidades inteligiacuteveis as vidas
(perfeitas compreensivas e generantes do divino) das
realidades inteligiacuteveis e intelectuais a propriedade intelectual
de si mesmos41 (Conclusio secundum Proclum 10)
Apoacutes a setemplicidade intelectual devem ser colocados
imediatamente os deuses supramundanos natildeo ligados a partes
do universo e natildeo coordenaacuteveis a este mundo que esses aliaacutes
abraccedilam por cada parte segundo causa42
(Conclusio secundum Proclum 20)
Juacutepiter Netuno e Plutatildeo dividindo-se o reino de Saturno natildeo
herdam o reino de Saturno se natildeo por mediaccedilatildeo do fundador
Juacutepiter43 (Conclusio secundum Proclum 26)
Olhando para a quaternidade do ser por si animado o demiurgo
fabrica as quatro partes principais do mundo44
(Conclusio secundum Proclum 39)
39 Proclo efetivamente comentou os versos atribuiacutedos a Orfeu ndash em cujos moldes compunha hinos ndash e os
Oraacuteculos caldeus nos quais via a essecircncia de toda a sabedoria (cf BIONDI 1995 pXXV) As teses referentes a Proclo agrave exceccedilatildeo de algumas foram extraiacutedas de sua obra-prima Theologia Platonica Pico aparentemente utilizou o texto grego (FARMER opcit npp314-315 318)
40 BIONDI opcit pXXV Proclo que havia sido esquecido apoacutes o fechamento da Academia em 529 dC ressurgindo uma primeira vez no ciacuterculo de Miguel Psello em Bizacircncio renascia agora em Florenccedila pelas matildeos de Giovanni Pico
41 Concl IVV 10 (p44) ldquoIntellectuales dii uniones habent ab uno primo substantiales ab intelligibilibus uitas perfectas et contentiuas generativas diuinorum ab intelligibilus et intellectualibus intellectuales proprietatem a se ipsisrdquo
42 Concl IVV 20 (p44) ldquoPost intellectualem hebodmadam ordinati sunt immediate supermundani Dei a partibus uniuersi exempti et incoordinabiles ad hunc mundum et secundum causam eum undique circumplectentesrdquo
43 Concl (I) IV V 26 (p46) ldquoIupiter Saturnus et Pluto Saturni regnum partientes a Saturno regnum non accipiunt nisi per medium conditoris Iouisrdquo Conforme Theologia Platonica 6 Trata-se dos trecircs liacutederes henads da ordem procliana de deuses supramundanos (FARMER np324)
44 Acerca da participaccedilatildeo do demiurgo no processo emanatoacuterio tratam ainda as teses referentes a Proclo nrs 40 41 e 42 Concl IVV 39 (p48) ldquoOpifex ad quatemitatem respiciens per se animalis quatuor fabricat partes principales mundirdquo
61
Dentro do quadro cosmoloacutegico Pico anuncia ainda em meio agraves teses e atraveacutes
daquele que se mostra um de seus autores mais estimados a existecircncia dos trecircs
Mundos cujas concepccedilotildees seriam esclarecidas devidamente no Heptaplus
Por lsquolugar supracelestersquo devemos entender aquilo que da
segunda triacuteade eacute mais inteligiacutevel que intelectual por
lsquoconcavidade sub-celestersquo aquilo que eacute mais intelectual que
inteligiacutevel por lsquoceacuteursquo aquilo que participa igualmente de uma e
de outra realidade45 (Conclusio secundum Proclum 52)
e que atraveacutes de outras Escolas encontram analogia com os corpos do homem
Atraveacutes do segredo do raio direto refletido e refratado na
ciecircncia da perspectiva somos informados acerca da triacuteplice
natureza intelectual animal e corporal46
(Conclusio secundum Mathematicam Pythagorae 7)
A temaacutetica astroloacutegica tema que merece atenccedilatildeo por encontrar-se distribuiacutedo
entre vaacuterias seacuteries ocupa um espaccedilo natildeo pouco significativo47 Sua presenccedila na
maior parte das vezes expressa em linguagem velada contribui a firmar a
conceituaccedilatildeo da ordenaccedilatildeo universal tecida por Pico Eacute verificaacutevel particularmente
entre os representantes neoplatocircnicos e em conteuacutedo mais enigmaacutetico nas doutrinas
que fecham o segundo grupo de teses
Cada alma que participa de intelecto vulcacircnico eacute semeada na
Lua48 (Conclusio secundum Porphyrium 4)
Assim como Apolo eacute intelecto solar Ascleacutepio eacute intelecto lunar49
(Conclusio secundum Porphyrium 7)
Nos oito corpos do ceacuteu os elementos se encontram duas vezes
em modo celeste os encontraraacute aquele que proceder em ordem
retroacutegrada agravequela dupla numeraccedilatildeo de Binaacute50
(Conclusio secundum Jamblichum 4)
45 Concl IVV 52 (p50) ldquoPer supercoelestem locum habemus intelligere quod de secunda trinitate plus est
intelligibile quam intellectuale per subcoelestem concauitatem quod magis intellectuale quam intelligibile per coelum id quod aeque utroque participetrdquo Segundo Theologia Platonica 4
46 Concl (I) V 7 (p52) ldquoPer secretum radii recti reflexi et refracti in scientia perspectiuae triplicis naturae admonemur intellectualis animalis et corporalisrdquo
47 Trata-se de 37 teses que abordam de forma expressa a Astrologia A quantidade que pode natildeo parecer relevante eacute maior do que por exemplo o nuacutemero de teses atribuiacutedas a Tomaacutes de Aquino agrave matemaacutetica pitagoacuterica ou ao Orfismo entre alguns exemplos
48 Concl (I) IVIII 4 (p38) ldquoOmnia anima participans vulcanio intellectu seminatur in lunardquo 49 Concl IVIII 7 (p38) ldquoSicut Apollo est intellectus solaris ita Aesculapius est intellectus lunarisrdquo 50 Concl (I) IVIV 4 (p40) ldquoElementa in octo coeli corporibus coelesti modo bis inueniuntur quae quis
inueniet si retrogrado ordine in illa bina numeratione processeritrdquo De acordo com FARMER (opcit np311) essa proposiccedilatildeo eacute aparentemente inspirada no De mysteriis I17 A referecircncia agrave Binaacute ndash terceira dentre as Sefirot cabaliacutesticas ou numerationes correspondente agrave ldquoInteligecircnciardquo - que tem origens no Medioevo tardio natildeo poderia ser de Jacircmblico Pico provavelmente como ainda infere Farmer pretende derivar os ldquodois modos celestiaisrdquo dos
62
Provavelmente natildeo por coincidecircncia logo em seguida a Proclo satildeo tratadas as
doutrinas que se perpetuaram atraveacutes do esoterismo representadas nas teses
ldquosegundo a matemaacutetica pitagoacutericardquo ldquosegundo a opiniatildeo dos teoacutelogos caldeusrdquo
ldquosegundo a doutrina de Mercuacuterio Trismegistordquo51 e ldquosegundo as doutrinas dos saacutebios
da Cabalardquo52 Pela ordenaccedilatildeo dada natildeo seria incorreto deduzir que Pico pretendesse
confirmar a afinidade entre o misticismo do uacuteltimo dos platocircnicos e as doutrinas que
se lhe seguem De fato nas teses hermeacuteticas e caldaicas Pico descreve pontual e
sinteticamente as diversas estruturas metafiacutesicas do real que embora natildeo expresso
se analogam com as neoplatocircnicas Por vezes as aacutereas do saber satildeo de duvidosa
classificaccedilatildeo dado seu caraacuteter de difiacutecil decifraccedilatildeo ou em razatildeo da presenccedila de dois
ou mais campos de conhecimento que se mesclam Eacute o caso da aacuterea teoloacutegica da qual
123 teses podem ser discernidas de forma inequiacutevoca mas cuja presenccedila se encontra
entrelaccedilada entre outros tantos conteuacutedos de forma obliacutequa ou obscura dificultando
sua classificaccedilatildeo como no exemplo abaixo
A ordenada seacuterie dos inteligiacuteveis natildeo reside na coordenada seacuterie
intelectual como sustenta Amasis o Egiacutepcio Essa eacute em
verdade acima de cada hierarquia intelectual no abismo da
unidade primaacuteria e abscocircndita aleacutem de qualquer possibilidade
de participaccedilatildeo sob a neacutevoa da escuridatildeo originaacuteria53
(Conclusio secundum Chaldeorum Theologorum 5)
A discussatildeo conceitual das teses apresentadas mesmo em seu nuacutemero
reduzido traria natildeo apenas prolixidade ao texto como um distanciamento
desnecessaacuterio da trajetoacuteria traccedilada A amostra dos poucos exemplos tem por
finalidade apontar para a prevalecircncia de determinados conteuacutedos e mostrar na
continuidade que os especiacuteficos temas indicados encontram-se natildeo por acaso
especialmente presentes nas mateacuterias esoteacutericas contidas na segunda parte da obra
Uma etapa pois necessaacuteria para alcanccedilarmos nosso intento final Entre as dispersas
teses que parecem natildeo se relacionar encontram-se elos que indicam a existecircncia de
um projeto de composiccedilatildeo que seleciona dentro de cada sistema doutrinal temas
caracteriacutesticos que confirmam a oculta concatenaccedilatildeo anunciada pelo autor Outros
fatores indicativos de tal concatenaccedilatildeo poderatildeo ser verificados de forma mais clara a
partir do segundo grupo de teses aquelas elaboradas ldquosegundo a opiniatildeo do autorrdquo a
serem verificados no toacutepico final deste Capiacutetulo Antes seratildeo vistas as teses teoloacutegicas
condenadas pela Igreja que abrem espaccedilo para a discussatildeo da relaccedilatildeo entre Filosofia
elementos de Binaacute utilizando-se do meacutetodo de revolutio alphabetariae ou de alguma forma de gematria (concepccedilotildees a serem vistas no Capiacutetulo V)
51 Pico utiliza a versatildeo latina do nome de Hermes Trismegisto 52 Conclusiones [] ldquosecundum Mathematicam Pythagoraerdquo ldquosecundum opinionem Chaldeorum
Theologorumrdquo ldquosecundum priscam doctrinam Mercurii Trismegisti Aegyptiirdquo ldquosecundum doctrinam sapientum hebraeorum Cabalistarumrdquo
53 Concl (I) VII 5 (p54) ldquoCoordinatio intelligibilis non est in intellectuali coordination ut dixit Amasis Aegyptius sed est super omnem intellectualem hierarchiam in abysso primo unitatis et sub caligine primarum tenebrarum imparticipaliter absconditardquo Farmer ajuiacuteza que as proposiccedilotildees caldaicas tenham sido extraiacutedas de fontes neoplatocircnicas embora Pico afirmasse ter em sua posse manuscritos originais caldeus (np338)
63
e Teologia na estruturaccedilatildeo do pensamento de Pico reflexatildeo que serviraacute de preacircmbulo
natildeo apenas para o uacuteltimo item como particularmente para os Capiacutetulos VI e VII
2 Religiatildeo ou Filosofia
Em Veneza a ediccedilatildeo das Conclusiones foi publicamente queimada por 14 dias
consecutivos54 esse foi apenas o iniacutecio dos graves conflitos que Pico viria a ter com a
Igreja e que culminariam em sua ordem de julgamento pela Inquisiccedilatildeo ndash seguidos da
fuga prisatildeo parcial clemecircncia papal (sem absolviccedilatildeo) e finalmente a voluntaacuteria (e
vigiada) reclusatildeo ateacute quase o uacuteltimo ano de sua vida55 Afinal o que havia de ldquomalrdquo
nas Conclusiones Aos olhos da Cuacuteria Pontifiacutecia natildeo eram poucas as razotildees para
ensejar a proibiccedilatildeo daquela composiccedilatildeo que recolhia suficientes fatores para levar os
juiacutezes eclesiaacutesticos a se colocarem de sobreaviso
a) tanto a quantidade de inteacuterpretes aristoteacutelicos presentes entre as teses
quanto o estilo parisiense evocavam o racionalismo hereacutetico averroiacutesta e mais grave
alessandrino que se opunha agraves ideias humanist0-platocircnicas partilhadas pela
Igreja56
b) a menccedilatildeo a tradiccedilotildees pagatildes que traziam certos temas natildeo aceitos pelo
Cristianismo gerava uma situaccedilatildeo incocircmoda
Todos os saacutebios entre Indianos Persas Egiacutepcios e Caldeus
acreditaram na transmigraccedilatildeo das almas isto eacute na sua
passagem de um corpo a outro57
(Conclusio secundum Adelandum Arabem 8)
c) a menccedilatildeo a teologias natildeo comprovadamente divergentes como a pitagoacuterica
a oacuterfica e a hermeacutetica mas tambeacutem natildeo exatamente alinhadas com a doutrina cristatilde
54 Paolo Edoardo FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p10 55 Graccedilas agraves descobertas feitas por Leacuteon Dorez em torno aos verbais das audiecircncias tidas pela Comissatildeo
Pontifiacutecia referentes agraves Teses de Pico eacute possiacutevel conhecer as condiccedilotildees que levaram agrave sua suspensatildeo e agrave supressatildeo do planejado debate (DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole em France 1485-88 18971976) Veja-se tambeacutem para uma reconstruccedilatildeo pontual dos acontecimentos em torno ao julgamento eclesiaacutestico Giovanni DI NAPOLI (Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo Roma 1965) ainda o item ldquoLe tappe del processo a Picordquo de FORNACIARI em sua ldquoIntroduccedilatildeordquo agrave Apologia lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione 2010 pp XIV-XXII
56 Pico apresentava a mesma necessidade de ldquoentenderrdquo o divino ultrapassando o veacuteu da Revelaccedilatildeo que outrora havia acometido Averroacuteis cujas doutrinas jaacute haviam sido condenadas ndash como a concepccedilatildeo de que apenas o Intelecto uacutenico poderia ser considerado imortal Os seguidores de Alessandro de Afrodiacutesia postulavam a mortalidade do corpo juntamente com a mortalidade do intelecto considerando a alma como uma funccedilatildeo do organismo portanto ligada a ele e agrave sua extinccedilatildeo Os alessandrinos chegaram a reconhecer posteriormente a presenccedila de certa imortalidade da alma mas tratar-se-ia de um tipo de imortalidade impessoal natildeo condizente com o Cristianismo Para outras informaccedilotildees veja-se GARIN 2011 pp 32 ss 140 ss
57 Concl (I) IV II 8 (p38) ldquoTranscorporationem animarum crediderunt omnes sapientes Indorum Persarum Aegyptiorum et Chaldaeorumrdquo
64
constituiacutea uma questatildeo delicada A complexidade de certos temas mesclados a
questotildees teoloacutegicas deveria ser devidamente avaliada e autorizada pela Igreja
Quem conheceraacute a sucessatildeo 1 2 3 4 5 12 teraacute nas matildeos com
precisatildeo a distribuiccedilatildeo da Providecircncia58
(Conclusio secundum Mathematicam Pythagorae 4)
d) a presenccedila de vinte e nove Conclusiones theologicae intituladas ldquodiversas
do modo comum dos teoacutelogosrdquo59 era por si soacute ousada e soava arrogante aos olhos da
Cuacuteria Romana Ademais o conteuacutedo das asserccedilotildees teoloacutegicas ndash que compotildeem a
maior parte das teses inicialmente condenadas ndash era ofensivo e de alto teor hereacutetico
e) a presenccedila de Conclusiones Magicae e de um grande nuacutemero de
Conclusiones Cabalisticae cujo conteuacutedo entre outras coisas tentava demonstrar a
existecircncia de um sentido oculto nas Escrituras natildeo poderia ser tolerada
A Comissatildeo romana inicialmente condenou treze teses quase todas extraiacutedas
das Conclusiones in Theologia secundum opinionem propriam em sua maior parte
foram julgadas como falsas errocircneas hereacuteticas ou escandalosas sendo uma ou mais
dessas qualificaccedilotildees conjuntas60 A leitura de algumas entre as teses condenadas pode
dar uma amostra da complexidade do debate em que Pico pretendia se envolver
Se se segue a doutrina comum acerca da possiacutevel encarnaccedilatildeo
[de Deus] em qualquer criatura o corpo de Cristo pode estar
presente sobre o altar segundo a verdade do sacramento da
Eucaristia sem a conversatildeo do patildeo no corpo de Cristo ou sem a
anulaccedilatildeo da substacircncia do patildeo E isso seja dito em termos de
possibilidade natildeo de realidade61 (Conclusio in Theologia 2)
58 Concl (I) VI 4 (p52) ldquoQui I II III IV V XII ordines cognouerit prouidentiae distributionem exacte
tenebitrdquo 59 Conclusiones in Theologia numero XXIX secundum opinionem propriam a communi modo dicendi
Theologorum satis diuersam 60 No breve de Inocecircncio VIII de 20 de fevereiro de 1487 se lecirc ldquo[] segundo o juiacutezo de homens doutiacutessimos
algumas entre aquelas [teses] por efeito de sua formulaccedilatildeo desviam do reto caminho da ortodoxia algumas de tal forma obscuras confusas e intrincadas natildeo poderiam absolutamente ser apresentadas em puacuteblica discussatildeo sem preacutevios esclarecimentos outras satildeo tatildeo paradoxais que poderiam ser proibidas pela Igreja pelo sabor de heresia que emanam assim que se fossem apresentadas em debate puacuteblico poderiam engendrar escacircndalo entre as pessoas incultas e inexperientesrdquo (DOREZ-THUASNE opcit 1976 pp114-115)
61 Concl (II) IV 2 (p88) ldquoSi teneatur communis via de possibilitate suppositationis in respectu ad quamcumque creaturam dico quod sine conuersione panis in corpus Christi uel paneitatis annichilatione potest fieri ut in altari sit corpus Christi secundum veritatem sacramenti Eucharistiae quod sit dictum loquendo de possibili non de sic esserdquo De acordo com FARMER (opcit np 422) muitas das questotildees implicadas nas teses condenadas satildeo derivadas da vasta tradiccedilatildeo de comentaacuterios medievais encontrados nas Sentenccedilas de Petrus Lombardus nas quais Pico se fundamentou As principais oposiccedilotildees das teses teoloacutegicas satildeo endereccediladas a escritos de Tomaacutes de Aquino (FARMER idem) Outros comentaacuterios acerca das teses teoloacutegicas podem ser encontrados em Jader JACOBELLI Pico della Mirandola Longanesi 1986 pp 96-98
65
As palavras ldquoeste eacute o meu corpordquo e as demais pronunciadas
durante a Consagraccedilatildeo devem ser interpretadas materialmente
e natildeo indicativamente62 (Conclusio in Theologia 10)
Natildeo se deve adorar nem a cruz de Cristo nem outra imagem
alguma segundo adoraccedilatildeo de latria tampouco na forma como
a entende Tomaacutes63 (Conclusio in Theologia 14)
Um pecado mortal finito no tempo natildeo pode ser punido com
uma pena infinita segundo o tempo mas apenas com uma pena
temporalmente finita64 (Conclusio in Theologia 20)
Eacute mais racional acreditar que Oriacutegenes esteja salvo de que o
considerar condenado65 (Conclusio in Theologia 29)
Natildeo haacute ciecircncia que nos assegure mais sobre a divindade de
Cristo do que a Magia e a Cabala66 (Conclusio magica 9)
Como se vecirc satildeo todas proposiccedilotildees que discutem a Teologia cristatilde mas natildeo
apenas quase todas apresentam um conteuacutedo dificilmente compreensiacutevel ao crente
de pouca erudiccedilatildeo pois natildeo se referem a temas da ldquofeacute comumrdquo Pico sabia e tentara
advertir que suas afirmaccedilotildees deveriam ser examinadas e debatidas apenas entre os
sapientes da religiatildeo Contudo a partir da divulgaccedilatildeo das teses as prelazias
eclesiaacutesticas natildeo tardaram a se preocupar com as interpretaccedilotildees equivocadas que
aquelas declaraccedilotildees poderiam suscitar dentre ldquoos simplesrdquo podendo levar os fieacuteis a
uma confusatildeo em suas crenccedilas Natildeo se tratava apenas de discutir assuntos que a
Igreja considerava natildeo ser de alccedilada de um filoacutesofo Pico proclamava que ningueacutem
deve ser obrigado a crer se natildeo for persuadido defendia a salvaccedilatildeo de Oriacutegenes
62 Concl (II) IV 10 (p90) ldquoIlia verba Hoc est corpus etc quae in consecracione dicuntur materialiter
tenentur non significatiuerdquo Segundo FARMER (np427) Pico faz uso da ldquoteoria da suposiccedilatildeordquo medieval tardia postular algo ldquomaterialmenterdquo seria equivalente ao uso moderno de ldquocolocar aspasrdquo em torno agravequilo enquanto que postular algo em ldquosentido indicativordquo seria propocirc-lo absolutamente A tese de Pico nesse sentido significaria que se a foacutermula da Eucaristia natildeo fosse colocada ldquomaterialmenterdquo entatildeo a sentenccedila ldquoeste eacute o meu corpordquo referir-se-ia ao corpo do sacerdote e natildeo ao de Cristo Ou na forma sintetizada por JACOBELLI (opcit pp 96-98) tomar as palavras ldquomaterialmenterdquo significa ldquocomo se as dissesse Cristordquo A hostilidade da comissatildeo para com Pico reflete-se no julgamento de que tal tese aparentemente inoacutecua fosse ldquoescandalosa e contraacuteria agrave opiniatildeo comum dos sagrados doutoresrdquo
63 Concl (II) IV 14 (p90) ldquoNec crux Christi nec ulla imago adoranda est adoratione latriae etiam eo modo quo ponit Thomasrdquo A ldquoadoraccedilatildeo de latriardquo significa a idolatria conforme JACOBELLI opcit p97
64 Concl (II) IV 20 (p92) ldquoPeccato mortali finite temporis non debetur poena infinita secundum tempus sed finita tantumrdquo Aqui segundo GARIN (2011 p142) Pico se baseia em Oriacutegenes e Agostinho para os quais seria ldquoimpossiacutevel e absurdordquo um mal que fosse todo mal
65 Concl (II) IV 29 (p92) ldquoRationabilius est credere Origenem esse saluum quam credere ipsum esse damnatumrdquo Em sua resposta oral agrave comissatildeo papal Pico alegou que desde que Oriacutegenes natildeo errou por ldquopertinecircncia de vontaderdquo seria mais provaacutevel e piedoso acreditar que ele estaria salvo (DOREZ-THUASNE opcit pp 124-25) A comissatildeo declarou que a tese de Pico ldquotinha sabor de heresiardquo uma vez que se opunha agrave determinaccedilatildeo da Igreja universal (ibid p130) A resposta de Pico relatada em sua Apologia ganhou consideraacutevel popularidade no seacuteculo XVI admirada pelos reformadores da Igreja em razatildeo dos limites que impunha agrave autoridade eclesiaacutestica Para Farmer (np435) havia um sentido pessoal na afirmaccedilatildeo de Pico de que Oriacutegenes natildeo fora condenado por suas heresias mas sim pela ldquogloacuteria da sua eloquecircncia e conhecimentordquo
66 Concl (II) IX 9 (p118) ldquoNulla est scientia quae nos magis certificet de diuinitate Christi quam magia et cabalardquo
66
negava a eternidade das penas do Inferno colocava-se contra a adoraccedilatildeo da cruz e de
qualquer imagem A busca por uma coerecircncia dentro dos dogmas o levava aleacutem de
limites tacitamente estabelecidos pela ortodoxia catoacutelica natildeo lhe permitindo parar
nem diante dos Sacramentos ingressando em sutilezas teoloacutegicas pretendia
submeter agrave discussatildeo a proacutepria questatildeo da transubstanciaccedilatildeo67 Aleacutem da condenaccedilatildeo
das teses seu artiacutefice foi declarado ldquoiacutempiordquo ldquoheregerdquo ldquomagordquo ldquoismaelitardquo e ldquojudeurdquo
Natildeo sou mago natildeo sou judeu nem ismaelita nem herege
Venero Jesus e trago sobre o meu corpo a cruz de Jesus atraveacutes
do qual o mundo eacute para mim crucifixo e eu sou crucifixo ao
mundo68
As razotildees que nos levam a abordar teses de especiacutefico teor teoloacutegico-cristatildeo em
uma investigaccedilatildeo que trata do uso de paradigmas esoteacutericos satildeo duas
Primeiramente para evidenciar que o Pico que se aproxima a teologias natildeo-cristatildes
natildeo o faz como um investigador desprovido de fundamentos pertinentes agrave teologia de
sua feacute mas sim como algueacutem em posse de efetivo conhecimento daquele campo em
segundo lugar a abordagem do material teoloacutegico permite a discussatildeo da relaccedilatildeo feacute-
razatildeo no pensamento piquiano necessaacuteria para o fechamento do uacuteltimo capiacutetulo Sob
tal prisma a citaccedilatildeo acima deve ser entendida como uma efetiva prova de feacute do autor
longe de uma tentativa de contemporizar com seus arguidores Por outro lado as
comprovaccedilotildees de certas atitudes poderiam lanccedilar duacutevidas sobre o fato a saber a
maior parte das posiccedilotildees contestadas nas Conclusiones foi mantida na Apologia em
clara confirmaccedilatildeo de suas opiniotildees salvo poucas modificaccedilotildees69 algumas passagens
da defesa tanto oral quanto escrita mostram a incontida irritaccedilatildeo do autor e por
vezes certo escaacuternio que tomaria ares de provocaccedilatildeo agrave Igreja70 o reiterado interesse
por conteuacutedos pertencentes a outras tradiccedilotildees teoloacutegicas e sobretudo o fato de
fechar as duas partes de sua obra com um conteuacutedo relacionado a uma doutrina
religiosa ldquoestrangeirardquo poderia sugerir que Pico natildeo mais encontrasse conforto nas
crenccedilas cristatildes
67 Observe-se que toda a discussatildeo contraacuteria agrave adoraccedilatildeo da cruz e de outros siacutembolos bem como a criacutetica
piquiana ao sacramento da Eucaristia ndash a disputa De Eucharistiae Sacramento ndash seriam dois dos grandes debates travados pelos Reformadores do seacuteculo XVI (cf GARIN 2011 pp 32-33)
68 PICO Apologia (p 8) ldquoNon magus non iudaeus sum non ismaelita non haereticus sed Iesum solo et Iesu crucem in corpore meo porto per quem mihi mundus crucifixus est et ego mundordquo
69 Os detalhes completos da defesa de cada tese condenada podem ser vistos em Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione (FORNACIARI 2010)
70 Pico escreve na Apologia (p 33) ldquoExaminando as questotildees condenadas como hereacuteticas pelos mestres de Roma faz-se necessaacuterio que eu mude minha linguagem devo falar o idioma dos baacuterbaros pois como diz jocosamente o proveacuterbio os balbuciantes apenas entendem outros balbuciantesrdquo Na argumentaccedilatildeo referente agrave terceira Quaestio concernente agrave conclusio in Theologia 14 que trata da adoraccedilatildeo da cruz e de imagens Pico chama de hereacuteticos seus examinadores utilizando um artifiacutecio retoacuterico bastante simples sendo a sua tese catoacutelica quem a condena postulando o contraacuterio eacute propriamente hereacutetico (ibid p 132) Em outra passagem replicando as suspeitas sobre a Cabala lecirc-se ldquosuspeitam [os interrogadores] que os cabalistas natildeo sejam seres humanos mas hircocervos [animal miacutetico da Antiguidade claacutessica metade bode metade veado] ou centauros ou qualquer coisa de todo monstruosardquo (ibid pp176-77) Na sua quinta quaestio que trata da defesa da tese maacutegica nr 9 Pico diz ter ouvido algueacutem dizer que ldquoCabalardquo fosse o nome de um inimigo de Cristo e natildeo de uma doutrina (ibid pp176-77) esse fato seria mais tarde relatado por Johannes Reuchlin que em 1516 em seu tratado Arte della Cabala refere que algueacutem teria perguntado durante o interrogatoacuterio de Pico o que era a ldquocabalardquo recebendo como resposta tratar-se de um lsquohomem peacuterfido e diaboacutelico que havia escrito contra Cristorsquo sendo seus disciacutepulos chamados cabalistasrdquo (apud Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)
67
No entanto e como assegura Eugenio Garin Pico era um ldquogrande espiacuterito
religiosordquo e toda sua obra filosoacutefica esteve voltada ao conhecimento de Deus e agrave sua
relaccedilatildeo com o homem e com a realidade71 O proacuteprio subtiacutetulo que abre as
Conclusiones secundum opinionem propriam eacute forte indicador da intenccedilatildeo
respeitosa do autor e de sua vontade de submeter as teses agrave discussatildeo natildeo de impocirc-
las ldquo[] em nenhuma delas afirmo qualquer posiccedilatildeo como assertiva ou provaacutevel
senatildeo na medida em que as retenha verdadeiras ou provaacuteveis a Sagrada Igreja
Romanardquo72 O fato desconfortaacutevel para o magisteacuterio eclesiaacutestico eacute que apesar de sua
autecircntica ldquopietasrdquo que se manifestava em ldquoatitudes de sacerdote em haacutebitos laicosrdquo
Pico permanecia alheio agraves formas exteriores e cerimoniais da experiecircncia religiosa o
repuacutedio pela adoraccedilatildeo de imagens natildeo era apenas escrito (conclusio IV 14) mas
factual Tratava-se de um fiel que praticava o Cristianismo ldquosem ritos e sem
exterioridadesrdquo de um cristatildeo que ldquointroduzia a criacutetica inclusive nos Evangelhosrdquo73
Eis a razatildeo para Pico salvar Oriacutegenes com evidente inocecircncia e aproveitando de
breve momento de liberdade juvenil74 porque o erro do teoacutelogo fora feito em boa feacute
ele se arrependera e sofrera o martiacuterio porque se a condenaccedilatildeo de Oriacutegenes fosse
aceita deveriam ser condenados os Evangelhos os Apoacutestolos e os Santos jaacute que
tantas de suas doutrinas a Igreja natildeo admitia porque natildeo eacute a Igreja mas apenas
Deus que condena Na inflamada defesa de Oriacutegenes Pico mostrava tanto seu caraacuteter
pio quanto a iacutentima rebeliatildeo que vivia em relaccedilatildeo agraves doutrinas eclesiaacutesticas75
O que Pico buscava de fato era uma via de saiacuteda que permitisse a conciliaccedilatildeo
entre as exigecircncias do pensamento loacutegico e os conteuacutedos da ldquorevelaccedilatildeordquo sempre
como parte de seu projeto maior de concoacuterdia Sua viacutevida feacute cristatilde poderia tecirc-lo
levado a se acomodar diante do fasciacutenio oferecido pelas liturgias da Ecclesia ou da
coerecircncia dialeacutetica de seus teoacutelogos mas sua inteligecircncia havia sido nutrida em
demasia com textos hermeacuteticos e cabaliacutesticos ndash que intimamente o haviam
convencido da existecircncia de outros significados na literatura sagrada76 Natildeo se
tratava portanto de uma negaccedilatildeo da experiecircncia cristatilde mas da necessidade de
71 Uma ampla discussatildeo acerca da religiosidade de Pico pode ser encontrada na obra de GARIN Giovanni Pico
della Mirandola 2011 especialmente entre as pp37-48 A relaccedilatildeo entre feacute e razatildeo religiosidade e filosofia tem recebido destaque entre vaacuterios comentadores
72 Abertura agraves Conclusiones secundum opinionem propriam [] in quibus omnibus nihil assertiue uel probabiliter pono nisi quatenus id uerum uel probabile iudicat sacrosancta Romana ecclesia et caput eius benemeritus Summus Pontifex Innocentius octauus cuius iuditio qui mentis suae iuducium non summittit mentem non habet
73 GARIN 2011 p48 A tendecircncia a dar uma nova interpretaccedilatildeo agrave experiecircncia religiosa e ao conhecimento das culturas orientais seria o preluacutedio agrave profunda renovaccedilatildeo religiosa que o mundo moderno assistiria Os orientalistas de rsquo500 a rsquo700 viram em Pico seu grande percursor Atraveacutes de Reuchlin o exemplo de Pico repercutiu nas novas correntes da criacutetica religiosa que confluiacuteram ou foram conexas ao tema reformador Natildeo apenas pelo fato de ser precursor dos estudos orientais mas tambeacutem por seu acento independente e sua livre pesquisa das Escrituras dos ritos dos cultos dos siacutembolos da Igreja e das teorias jaacute aceitas atitudes e estudos que refletiriam na Reforma (Cf GARIN 2011 pp 100 105 135)
74 A atribuiccedilatildeo eacute emprestada do tradutor Albano Biondi que considera as Conclusiones uma obra ldquotanto ingecircnua quanto sofisticadardquo como um diaacuterio de viagem de um intelectual que aproveita de uma ldquobreve liberdade sem condicionamentosrdquo (BIONDI opcit pXXXVIII)
75 A tese condenada referente ao cristatildeo Oriacutegenes (Concl II 4 29) eacute a uacutenica em que Pico pretende defender um autor e natildeo sua doutrina Sua defesa ocupa na Apologia um espaccedilo muito mais extenso que as restantes com exceccedilatildeo da defesa da Magia e da Cabala (cf Apologia ldquoDe salute Origenisrdquo) Oriacutegenes foi um dos poucos pensadores entre filoacutesofos e teoacutelogos cristatildeos a se interessar pelo conhecimento do pensamento e idioma hebreus Essa talvez tenha sido uma das causas do interesse de Pico por sua filosofia (GARIN 2011 pp141 ss)
76 Alberto AMBESI ldquoGiovanni Pico della Mirandola ndash Cenni biografici e presentazione dellrsquooperardquo Introduccedilatildeo ao Heptaplus Carmagnola 1996 p IV
68
ampliaacute-la Era um jovem entusiasmado com as recentes descobertas que
comprovavam as verdades de sua religiatildeo como havia escrito em sua introduccedilatildeo agraves
Teses procurando esclarecer aos Padres seu interesse pelas doutrinas cabaliacutesticas
ldquoas coisas tiradas dos antigos misteacuterios hebreus aleguei como confirmaccedilatildeo da
sacrossanta e catoacutelica feacuterdquo77 De fato atraveacutes de vaacuterios dos enunciados presentes na
seacuterie das Conclusiones Cabalisticae Pico propunha para debate comprovaccedilotildees ldquonatildeo
tanto da religiatildeo mosaica quanto da cristatilderdquo que dizia ter encontrado nos livros
sagrados78
Aqui os misteacuterios da Trindade aqui a encarnaccedilatildeo do Verbo
aqui a divindade do Messias aqui quanto diz respeito ao
pecado original agrave expiaccedilatildeo deste por meio de Cristo quanto
concerne agrave Jerusaleacutem Celeste agrave queda dos democircnios aos coros
angeacutelicos agraves penas do purgatoacuterio e do inferno li as mesmas
coisas que todos os dias lemos em Paulo e Dionisio em
Jerocircnimo e em Agostinho79
O entendimento da relaccedilatildeo religiatildeo-filosofia na obra de Pico natildeo estaacute isento de
dificuldades podendo denotar certa ambivalecircncia A inflamada defesa de sua proacutepria
filiaccedilatildeo religiosa como emerge na citaccedilatildeo acima deu margem a leituras puramente
cristoloacutegicas de sua obra80 No entanto haacute que se observar que na construccedilatildeo do
pensamento piquiano a religiatildeo representava a manifestaccedilatildeo final de conceitos
alcanccedilados plenamente apenas atraveacutes da Filosofia A feacute constituiacutea nesse sentido ldquoo
aacutepice de um processo racional que nela se manifesta e se potencializardquo Seu mais puro
sentimento a esse respeito emerge da carta escrita a Aldo Manuzio em 1491
ldquoPhilosophia veritatem quaerit Theologia invenit Religio Possidetrdquo81 A primazia da
Religiatildeo colocada acima da Teologia e da Filosofia conforme expressa na carta deve
ser entendida em sua correta dimensatildeo pois em outras passagens da obra piquiana a
dicotomia razatildeo-feacute apresenta-se em ordem invertida com a submissatildeo da religiatildeo agrave
77 Oratio pp 155-157 Para detalhes referentes ao confronto entre Cristianismo e Cabala veja-se Chaim
WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Cambridge 1989 78 Oratio pp159-161 79 Algumas das assertivas contidas na citaccedilatildeo encontram-se espalhadas entre as teses cabaliacutesticas (II) nrs 5 6
7 8 14 15 16 24 30 34 e 38 Aleacutem de presente na Oratio (idem) a citaccedilatildeo em questatildeo pode ser lida na Apologia (p30) ldquoHos ego libros non mediocri impensa mihi cum comparassem summa diligentia indefessis laboribus cum perlegissem vidi in illis - testis est Deus - religionem non tam Mosaicam quam Christianam Ibi Trinitatis mysterium ibi Verbi incarnatio ibi Messiae divinitas ibi de peccato originali de illius per Christum expiatione de caelesti Hierusalem de casu daemonum de ordinibus angelorum de purgatoriis de inferorum poenis eadem legi quae apud Paulum et Dionysium apud Hieronymum et Augustinum quotidie legimusrdquo
80 Para alguns que partilham do mesmo entendimento de William CRAVEN (Giovanni Pico della Mirandola symbol of his age modern interpretations of a Renaissance philosopher 1981 p107) o uacutenico interesse de Pico pela Cabala estava em demonstrar a verdade cristatilde ndash embora haja muitas divergecircncias quanto a esse ponto Outros como Michael SUDDUT vatildeo aleacutem defendendo uma ldquoCristologiardquo na obra de Pico (Pico della Mirandolarsquos Philosophy of Religion in Pico della Mirandola-New Essays 2008) Por outro vieacutes Pier Cesare BORI que natildeo coloca duacutevidas sobre a religiosidade cristatilde de Pico estaacute convencido de que a utilizaccedilatildeo da Cabala e outras teologias orientais satildeo ldquobem mais do que um expediente apologeacutetico a serviccedilo de um universalismo cristocecircntricordquo (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996)
81 ldquoA Filosofia procura a verdade a Teologia a encontra e a Religiatildeo a possuirdquo Assim escrevia Pico (Epiacutestola I 6) em 11 de fevereiro de 1491 ao humanista e editor de textos raros Aldo Manuzio ldquoAccinge ad philosophiam sed hac lege ut memineris nullam esse philosophiam quae a mysteriorum veritate nos avocet Philosophia veritatem quaerit theologia invenit religio possidetrdquo (Oratio np37)
69
filosofia eacute o caso da passagem ldquoseria necessaacuterio que a Filosofia iluminasse as mentesrdquo
e que a Igreja soubesse reconhecer a sua forma capaz de ldquopersuadir e convencer
racionalmenterdquo82 A argumentaccedilatildeo alude que apenas quem conhece e sabe discutir
criticamente as fontes pode julgar seu conteuacutedo e sua eventual pretensatildeo de verdade
Segundo Pico de fato o ato de crer natildeo depende apenas da vontade mas tambeacutem do
intelecto83 Nesse caso contraacuterio ao conteuacutedo anterior expresso na carta a Manuzio a
necessidade de submeter a religiatildeo agrave razatildeo deve ser entendida em relaccedilatildeo a uma
dimensatildeo religiosa que se mostra em caraacuteter dogmaacutetico horizontal em oposiccedilatildeo agrave
dimensatildeo religiosa enquanto experiecircncia real Os indiacutecios de tal dimensatildeo da
experiecircncia de uma efetiva religiatildeo84 Pico teria encontrado em seus estudos
relacionados a teologias e teurgias tomadas da literatura neoplatocircnica
posteriormente complementadas com os Hinos Oacuterficos os Oraacuteculos Caldeus e a
praacutetica da Cabala Tratava-se pois de uma real vivecircncia religiosa que extrapolava os
dogmas de qualquer religiatildeo particular Sob tal entendimento quaisquer
correspondecircncias encontradas nas teses que se relacionem com as doutrinas da Igreja
natildeo devem ser interpretadas como uma defesa ortodoxa do Cristianismo mas como
um passo a mais em direccedilatildeo agrave conjunccedilatildeo dos ldquofinsrdquo que tendem ao Absoluto
Seguindo essa acepccedilatildeo Pico teria encontrado em Proclo sua definiccedilatildeo de ldquoverdadeira
religiatildeordquo
Assim como a feacute que eacute simples disposiccedilatildeo a crer eacute inferior agrave
ciecircncia assim a feacute que eacute feacute verdadeira eacute supra
substancialmente superior agrave ciecircncia e ao intelecto conjugando-
nos imediatamente a Deus85
(Conclusio secundum Proclum 44)
3 Maritare Mundum
Nas 144 teses que distribuiacutedas em quatro seacuteries concluem as 500
Conclusiones secundum opinionem propriam eacute possiacutevel descobrir alguns elos que
datildeo sentido ao conjunto de forma que as secretas analogias apontadas na Apologia
possam ser delineadas A segunda metade da obra contempla os principais e mais
82 O tema eacute amplamente discutido em GARIN 2011 pp137-142 Ainda BUSI Pico fede ragione e
Inquisizione in Il Sole 24 Ore 28082018 83 Conclusiones in Theologia (II) IV 18 (p91) Como aponta GARIN (2011 pp137-142) natildeo por acaso o Padre
da Igreja que Pico mais amou e meditou sobre foi justamente Oriacutegenes Parecia-lhe absurda a ideia de impor uma feacute sem demonstraacute-la assim como castigar um herege e condenaacute-lo por erro teoacuterico (cf Apologia ldquoDe libertate credendirdquo)
84 A ideia contemporacircnea que se tem do termo ldquoreligiatildeordquo estaacute bastante esvaziada de seu sentido original a ponto de poder causar estranheza a dignidade que Pico lhe atribui colocando-a acima da Filosofia e da Teologia Nunca eacute tarde para recordar a origem etimoloacutegica do termo ldquoreligiatildeordquo proveniente do verbo ldquoreligarerdquo que aponta para a real uniatildeo com o divino um estado de plena vivecircncia espiritual que ultrapassa as questotildees teoreacuteticas relacionadas agrave Filosofia ou agrave Teologia
85 Concl (I) IVV 44 (p48) ldquoSicut fides quae est credulitas est infra scientiam ita fides quae est vere fides est supersubstantialiter supra scientiam et intellectum nos Deo inmediate coniungensrdquo
70
originais argumentos que seriam utilizados para debater uma teoria global da
representaccedilatildeo do mundo realizando a consonacircncia com os temas verificados no
primeiro toacutepico deste Capiacutetulo Observa-se que o realizador da obra estava seguro por
ter encontrado ocultas correspondecircncias que se mostram particularmente claras no
exame das seacuteries finais das Conclusiones intituladas ldquosegundo opiniatildeo dos
enunciados de Zoroastrordquo ldquomaacutegicasrdquo ldquosegundo os hinos de Orfeu [] e aquele saber
relativo agraves coisas divinas e agraves coisas naturaisrdquo e ldquoconsolidantes da religiatildeo cristatilde a
partir dos fundamentos colocados pelos saacutebios hebreusrdquo86 O complexo dessas quatro
seacuteries representa um corpo uacutenico no pensamento de Pico apresentando uma
substancial unidade entre os saberes da Magia da Teurgia e da Teologia
Vaacuterias correspondecircncias satildeo estabelecidas ainda entre as teses caldaicas
maacutegicas oacuterficas e cabaliacutesticas com os demais temas da inteira obra seguindo um
planejamento em que se destacam especiacuteficos teores o aceno aos trecircs mundos que
Pico havia mencionado atraveacutes de Proclo dentro de um cenaacuterio de organizaccedilatildeo do
cosmo87 a confirmaccedilatildeo de certa escolha temaacutetica que prestigia as questotildees
relacionadas ao conhecimento da alma a tonalidade teoloacutegica que se mostra
mesclada a vaacuterias teses e sobretudo o entrelaccedilamento entre distintos campos do
saber que afirmam a presenccedila da concoacuterdia buscada Os modelos temaacuteticos citados a
seguir todos extraiacutedos das ldquoteses segundo o significado das sentenccedilas de Zoroastro e
de seus exegetas caldeusrdquo apresentam natildeo somente aforismos que retratam os temas
mencionados como ainda um exemplo da multidisciplinariedade piquiana
verificaacutevel no uacuteltimo dos enunciados no qual se confirma a correspondecircncia entre as
teologias caldaica cristatilde e hebraica
No aforismo 17 [do enunciado de Zoroastro] com o triacuteplice
indumento de linho pano e pele os Magos natildeo entendem outra
coisa aleacutem da triacuteplice morada da alma celeste espiritual e
terrena88 (Conclusio secundum propriam opinionem de
intelligentia dictorum Zoroastris 8)
86 Conforme a sequecircncia e tiacutetulos completos dados por Pico temos Conclusiones secundum propriam
opinionem de intelligentia dictorum Zoroastris et expositorum eius Chaldaeorum Conclusiones Magicae Conclusiones secundum propriam opinionem de modo intelligendi hymnos Orphei secundum Magiam id est secretam diuinarum rerum naturaliumque sapientiam a me primum in eis repertam Conclusiones Cabalisticae secundum opinionem propriam ex ipsis Hebraeorum sapientum fundamentis Cristianam Religionem maxime confirmantes
87 Conclusio secundum Proclum 52 88 Concl (II) VIII 8 (p116) ldquoMagi in XVII aphorismo nichil aliud intelligunt per triplex indumentum ex lino
panno et pellibus quam triplex animae habitaculum coeleste spirituale et terrenumrdquo O trecho de acordo com FARMER (opcit np489) eacute extraiacutedo dos Oraacuteculos Caldeus A sessatildeo caldaica das Conclusiones conteacutem material natildeo encontrado no recolhimento de Miguel Psello ou George Plethon nem mesmo a numeraccedilatildeo dos Oraacuteculos de Pico coincide com a ordem encontrada naquelas coleccedilotildees anteriores A questatildeo das fontes que Pico consultou na sessatildeo caldaica eacute tatildeo misteriosa quanto a versatildeo dos Oraacuteculos que ele tinha em matildeos Em carta a Ficino de 1486 Pico fala de libellus de dogmatis Chaldaicae theologiae tum Persarum Graecorum et Chaldaeorum in illa divina et locupletissima enarratione [ldquoum pequeno livro sobre os ensinamentos da teologia caldaica naquela exposiccedilatildeo divina e opulenta dos persas gregos e caldeusrdquo] que lhe tinha chegado recentemente agraves matildeos (FARMER opcit pp486-487)
71
Aquilo que dizem os exegetas caldeus acerca do primeiro
enunciado de Zoroastro sobre a ldquoescala do taacutertaro ao primeiro
fogordquo natildeo significa outra coisa que a seacuterie das naturezas do
universo do natildeo grau da mateacuteria ao grau que gradualmente se
sobrepotildee acima de cada grau89 (idem 1)
Graccedilas ao enunciado de Zoroastro lsquosacrificareis ainda por trecircs
dias e natildeo maisrsquo me resultou evidente atraveacutes da aritmeacutetica do
caacutelculo dos dias da Mercavaacute superior que naquele enunciado
estava prevista expressamente a vinda de Cristo90
(idem 14)
A menccedilatildeo agrave aritmeacutetica da Mercavaacute superior alude agrave existecircncia de um campo
conceitual que requer um preparo especial tantas vezes guardado pelo segredo O
autor desse material mostra ter consciecircncia da necessidade de proteger certas aacutereas
conceituais que natildeo devem ser divulgadas ndash e dos riscos envolvidos em sua eventual
divulgaccedilatildeo Esse cuidado eacute referido de forma velada algumas vezes e de forma
expressa em outras Na abertura do penuacuteltimo grupo de suas teses intituladas
ldquoconforme o modo de interpretar os hinos de Orfeu segundo magiardquo Pico sugere ter
colhido nos Hinos Oacuterficos certas verdades cuja divulgaccedilatildeo seria arriscada por
necessidade em razatildeo da restriccedilatildeo pedida pelo segredo teria que expressar-se em
modo eliacuteptico utilizando-se de aforismos para conseguir despertar ldquoa mente dos
contemplativosrdquo91 Assim se lecirc em sua Conclusio oacuterfica nr 1
Expor em puacuteblico a magia secreta por mim extraiacuteda por
primeiro dos Hinos de Orfeu natildeo eacute liacutecito mas seraacute uacutetil delineaacute-
la para estimular as mentes dos contemplativos mesmo que por
meio de aforismos92
(Conclusio de modo intelligendi hymnos Orphei 1)
89 Concl (II) VIII 1 (p114) ldquoQuod dicunt interpretes chaldaei super primum dictum Zoroastris de scala a
tartaro ad primum ignem nichil aliud significat quam seriem naturarum universi a non gradu materiae ad eum qui est super omnem gradum graduate protensumrdquo
90 Concl (II) VIII 14 (p116) ldquoPer dictum illud Zoroastris ad huc tres dies sacrificabitis et non ultra apparuit michi per arithmeticam superioris merchaveacute illos computandi dies esse in eo dicto expresse praedictum aduentum Christirdquo A Mercavaacute superior (carruagem) representa a parte especulativa da Cabala concernente agraves coisas divinas como esclarece o escritor cabalista Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1989 pp 193-94)
91 Pico tinha consciecircncia dos riscos de uma interpretaccedilatildeo errocircnea ou da utilizaccedilatildeo delituosa da teurgia oacuterfica Marsiacutelio Ficino que jaacute havia traduzido para o latim os Hinos Oacuterficos havia decidido evitar sua publicaccedilatildeo por julgaacute-los perigosos (cf Paolo Edoardo FORNACIARI Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Milano 2009 pp 73-74) ainda do mesmo autor veja-se Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola p 630) O acesso de Pico aos Hinos oacuterficos eacute comprovado pela existecircncia em sua biblioteca de pelo menos um manuscrito contendo natildeo apenas aqueles hinos como tambeacutem os Hinos homeacutericos e os de Proclo (Pearl KIBRE opcit 1936 pp148 205)
92 Concl (II) X 1 (p120) ldquoSicut secretam magiam a nobis primum ex Orphei hymnis elicitam fas non est in publicum explicare ita nutu quodam ut in infrascriptis fiet conclusionibus eam per aphorismorum capita demonstrasse utile erit ad excitandas contemplatiuorum mentesrdquo
72
Depreende-se da asserccedilatildeo acima uma forte conotaccedilatildeo iniciaacutetica tocircnica que
conflui no complexo orgacircnico das uacuteltimas seacuteries revelando a existecircncia de uma
dimensatildeo ndash conhecida por Pico ndash que admite o adepto atraveacutes de graus que elevam
ao conhecimento ndash desde que ele seja capaz de ingressar por suas portas de iniciaccedilatildeo
A conclusio oacuterfica 7 conta que existe uma ldquoestrada de analogia secretardquo que soacute poderaacute
ser trilhada por aquele que souber ldquointelectualizar perfeitamente as propriedades
sensiacuteveisrdquo a serem extraiacutedas dos Hinos de Orfeu93 Vecirc-se que eacute dada ecircnfase seja na
primeira que na seacutetima tese acima ao uso intelectual ou contemplativo das
informaccedilotildees recebidas agrave guisa de precauccedilatildeo para natildeo ser aprisionado por elementos
negativos ndash advertecircncia que embora natildeo expressa nas teses acima encontra-se na
tese 10 segundo Hermes Trismegisto e na tese cabaliacutestica 1394 A conclusio maacutegica 17
sugere que para ultrapassar os limites estabelecidos pela natureza existem ldquodevidas
modalidades conhecidas pelos saacutebiosrdquo95 Nesse percurso a Magia representa o
primeiro grau96 por se tratar conforme a conclusio maacutegica 4 da parte ldquomais nobre
da ciecircncia naturalrdquo sendo o conhecimento do mundo fiacutesico em primeira etapa o
alimento da alma racional97
Se se verifica em noacutes uma natureza imediata que seja
simplesmente ou pelo menos prevalentemente racional essa
tem seu aacutepice na arte maacutegica E graccedilas agrave participaccedilatildeo maacutegica
tal natureza pode ascender nos homens a uma maior
perfeiccedilatildeo98 (Conclusio Magica 14)
A Magia conforme se depreende da explanaccedilatildeo realizada na De Hominis
Dignitate99 ocupa-se das relaccedilotildees da vida humana com a toda a criaccedilatildeo daiacute a
outorga de nobreza que Pico lhe concede em caraacuteter privilegiado tem por objeto a
93 Concl (II) X 7 (p122) 94 A tese cabaliacutestica 13 adverte que ldquoquem opera na Cabala se cometer erros durante o trabalho ou se aproximar
deste sem a devida purificaccedilatildeo preacutevia seraacute devorado por Azazel de acordo com suas proacuteprias regras de justiccedilardquo A tese 10 segundo as doutrinas de Trismegisto informa sobre a existecircncia de uma maligna sequecircncia denaacuteria correspondente agrave existente na Cabala a respeito da qual Pico declara que natildeo poderaacute escrever nada ldquopor tratar-se de um segredordquo
95 Concl (II) IX 17 (p118) A inteira sentenccedila postula que ldquoa magia eacute proacutepria daquela natureza que eacute horizonte de tempo e eternidade e de laacute deve ser extraiacuteda segundo as devidas modalidades notas aos saacutebiosrdquo O significado da primeira oraccedilatildeo segundo FORNACIARI eacute que a natureza eacute o limite do tempo no sentido que o tempo intriacutenseco agrave natureza eacute limitado e natildeo eterno (Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche 2009 p64)
96 Na De Hominis Dignitate Pico dedica muitas linhas a esclarecer o que entende por ldquomagiardquo defendendo-a contra entendimentos equivocados eou preacute-concebidos
97 Cf FORNACIARI Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche 2009 pp 58 63 98 Concl (II) IX 14 (p118) ldquoSi qua est natura immediata nobis quae sit uel simpliciter uel saltem ut multum
rationaliter rationalis magicam habet in summo et eius participatione potest in hominibus esse perfectiorrdquo FARMER (np498) comenta que a questatildeo concerne agrave alma purificada do mago capaz de reunir todas as forccedilas racionais distribuiacutedas entre o mundo celestial e terrestre e elevaacute-las Nesta tese lecirc-se que a magia envolve naturezas ldquoracionaisrdquo na correlata tese cabaliacutestica 12 encontra-se que a ldquoCabala purardquo (haacute tambeacutem variedades inferiores como seraacute visto no Capiacutetulo V) envolve a ldquoparte intelectualrdquo da alma racional
99 Aleacutem da ampla defesa da Magia realizada na Apologia (Quaestio V de magia naturali et cabala hebraeorum pp 154-193) Pico dedica natildeo poucas linhas para a questatildeo na De Hominis Dignitate ldquoRepleta de profundiacutessimos misteacuterios [a ldquoboa magiardquo] abraccedila a contemplaccedilatildeo mais alta das coisas mais secretas e por fim o conhecimento total da natureza Esta como que trazendo das profundidades agrave luz as virtudes dispersas e disseminadas no mundo pela bondade de Deus mais do que realizar milagres coloca-se ao serviccedilo da milagrosa natureza Esta perscrutando intimamente o secreto acordo do universo a que os Gregos chamam de uma maneira muito significativa sympateacuteia [ldquoharmonia do universordquo] explorando a muacutetua ligaccedilatildeo das naturezas traz agrave luz como se ela proacutepria fosse o artiacutefice as maravilhas escondidas nas profundezas do mundo no seio da natureza e dos misteacuterios de Deusrdquo (p153)
73
relaccedilatildeo entre o mundo fiacutesico e a alma imortal pois que o mago opera para realizar a
conexatildeo do mundo sublunar com os mundos superiores100 como seraacute visto adiante
Alguns dos meacutetodos agrave disposiccedilatildeo do sapiente praacutetico para alccedilar-se atraveacutes dos niacuteveis
intelectuais relacionam-se diretamente com o uso de sons e mantras ndash como se
extrai de algumas teses oacuterficas maacutegicas e cabaliacutesticas A tese oacuterfica 2 por exemplo
sinaliza que ldquonas operaccedilotildees de magia natural nada eacute mais eficaz que os Hinos de
Orfeurdquo acrescendo em tom de precauccedilatildeo ldquodesde que sejam aplicadas a correta
muacutesica a correta intenccedilatildeo de acircnimo e todas as demais circunstacircncias que os
sapientes conhecemrdquo101 A quarta tese oacuterfica confirma a analogia de praacuteticas e
resultados entre teologias distintas
Assim como os Hinos de Davi se prestam de forma admiraacutevel agraves
operaccedilotildees da Cabala assim os Hinos de Orfeu se prestam agraves
operaccedilotildees da magia autecircntica liacutecita e natural102
(Conclusio de modo intelligendi hymnos Orphei 4)
Observa-se uma relaccedilatildeo entre os resultados obtidos atraveacutes das praacuteticas oacuterficas
e as cabaliacutesticas pois que nos Salmos de Davi encontra-se uma aplicaccedilatildeo maacutegica
pertencente ao esoterismo hebraico que Pico certamente conhecia103 Embora se
situem em patamares distintos104 as duas dimensotildees operativas apresentam
analogias como revela a tese oacuterfica 6 ldquoa propriedade analoacutegica de qualquer virtuderdquo
(no sentido de qualidade poder ou potecircncia)105 seja natural ou divina eacute a mesma
ldquoguardadas as devidas proporccedilotildeesrdquo assim como satildeo os mesmos os nomes (utilizados
na magia natural) os hinos (na teurgia oacuterfica) e o operar (em sentido cabaliacutestico)
ldquoquem tentaraacute interpretaacute-los encontraraacute as correspondecircnciasrdquo completa o texto106
Pico alerta outrossim que para a aplicaccedilatildeo operativa de determinados hinos
oacuterficos107 seraacute necessaacuteria a participaccedilatildeo da operaccedilatildeo cabaliacutestica como postula a tese
oacuterfica 21 ldquoNatildeo haacute aplicaccedilatildeo operativa daqueles [especiacuteficos] hinos sem a operaccedilatildeo da
Cabalardquo108
100 Cf FORNACIARI 2009 p 58 101 Concl (II) X 2 (p120) Proclo em seu proecircmio ao Comentaacuterio ao Timeu atesta que os textos sagrados do
Orfismo continham indicaccedilotildees taumatuacutergicas Ademais ao proacuteprio Proclo foram atribuiacutedos o poder de auto-cura e de curar o proacuteximo atraveacutes do recurso a hinos inclusive os oacuterficos conforme se lecirc em Vita Procli de Marino Neapolis (apud FORNACIARI 2009 p74) Complementa Fornaciari (p75) que eacute a concentraccedilatildeo do pensamento no mago ou teurgo que propicia o movimento interior desde que acompanhado do cumprimento dos preceitos e das palavras certas pronunciadas nas oraccedilotildees
102 Concl (II) X 4 (p122) ldquoSicut hymni Dauid operi Cabalae mirabiliter deseruiunt ita hymni Orphei operae vere licitae et naturalis Magiaerdquo Os Hinos de Davi referem-se aos Salmos
103 A hinografia atribuiacuteda ao rei Davi exerce uma funccedilatildeo sagrada no Judaiacutesmo e houve uma sua aplicaccedilatildeo maacutegica chamada simmusy tehillim (ldquouso dos Salmosrdquo) Vejam-se esclarecimentos sobre a questatildeo e as implicaccedilotildees em acircmbito cabaliacutestico em FORNACIARI (2009 p76)
104 No capiacutetulo VI seratildeo esclarecidas as distinccedilotildees entre os procedimentos teuacutergicos e os procedimentos de tipo superior realizados em certo tipo de praacutetica cabaliacutestica
105 A complementaccedilatildeo ao termo ldquovirtuterdquo eacute de FORNACIARI (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p630)
106 Concl (II) X 6 (p122) ldquoQuarumcunque virtutum naturalium vel diuinarum eadem est proprietas analogica idem etiam nomen idem hymnus idem opus seruata proportione et qui temptauerit exponere uidebit correspondentiamrdquo
107 Trata-se dos Hinos aos quais Pico se refere na tese oacuterfica 20 (p125) endereccedilados agrave mente Paterna ldquoProtogeni Palladis Saturni Veneri Rheae Legis Bacchirdquo
108 Concl (II) X 21 (p124) A Cabala possui as propriedades para ldquocolocar em ato cada quantidade formal contiacutenua e discretardquo como estaacute complementado na mesma tese 21 Essa tese um tanto complexa recebeu de WIRSZUBSKI (opcit pp141-145) e de Brian COPENHAVER (Lrsquoocculto in Pico in Giovanni Pico della
74
Da mesma forma que efetua em relaccedilatildeo ao Orfismo Pico tece muacuteltiplas
analogias entre a Cabala e a Magia109 dois peculiares temas que exorbitam os limites
de seus proacuteprios grupos e que satildeo encontrados de forma esparsa correspondendo-se
natildeo apenas entre si como com outros dos demais elementos presentes nas Teses
Aleacutem da tese maacutegica 8 condenada pelos teoacutelogos de Inocecircncio VIII que conjuga
Magia e Cabala (no caso para afirmar a divindade de Cristo) as duas precedentes 6 e
7 tambeacutem comportam a assunccedilatildeo da Cabala ao lado da Magia ambas convergindo
para ingressar em um plano superior teoloacutegico Na conclusio maacutegica 6 Pico assume
que todas as operaccedilotildees maacutegicas eou cabaliacutesticas encontram sua referecircncia direta em
Deus
Qualquer obra que suscite estupor seja de tipo maacutegico
cabaliacutestico ou de qualquer outro gecircnero deve ser em
primeiriacutessima instacircncia referida a Deus glorioso e bendito
cuja graccedila espalha as superabundantes aacuteguas de milagrosas
virtudes sobre os homens contemplativos de boa vontade110
(Conclusio Magica 6)
A tese seguinte de nuacutemero 7 provavelmente surpreendente aos ouvidos
cristatildeos afirma que ldquoas obras de Cristo natildeo poderiam ter sido realizadas nem por via
de Magia nem por via de Cabalardquo111 A afirmaccedilatildeo parece significar que Cristo possuiria
virtudes superiores em respeito agrave Magia e agrave Cabala rendendo ambas inuacuteteis
Entretanto segundo a interpretaccedilatildeo de Paolo Fornaciari Pico estaria em verdade
sustentando que Cristo teria operado milagres graccedilas agrave forccedila da Magia e da Cabala
conjuntas112 Fato que parece sugerido na condenada tese de nuacutemero 9 amplamente
discutida na Apologia ldquonatildeo existe ciecircncia que nos afirme a divindade de Cristo mais
do que a Magia e a Cabalardquo113 A intriacutenseca relaccedilatildeo entre Magia e Cabala estaacute ainda
presente na tese maacutegica 15 que atribui agrave Cabala a propriedade tida como
imprescindiacutevel de consentir ao mago de operar com sucesso no mundo fiacutesico
Mirandola 1997 p98) interpretaccedilotildees acuradas e distintas o primeiro em acircmbito cabaliacutestico e o segundo em acircmbito matemaacutetico-geomeacutetrico Jaacute a interpretaccedilatildeo de FORNACIARI (2009 pp91-92) mais alinhada com o desenho geral da Conclusiones faz corresponder as trecircs quantidades formal contiacutenua e discreta aos trecircs mundos inteligiacutevel intermeacutedio e sublunar cujas formas podem ser operacionalizadas e quantificadas pela Cabala atraveacutes da gematria (tipologia a ser verificada no Capiacutetulo VI)
109 Uma maior aproximaccedilatildeo agrave Cabala seraacute feita nos capiacutetulos V e VI Em relaccedilatildeo agrave Magia as 26 teses maacutegicas foram objeto de anaacutelise em artigo de Frances YATES (Giovanni Pico della Mirandola and Magic in LrsquoOpera e il pensiero di G Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze 1965 pp159-196) Para definiccedilotildees e esclarecimentos feitos pelo proacuteprio Pico remeter-se agrave parte da De Hominis Dignitate que trata de Magia e ainda agrave seccedilatildeo dedicada agrave quaestio ldquoDe magia naturalis et Cabala disputatiordquo na Apologia
110 Concl (II) IX 6 (p118) ldquoQuodcumque fiat opus mirabile siue sit magicum siue cabalisticum siue cuiuscunque alterius generis principalissime referendum est in Deum gloriosum et benedictum cuius gratia supercoelestes mirabilium uirtutum aquas super contemplatiuos homines bonae voluntatis quotidie pluit liberaliterrdquo Para Pico as operaccedilotildees maacutegicas natildeo funcionam de forma mecacircnica mas dependem da mediaccedilatildeo de uma alma purificada (FARMER p497)
111 Concl (II) IX 7 (p118) ldquoNon potuerunt opera Christi uel per uiam magiae uel per uiam Cabalae fierirdquo 112 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p630 113 Concl (II) IX 9 (p118) ldquoNulla est scientia quae nos magis certificet de diuinitate Christi quam magia et
cabalardquo Veja-se ampla discussatildeo dessa tese em FARMER (opcit pp126-128) que se remete agrave obra de Frances Yates Giovanni Pico della Mirandola and Magic 1965
75
Nenhuma operaccedilatildeo de Magia pode ser de eficaacutecia se natildeo tiver
conexa a obra cabaliacutestica expliacutecita ou impliacutecita114
(Conclusio Magica 15)
Finalmente nas trecircs teses maacutegicas finais a relaccedilatildeo entre a Cabala e a Magia eacute
precisada Na conclusio 24 a partir de quanto ensina a Cabala Pico posiciona
conforme ldquoprinciacutepios secretos da Filosofiardquo as qualidades formais inscritas nos
siacutembolos (caracteres et figuras) acima das qualidades materiais no que concerne agrave
operatividade maacutegica115 na sucessiva tese 25 afirma a correspondecircncia entre os
siacutembolos (caracteres) usados nas operaccedilotildees maacutegicas e os nuacutemeros (numeri) usados
nas operaccedilotildees cabaliacutesticas Na tese 26 Pico sustenta que agrave diferenccedila de quanto
ocorre no campo maacutegico-natural onde o nexo causa-efeito eacute respeitado em modo
rigoroso na atuaccedilatildeo cabaliacutestica pode ocorrer que um acontecimento natildeo dependa da
mediaccedilatildeo das causas Nesse sentido a uacuteltima tese maacutegica pontua assim a distinccedilatildeo
de gradaccedilatildeo entre os dois saberes atraveacutes da obra cabaliacutestica pode ocorrer algo que
nenhuma magia pode alcanccedilar desde que o operar cabaliacutestico seja ldquopuro e
imediatordquo116
Para aleacutem das inter-relaccedilotildees temaacuteticas uma especial atenccedilatildeo deve ser
dispensada agraves Teses Cabaliacutesticas117 agraves quais alguns privileacutegios foram concedidos118
satildeo elas que encerram as duas seccedilotildees da obra piquiana como a ocupar um espaccedilo
nobre a quantidade de teses cabaliacutesticas em seu total de 118 supera a quantidade de
teses de cada um dos outros grupos119 e quatro-quintos das correspondecircncias
efetuadas entre os vaacuterios conteuacutedos envolvem a Cabala120 Efetivamente o nuacutemero de
conexotildees da Cabala com outros temas ultrapassa aquelas efetuadas com as duas
seacuteries acima mencionadas Aleacutem das 47 teses cabaliacutesticas ad mentem cabalistarum e
das 71 secundum opinionem propriam121 ao menos outras cinquenta fazem
114 Concl (II) IX 15 (p118) ldquoNulla potest esse operatio magica alicuius efficaciae nisi annexum habeat opus
cabalae explicitum uel implicitumrdquo Acerca desta tese FARMER (np499) interpreta que o sentido primaacuterio que Pico quer esclarecer eacute que a parte racional da alma (pertinente agrave ldquomagia naturalrdquo) deriva da parte intelectual da alma (pertinente agrave ldquocabala purardquo) sob tal prisma a Cabala estaria impliacutecita em qualquer ato maacutegico
115 Concl(II) IX 24 (p121) ldquoEx secretioris philosophiae principiis necesse est confiteri plus posse caracteres et figuras in opere Magico quam possit quaecunque qualitas materialisrdquo
116 Respectivamente Concl (II) IX 25 e 26 (p121) Basicamente nessas trecircs uacuteltimas teses Pico postula que as palavras maacutegicas podem ser traduzidas em nuacutemeros e os nuacutemeros em palavras maacutegicas aparentemente conforme inferecircncia de FARMER (np503) atraveacutes de equaccedilotildees de gematria A menccedilatildeo agrave Cabala pura e imediata ldquosi sit pura cabala et imediatardquo envolve a parte intelectual da alma como ainda completa Farmer (idem)
117 Paolo FORNACIARI realizou a interpretaccedilatildeo da totalidade das Conclusiones Cabalisticae (2009) utilizando-se da obra de Chaim WIRSZUBSKY (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 19871989) como paracircmetro hermenecircutico para o misticismo hebraico
118 De todas as obras de Pico as Conclusiones cabalisticae parecem ter conhecido melhor destino visto que foram publicadas mais vezes geralmente em latim (veja-se por exemplo FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche Milano 2009 p13) Para Albano BIONDI as Teses cabaliacutesticas ldquosecundum opinionem propriamrdquo representam o coroamento do inteiro edifiacutecio piquiano (2013 p XXVI)
119 Dentro do primeiro grupo eacute atribuiacutedo a Proclo o maior nuacutemero de teses um total de 55 seguido do grupo dos ldquoSaacutebios da Cabalardquo com 47 teses No segundo grupo as ldquoTeses sobre a Matemaacuteticardquo e as ldquoTeses pessoais acerca da doutrina de Platatildeordquo satildeo as que apresentam maior nuacutemero respectivamente 85 e 80 teses cada Contudo na somatoacuteria dos dois grupos o conjunto das doutrinas cabaliacutesticas eacute detentor da maior quantidade de teses 118 no total
120 Cf William CRAVEN Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age modern Interpretations of a Renaissance philosopher 1981 p107
121 O tiacutetulo do uacuteltimo grupo menciona 71 teses (Conclusiones Cabalisticae numero LXXI) embora sejam apresentadas de fato 72 Conforme Fornaciari (2009 p15) natildeo se trata de erro banal de Pico de seus editores de Roma e de Ingolstadt (com o qual esteve em relaccedilatildeo direta) dos inuacutemeros copistas e dos editores dos seacuteculos
76
referecircncia direta ao tema122 Embora a uacuteltima seacuterie cabaliacutestica ldquosegundo a opiniatildeo de
Picordquo apresente um grande nuacutemero de proposiccedilotildees teoloacutegicas que pretendem
confirmar as verdades do Cristianismo ndash originalidade da qual Pico se orgulhava em
razatildeo do triunfo da aplicaccedilatildeo de seu meacutetodo cabaliacutestico ndash123 o conjunto formado
pelas duas seacuteries referentes aos misteacuterios hebraicos contempla a maior incidecircncia de
aforismos de conteuacutedo obscuro ou esoteacuterico alguns apenas acessiacuteveis ao ciacuterculo dos
cabalistas
O Grande Aquilo eacute de maneira geral a fonte de todas as almas
Outros dias satildeo de algumas mas natildeo de todas124
(Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum
hebraeorum 6)
Na Cabala quem penetrar o misteacuterio das Portas da Inteligecircncia
conheceraacute o misteacuterio do Grande Jubileu125 (idem 13)
Aquele que na sequecircncia coordenada da direita compreender a
propriedade do meridional tambeacutem saberaacute a razatildeo de cada
partida de Abraatildeo ir sempre em direccedilatildeo ao Austro126 (idem 14)
Quem penetrar o caraacuteter proacuteprio de hosec e laila que eacute o
segredo da escuridatildeo saberaacute o porquecirc de os maus democircnios
serem mais perigosos agrave noite do que durante o dia127 (idem 21)
As trecircs uacuteltimas seacuteries de teses contemplam a existecircncia ndash e sugerem a
transcendecircncia por parte do homem ndash do mundo fenomecircnico natural do
sucessivos A hipoacutetese do comentador eacute que Pico tenha evitado propositalmente de escrever o nuacutemero 72 por se tratar de cifra sagrada pertencente agrave versatildeo mais ampla do ldquonome expandidordquo de Deus de 72 letras (conforme Ecircxodo 346-7) habitualmente impronunciaacutevel e que apenas o Gran Sacerdote teria o direito de proferir uma vez ao ano
122 Sheila RABIN apresenta uma completa especificaccedilatildeo das teses que mesclam conteuacutedos cabaliacutesticos caso da conclusio 2 segundo Temistio da nr 10 segundo Hermes e das referecircncias presentes nas teses matemaacuteticas entre outras (Pico on Magic and Astrology in Pico della Mirandola New Essays 2008 p 157)
123 Efetivamente atraveacutes de alguns meacutetodos como a gematria Pico consegue comprovar intrigantes relaccedilotildees entre os misteacuterios hebreus e a Teologia cristatilde Essas questotildees seratildeo verificadas nos capiacutetulos V e VI
124 Concl (I) VIII 6 (p56) ldquoMagnus Aquilo fons est animarum omnium simpliciter sicut alii Dies quarundam et non omniumrdquo Para explicar tal tese algumas interpretaccedilotildees foram tentadas Os ldquodiasrdquo da criaccedilatildeo satildeo concernentes a diferentes Sefirot (concepccedilatildeo a ser verificada adiante) O ldquoGrande Aquilordquo segundo FARMER representa um siacutembolo cabaliacutestico da quinta sefiraacute para FORNACIARI da quarta para WIRSZUBSKI (apud Farmer) o sentido eacute outro natildeo elucidado por Farmer
125 Concl (I) VIII 13 (p56) ldquoQui nouerit in Cabala mysterium portarum intelligentiae cognoscet mysterium Magni Iobelei rdquo
126 Concl (I) VIII 14 (p56) ldquoQui nouerit proprietatem meridionalem in dextrali coordinatione sciet cur omnis processio Abraam semper fit versus austrumrdquo Farmer procura esclarecer parte da tese informando que a ldquosequecircncia da direitardquo eacute uma distinccedilatildeo da emanaccedilatildeo das verdadeiras Sefirot da maleacutefica ldquosequecircncia da esquerdardquo que a reflete (np351) Wirszubski (1989 pp 32-33) cita uma longa passagem da traduccedilatildeo de Mitridate da Portae lustitiae de Gicatilla para tentar mostrar que ldquosequecircncia da direitardquo eacute simplesmente um siacutembolo para a quarta sefiraacute Farmer parece natildeo concordar com tal versatildeo pois afirma que a linguagem de Pico difere radicalmente da encontrada na traduccedilatildeo de Mitridate (que usa a palavra dextra mas nada diz sobre a coordenaccedilatildeo da ldquosequecircncia da direitardquo)
127 Concl (I) VIII 21 (p58) ldquoQui sciet proprietatem hosec et laila quae est secretum tenebrarum scit cur mali daemones plus in nocte quem in die nocentrdquo A ediccedilatildeo de Stephan Farmer (1998) suprime a expressatildeo ldquohosec et lailardquo
77
supramundano intermeacutedio e dos planos inteligiacuteveis bem como de uma dimensatildeo
epistemoloacutegica que permeia todos os planos A velada iniciaccedilatildeo sugerida por Pico tem
por principal intento alccedilar o homem ao entendimento do iacutentimo sistema de
correspondecircncias que se distribui entre os diversos niacuteveis O conhecimento do mundo
sublunar pode ser alcanccedilado pela Magia do celeste pela Teurgia oacuterfica e o acesso ao
Inteligiacutevel pela intermediaccedilatildeo da Cabala Sob esse prisma compreende-se que a
unificaccedilatildeo dos mundos eacute o objetivo final de toda a operaccedilatildeo seja maacutegica teuacutergica ou
cabaliacutestica
Natildeo existe nem no ceacuteu nem na terra virtude em estado
potencial e separada que o mago natildeo possa levar ao estado atual
e unificar128 (Conclusio Magica 5)
Entendendo o mundo como um complexo uacutenico articulado desde o mundano
aos sobremundanos o operador (ou iniciado) torna seu uacutenico escopo o aprendizado e
atuaccedilatildeo sobre os reinos que conjuga com seu proacuteprio intelecto elevando-se do saber
natural ao teoloacutegico atraveacutes de vaacuterios graus e meacutetodos O saacutebio eacute pois um
alquimista para quem ldquoa arte maacutegica natildeo adveacutem que por uniatildeo e atuaccedilatildeo de coisas
que na natureza existem em estado de potecircncia e separaccedilatildeordquo129 o ato de conjugar o
mundo ldquomaritare mundumrdquo torna-se assim sua meta preciacutepua e terminal130
Operar magia eacute simplesmente casar o mundo131
(Conclusio Magica 13)
Entender a natureza e ultrapassaacute-la elevando-se ateacute a mente divina esse eacute o
tema principal daquele texto escrito para servir de ldquointroduccedilatildeordquo agraves Teses Qualquer
das ferramentas operadas pelo homem para obter conhecimento soacute eacute digna se tiver
como finalidade sua elevaccedilatildeo Pois como lembra Pico ldquoa forma de todo o poder
maacutegico tem sua raiz na alma humanardquo mas somente ldquonaquela alma que se mostra
permanente e natildeo cadenterdquo132
A mensagem piquiana concernente ao conteuacutedo das Conclusiones de forma
particular no que se refere agraves uacuteltimas seacuteries natildeo pode ser adequadamente
elucidada133 Todavia o caminho para desvendar a occulta concatenatio mencionada
na Apologia pode ser trilhado a partir da constataccedilatildeo e subsequente averiguaccedilatildeo de
duas veementes marcas presentes dentre as novecentas teses ndash e que aqui foram
indicadas a primeira encontra-se na repeticcedilatildeo de temas relacionados agrave Cosmologia agrave
128 Concl (II) IX 5 (p118) ldquoNulla est virtus in coelo et in terra seminaliter et separata quam et actuare et
unire magus non possitrdquo 129 Concl (II) IX 11 (p118) ldquoMirabilia artis magicae non sunt nisi per unionem et actuacionem eorum quae
seminaliter et separate sunt in naturardquo 130 PICO Apologia pp 171-172 Veja-se discussatildeo aprofundada sobre o tema de ldquomaritarerdquo o mundo em Franco
BACCHELLI (2001 pp 72-73) 131 Concl (II) IX 13 (p118) ldquoMagicam operari non est aliud quam maritare mundumrdquo FARMER bem observa
que ldquoo homo-magus eacute um sacerdote coacutesmicordquo (p498) 132 Concl (II) IX 12 (p118) ldquoForma totius magicae uirtutis est ab anima hominis stante et non cadenterdquo 133 Segundo admite Paolo FORNACIARI tradutor e comentador das Conclusiones cabalisticae ldquonatildeo estamos
ainda em grau de esclarecer plenamente no estado atual dos estudos o significado da mensagem piquianardquo (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p16)
78
Alma e agrave Teologia difusos entre as seacuteries da inteira obra a segunda pode ser
depreendida das correspondecircncias encontradas entre as seacuteries finais das
Conclusiones que se relacionam agravequeles trecircs temas Veremos no proacuteximo Capiacutetulo
que tais temas estatildeo expostos de forma mais evidenciada na Oratio De Hominis
Dignitate concorrendo para a construccedilatildeo do homem piquiano Ademais as
constataccedilotildees levantadas acrescem algumas peccedilas ao tema principal a ser sintetizado
nas paacuteginas finais Resta pontuar que o debate no qual Pico discutiria suas Teses
esclarecendo quem sabe muitos de seus obscuros temas natildeo aconteceu Muitas
dentre aquelas doutrinas que natildeo poderiam ter seus conteuacutedos divulgados
continuaram com seu segredo resguardado
79
CAPIacuteTULO IV
A ORATIO E SEUS ELEMENTOS ASCENSIONAIS
A Oratio Ioannis Pici Mirandulani Concordiae Comitis134 foi considerada por
muitos a obra mais importante da literatura filosoacutefica do primeiro Renascimento135
Escrita para ser o discurso introdutoacuterio agraves Conclusiones a Oratio nunca foi
pronunciada e tampouco nominada foram seus editores e leitores a intitulaacute-la
ldquo(Oratio) De Hominis Dignitaterdquo (Discurso) Sobre a Dignidade do Homem nome
que apareceraacute apenas em sua ediccedilatildeo de 1557 Escrita em etapas que se alternaram
com a redaccedilatildeo das proacuteprias Conclusiones a Oratio foi definitivamente concluiacuteda
somente apoacutes a finalizaccedilatildeo das novecentas teses e quando algumas dentre elas jaacute
haviam sido submetidas a criacuteticas
Ultrapassando os limites do que seria uma simples introduccedilatildeo a obra natildeo
apenas esclarece a intenccedilatildeo pretendida com as Conclusiones como apresenta o
esboccedilo sinteacutetico daquele que seria o inteiro projeto de vida de seu autor razatildeo que
levou Burckhardt a chamaacute-la de ldquosuacutemulardquo do pensamento piquiano136 Com efeito o
breve texto guarda os principais motivos do pensamento de Pico a saber a
pluralidade das fontes a insistecircncia na conciliaccedilatildeo entre elementos considerados
usualmente diacutespares a presenccedila de elementos entatildeo considerados conservadores
tomados da tradiccedilatildeo medieval postos lado-a-lado com as frescas concepccedilotildees
humanistas da temaacutetica da dignidade a inovadora apresentaccedilatildeo da Cabala judaica A
Oratio natildeo apenas se ergue acima da ocasiatildeo para a qual foi criada como se apresenta
qual verdadeira declaraccedilatildeo filosoacutefica por si soacute razatildeo que a levou a ganhar fama
134 ldquoDiscurso de Giovanni Pico Mirandolano Conde de Concoacuterdiardquo Para o texto integral da Oratio veja-se o De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari trad Eugenio GARIN Vallecchi 1942 pp101-
165 O texto encontra-se tambeacutem disponiacutevel no site ldquoPico Projectrdquo convecircnio da Universidade de Bologna com a Brown University Haacute duas principais redaccedilotildees da Oratio a chamada Palatina copiada pelo humanista contemporacircneo de Pico Giovanni Nesi descoberta por Eugenio Garin e contida no codex Palatino 885 (ex 777) na Biblioteca Nazionale de Firenze (cf Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p56) e aquela entregue para ediccedilatildeo quase dois anos apoacutes a morte de Pico pelo sobrinho Gianfrancesco Haacute algumas (poucas) diferenccedilas entre as duas redaccedilotildees como o elogio de reconhecimento a Flavio Mitridate presente na primeira e que natildeo aparece em outras ediccedilotildees (cf Paolo Edoardo FORNACIARI Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione 2010 p LXXIX) NOTA As traduccedilotildees aqui apresentadas das citaccedilotildees foram feitas a partir do texto latino traduzido para o italiano na ediccedilatildeo acima mencionada de Eugenio Garin considerada pelos especialistas como bastante fiel ao pensamento de Pico Garin utilizou-se especialmente da ediccedilatildeo da De Hominis Dignitate editada em Basileacuteia em 1537 Foram tambeacutem utilizadas como paracircmetros as traduccedilotildees para o portuguecircs de Maria de Lurdes Sirgado Ganho e de Luiz Feracine ndash sendo que a autora portuguesa faz algumas omissotildees pouco relevantes em sua traduccedilatildeo Para os dados completos das vaacuterias ediccedilotildees veja-se ldquoPremessa ai Testirdquo na traduccedilatildeo das Conclusiones Nongentae de Albano Biondi 1995 pp3-5
135 Veja-se Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano Meacutexico 1970 p 91 Tambeacutem Eugenio Garin e Ernst Cassirer consideram o Discurso como a obra mais famosa do lsquo400 Em outra obra Concetti Rinascimentali dellrsquouomo ed altri saggi (1978 p132) reflete KRISTELLER que o Discurso conteacutem os fermentos mais patentes que caracterizam a eacutepoca do Renascimento Pier Cesare BORI considera que essas satildeo as paacuteginas ldquomais ceacutelebres do Humanismo italianordquo (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564) Para Mariateresa BROCCHIERI trata-se do ldquocoroamento do trabalho de Picordquo em razatildeo de sua singular qualidade (Pico della Mirandola 2011 p78)
136 Jacob BURCKHARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1927 vol II p95
80
proacutepria e a se firmar de forma independente das Teses ndash a ponto de Eugenio Garin
intitulaacute-la ldquoManifesto do Renascimentordquo137 expressatildeo muito bem aceita A Oratio eacute
essencialmente uma reflexatildeo sobre o homem construiacuteda a partir de uma enredada
estrutura que se apoia sobre um conjunto de doutrinas pertencentes a diferentes
periacuteodos da Histoacuteria do Pensamento
As duas principais linhas interpretativas concernentes ao todo da obra
piquiana podem ser tomadas como modelos de interpretaccedilatildeo de sua parte menor a
Oratio visto que nesta se encontram presentes vaacuterios elementos que se repetiratildeo nas
obras posteriores Uma tendecircncia dominante seguiu o influxo iniciado por Ernst
Cassirer e Giovanni Gentile confirmado anos depois por Eugenio Garin e Paul Oskar
Kristeller que sustenta as conexotildees entre Pico e a cultura maacutegica astroloacutegica
hermeacutetica e cabaliacutestica Outra tendecircncia protagonizada por Henri De Lubac em
seu Pic de la Mirandole138 afirmou sua continuidade com a tradiccedilatildeo teoloacutegica
fundamentada em uma heranccedila biacuteblica-judaica que perpassa os primeiros Padres e
alcanccedila a teologia escolaacutestica No entanto quaisquer diferenccedilas de perspectiva que
sigam tais orientaccedilotildees podem ser prontamente dirimidas quando unificadas sob a
aboacutebada da Concoacuterdia as linhas da obra mostram de forma bastante clara a
intenccedilatildeo de harmonizar entre si natildeo apenas doutrinas teoloacutegicas e filosoacuteficas
ocidentais como tambeacutem de harmonizaacute-las com o pensamento de outras culturas nos
moldes que o autor gostaria que houvesse em sua almejada pax filosoacutefica139
Entre os campos filosoacuteficos e teoloacutegicos associados a legados ocidentais e
orientais dois significativos temas podem ser observados no ldquomanifestordquo e tecircm sido
ressaltados pelos comentadores de forma quase unacircnime (a) a questatildeo da Dignidade
ndash que contempla o sub-tema da liberdade ndash e (b) a questatildeo da Concoacuterdia ambos
verificados a seguir com a finalidade de natildeo ocultar do leitor as interpretaccedilotildees mais
consensuais Seraacute proposto um terceiro tema parte preciacutepua deste Capiacutetulo presente
em vaacuterios momentos da obra e que natildeo tem recebido o devido destaque dos
comentadores (c) o percurso ascensional A aproximaccedilatildeo direta ao texto piquiano
mostra-se a melhor forma para constatar a presenccedila do elemento asceacutetico qual fio
condutor a unir as diferentes doutrinas trazidas no percurso histoacuterico percorrido por
Pico
137 GARIN ldquoIntroduzionerdquo a De Hominis Dignitate Heptaplus etc 1942 p23 138 Em nossa bibliografia utilizou-se a traduccedilatildeo italiana de Henri De LUBAC realizada por GColombo Pico
della Mirandola lrsquoalba incompiuta del Rinascimento 2016 139 Pier Cesare BORI apresenta uma anaacutelise pormenorizada das duas formas interpretativas citadas
segmentando de um lado as passagens biacuteblicas-teoloacutegicas da De Hominis Dignitate e de outro as maacutegicas etc (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996) Observa o autor que dentre as tendecircncias interpretativas dominantes destaca-se a originalidade de H Reinhardt em seu Freiheit zu Gott Der Grundgedanke des Systematikers Giovanni Pico della Mirandola que aponta para o caraacuteter preacute-moderno do pensamento sistemaacutetico de Pico
81
1 O tema da Dignidade do homem
Embora a Oratio tenha passado agrave Histoacuteria da Filosofia como o manifesto
acerca da dignidade do homem muito em razatildeo do nome dado agrave sua publicaccedilatildeo
realizada no seacuteculo XVI o tema da dignidade natildeo foi originalidade de Pico e algumas
variaccedilotildees de seu significado pedem uma reflexatildeo
Durante o Humanismo renascentista o tema da dignidade tornou-se bastante
precioso e levou alguns pensadores a buscarem fundamentos a partir dos primeiros
Padres para rebater a supressatildeo da questatildeo ocorrida em certos periacuteodos da Idade
Meacutedia Pode-se dizer que a ideia da Queda de Adatildeo encerra como consequecircncia a
perda de posiccedilatildeo hieraacuterquica do homem que em alguns momentos literaacuterios foram
registrados como uma perda de valoraccedilatildeo da qualidade do proacuteprio homem140
Sobretudo no baixo Medievo natildeo poucos teoacutelogos foram tomados de certo
pessimismo metafiacutesico perante tal condiccedilatildeo Um exemplo emblemaacutetico da questatildeo foi
postulado por Lotharii Cardinalis o influente papa Inocecircncio III que no seacuteculo XIII
em De miseria humane conditionis afirmava que o homem eacute ldquoindigno produtor de
lecircndeas piolhos vermes urina e fezesrdquo Tal afirmaccedilatildeo apenas confirmava a de Pedro
Damiatildeo que no seacuteculo XI proclamava ser o homem ldquouma criatura vil massa de
podridatildeo poacute e cinzardquo141 Diante de tal desencanto poucos seacuteculos mais tarde alguns
humanistas sentiram-se levados a responder a Inocecircncio III buscando
fundamentaccedilatildeo especialmente em Lactacircncio e Agostinho que haviam promovido o
reconhecimento do valor do homem apoiados no princiacutepio de sua criaccedilatildeo agrave imagem
de Deus142
O tratado inaugural acerca da dignidade humana primeira resposta textual a
Inocecircncio III surge com Bartolomeo Fazio que o escreve em contexto religioso e sob
inspiraccedilatildeo monaacutestica143 Seu contemporacircneo Lorenzo Valla em De Libero Arbitrio
de 1436 acresce elementos agrave reflexatildeo ao promover a valorizaccedilatildeo do livre arbiacutetrio
voltado sobretudo para o domiacutenio que o homem pode ter das forccedilas da natureza
introduzindo assim a discussatildeo teoreacutetica renascentista acerca da liberdade e
140 A ideia de miserabilidade humana remonta ateacute onde se sabe a Moiseacutes o homem embora criado agrave imagem
de Deus traz em si ldquoo jumento o reacuteptil e a bestardquo (Henri de LUBAC Pico della Mirandola LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento 2016) O tema relacionado agrave concepccedilatildeo da Queda e as consequentes formas de ldquolerrdquo o homem em uma estrutura hieraacuterquica teoloacutegica permite a elaboraccedilatildeo de uma tese por si soacute O caraacuteter ldquogeneacutericordquo de nossa abordagem visa salientar algumas interpretaccedilotildees mais significativas e pontuais da questatildeo
141 Petrus Damianus ou mais tarde San Pier Damiani foi uma autoridade bastante considerada no preacute-Humanismo Dante situou o cardeal reformador que seria alccedilado a Doutor da Igreja em 1823 num dos mais altos ciacuterculos do Paraiacuteso como precursor de Satildeo Francisco de Assis A citaccedilatildeo encontra-se em NUNES 1978 p 64 apud Antonio VALVERDE ldquoAportes a Oratio de Hominis Dignitate de Pico della Mirandolardquo in Revista de Filosofia Aurora v21 n29 2009 p464
142 Em relaccedilatildeo agrave valoraccedilatildeo do homem o influxo de Lactacircncio e Agostinho se manteve ateacute boa parte da Primeira Idade Meacutedia Algumas obras de Agostinho que abordam o tema satildeo De Doctrina Christiana e as Confissotildees Com relaccedilatildeo a tal influxo haacute que se observar que o valor do homem estava relacionado com sua criaccedilatildeo agrave imagem de Deus sendo sua salvaccedilatildeo advinda da redenccedilatildeo em Cristo O movimento humanista comeccedila de forma embrionaacuteria a vislumbrar ndash e postular ndash a valoraccedilatildeo do homem em razatildeo de sua liberdade ligada agrave proacutepria responsabilidade ndash o que levaria a uma concepccedilatildeo de salvaccedilatildeo relacionada agraves suas escolhas
143 O historiador Bartolomeo Fazio foi levado a escrever por certo monge beneditino que precisava de uma complementaccedilatildeo para o De miseria humane conditionis de Inocecircncio III Para maiores detalhes acerca de Fazio consultar Jacob BURCKHARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1902
82
necessidade ndash e dando o passo inicial para um longo processo de ruptura entre Feacute e
Filosofia144 Quase duas deacutecadas mais tarde Giannozzo Manetti amplia a questatildeo
com seu tratado De Dignitate et Excellentia Hominis escrito em 1452 no qual refuta
ponto a ponto o profundo pessimismo expresso por Inocecircncio III sobre a miseacuteria
humana estabelecendo o mundo intelectual do vir-a-ser oposto ao mundo natural
do que meramente eacute145 Manetti retoma ainda na mesma obra a questatildeo da
soberania do homem que havia sido lanccedilada por Valla ideia de cunho biacuteblico
expressa no Gecircnesis 2 (representada pela faculdade dada ao homem de atribuir
nomes) que seraacute mais tarde reafirmada por Marsilio Ficino e Pietro Pomponazzi146
Assim que embora o Discurso de Pico tenha sido quase unanimemente
celebrado em funccedilatildeo de certo entendimento ao redor da questatildeo da dignidade
humana fato eacute que o tema foi amplamente explorado bem antes do advento do
Mirandolano tendo continuado em discussatildeo nos seacuteculos XVI e XVII147 Contudo e
apesar de preservar pouca conexatildeo orgacircnica com o humanismo de sua eacutepoca o tema
da dignidade apresenta relevacircncia na obra de Pico natildeo obstante se faccedilam uacuteteis uma
ressalva e algumas distinccedilotildees entre seu desenvolvimento e o de seus antecessores
A ressalva situa-se no emprego e entendimento do termo ldquodignidaderdquo que
devido agraves variaccedilotildees sofridas ao longo da histoacuteria pode ter suscitado interpretaccedilotildees
tantas vezes equivocadas O tiacutetulo De Hominis Dignitate como foi visto natildeo foi obra
de Pico mas escolha poacutestuma O Autor ademais utiliza a palavra ldquodignidaderdquo apenas
uma vez em todo o seu Discurso ndash e natildeo para qualificar o homem148 No decorrer dos
seacuteculos o termo tem sido utilizado em grande parte das vezes como sinocircnimo de
virtude ou hombridade tendo sido essa sua principal acepccedilatildeo desde alguns escritos
da Antiguidade Entretanto no seacuteculo VI Boeacutecio deu novo rumo ao conceito de
dignitas ajudando a dirimir a ideia tradicional romana que dava agrave palavra a
envergadura de honradez e respeitabilidade que pressupunha a virtude modificando
a concepccedilatildeo trazida pelas leituras de Ciacutecero de considerar a honra como
144 Ernst CASSIRER Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1977 pp 131-132 145 Sobre o historiador Giannozzo Manetti veja-se BURCKHARDT 1991 p 170-179 LUBAC Pico della
Mirandola-LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento 2016 pp 247-259 Acerca do conteuacutedo de Manetti comenta CASSIRER que ldquosomente no interior do vir-a-ser o espiacuterito do homem encontraria sua morada e daria provas de sua dignidade e liberdaderdquo (Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1977 p 135 Para maiores detalhes sobre a questatildeo veja-se ainda Giovanni GENTILE Giordano Bruno e il pensiero del Rinascimento 1991 p66
146 Na ideia de soberania expressa por Ficino GENTILE aponta para a origem do ldquoregnum hominisrdquo (opcit p 66) Pomponazzi trata do tema em sua obra De incantationibus de 1520 Para outros detalhes veja-se GARIN Lo Zodiaco della Vita 2007 p116
147 Para toda a questatildeo veja-se em Antocircnio VALVERDE o toacutepico ldquoConcepccedilotildees distintas de dignidade humana da Antiguidade ao Renascimentordquo (Aportes a Oratio de Hominis Dignitate 2009) Ainda GARIN Lrsquoumanesimo Italiano 2008 Note-se que outros importantes autores aleacutem dos citados escreveram sobre o tema da dignidade como Petrarca (Scipio Africanus) Coluccio Salutati (De Herculegrave eiusque laboribus) Poggio Bracciolini (De Nobilitate) e Landino (De nobilitate animae) entre outros No seacuteculo XVI o tema da dignidade humana passa por forte criacutetica nas obras dos reformadores Lutero e Calvino e jaacute no XVII eacute retomado pelos platocircnicos de Cambridge
148 PICO Oratio p123 ldquo[]natildeo soacute os misteacuterios mosaicos ou os cristatildeos mas tambeacutem a teologia dos antigos nos mostra o valor e a dignidade das artes liberais que estou a discutirrdquo (ldquoVerum enimvero nec Mosaica tantum aut Christiana mysteria sed priscorum quoque teologia harum de quibus disputaturus accessi liberalium artium et emolumenta nobis et dignitatem ostenditrdquo)
83
manifestaccedilatildeo da dignidade149 Em seu De consolatione Philosophiae o termo
dignitas assume uma caracteriacutestica neutra perdendo a valecircncia positiva que lhe era
atribuiacuteda ateacute entatildeo (honor et dignitates non sunt summum bonum)150 Mais tarde jaacute
durante a Idade Meacutedia e a partir dos rastros de Boeacutecio a dignitas passa a ser
utilizada na terminologia teoloacutegico-filosoacutefica sob o significado de princiacutepio filosoacutefico
geral ou axioma postulado151 Por fim aquela que seria uma quarta acepccedilatildeo situa a
dignitas na especiacutefica categoria das hierarquias marcando assim uma posiccedilatildeo
dentro de um sistema hieraacuterquico Esse eacute o sentido que parece ser melhor extraiacutedo do
texto piquiano dentro de um contexto cosmoloacutegico que contempla uma seacuterie
ordenada de graus e dignidades ndash portanto de valoraccedilatildeo neutra ndash onde o homem eacute
colocado graccedilas a suas intriacutensecas caracteriacutesticas152
Quanto agraves principais dessemelhanccedilas observadas na reflexatildeo sobre o homem
realizada na Oratio em comparaccedilatildeo aos conteuacutedos verificados em obras de
humanistas anteriores chamam a atenccedilatildeo alguns pontos
a) As contribuiccedilotildees que os filoacutesofos humanistas deram agrave questatildeo da dignidade
ndash em se assumindo o entendimento que daacute ao termo a valecircncia positiva de virtude ndash
embora sem duacutevida dotadas de caracteriacutesticas que as distinguem entre si estiveram
voltadas em linhas gerais para a capacidade de utilizaccedilatildeo da razatildeo em acircmbito da
esfera civil ou do uso de uma potencial soberania sobre os reinos inferiores Sob tal
foco o homem era dignificado atraveacutes de valores como o respeito ao proacuteximo o
princiacutepio do dever e a busca pela felicidade Esse foi o caso da consistente reflexatildeo de
Giannozzo Manetti voltada sobretudo agrave questatildeo da atividade humana em termos
morais153 Tambeacutem para Coluccio Salutati e seu disciacutepulo Leonardo Bruni a perfeiccedilatildeo
moral do homem se traduzia de forma perfeita no ideal da vida ciacutevica Lorenzo Valla
por sua vez natildeo apenas se empenhou para afirmar a noccedilatildeo de soberania do homem
sobre a natureza anteriormente mencionada como valorizou a vida mundana em
todos os seus aspectos contra qualquer negaccedilatildeo asceacutetica Em uma famosa polecircmica
antiestoacuteica defendia que mesmo na natureza e na carne pode ser reconhecida a obra
de Deus154 A anaacutelise de Pico embora atuando no cenaacuterio antropoloacutegico que ocupava
espaccedilo cada vez maior dentro dos studia humanitatis acrescenta ao problema da
149 A fundamentaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo estaacute desenvolvida na obra de Mette LEBECH On the Problem of Human
Dignity A Hermeneutical and Phenomenological Investigation Wurzburg 2009 sobretudo p 62 150 BOEacuteCIO A Consolaccedilatildeo da Filosofia III 151 Veja-se Tomaacutes de AQUINO In Met III 5 390 VICO em Scienza Nuova manteacutem o uso de dignitas em seu
significado de ldquoaxiomardquo na parte em que trata ldquodos Elementosrdquo Essa utilizaccedilatildeo continuou ainda na Idade Moderna veja-se Galilei na passagem ldquoa terra natildeo pode separar-se de sua natureza de trecircs movimentos diversos ou seria necessaacuterio rejeitar muitas das dignidades manifestasrdquo (Cf Lettera a Francesco Ingoli in Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei (org) FAVARO 1933 pp 509-61)
152 Enquanto na Oratio Pico utiliza apenas uma vez o termo ldquodignidaderdquo (e natildeo no contexto de qualificaccedilatildeo do homem) no Heptaplus Pico falaraacute diretamente de dignidade do homem como posiccedilatildeo especial central dentro de uma escala ldquoNoacutes procuramos no homem uma nota que lhe seja peculiar com a qual se explique a dignidade que lhe eacute proacutepriardquo (Heptaplus V 6 ed 1942 p303) E ainda ldquoDevemos nos guardar em natildeo apreciar o grau de dignidade em que fomos colocadosrdquo (V 7 p307)
153 Cf De Dignitate et Excellentia Hominis Ver o toacutepico concernente a Manetti em GARIN Lrsquoumanesimo Italiano
154 GARIN LUmanesimo italiano 2008 respectivamente pp 69 e 62
84
filosofia moral uma dimensatildeo quase que estritamente metafiacutesica155 Essa distinccedilatildeo eacute
evidenciada logo na primeira paacutegina da Oratio em que o autor demonstra
insatisfaccedilatildeo com os enaltecimentos ateacute entatildeo proferidos aos atributos da natureza
humana certamente referindo-se agraves natildeo poucas obras anteriores escritas em seu
seacuteculo Entre os argumentos ldquoutilizados por muitosrdquo acerca da grandeza humana
Pico destaca o quase unacircnime elogio feito ao papel do homem qual ldquoviacutenculo das
criaturas superiores e inferioresrdquo ou ldquointeacuterprete da natureza em virtude da agudeza de
seus sentidos do poder indagador da razatildeo e da luz de seu intelectordquo Essas
qualidades no entanto natildeo o satisfazem e levam-no a um questionamento que natildeo
apenas sinaliza a criacutetica a seus antecessores como lhe permite ingressar em seu
argumento metafiacutesico
Grandes coisas estas sem duacutevida mas natildeo as mais importantes
isto eacute natildeo tais que consintam a reivindicaccedilatildeo do privileacutegio de
uma admiraccedilatildeo ilimitada Porque de fato natildeo deveremos noacutes
admirar mais os anjos e os beatiacutessimos coros celestes156
b) A pergunta introduz a reflexatildeo de Pico acerca da natureza indefinida do
homem nosso segundo ponto distintivo Em elaborado discurso o autor postula
atraveacutes de sua resposta a natureza ontologicamente indeterminada do homem que o
distingue tanto do mundo natural quanto do mundo angeacutelico abrind0-lhe a
possibilidade de se automodelar pelo uso que faz de sua faculdade de escolha Tal
natureza indeterminada natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo no homem mas ao contraacuterio um
privileacutegio que lhe permite natildeo ser constrangido por nenhuma limitaccedilatildeo e que lhe daacute o
atributo de em conformidade com sua vontade degenerar ou se regenerar A
concepccedilatildeo se erige atraveacutes das palavras proferidas ao primeiro homem pelo ldquodeus-
artiacuteficerdquo ndash personagem do Mito da Criaccedilatildeo piquiano
lsquoNatildeo te fizemos nem celeste nem terreno nem mortal nem
imortal a fim de que tu aacuterbitro e soberano artiacutefice de ti mesmo
te plasmasses e te moldasses na forma que tivesses
155 A filosofia moral natildeo eacute irrelevante para Pico ao contraacuterio eacute um estaacutegio importante de evoluccedilatildeo da posiccedilatildeo
humana como seraacute visto Mas natildeo desfruta da mesma importacircncia que para seus colegas Coluccio Salutati por exemplo em discurso contra a filosofia teoacuterica-metafiacutesica e a favor da moral escreveria em seu De nobilitate legum et medicinae ldquoMuito me admira afirmares que a sabedoria consiste na contemplaccedilatildeo cuja serva seria a prudecircncia havendo entre elas a mesma relaccedilatildeo que haacute entre o administrador e o senhor e dizeres que a sapiecircncia eacute a maior das virtudes pertencente agrave melhor parte da alma que eacute do intelecto e que a felicidade consiste em agir conforme a sapiecircncia E acrescentas que sendo a metafiacutesica a uacutenica ciecircncia livre o filoacutesofo quer que a especulaccedilatildeo preceda em tudo a accedilatildeo Mas a verdadeira sapiecircncia natildeo consiste como crecircs na especulaccedilatildeo pura Se tirares a prudecircncia natildeo acharaacutes nem sapiente nem sapiecircncia Chamarias porventura de sapiente a quem houvesse co-nhecido coisas celestes e divinas sem que houvesse provido a si mesmo sem que houvesse sido uacutetil aos amigos agrave famiacutelia aos parentes e agrave paacutetriardquo No mesmo espiacuterito Leonardo Bruni em Isagogicon moralis disciplinae (1424) afirmava a superioridade da filosofia moral sobre a filosofia teoacuterica Esse mostrou-se um vieacutes caracteriacutestico de muitos humanistas o de que soacute a filosofia moral seria ativa Veja-se ampla discussatildeo em GARIN LUmanesimo italiano 2008
156 PICO Oratio p102 ldquo(Horum dictorum rationem cogitanti mihi non satis illa faciebant quae multa de humanae naturae praestantia afferuntur a multis esse hominem creaturarum internuntium superis familiarem regem inferiorum sensuum perspicacia rationis indagine intellegentiae lumine naturae interpretem stabilis aevi et fluxi temporis interstitium er ndash quod Persae dicunt ndash mundi copulam immo hymenaeum ab angelis teste Davide paulo deminutum) Magna haec quidem sed non principalia id est quae summae admirationis privilegium sibi iure vindicent Cur enim non ipsos angelos er beatissimos caeli choros magis admiremurrdquo
85
seguramente escolhido Poderaacutes degenerar nas coisas inferiores
que satildeo os brutos poderaacutes regenerar-te ateacute agraves realidades
superiores que satildeo divinas por decisatildeo da tua vontadersquo157
A passagem que se estabelece como a mais celebrada da inteira obra piquiana
ndash e sobre a qual recai a parte majoritaacuteria das leituras que afirmaram a dignificaccedilatildeo do
homem ndash apresenta um problema de ordem protoloacutegica que concerne agrave origem
teoloacutegica do homem Pico natildeo reafirma a dignidade do homem com base em sua
semelhanccedila em Deus sem prejuiacutezo de sua feacute a originalidade158 de seu homem
consiste conforme suas palavras em natildeo ter uma natureza predefinida mas em ser
ldquoopus indiscretae imaginisrdquo159 A natildeo-determinaccedilatildeo do homem mais do que uma
ausecircncia se daacute em razatildeo de uma demasia jaacute que nele encontram-se todas as
sementes situaccedilatildeo que natildeo ocorre com as bestas (que ldquotrazem consigo tudo [e
apenas] aquilo que depois teratildeordquo) e tampouco com os espiacuteritos superiores (que
ldquodesde o princiacutepio ou pouco depois foram o que seratildeo eternamenterdquo)160
c) O terceiro ponto de sutil diferenccedila em relaccedilatildeo ao anterior apresenta uma
distinccedilatildeo na posiccedilatildeo hieraacuterquica do homem dentro do universo que ocupa ndash um
problema que chamariacuteamos de ordem cosmoloacutegica Embora sem negar a posiccedilatildeo
central do homem aceita na teologia medieval (ldquoo artiacutefice tomou o homem de
natureza indefinida e colocou-o no meio do mundordquo)161 Pico distancia-se
conscientemente da concepccedilatildeo hieraacuterquica mais usual conferindo ao homem um
novo status no universo Ele havia aprendido com seus principais mestres
escolaacutesticos que o lugar do homem estava determinado dentro da ordenaccedilatildeo
universal encontrando-se entre os reinos elementar celestial e angeacutelico Em sua
cosmovisatildeo o homem eacute retirado da fixidez escalar dos mundos ao ser-lhe
apresentada a possibilidade de ser e participar em todos os reinos No ponto (b)
acima trata-se de uma questatildeo de ldquosubstacircnciardquo jaacute que o homem carrega sementes
que os seres dos demais graus natildeo possuem Agora se trata de uma questatildeo de
mobilidade em razatildeo de seu proacuteprio arbiacutetrio Partindo de sua posiccedilatildeo central o
homem pode descer aos niacuteveis subumanos ou se elevar a niacuteveis supra-humanos
157 Oratio p 106 ldquoNec te caelestem neque terrenum neque mortalem neque immortalem fecimus ut tui ipsius
quasi arbitrarius honorariusque plastes er fictor in quam malueris tu te formam effingas Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerarirdquo
158 A concepccedilatildeo da natureza indeterminada do homem foi considerada e aceita como originalidade de Pico della Mirandola Fato certo eacute que tal originalidade se houver deve ser admitida no que concerne agrave tradiccedilatildeo teoloacutegica ocidental ndash entenda-se na Era Cristatilde Antes desse periacuteodo haacute registros de concepccedilotildees similares em outras tradiccedilotildees que natildeo apenas eram conhecidas por Pico como foram utilizadas de forma aberta na De Hominis Dignitate Veja-se mais no toacutepico ldquoO tema da Concoacuterdiardquo
159 ldquoObra de imagem indeterminadardquo Conforme a Oratio ldquoIgitur hominem accepit indiscretae opus imaginis atque in mundi positum meditulliordquo Provavelmente ao escrever que o homem eacute ldquoobra de imagem indeterminadardquo Pico natildeo pretendia contradizer qualquer noccedilatildeo teoloacutegica referente agrave complexa problemaacutetica da ldquoimagem-semelhanccedilardquo de Deus fazendo apenas um uso retoacuterico das palavras Essa talvez tenha sido a razatildeo de Garin ter optado por traduzir o trecho ldquoindiscretae imaginisrdquo por ldquonatureza indeterminadardquo ao inveacutes de ldquoimagem indeterminadardquo ldquoPerciograve [lrsquoottimo artefice] accolse lrsquo uomo come opera di natura indefinitardquo (ed 1942 pp104-105)
160 Oratio p106 ldquoBruta simulatque nascuntur id secum afferunt (ut ait Lucilius) e bulga matris quod possessura sunt Supremi spiritus aut ab initio aut paulo mox id fuerunt quod sunt futuri in perpetuas aeternitates Nascenti homini omnifaria semina et omnigenae vitae germina indidit paterrdquo
161 Oratio p106 ldquoMedium te mundi possuirdquo
86
condiccedilotildees que os elementos dos demais niacuteveis inclusos os anjos natildeo podem
experimentar
O tema da dignidade contempla ainda imbuiacutedo entre suas linhas um
importante desdobramento que concerne ao problema da liberdade do homem162 A
liberdade postulada por Pico natildeo se encontra pronta e soacute poderaacute ser adquirida
atraveacutes de constante exerciacutecio para sua efetivaccedilatildeo jaacute que a natureza humana abriga
vaacuterias formas de resistecircncia a tal efetivaccedilatildeo Uma mudanccedila de tocircnica que passa do
teor elogioso inicial para uma chamada de atenccedilatildeo em direccedilatildeo agraves fraquezas da
constituiccedilatildeo humana ndash com a subsequente prescriccedilatildeo do uso da liberdade como
soluccedilatildeo ndash pode ser observada nesse sentido quando se seguem as paacuteginas do
Discurso Ora pouco apoacutes afirmar que o homem pode ser tudo inclusive partiacutecipe da
vida angeacutelica Pico reflete que natildeo podemos atingir o modelo de vida dos Querubins
ldquonoacutes que somos carne e que temos o gosto das coisas terrenasrdquo Seraacute antes necessaacuterio
ldquodominar com a ciecircncia moral o iacutempeto das paixotildees dissipar a treva da razatildeo com a
dialeacutetica limpar a alma da ignoracircncia e do viacutecio para que as afecccedilotildees natildeo se
desencadeiem cegamente e tampouco a razatildeo imprudente algumas vezes delirerdquo163
Assim embora as primeiras paacuteginas do Discurso possam levar a qualificaacute-lo
como um tratado de otimismo em relaccedilatildeo ao homem o tom inicial de exaltaccedilatildeo (ldquooacute
suma e admiraacutevel felicidade do homem ao qual eacute concedido obter o que deseja ser
aquilo que querrdquo)164 eacute prontamente substituiacutedo pela constataccedilatildeo das dificuldades
ocasionadas por sua experiecircncia na mateacuteria seguida pela exortaccedilatildeo a assumir uma
responsabilidade eacutetica em relaccedilatildeo ao seu papel A argumentaccedilatildeo do tema se conclui
com a indicaccedilatildeo da utilizaccedilatildeo do livre-arbiacutetrio como meio de encetar sua necessaacuteria
transformaccedilatildeo Haacute pois nessa trajetoacuteria um pronunciado aspecto dialeacutetico165 na
medida em que Pico expotildee a necessidade do contiacutenuo exerciacutecio da razatildeo e de seu
poder indagador que o capacita a fazer escolhas Sob esse enfoque o problema
ontoloacutegico da natureza humana eacute colocado a posteriori nunca a priori diversamente
dos animais e anjos cuja natureza fixa natildeo pode ser modificada o homem pode de
acordo com suas escolhas transformar a proacutepria natureza
Finalmente haacute que se observar que tal possibilidade implica dois preceitos
por um lado essa ideia carrega uma exigecircncia aparentemente contraditoacuteria
162 A temaacutetica da liberdade presente no Discurso tem sido celebrada por comentadores ao longo dos uacuteltimos
seacuteculos Dentre os contemporacircneos por todos aqueles que seguiram os passos de Cassirer e Garin embora se verifiquem algumas poucas discordacircncias William Craven natildeo concorda com essa celebraccedilatildeo e Brian Copenhaver afirma que natildeo haacute na Oratio nada das noccedilotildees de liberdade criatividade e individualidade que lhe foram atribuiacutedas (acerca de Craven e Copenhaver veja-se Jonathan MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 n p 78)
163 PICO Oratio p113 A reflexatildeo acerca da condiccedilatildeo instaacutevel do homem se manteraacute em obras posteriores em sua uacuteltima obra Disputationes adversus Astrologiam Divinatricem Pico fala de ldquonoacutes homuacutenculosrdquo (ed Vallecchi 1952 p444) No Heptaplus aquilo que rendia o homem um ldquodivino camaleatildeordquo era tambeacutem aquilo que o caracterizava como uma ldquotoupeira cegardquo o seu ser perenemente colocado no veacutertice da incerteza suspenso entre a ldquosuma miseacuteriardquo e a ldquosuma felicidaderdquo capaz mais de amar a verdade do que de possuiacute-la (De Hominis Dignitate etc 1942 p339)
164 Oratio p106 ldquoO summam dei patris liberalitatem summam et admirandam hominis felicitatem cui datum id habere quod optat id esse quod velitrdquo
165 Veja-se a propoacutesito a reflexatildeo de SIRGADO GANHO (ldquoComentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitaterdquo 2001 pp26-28) acerca da dimensatildeo dialeacutetica eacutetica e metafiacutesica que podem ser reconhecidas na obra de Pico
87
porquanto o livre-arbiacutetrio deveraacute ser ativado para que ocorra a autotransformaccedilatildeo
condiccedilatildeo que instaurando uma conjuntura ciacuteclica aumentaraacute o grau de sua liberdade
e consequentemente o poder de se transformar Por outro lado percebe-se nessa
situaccedilatildeo uma condenaccedilatildeo do homem agrave liberdade jaacute que ele teraacute de escolher por si a
proacutepria condiccedilatildeo ndash tese notaacutevel para a eacutepoca Como explica o deus-artiacutefice
lsquoA natureza bem definida dos outros seres eacute refreada por leis por
noacutes prescritas Tu pelo contraacuterio natildeo constrangido por
nenhuma limitaccedilatildeo determina-la-aacutes para ti segundo o teu
arbiacutetriorsquo166
2 O tema da Concoacuterdia
As palavras iniciais que abrem o Discurso evidenciam a intenccedilatildeo de propor
uma filosofia conciliatoacuteria Dirigindo-se aos ldquopadri venerandirdquo (teoacutelogos e cardeais
para os quais satildeo apresentadas as justificativas) Pico dispotildee logo nas primeiras
linhas um autor da tradiccedilatildeo islacircmica acostado a outro da tradiccedilatildeo egiacutepcia O elogio
ao homem feito por Abdallah Sarraceno (ldquonada haacute de mais admiraacutevel do que o
homemrdquo) eacute comparado com a famosa sentenccedila de Hermes Trismegisto dirigida a
Ascleacutepio (ldquogrande milagre eacute o homemrdquo)167 Atraveacutes dessa escolha eacute dada autoridade a
um personagem proveniente do mundo islacircmico o maior dos antagonistas colocado
ao lado da entatildeo celebrada autoridade egiacutepcia dentro daquela Disputa que teria por
objetivo a paz filosoacutefica168
Li nos escritos dos Aacuterabes venerandos Padres que interrogado
Abdallah Sarraceno sobre qual fosse a seus olhos o espetaacuteculo
mais maravilhoso neste cenaacuterio do mundo tinha respondido
que nada via de mais admiraacutevel do que o homem Com esta
166 Oratio p106 ldquoTu nullis angustiis coercitus pro tuo arbitrio in cuius manu te posui tibi illam praefiniesrdquo 167 Eis a sentenccedila de Hermes na qual Pico se baseia ldquoPropter haec o Asclepi magnum miraculum est homo
animal adorandum et honorandum Hoc enim in naturam dei transit quasi ipse sit deus []rdquo (cf Corpus Hermeticum ed NOCK-FESTUGIEgraveRE Milano 2005 II)
168 Sobre Abdallah Sarraceno alguns comentadores acreditam tratar-se de Abd-Allah Ibn Al-Muquaffagrave escritor persa do seacuteculo VIII (cf FERACINE notas agrave Oratio 1999) Entretanto Pier Cesare Bori atraveacutes de uma pesquisa bastante aprofundada leva-nos a crer que se trate de Abdallah al-Tarjumacircn ou Anselmo Turmeda frade franciscano nascido em Palma de Maiorca no seacuteculo XIV estabelecido em Bolonha por razotildees de estudo Segundo sua autobiografia a Tuhfa ele teria recebido de um pio religioso a sugestatildeo de aproximar-se ao Islam e acabaria por converter-se na cidade de Tunis Em outra obra Disputa dellAsino de 1417 pode ser encontrada uma das fontes acerca da dignidade do homem na qual Turmeda apresenta um fundamento teoloacutegico muito similar agrave metaacutefora utilizada por Pico em seu Mito adacircmico Embora a Disputa dellAsino natildeo faccedila parte dos livros de Pico certamente a notiacutecia da disputa de Abdallah-Turmeda natildeo lhe era desconhecida Para maiores detalhes acerca de toda a questatildeo veja-se BORI I tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564 Do mesmo autor Pluralitagrave delle vie Milano 2000 pp43 ss Ainda ZAMBELLI Lapprendista stregone Astrologia cabala e arte lullina in Pico della Mirandola e seguaci 1995 p29
88
sentenccedila concorda aquela famosa de Hermes lsquoGrande milagre
oacute Ascleacutepio eacute o homemrsquo169
A passagem inaugura o elogio feito agrave filosofia de heterogecircneas escolas e
eacutepocas que perpassa todas as paacuteginas da Oratio como pode ser verificado atraveacutes de
variegadas tentativas de estabelecimento de acordo entre sistemas filosoacuteficos
considerados distintos170 Na passagem em que justifica a escolha dos temas das
Conclusiones Pico ressalta algumas dentre tais concordacircncias que natildeo se limitando
agrave Filosofia alcanccedilam a Teologia
[] insatisfeito por ter trazido aleacutem das doutrinas comuns
muitos assuntos da antiga teologia de Mercuacuterio Trismegisto
muitas das teorias dos Caldeus e de Pitaacutegoras muitos dos
escondidos misteacuterios dos Hebreus tambeacutem propus agrave discussatildeo
muitiacutessimos assuntos concernentes ao mundo natural e divino
encontrados e meditados por mim []Propus o acordo entre
Platatildeo e Aristoacuteteles [e] as sentenccedilas consideradas
contrastantes de Escoto e de Tomaacutes de Averroacuteis e de Avicena
que pelo contraacuterio satildeo concordantes171
Outras vaacuterias correspondecircncias satildeo efetuadas de forma fluiacuteda integrando
registros extraiacutedos do campo filosoacutefico teoloacutegico e misterioloacutegico em um estilo
literaacuterio proacuteprio Em meio agrave narrativa que trata da distribuiccedilatildeo de talentos feita por
Deus (ldquosummus pater architectus Deusrdquo) em seu Mito adacircmico Pico busca concordar
a tradiccedilatildeo biacuteblica com a pagatilde-filosoacutefica atraveacutes da menccedilatildeo agrave passagem inicial do
Gecircnesis (II 1) sobre a origem do mundo harmonizada com a passagem platocircnica
descrita no Timeu 41 (b-d) ldquouma vez tudo realizado como Moiseacutes e Timeu
atestam172 pensou por uacuteltimo criar o homemrdquo173 A concepccedilatildeo de distribuiccedilatildeo de
arqueacutetipos na mesma narrativa eacute emprestada de outro diaacutelogo platocircnico o
Protaacutegoras em que eacute narrado o ldquoMito da Criaccedilatildeo do Homemrdquo174 A analogia eacute clara
169 Oratio p 102 ldquoLegi Patres colendissimi in Arabum monumentis interrogatum Abdalam Sarracenum
quid in hac quasi mundana scena admirandum maxime spectaretur nihil spectari homine mirabilius respondisse Cui sententiae illud Mercuri adstipulatur lsquoMagnum o Asclepi miraculum est homorsquordquo
170 Para a questatildeo da Concoacuterdia filosoacutefica como sendo a principal intenccedilatildeo de Pico ao redigir a Oratio veja-se Cesare VASOLI Imagini Umanistiche 1983 p5
171 Oratio pp144-46 ldquoPropterea non contentus ego praeter communes doctrinas multa de Mercurii Trismegisti prisca theologia multa de Chaldaeorum de Pythagorae disciplinis multa de secretioribus Hebraeorum addidisse mysteriis plurima quoque per nos inventa et meditata de naturalibus et divinis rebus disputanda proposuimus Proposuimus primo Platonis Aristotelisque [] Addidimus autem et plures locos in quibus Scoti et Thomae plures in quibus Averrois et Avicennae sententias quae discordes existimantur concordes esse nos asseveramusrdquo
172 Na passagem em questatildeo Pico refere-se a Moiseacutes como autor do Gecircnesis Ademais refere-se diretamente a Timeo di Locri filoacutesofo pitagoacuterico vivido no IV seacuteculo aC contemporacircneo de Platatildeo e autor da obra De Anima Mundi muito provavelmente o personagem que interage com Soacutecrates no diaacutelogo Timeu (Cf Enrico PEGONE tradutor de Timeu em Platone Tutte le Opere Roma Newton Compton Editori 2010) O trecho de Platatildeo que trata do assunto estaacute em Timeu 41-b ss
173 Oratio p 104 ldquoIdcirco iam rebus omnibus (ut Moses Timaeusque testantur) absolutis de producendo homine postremo cogitavitrdquo
174 PLATAtildeO Protaacutegoras 320d-321e Conta o mito que apoacutes terem os deuses modelado dentro da terra os gecircneros mortais Epimeteu torna-se o responsaacutevel pela distribuiccedilatildeo de suas capacidades Ao terminar a tarefa seu irmatildeo Prometeu descobre que todos os animais receberam qualidades harmoniosamente enquanto o homem estaacute nu descalccedilo sem cobertas e sem armas
89
ldquodos arqueacutetipos natildeo restava nenhum sobre o qual moldar a nova criatura [o homem]
e nem dos lugares em todo o mundo restava algum em que pudesse sentar-se o
contemplador do universordquo175 Algumas paacuteginas adiante recorre mais uma vez agrave
concordacircncia entre a tradiccedilatildeo biacuteblica-cristatilde (agora representada por Moiseacutes e os
Padres da Igreja) e a platocircnica quando ao discorrer acerca do caminho eacutetico de
aperfeiccediloamento aponta para o amor como possibilidade regeneradora
Moiseacutes amou o Deus que viu e promulgou ao povo como juiz
aquilo que antes tinha visto na montanha como contemplador
Eis porque no meio o Querubim com a sua luz nos prepara
para a chama seraacutefica [] Esse eacute o noacute das primeiras mentes a
ordem sapiencial que preside agrave filosofia contemplativa isso
devemos antes de tudo emular investigar e compreender 176
A menccedilatildeo agrave ordem angeacutelica eacute utilizada para acostar um teoacutelogo cristatildeo de
tradiccedilatildeo neoplatocircnica Dioniacutesio ao principal emissaacuterio da tradiccedilatildeo hebraica a
sublimidade dos Serafins seraacute alcanccedilada atraveacutes da luz querubiacutenica da mesma forma
que Moiseacutes atraveacutes do amor despertado pela visatildeo de Deus pocircde transmitir ao povo
o que havia visto quando se encontrava em estado de contemplaccedilatildeo A qualidade da
luz ndash atribuiacuteda aos querubins conforme se lecirc em Dioniacutesio177 ndash eacute diretamente
relacionada ao conhecimento advindo da contemplaccedilatildeo como seraacute verificado no
proacuteximo item Essa eacute uma funccedilatildeo intermediaacuteria entre as ordens angeacutelicas anterior e
posterior que busca alcanccedilar a dimensatildeo do amor absoluto tornando-a anaacuteloga agrave
funccedilatildeo intermeacutedia da alma humana Na continuidade da sentenccedila Pico efetua uma
analogia com o domiacutenio platocircnico ao prescrever que apoacutes se entregar agrave filosofia
contemplativa o homem poderaacute ser alccedilado ldquoaos fastiacutegios do amorrdquo retornando em
seguida devidamente preparado para as tarefas da accedilatildeo178
Uma concordacircncia de outra categoria eacute apontada na obra quando ao tratar do
problema da natureza do homem e de sua possibilidade de tudo ser Pico encontra
conformidades em tradiccedilotildees iacutempares como a hebraica a islacircmica a caldaica e a
grega esta uacuteltima representada pela filosofia pitagoacuterica e empedocliana e pela
religiosidade dos Misteacuterios helecircnicos Vejamos Pico se remete a alguns tipos de
transformaccedilotildees promovidas durante os cultos misteacutericos de antigas tradiccedilotildees Eacute o
caso da transformaccedilatildeo narrada por certo Ascleacutepio ateniense179 que durante os ritos
ldquodevido ao aspecto mutaacutevel e a uma natureza capaz de se transformarrdquo dizia-se
175 Oratio p104 ldquoVerum nec erat in archetypis unde novam subolem effingeret nec in thesauris quod novo
filio hereditarium largiretur nec in subselliis totius orbis ubi universi contemplator iste sederetrdquo 176 Oratio p112 ldquoAmavit Moses Deum quem vidit et administravit iudex in populo quae vidit prius
contemplator in monte Ergo medius Cherub sua luce et saraphico igni nos praeparat et ad Thronorum iudicium pariter Illuminat hic est nodus Primarum mentium ordo palladicus philosophiae contemplativae praeses hic nobis et aemulandus primo et ambiendus atque adeo comprehendendus estrdquo
177 PSDIONISIO AREOPAGITA De Coelesti Hierarchia VI-VII 178 O tema seraacute visto de forma aproximada no proacuteximo toacutepico 179 O Ascleacutepio ateniense citado por Pico natildeo eacute identificaacutevel conforme informa Luiz Feracine em sua traduccedilatildeo
da obra (1999) Certo eacute que Pico quer distingui-lo do conhecido Ascleacutepio de Trales na Liacutedia filoacutesofo neoplatocircnico e disciacutepulo de Amocircnio vivido no seacuteculo VI dC e que deixou um comentaacuterio sobre os primeiros sete livros da Metafiacutesica de Aristoacuteteles Pela referecircncia aos Misteacuterios que envolvem Proteu ndash no Hino oacuterfico 25 eacute feita menccedilatildeo a Proteu ndash eacute provaacutevel tratar-se de personagem de periacuteodo anterior agrave Era Cristatilde
90
simbolizado por Proteu180 Ou ainda das metamorfoses que ocorrem em cerimocircnias
secretas da misteriologia aramaica que ldquotransformam ora Enoch santo no anjo da
divindade e o chama malakh haacute-chekli-natildeh ora outros noutros espiacuteritos divinosrdquo181
Embora natildeo se tenha maiores esclarecimentos acerca dessas duas passagens eacute
possiacutevel afirmar que ambas corroboram como fundamentos acessoacuterios a concepccedilatildeo
piquiana da capacidade seja degenerativa que regenerativa do homem Tal ideia eacute
ilustrada na continuidade do texto pela referecircncia a Maomeacute (ldquoquem se afasta da lei
divina torna-se uma bestardquo) e em acircmbito grego pela referecircncia ao Pitagorismo e a
Empeacutedocles (ldquoe os Pitagoacutericos transformam os celerados em bestas e a acreditar em
Empeacutedocles ateacute mesmo em plantasrdquo)182 O trecho introduz um novo elemento entre
os temas lanccedilados na obra atraveacutes da alusatildeo agrave metempsicosis183 Em relaccedilatildeo ao
Pitagorismo Pico certamente se refere de forma direta ou indireta ao fragmento 21
de Xenoacutefanes quando alude agrave transformaccedilatildeo ldquodos celerados em bestasrdquo uacutenico
fragmento a trazer um conteuacutedo similar agrave passagem em questatildeo184 Jaacute Empeacutedocles
trata do tema em seu Purificaccedilotildees onde afirma que agrave semelhanccedila dos outros
daacuteimones fora tambeacutem ele condenado agrave mortalidade (mas que apoacutes um correto ciclo
de encarnaccedilotildees a divindade poderia ser novamente atingiacutevel)185 Embora Pico natildeo
aborde o tema da transmigraccedilatildeo diretamente em nenhuma de suas obras ndash nas
Conclusiones por exemplo a menccedilatildeo eacute feita por via obliacutequa ndash186 eacute bastante relevante
o aceno agrave possibilidade de que o processo de regeneraccedilatildeo e degeneraccedilatildeo do homem
pode se dar natildeo apenas no decurso de uma vida mas na decorrecircncia de vaacuterias ndash um
conteuacutedo que encontra correspondecircncias em algumas das principais doutrinas de
cunho esoteacuterico recepcionadas por Pico A passagem se conclui com uma fonte
extraiacuteda dos caldeus atraveacutes da qual o autor aproxima-se de sua principal concepccedilatildeo
a de que o homem carrega todas as sementes
180 Oratio p106 ldquoQuem non immerito Asclepius Atheniensis versipellis huius ei se ipsam transformantis
naturae argumento per Proteum in mysteriis significari dixitrdquo 181 Oratio p108 ldquoNam et Hebraeorum theologia secretior nunc Enoch sanctum in angelum divinitatis quem
vocant lsquomalakh haacute-chekli-natildehrsquo nunc in alia alios numina reformatrdquo Acerca da expressatildeo Malakh haacute-chekli-natildeh ndash escrita por Pico em ideogramas hebraicos e suprimida de vaacuterias traduccedilotildees inclusive da tradicional de Garin de 1942 ndash seu significado eacute ldquoo anjo de sheklinatildehrdquo De acordo com a Biacuteblia o patriarca Enoque natildeo teve a morte comum dos mortais (Gecircnesis V 21-24) o que o torna segundo a crenccedila um ldquoanjo da divindaderdquo Por isso a misteriologia aramaica conservada nos livros apoacutecrifos atribui a Enoque o nome de Metraton e assim eacute designado no Talmud e no Midrash De acordo com tal tradiccedilatildeo Metraton equivale a ldquoanjo em que subsiste o nome de Deusrdquo Por extensatildeo semacircntica chegou-se a identificar o nome Metraton com os atributos da divindade e com o proacuteprio ser divino resultando daiacute a figura do Mithra de Zaratustra Pico mais ortodoxo no assunto usa o termo sheklinatildeh no sentido figurado de esplendor ou manifestaccedilatildeo de Deus (cf nota agrave traduccedilatildeo de Luiz FERACINE 1999)
182 Oratio p108 ldquoEt Pythagorici scelestos homines in bruta deformant ei si Empedocli creditur etiam in plantasrdquo
183 A metempsicose doutrina de transmigraccedilatildeo da alma em corpos sucessivos manifesta-se no mundo grego por volta do final do seacuteculo VI aC de acordo com o mais antigo testemunho o de Piacutendaro em sua segunda Ode Oliacutempica de 476 aC (cf Walter BURKERT Antigos Cultos de Misteacuterio 1987 p97 e Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica 1993 p568) Conferir para maiores detalhes a obra de Gabriele CORNELLI (O Pitagorismo como Categoria Historiograacutefica 2011 p145 ss)
184 No famoso fragmento (21 B7 DK Dioacutegenes Laeacutercio VIII 36) um dos mais antigos testemunhos sobre o assunto Xenoacutefanes estaria zombando de Pitaacutegoras ao insinuar que ele teria visto em um catildeo a alma de um amigo A crenccedila pitagoacuterica na metempsicose eacute ainda mencionada por Iacuteon de Chios Heroacutedoto Filolau Aristoacuteteles (que a descreve como faacutebula pitagoacuterica) e Platatildeo
185 O mote transmigracionista estaacute ainda presente no Poema lustral de Empeacutedocles que narra a aventura da alma-daacuteimon banida do Olimpo dos bem-aventurados jogada num corpo e ligada ao ciclo dos nascimentos durante tal jornada passa pela condiccedilatildeo de ldquomenino e menina arbusto passarinho e mudo peixe do marrdquo Vejam-se os fragmentos em KIRK RAVEN SCHOFIELD Os Filoacutesofos Preacute-Socraacuteticos Lisboa 2007 pp296 329-330
186 Vejam-se as Conclusiones nrs (I) IV II 8 (Adelando Aacuterabe) (I) VIII 4 (Zoroastro)
91
O persa Evantes onde expotildee a teoria caldaica escreve que o
homem natildeo possui uma sua especiacutefica e nativa imagem mas
muitas estranhas e adventiacutecias Daiacute o dito caldaico de que o
homem eacute animal de natureza vaacuteria multiforme e mutaacutevel187
Quase ao encerramento de seu Discurso e assim como o fez nas Conclusiones
Pico aborda a questatildeo da Cabala procurando mostrar atraveacutes de alguns de seus
maiores representantes a concoacuterdia com o Cristianismo (ldquoli as mesmas coisas que
todos os dias lemos em Paulo e Dioniacutesio em Jerocircnimo e em Agostinhordquo) e com a
Filosofia (ldquoparece-nos ouvir Pitaacutegoras e Platatildeordquo)188 A busca da paz final eacute segundo
Pico o ponto em que todas as filosofias se unem em concoacuterdia para regozijar-se na
ldquosantiacutessima pazrdquo apregoada pelos cristatildeos ldquodesfrutar da amizade concorderdquo
pitagoacuterica e alcanccedilar a ldquoindissoluacutevel uniatildeordquo apregoada por Averroacuteis Essa eacute a maneira
escrita em formas diferentes por meio da qual ldquotodas as almas natildeo soacute se acordam
numa uacutenica Mente que estaacute acima de cada mente mas tambeacutem de uma maneira
inefaacutevel se fundem em uma soacuterdquo189
O tema da Concoacuterdia ocupa espaccedilo proeminente no pensamento de Giovanni
Pico cuja proposta eacute reclamar a verdade atraveacutes do constante exerciacutecio dialeacutetico dos
pontos de vista Tendo sido alcanccedilado o objetivo referente a cada saber individual
cujas especiacuteficas concepccedilotildees foram escritas para a discussatildeo no debate romano o
proacuteximo passo do autor seria o de comprovar o acordo entre as vaacuterias tradiccedilotildees
abordadas prerrogativa para estabelecer a unidade da verdade O tema aqui iniciado
necessaacuterio para a siacutentese final seraacute retomado no Capiacutetulo VII pois que cada forma de
filosofar apresentada pelo autor mostra-se como um caminho de aproximaccedilatildeo agrave
verdade que uma vez alcanccedilada prescinde das particularidades de cada forma
Veremos a seguir que para estabelecer o caraacuteter universal da verdade Pico percorre
doutrinas que confluem em relaccedilatildeo a um paradigma que se estabelece pela
consecuccedilatildeo de estaacutegios relacionados a uma evoluccedilatildeo asceacutetica
3 O tema da Ascese
A liberdade preconizada sob o tema da dignidade encontra-se sujeita agrave
efetivaccedilatildeo e suplantaccedilatildeo de certos estaacutegios Meacutetodos para percorrer caminhos
187 Oratio p108 ldquoIdcirco scribit Euantes Persa ubi Chaldaicam theologiam enarrat non esse homini suam
ullam et nativam imaginem extrarias multas er adventicias Hinc illud Chaldaeorum lsquoEnosh hu shinnuim vekammah tebhaoth baal hajrsquo idest homo variae ac multiformis et desultoriae naturae animalrdquo No texto original Pico apresenta em ideogramas aparentemente hebraicos a passagem referente ao dito caldaico Acerca de Evantes e de acordo com nota do tradutor FERACINE (1999) sua identidade eacute desconhecida
188 Oratio p160 ldquo[]eadem legi quae apud Paulum et Dionysium apud Hieronymum et Augustinum quotidie legimus In his vero quae spectant ad philosophiam Pythagoram prorsus audias et Platonem [hellip]rdquo
189 Oratio p118 ldquo[hellip]optata pace perfruemur pace sanctissima individua copula unanimi amicitia qua omnes animi in una mente quae est super omnem mentem non concordent adeo sed ineffabili quodam modo unum penitus evadantrdquo
92
asceacuteticos fazem parte das praacuteticas esoteacutericas apregoadas e utilizadas em natildeo poucas
tradiccedilotildees em sua maioria com o objetivo de alcanccedilar um estado de uniatildeo com o
Absoluto Pico utiliza-se de alguns exemplos ascensionais dentro do procedimento
escolhido para demonstrar a unidade da verdade exemplos cuja convergecircncia
doutrinaacuteria eacute esperada em esferas mais elevadas Na metade inicial da Oratio
evidenciam-se treze passagens distintas referentes a condutas asceacuteticas de
competecircncia teoloacutegica ou filosoacutefica as quais em se eliminando aquelas pertencentes
a uma mesma tradiccedilatildeo perfazem um total de sete tradiccedilotildees especiacuteficas Como
fundamentaccedilatildeo para o seu modelo de itineraacuterio asceacutetico Pico percorre as seguintes
doutrinas crenccedilas ou sistemas
1) A dialeacutetica segundo a filosofia platocircnica
2) O modelo angeacutelico postulado por Dioniacutesio Areopagita
3) As iniciaccedilotildees misteacutericas da tradiccedilatildeo grega
4) Os Mitos de Dioniso e de Osiacuteris
5) A simbologia do tabernaacuteculo de Moiseacutes pertencente agrave tradiccedilatildeo hebraica
6) As praacuteticas asceacuteticas pitagoacutericas
7) A misteriologia caldaica
Antes da verificaccedilatildeo de cada um desses itens cabe observar que ainda em
meio agrave narrativa de seu Mito adacircmico Pico introduz a primeira problemaacutetica de
percurso asceacutetico perfeitamente presente no coraccedilatildeo de sua reflexatildeo acerca da
dignidade humana Partindo da premissa de existecircncia de quatro niacuteveis hieraacuterquicos
existentes no homem entendidos como corpos efetivos ou como possibilidades eacute
efetuada uma analogia com os reinos que representam graus da hierarquia coacutesmica
postulada pelo autor ndash que seria mais tarde tratada no Heptaplus190 O mito chama
a atenccedilatildeo para a presenccedila de tais naturezas ou potencialidades que integram o
homem bem como de sua possibilidade de superaccedilatildeo ou regressatildeo atraveacutes da
passagem entre um e outro niacutevel Assim ao se comportar como vegetal utilizando
sua natureza entorpecida e insensiacutevel ldquoo homem seraacute como plantardquo se for sensiacutevel
ldquose tornaraacute bestardquo em razatildeo de sua alma bruta e sensual se racional ldquoelevar-se-aacute a
animal celesterdquo pois ldquonatildeo eacute a forma circular que faz o ceacuteu mas a reta razatildeordquo se
intelectual puro contemplante seraacute anjo e filho de Deus ldquopois natildeo eacute a separaccedilatildeo do
corpo que faz o anjo mas sua inteligecircncia espiritualrdquo191
190 Cf PICO Heptaplus Quinta Exposiccedilatildeo p305 191 Oratio pp106 108 Alguns anos mais tarde em 1516 talvez sob a influecircncia da obra de Pico Pietro
Pomponazzi apresentaraacute sua proacutepria concepccedilatildeo da ordem natural no De immortalitate animae ldquoA natureza procede por graus Os vegetais tecircm um pouco de alma seguem os animais dotados apenas de tato gosto e imaginaccedilatildeo indefinida depois os animais tatildeo perfeitos que parecem dotados de inteligecircncia que constroem asas
93
Entre as referecircncias percorridas Pico insere ademais um siacutembolo de ascensatildeo
iniciaacutetica representado pela imagem biacuteblica da escada de Jacoacute ldquoo sapientiacutessimo
patriarca ensinar-nos-aacute mediante um siacutembolo [] que existem escadas que sobem do
fundo da terra ateacute ao cume dos ceacuteus distintas numa longa seacuterie de degrausrdquo192 A
passagem eacute narrada no Gecircnesis referindo-se agrave revelaccedilatildeo recebida em sonho por Jacoacute
atraveacutes da visatildeo de uma escada ligando ceacuteu e terra193 Essa representaccedilatildeo permite que
se efetuem analogias com diversas tradiccedilotildees como a tradiccedilatildeo angeacutelica referida por
Pseudo Dioniacutesio os Misteacuterios gregos e a Cabala194 Ao ser retirada do campo da feacute
traz a exigecircncia de que todos os degraus sejam percorridos passando pelos graus
irredutiacuteveis da filosofia natural da filosofia moral e dos procedimentos dialeacuteticos Os
traccedilos de tal percurso estatildeo bem definidos na dialeacutetica platocircnica primeiro dos sete
modelos asceacuteticos verificados a seguir
1) A primeira referecircncia agrave dialeacutetica filosoacutefica no Discurso eacute colhida de fontes
platocircnicas e disposta em linguagem miacutetica atraveacutes do convite para que o homem
abandone o que eacute terreno e ldquovoerdquo para as regiotildees supramundanas em direccedilatildeo agrave
divindade A menccedilatildeo ao voo reafirmada na passagem em que alude ao ldquoceacutelere voo
para a Jerusaleacutem Celeste atraveacutes de um bater de asasrdquo embora natildeo mencionada
diretamente remete agraves asas da alma que proporcionam a sua libertaccedilatildeo como fora
exaltado por Platatildeo no Fedro195
Desdenhemos das coisas da terra desprezemos as astrais e
abandonando tudo o que eacute terreno voemos para a sede
supramundana proacuteximo da sumidade da divindade196
Observe-se que conforme as palavras acima a Esfera Astral eacute um reino
inserido em territoacuterio ligado ao mundano197 acima do sublunar que remete agrave
imagem de um eixo vertical cujas etapas devem ser superadas A passagem encerra a
ideia de um movimento dinacircmico que pode ser realizado pela alma humana graccedilas agrave
e se organizam em sociedades civis como as abelhas (tanto que muitos homens parecem inferiores aos brutos por inteligecircncia)rdquo Em continuidade o autor apresenta seu conceito de ldquomedianidaderdquo ou planos ldquosintetizantesrdquo entre os reinos ldquoHaacute animais meacutedios entre as plantas e os animais como as esponjas marinhas fixas como as plantas mas sensiacuteveis como os animais haacute o macaco que natildeo se sabe se eacute animal ou homem e haacute a alma intelectiva mediana entre o temporal e o eternordquo Para maiores detalhes veja-se GARIN LrsquoUmanesimo italiano 2008 pp156-160
192 Oratio p 114 193 Cf Gecircnesis 28 12-13 ldquoE sonhou e eis uma escada posta na terra cujo topo tocava nos ceacuteus e eis que os
anjos de Deus subiam e desciam por elardquo 194 Algumas distintas interpretaccedilotildees dessa passagem foram realizadas Para Luiz FERACINE (1999) a escada de
Jacoacute significa a necessidade de ascender do muacuteltiplo ao uno simbolizado pelo desmembramento titacircnico do deus Dioniso Giulio BUSI identifica a escada com a deacutecima sefiraacute da tradiccedilatildeo cabaliacutestica correspondente a malkut vista em seu duplo aspecto de oraccedilatildeo e presenccedila divina conforme o autor depreende do Sefer ha-Zohar (La Qabbalah 2011 p11) Para Albano BIONDI (1995 ldquoIntroduccedilatildeordquo) a escada apresenta um significado estritamente dialeacutetico relacionado agrave Filosofia e seus graus de conhecimento
195 Cf PLATAtildeO Fedro 246 ss A passagem da Oratio que cita o Fedro encontra-se na p122 ldquoQuis non Socraticis illis furoribus a Platone in Phaedro decantatis sic afflari non velit ut alarum pedumque remigio hinc idest ex mundo qui est positus in maligno propere aufugiens ad caelestem Hierusalem concitatissimo cursu feraturrdquo
196 Oratio p110 ldquoDedignemur terrestria caelestia contemnamus et quicquid mundi est denique posthabentes ultramundanam curiam eminentissimae divinitati proximam advolemusrdquo
197 A mateacuteria referente agrave Esfera Astral eacute desenvolvida por Pico em suas Disputationes Adversus Astrologiam
94
sua posiccedilatildeo intermeacutedia dentro do desenho universal Agrave medida que se avanccedila no
texto torna-se patente que tal posiccedilatildeo consiste em uma tensatildeo vertical dialeacutetica
permanente que reporta ao Banquete Em seu Commento de lsquo86 Pico jaacute havia
explorado o diaacutelogo platocircnico e o tema da natureza carente de Eros intermediaacuteria
entre a ignoracircncia e a sabedoria sempre agrave procura desta uacuteltima198 O influxo daquela
obra pode ser agora percebido a partir da retomada do mesmo dinamismo que se
repete e percorre todo o Discurso Oriacutegenes havia feito menccedilatildeo ao mito contido no
Banquete e agrave sua analogia com a busca do homem por sabedoria e sabe-se que Pico
teve acesso agrave sua obra199 O Eros platocircnico assim como a alma piquiana ocupa uma
posiccedilatildeo intermeacutedia200 pois natildeo eacute divino nem terreno201 A potecircncia para atingir as
realidades supremas atraveacutes do amor pela sabedoria encontra-se nas representaccedilotildees
das duas obras Aleacutem da dinacircmica de atraccedilatildeo pelo saber o Discurso eacute perpassado
pela teoria platocircnica que distingue graus de conhecimento entre o sensiacutevel e o
inteligiacutevel e que postula a partir de tais pontos o meacutetodo dialeacutetico que permite a
passagem do grau inicial da pluralidade das opiniotildees ao grau final da unidade da
Ideia
A filosofia natural acalmaraacute os conflitos da opiniatildeo e os dissiacute-
dios que atormentam dividem e dilaceram de modos diversos
a alma inquieta [] A dialeacutetica acalmaraacute a razatildeo
tumultuosamente mortificada entre os contrastes das palavras e
dos silogismos capciosos202
Pico atribui ora agrave filosofia ldquonaturalrdquo ora agrave ldquomoralrdquo a competecircncia para tratar
das questotildees relacionadas agrave conduta humana203 Na primeira parte da passagem
acima ao tratar dos ldquoconflitos e opiniotildeesrdquo estabelece-se uma relaccedilatildeo com o segundo
grau de conhecimento apresentado na Repuacuteblica204 dimensatildeo da piacutestis e doxa cuja
superaccedilatildeo viraacute atraveacutes da filosofia moral Na segunda parte Pico coloca-se em grau
acima ao abordar a forma como a razatildeo poderaacute ser acalmada atraveacutes da dialeacutetica
Embora o meacutetodo dialeacutetico possa ser entendido como o sistema integral que abarca
todos os graus no sentido de movimento da consciecircncia que se move entre os graus
mais baixos e os mais altos ndash graccedilas agrave descoberta das contradiccedilotildees encontradas em
cada grau inferior de conhecimento ndash o mesmo pode tambeacutem ser dividido em duas
etapas a primeira dialeacutetica inferior opera com as contradiccedilotildees das opiniotildees e
crenccedilas isto eacute com a multiplicidade sensiacutevel moacutevel e dispersa a segunda superior
198 PLATAtildeO Banquete 203d-204c 199 A obra Contra Celsum do teoacutelogo Oriacutegenes havia sido publicada em latim em 1481 poucos anos antes da De
Hominis Dignitate A passagem em questatildeo encontra-se em IV 39 Ademais eacute conhecida a admiraccedilatildeo que Pico tinha por Oriacutegenes Para uma aprofundada reflexatildeo sobre a analogia entre o Banquete e a visatildeo dialeacutetica de Pico veja-se BORI I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996 pp 551-564
200 PLATAtildeO Banquete 202d 201 PLATAtildeO ibid 203e 202 Oratio p119 A inversatildeo dos periacuteodos na citaccedilatildeo acima foi feita por uma questatildeo de ordenamento necessaacuterio
ao que estaacute sendo tratado ldquoSedabit dialectica rationis turbas inter orationum pugnantias et syllogismorum captiones anxie tumultuantis Sedabit naturalis philosophia opinionis lites et dissidia quae inquietam hinc inde animam vexant distrahunt et laceranterdquo
203 De fato na paacutegina 122 da Oratio que conteacutem a passagem citada encontra-se tanto o uso de ldquomoralisrdquo quanto ldquonaturalis philosophiardquo
204 Veja-se PLATAtildeO (Rep 509d-511e) e seu ldquoSiacutemile das duas linhasrdquo
95
ou verdadeira dialeacutetica opera ultrapassando demonstraccedilotildees baseadas em hipoacuteteses
na medida em que a multiplicidade vai sendo ordenada e sistematizada ateacute alcanccedilar o
incondicionado a unidade inteligiacutevel Essa a dialeacutetica superior capaz de elevar-se de
hipoacutetese em hipoacutetese ateacute alcanccedilar o natildeo hipoteacutetico205 eacute aquela agrave qual Pico se refere
como o aliacutevio para ldquoacalmar a razatildeordquo
Seremos arrebatados se primeiro tivermos realizado tudo
quanto estaacute em noacutes se de fato com a moral forem refreados
dentro dos justos limites os iacutempetos das paixotildees de tal modo
que se harmonizem reciprocamente com estaacutevel acordo e se a
razatildeo proceder ordenadamente mediante a dialeacutetica206
Finalmente no pinaacuteculo da ascensatildeo ocorre o ldquoarrebatamentordquo momento em
que como ainda mencionado no Banquete (210a) a alma filosoacutefica encontra-se com
a Ideia Suprema O contato direto e imediato da inteligecircncia com o inteligiacutevel se daacute
no plano noeacutetico em que ocorre a visatildeo intelectual de uma ideia em decorrecircncia do
conhecimento adquirido por meio dos atos de intuiccedilatildeo intelectual a episteacuteme Segue-
se assim o quinto grau de conhecimento postulado na Carta Seacutetima e proclamado
por Pico como final de uma trajetoacuteria de conhecimento207
Rejeitadas as impurezas com a moral e a dialeacutetica se adorne da
mais vasta Filosofia como se fosse um ornamento real208
2) A ideia de desenvolvimento vertical humano eacute encontrada outrossim na
narrativa feita por Pseudo-Dioniacutesio acerca do mundo angeacutelico Pico se fundamenta
em seu modelo de ascese miacutestica em trecircs estaacutegios (purgatio illuminatio e perfectio)
ndash conforme a visatildeo recebida em revelaccedilatildeo por Paulo relatada em Coriacutentios acerca do
triacuteplice coro angeacutelico209 Iniciando sua argumentaccedilatildeo eacute lanccedilada a questatildeo de como
proceder para chegar aos Serafins Querubins e Tronos seres pertencentes ao
primeiro ciacuterculo dentro da hierarquia cosmoloacutegica descrita por Dioniacutesio210 a melhor
205 PLATAtildeO na Carta VII (343e) descreve que a passagem contiacutenua entre os vaacuterios niacuteveis hipoteacuteticos com o
deslocamento para o alto e para baixo em cada niacutevel mesmo sob dificuldades leva ao conhecimento da coisa buscada
206 Oratio p122 ldquoAgemur ab illis utique si quid est in nobis ipsi prius egerimus nam si et per moralem affectuum vires ita per debitas competentias ad modulos fuerint intentae ut immota invicem consonent concinentia et per dialecticam ratio ad numerum se progrediendo moverit []rdquo
207 PLATAtildeO Carta VII 342b-343c Na Carta Seacutetima Platatildeo amplia o que havia estabelecido na Repuacuteblica sobre os quatro modos de conhecimento ensinando que o quinto modo de conhecimento eacute a coisa-em-si mesma ou a percepccedilatildeo intelectual direta da coisa cognosciacutevel A funccedilatildeo do quarto modo que eacute o conhecimento (342b) eacute preparar-nos para alcanccedilar o objeto real e soacute atraveacutes de uma fricccedilatildeo chegamos a ele Essa fricccedilatildeo produz uma faiacutesca como uma luz que surge na alma (341d) e nos faz ver a pura ideia da coisa Pico coloca no teacutermino de sua explanaccedilatildeo dialeacutetica o alcance da Filosofia (nesse sentido indicando o momento supremo do conhecimento) qual ldquoornamento realrdquo
208 Oratio p120 ldquo[] postquam per uroralem et dialecticam suas Bordes excusserit multiplici philosophia quasi aulico apparatu se exornarit []
209 Cf Oratio p113 A passagem de Paulo que trata de seu ldquoarrebatamentordquo ao terceiro ceacuteu estaacute em 2 Coriacutentios 12 2-4 ldquoConheccedilo um homem em Cristo que haacute catorze anos[] foi arrebatado ao terceiro ceacuteu E sei que o tal homem[] foi arrebatado ao paraiacuteso e ouviu palavras inefaacuteveis que ao homem natildeo eacute liacutecito falarrdquo
210 Pico passa diretamente para o escalatildeo mais alto na hierarquia dos seres angeacutelicos a chamada Primeira Ordem Abaixo destes haacute a Segunda e Terceira Ordem composta cada qual por trecircs gecircneros de seres Dioniacutesio Areopagita esclarece em sua obra que as alegorias das formas angeacutelicas utilizadas pelos teoacutelogos satildeo apenas pontos de partida para permitir a contemplaccedilatildeo dos seres inteligiacuteveis Eacute tambeacutem uma forma de ocultar atraveacutes de
96
forma para alcanccedilaacute-los seraacute atraveacutes da observaccedilatildeo de seu protoacutetipo de vida pois ldquose
tambeacutem noacutes a vivermos jaacute estaremos partilhando de igual ventura e de fato
podemosrdquo211 Assim a destinaccedilatildeo humana consiste precisamente em imitar aquelas
vidas Primeiramente os Tronos mais proacuteximos de noacutes representantes da vida ativa
disciplinada em seguida os Querubins modelo de vida contemplativa finalmente
os Serafins mais proacuteximos de Deus representantes da uniatildeo miacutestica no amor Os
Querubins encontrando-se no ponto intermeacutedio entre os dois outros graus da ordem
agrave qual pertencem representam por analogia a funccedilatildeo intermeacutedia do homem e sua
capacidade contemplativa torna-se exemplo do ponto mais alto que pode ser
alcanccedilado atraveacutes da capacidade intelectiva humana
Se a nossa vida deve ser modelada sobre a vida dos Querubins
devemos ter claro frente aos nossos olhos em que consiste tal
vida quais as accedilotildees e obras que devemos imitar212
Cada Ordem apreende da que lhe estaacute imediatamente superior tudo o que
concerne agraves suas operaccedilotildees retransmitindo agrave inferior aquilo que lhe eacute possiacutevel
transmitir (ldquoa ordem mediana eacute para a inferior inteacuterprete dos preceitos da ordem
superiorrdquo)213 Os Tronos tem seu nome originado a partir do conceito de sustentaacuteculo
Esse gecircnero de anjo eacute identificado pela total ausecircncia de qualquer concessatildeo aos
planos inferiores e a capacidade de se manter constante e firmemente tendendo para
os cumes Analogamente esse seria o estaacutegio da purgatio Os Querubins ldquoaqueles
que difundem sabedoriardquo satildeo tidos como a inteligecircncia mediadora entre o amor
divino e a reta razatildeo jaacute que sua inteligecircncia prepara o homem para o ardor seraacutefico e
ao mesmo tempo o ilumina pelo modelo da justiccedila dos Tronos (ldquoeis porque no meio o
Querubim com a sua luz nos prepara para a chama seraacutefica e nos ilumina
juntamente com o juiacutezo dos Tronosrdquo)214 Os Querubins designam aptidotildees ao
conhecimento e agrave contemplaccedilatildeo do Absoluto e acolhem em si a plenitude dos dons
que transmitem sabedoria comunicando-os agraves essecircncias inferiores graccedilas agrave
capacidade de emanaccedilatildeo da proacutepria sabedoria que lhes foi transmitida Sua posiccedilatildeo eacute
anaacuteloga ao grau asceacutetico da illuminatio O Serafim eacute o que ocupa a mais alta posiccedilatildeo
aquele que ldquoqueimardquo na luz divina Os Serafins tecircm por qualidades o movimento
perpeacutetuo em torno dos segredos divinos o calor a profundidade e a qualidade de
comunicar aos niacuteveis que lhe sucedem a luz e o calor Detecircm o poder de auto-
purificaccedilatildeo e a aptidatildeo para conservarem a sua proacutepria luz daiacute sua relaccedilatildeo com o
uacuteltimo grau asceacutetico a perfectio215
enigmas a misteriosa unidade dessas Inteligecircncias Os nomes atribuiacutedos agraves Inteligecircncias designam suas capacidades (De Coelesti Hierarchia II-VII) Pico possuiacutea vaacuterias coacutepias em grego e latim das obras principais de Ps Dioniacutesio (cf Garin 2011 p110)
211 Oratio p111 O trecho em questatildeo encontra-se na traduccedilatildeo de Feracine tendo sido omitido na traduccedilatildeo de Sirgado Ganho ldquoSed qua ratione aut quid tandem agentes Videamus quid illi agant quam vivant vitam Eam si et nos vixerimus (possumus enim) illorum sortem iam aequaverimusrdquo
212 Oratio p112 ldquoAt vero operae precium si ad exemplar vitae cherubicae vita nostra formanda est quae illa et qualis sit quae actiones quae illorum Opera []rdquo
213 Oratio p116 ldquoEt quoniam supremi ordinis monita medius ordo inferioribus interpretaturrdquo 214 Cf Oratio p113 215 PS DIONISIO De Coelesti Hierarchia VII Para detalhes adicionais veja-se nota da passagem em questatildeo
na traduccedilatildeo da Oratio de Luiz Feracine Informa o tradutor que Trono vem da raiz dar que passou para o sacircnscrito na palavra dhacircrana sustentaacuteculo O termo Querubim do hebraico kerub eacute considerado originaacuterio de
97
Pico pretende indicar a analogia existente entre as funccedilotildees angeacutelicas e o
caminho triaacutedico relacionado aos campos moral dialeacutetico e teoloacutegico que pode ser
verificado nas atribuiccedilotildees de cada Ordem Os Tronos se definem pelo reto
discernimento e a firmeza de juiacutezo qualidade que pode ser atingida atraveacutes do uso da
razatildeo e que em seu primeiro estaacutegio eacute capaz de encetar a filosofia moral No
Querubim estaacutegio intermediaacuterio apresenta-se a capacidade intelectual da
contemplaccedilatildeo ou o momento de ldquoesplendor da inteligecircnciardquo Finalmente no Serafim
tem-se o amor ao artiacutefice ao qual Pico em outras passagens ou obras refere-se
atraveacutes do termo ldquofeacuterdquo que o autor considera o uacuteltimo estaacutegio da ascese miacutestica
teoloacutegica216
Ainda que dedicados agrave vida ativa se assumirmos tratar as coisas
inferiores com reto discernimento afirmar-nos-emos com a
firmeza dos Tronos Se liberarmo-nos das accedilotildees meditando na
criaccedilatildeo o artiacutefice e no artiacutefice a criaccedilatildeo estaremos imersos na
paz da contemplaccedilatildeo e resplandeceremos rodeados de
querubiacutenica luz Se ardermos apenas por amor do artiacutefice
daquele fogo que consome todas as coisas inflamar-nos-emos
repentinamente com aspecto seraacutefico217
Ao ponto intermeacutedio querubiacutenico eleva-se a possibilidade humana alcanccedilaacutevel
pela dialeacutetica ldquoisso devemos emular investigar e compreender de modo a sermos
arrebatados ateacute aos fastiacutegios do amor descendo em seguida instruiacutedos e preparados
para as tarefas da accedilatildeordquo218 Assim para a pergunta ldquocomo se tornavam iluminados os
querubins como se elevavam ao estaacutegio seraacuteficordquo o autor indica o caminho da
contemplaccedilatildeo ldquoeste eacute o centro das primeiras mentes a ordem sapiencial que preside
agrave filosofia contemplativardquo219 Finalmente colocando palavras na boca do apoacutestolo
Paulo ndash se tivesse sido perguntado sobre o que faziam os exeacutercitos dos Querubins
enquanto esteve ele arrebatado no terceiro ceacuteu ndash responde Pico ldquopurificavam-se
eram iluminados e tornavam-se por fim perfeitosrdquo220 Repete-se o processo triaacutedico
intuiacutedo no modelo de ascetismo piquiano
Karibu que significa bendizente Em geral os Querubins satildeo associados aos gecircnios alados das mitologias egiacutepcias babilocircnicas e siro-feniacutecias O termo Serafim vem do hebraico sharaf serpente [ligado ao verbo saacuterof queimar] siacutembolo relacionado aos gecircnios e agrave divindade pelos cananeus Em geral nas representaccedilotildees lhes satildeo dadas as formas de serpente No livro Nuacutemeros (XXI 6-9) os Serafins indicam as serpentes venenosas enquanto em Isaiacuteas (VI) representam seres antropomorfos providos de seis asas Assim tanto os Serafins como os Querubins satildeo idealizaccedilotildees de seres superiores em que se fundem formas humanas com asas Essa heranccedila cultural influenciou a percepccedilatildeo dos autores biacuteblicos (FERACINE A Dignidade do Homem 1999)
216 Oratio pp111-113 217 Oratio p110 ldquoIgitur si actuosae addicti vitae inferiorum curam recto examine susceperimus Thronorum
stata soliditate firmabimur Si ab actionibus feriati in opificio opificem in opifice opificium meditantes in contemplandi otio negotiabimur luce Cherubica undique corruscabimus Si caritate ipsum opificem solum ardebimus illius igne qui edax est in Seraphicam effigiem repente flammabimurrdquo
218 Oratio p112 219 Oratio p113 Pier Cesare BORI relaciona a vida contemplativa dos Querubins com a vida intelectual que se
difunde nas vaacuterias disciplinas filosoacuteficas que seratildeo depois unificadas dialeticamente (I tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564)
220 Oratio p113
98
3) A pureza dos graus angeacutelicos pede uma correta preparaccedilatildeo que Pico
vislumbra nos graus de iniciaccedilatildeo previstos nos Misteacuterios gregos ndash ldquoin Graecorum
arcanis observati initiatorum gradusrdquo
Se eacute nosso dever [] imitar a vida dos anjos pergunto quem
ousaraacute tocar as escadas do Senhor ou com peacute impuro ou com
matildeos por lavar Ao impuro segundo os Misteacuterios eacute-lhe vedado
tocar aquilo que eacute puro221
As matildeos e os peacutes conforme o proacuteprio Pico explica representam ldquotoda a parte
sensiacutevel onde estatildeo sediadas as seduccedilotildees corpoacutereasrdquo que subjugam a alma ldquoPara natildeo
sermos expulsos daquelas escadasrdquo ndash as de Jacoacute ndash ldquocomo profanos e imundosrdquo222 faz-
se necessaacuteria uma devida purificaccedilatildeo ideia que integra grande parte das religiotildees
gregas misteacutericas conhecidas ndash sobre as quais Pico certamente tinha
conhecimento223
Que outra coisa de fato querem significar nos misteacuterios gregos
os graus habituais dos iniciados admitidos no misteacuterio atraveacutes
de uma purificaccedilatildeo obtida com a moral e com a dialeacutetica artes
que jaacute dissemos serem quase purificatoacuterias [] Quando
estavam preparados sobrevinha aquela epopteia isto eacute a
visatildeo das coisas divinas atraveacutes da luz da teologia224
A epopteia corresponde a um estado de arrebatamento atribuiacutedo ao nuacutecleo dos
Misteacuterios de Elecircusis Apoacutes cerca de um ano ultrapassando os devidos estaacutegios o
adepto estaria pronto para atingir o estado supremo no qual ocorria a visatildeo
transcendente e transformadora correspondente ao rito final da iniciaccedilatildeo225 Embora
apenas se tenha conhecimento das manifestaccedilotildees exteriores dos misteacuterios eleusinos
e mesmo assim de forma imprecisa226 uma descriccedilatildeo aproximada da visatildeo eleusina
pode ser extraiacuteda das palavras de Platatildeo No Fedro eacute narrada a experiecircncia iniciaacutetica
de contemplaccedilatildeo que ilustra um estado bastante proacuteximo ao que provavelmente
ocorria na epopteia
221 Oratio p114 ldquoQuod si hoc idem nobis angelicam affectantibus vitam factitandum est quaeso quis Domini
scalas vel sordidato pede vel male mundis manibus attinget Impuro ut habent mysteria purum attingere nefasrdquo
222 Oratio p115 223 O tema da purificaccedilatildeo eacute central nos Misteacuterios de Elecircusis de Dioniso e nos Oacuterficos para citar os mais
conhecidos A Lacircmina de Turi por exemplo achado arqueoloacutegico pertencente ao seacuteculo IV ou III aC traz as inscriccedilotildees ldquoEu venho puro dentre os purosrdquo indicando a terminaccedilatildeo de um processo purificatoacuterio condiccedilatildeo obrigatoacuteria para a recepccedilatildeo do iniciado em dimensotildees superiores (cf KERN Orphicorum Fragmenta fr 32d)
224 Oratio p122 ldquoQuid enim aluid sibi volunt in Graecorum arcanis observati initiatorum gradus quibus primum per illas quas diximus quasi februales artes moralem et dialecticam purificatis contingebat mysteriorum susceptio Quae quid aluid esse potest quam secretioris per philosophiam naturae interpretatio Tum demum ita dispositis illa adveniebat lsquoἐ π ο π τ ε ί αrsquo idest rerum divinarum per theologiae lumen inspectiordquo
225 Giorgio COLLI A Sabedoria Grega 2012 p33 226 De acordo com Erwin RHODE (Psyche 2006 p239) apenas o lado exterior das cerimocircnias eleusinas
possuem registros Nas festividades conhecidas como ldquoPequenos Misteacuteriosrdquo de Elecircusis o adepto tambeacutem poderia vivenciar uma breve visatildeo reveladora Contudo era no interno dos ldquoGrandes Misteacuteriosrdquo ndash apreendidos pelos epoptas e mantidos em segredo ndash que se dava a visatildeo transformadora (COLLI opcit p31)
99
Eacuteramos iniciados naquela que justamente eacute chamada a mais
feliz das iniciaccedilotildees aquele rito secreto que celebraacutevamos []
Inteiramente perfeitas simples sem tremor e felizes eram as
apariccedilotildees ndash em um esplendor puro ndash em que eacuteramos iniciados e
atingiacuteamos o cume da contemplaccedilatildeo Noacutes mesmos puros natildeo
encerrados na tumba que agora levamos conosco e chamamos
corpo ligados estreitamente a ele como a ostra agrave sua concha227
Como forma complementar ou para dar relevo agrave questatildeo logo apoacutes a menccedilatildeo
agraves visotildees eleusinas Pico se remete ao conceito platocircnico da ldquoinspiraccedilatildeordquo socraacutetica
aproximando aqueles rituais do domiacutenio filosoacutefico (ldquoaquela iniciaccedilatildeo que outra coisa
pode ser senatildeo a interpretaccedilatildeo da mais oculta natureza mediante a Filosofiardquo)228
Quem natildeo quereraacute ser inspirado pelo furor socraacutetico exaltado
por Platatildeo no Fedro arrebatado em ceacutelere voo para a Jerusaleacutem
Celeste fugindo rapidamente com um bater de asas daqui isto
eacute do mundo reino do democircnio Arrebatar-nos-atildeo oacute Padres
arrebatar-nos-atildeo os furores socraacuteticos trazendo-nos para fora
da mente a tal ponto que nos coloquemos a noacutes e agrave nossa mente
em Deus229
A mencionada passagem do Fedro narra que atraveacutes de purificaccedilotildees e
iniciaccedilotildees seria possiacutevel encontrar uma libertaccedilatildeo dos males mas apenas para quem
estivesse ldquosob maniardquo ou ldquopossuiacutedordquo pelos deuses ldquona forma certardquo230 O ldquotrazer para
fora da menterdquo eacute outra forma de aludir ao veacutertice da experiecircncia miacutestica quando
ocorre o estado de ldquoecircxtaserdquo sem a mediaccedilatildeo da razatildeo O extasis literalmente lsquosair-de-
sirsquo era o instrumento para a liberaccedilatildeo cognoscitiva rompida a individualidade do
iniciado esse passava a ver aquilo que os natildeo iniciados natildeo viam231 ldquoLibertar-se da
existecircncia corporal conhecer o ecircxtase e elevar-se aos ceacuteusrdquo satildeo temas recorrentes nos
discursos socraacuteticos232 dizia Soacutecrates que ldquoos bacantes das iniciaccedilotildees natildeo satildeo senatildeo
aqueles que se entregam agrave filosofia no sentido exatordquo233 tecendo uma
correspondecircncia entre o campo filosoacutefico e os Misteacuterios que natildeo seria ignorada na
Oratio piquiana Os bacantes adeptos partiacutecipes dos misteacuterios dionisiacuteacos podiam
atingir um estado de maniacutea no qual se dava uma visatildeo do tipo relatado nas epopteias
de Elecircusis Tratar-se-ia assim como naqueles cultos de uma visatildeo de caraacuteter
227 PLATAtildeO Fedro 250 b-c 228 Cf Oratio p123 229 Oratio p123 ldquoQuis non Socraticis illis furoribus a Platone in Phaedro decantatis sic afflari non velit ut
alarum pedumque remigio hinc idest ex mundo qui est positus in maligno propere aufugiens ad caelestem Hierusalem concitatissimo cursu feratur Agemur Patres agemur Socraticis furoribus qui extra mentem ita nos ponant ut mentem nostram et nos ponant in Deordquo
230 PLATAtildeO Fedro 244c-245a 231 A questatildeo da saiacuteda de si promovida pelo ecircxtase encontra unanimidade entre vaacuterios inteacuterpretes Para maiores
detalhes veja-se recolhimento de Giorgio COLLI (2012 p18) tanto fontes antigas quanto mais recentes reconhecem a relaccedilatildeo entre ecircxtase e saiacuteda-de-si Niezsche foi um deles bem como Rodhe com seu Psiche
232 As palavras citadas estatildeo em Nicolas GRIMALDI Soacutecrates o Feiticeiro 2006 p10 O autor complementa que a preparaccedilatildeo por meio de vaacuterios tipos de exerciacutecios asceacuteticos utilizados para ldquodesatar os noacutesrdquo que prendem a alma ao corpo estatildeo na base do ensinamento socraacutetico Veja-se nesse sentido Feacutedon 64c-68b e Repuacuteblica VI 509b-c VII 517b-c
233 PLATAtildeO Feacutedon 69c-d
100
macircntico podendo assumir um aspecto de conhecimento da verdade234 Atraveacutes das
etapas iniciaacuteticas e entatildeo ldquotornados filoacutesofosrdquo conclui Pico que os iniciados seriam
ldquoinebriados na harmonia celesterdquo e por fim Baco senhor das Musas revelaria ldquoos
seus misteacuteriosrdquo ou ldquoos invisiacuteveis segredos de Deusrdquo235
4) Os mitos de Osiacuteris e de Dioniso respectivamente egiacutepcio e grego
representam partes das concepccedilotildees cosmogocircnicas presentes em algumas teogonias
que contemplam o conflito entre a Ordem e o Caos Pico certamente tinha em mente
elaborar uma siacutentese entre os dois mitos para ilustrar suas concepccedilotildees filosoacuteficas A
queda descrita no chamado ldquoMito dos Titatildesrdquo que narra o nascimento morte e
ressurreiccedilatildeo do deus Dioniso eacute parte da Teogonia das Rapsoacutedias que integra o
corpus da doutrina oacuterfica236 As Conclusiones oacuterficas mostram que Pico teve acesso
aos Hinos de Orfeu uma de suas provaacuteveis fontes de acesso ao mito Ambos os mitos
abordam a questatildeo da fragmentaccedilatildeo da unidade universal e a criaccedilatildeo da
multiplicidade levando agrave necessidade assim como nas primeiras cosmogonias
filosoacuteficas de se suplantar a dualidade e retornar agrave unidade perdida Repetem nesse
sentido a ideia de usurpaccedilatildeo do trono que representa a unidade e a fragmentaccedilatildeo
daquele que o ocupava No caso de Osiacuteris seu irmatildeo Set o assassina apoacutes lhe tirar o
trono e posteriormente o esquarteja espalhando seus pedaccedilos por todo o Egito237
Jaacute Dioniso por encontrar-se no final da linhagem genealoacutegica dos deuses recebera
de seu pai Zeus o comando do mundo deixando enciumados os Titatildes ndash divindades
dos primeiros tempos ndash que terminam por atacaacute-lo e despedaccedilaacute-lo Dos resiacuteduos
finais de Dioniso e dos Titatildes ndash jaacute que estes tambeacutem acabam exterminados ndash nascem
natildeo apenas os homens como o novo Dioniso238
Na passagem ldquodesceremos dilacerando com forccedila titacircnica o um nos muitosrdquo239
Pico deixa evidente que estaacute a relatar a particcedilatildeo e a redistribuiccedilatildeo do Uno em seu
movimento de descese conteuacutedo que se encontra na raiz da ideia de ldquoquedardquo da
unidade ndash embora natildeo se trate da Queda original240 A concepccedilatildeo do distanciamento
da unidade encontra-se na origem do vetor que impulsiona os vaacuterios modelos de
movimento asceacutetico especialmente aqueles do paganismo Haacute que se observar que
grande parte dos mitos cosmogocircnicos lida com a reconstituiccedilatildeo da multiplicidade e o
necessaacuterio esforccedilo para que se refaccedila a unidade e para sua preservaccedilatildeo Assim em
paralelo ao nascimento de um novo Dioniso em acircmbito grego tem-se no mito
egiacutepcio a reconstituiccedilatildeo do corpo de Osiacuteris por sua esposa Iacutesis permitindo desse
234 COLLI opcit pp17-19 235 Cf Oratio p 123 236 Alberto BERNABEacute Hieros Logos - Poesia oacuterfica sobre os deuses a alma e o aleacutem Satildeo Paulo 2012 p24 237 O mito de Osiacuteris tem seu principal relato em Plutarco De Iside e Osiride Set eacute identificado com o Tifeu dos
gregos e seu parentesco com os Titatildes ndash que eliminam Dioniso ndash eacute revelado no livro LXIX Para o tema veja-se J Gwyn GRIFFITHS (org) Plutarchs De Iside et Osiride University of Wales Press 1970
238 Em passagem de Olympiodoro lecirc-se ldquoIrritado contra eles [os Titatildes] Zeus os fulminou com um raio e do resiacuteduo dos vapores emitidos por eles produziu-se a mateacuteria da qual nasceram os homensrdquo (KERN Orphicorum Fragmenta fr 140 trad Alberto Bernabeacute) Para maiores detalhes veja-se BERNABEacute opcit p80 ss
239 PICO opcit p 116 ldquonunc unum in multitudinem vi titanica discerpentes descendemusrdquo 240 Alberto Bernabeacute provavelmente natildeo de forma isolada denomina a transgressatildeo cometida pelos Titatildes de
ldquopecado antecedenterdquo pelo fato de natildeo ter sido cometido pelo primeiro homem ndash caso em que seria ldquooriginalrdquo (Textos Oacuterficos y Filosofia Presocratica Edit Trotta Madrid 2004)
101
modo a concepccedilatildeo poacutestuma de seu filho Horus que representa a continuidade241
Nascimento Morte (desmembramento) e Ressurreiccedilatildeo (reconstituiccedilatildeo) constituem
em acircmbito miacutetico o triacuteplice movimento filosoacutefico que parte da Unidade fragmenta-
se na Multiplicidade e completa-se com o retorno agrave Unidade
5) A passagem biacuteblica do ldquoTabernaacuteculo de Moiseacutesrdquo narra a construccedilatildeo de um
santuaacuterio moacutevel ordenada por Deus que deveria ser realizada pelo povo hebreu
durante sua permanecircncia de quarenta anos no deserto242 A partir da estrutura
triacuteplice que se forma no templo da tradiccedilatildeo hebraica Pico concebe um percurso
asceacutetico que encontra correspondecircncia em seu modelo triaacutedico de dialeacutetica filosoacutefica
Assim como o Heptaplus apresenta a analogia do tabernaacuteculo com os trecircs mundos do
cosmo piquiano243 a Oratio faz corresponder em escala reduzida as trecircs partes do
santuaacuterio a trecircs elementos do corpo humano reafirmando a analogia mosaica entre o
homem-microcosmo e o universo-macrocosmo244 Nesse sentido a parte do
tabernaacuteculo que se encontra sob ceacuteu aberto sem proteccedilatildeo alguma corresponde aos
oacutergatildeos genitais representando o corpo material ligado aos sentidos a aacuterea
intermeacutedia do santuaacuterio jaacute protegida dos fenocircmenos da natureza encontra
correspondecircncia no coraccedilatildeo consonante agraves emoccedilotildees mas tambeacutem ao uso
instrumental da razatildeo finalmente a parte sagrada do tabernaacuteculo chamada ldquoSanto
dos Santosrdquo representa a cabeccedila sede do conhecimento superior245
Os que ainda impuros tecircm necessidade moral fiquem com o
vulgo fora do tabernaacuteculo sob o ceacuteu descoberto como os
sacerdotes da Tessaacutelia ateacute estarem purificados246
Na parte externa do tabernaacuteculo exposta a toda sorte de intempeacuteries
encontra-se o vulgo a ldquocorte inferiorrdquo247 povoada por espeacutecies animais e tambeacutem
por homens bons e maus Esse primeiro estaacutegio eacute correspondente ao grau de
conhecimento daqueles que precisam despertar atraveacutes da filosofia moral Jaacute no
interior do tabernaacuteculo niacutevel equivalente ao saber intermeacutedio inicia-se a utilizaccedilatildeo
do corpo racional embora ainda natildeo filosoacutefico
241 Osiacuteris passa a ser considerado deus dos mortos e revivendo a partir de seu filho Horus ndash associado ao Sol e
identificado por Heroacutedoto com Apolo (2 144) ndash tambeacutem o deus da renovaccedilatildeo Cabe ressaltar que a presenccedila de duas naturezas no homem que o fazem viver sob constante escolha eacute um tema eacutetico abordado por Pico em outras passagens e obras cuja derivaccedilatildeo eacute colhida de suas fontes platocircnicas Parte da natureza do homem eacute trazida dos restos de Dioniso ingeridos pelos Titatildes ndash o que lhe proporciona um componente positivo e celeste ansioso por reintegrar-se agrave sua natureza originaacuteria a outra parte eacute proveniente dos Titatildes o que inflige ao homem um elemento negativo e imbuiacutedo da marca da infraccedilatildeo por aqueles cometida
242 Cf Ecircxodo 25-27 243 Os detalhes acerca da relaccedilatildeo do tabernaacuteculo com os trecircs mundos ndash sublunar celeste e angeacutelico ndash seratildeo
abordados no Capiacutetulo VI Para um entendimento do tabernaacuteculo conforme a visatildeo miacutestica hebraica veja-se Moshe IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista 2008-b pp481-484
244 ldquoO mundo eacute chamado por Moiseacutes de homem grande de fato se o homem eacute um pequeno mundo necessariamente o mundo eacute um homem granderdquo escreveraacute Pico no Heptaplus (p 381)
245 BUSI-EBGI Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 pp 348-349 246 Oratio p120 ldquoQui polluti adhuc morali indigent cum plebe habitent extra tabernaculum sub divo quasi
Thessali sacerdotes interim se expiantesrdquo 247 Expressatildeo utilizada por BUSI-EBGI opcit p 348
102
Os que jaacute atingiram uma vida reta acolhidos no santuaacuterio natildeo
se aproximem ainda das coisas sacras mas prestem-lhes pri-
meiro serviccedilo com um noviciado dialeacutetico como zelosos levitas
da filosofia248
Ao uacuteltimo grau de eminente caraacuteter teoloacutegico Pico outorga caracteriacutesticas
filosoacuteficas confirmando sua visatildeo de perfeita concoacuterdia entre a Teologia e a Filosofia
em seu grau superior As palavras ndash atribuiacutedas a Moiseacutes ndash que finalizam sua reflexatildeo
exortam para uma preparaccedilatildeo que permita o ingresso ldquona via para a futura gloacuteria dos
ceacuteus por meio da Filosofiardquo249 Estaacutegio alcanccedilado apoacutes o ingresso no uacuteltimo grau do
tabernaacuteculo o Santo dos Santos
Por fim admitidos tambeacutem eles contemplem agora no
sacerdoacutecio da Filosofia ora o multicolor quer dizer o sideacutereo
ornamento do palaacutecio de Deus ora o candelabro das sete
chamas ora os elementos de pele ateacute que acolhidos finalmente
no tabernaacuteculo do templo por meacuterito da sublimidade teoloacutegica
usufruam retirado totalmente o veacuteu da imagem da gloacuteria de
Deus250
6) A Escola pitagoacuterica se caracterizava por um longo processo percorrido
atraveacutes da passagem por graus parte integrante da ldquobios theoretikoacutesrdquo (vida
contemplativa) agrave qual os membros se dedicavam para alcanccedilar a purificaccedilatildeo da
alma251 Embora tenha tido acesso agraves informaccedilotildees acerca das praacuteticas pitagoacutericas252
tendo conhecimento portanto dos estaacutegios de iniciaccedilatildeo pertinentes ao aprendizado
da doutrina Pico se limita na Oratio a abordar algumas normas contidas nos
akouacutesmata pitagoacutericos Os akouacutesmata eram preceitos ouvidos e retransmitidos
atraveacutes dos quais a organizaccedilatildeo pitagoacuterica se perpetuava juntamente com os sinais
de reconhecimento entre os membros os symbola253 Vaacuterias das doutrinas relatadas
por autores tardios foram transmitidas verbalmente geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo graccedilas agrave
248 Oratio p120 ldquoQui mores iam composuerunt in sanctuarium recepti nondum quidem sacra attractent
sed prius dialectico famulatu seduli levitae philosophiae sacris ministrentrdquo 249 No texto biacuteblico Moiseacutes natildeo faz referecircncia agrave filosofia trata-se de interpretaccedilatildeo de Pico Cf Oratio p120
ldquoHaec nobis profecto Moses et imperat et imperando admonet excitat inhortatur ut per philosophiam ad futuram caelestem gloriam dum possums iter paremus nobisrdquo
250 Oratio p120 ldquoTum ad ea et ipsi admissi nunc superioris Dei regiae multicolorem idest sidereum aulicum ornatum nunc caelestem candelabrum septem luminibus distinctum nunc pellicea elementa in philosophiae sacerdotio contemplentur ut postremo per theologicae sublimitatis merita in templi adita recepti nullo imaginis intercedente velo divinitatis gloria perfruanturrdquo
251 Como relata Jacircmblico (Vita Pythagorica 71-72) os estaacutegios se dividiam em periacuteodo probatoacuterio dokimasiacutea periacuteodo preparatoacuterio paraskeiecirc e periacuteodo purificatoacuterio cathartisis no uacuteltimo grau o teleiocirctes correspondente ao fim telos eram reveladas as primeiras e uacuteltimas causas das coisas Esse testemunho eacute tambeacutem confirmado em Dioacutegenes Laeacutercio (VIII 10) que o atribui a Timeu
252 Pico teve acesso agraves ldquoVidasrdquo pitagoacutericas atraveacutes da leitura de Porfiacuterio e Dioacutegenes Laeacutercio nas traduccedilotildees de Ficino e atraveacutes da leitura direta de Jacircmblico do qual possuiacutea a Vida de Pitaacutegoras (cf ldquoBiblioteca di Picordquo in GARIN 2011 p109)
253 Aristoacuteteles em sua obra Sobre os Pitagoacutericos (fr195) relatada por Dioacutegenes Laeacutercio (VIII 34-5) expotildee e analisa vaacuterios akouacutesmata como a abstenccedilatildeo de favas e o impedimento de se tocar em galo branco ou em peixes sagrados O Estagirita contudo natildeo pocircde decifrar o que havia por baixo de seu simbolismo Alguns akouacutesmata foram recolhidos em uma lista conservada por Porfiacuterio em seu Vida de Pitaacutegoras com comentaacuterios de Aristoacuteteles referentes ao assunto Veja-se tambeacutem Jacircmblico Vita Pythagorica 82
103
manutenccedilatildeo de tal oralidade254 Como as doutrinas da escola eram consideradas um
segredo e sua propagaccedilatildeo estritamente reservada aos adeptos os iniciados
pitagoacutericos apreendiam seus conteuacutedos e os memorizavam A transmissatildeo dos
akouacutesmata se dava atraveacutes de enunciados enigmaacuteticos de indecifraacutevel entendimento
e Pico parece ter extraiacutedo suas interpretaccedilotildees de fontes neoplatocircnicas255
Exortar-nos-aacute [Pitaacutegoras] em primeiro lugar a natildeo nos
sentarmos em cima do alqueire isto eacute natildeo deixarmos inativa a
parte racional com a qual a alma tudo mede julga e examina
mas antes dirigi-la e mantecirc-la desperta com o exerciacutecio e as
regras da dialeacutetica256
Na passagem acima Pico leitor de Jacircmblico alude de forma indireta aos
especiacuteficos exerciacutecios (aacuteskesis) para o desenvolvimento da parte racional da alma
integrantes da biacuteos pitagoacuterica Dentre eles embora natildeo mencionados havia a
preocupaccedilatildeo com a dieteacutetica a utilizaccedilatildeo da muacutesica para fins terapecircuticos os
exerciacutecios voltados agrave contemplaccedilatildeo257 e os exerciacutecios para a memoacuteria258 Aleacutem desses
uma praacutetica necessaacuteria consistia apoacutes os graus iniciais do discipulado em
permanecer em silecircncio por cinco anos atraveacutes do qual as experiecircncias iniciaacuteticas se
mantinham como prerrogativas exclusivas de seus iniciados259 Voltando aos
preceitos da transmissatildeo oral Pico prossegue com a interpretaccedilatildeo de outro
akouacutesmata que se coaduna com sua proacutepria filosofia
Indicar-nos-aacute entatildeo duas coisas que acima de tudo devemos
evitar urinarmos voltados para o sol e cortarmos as unhas
durante o sacrifiacutecio Soacute quando tivermos expulso de noacutes
mediante a moral os turvos apetites da voluptuosidade e
tivermos cortado as garras aduncas da ira removidos os
aguilhotildees da alma soacute entatildeo comeccedilaremos a tomar parte nos
sacros misteacuterios de Baco260
254 Apoacutes o esfacelamento das comunidades pitagoacutericas os membros dispersos mais antigos continuavam a fazer
dos akouacutesmata seu guia (cf JAcircMBLICO Comm Mat) 255 Cf notas de Eugenio Garin agrave ediccedilatildeo do De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 256 Oratio p126 ldquoPraecipiet primo ne super modium sedeamus idest rationalem partem qua anima omnia
metitur iudicat et examinat ociosa desidia ne remittentes amittamus sed dialectica exercitatione ac regula et dirigamus assidue et excitemosrdquo
257 O vegetarianismo era praticado pelos pitagoacutericos numa eacutepoca em que o sacrifiacutecio animal era um dos pilares da cultura grega Os exerciacutecios de contemplaccedilatildeo estavam diretamente relacionados agraves especulaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas pitagoacutericas em clara sintonia com a concepccedilatildeo grega do vocaacutebulo θεωρία (theoriacutea) que carrega o significado de ldquoespeculaccedilatildeo ou vida contemplativardquo Nesse sentido a tradiccedilatildeo reconhece as especulaccedilotildees engendradas na escola pitagoacuterica tendo aiacute se originado o ideal grego de philosophia e theoriacutea (cf JAcircMBLICO Vita Pythagorica respectivamente 85 163-164)
258 O membro da koinoniacutea pitagoacuterica era instruiacutedo a dedicar um periacuteodo especiacutefico do dia para a praacutetica da anamneacutesis ldquoAcreditavam que se deveria reter e conservar na memoacuteria tudo aquilo que era ensinado e escutado[hellip] de forma que o pitagoacuterico natildeo se levantava da cama antes de ter chamado agrave memoacuteria aquilo que havia acontecido no dia anteriorrdquo (Aristoacutexeno 58 D1 DK Jacircmblico VP 164-166)
259 A propoacutesito dessa passagem lecirc-se em Jacircmblico que ldquode todas as provas de autocontrole aquela de frear a liacutengua eacute certamente a mais dura como bem demonstram aqueles que instituiacuteram os Misteacuteriosrdquo (VP 71-72)
260 Oratio p126 ldquoTum cavenda in primis duo nobis significabit ne auf adversus Solem emingamus auf inter sacrificandum unguem resecemus Sed postquam per moralem et superfluentium voluptatum eminxerimus appetentias et unguium praesegmina quasi acutas irae prominentias et animorum aculeos resecuerimus tum demum sacris idest de quibus mentionem fecimus Bacchi mysteriis []rdquo
104
Apesar de o iniacutecio do trecho acima natildeo poder ser elucidado a analogia com os
misteacuterios baacutequicos colocada como final do processo enfatiza o formato triaacutedico
repetido por Pico mais uma vez o adepto apoacutes ter passado pelos graus de purificaccedilatildeo
moral e intelectual-dialeacutetica eacute tomado por uma visatildeo final transformadora (os
sagrados misteacuterios de Baco) ou em termos filosoacuteficos consegue a unidade com o
Inteligiacutevel Apoacutes atingido tal estaacutegio seraacute necessaacuterio conservaacute-lo com a devida
alimentaccedilatildeo da alma
Aconselhar-nos-aacute por fim a alimentar o galo isto eacute a saciar
com soacutelida alimentaccedilatildeo e com a celeste ambrosia das coisas
divinas a parte divina da nossa alma261 []Eacute este o galo que
Soacutecrates na hora da morte no momento em que esperava
reunir o divino da sua alma agrave divindade de tudo e jaacute afastado do
perigo de qualquer doenccedila corpoacuterea considerava que devia a
Esculaacutepio isto eacute ao meacutedico da alma262
7) Em seus registros extraiacutedos dos Oraacuteculos Caldeus263 Pico encontra outro
modelo para comprovar sua concepccedilatildeo da triacuteplice via para a verdade em que se
repete o processo iniciado com a filosofia moral continuado com a dialeacutetica e
concluiacutedo nesse caso com a Teologia Observe-se a semelhanccedila do mito da alma
alada cuja narraccedilatildeo eacute atribuiacuteda a Zoroastro com o Mito do Cocheiro narrado no
Fedro264
Escrevem os inteacuterpretes caldaicos que Zoroastro havia dito ser a
alma alada e que quando lhe caem as asas se precipita no
corpo e volta a voar para o ceacuteu quando lhe tornam a crescer
Tendo-lhe os disciacutepulos perguntado de que modo poderiam
261 PORFIacuteRIO Vita Pythagorica 42 JAcircMBLICO Protrepticus 21 Vejam-se ainda os comentaacuterios de FICINO
acerca do simbolismo pitagoacuterico (Commentariolus in symbola Pyth in Supplementum Ficinianum II) Referecircncias conforme notas de GARIN agrave ediccedilatildeo de De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942
262 A passagem referida a Soacutecrates encontra-se em PLATAtildeO Feacutedon 118a Cf Oratio p126 ldquoPostremo ut gallum nutriamus nos admonebit idest ut divinam animae nostrae partem divinarum rerum cognitione quasi solido cibo et caelesti ambrosia pascamus []Hunc gallum moriens Socrates cum divinitatem animi sui divinitati maioris mundi copulaturum se speraret Aesculapio idest animarum medicordquo []
263 A atribuiccedilatildeo feita a Zoroastro das sentenccedilas presentes nos Oraacuteculos Caldeus eacute uma provaacutevel inferecircncia de George Plethon no que foi seguido por Marsiacutelio Ficino em sua Theologia platocircnica (Cf BIDEZ - CUMONT Les Mages helleacuteniseacutes Paris 1938) Pico cita na Oratio os oraacuteculos dos Magos Ezra Zoroastro e Melchiar menciona tambeacutem ldquoEvantes o persa que explica a teologia caldeiardquo e entre essas fontes indica certos textos que ldquoentre os gregos circularam de forma incompletardquo Os textos que circularam entre os gregos de forma incompleta provavelmente satildeo os recolhidos inicialmente por Miguel Psello (que os denomina ldquoditos caldeusrdquo) e depois por George Plethon (que os atribuiacutea aos Magos descendentes de Zoroastro) Cf Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquoOratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin 2013 pp9-61 Em carta a Ficino de 1486 Pico menciona ainda ldquoum livreto sobre os dogmas da teologia caldaica com uma divina e rica elucidaccedilatildeo dos Persas Gregos e Caldeus a propoacutesito de tais dogmasrdquo (apud KRISTELLER Supplementum Ficinianum 1937 pp 272-273) Uma nota na ediccedilatildeo do De Hominis Dignitate etc (1942 p128) confirma Plethon juntamente com Miguel Psello como fontes de acesso de Pico aos Oraacuteculos
264 Cf PLATAtildeO Fedro 246 ss
105
tornar a alma apta para o voo com asas bem plumadas disse
lsquoregai as asas com a aacutegua da vidarsquo265
Na sequecircncia da narrativa piquiana os disciacutepulos de Zoroastro teriam lhe
perguntado como poderiam obter tais aacuteguas A resposta introduz por meio de uma
paraacutebola (ldquoparabolamrdquo) extraiacuteda da boca do profeta um nuacutecleo epistemoloacutegico que
Pico faraacute corresponder ao sistema que estaacute a defender
lsquoO paraiacuteso de Deus eacute banhado e irrigado por quatro rios a partir
daiacute podereis atingir as aacuteguas salutares O nome daquele que
corre de setentriatildeo eacute Pischon que significa justiccedila o que vem
do ocaso chama-se Dichon isto eacute expiaccedilatildeo o que vem do
oriente eacute Chiddekel e significa luz por fim aquele que corre do
sul chama-se Perath que podemos interpretar como feacutersquo266
O modelo de quatro rios encontra-se no Gecircnesis267 e natildeo se sabe de quais
fontes Pico colheu a passagem considerada caldaica268 Aos quatro paradigmas
relacionados agrave justiccedila expiaccedilatildeo luz e feacute o autor faz corresponder um processo
relacionaacutevel agrave tripartita philosophia
Devemos purificar a viscosidade dos olhos com a ciecircncia moral
como com ondas ocidentais devemos dirigir atentamente o
olhar com a dialeacutetica como com um niacutevel boreal devemos nos
habituar a suportar na contemplaccedilatildeo da natureza a ainda fraca
luz da verdade primeiro indiacutecio do sol nascente ateacute que
finalmente com a meditaccedilatildeo teoloacutegica e o santiacutessimo culto de
Deus possamos aguentar vigorosamente como aacuteguias do ceacuteu o
fulgurante esplendor do sol do meio-dia269
265 Oratio p128 ldquoScribunt interpretes Chaldaei verbum fuisse Zoroastris alatam esse animam cumque alae
exciderent ferre illam praeceps in Corpus tum illis subcrescentibus ad superos revolare Percunctantibus eum discipulis alis quo pacto bene plumantibus volucres animos sortirentur lsquoirrigetis dixit alas aquis vitaersquordquo
266 Conforme as palavras atribuiacutedas a Zoroastro (Oratio p 128) ldquoQuattuor amnibus paradisus Dei abluitur et irrigatur indidem vobis salutares aquas hauriatis Nomen ei qui ab aquilone Pischon quod rectum denotat ei qui ab occasu Dichon quod expiationem significat ei qui ab ortu Chiddekel quod lumen sonat ei qui a meridie Perath quod pietatem interpretari possumusrdquo
267 Gecircnesis 2 10-14 ldquoNo Eacuteden nascia um rio que irrigava o jardim e depois se dividia em quatro O nome do primeiro eacute Pisom Ele percorre toda a terra de Havilaacute onde existe ouro [] O segundo que percorre toda a terra de Cuxe eacute o Giom O terceiro que corre pelo lado leste da Assiacuteria eacute o Tigre E o quarto rio eacute o Eufratesrdquo
268 No periacuteodo de redaccedilatildeo da Oratio Pico encontrava-se sob orientaccedilatildeo de Flavio Mitridate e cita em carta endereccedilada a Ficino n0 outono de 1486 seus estudos caldaicos (Supplementum Ficinianum pp 272-3) ldquoChaldaici hi libri sunt si libri sunt et non thesaurirdquo Pico tinha agrave disposiccedilatildeo alguns textos escritos em uma mescla de aramaico e hebraico conforme se extrai de alguns fragmentos Por exemplo os nomes dos rios paradisiacuteacos conforme constam no manuscrito Palatino parecem estar em caracteres etioacutepicos ou em liacutengua aramaico-hebraica conforme notou Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1987) Veja-se para toda a questatildeo Stephen FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) 1998 pp 13 486-87
269 Oratio p128 ldquo[] profecto nihil aliud nisi ut morali scientia quasi undis hibericis oculorum sordes expiemus dialectica quasi boreali amussi illorum aciem liniemus ad rectum Tum in naturali contemplatione debile adhuc veritatis lumen quasi nascentis solis incunabula pati assuescamus ut tandem per theologicam pietatem et sacratissimum Dei cultum quasi caelestes aquilae meridiantis solis fulgidissimum iubar fortiter perferamusrdquo
106
Nesta uacuteltima passagem para conseguir estabelecer uma simetria entre seu
pressuposto processo triaacutedico e as quatro qualidades postuladas pelos caldeus Pico
insere um intervalo no lugar de um dos quatro elementos do modelo caldaico como
se fosse um niacutevel preparatoacuterio colocado antes da etapa final teoloacutegica ldquodevemos nos
habituar a suportar na contemplaccedilatildeo da natureza a ainda fraca luz da verdaderdquo270 Tal
inserccedilatildeo que representa o primeiro contato com as ldquofaiacutescasrdquo iniciais da verdade
permite que seja mantida a analogia entre os trecircs ldquomomentosrdquo do processo filosoacutefico
e a misteriologia caldaica A despeito da impossibilidade de elucidaccedilatildeo do significado
dos rios no mito acima descrito torna-se relevante o esforccedilo realizado pelo escritor
para alcanccedilar uma simetria conceitual entre os conteuacutedos Sob tal prisma a resposta
para a questatildeo de como renovar as asas e tornaacute-las aptas para novos voos encontra-se
no caminho que se inicia com a filosofia moral se desenvolve por meio dos exerciacutecios
dialeacuteticos e se conclui na meditaccedilatildeo teoloacutegica O trecho faz menccedilatildeo ainda a ciclos
relacionados agrave luz solar o que leva Pico ao teacutermino de sua argumentaccedilatildeo a declarar
ter encontrado semelhanccedila com a concepccedilatildeo triaacutedica dos periacuteodos do dia ldquomatutinos
vespertinos e meridianosrdquo cantados primeiramente por Davi e em seguida
explicados por Agostinho271 Os trecircs periacuteodos se referem a fases do conhecimento do
homem sendo que o uacuteltimo referente agrave ofuscante luz do meio-dia encontra eco na
regiatildeo alcanccedilada atraveacutes da contemplaccedilatildeo conforme se conclui no final da exposiccedilatildeo
Esta eacute a luz meridional que inflama os Serafins e do mesmo
modo ilumina os Querubins272
Os sete modelos acima expostos cada qual pertencente a uma distinta
tradiccedilatildeo seja filosoacutefica teoloacutegica ou misterioloacutegica embora natildeo sistematizados pelo
Autor na forma aqui apresentada e aparentemente lanccedilados no texto qual uma
profusatildeo de referecircncias sem qualquer viacutenculo conceitual representam paradigmas
empregados para sustentar a ideia postulada na obra da existecircncia de formatos
270 Observe-se que nessa sentenccedila natildeo eacute feita correspondecircncia alguma com os niacuteveis da filosofia postulados pelo
autor enquanto agraves outras trecircs sentenccedilas Pico faz corresponder os graus da filosofia moral relacionada ao ocaso-ocidente-expiaccedilatildeo da passagem caldaica da dialeacutetica relacionada ao norte-boreal-justiccedila e por uacuteltimo da teologia que Pico relaciona ao sol do meio-dia e agrave feacute
271 Cf Oratio p128 ldquoHae illae forsan et a Davide decantatae primum et ab Augustino explicatae latius matutinae meridianae et vespertinae cognitionesrdquo As passagens mencionadas se encontram em Salmos 55 17 (Vulgata 54) Agostinho De Genesi ad Litteram IV 47 Conforme Agostinho em seu Comentaacuterio ao Gecircnesis ldquoo universo pode apresentar ao mesmo tempo o dia onde estaacute o sol a noite onde natildeo estaacute a tarde de onde o sol se afasta a manhatilde aonde se aproxima [] E noacutes natildeo podemos contemplar tudo isso ao mesmo tempo e natildeo devemos equiparar esta situaccedilatildeo terrena e o circuito temporal e local da luz corpoacuterea agravequela paacutetria celestial onde eacute sempre dia na contemplaccedilatildeo da Verdade incomutaacutevel sempre tarde no conhecimento da criatura em si mesma sempre manhatilde a partir deste conhecimento ao louvor do Criador Pois ali natildeo se fez tarde pela ausecircncia da luz superior mas pela diversidade de conhecimento inferior nem se faz manhatilde como o conhecimento matutino sucede agrave noite da ignoracircncia mas porque eleva para a gloacuteria do Criador o conhecimento vespertino Finalmente tambeacutem o salmista [Davi] natildeo mencionando a noite diz lsquode tarde pela manhatilde e ao meio dia cantarei e anunciarei e ouviraacutes a minha vozrsquordquo
272 Oratio p128 ldquoHaec est illa lux meridialis quae Seraphinos ad lineam inflammat et Cherubinos pariter illuminatrdquo
107
triaacutedicos asceacuteticos que se repetem sob registros diacutespares A partir de tal enfoque a
concepccedilatildeo de domiacutenio da natureza sugerida por alguns dos autores humanistas que
trataram da dignidade do homem antes de Pico eacute suplantada pela ideia de
transcendecircncia de cada um de seus princiacutepios (vegetal animal racional intelectual)
que encontra eco em um percurso de dignificaccedilatildeo (ou posicionamento espacial) em
acircmbito cosmoloacutegico Essa experiecircncia eacute entendida pelo escritor como um caminho a
ser percorrido com o auxiacutelio das corretas ferramentas ndash a teurgia dos Misteacuterios os
exerciacutecios dialeacuteticos filosoacuteficos a contemplaccedilatildeo do ldquosol do meio-diardquo agostiniano
Os sete paradigmas confirmam que a uacuteltima etapa em qualquer dos caminhos
percorridos eacute preenchida pela experiecircncia de encontro com um centro de unidade
final da trajetoacuteria em que o movimento asceacutetico atinge o Absoluto Para Pico esse eacute
um momento de cunho teoloacutegico ndash descartado de qualquer dogma como visto na
discussatildeo do Capiacutetulo III Esse eacute o significado de apoacutes a ldquofilosofia ter acalmado os
conflitos da opiniatildeordquo apoacutes ldquoa dialeacutetica ter acalmado a razatildeordquo entatildeo sim ldquoa teologia
mostraraacute o caminhordquo273 Destarte ao termo de qualquer dos modelos encetados
conhece-se uma dissoluccedilatildeo ndash mesmo no percurso filosoacutefico caso da ldquofaiacutescardquo platocircnica
ndash em prol daquela uniatildeo A esse gecircnero de ocorrecircncia Pico remete a experiecircncia de
Moiseacutes no monte Sinai ao tratar da questatildeo filosoacutefica do amor-Eros ldquoMoiseacutes amou o
Deus que viu e promulgou ao povo aquilo que antes tinha visto na montanha como
contempladorrdquo274
A epopteia de Elecircusis a illuminatio angeacutelica a pertenccedila ao Santo dos Santos
do tabernaacuteculo Giovanni Pico natildeo estava a lanccedilar dados de forma aleatoacuteria em seu
texto Cada referecircncia eacute um tijolo colocado para erigir seu projeto e afirmar sua
mensagem dentro de um planejamento No caso dos paradigmas acima sua intenccedilatildeo
eacute mostrar que o percurso de etapas ascensionais se faz necessaacuterio para a descoberta
de ensinamentos que levam agrave Unidade e que em razatildeo de sua preciosidade
encontram-se custodiados pelo segredo De forma mais patente esse tema seraacute
estabelecido no Heptaplus como seraacute visto a partir do proacuteximo Capiacutetulo
273 Oratio p119 (ldquoA dialeacutetica acalmaraacute a razatildeo a filosofia natural acalmaraacute os conflitos da opiniatildeo a teologia
mostraraacute o caminhordquo) ldquoSedabit dialectica rationis turbas inter orationum pugnantias et syllogismorum captiones anxie tumultuantis Sedabit naturalis philosophia opinionis lites et dissidia quae inquietam hinc inde animam vexant distrahunt et lacerant []Ad illam [theologia] ipsa et viam monstrabit et comes ducet quae procul nos videns properantesrdquo
274 Oratio p112 Para esse modelo de experiecircncia de religaccedilatildeo com o Espiacuterito de Deus Pico se fundamenta em teoacutelogos como Fiacutelon Gregoacuterio de Nissa (La vita di Mosegrave II 182) e sobretudo Dioniacutesio Areopagita (Cf Pier Cesare BORI ldquoI tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandolardquo in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996)
108
CAPIacuteTULO V
RESSONAcircNCIAS CABALIacuteSTICAS E SEU INFLUXO SOBRE PICO
Ao redor de 1480 o papa Sisto IV promove a traduccedilatildeo para o latim de alguns
textos de conteuacutedo cabaliacutestico com o objetivo de apresentaacute-los ao mundo cristatildeo275
Giovanni Pico agrave eacutepoca muito jovem narraria em seu Discurso anos depois como
teria encontrado e adquirido tais livros ldquocom natildeo pequeno dispecircndio de dinheirordquo
lendo-os ldquocom suma diligecircncia e incansaacutevel estudordquo276 Embora essas traduccedilotildees natildeo
tenham sido utilizadas diretamente nas obras piquianas o intento do papa eacute
sugestivo de um tipo de interesse que tomava forma naquele seacuteculo mesmo que de
forma muito tiacutemida277 Cerca de duzentos anos antes de Pico Ramon Llull na
Espanha havia tentado apresentar a Cabala judaica ao mundo latino mas sua
tentativa fora em breve esquecida278 no lsquo400 os estudos cabaliacutesticos ganharam certa
repercussatildeo entre alguns autores italianos especialmente em Florenccedila279 contudo e
de forma bastante consensual Pico foi o primeiro a introduzir com eficaacutecia a Cabala
no pensamento cristatildeo280 razatildeo suficiente para que o estudioso do Autor aproxime
seu olhar aos principais conceitos da doutrina
O Mirandolano define na Oratio o significado de ldquocabalardquo ldquoverdadeira
interpretaccedilatildeo da lei dada a Moiseacutes por Deus que para os Hebreus tem o mesmo
275 Cf PICO Oratio p159 Quais fossem esses textos e quem teria sido o tradutor natildeo eacute informado na obra
piquiana Entretanto sobre o mesmo argumento voltou-se o teoacutelogo alematildeo Konrad Summenhart em 1494 em sua obra Liber bipartitus informando que os textos cabaliacutesticos que interessaram ao papa teriam sido o Seder lsquoolam e o Neophastis A data de tais traduccedilotildees natildeo eacute informada mas deve ser estabelecida entre 1471 e 1484 periacuteodo do papado de Sisto IV Acerca da obra e comentaacuterios de Summenhart leia-se Guido BARTOLUCCI Marsilio Ficino e le Origini della Cabala Cristiana in Giovanni Pico e la Cabbalagrave (org F Lelli) 2014 p54
276 Cf PICO ibid p161 277 Eram poucos os que haviam ouvido falar das doutrinas cabaliacutesticas Tanto na corte pontifiacutecia quanto nas
universidades da Itaacutelia e da Europa nenhum cristatildeo fazia ideia do que fosse a Cabala ndash e nem estava interessado em saber (cf BUSI-EBGI Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 p296) O proacuteprio Pico conta na Apologia (ed Fornaciari 2010 p176-77) que um dos Padres ndash durante o interrogatoacuterio que se seguiu agrave publicaccedilatildeo das Conclusiones ndash perguntara quem era esse tal sujeito chamado ldquoCabalardquo Por outro lado nos casos em que a Cabala natildeo era completamente desconhecida seu estudo era visto como uma ldquobizarrice anedoacuteticardquo e natildeo como uma discussatildeo seacuteria conforme observou Cesare VASOLI em seu ldquoPrefaacuteciordquo (p XXV) a Giovanni Pico della Mirandola (GARIN 2011)
278 O teoacutelogo e filoacutesofo catalatildeo Ramon Llull florescido no seacuteculo XIII e conhecido em espanhol como Raimundo Lulio escreveu em aacuterabe latim e em occitano (langue doc) tendo recebido a alcunha de Arabicus Christianus (aacuterabe cristatildeo)
279 Interessaram-se pelo estudo da Cabala de forma a deixar registros Pier Leone da Spoleto Egidio da Viterbo e Domenico Grimani (Cf Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p 56)
280 Efetivamente Pico mostra ter descoberto confirmaccedilotildees para a revelaccedilatildeo cristatilde no coraccedilatildeo da miacutestica hebraica como antecipado nas Conclusiones e confirmado no Heptaplus A teologia cabaliacutestico-cristatilde de Pico interessaria no Quinhentos a filoacutesofos e miacutesticos sobretudo do ambiente franciscano tendo sido aperfeiccediloada por Johann Reuchlin e Cornelius Agrippa e reutilizada mais tarde pelos ldquoplatocircnicos de Cambridgerdquo Esses autores se serviram de muitas traduccedilotildees latinas realizadas por judeus convertidos ao Cristianismo Na Cabala cristatilde foram mantidos elementos hermenecircuticos maacutegicos e de natureza teosoacutefica sendo retirados os elementos ritualiacutesticos da religiatildeo judaica Sua originalidade em apresentar a Cabala ao mundo cristatildeo eacute confirmada por FORNACIARI (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 pp 14 23) BACCHELLI (Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 np56) CASSUTO (Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p319) GARIN (Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina 2011 p101) SECRET (Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Cap) entre outros
109
significado que receptiordquo uma doutrina recebida ldquopor meio de sucessivas revelaccedilotildees
que um recebia do outro como por direito hereditaacuteriordquo281 De fato a palavra hebraica
qabbalah significa ldquorecepccedilatildeordquo ldquotradiccedilatildeordquo ou ldquoaceitaccedilatildeordquo indicando a transmissatildeo de
doutrinas secretas do misticismo judaico e particularmente caracterizando um
movimento de pensamento de conotaccedilatildeo esoteacuterica282 Em seu valor de ldquorecepccedilatildeordquo
enuncia o conceito de continuidade com o passado e tambeacutem o sentido de
responsabilidade que essa heranccedila espiritual comporta Cada geraccedilatildeo eacute chamada a
receber da precedente o conjunto de valores e ensinamentos secretos sobre os quais
se funda o Judaiacutesmo devendo transmiti-la agrave sucessiva283 O termo que pode ser
encontrado com diferentes grafias ndash entre as quais ldquocabalardquo forma latina empregada
por Giovanni Pico e aqui utilizada ndash284 teria aparecido na literatura apenas no seacuteculo
XI em um escrito do poeta e filoacutesofo Salomon Ibn Gabirol285 enquanto que sua plena
conotaccedilatildeo de conhecimento secreto ganharia corpo por volta do tardio seacuteculo XIII
partindo do ciacuterculo de Isaac o Cego no sul da Franccedila286
A Cabala italiana que desde sua origem ateacute o iniacutecio do seacuteculo XVI exerceu
influxos mais efetivos sobre os pensadores cristatildeos renascentistas que se
interessaram pelo assunto tem sua ldquoespinha dorsalrdquo formada por trecircs cabalistas
como informa Moshe Idel Abraham Abulafia que compocircs a maior parte de suas
obras na Itaacutelia Menahem Recanati e o autor do livro Maarekhet haElohut (A Ordem
da Divindade)287 De acordo com o comentarista os trecircs tinham em comum a
caracteriacutestica conceitual da incompatibilidade com a tradicional visatildeo miacutetica da
divindade apresentando concepccedilotildees mais filosoacuteficas Tal forma diferenciada fez com
que por um lado os cabalistas espanhoacuteis que chegavam agrave Itaacutelia estranhassem as
interpretaccedilotildees da escola italiana por outro que os ciacuterculos neoplatocircnicos de Florenccedila
tivessem um encontro sem atritos com a teologia ldquoquaserdquo filosoacutefica dos rabinos
Abulafia e Recanati288 A forma de Cabala protagonizada na Itaacutelia de qualquer forma
manteve os temas fundamentais do movimento relacionados com a emanaccedilatildeo do
princiacutepio divino e com a concepccedilatildeo de que cada parte da criaccedilatildeo responde a uma
secreta harmonia de desenho transcendente Para melhor entender o emprego da
281 Cf PICO Oratio pp 157 159 Veja-se tambeacutem Apologia (ed Fornaciari 2010) p 29 282 De acordo com IDEL (2008-a p17) desde o seacuteculo X haacute testemunhos da existecircncia de uma forma especiacutefica
de tradiccedilatildeo judaica esoteacuterica mas somente a partir do seacuteculo XII comeccedilam a se organizar registros a esse respeito 283 Giulio BUSI La Qabbalah 2011 p3 284 As grafias mais utilizadas para o termo proveniente do verbo hebraico LeCaBeL (ldquoreceberrdquo) satildeo qabbalah
kabbalah ou CaBaLaacute Eacute de se notar que esta palavra eacute oxiacutetona em Hebraico mas frequentemente falada em outros idiomas tanto como paroxiacutetona (inglecircs) como agraves vezes proparoxiacutetona (espanhol)
285 Salomon Ibn-Gebirol ou Schlomo ben Judah tornou-se conhecido no mundo cristatildeo como Avicebron A atribuiccedilatildeo de ter sido o primeiro a mencionar o termo ldquocabalardquo consta na ldquoIntroduccedilatildeordquo da ediccedilatildeo em espanhol do Zohar do comentarista Leoacuten DUJOVNE (El Zohar Versioacuten Castellana Buenos Aires 1992 p XVII)
286 IDEL 2008a pp17-18 Para compor o quadro histoacuterico de desenvolvimento do misticismo hebraico satildeo relevantes tanto a obra de Gershom SCHOLEM As Grandes correntes da Miacutestica Judaica (opcit) quanto a de Giulio BUSI Introduzione a Mistica ebraica Testi della tradizione segreta del giudaismo dal III al XVIII secolo 1995
287 IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e Cabalistas 2008-b p460 O autor do Sefer Maarekhet haElohut do qual Idel menciona a ediccedilatildeo de Mantova de 1558 natildeo eacute conhecido Sabe-se da existecircncia de uma traduccedilatildeo da obra realizada por Abulafia (ibid np461)
288 IDEL ibid p460 Efetivamente a Cabala italiana era mais ldquoextaacuteticardquo (especificaccedilatildeo que seraacute vista adiante) Para Abulafia por exemplo a crenccedila nas dez Sefirot (a ser verificada adiante) era pior do que a crenccedila cristatilde na Trindade Esse uacuteltimo toacutepico eacute tratado por IDEL em sua tese de doutoramento (As obras e a Doutrina de Abraatildeo Abulaacutefia Universidade Hebraica de Jerusaleacutem 1976 pp436 ss)
110
Cabala nos estudos realizados por Pico e as fontes por ele utilizadas se faz necessaacuterio
inicialmente entender como se deu sua transmissatildeo atraveacutes da histoacuteria e na
sequecircncia quais as principais concepccedilotildees e terminologias utilizadas pelos cabalistas
1 As fontes hebraicas da tradiccedilatildeo esoteacuterica
A transmissatildeo oral
A primazia da transmissatildeo de concepccedilotildees cabalistas natildeo deve ser creditada aos
escritos que lhe foram dedicados ao contraacuterio foi a tradiccedilatildeo oral a ajudar a perpetuar
tais concepccedilotildees sendo que a ocorrecircncia de manuscritos deve ser entendida como
uma seacuterie de episoacutedios excepcionais ocorridos dentro de uma longa histoacuteria de
transmissotildees orais Pressotildees externas como perseguiccedilotildees religiosas sociais e
poliacuteticas determinavam as variaccedilotildees entre as diferentes fases do misticismo judaico e
as consequentes disposiccedilotildees entre o que seria resguardado como esoteacuterico e o que se
tornaria puacuteblico289 A diaacutespora europeia responsaacutevel por fragmentar o judaiacutesmo em
pequenas comunidades criou circunstacircncias que exigiram que a experiecircncia miacutestica
fosse confiada agrave paacutegina escrita uma forma mais concreta de ampliar sua difusatildeo natildeo
sem que se mantivesse o cuidado em preservar uma linguagem simboacutelica que
protegesse os verdadeiros significados Eis a razatildeo como observa Giulio Busi de
serem frequentes nos textos cabaliacutesticos passagens como ldquoquem eacute dotado de intelecto
entenderaacuterdquo indicando a existecircncia de uma aacuterea conceitual reservada apenas agrave
transmissatildeo oral e deixando claro que o texto escrito natildeo apresenta todas as
respostas290 A necessidade histoacuterica de se registrar de forma escrita a tradiccedilatildeo oral
remete ao periacuteodo de exiacutelio babilocircnico e estaacute bem narrada por Giovanni Pico na
Oratio
Esdras291 ao ver claramente que natildeo se podia manter a tradiccedilatildeo
fixada pelos antepassados de transmitir oralmente a doutrina
nos exiacutelios nos massacres nas fugas nos cativeiros do povo de
Israel dado que deste modo pereceriam os misteacuterios da celeste
doutrina concedidos por Deus e natildeo podendo se manter por
muito tempo a memoacuteria desta sem a interposiccedilatildeo de textos
escritos estabeleceu que reunidos os saacutebios entatildeo
sobreviventes cada um manifestasse quanto conservava
guardado na memoacuteria acerca dos misteacuterios da Lei Estes em
289 Tova SENDER Iniciaccedilatildeo agrave Cabala 1992 p9 290 BUSI La Qabbalah 2011 pp5-6 291 Pico refere-se aos livros biacuteblicos de Esdras Os dois primeiros o de Esdras e o de Neemias pertencem ao
elenco dos livros autecircnticos assumidos pela Igreja o terceiro eacute o Esdras grego o quarto eacute outro apoacutecrifo do gecircnero apocaliacuteptico Pico trabalha com o Esdras IV (cf Luiz FERACINE 1999 notas)
111
seguida chamados os escribas foram escritos em setenta
volumes292
Os primeiros sinais de uma reflexatildeo efetivamente miacutestica colocada em forma
escrita remetem ao iniacutecio do segundo seacuteculo de nossa Era periacuteodo em que se insere a
redaccedilatildeo da Mishnaacute ndash essencialmente um corpus juriacutedico Trata-se da ediccedilatildeo escrita
de grande parte da tradiccedilatildeo oral com o conteuacutedo das leis e dos costumes que foram
se enriquecendo atraveacutes de anos de convivecircncia293 Esse conjunto de tratados eacute
amplamente comentado por outro importante texto intitulado Guemaraacute Ao conjunto
Mishnaacute e Guemaraacute deu-se o nome de Talmud em suas duas versotildees uma de
Jerusaleacutem e outra da Babilocircnia294 Esses dois Talmudim (plural de Talmud)
constituem uma espeacutecie de enciclopeacutedia natildeo apenas das tradiccedilotildees legais como das
praacuteticas religiosas da exegese e das lendas difundidas em idade tardo-antiga
contendo consistentes elementos de reflexatildeo acerca de temas miacutesticos295 Ademais
era comum efetuar-se no Talmud referecircncias a partes da literatura que se
encontravam fora do Pentateuco ou seja aos conteuacutedos transmitidos oralmente Por
essa razatildeo as fontes talmuacutedicas embora escritas compotildeem o que seria a Toraacute oral
dentro da tradicional distinccedilatildeo entre lsquoToraacute escritarsquo e lsquoToraacute oralrsquo Conforme explica
Scholem296 a Toraacute escrita eacute o proacuteprio texto do Pentateuco297 jaacute a Toraacute oral eacute a soma
de tudo o que foi comentado por eruditos ou saacutebios acerca daquele corpus escrito
natildeo apenas pelos comentadores talmuacutedicos da Lei mas por todos os demais que
interpretaram o texto Retrocedendo aos tempos mosaicos e de acordo com a
tradiccedilatildeo rabiacutenica Moiseacutes teria recebido ao mesmo tempo ambas as Toraacutes no Monte
Sinai sendo que a parte referente aos ensinamentos natildeo escritos deveria ser
transmitida oralmente de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo ndash de acordo com a antiga proibiccedilatildeo ldquoo
que eacute transmitido oralmente natildeo pode ser escritordquo298 Para o Judaiacutesmo rabiacutenico tudo
quanto um erudito de qualquer eacutepoca viesse a deduzir da Toraacute estaria incluso
naquela tradiccedilatildeo oral fornecida a Moiseacutes validando-se assim a concepccedilatildeo de que as
duas Toraacutes satildeo uma soacute tradiccedilatildeo oral e palavra escrita completam-se mutuamente
292 PICO Oratio p159 ldquoEsdras tunc ecclesiae praefectus post emendatum Moseos librum cum plane
cognosceret per exilia caedes fugas captivitatem gentis Israeliticae institutum a maioribus morem tradendae per manus doctrinae servari non posse futurumque ut sibi divinitus indulta caelestis doctrinae arcana perirent quorum commentariis non intercedentibus durare diu memoria non poterat constituit ut convocatis qui tunc supererant sapientibus afferret unusquisque in medium quae de mysteriis legis memoriter tenebat adhibitisque notariis in septuaginta volumina redigerenturrdquo
293 A Mishnaacute eacute composta por 63 tratados compilados pelo Rabino Yehudaacuteh Hanassiacute no seacuteculo II dC 294 A ediccedilatildeo do Talmud da Babilocircnia eacute considerada a mais completa pois sua composiccedilatildeo iniciou durante o
exiacutelio babilocircnico em 586 aC e chegou ateacute por volta do seacuteculo V dC (cf Marcelo MAGHIDMAN Secircfer Yetsiraacute - A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico 2014 p71)
295 Maiores detalhes acerca da discussatildeo histoacuterica em torno da Mishnaacute podem ser colhidos na obra La Qabbalah de Giulio BUSI (opcit pp38-40) aleacutem de o autor apresentar uma especiacutefica bibliografia para o tema Acerca do Talmud veja-se ainda SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo 1978
296 SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo 1978 p61 297 A Toraacute eacute composta pelos 5 Livros de Moiseacutes (entre 1100 e 1300 aC) Bereshit Shemot Vaikraacute Bamidbar e
Devarim conhecidos respectivamente como Gecircnesis Ecircxodo Leviacutetico Nuacutemeros e Deuteronocircmio chamados anos depois de Antigo Testamento juntamente com os Livros de Profetas (Josueacute Juiacutezes Isaiacuteas Jeremias Ezequieletc) e Escritos (Salmos Proveacuterbios JoacuteDaniel Esdras etc) Todo esse conjunto de livros eacute chamado TaNaKh
298 MAGHIDMAN opcit p71
112
Dentre os pensadores cristatildeos Pico foi dos poucos a evidenciar o esoterismo
presente nas Escrituras como se infere a partir do destaque dado ao tema das duas
Leis recebidas por Moiseacutes A questatildeo da separaccedilatildeo entre a literalidade e oralidade
recebeu foco na Apologia depois de o tema ter se repetido em algumas passagens da
Oratio como a que narra o pedido do ldquoAltiacutessimordquo de tornar puacuteblico o primeiro
daqueles livros para ser lido pelos ldquodignos e indignosrdquo e de confiar os demais
[secretos e correspondentes agrave lei oral] ldquoapenas aos saacutebiosrdquo Em outra passagem Pico
afirma que aquele livro poderia se tornar puacuteblico ndash mantendo sua dimensatildeo secreta
preservada ndash desde que fossem observadas certas condiccedilotildees ldquoa Moiseacutes Deus ordenou
que divulgasse a lei mas que natildeo escrevesse a interpretaccedilatildeo da lei nem a divulgasse
mas a revelasse soacute a Jesus Nave [Josueacute] e este por sua vez aos sumos sacerdotes sob
o sagrado sigilo do absoluto silecircnciordquo299 Outros dois cristatildeos vaacuterios seacuteculos antes de
Pico haviam sido afetados pela temaacutetica da tradiccedilatildeo oral biacuteblica Hilaacuterio e Oriacutegenes
ambos mencionados na Oratio300
Com o passar do tempo os ensinamentos orais em geral passaram a ser
considerados como pertencentes agrave Cabala e o emprego do termo foi sendo cada vez
mais relacionado agrave transmissatildeo oral Exemplo de tal uso eacute verificado no comentaacuterio
feito por Judah Ben Barzilai no seacuteculo XII ao Secircfer Yetsiraacute ndash importante obra
cabaliacutestica a ser abordada adiante ndash ao narrar a criaccedilatildeo do Espiacuterito Santo conta o
talmudista que os saacutebios costumavam transmitir ldquoreservadamente num sussurro
atraveacutes da Cabala declaraccedilotildees dessa espeacutecierdquo301 O esoterismo deveria portanto ser
mantido por cada geraccedilatildeo em virtude da restriccedilatildeo em se confiar noccedilotildees mais
profundas aos textos escritos evitando-se que os segredos da Revelaccedilatildeo fossem
deturpados por leitores despreparados Por essa razatildeo a presenccedila de um mestre se
fazia necessaacuteria na transmissatildeo oral pois atraveacutes da relaccedilatildeo direta entre mestre e
disciacutepulo seria possiacutevel avaliar as intenccedilotildees e garantir as atitudes intelectuais e eacuteticas
do aprendiz preservava-se assim a verdade intacta
Em relaccedilatildeo aos graus que levam ao conhecimento miacutestico haacute informaccedilotildees de
que em eacutepocas mais remotas seguiam-se exigecircncias muito riacutegidas a respeito de
certos atributos morais e mesmo de traccedilos fisiognomocircnicos dos seus participantes302
Em tempos mais recentes ainda foram mantidas algumas limitaccedilotildees ao aprendizado
da Cabala como o limite miacutenimo de idade que dependendo da escola pode variar
dos trinta aos cinquenta anos Pico conhecia a restriccedilatildeo da idade mencionando-a na
Apologia ldquoEsses livros satildeo venerados com tanta devoccedilatildeo que ningueacutem pode tocaacute-los
antes de ter completado quarenta anosrdquo303 Quanto agrave trajetoacuteria iniciaacutetica natildeo haacute
evidecircncias da existecircncia de etapas preacute-definidas que o adepto devesse ou deva
299 PICO Oratio respectivamente pp159 e 155 Grifo nosso 300 Ibid p155 301 SCHOLEM Cabala-Enciclopeacutedia judaica opcit p 6 Grifo nosso 302 SENDER opcit p9 A menccedilatildeo agrave fisiognomia remete ao discipulado pitagoacuterico que talvez tenha exercido
alguma influecircncia em algum nuacutecleo cabaliacutestico posterior Natildeo encontramos em outras fontes quaisquer esclarecimentos nesse sentido
303 Apologia p31 ldquoHi libri apud hebraeos hac tempestate tanta religione coluntur ut neminem liceat nisi anos XL natum illos attingererdquo Paolo FORNACIARI informa que de acordo com a tradiccedilatildeo o estudo soacute pode ser enfrentado por indiviacuteduos do sexo masculino que tenham acima de quarenta anos (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p18)
113
cumprir para ingressar em niacuteveis distintos de conhecimento304 O que se depreende
dos comentaacuterios acerca do misticismo judaico em paralelismo com a forma de outros
percursos miacutesticos eacute que os segredos da transmissatildeo oral conduzem o proseacutelito a
atingir certo estado extaacutetico que lhe permite receber solitariamente uma Revelaccedilatildeo
Haacute portanto uma relaccedilatildeo estreita entre a transmissatildeo oral o segredo mantido
atraveacutes de tal oralidade e o estado de ecircxtase que antecede a recepccedilatildeo da Revelaccedilatildeo
O misticismo judaico e parte relevante dos exerciacutecios asceacuteticos organizam-se
de forma preciacutepua em torno agrave interpretaccedilatildeo das Escrituras Nelas se encerram os
segredos protegidos pela tradiccedilatildeo oral Em claro consenso todos os miacutesticos judeus
desde os Terapeutas descritos por Filon ateacute ao mais recente hassid concordam que a
Toraacute seja um organismo vivente animado por uma vida secreta que aguarda uma
interpretaccedilatildeo miacutestica305 Como explica Scholem a hermenecircutica dos textos sagrados
eacute uma das formas de alcanccedilar seu conteuacutedo ldquovivordquo possibilitando a ocorrecircncia de
dado momento em que a substacircncia de tal conteuacutedo eacute remodelada ao passar pela
ldquocorrente de fogo do sentimento miacutesticordquo Natildeo se contentando com um uacutenico ato
isolado de ecircxtase o miacutestico continuaraacute a buscar a revelaccedilatildeo de algo oculto que o
aproxime cada vez mais do divino306 A relaccedilatildeo entre as palavras sagradas e o segredo
que guardam estaacute tambeacutem descrita na obra cabaliacutestica Zohar ldquocada palavra da
Escritura encerra um misteacuterio supremordquo o sentido literal eacute ldquoapenas um invoacutelucrordquo e
tomaacute-lo por verdade pode ldquotrazer adversidadesrdquo agravequele que o recebe por essa forma
exterior307 Outra passagem do Zohar anuncia que nas mesmas palavras das
Escrituras com as quais se enxerga apenas o sentido literal em outro momento pode
ser enxergado um novo sentido miacutestico sendo cada palavra insubstituiacutevel para os
dois sentidos
ldquo[]assim como para o sentido literal cada palavra eacute
indispensaacutevel sem que se possa acrescer ou eliminar qualquer
uma delas assim tambeacutem para o sentido miacutestico cada palavra eacute
indispensaacutevel sem que se possa acrescer ou eliminar qualquer
palavrardquo308
O miacutestico portanto natildeo rejeita a autoridade do texto escrito ele apenas
invalida uma aparente verdade que possa se mostrar no significado literal
substituindo-a por uma interpretaccedilatildeo que decorre de intuiccedilatildeo a ser alcanccedilada
durante a reflexatildeo miacutestica309 Conforme complementa Scholem as exegeses miacutesticas
sempre partem de palavras exatas para em seguida ldquode forma genialrdquo transformar
304 BUSI opcit pp5-6 305 SCHOLEM As grandes correntes da miacutestica judaica opcit pp 15-16 Em De Vita Contemplativa obra em
que Fiacutelon aborda as seitas judaicas dos Terapeutas a Toraacute eacute relatada como algo afim a um ser vivo o sentido literal eacute o corpo enquanto a alma eacute o significado secreto debaixo da palavra escrita
306 SCHOLEM ibid p 11 Na concepccedilatildeo da ldquocorrente de fogordquo que une o adepto ao divino natildeo haacute como deixar de estabelecer uma analogia com a questatildeo filosoacutefica do ldquolampejordquo descrito por Platatildeo na Carta VII O processo filosoacutefico de conhecimento produz em dado momento uma faiacutesca e subitamente como num lampejo a alma tem uma visatildeo intelectual que pode ser comparada a uma intuiccedilatildeo
307 Zohar III 152a in VULLIAUD I p135 308 Zohar II 99a in VULLIAUD I pp137-38 309 SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo opcit pp 21-22
114
as Escrituras em um corpus simboacutelico permitindo que se abra um portatildeo atraveacutes do
qual o miacutestico passa ldquoum portatildeo que se lhe abre sempre de novordquo Assim ldquoa exegese
miacutestica esta nova revelaccedilatildeo concedida ao miacutestico tem o caraacuteter de uma chaverdquo310
Como havia escrito Oriacutegenes em contexto concernente ao esoterismo ldquoachar as
chaves certas que abriratildeo as portas eacute a grande e aacuterdua tarefardquo311 As formas para se
encontrar ldquoa chave certardquo fazem parte dos segredos protegidos pela tradiccedilatildeo oral
A literatura miacutestica
O conjunto da tradiccedilatildeo escrita cabaliacutestica eacute sustentado por dois importantes
pilares ndash o Zohar e o Secircfer Yetsiraacute ndash aos quais se acrescentam como terceiro pilar
vaacuterios textos de eacutepocas diferenciadas O Secircfer Yetsiraacute (Livro da Formaccedilatildeo) eacute um
pequeno e antigo livro metafiacutesico com apenas seis capiacutetulos Escrito provavelmente
em Terra de Israel estima-se que sua data de composiccedilatildeo se situe entre os seacuteculos II
e III (podendo chegar ateacute o VI dC)312 estabelecendo-se assim como o texto judaico
mais antigo de caraacuteter propriamente miacutestico mesmo em se levando em conta a
possibilidade de ter sofrido alteraccedilotildees ao longo dos seacuteculos313 Sua primeira versatildeo
impressa realizada em Mantova e datada de 1562 tem sido a mais aceita embora
muitas coacutepias circulassem antes no universo judaico e principalmente nos ciacuterculos
fechados dos cabalistas sob formas natildeo impressas314
Os comentaacuterios ao Secircfer Yetsiraacute fazem parte integrante da literatura miacutestica
hebraica e foram amplamente utilizados por seus estudiosos Entre esses sabe-se da
existecircncia de um relevante comentaacuterio perdido realizado por Abulafia que se
fundamentou em sua admiraccedilatildeo por Maimocircnides ndash autor que mesmo natildeo tendo
produzido literatura miacutestica chegou a escrever um comentaacuterio ao primeiro capiacutetulo
do Secircfer Yetsiraacute315 Malgrado a significativa quantidade de comentaacuterios que ensejou
310 SCHOLEM ibid pp 20-23 311 A passagem referida a Oriacutegenes encontra-se em Selecta in Psalmos ref Salmo I in MIGNE Patrologia
Graeca XII 1080 apud SCHOLEM 1978 p 20 312 SCHOLEM As grandes correntes da miacutestica judaica opcit p83 Nome de Deus e Teoria da linguagem
opcit p21 Para BUSI a data de compilaccedilatildeo do Secircfer Yetsiraacute situa-se entre os seacuteculos VI e VII (2011 p9 e 46 ss) 313 O Secircfer Yetsiraacute pode ser classificado naquilo que os hebreus chamam de Maassecirc Bereshit (Atos de Criaccedilatildeo)
conjunto representado por textos cosmoloacutegicos ou cosmogocircnicos relacionados agrave Criaccedilatildeo do Universo ndash o todo ou os seres em particular ndash em distinccedilatildeo aos escritos de Maassecirc Mercavaacute relacionados agrave natureza divina ao trono celestial e agrave hierarquia dos Anjos O nome ldquomercavaacuterdquo relaciona-se agrave visatildeo da carruagem de fogo subindo aos ceacuteus que estaacute descrita em Ezequiel 101 e Isaiacuteas 61-2 (cf MAGHIDMAN opcit p107)
314 A ediccedilatildeo de Mantova apresenta tanto uma versatildeo curta do Secircfer Yetsiraacute acrescida de comentaacuterios quanto uma versatildeo longa inclusa em seu apecircndice embora existam bem mais do que duas versotildees do Secircfer Yetsiraacute como pode ser verificado em estudo comparativo efetuado por Hayman no qual satildeo apresentadas dezenove versotildees seis variaccedilotildees do texto longo dez da versatildeo curta e outras trecircs frutos do comentaacuterio de Saadia Gaon (892-943) A uacuteltima versatildeo comentada por Gaon tem a data precisa do ano 931 e eacute interessante observar que o proacuteprio Gaon aponta para algumas alteraccedilotildees que realizou no texto original (mudando por exemplo o nuacutemero de Portotildees da Sabedoria Divina de 221 para 231 no paraacutegrafo 19) assim alimentando duacutevidas se teria feito outras alteraccedilotildees Os manuscritos tomados como base para cada uma das versotildees satildeo o existente na Biblioteca do Vaticano (versatildeo longa) o de Parma (versatildeo curta) e a versatildeo comentada de Saadia Gaon proveniente da Guenizaacute do Cairo e atualmente na Biblioteca de Cambridge (Peter HAYMAN Sefer Yetsira Texts and Studies in Ancient Judaism 2004 pp2 12-14 31) Sobre as versotildees do Secircfer Yetsiraacute veja-se ainda SCHOLEM (1989 pp21 27) O Apecircndice II da obra de MAGHIDMAN (opcit) apresenta em portuguecircs a versatildeo curta do Secircfer Yetsiraacute
315 Para Abulafia no Guia dos Perplexos de Maimocircnides encontra-se a verdadeira teoria do Cabalismo (SCHOLEM 1995 pp 141-142) Para a averiguaccedilatildeo de outros comentaacuterios acerca do Secircfer Yetsiraacute veja-se HAYMAN opcit p31 BUSI opcit p48 SCHOLEM 1989 pp26 46
115
o autor do Secircfer Yetsiraacute permanece desconhecido Por muito tempo considerou-se
que tivesse sido Abraatildeo a concebecirc-lo ndash a obra de Pico mostra a aceitaccedilatildeo dessa
autoria ainda no lsquo400 ndash muito provavelmente em razatildeo da menccedilatildeo feita ao patriarca
no uacuteltimo paraacutegrafo do livro onde se lecirc ldquoe quando Abraham nosso pai olhou viu
entendeu perscrutou gravou e entalhou teve ecircxitordquo316 Por esse motivo o Livro da
Formaccedilatildeo eacute tambeacutem conhecido pelo nome Otiot Deavraham Avinu (O alfabeto do
patriarca Abraatildeo)317 De toda forma e embora sua autoria mantenha-se
desconhecida ainda hoje o Secircfer Yetsiraacute eacute considerado o primeiro texto especulativo
escrito no idioma hebraico318 Sua peculiaridade encontra-se em estar voltado para a
alma individual humana ndash e natildeo para os judeus de modo particular ndash razatildeo de o
nuacutemero doze ser indicativo dos signos do zodiacuteaco por exemplo e natildeo das
tradicionais doze tribos de Israel Tambeacutem natildeo menciona Moiseacutes a Toraacute ou o
Messias Assim de forma incomum na literatura hebraica a obra traccedila o ldquodesenho
das forccedilas ocultas do cosmordquo sem fazer quase nenhuma referecircncia direta ao texto das
Escrituras ou agrave tradiccedilatildeo poacutes-biacuteblica como complementa Giulio Busi319
Em termos de conteuacutedo o Secircfer Yetsiraacute pode ser descrito em linhas bastante
sucintas320 como um apanhado de conhecimentos de cunho miacutestico com notas
filosoacuteficas astroloacutegicas e cosmoloacutegicas da Antiguidade em que predominam
princiacutepios de simetria reciprocidade e correspondecircncia Em linguagem enigmaacutetica
encontra-se delineado o paralelismo entre as letras do alfabeto hebraico com
categorias da criaccedilatildeo dos mundos (angeacutelico celeste e material) e com funccedilotildees de
natureza fiacutesica bioloacutegica e psiacutequica de forma a estabelecer uma relaccedilatildeo entre a
infinitude de Deus e a finitude de sua obra ou em outras palavras uma relaccedilatildeo entre
a dimensatildeo material e a espiritual O Secircfer Yetsiraacute introduz ainda a noccedilatildeo de Sefirot
ndash a ser verificada adiante ndash um dos nuacutecleos fundamentais do pensamento
cabaliacutestico capaz de presentear os miacutesticos com uma doutrina orgacircnica do aspecto
secreto da Criaccedilatildeo321
O Secircfer ha-Zohar (Livro do Esplendor) ndash ou apenas Zohar ndash embora
redigido vaacuterios seacuteculos apoacutes o Secircfer Yetsiraacute eacute considerado por muitos como o
trabalho mais importante acerca da Cabala322 A despeito de ter tido sua autoria
estabelecida durante muito tempo no segundo seacuteculo e atribuiacuteda ao rabino Shimon
Bar Yohai ndash fato que tradicionalmente ainda prevalece mesmo em ediccedilotildees mais
recentes ndash alguns estudos acadecircmicos do seacuteculo passado especialmente de Gershom
316 Secircfer Yetsiraacute trad MAGHIDMAN Apecircndice II 2014 p174 317 SENDER 1992 p27 Dentre as hipoacuteteses de autoria do Secircfer Yetsiraacute Sender aponta para Rabi Akiva que
teria vivido em Israel no seacuteculo II de nossa Era (ibid pp27-28) 318 MAGHIDMAN opcit p19 319 BUSI opcit p9 320 Natildeo cabe nestas paacuteginas a anaacutelise do Secircfer Yetsiraacute ao qual literatura especializada tem se dedicado Na
sequecircncia seratildeo verificadas as principais concepccedilotildees do Secircfer Yetsiraacute que exerceram influecircncia sobre Pico della Mirandola Para comentaacuterios referentes ao Secircfer Yetsiraacute em portuguecircs veja-se a obra de MAGHIDMAN (2014)
321 BUSI opcit pp9 e 46 ss SCHOLEM 1995 p83 322 SCHOLEM 1989 p 52 A importacircncia do Zohar pode ser medida pela relevacircncia que lhe foi dada por um
dos maiores cabalistas do seacuteculo XVI Isaac Luria (1534-1572) que o utilizou como principal base de seus estudos Luria foi o responsaacutevel por uma das mais importantes escolas de Cabala revolucionando o misticismo hebraico (inclusive com suas doutrinas de transmigraccedilatildeo) e todo o Cabalismo posterior
116
Scholem apontam para o judeu espanhol Moshe de Leoacuten como seu mais provaacutevel
autor aleacutem de responsaacutevel por sua publicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo no seacuteculo XIII323
Escrito em aramaico e hebraico medieval o Zohar natildeo eacute exatamente um livro
com um texto sistemaacutetico mas um conjunto de livros que reuacutene vaacuterios contos em que
os personagens utilizando-se da Biacuteblia como pretexto discutem e efetuam inserccedilotildees
narrativas O conjunto de textos aborda vaacuterios temas da vida judaica desde preceitos
e oraccedilotildees ateacute situaccedilotildees do cotidiano passando por anotaccedilotildees alquiacutemicas
astronocircmicas e astroloacutegicas As discussotildees progridem em direccedilatildeo a comentaacuterios
miacutesticos sobre a Toraacute revelando concepccedilotildees teosoacuteficas abrangentes acerca da
natureza de Deus da origem e da estrutura do universo da hierarquia dos mundos e
da transmigraccedilatildeo e destino das almas entre outros temas de natureza filosoacutefico-
metafiacutesica Seu fundo conceitual apoia-se na relaccedilatildeo entre as Sefirot e a regecircncia do
mundo desenvolvido a partir da ideia de que cada universo inferior reflete o seu
superior Cabe referir que em sua completude o Zohar natildeo trata apenas do bem
acolhe ainda uma intrincada representaccedilatildeo do domiacutenio das forccedilas negativas
designadas com a locuccedilatildeo sitra ahara que significa ldquoa outra parterdquo324
Aleacutem do Zohar e do Secircfer Yetsiraacute outras obras satildeo emblemaacuteticas e
obrigatoacuterias ao estudo do misticismo hebraico por apresentarem estreita relaccedilatildeo com
o Secircfer Yetsiraacute Quase todas se encontram entre as fontes de Giovanni Pico razatildeo de
nosso interesse Uma delas eacute o Secircfer ha-Bahir (Livro da Iluminaccedilatildeo) tambeacutem
conhecido como ldquoO Midrash do Rabino Nehuniah Ben Hakanahrdquo atribuiacutedo ao
rabino midraacuteshico que lhe daacute o nome325 O Bahir integra uma corrente estritamente
metafiacutesica da Cabala diretamente relacionada ao nuacutecleo de pensadores espanhoacuteis de
onde se originou Azriel de Gerona ndash que realizou um relevante escrito sobre as Sefirot
ndash mestre do notabilizado filoacutesofo e cabalista Nachmacircnides tambeacutem pertencente ao
mesmo grupo326 Aleacutem de tratar de questotildees acerca das emanaccedilotildees divinas o texto
aborda questotildees relacionadas agrave alma agrave transmigraccedilatildeo aos anjos e ao alfabeto
hebraico327
Compotildee ainda a construccedilatildeo do pensamento cabalista um rico repertoacuterio de
visotildees celestes guardado na chamada literatura dos ldquoaacutetrios celestiaisrdquo ou dos
Heikhalot (literalmente ldquopalaacuteciosrdquo) constituiacutedo por escritos enigmaacuteticos datados do
primeiro seacuteculo da era cristatilde ndash embora redigidos provavelmente em eacutepoca mais
323 Moshe de Leoacuten alegava ter descoberto (e natildeo escrito) o Zohar em Guadalajara cidade espanhola onde vivia SCHOLEM afirma que De Leoacuten ocultou-se atraacutes do nome de Shimon Bar Yohai para escrever aquela que seria sua obra maior (1989 p 52) Tambeacutem Pico atribuiacutea a autoria do Zohar a ldquoSimeon Antiquusrdquo
324 BUSI opcit pp 72-74 SENDER opcit p34 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p 630
325 Sheila RABIN Pico on Magic and Astrology in Pico della Mirandola New Essays (org Dougherty MV) 2008 p 156 SCHOLEM considera o texto como pertencente provavelmente ao seacuteculo XI (1989 p 39)
326 GARIN 2011 p115 Azriel ben Menahem de Gerona foi mestre de Mosheh ben Nahman de Gerona conhecido por Nachmacircnides Este uacuteltimo notabilizou-se por seus comentaacuterios miacutesticos do Pentateuco e por seus comentaacuterios ao Talmud
327 O conceito de transmigraccedilatildeo das almas penetrou na Cabala dos seacuteculos sucessivos graccedilas ao Bahir Veja-se maiores detalhes em BUSI opcit pp 55 63 MAGHIDMAN opcit p91 Existe uma traduccedilatildeo em portuguecircs do Bahir originalmente traduzido e comentado por Arieh KAPLAN (Bahir o Livro da Iluminaccedilatildeo-atribuiacutedo ao Rabino Nehuniaacute ben haKana) realizada por Maria Regina Nogueira contendo o texto original hebraico (Ed Imago Rio de Janeiro 1992)
117
tardia O material conteacutem relatos de experiecircncias pessoais de ascensatildeo aos planos
superiores representados por uma estrutura arquitetocircnica de luzes A partir do
misticismo dos Heikhalot os cabalistas herdaram um complexo sistema angeoloacutegico
e a representaccedilatildeo de uma ascese da alma articulada em etapas cognitivas sempre
mais elevadas Efetivamente a ampla tratativa aborda as vaacuterias etapas de um
percurso asceacutetico sob um gradual processo de conhecimento328 Os tratados
apresentam algumas narrativas obscuras em que tantas vezes soberbos anjos estatildeo
colocados como guardiotildees dos palaacutecios das regiotildees celestes Por exemplo no
Heikhalot rabbati o mais ceacutelebre o miacutestico pode alcanccedilar os peacutes do trono superno
somente se ultrapassar uma sucessatildeo de sete edifiacutecios cujos portotildees representam
tantas outras etapas de seu percurso iniciaacutetico ldquopenetrar nos palaacutecios divinos
significa portanto apoderar-se de uma geografia transcendente que retrata o
invisiacutevel com a precisatildeo de um mapardquo329 Dado que os guardiotildees angeacutelicos ndash
obstaacuteculos na ldquoviagem em direccedilatildeo agrave gloacuteria excelsardquo ndash podem ser dominados agrave medida
que se conheccedilam seus nomes e atributos os tratados dos Heikhalot servem como um
guia que ensina seus nomes e as respostas necessaacuterias para superar as provas
colocadas por esses seres ldquofeitos de granizo e fogordquo330 Pico mostrava ter
familiaridade com os Heikhalot pois na De Hominis Dignitate faz menccedilatildeo agraves
transformaccedilotildees de Enoch conforme episoacutedio narrado em outro desses tratados331
Assim como o Zohar que aborda as forccedilas negativas uma natildeo irrelevante integraccedilatildeo
eacute apresentada dentro da arquitetura supramundana dos Heikhalot o Midrash Konen
informa a existecircncia sempre nas moradas superiores de uma seacuterie simeacutetrica de
palaacutecios infernais guardados por anjos do mal332
Finalmente natildeo poderia deixar de ser citada a literatura midraacuteshica O termo
ldquomidrashrdquo significa em hebraico ldquointerpretaccedilatildeordquo e indica um amplo nuacutemero de
histoacuterias e comentaacuterios biacuteblicos que se mesclam entre documentos e lendas redigidos
entre o iniacutecio do seacuteculo V e a metade da Idade Meacutedia Nos vaacuterios Midrashim o texto
das Escrituras eacute submetido a uma anaacutelise minuciosa mostrando as implicaccedilotildees
escondidas sob suas linhas Assim em contraste com a interpretaccedilatildeo
literal o Midrash designa uma exegese profunda que tenta revelar o espiacuterito velado
das Escrituras examinando possibilidades que natildeo se mostram em uma leitura
literal do texto Seu principal objetivo nesse sentido eacute o de propor o maior nuacutemero
de significados possiacuteveis de acordo com o ensinamento rabiacutenico que prescreve ldquogirar
e regirar a Toraacute pois que nessa estaacute absolutamente tudordquo333 Assim como nos demais
328 A imagem da carruagem celeste eacute bastante presente simbolizando como em outras tradiccedilotildees ndash inclusive a
platocircnica ndash o deslocamento do adepto atraveacutes do espaccedilo supramundano graccedilas ao qual ele alcanccedila a contemplaccedilatildeo de uma complexa arquitetura coacutesmica Cf BUSI opcit pp9-10 43 SENDER op cit p34
329 BUSI opcit p43 330 BUSI idem 331 Cf Oratio p107 O tratado Alfabeta derabbirsquoAqiva descreve o episoacutedio de Enoch patriarca biacuteblico
antediluviano alccedilado aos ceacuteus pelo Senhor e transformado no anjo Metraton dominante sobre as hierarquias angeacutelicas e ao qual satildeo atribuiacutedos setenta e dois nomes
332 BUSI opcit p45 np145 Comentaacuterios e textos acerca dos Heikhalot podem ser encontrados nas seguintes obras indicadas na bibliografia de Giulio Busi GSCHOLEM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York 1960 PSCHAFER Hekhalot Studien Tubingen 1988 Para traduccedilotildees italianas veja-se RAVENNA-PIATELLI (org) Cabbala ebraica I sete santuari Milano 1990
333 BUSI opcit pp41-42
118
manuscritos de caraacuteter miacutestico utilizados pelos mekubalim334 os Midrashim incluem
natildeo poucas passagens de argumentaccedilotildees cosmogocircnicas que permitem especulaccedilotildees
acerca das origens da Criaccedilatildeo e da estrutura das moradas celestes A exposiccedilatildeo
midraacuteshica eacute comparada no Talmud a um ldquomartelo que desperta as faiacutescas
adormecidas na rochardquo335
As fontes cabaliacutesticas de Pico
Em carta endereccedilada ao sobrinho Gian Francesco Giovanni Pico informa
sobre alguns livros hebraicos que teria tomado emprestado de certo judeu siciliano
por um periacuteodo de vinte dias quando jaacute exercitava com relativa facilidade o
idioma336 O testemunho desse empreacutestimo junta-se a uma vasta documentaccedilatildeo que
comprova o fato de que o jovem aprendiz da Cabala teria lido todos os textos
hebraicos talmuacutedicos e midraacuteshicos que podia comprar encontrar ou pedir337 Parte
consideraacutevel desse material se lhe tornou disponiacutevel ou inteligiacutevel atraveacutes do auxiacutelio
de trecircs de seus principais mestres Elia Del Medigo Yohanan Alemanno e Flavio
Mitridate que desempenharam importante papel nas traduccedilotildees de muitos textos
seja do aacuterabe para o hebraico ou do hebraico para o latim338 A aquisiccedilatildeo da vasta
doutrina referente ao Hebraiacutesmo deve ser creditada ademais agraves conversaccedilotildees tidas
com tantos outros judeus eruditos e agraves leituras diretas de manuscritos hebraicos dos
quais comprovadamente possuiacutea um nuacutemero consideraacutevel339 Os manuscritos
foram sem duacutevidas o meio de acesso mais importante atraveacutes do qual o pensamento
judaico ndash especificamente o cabaliacutestico ndash se tornou disponiacutevel para Pico340
Nas duas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XV seria possiacutevel encontrar em Florenccedila
um nuacutemero consideraacutevel de manuscritos de conteuacutedo especulativo judaico Havia os
volumosos escritos de Alemanno com abundantes citaccedilotildees de fontes medievais
hebraicas341 os textos de Abraham Farisol que passou um tempo em Florenccedila com
menccedilotildees a um grande nuacutemero de livros judaicos as epiacutestolas do cabalista espanhol
334 Mekubalim ou ainda Maskilim (iniciados) satildeo denominaccedilotildees que muitos autores cabalistas recebem (cf
IDEL 2008a p17) 335 BUSI opcit pp41-42 336 GARIN 2011 p 99 337 Giovanni SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola - La Fenice degli Ingegni 1921 p143 338 Crofton BLACK Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics 2006 p 12 BUSI opcit p 84 339 Tatildeo ampla era a coleccedilatildeo de livros hebraicos de Pico que ensejou a criaccedilatildeo de obras especiacuteficas voltadas ao seu
estudo Veja-se por exemplo Pearl KIBRE The Library of Pico della Mirandola New York 1936 Giuliano TAMANI I libri ebraici di Pico della Mirandola in Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di studi del cinquecentesimo anniversario della morte (1494-1994) org G C Garfagnini Firenze 1997 pp 491-530 Giulio BUSI Chi non ammireragrave il nostro camaleonte La biblioteca cabbalistica di Giovanni Pico della Mirandola in Lenigma dellebraico nel Rinascimento Nino Aragno Editore Torino 2007 pp 25ndash45 Moshe IDEL The Throne and the Seven-Branched Candlestick Pico della Mirandolas Hebrew Source in Journal of the Warburg and Courtauld Institutes XL 1977 pp 290-292 R SIMON Bibliotheca selecta I Um bom recolhimento do conteuacutedo da biblioteca de Pico pode ser encontrado ainda no ldquoAppendice La Biblioteca di Picordquo na obra Giovanni Pico della Mirandola de GARIN (2011 pp106 ss) Acerca dos hebreus com os quais Pico teve contato veja-se Umberto CASSUTO (opcit pp316-318)
340 Chaim WIRSZUBSKI com o auxiacutelio de seus alunos Moshe Idel e Carmia Schneider deteacutem o meacuterito de ter seguido o percurso intelectual de Pico identificando os textos e os autores atraveacutes dos quais estudou a Cabala daiacute resultando seu fundamental volume Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Veja-se ali em especial entre as paacuteginas 60 a 64 toda a questatildeo das fontes cabaliacutesticas de Pico
341 Para uma lista das fontes mais importantes do pensamento de Alemanno veja-se IDEL The Study Program of R Yohanan Alemanno in Tarbiz XLVIII 1979 pp 303-330
119
Isaac Mar Hayyim os escritos de Moshe ben Yoav342 E de suma relevacircncia o vasto
volume de material cabaliacutestico traduzido por Flavio Mitridate para o latim343 A
maioria dos manuscritos que chegou agraves matildeos de Pico foi-lhe elucidada justamente
por Mitridate A principal missatildeo do mestre convertido exercida com paixatildeo era
comprovar ao pupilo o argumento de que a Cabala provava a verdade do
Cristianismo para tanto procurou realizar traduccedilotildees que fossem literais mas ao
mesmo tempo capazes de lidar com as sutilezas do vocabulaacuterio cabaliacutestico344 Os
manuscritos apresentam vaacuterias anotaccedilotildees feitas pelo mestre agraves margens das
traduccedilotildees para servir de guia ao pupilo em suas possiacuteveis analogias Um desses
comentaacuterios anotado agraves margens da traduccedilatildeo do De Secretis Legis de Abulafia
relata que os dois ele e o conde se encontravam em ldquouma missatildeo comum de
profunda seriedaderdquo sendo bastante significativo do grau de comprometimento que
pretendiam dar agravequeles estudos345
De maneira mais abrangente que Mitridate como parece ser consensual o
mestre cabalista Alemanno estava bem familiarizado com a maioria dos escritos
miacutesticos judaicos provenientes tanto de autores contemporacircneos e medievais ndash da
Itaacutelia Espanha e Alemanha ndash como de fontes anteriores pertencentes agrave literatura dos
Heikhalot Agrave exceccedilatildeo do livro do Zohar do qual Alemanno natildeo tinha estreito
conhecimento haacute registros de seu acesso a uma numerosa quantidade de textos
relacionados agrave literatura biacuteblica talmuacutedica e midraacuteshica Notadamente versado nas
mais variadas correntes filosoacuteficas fossem hebraicas gregas ou aacuterabes observa-se
nas citaccedilotildees de seus trabalhos uma quantidade surpreendente de livros raros ou
pouco difusos o que constitui prova de uma erudiccedilatildeo pouco comum346
Dentre os trecircs professores mencionados no entanto o primeiro a abrir para
Pico as portas de fato ao universo da Cabala embora o tema natildeo lhe despertasse
maior interesse347 foi Elia Del Medigo Em longa carta enviada a Giovanni o rabino
antecipava ldquoVendo que Vsa Senhoria se empenha muitiacutessimo nessa bendita Cabala
342 IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in BemporadndashZatelli (org) La
Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 21 343 Entre tantos outros Mitridate traduziu o livro do conhecido rabino Eleazar de Worms o Hokhmat ha-
Nefesh sob o tiacutetulo Liber De Anima em 1486 traduziu um grupo de comentaacuterios sobre o Secircfer Yetsiraacute presentes no cod Vat hebr 191 tambeacutem o De Secretis Legis (Sitre Torah) de Abulafia presente no cod Vat hebr 190 (cf Franco BACCHELLI opcit pp 35 57) Uma lista completa das traduccedilotildees de Mitridate pode ser encontrada no livro de WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism (1987 pp 10-65)
344 Alguns desses textos natildeo existem mais Os que ainda restam encontram-se em cinco manuscritos mantidos na biblioteca do Vaticano que juntos contabilizam mais de 3500 paacuteginas Os manuscritos sobreviventes satildeo Vat Ebr 189 Vat Ebr 190 Vat Ebr 191 Chigi A VI 190 e Vat Lat 4273 (BLACK opcit p 16) Em relevante desenvolvimento nos estudos de Pico um trabalho tem sido realizado para editar esse corpus em uma seacuterie entitulada The Kabbalistic Library of Giovanni Pico della Mirandola sob direccedilatildeo de Giulio Busi O primeiro volume da seacuterie foi publicado em 2004 intitulado The Great Parchment Flavius Mithridatess Latin Translation the Hebrew Text and an English Version (org) G Busi S M Bondoni e S Campanini (Ed Nino Aragno Torino 2004)
345 WIRSZUBSKI opcit p 69 BACCHELLI opcit 2001 p 57 346 CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p315 IDEL 1998 p 34 347 Elia de Medigo presidia a escola talmuacutedica italiana de vieacutes decididamente aristoteacutelico e hostil ao
pensamento cabaliacutestico mais em razatildeo da orientaccedilatildeo filosoacutefica de cunho neoplatocircnico que apresentava do que por um antagonismo aos seus procedimentos Tal aspecto incomodava muitos outros intelectuais aristoteacutelicos como assinala BROCCHIERI (Pico della Mirandola 2011 p12) Entretanto e apesar de natildeo mostrar especial interesse pelo tema os escritos de Del Medigo tanto em hebraico quanto em latim constituem uma fonte muito confiaacutevel para uma descriccedilatildeo abrangente da Cabala como pontua IDEL (1998 p 20)
120
quero vos indicar algo que ateacute hoje natildeo quis vos mostrarrdquo A carta ajuda a lanccedilar luz
sobre as pesquisas literaacuterias de seu aluno uma vez que inclui trecircs listas colunadas
com sugestotildees de bibliografias sendo uma essencialmente cabaliacutestica a primeira
coluna apresenta obras que serviriam aos estudos aristoteacutelicos de Pico a segunda
mostra uma seacuterie de autores aacuterabes na terceira haacute uma lista entitulada ldquoqabalahrdquo
Nesta leem-se os nomes (sic) ldquoSefer Hazzocirchar MeirahrsquoEnayim Scharsquoarei Orah
Reqanati Marsquoarekheth ha Elohouth Pegraverousch Sefer Uetsirahrdquo e ao final deles a
admissatildeo ldquoe muitos outros cujos nomes natildeo me ocorrem porque estou com muitas
ocupaccedilotildeesrdquo348
Mantendo-se a ordem apresentada Del Medigo refere-se primeiramente ao
Zohar Em seguida ao texto Meirah Einayim um provaacutevel comentaacuterio sobre
Nachmacircnides feito por Isaac de Acre que pode ser estabelecido entre o final do
seacuteculo XIII e a metade do seacuteculo XIV O Scharsquoarei Orah eacute um texto do comentador
cabalista espanhol Joseph Gikatilla aluno de Abulafia compreendido em periacuteodo
aproximativo ao anterior A indicaccedilatildeo segue com a menccedilatildeo impliacutecita a algum ou a
alguns comentaacuterios atribuiacutedos ao rabino Menahem Recanati do seacuteculo XIII e o
tratado anocircnimo Maarekhet ha-Elohut do final do seacuteculo XIII e iniacutecio do XIV
contendo algumas interpretaccedilotildees cabaliacutesticas A lista se encerra com a sugestatildeo de
um comentaacuterio referente ao Secircfer Yetsiraacute As inuacutemeras recorrecircncias de marcas em
algumas seccedilotildees desses manuscritos evidenciam que Pico leu tais textos marcou as
passagens de interesse e as reutilizou em seus proacuteprios trabalhos tanto como fontes
para suas Conclusiones Cabalisticae quanto como bases para a elaboraccedilatildeo do
Heptaplus349
Quanto ao fundamental Secircfer Yetsiraacute o proacuteprio Pico conta tecirc-lo lido em lsquo86
juntamente ao comentaacuterio com o qual estava unido embora o mesmo natildeo conste da
lista de Elia Em relaccedilatildeo ao Zohar indicado na bibliografia de Elia natildeo se sabe
exatamente se o conheceu de forma direta ou indireta embora o tenha mencionado
tanto nas Conclusiones cabalisticae quanto no Heptaplus350 Tambeacutem a Oratio
apresenta certa analogia com o Zohar no que diz respeito agrave celebraccedilatildeo da liberdade e
potecircncia do espiacuterito humano o que poderia comprovar a leitura daquela obra351
348 ldquo[] et multa alia quorum nomina non occurunt mihi quia multas habeo ocupacionesrdquo O manuscrito estaacute
em Paris Bibliothegraveque Nationale Lat 6508 ff 71r -77v Fragmentos dessa carta foram transcritos e discutidos por Jules DUKAS Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 pp 48-65 O trecho com a citaccedilatildeo das bibliografias em questatildeo encontra-se em f75r e estaacute transcrito nas pp 56-57 de DUKAS (opcit) e em seu Bulletin du Bibliophile vol XLII 1875 p340 Sobre as relaccedilotildees entre Pico e Del Medigo e outros detalhes sobre a carta em questatildeo veja-se Bohdan KIESZKOWSKI Les Rapports entre Elie del Medigo e Pic de la Mirandola 1964 pp 41-81
349 Efetivamente eacute consensual que Pico tenha utilizado Recanati como fonte principal para as Conclusiones Cabalisticae dois dos trabalhos do rabino foram traduzidos para Pico por Flavio Mitridate ndash os comentaacuterios ldquosobre o Pentateucordquo e ldquosobre as oraccedilotildeesrdquo Especialmente as 47 teses cabaliacutesticas do primeiro grupo satildeo quase todas inspiradas pelo Commento al Pentateuco (cf WIRSZUBSKI Picos Encounter with Jewish Mysticism 1989 pp53-56 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633 BLACK Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics 2006 p 17)
350 Respectivamente em Conclusiones II 24 p131 e em Heptaplus p180 No Heptaplus Pico faz alusatildeo ao presumiacutevel autor do Zohar Shimon Bar Yohai ldquoSimeon antiquusrdquo GARIN informa que ldquonatildeo se sabe ao certo se Pico conheceu o Zoharrdquo ou se o conheceu atraveacutes da leitura de Menahem Reca atribuindo a VULLIAUD (vol II p 19) a certeza de Pico ter lido o Zohar diretamente (2011 p102)
351 A celebraccedilatildeo da potecircncia humana no Zohar concentra-se na figura do Adam Kadmon o homem cuja natureza eacute determinada e estaacute acima de todos os anjos Em Pico diferentemente a natureza do homem natildeo eacute
121
Certeza eacute o fato que Pico possuiacutea o Secircfer ha-Bahir pertencente agrave corrente metafiacutesica
de cujo nuacutecleo saiacuteram os escritos de Nachmacircnides352 A obra consta do inventaacuterio de
seus livros integrado ainda por obras da corrente dos profetas miacutesticos como
Abraham ibn Ezra Moshe de Narbona Eleazar de Worms e Gikatilla este uacuteltimo
certamente estudado com atenccedilatildeo visto que fazia parte da lista de Del Medigo todas
essas obras jaacute estavam em sua posse no periacuteodo de redaccedilatildeo das Conclusiones Sua
biblioteca dispunha ainda de escritos dos comentaristas medievais Abulafia Azriel
de Gerona e do acima mencionado Menahem Recanati assim como de inuacutemeros
trabalhos anocircnimos353 Outrossim e antes de se dedicar aos estudos cabalistas Pico
havia meditado longamente sobre o pensamento de Maimocircnides e Avicebron judeus
ceacutelebres no mundo cristatildeo tendo encontrado neles algumas das raiacutezes da gnose
hebraica que reencontraria mais tarde Tambeacutem natildeo lhe passaram despercebidas as
ressonacircncias que certos procedimentos cabaliacutesticos exerceram sobre Ramon Llull na
Espanha a ponto de interessar-se pelos aspectos praacuteticos da Cabala como seraacute
visto354
2 O Cosmo Cabalista
Na mencionada carta de Elia Del Medigo na qual constam as indicaccedilotildees
bibliograacuteficas transmitidas ao pupilo Giovanni lecirc-se ldquoTrata-se de algo tatildeo secreto
que ningueacutem dentre os contemporacircneos tem se ocupado e poucos antigos
conheceram Eacute coisa pequena em quantidade mas grandiacutessima em qualidaderdquo
Antecipando seu conteuacutedo Elia complementaria ldquoOs devotos a estes textos obscuros
sustentam que o nome de Deus eacute infinito e que a um grau abaixo de Deus estatildeo as dez
Sefirot agentes da potecircncia que emana de Deus eacute atraveacutes dessas que o mundo
conserva a sua ordemrdquo355 Por meio dessas palavras o mestre descrevia in nuce os
elementos centrais da doutrina cabaliacutestica quais sejam a concepccedilatildeo do Infinito (Ein
Sof) e suas emanaccedilotildees as Sefirot
determinada e tanto ele pode continuar na indeterminaccedilatildeo quanto pode passar a ser tudo Apesar de preconizar que Pico tenha sido o primeiro divulgador do Zohar na cultura corrente da eacutepoca Garin sugere que a ideia de liberdade do homem defendida na Oratio tenha sido formada atraveacutes de leituras precedentes de obras ateacute mais significativas atribuiacutedas tanto a pensadores hebraicos tais quais Maimocircnides e Avicebron quanto a natildeo hebraicos como Fiacutelon Hermes e Honoacuterio de Autun A reflexatildeo estaacute em GARIN (2011 pp 90-91 93-105)
352 GARIN 2011 p115 RABIN opcit p 156 353 Cf Inventario delli libridel Conte Joanne de la Mirandola (pp 30 46 60 62 73 etc) elaborado por
Antonio Pizamano em 1498 em Florenccedila e editado em Memorie Storiche della cittagrave e dellantico ducato della Mirandola Harvard University vol XI 1897 p46 (apud GARIN 2011 p103) Chaim WIRSZUBSKI comprovou que Pico fizera uso no iniacutecio de sua carreira das obras de Abulafia (Um cabalista Cristatildeo lecirc a Lei Jerusaleacutem 1977 pp11 17 e ss apud IDEL 2008-b p 461)
354 Em sua Apologia (p192) Pico comenta sobre a ldquoars Raymundirdquo segundo KIBRE (1936 p318) possuiria do filoacutesofo catalatildeo o Ars Brevis Em relaccedilatildeo aos estudos sobre Maimocircnides Avicebron e o influxo de Llull veja-se menccedilatildeo em GARIN 2011 pp 100-101 Para a relaccedilatildeo percebida por Pico entre Avicebron e as doutrinas cabalistas veja-se Salomon MUNK Meacutelanges de philosophie juive et aacuterabe Paris 1857 pp275 ss que comporta ldquoDes Extraits Meacutethodiques de la Source de vie de Salomon Ibn-Gebirol (dit Avicebron) traduits de lrsquoarabe en heacutebreu par Ibn-Falaqueacuterardquo
355 DUKAS opcit pp 48-65 (Paris Bibliothegraveque Nationale Lat 6508 ff 71r -77v)
122
A emanaccedilatildeo sefiroacutetica
A estrutura metafiacutesica das Sefirot eacute uma das caracteriacutesticas medulares da
Cabala surgida por volta do seacuteculo III O termo ldquosefirotrdquo (ldquosefiraacuterdquo no singular)
ingressa de fato na miacutestica hebraica atraveacutes do Secircfer Yetsiraacute onde eacute mencionado
pela primeira vez356 Os cabalistas concordam em conceber as Sefirot como graus
ciclos ou niacuteveis atraveacutes dos quais o aspecto mais profundo do poder divino atua sobre
o universo criado ou em outras palavras como formas inteligiacuteveis atraveacutes das quais
o ldquoImanifestordquo passa a se manifestar357 Explica Paolo Fornaciari que a raiz de Sefirot
proveacutem do vocaacutebulo SFR que reconduz a uma aacuterea semacircntica que pode abranger trecircs
significados ldquoesferasrdquo ldquocifrasrdquo ou ldquosafirasrdquo Cada um desses termos remete agrave ideia
respectivamente de perfeiccedilatildeo geomeacutetrica-espacial de completude numeacuterica e de
beleza ou preciosidade ndash conceitos que se aplicam agraves qualificaccedilotildees atribuiacutedas agraves
Sefirot nas vaacuterias escolas358 Para Giulio Busi o termo hebraico pode ser traduzido
sucinta e literalmente por ldquonumeraccedilotildeesrdquo enquanto Tova Sender o traduz por
ldquocontagemrdquo em qualquer caso o nuacutemero eacute uma conotaccedilatildeo fundamental de seu
dinamismo359
O conceito de numeraccedilotildees estaacute diretamente relacionado ao nuacutemero dez
de acordo com o simbolismo numeacuterico que precede ao Secircfer Yetsiraacute e que
provavelmente recebeu influxos das doutrinas pitagoacutericas em razatildeo de sua relaccedilatildeo
com a estrutura profunda do ser e do cosmo360 Conforme sintetiza Scholem as
Sefirot satildeo os dez niacuteveis com que a natureza atuante de Deus se revela as dez forccedilas
elementares da Criaccedilatildeo os diversos aspectos da vida divina os estaacutegios pelos quais
essa vida passa ao se revelar na Criaccedilatildeo361 Na linguagem lacocircnica do Livro da
Formaccedilatildeo
ldquoDez Sefirot sem determinaccedilatildeo dez e natildeo nove dez e natildeo onze
[] a sua medida eacute dez que natildeo tecircm fimrdquo362
356 O texto integral do Secircfer Yetsiraacute pode ser visto nas seguintes obras Aryeh KAPLAN Secircfer Yetsiraacute- O Livro
da Criaccedilatildeo 2005 GRUENWALD A preliminary critical edition of the Sefer Yezirah in Israel oriental Studies 1 1971 pp132-177 A versatildeo curta do texto original em portuguecircs pode ser vista no apecircndice da obra de MAGHIDMAN Secircfer Yetsiraacute A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico 2014
357 SENDER 1992 p45 BUSI La Qabbalah 2011 p14 Observa Crofton BLACK que tal concepccedilatildeo das Sefirot foi frequentemente considerada hereacutetica entre alguns meios rabiacutenicos por parecer contradizer o estrito monoteiacutesmo do Judaiacutesmo (2006 p 140)
358 FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 np35 359 BUSI opcit p 47 SENDER opcit p28 KAPLAN contudo infere que natildeo eacute certo traduzir sefirot por
ldquonuacutemerosrdquo termo para o qual o hebraico tem uma palavra proacutepria (mispaacuter) seu significado aproxima-se mais de ldquocontardquo que remete ao conceito de nuacutemeros mas natildeo apenas (2005 p54) Flavio Mitridate em suas traduccedilotildees para o latim usava o termo numerationes
360 Gershom Scholem menciona a relaccedilatildeo com o Pitagorismo sem elucidar no entanto ndash ao menos nessa obra ndash se tal informaccedilatildeo eacute uma inferecircncia proacutepria ou se procede de fontes hebraicas (SCHOLEM Nome de Deus e Teoria da Linguagem 1999 p79) A pesquisa cabaliacutestica recolheu atraveacutes dos seacuteculos vasto material literaacuterio tanto para demonstrar o caraacuteter sagrado do dez quanto para encontrar nos antigos textos religiosos e na simbologia dos ritos a confirmaccedilatildeo de que esse nuacutemero fosse por si uma chave para o conhecimento Tudo aquilo que eacute numeraacutevel em dez representa na Cabala uma metaacutefora do mundo sefiroacutetico ndash os dedos das matildeos as enunciaccedilotildees de Deus no iniacutecio do Gecircnesis as dez esferas celestes da filosofia antiga (BUSI opcit pp 14-15)
361 SCHOLEM opcit p79 362 Secircfer Yetsiraacute I 4 5 (trad KAPLAN 2005 p283)
123
As dez Sefirot surgem ou satildeo criadas (o verbo natildeo estaacute estabelecido) a partir do
nada concepccedilatildeo repetida vaacuterias vezes no Capiacutetulo 1 do Secircfer Yetsiraacute ldquodez Sefirot do
nadardquo363 O texto trata outrossim ndash e conforme prometido em seu tiacutetulo ldquoyetsiraacuterdquo ndash
da formaccedilatildeo do universo (e natildeo criaccedilatildeo pois que o material para formar era
preexistente) por meio das vinte e duas letras do alfabeto hebraico que associadas agrave
deacutecada cabaliacutestica totalizam trinta e dois caminhos364 A combinaccedilatildeo das 22
consoantes hebraicas entre si por sua vez perfaz a totalidade de 231 resultados
possiacuteveis que representam 231 portotildees de saiacuteda do poder criador atraveacutes dos quais
ldquoo inexistente foi transformado em existenterdquo365 Agraves letras enquanto ldquofundaccedilatildeordquo do
universo satildeo dedicados quatro dos seis capiacutetulos da obra nos quais com linguagem
enigmaacutetica satildeo tratados seus significados e suas relaccedilotildees com os trecircs reinos da
criaccedilatildeo366
ldquoVinte e duas letras grava entalha pesa permuta transforma
e com elas descreve a alma de tudo o que foi formado e seraacute
formado no futurordquo367
Na maior parte das interpretaccedilotildees do Secircfer Yetsiraacute como informa Moshe Idel
o surgimento do sistema das Sefirot eacute descrito em termos de emanaccedilatildeo Atzilut ou de
expansatildeo Hitpaschetut ambos os processos cumprindo certa forma de cadeia
Schalschelet que relaciona o reino mais alto divino aos mundos mais baixos
produzidos pelas Sefirot368 Observe-se que Idel usa a palavra ldquoproduzirrdquo mundos em
concordacircncia com a passagem ldquotudo o que foi formado e que seraacute formadordquo do Secircfer
Yetsiraacute (II1) Eacute possiacutevel inferir que a ideia de emanaccedilatildeo decorra da percepccedilatildeo do
incessante dinamismo contido na conotaccedilatildeo numeacuterica atraveacutes desse movimento o
fluxo divino percorre o cosmo Dentro desse sistema cada sefiraacute corresponde a um
grau provisoacuterio (porque o fluxo natildeo eacute extaacutetico) de agregaccedilatildeo da energia divina
inserido em um contiacutenuo dinamismo de descese e ascese369 Sua mais
importante designaccedilatildeo eacute assumida no Zohar no qual cada grau de emanaccedilatildeo passa a
ser relacionado a um atributo divino recebendo nomes especiacuteficos em parte
retirados do primeiro livro das Crocircnicas370 Assim embora haja variaccedilotildees semacircnticas
363 Secircfer Yetsiraacute I 2 3 4 5 6 7 8 9 (ibid pp 283-284) 364 Secircfer Yetsiraacute I1 ldquoCom 32 maravilhosos caminhos de Sabedoria grava Yah o Senhor dos Exeacutercitosrdquo (opcit
p 283) A menccedilatildeo ao termo ldquocaminhordquo natildeo eacute aleatoacuteria mas real indicaccedilatildeo de 32 sendas miacutesticas dentro de um processo iniciaacutetico A deacutecima esfera a mais nobre e primeira em posiccedilatildeo eacute onde circulam as 22 letras (MAGHIDMAN 2014 p124)
365 Secircfer Yetsiraacute II 1 (trad KAPLAN 2005 p283) 366 Cada uma das vinte e duas letras tem seu proacuteprio significado co-essencial com atribuiccedilotildees que satildeo
transmitidas agraves coisas por meio delas formadas (SENDER opcit p30) 367 Secircfer Yetsiraacute II 1 (opcit p285) 368 IDEL 2008-a p21 No iniacutecio do seacuteculo XIV na literatura de inspiraccedilatildeo zohaacuterica ndash em modo particular no
Tiqqune ha-zohar (Os Ornamentos do Esplendor) e no Masseket atzilut (Tratado sobre a Emanaccedilatildeo) ndash o processo de emanaccedilatildeo comeccedila a ser distinguido em suas sucessivas fases denotando a distacircncia que separa o mundo superno da inferior realidade material (BUSI 2011 p 19)
369 BUSI opcit pp14 47 IDEL afirma que o caraacuteter dinacircmico das Sefirot constitui uma das principais caracteriacutesticas da Cabala (2008b p515) SCHOLEM trata do caraacuteter gnoacutestico das Sefirot em sua obra Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York 1960
370 O trecho no qual Davi bendiz Deus elencando seus atributos diz ldquotua eacute Senhor a magnificecircncia e o poder e a gloacuteria e o esplendor e a majestaderdquo (Crocircnicas 1 2911) Esses cinco atributos datildeo nomes a cinco das dez Sefirot Cf FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 np35 SENDER opcit pp 28 45
124
e de traduccedilatildeo os termos e significados mais utilizados para distinguir cada sefiraacute satildeo
Keter (Coroa) Hokhmaacute (Sabedoria) Binaacute (Inteligecircncia ou Compreensatildeo) Hesed
(Amor ou Grandeza) Guevuraacute (Bravura ou Potecircncia) Tiferet (Beleza) Netsah
(Eternidade ou Vitoacuteria) Hod (Magnificecircncia) Yesod (Fundamento) Malkut
(Reino)371 Assim cada uma das esferas corresponde a uma forma especiacutefica de
manifestaccedilatildeo de Deus uma middah ou atribuiccedilatildeo divina que pode ser ainda
identificada com um de Seus dez nomes sagrados Sob tal luz compreende-se a
conclusio cabaliacutestica 36 ldquoDeus endossou dez vestimentas quando criou o mundordquo372
Apesar de diferenciadas em suas caracteriacutesticas as dez Sefirot constituem uma
unidade como dez matizes da mesma luz
Em termos de ordenaccedilatildeo a estrutura sefiroacutetica tem sido contemplada com
diversos tipos de representaccedilotildees como por exemplo em forma de esferas dispostas
sobre a circunferecircncia de um ciacuterculo ou de letras hebraicas encerradas uma dentro da
outra mas a imagem que se tornou mais conhecida ndash divulgada na ediccedilatildeo do Pardes
Rimmonim (O jardim das romatildes) de Cordovero no lsquo500 ndash eacute a chamada aacutervore
sefiroacutetica na qual ao longo de trecircs eixos principais e paralelos estatildeo dispostos os
ciacuterculos que simbolizam as Sefirot ligados por canais transversais que sinalizam os
reciacuteprocos influxos373 Segundo a tradiccedilatildeo cabaliacutestica a descida das forccedilas celestes
adveacutem ao longo do lado da direita atraveacutes de hokhmaacute hesed e netsah enquanto a
ascensatildeo percorre o lado esquerdo atraveacutes de binaacute guevuraacute e hod O eixo central
sobre o qual se alinham keter tiferet yesod e malkut eacute conotado pela ideia de
presenccedila e completude do divino374 Os traccedilos de ligaccedilatildeo entre as Sefirot em nuacutemero
de vinte e dois ndash e em perfeita simetria geomeacutetrica com o total de letras do alfabeto
hebraico ndash constituem as vias atraveacutes das quais a luz infinita e a forccedila criadora se
propagam A metaacutefora da propagaccedilatildeo da luz eacute tatildeo utilizada quanto a do
derramamento de aacuteguas em uma de suas representaccedilotildees tem-se a imagem de
recipientes que recebem os fluiacutedos e que depois de cheios derramam o excesso para
os recipientes inferiores sucessivamente Outro ponto importante para a
compreensatildeo do conceito de emanaccedilotildees eacute que em qualquer representaccedilatildeo cada
sefiraacute eacute considerada passiva em relaccedilatildeo agravequela que a precede e ativa em relaccedilatildeo agraveque-
la que a sucede375 Para melhor compreensatildeo desta ideia as Sefirot podem ser
representadas por trecircs triacircngulos sendo um superior ascendente e dois inferiores
descendentes O triacircngulo ascendente tambeacutem chamado espiritual recebe luz e forccedila
do Alto e corresponde ao Mundo da Emanaccedilatildeo Os triacircngulos descendentes
371 Veja-se BUSI 2011 p16 FORNACIARI 2009 p 19 np35 CROFTON pp140-141 A sequecircncia das Sefirot
mais aceita eacute aquela que foi estabelecida na escola de Isaac o Cego em Narbonne no seacuteculo XIII Acresce FORNACIARI (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633) que cada sefiraacute a uma forma de manifestaccedilatildeo ou a uma inteligecircncia angeacutelica Os cabalistas encontram uma seacuterie de correspondecircncias entre as Sefirot e cada niacutevel da realidade como os astros os oacutergatildeos vitais os personagens biacuteblicos (Abraatildeo seria Hesed ou Guedulaacute) as manifestaccedilotildees da natureza etc Como explica BUSI (opcit p16) a referecircncia ao sol a Jacoacute ou agrave noccedilatildeo abstrata de beleza correspondentes a uma mesma sefiraacute natildeo significa que esses elementos tenham equivalecircncia mas sim que estatildeo ligados por uma harmonia que institui um nexo iacutentimo e um grau comum entre eles
372 PICO Concl (II) XI 36 p134 ldquo[] deus induit se decem uestimentis quando creauit saeculumrdquo 373 Veja-se representaccedilatildeo da aacutervore sefiroacutetica em IDEL 2008a p21 MAGHIDMAN 2014 p175 374 BUSI opcit pp15-17 375 SENDER opcit pp 46 ss
125
respectivamente o intelectual e o formativo absorvem as influecircncias superiores as
transfazem e conduzem em direccedilatildeo aos mundos fiacutesicos376
O Ein Sof
Acima da concepccedilatildeo das Sefirot a doutrina cabaliacutestica concebe a enigmaacutetica
existecircncia de outros trecircs niacuteveis supra espaccedilo-temporais O mais distante e
incompreensiacutevel dentre os trecircs encerra-se na ideia de Ain que se traduz como ldquonadardquo
O Ain natildeo representa a negaccedilatildeo da existecircncia mas a afirmaccedilatildeo de que ldquonenhum
termo do vocabulaacuterio humano poderaacute definir tal abstraccedilatildeordquo como define Tova
Sender Essa ideia exclui qualquer relaccedilatildeo com os mundos pertencentes ao tempo e
ao espaccedilo O Ain natildeo existe e natildeo estaacute eacute o ldquoImanifestordquo ou a ldquoExistecircncia Negativardquo377
Em seguida haacute o Ein Sof literalmente ldquosem fimrdquo ou ldquoinfinitordquo uma concepccedilatildeo
levemente mais definida que o Ain Difere do primeiro na medida em que pressupotildee
uma participaccedilatildeo no tempo e espaccedilo em razatildeo da inclusatildeo do termo ldquosofrdquo (ldquofimrdquo)
Permanece como no princiacutepio anterior a ideia de existecircncia negativa O Ein Sof Or
(ldquoluz infinitardquo) terceiro conceito aproxima-se da apreensatildeo humana em razatildeo da
presenccedila do termo ldquoorrdquo (ldquoluzrdquo) Contudo o Ein Sof Or manteacutem-se incompreensiacutevel e
constitui o terceiro veacuteu de existecircncia negativa378 Diferentemente das Sefirot que
podem ser conhecidas atraveacutes do estudo e da contemplaccedilatildeo a teologia hebraica
negativa postula que a verdadeira essecircncia de Deus nunca seraacute conhecida Assim na
maior parte das obras cabaliacutesticas a manifestaccedilatildeo de Deus no cosmo eacute concebida
somente a partir da emanaccedilatildeo que parte do Ein Sof Or fazendo com que Aquele se
revele ldquono emanado estaacute a forccedila do Emanador mas Este natildeo sofre diminuiccedilatildeo
algumardquo379 O sistema cabaliacutestico contempla ainda uma quarta concepccedilatildeo que seria
a unidade absoluta sintetizada no Tetragrama YHWH ndash ou ldquonome sagrado de Deus
de quatro letrasrdquo380
Na emanaccedilatildeo ocorre um processo de distinccedilatildeo atraveacutes do qual os seres satildeo
formados por separaccedilatildeo da unidade absoluta De acordo com Giulio Busi o problema
da passagem do Ein Sof ao domiacutenio da emanaccedilatildeo representou um dos pontos mais
tormentosos da especulaccedilatildeo cabalista381 Especialmente na Cabala do lsquo500 difundiu-
se a reflexatildeo sobre o aspecto secreto do desencadeamento da emanaccedilatildeo passando a
376 SENDER ibid p50 377 No sentido descendente a Aacutervore da Vida constitui o trajeto atraveacutes do qual o poder criador atuou no ato da
Criaccedilatildeo eacute a transformaccedilatildeo do AIN (ldquoNadardquo) em ANI (ldquoEurdquo) quando o Imanifesto torna-se Manifesto Note-se que AIN e ANI contecircm as mesmas letras e a permutaccedilatildeo entre elas segundo o meacutetodo cabalistico temuraacute ocorreu simultaneamente ao processo de involuccedilatildeo do poder criador (SENDER opcit p50)
378 SENDER opcit p46 Haacute registros de que o recurso agrave teologia negativa que opera com a impossibilidade de qualificar a iacutentima natureza do divino estava presente no iniacutecio do seacuteculo XIII nos ciacuterculos de Isaac o Cego (BUSI opcit p18)
379 A passagem eacute dos Sifre ha-lsquoiyyun (Livros da Contemplaccedilatildeo) redigidos na metade do seacuteculo XIII lecirc-se ainda ldquoEle eacute unido agraves suas forccedilas como a chama eacute unida agraves suas coresrdquo (cf Verman The Books of Contemplation Medieval Jewish Mystical Sources Albany 1992 apud BUSI opcit p18)
380 Paolo FORNACIARI (2009 p19) como outros autores pesquisados trata de forma bastante restrita o conceito de Tetragrama que tambeacutem eacute transliterado como IHVH Em outra qualificaccedilatildeo obscura informa SCHOLEM que o conjunto do universo estaacute selado em todos os seus seis lados com as seis permutaccedilotildees do nome IHVH e que todas as coisas existem por combinaccedilotildees dessas letras como assinaturas (1988 p201)
381 BUSI opcit p 20
126
ser bem aceita a concepccedilatildeo de que o impulso agrave manifestaccedilatildeo se deu como um
movimento espontacircneo da vontade divina expresso na ideia de expansatildeo Para que
tal manifestaccedilatildeo no cosmo fosse possiacutevel os cabalistas anuiacuteram que o Ein Sof tivesse
tido que se auto-limitar restringindo-se dentro do domiacutenio da compreensibilidade382
Tal ideia de contraccedilatildeo da Presenccedila Divina denominada Sekinah jaacute se encontrava
presente na literatura midraacuteshica e foi retomada no decorrer do seacuteculo XIII383 Mais
adiante no seacuteculo XVI Moshe Cordovero exprimiria o conceito de contraccedilatildeo divina
com um esclarecedor aforisma segundo o qual ldquoa emanaccedilatildeo eacute o espaccedilo de Sua
presenccedila no qual Ele se contraiurdquo de forma que ldquoSua grandeza mesmo que parcial
pudesse ser intuiacutedardquo Continuando dizia o cabalista que ldquoa razatildeo da emanaccedilatildeo eacute
dupla de uma parte Deus quis ocultar-se ateacute que as criaturas tivessem um limite de
outra parte Ele quis revelar-se para que as criaturas pudessem aferrar a Sua
grandezardquo384 As sentenccedilas confirmam conceitualmente o duplo movimento
presente na origem da Criaccedilatildeo o de ocultaccedilatildeo e o de manifestaccedilatildeo Ademais as
palavras de Cordovero que refletem uma posiccedilatildeo doutrinaacuteria aceita no Cabalismo
sustentam que o movimento em direccedilatildeo agrave cognoscibilidade comporta
necessariamente a ocultaccedilatildeo de tudo aquilo que natildeo pode ser compreendido pelos
seres finitos Sob esse prisma na concepccedilatildeo basilar de emanaccedilatildeo divina estaria
imbuiacuteda a ideia de uma paulatina revelaccedilatildeo de sua verdade ou de sua parcial
ocultaccedilatildeo Acerca do tema e especificamente de sua atuaccedilatildeo sobre o universo fiacutesico
escreveu de forma elucidativa o mestre de Pico Alemanno
O poder [divino] se estende e emana sobre todas as criaturas em
geral ainda que elas difiram no tocante agraves suas capacidades
receptivas assim os vegetais e os animais satildeo mais receptivos
ao efluxo divino do que os minerais O ser humano tem a maior
receptividade de todos [Mas] tambeacutem na espeacutecie humana os
homens possuem distintos graus de receptividade385
A passagem conquanto se refira agraves diversas formas de recepccedilatildeo das
emanaccedilotildees no universo fiacutesico confirma a atuaccedilatildeo da divindade sobre os mundos
inferiores atraveacutes de seus canais as Sefirot Outra caracteriacutestica integrante do
movimento emanente estaacute em seu retorno A presenccedila de um fluxo descendente e
outro ascendente estaacute clara nesta outra passagem de Alemanno ldquoEle recebe todos os
canais e as emanaccedilotildees dos mundos supernos e intermediaacuterios pois ningueacutem recebe
aquele bem na sua inteireza a natildeo ser Ele Quando Ele o recebe todas as emanaccedilotildees
382 Perceba-se que ao limitar-se em contraccedilatildeo ocorre uma queda de potecircncia Em cada subsequente estaacutegio ou
desniacutevel daacute-se uma consequente diminuiccedilatildeo da magnitude de poder da emanaccedilatildeo Essa concepccedilatildeo por si soacute pode propiciar algumas especulaccedilotildees teoloacutegicas
383 A contraccedilatildeo eacute definida em hebraico como simsum procedente da raiz simsem (BUSI 2011 p 20) A concepccedilatildeo da contraccedilatildeo divina sofre algumas variaccedilotildees ao longo do tempo Nachmacircnides trata do tema que tambeacutem consta do Midrash haacute-nersquoelam (O midrash escondido)
384 CORDOVERO Pardes Rimmonim A obra de Cordovero surgida pela primeira vez em Cracoacutevia em 1591 natildeo dispotildee atualmente de ediccedilatildeo comentada BUSI informa em sua bibliografia algumas traduccedilotildees da obra (2011 pp20-21 138)
385 ALEMANNO Collectanaea Manuscrito de Oxford 2234 f 105v Quanto aos graus de receptividade do homem a recepccedilatildeo de cada sefiraacute depende da estrutura do intelecto humano que pode participar do conhecimento apenas de forma gradual Sobre o tema veja-se BUSI 2011 p14
127
que descendem agrave terra estatildeo em equiliacutebrio e operam na perfeiccedilatildeordquo386 Haacute pois um
retorno ldquoa Elerdquo um movimento contraacuterio e necessaacuterio para o equiliacutebrio universal O
fluxo de ascese e descese passando atraveacutes da aacutervore sefiroacutetica permite que os
estamentos universais se estabeleccedilam
As conceituaccedilotildees referentes ao processo de emanaccedilatildeo a partir do Ein Sof
especialmente as escritas por Alemanno certamente natildeo deixariam de ser notadas
por Pico Em pelo menos duas conclusiones o tema eacute abordado diretamente Na tese
oacuterfica 15 eacute estabelecida uma correspondecircncia ldquosatildeo a mesma coisa a Noite em Orfeu e
o Ein Sof na Cabalardquo387 Para estabelecer tal analogia Pico estaria acolhendo em
ambas as designaccedilotildees a representaccedilatildeo da existecircncia informe ou da ausecircncia de
forma e distinccedilatildeo O tema eacute retomado na tese cabaliacutestica 31 secundum opinionem
propriam ldquoQuando os cabalistas colocam com o termo Tesuvah a ausecircncia de
forma esta deve ser entendida como estado antecedente agrave formardquo388 A concepccedilatildeo de
uma contraccedilatildeo divina tambeacutem natildeo deixaria de ser mencionada
Se concebermos Deus como infinito e uno e segundo si mesmo
de modo a compreender que drsquoEle nada procede sendo apenas
distanciamento das coisas total fechamento de si em si mesmo
e extremo profundo e solitaacuterio contrair-se no recesso mais
remoto da proacutepria divindade ndash entatildeo teremos uma intuiccedilatildeo
drsquoEle que se cobre no abismo de sua profundidade389
3 As divisotildees da Cabala e suas formas de aproximaccedilatildeo agrave divindade390
O vasto conjunto de materiais que foi sendo formado ao longo de seacuteculos
abrigando doutrinas que ora se complementavam ora natildeo dificilmente poderia
formar uma teoria unificada Assim que os milhares391 de textos e manuscritos
encontrados sob o leque do Cabalismo foram adquirindo tonalidades diferenciadas
que levaram agrave disposiccedilatildeo de alguns corpora com denominaccedilotildees distintas Embora
para Gershom Scholem toda a miacutestica judaica seja fundamentalmente uma teosofia ndash
386 ALEMANNO Einei haEdaacute (Os Olhos da Congregaccedilatildeo) Manuscrito de Jerusaleacutem 598 f 51r-v 387 Concl (II) X 15 p122 ldquoIdem est Nox apud Orpheum et Ensoph in Cabalardquo 388 Concl (II) XI 31 p132 ldquoCum audis cabalistas ponere in lsquoThesuarsquo informitatem intellige informitatem per
antecedentiam ad formalitatem non per priuationemrdquo 389 PICO Concl (II) XI 35 p132 ldquoSi deus in se ut infinitum ut unum et secundum se intelligatur ut sic nihil
intelligimus ab eo procedere sed separationem a rebus et omnimodam sui in seipso clausionem et extremam in remotissimo suae diuinitatis recessu profundam ac solitariam retractionem de eo intelligimus ipso penitissime in abysso suarum tenebrarum se contegente et nullo modo in dilatatione ac profusione suarum bonitatum ac fontani splendoris se manifestanterdquo Pontua FARMER (op cit p535) que Pico distingue nessa tese a natureza transcendente de Deus (Ein-Sof) de sua natureza manifesta (as Sefirot)
390 O termo ldquodivindaderdquo pode ser atribuiacutedo a uma miriacuteade de possibilidades dentro de uma estrutura hieraacuterquica de acordo com o modelo de Cabala e com a intenccedilatildeo do operador O conceito pode ser empregado para caracterizar desde entidades mais terrenas dentro de uma visatildeo que se aproxima ao paganismo como para designar o grau maacuteximo da Unidade Absoluta
391 Embora a quantidade possa parecer exagerada o nuacutemero de manuscritos espalhados atualmente entre vaacuterias bibliotecas do mundo eacute efetivamente avultoso como confirmam as obras dos especialistas Scholem e Idel
128
jaacute que trata da imersatildeo nos misteacuterios do mundo divino e de suas relaccedilotildees com o
mundo da Criaccedilatildeo ndash392 o proacuteprio reconhece algumas divisotildees temaacuteticas existentes na
Cabala dentre as quais duas principais a chamada Cabala Praacutetica Qabalaacute Maassit
e a chamada Cabala Especulativa Qabalaacute Iiunit393 Em suas Conclusiones
Cabalisticae Giovanni Pico mostrava ter conhecimento dessas duas divisotildees
testemunhando que a distinccedilatildeo jaacute era bem aceita pelos cabalistas da eacutepoca394 A
Cabala Especulativa tomou outra subdivisatildeo a saber o modelo teuacutergico-teosoacutefico
mais difundido e considerado mais importante e o modelo extaacutetico-meditativo
tambeacutem chamado profeacutetico Essas se tornaram as trecircs principais distinccedilotildees aceitas
pelos atuais comentaristas cabaliacutesticos representando sucintamente trecircs formas de
se relacionar com a Cabala a praacutetica em alguns casos chamada ldquomaacutegicardquo a teuacutergica e
a extaacutetica395 A elucidaccedilatildeo de tais modelos seraacute uacutetil para a compreensatildeo de seus
propoacutesitos e consequentemente de seu uso na obra piquiana
A Cabala Praacutetica
Difundida especialmente a partir da escola askenazita florescida no seacuteculo XII
e responsaacutevel por levar o misticismo judaico a uma fase de transiccedilatildeo396 a Cabala
Praacutetica lida com formas ritualiacutesticas que poderiam ser organizadas ao longo de uma
reacutegua de graduaccedilotildees Tambeacutem chamada ldquomaacutegico-talismacircnicardquo contempla um
conjunto de procedimentos voltados agrave obtenccedilatildeo de determinados benefiacutecios que se
distribuem em graus variaacuteveis de densidade material relacionados agrave utilizaccedilatildeo de
praacuteticas maacutegicas Nesse sentido a magia deve ser entendida como elemento que faz
parte do saber miacutestico judaico apresentando-se sob uma profusatildeo de formas
presentes desde o final da Antiguidade397 Com o passar do tempo ocorreu a
despotencializaccedilatildeo da Cabala maacutegica em virtude da crescente manipulaccedilatildeo de
elementos externos para a obtenccedilatildeo de benefiacutecios materiais eou pessoais levando a
Cabala Praacutetica a aproximar-se do paganismo398 Efetivamente vaacuterias narrativas
recolhidas nos Talmudim e Midrashim de eacutepoca tardo-antiga descrevem foacutermulas
392 SCHOLEM 1999 pp 64-65 Malgrado qualquer definiccedilatildeo que o termo ldquoteosofiardquo possa ter tomado apoacutes o
seacuteculo XVIII cabe ressaltar que o uso empregado pelos comentadores ao tratar das concepccedilotildees presentes na Cabala relaciona-se agrave forma como o mesmo era utilizado pelos neoplatocircnicos para indicar o conhecimento das coisas divinas proveniente da inspiraccedilatildeo direta de Deus Nesse sentido veja-se por exemplo Proclo (Theologia Platonica V 35) e Porfiacuterio (De abstinentia ab esu animalium IV 17)
393 SCHOLEM 1989 p5 Foi a escola espanhola a produzir a primeira literatura apontando para uma dicotomia entre Cabala praacutetica e especulativa Essa distinccedilatildeo pode ter relaccedilatildeo com a divisatildeo formulada por Maimocircnides entre filosofia especulativa e filosofia praacutetica em seu tratado sobre loacutegica Milot ha-Higaion (IDEL 2008-a p32)
394 PICO Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum hebraeorum 1 ldquoIndependentemente do que digam todos os outros cabalistas eu distinguirei o conhecimento da Cabala na Ciecircncia da Numeraccedilatildeo ou Sephirot e na Ciecircncia de Semot ou Nomes em relaccedilatildeo agrave ciecircncia praacutetica e especulativardquo Pico toma emprestada tal distinccedilatildeo do cabalista Abraham Abulafia (cf IDEL Lrsquoesperienza mistica di Abraham Abulafia Milano 1992 p46 apud FORNACIARI 2009 np35)
395 IDEL 2008a p19 veja-se o inteiro artigo para detalhes acerca dos modelos de Cabala 396 Leia-se mais em BUSI opcit p49 397 Algumas partes desse tipo de conhecimento sobreviveram e encontram-se em textos hebraicos e aramaicos
como informa IDEL (2008-a pp32-33) 398 IDEL 2008a p38 Na paacutegina 37 da mesma obra Idel cita um trecho do Pardes Rimonim obra claacutessica da
literatura de Safed de Cordovero em que se encontra descrita a forma de utilizaccedilatildeo das cores para atrair as forccedilas sefiroacuteticas
129
maacutegicas e extraordinaacuterios poderes de antigos mestres confirmados por achados
arqueoloacutegicos que provam sua difusatildeo durante a diaacutespora do Oriente Proacuteximo399
Na Idade Meacutedia sob o impacto de concepccedilotildees filosoacuteficas reinantes entre os
aacuterabes surgiram elaboraccedilotildees que se sustentavam sobre a ideia que canalizando a
fonte espiritual que governa o mundo o operador poderia manipular os
acontecimentos do mundo sublunar Por conseguinte desenvolveu-se na magia
medieval aacuterabe e judaica o conceito de atraccedilatildeo das forccedilas dos corpos celestiais Tais
forccedilas denominadas Pneumata Ruhaniyyat ou Ruhaniot ndash respectivamente em
grego aacuterabe e hebraico ndash poderiam ser atraiacutedas e capturadas por meio de tipos
especiais de objetos e rituais cujas naturezas deveriam estar em concordacircncia com as
feiccedilotildees dos correspondentes corpos celestiais400 Entre as maneiras de atrair os vaacuterios
gecircneros de forccedilas existentes a linguagem mostrava-se a principal forma utilizada
sendo um procedimento que de acordo com o modelo de Cabala poderia ser
empregado em oitavas diferenciadas401
Os resultados dos chamados ldquoencantamentosrdquo passam a se difundir nos
ciacuterculos cabaliacutesticos sobretudo a partir do seacuteculo XII eacutepoca de difusatildeo da obra de
magia Secircfer Raziel (O Livro de Raziel) inclusive entre os cristatildeos402 Para muitos
sua autoria deveria ser atribuiacuteda a Eleazar de Worms que teria escrito tambeacutem um
comentaacuterio ao Secircfer Yetsiraacute onde se leem algumas instruccedilotildees para a feitura de um
ser vivo intitulado Golem403 Ainda antes de difundir-se nos ciacuterculos renanos essa
intrigante concepccedilatildeo era conhecida entre os judeus da Itaacutelia meridional mesmo em
ambientes culturalmente elevados na obra Megillat Ahimarsquoas redigida na Puglia do
seacuteculo XI narra-se a criaccedilatildeo de um golem a partir da potecircncia do Tetragrama404
Contudo a maior absorccedilatildeo da literatura referente ao golem se daacute no Quattrocento
italiano certamente natildeo passaria despercebida aos ilustrados do Renascimento a
399 BUSI 2011 p27 Muitos dos achados arqueoloacutegicos traziam amuletos com nomes angeacutelicos frequentemente
agrupados em longas sequecircncias para reforccedilar seu valor apotropaico Maiores detalhes sobre a Cabala Praacutetica podem ser encontrados nas seguintes obras indicadas por BUSI PATAI R Alchimisti ebrei-Storia e fonti trad S Bondoni Genova 1997 SEacuteD N Lrsquoalchimie e la Science sacreeacute des lettres Notes sur lrsquoalchimie juive agrave propos de lrsquo ldquoEgravesh mesarephrdquo in Alchimie Art Histoire et mythes Paris-Milan 1995 pp547-649
400 Maimocircnides embora natildeo simpatizante dessa espeacutecie de atividade foi quem melhor descreveu as formas de atraccedilatildeo de forccedilas para objetivos praacuteticos nas passagens em que trata sobre idolatria (IDEL 2008-a p34)
401 O uso da Cabala Praacutetica natildeo se restringe agrave obtenccedilatildeo de benefiacutecios materiais ou egoiacutesticos como poderia ser entendido Como conta Tova SENDER (opcit p82) o poder da linguagem relacionado agrave leitura dos Salmos para citar um exemplo constitui um recurso utilizado por comunidades judaicas em tempos de perigo natildeo apenas na Antiguidade como nos dias atuais
402 SENDER opcit p79 O Secircfer Raziel eacute um manual contendo instruccedilotildees para a confecccedilatildeo de amuletos Veja-se o amplo material coletado por Franccedilois SECRET Sur quelques traductions du Sefer Raziel in Revue des Eacutetudes Juives 128 1969 pp223-245
403 Considera-se que a recitaccedilatildeo correta dos versos do Secircfer Yetsiraacute tem a forccedila para produzir uma criatura e dotaacute-la de vitalidade hiut e alma neschamaacute Como no idioma hebraico eacute possiacutevel natildeo definir o tempo verbal em razatildeo de sua ausecircncia de vogais as sentenccedilas presentes naquela obra podem ser lidas como ldquoEle combinou Ele formourdquo ou de forma imperativa ldquoCombine Formerdquo (cf MAGHIDMAN 2014 p109) Acerca da criaccedilatildeo real de um ser animado conta-se que no seacuteculo XVI em Praga notabilizou-se o rabino Loumlew por criar um golem partindo do barro e utilizando o Livro da Criaccedilatildeo Sobre o tema a composiccedilatildeo intitulada Sod Peulat haYetsiraacute (O Segredo da Operaccedilatildeo da Criaccedilatildeo) eacute um dos textos que descreve a criaccedilatildeo de um golem (cf IDEL As obras e a doutrina de Abratildeo Abulafia opcit 1976 p131) Tambeacutem de IDEL Golem Jewish Magical and Mystical Traditions on the artificial Anthropoid 1990 pp 54-80 96-118 127-163 Veja-se ainda SCHOLEM e seu capiacutetulo ldquoA ideia do Golemrdquo (A Cabala e seu Simbolismo 1978) BUSI e suas sugestotildees bibliograacuteficas acerca do tema (2011) SENDER (1992 p80)
404 BUSI idem
130
possibilidade de confeccionar um ser animado De fato como conta Franco Bacchelli
ldquonaqueles anos entre aqueles homens [do final do lsquo400] encontrava-se vivo natildeo
apenas o velho problema da possibilidade da geraccedilatildeo espontacircnea de animais
superiores mas tambeacutem a questatildeo da possibilidade de conferir vida para vaacuterios fins
operativos e sapienciais a mateacuterias inanimadasrdquo405 Satildeo justamente desse periacuteodo
as discussotildees ficinianas sobre as estaacutetuas que poderiam capturar daimons ou sobre a
geraccedilatildeo de ldquointelectosrdquo profeacuteticos estabelecidos por Lazzarelli a partir das receitas
para se confeccionar um golem406
O interesse pela magia eacute um elemento que compotildee a cena do seacuteculo XV como
visto no Capiacutetulo I e que mereceu destaque em obras piquianas como as
Conclusiones a Oratio e a Apologia O conhecimento de formas da magia hebraica
abriria espaccedilo para discussotildees mais profundas de teor eacutetico que envolveriam Pico
Alemanno e pronunciadas distinccedilotildees entre formas da Cabala consideradas puras e
impuras relacionadas aos lados ldquodireito e esquerdordquo407 A conceituaccedilatildeo do ldquolado
esquerdordquo tem suas origens ligadas muito provavelmente agrave ideia de sitra ahara
(ldquooutro ladordquo) expressa no Zohar Um manuscrito do seacuteculo XVI de autor anocircnimo
adverte para a necessidade de se preservar tais ensinamentos informando que ldquoa
Cabala praacutetica consiste em conjuraccedilotildees de anjos um saber que deve ser escondido
por causa daquelas pessoas que satildeo mestres da praacutexis [anschei baalei maaseacute]rdquo408
Alemanno demonstrara interesse pelo aspecto operativo da Cabala ainda antes
de conhecer seu disciacutepulo embora reconhecendo sua posiccedilatildeo inferior em relaccedilatildeo agraves
formas mais elevadas de especulaccedilatildeo cabaliacutestica Pico por sua vez sabia que eram
proibidas as praacuteticas que empregavam nomes divinos para encantar democircnios
deixando claro em sua Tese maacutegica nr 26 que apenas a Cabala ldquopura e imediatardquo
poderia mover algo ldquoque nenhuma magia alcanccedilardquo409 Alemanno ndash e mais tarde
Cordovero que acolheria o influxo de seus procedimentos em Safed ndash tinha ciecircncia
da similaridade entre o tipo de Cabala que estava propondo e as praacuteticas maacutegicas
pagatildes ndash e natildeo pretendia quebrar a ordem natural recorrendo a forccedilas demoniacuteacas que
poderiam destruir tal ordem Ao contraacuterio propunha um tipo de atividade que
complementasse o curso natural das coisas adicionando uma dimensatildeo da praacutexis
baseada em leis jaacute existentes Para um cabalista como Alemanno que utilizava a
405 Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione
cabaliacutestica 2001 p 62 406 BACCHELLI ibid p76 Na mesma obra em nota agrave p 82 o autor aborda a maneira como Lazzarelli em sua
obra Crater Hermetis absorveu a doutrina da criaccedilatildeo do Golem e a forma de utilizaccedilatildeo dos nomes divinos 407 Assim escreveria o Rabi Elias Menakhem Halfan mais tarde em uma epiacutestola do seacuteculo XVI ldquoa ciecircncia da
Cabala dividiu-se no iniacutecio em duas partes chamadas de lado direito e lado esquerdo O lado direito eacute todo pureza e santidade nomes divinos e angelicais e questotildees sagradas O lado esquerdo eacute todo [] democircnios e cascas do lado impurordquo (Manuscrito JTS 1822 f 153v)
408 IDEL 2008-a p32-33 O manuscrito em questatildeo originou-se na escola cabalista espanhola cuja tendecircncia agrave magia foi visiacutevel no seacuteculo XV Ao contraacuterio da magia naturalis aceita por Ficino Pico e Alemanno seus contemporacircneos espanhoacuteis cultivavam um tipo de magia diversa que lidava com conjuraccedilotildees de anjos e democircnios para uma variedade de desiacutegnios inclusive o escatoloacutegico Haacute relatos de que alguns cabalistas da Espanha cultivaram uma forma demoniacuteaca e violenta de Cabala maacutegica destinada a destruir a ordem histoacuterica e religiosa predominante que significava entre outras coisas tambeacutem o Cristianismo (IDEL Jewish Magic from the Renaissance to Early Hasidism in Neusner-Frerichs-McCracken (eds) New York-Oxford Oxford University Press 1989 pp 86-99)
409 PICO Concl (II) IX 26 p120 ldquo[] ita per opus Cabalae si sit pura Cabala et immediata fit aliquid ad quod nulla Magia attingitrdquo
131
magia em sua forma mais pura tal atividade era considerada sobrenatural apenas na
medida em que sua ordenaccedilatildeo se mostrava pertencente a uma ordem superior410 A
clara percepccedilatildeo da existecircncia de dimensotildees supracelestes puras e impuras bem como
de operadores cabalistas eticamente diferenciados em qualquer das formas
atribuiacuteveis agrave Cabala foi registrada pelo mestre de Pico
Qualquer homem bom ou mau que conheccedila a obra dos anjos
puros e impuros que satildeo superiores agraves estrelas pode atrair sua
fragracircncia sobre nossas cabeccedilas pois deu uma interpretaccedilatildeo
cabaliacutestica agrave Toraacute inteira Nisso estatildeo inclusos os mestres das
ciecircncias especulativas e praacuteticas das Sefirot411
A Cabala Teuacutergica
O modelo teuacutergico-teosoacutefico bastante amplo em relaccedilatildeo agrave quantidade de
material que lhe foi designado abrange de um lado o domiacutenio de especulaccedilatildeo que os
estudiosos descrevem como ldquoteosoacuteficordquo ndash pois lida com os diferentes e complexos
mapas do reino divino procurando revelar os misteacuterios da vida oculta de Deus suas
relaccedilotildees com a vida humana e as desta com a Criaccedilatildeo de outro a chamada ldquoteurgiardquo
ou a maneira atraveacutes da qual certos feitos religiosos humanos exercem impacto sobre
o referido reino412 Os teurgos entendem que o homem seja capaz de ativar o influxo
divino atraveacutes de cerimocircnias religiosas e invocaccedilotildees Um paradigma de pensamento
teuacutergico foi aquele desenvolvido por Jacircmblico baseado na eficaacutecia do rito como
ativador das forccedilas celestes Segundo o neoplatocircnico ldquograccedilas agraves forccedilas dos segredos
singulares que possui o teurgo natildeo comanda as potecircncias coacutesmicas como um
homemrdquo mas ldquocomo um ser que jaacute alcanccedilou o niacutevel dos deusesrdquo413 Esse eacute o
entendimento que se extrai das formas teuacutergicas mencionadas por Pico sobretudo
nas Conclusiones que tratam dos Hinos de Orfeu414 Sob o Cabalismo o conceito de
410 IDEL 2008-a pp 37-38 Em seu Collectanaea Alemanno elucida que o processo para a aquisiccedilatildeo de
poderes maacutegicos atraveacutes da emanaccedilatildeo das forccedilas superiores compreende dois estaacutegios em uma abordagem que parte do inferior ao superior inicialmente a pessoa receberia uma vibraccedilatildeo menos elevada do efluxo divino somente apoacutes habituar-se a ele poderia receber o efluxo adicional ldquoo espiacuterito do Deus vivordquo que caracterizaria o ldquodescenso da espiritualidaderdquo (horadat haRukhaniut) Para o autor se os atos para o descenso das forccedilas fossem feitos sob a utilizaccedilatildeo dos corretos mandamentos e ritos judaicos qualquer conduta ndash que em outra situaccedilatildeo seria irregular ndash tornar-se-ia atenuada Assim as consecuccedilotildees materiais e espirituais poderiam ser realizadas sem uma tentativa de ldquocurto-circuitarrdquo a ordem da natureza ou ldquosem forccedilar a vontade divinardquo (cf IDEL ibid p35) Note-se que em Florenccedila a ideia de descenso das forccedilas espirituais recebeu criacuteticas de Moiseacutes ben Yoav que considerava essa praacutetica idolatria em todos os aspectos Elia Del Medigo descartava completamente qualquer de suas formas Em sua obra Bekhinat haDat (O Exame da Religiatildeo) Del Medigo se opotildee agravequeles (como Alemanno provavelmente) que viam na Toraacute e nos preceitos meios para causar o descenso das forccedilas espirituais (ldquoeacute impossiacutevel que as forccedilas espirituais descendam para o mundo do modo que dizem os magos Ao examinarmos os dizeres da Toraacute vemos que ela se opotildee energicamente a tais praacuteticas idoacutelatrasrdquo) Cf IDEL 2008-b p 477 np 493
411 ALEMANNO Collectanaea in Manuscrito de Paris 849 f 7v 412 IDEL 2008a p 20 Essa forma de Cabala fez parte das discussotildees dos cabalistas espanhoacuteis encontrando no
Zohar uma forte expressatildeo florescendo posteriormente de forma mais vigorosa no ciacuterculo luriacircnico de Safed no seacuteculo XVI Para maiores detalhes acerca da notoacuteria escola desenvolvida por Isaac Luria veja-se IDEL 1998 pp 22-23
413 Apud BUSI (opcit p34) que natildeo cita a fonte de Jacircmblico 414 Veja-se por exemplo a Conclusio oacuterfica nr2 cf Cap III
132
Teurgia refere-se agrave crenccedila do cabalista em sua habilidade especiacutefica de influenciar no
processo e na condiccedilatildeo das Sefirot atribuindo ao rito uma especial forccedila operativa415
Tanto o fenocircmeno de recebimento do efluxo sefiroacutetico como a leitura dos
nomes divinos eram elementos familiares a Pico e integravam respectivamente a
ldquoCiecircncia das Sefirotrdquo e a ldquoCiecircncia Semotrdquo mencionadas nas Conclusiones416 A
conexatildeo entre esses dois aspectos eacute abordada no Takhlit heHakham obra conhecida
tanto por Pico como por Alemanno onde se lecirc ldquoAristoacuteteles disse que [] nos tempos
antigos os nomes divinos tinham uma certa capacidade para trazer a forccedila espiritual
agrave terra Agraves vezes essas forccedilas descendiam Outras vezes matavam o homem que as
utilizasserdquo417 A menccedilatildeo aos tempos de Aristoacuteteles eacute utilizada pelo autor do
manuscrito para prevenir contra o perigo envolvido nas praacuteticas de rituais teuacutergicos
quando natildeo eacute dada a devida atenccedilatildeo aos detalhes ndash advertecircncia referida em muitos
livros cabaliacutesticos O Sefer haAtzamin (f13) por exemplo determina ldquose a pessoa
natildeo for especialista e versada em causar o descenso das forccedilas e a execuccedilatildeo dos
rituais eles o mataratildeordquo418 Tambeacutem Pico era ciente dos riscos envolvidos nas
operaccedilotildees cabaliacutesticas tanto que assim escreveria em suas Teses ldquoQuem opera em
Cabala[] se cometer erros ao operar ou iniciar-se sem preacutevia purificaccedilatildeo seraacute
devorado por Azazel segundo as regras da justiccedilardquo419
Sob o prisma teuacutergico o estudo das estruturas das Sefirot natildeo denota apenas
uma ocupaccedilatildeo teoacuterica mas uma possibilidade de colocar o adepto em grau de intervir
diretamente sobre o mundo superno a ponto de influenciar a dinacircmica das forccedilas
divinas Enquanto a magia exercida na Cabala Praacutetica utiliza os efeitos da propagaccedilatildeo
de forccedilas superiores sobre o mundo material atraindo-as para baixo a Teurgia de
forma contraacuteria empurra o miacutestico em direccedilatildeo ao alto caracterizando-se assim
como uma forma de caminho iniciaacutetico420 O miacutestico-teurgo tem por objetivo elevar-
se ndash no caso dos cabalistas agrave dimensatildeo sefiroacutetica ndash usando como instrumentos os
especiacuteficos rituais destinados para influir sobre aquelas forccedilas Um importante
desdobramento da relaccedilatildeo causa-efeito entre as accedilotildees materiais e suas repercussotildees
celestes encerra-se na concepccedilatildeo cabaliacutestica de que as accedilotildees ritualiacutesticas natildeo satildeo as
415 IDEL 2008-b n p 461 416 Referentes agrave Cabala Especulativa e agrave Cabala Praacutetica cf Conclusio Cabalistica (II) XI 1 417 Cf Manuscrito de Munique 214 f51r apud IDEL 2008-b p474 Em outro artigo IDEL observa que a
magia heleniacutestica antiga lidava com o recebimento de forccedilas espirituais chamadas naquele contexto pneumata (2008-a p34)
418 IDEL 2008-b np 485 419 PICO Concl (II) XI 13 ldquoQui operatur in Cabalaet si errabit in opere aut non purificatus accesserit
deuorabitur ab Azazele per proprietatem iudicii A primeira parte da conclusio 13 postula que aquele que operar em Cabala da forma correta encontraraacute a conjunccedilatildeo com Deus (ou com o Absoluto conforme a concepccedilatildeo da ldquoMorte do Beijordquo) Elucida FORNACIARI que assim como o ecircxito positivo traz um resultado de dimensotildees absolutas o eventual ecircxito negativo natildeo se limitaraacute a um simples fracasso mas ao completo extermiacutenio do operador inexperiente atraveacutes da ldquofagocitoserdquo por parte do democircnio (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001)
420 BUSI opcit p34 ss A magia da Cabala Praacutetica transformou-se em Teurgia tatildeo logo o objeto do efluxo espiritual passou a ser a sefiraacute de Malkhut ndash a esfera mais proacutexima ao reino material ndash e natildeo a pessoa do cabalista ou o do mago Contudo as duas formas apresentam-se como um caminho de matildeo dupla o atrair as forccedilas para baixo pode se dar em dois estaacutegios o ato teuacutergico inicial opera levando a emanaccedilatildeo da sefiraacute mais elevada ateacute a uacuteltima Malkut onde eacute possiacutevel ndash usando uma linguagem neoplatocircnica ndash a uniatildeo do intelecto com o inteligiacutevel em seguida o influxo da uacuteltima sefiraacute eacute atraiacutedo para o reino sublunar ocasionando o que se chama ldquotransbordordquo das Sefirot um ato ligado ao territoacuterio da praacutetica ou magia (cf IDEL 2008-a pp 38-43 2008-b p 471)
133
uacutenicas a reverberarem no ceacuteu como explica Giulio Busi cada ato humano mesmo o
mais simples obteacutem um resultado velado na outra dimensatildeo ldquopropagando-se como
uma onda ateacute o mais iacutentimo do misteacuterio transcendenterdquo421 Pode-se entender assim
porque a Cabala tem um papel especial no processo de dignificaccedilatildeo do homem
proposto por Pico em quase todas as suas obras a especulaccedilatildeo cabaliacutestica atribui ao
homem uma extraordinaacuteria responsabilidade na medida em que o torna partiacutecipe do
equiliacutebrio divino
A interpretaccedilatildeo das Escrituras eacute uma das ferramentas utilizadas para alcanccedilar
a comunhatildeo objetivada como abordado no item referente agrave tradiccedilatildeo oral Outras
formas ritualiacutesticas assim como na Cabala Praacutetica se datildeo pelo uso da linguagem em
virtude de sua qualidade de refletir seja pelas letras ou por seu som a estrutura
interna do reino divino ndash isto eacute do sistema sefiroacutetico ndash visto que dele participam
Essa qualidade criadora presente nas letras hebraicas permite sua atuaccedilatildeo na
mateacuteria como melhor explica Lipiner ldquoas letras do alfabeto hebraico seriam espiacuterito
derivado de espiacuterito que deslizam progressivamente da sutil sabedoria e pensamento
divinos ateacute converterem-se em substacircncias das coisas materiais jaacute presentes
integralmente nelas em potecircnciardquo422 Por conseguinte os corretos vocaacutebulos
juntamente com a correta forma de pronuacutencia natildeo apenas permitem ao teurgo influir
sobre aquela estrutura como restauram a harmonia no interior do reino divino423
A Cabala Extaacutetica
Embora a Cabala Teuacutergica tivesse adotado visotildees neoplatocircnicas importantes
os elementos aristoteacutelicos presentes na Cabala Extaacutetica foram essenciais para que
essa forma predominasse na Itaacutelia onde exerceu maiores repercussotildees sobre
pensadores do lsquo400 em razatildeo das nuances que a aproximava agrave Filosofia
Manifestando-se entre o final do seacuteculo XIII e o iniacutecio do XIV sobretudo atraveacutes dos
manuscritos dos cabalistas espanhoacuteis Abraham Abulafia Natan Saadia e Isaac de
Acre ndash os trecircs em linhagem sucessoacuteria mestre-disciacutepulo ndash a Cabala Extaacutetica
estabeleceu-se cuidando da questatildeo que envolve a comunhatildeo do homem com o
Espiacuterito divino424 Tanto Alemanno quanto Pico estavam bem familiarizados com
esse modelo de Cabala graccedilas aos estudos sobre os escritos de Abulafia que agregou
421 Como exemplifica Busi a uniatildeo sexual entre um homem e uma mulher sob a oacutetica cabalista provoca a
conjunccedilatildeo sefiroacutetica entre Malkut a sefiraacute que representa o princiacutepio feminino ligado ao Reino e Tiferet a sefiraacute da Beleza que conota o princiacutepio masculino (2011 p35)
422 Elias LIPINER As letras do Alfabeto na criaccedilatildeo do mundo - Contribuiccedilatildeo agrave pesquisa da natureza da linguagem 1992 p107 A essecircncia dinacircmica contida nas letras defendida e chamada de ldquoalma das letrasrdquo por Isaac o Cego relembra caracteriacutesticas platocircnicas de potecircncia criadora oriunda do mundo das Formas e das Ideias como justamente infere SCHOLEM (1999 p33)
423 A ideia de restauraccedilatildeo de harmonia no interior do reino divino concepccedilatildeo que pode soar incocircmoda eacute melhor entendida atraveacutes da explicaccedilatildeo de Yohanan Alemanno ldquoEle [o divino] recebe todos os canais e as emanaccedilotildees dos mundos supernos e intermediaacuterios pois ningueacutem recebe aquele bem na sua inteireza a natildeo ser Ele Quando Ele o recebe todas as emanaccedilotildees que descendem agrave terra estatildeo em equiliacutebrio e operam na perfeiccedilatildeordquo Depreende-se dessas palavras que o fluxo espiritual ocorre em duas vias o reino divino natildeo apenas emite como ldquoreceberdquo as emanaccedilotildees conferindo assim perfeiccedilatildeo ao mundo inferior e perpetuando a proacutepria harmonia (ALEMANNO Einei haEdaacute ndash Os Olhos da Congregaccedilatildeondash in Manuscrito de Jerusaleacutem 598 f 51 r-v
424 IDEL 2008-a p29 No seacuteculo XVI a Cabala extaacutetica teraacute forte repercussatildeo atraveacutes dos escritos de Cordovero Iehudaacute Albotini e Haim Vital entre outros
134
elementos aristoteacutelicos significativos em suas concepccedilotildees fiacutesicas metafiacutesicas e
relacionadas agrave alma425 Diferentemente da Cabala Teuacutergica que atua na atraccedilatildeo de
forccedilas exteriores aqui o foco principal se concentra nos processos interiores que
ocorrem entre o intelecto humano e o coacutesmico por alguns denominado Intelecto
Ativo426
Assim como nas outras formas de Cabala a Extaacutetica utiliza algumas teacutecnicas
para atingir seus objetivos nesse caso voltados a alcanccedilar determinado estado de
ecircxtase ndash o chamado devekut ou uniatildeo com a Divindade ndash e excepcionalmente de
profecia427 Segundo Abulafia a profecia decorre do contato entre a inteligecircncia
pessoal e a inteligecircncia universal que envolve a Criaccedilatildeo A alma humana natildeo pode
suportar o influxo direto da inteligecircncia superior graccedilas a certos ldquonoacutesrdquo que a mantecircm
atada agrave mateacuteria O estado contemplativo permite que tais noacutes sejam desatados
atraveacutes da observaccedilatildeo extaacutetica de algum objeto sem sentido proacuteprio como por
exemplo a contemplaccedilatildeo das letras hebraicas ndash sem os riscos de outros
procedimentos Atraveacutes da escrita aleatoacuteria das letras sem a preocupaccedilatildeo de
formaccedilatildeo de algum sentido e da meditaccedilatildeo sobre cada uma de forma isolada evita-
se que a mente entre em processo de associaccedilotildees em cadeia A abstraccedilatildeo da mente
possibilita a rarefaccedilatildeo das faculdades sensoriais e a ocorrecircncia do estado de ecircxtase
com consequente abertura para o influxo da inteligecircncia superior Igualando-se na
forccedila espiritual de cada letra o miacutestico torna-se uno com ela vivenciando uma
experiecircncia de caraacuteter singular ndash conforme contam os relatos descritos em muitos
textos cabaliacutesticos428
Partes fundamentais desse processo satildeo os dispositivos e teacutecnicas para
assegurar sua consecuccedilatildeo Atraveacutes do relato de Isaac de Acre tem-se a informaccedilatildeo
das teacutecnicas conhecidas como ldquohitbodedutrdquo que se caracteriza pelo exerciacutecio da
solidatildeo e concentraccedilatildeo e ldquohischtavutrdquo a equanimidade ldquoAquele que merecer o
segredo da comunhatildeo [com o divino] mereceraacute o segredo da equanimidade se ele
425 Para elucidaccedilotildees sobre a forma que Abulafia e outros cabalistas italianos utilizaram o Aristotelismo em suas
filosofias veja-se IDEL The Study Program (opcit) pp 310-311 nota 68 para as leituras de Pico acerca de Abulafia veja-se em Wirszubski vaacuterias menccedilotildees (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism opcit) Ademais foge ao escopo traccedilado a abordagem das vaacuterias siacutenteses efetuadas entre as doutrinas cabaliacutesticas e as filosofias neoplatocircnica e aristoteacutelica no periacuteodo do Renascimento limitamo-nos portanto a apenas mencionar a existecircncia de tais inter-relaccedilotildees cujos estudos podem ser verificados nas obras de SCHOLEM Origins of the Kabbalah (Princeton University Press 1987 pp 316-320 327-330 363-364 389-390) e de IDEL Jewish Kabbalah and Neoplatonism in the Middle Ages and Renaissance (in Neoplatonism and Jewish Thought Albany Suny 1992 pp 319-351)
426 IDEL 1998 p 27 2008-a p28 427 IDEL 2008-a p29 Quando o fundador do hassidismo polonecircs Israel Baal-Schem expocircs no seacuteculo XVIII a
tese miacutestica de que a comunhatildeo com Deus (devekut) eacute mais importante do que o estudo de livros houve muita oposiccedilatildeo e sua ideia foi citada nas polecircmicas anti-hassiacutedicas como prova de tendecircncias subversivas e anti-rabiacutenicas do movimento A mesma teoria exposta duzentos anos antes por Isaac Luacuteria a grande autoridade miacutestica de Safed natildeo suscitara nenhum antagonismo Segundo SCHOLEM (1978) uma evidecircncia de mudanccedila no clima histoacuterico
428 Abraham Abursquol-Afiyah de Saragoza ndash ou Abulafia ndash que teve na ideia de profecia o propoacutesito fundamental de seu inteiro projeto cabaliacutestico realizou pesquisas acerca de tal fenocircmeno que resultaram em sua obra Chochmat Hatzeruf (A ciecircncia da combinaccedilatildeo das letras) Maiores detalhes acerca dessa forma de praacutetica cabalista podem ser encontrados em SCHOLEM A Cabala e seu Simbolismo 1988 Ainda em SCHOLEM o capiacutetulo sobre Abraham Abulafia na obra A Miacutestica Judaica conteacutem alguns registros antigos dessa experiecircncia com riqueza de detalhes Veja-se tambeacutem BUSI 2011 p 26 IDEL 2008-a pp28-30 IDEL The Mystical Experience in Abraham Abulafia 1987 IDEL Studies in Ecstatic Kabbalah 1988
135
receber esse segredo entatildeo conheceraacute tambeacutem o segredo de hitbodedut recebendo o
Espiacuterito Divino e daiacute a profeciardquo429 Essas teacutecnicas estatildeo relacionadas com a triacuteplice
purificaccedilatildeo ndash a limpeza do corpo a limpeza interior e a purificaccedilatildeo da imaginaccedilatildeo ndash
descrita por Alemanno em seu Collectanaea como meacutetodo para operar a realizaccedilatildeo
de milagres Uma vez despido de todas as sensaccedilotildees e pensamentos materiais deveraacute
o operador ler apenas a Toraacute e os nomes divinos nela escritos para que entatildeo lhe
sejam revelados ldquosegredos impressionantes e visotildees divinas tais como as que podem
ser emanadas sobre as almas puras preparadas para recebecirc-losrdquo430 A alusatildeo de
Alemanno refere-se pois ao estado extaacutetico atingiacutevel atraveacutes da contemplaccedilatildeo dos
nomes divinos Se na Cabala Teuacutergica a interpretaccedilatildeo da Toraacute eacute utilizada como
elemento de aproximaccedilatildeo agrave divindade na Extaacutetica seraacute a contemplaccedilatildeo de cada letra
a propiciar a abstraccedilatildeo necessaacuteria para atingir o ecircxtase
A praacutetica da contemplaccedilatildeo esteve presente desde a primeira fase do misticismo
judaico embora inicialmente relacionada agrave contemplaccedilatildeo dos mundos superiores
conforme os mencionados tratados dos Heikhalot os miacutesticos dedicavam-se entatildeo a
exerciacutecios meditativos que os permitissem visualizar os mundos celestiais a
ldquoCarruagemrdquo (Mercavaacute) o ldquoTrono da Gloacuteriardquo e os seres muitas vezes hostis que
correspondem agraves diversas ordens angelicais Apesar de essa jornada sugerir uma
ascensatildeo os visionaacuterios e exploradores dos planos celestiais eram chamados Iordei
Mercavaacute (ldquoos que descem agrave Carruagemrdquo) provavelmente aludindo natildeo a uma saiacuteda
de si mas a um aprofundamento dentro do proacuteprio ser431 A importacircncia da
contemplaccedilatildeo encontra-se ademais no centro do pensamento de Isaac o Cego
ldquotodos os atributos satildeo transmitidos para serem contempladosrdquo A descese do
princiacutepio divino eacute descrita como uma seacuterie de contemplaccedilotildees sucessivas que durante
suas ocorrecircncias plasmam as coisas e lhes fornecem o aspecto com o qual se
apresentam ao mundo O chamado ao silecircncio interior eacute frequente em sua obra ldquoo
caminho da contemplaccedilatildeo eacute de fato um absorver e natildeo um conhecer
discursivamenterdquo432 Eacute ainda atraveacutes da contemplaccedilatildeo que o homem pode percorrer
o caminho inverso da emanaccedilatildeo divina Esse eacute o ponto em que o Cabalismo mais se
aproxima do pensamento neoplatocircnico do qual se disse que ldquoa progressatildeo e a
inversatildeo constituem um processo uacutenicordquo a diaacutestole-siacutestole que movimenta o
universo433
Os trecircs modelos verificados costumam se apresentar mesclados nas praacuteticas
cabaliacutesticas e em raros casos foram tratados em abordagens completamente
429 Esse e outros relatos de experiecircncias extaacuteticas podem ser lidos em IDEL 2008-a 430 ALEMANNO Collectanaea in Manuscrito de Oxford 2234 f 164r 431 SENDER opcit pp 41-42 432 A principal obra teoacuterica de Isaac o Cego da qual se tem notiacutecia eacute o Comentaacuterio ao Secircfer Yetsiraacute abordado
por BUSI (opcit p 53) 433 SCHOLEM 1995 p22
136
estanques Natildeo satildeo poucos os relatos de operadores que partindo da contemplaccedilatildeo e
seu subsequente alcance do reino divino ndash em claro emprego da forma Extaacutetica ndash
atraem em seguida o poder superno para realizar operaccedilotildees teuacutergicas Da mesma
forma a Cabala Teuacutergica foi combinada amiuacutede com operaccedilotildees maacutegicas de maneira
a permitir que as emanaccedilotildees das Sefirot mais altas prosseguissem sua descida sobre o
mundo extradivino Em comum tais operaccedilotildees utilizam-se da potecircncia desencadeada
pela correta escolha ou pronuacutencia de certos vocaacutebulos ou atraveacutes da meditaccedilatildeo sobre
suas formas434 Giovanni Pico utilizou-se dos trecircs modelos em suas argumentaccedilotildees A
eficaacutecia dos sons e palavras na obra maacutegica eacute defendida seja na Oratio que na
Apologia seu uso teuacutergico eacute apontado em vaacuterias conclusiones a dimensatildeo extaacutetica
encontra eco nas reflexotildees mais profundas do Mirandolano a serem retomadas no
uacuteltimo Capiacutetulo Contudo a evidecircncia do uso de fontes e conceitos extraiacutedos dos
modelos descritos entre as paacuteginas piquianas embora uma razatildeo suficiente natildeo eacute a
uacutenica para a apresentaccedilatildeo deste capiacutetulo digressivo Enquanto a outras tradiccedilotildees de
cunho esoteacuterico Pico natildeo destinou nenhuma obra em caraacuteter exclusivo ao
conhecimento cabaliacutestico mesmo que natildeo de forma expressa foi dedicado o
Heptaplus assim o esclarecimento de alguns conceitos natildeo usuais na linguagem
filosoacutefica se coloca como uma necessidade para uma aproximaccedilatildeo mais fluiacuteda e
aprofundada ao texto
434 Para uma reflexatildeo bastante aprofundada acerca do uso maacutegico-operacional da linguagem veja-se Franco
BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 pp 43-48 Veja-se tambeacutem para reflexotildees sobre a natureza da linguagem desenvolvidas por cabalistas e alguns comentadores do Secircfer Yetsiraacute VAJDA Un chapitre de lrsquohistoire du conflit entre la kabbale et la philosophie in ldquoArchives drsquohistoire doctrinale et littegraveraire du Moyen Agerdquo XXXI 1956 pp49-56 e 127-133 IDEL Language Torah and Hermeneutics in Abraham Abulafia Albany 1989 pp1-28 (apud BACCHELLI ibid n p 51)
137
CAPIacuteTULO VI
O HEPTAPLUS Agrave LUZ DA CABALA
O Heptaplus435 vocaacutebulo que significa ldquosete vezes seterdquo nasce como um
comentaacuterio em sete partes ndash subdivididas em sete capiacutetulos cada ndash acerca dos seis
dias da criaccedilatildeo expostos no Gecircnesis 1 Antes de Giovanni Pico outros nomes entre
latinos gregos hebreus e caldeus se haviam lanccedilado a interpretar a mesma
passagem biacuteblica como o proacuteprio indicava no Primeiro Proecircmio que antecede sua
obra436 tinha portanto plena ciecircncia do fato de natildeo se tratar de originalidade sua
preocupando-se em avisar agora no Segundo Proecircmio que ldquonatildeo eacute o propoacutesito dessa
obra que quem natildeo tenha aprendido essas coisas em outro lugar as aprenda aqui
pela primeira vezrdquo437 A escolha do Gecircnesis como fundamento para ensejar uma obra
deveu-se agrave percepccedilatildeo de que sob aquela narrativa estariam guardados ldquosegredos de
todas as naturezasrdquo em mais uma evidecircncia de seu interesse em ter acesso a
realidades protegidas pela dimensatildeo esoteacuterica438 A opccedilatildeo por aquele especiacutefico livro
da Biacuteblia eacute esclarecida de forma a natildeo deixar duacutevidas se Moiseacutes tivesse sepultado
em alguma parte das Escrituras ldquoos tesouros de toda a filosofia verdadeirardquo teria
sido naquela parte que trata ldquoda emanaccedilatildeo de todas as coisas de Deus do grau do
nuacutemero da ordem das partes do mundo com elevadiacutessima capacidade filosoacuteficardquo439
Ou seja no Gecircnesis
A obra trata portanto de sete ldquoExposiccedilotildeesrdquo ou ldquoLivrosrdquo440 sucessivos que se
dedicam agrave narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo cada qual focado em uma das dimensotildees ndash ou
relaccedilotildees entre as dimensotildees ndash vislumbradas pelo autor As trecircs primeiras exposiccedilotildees
estabelecem respectivamente uma analogia entre os trecircs graus do real ndash o
elementar o celeste e o angeacutelico ndash com cada um dos trecircs mundos sub-divinos
admitidos pela Cabala descrevendo as devidas formas constitutivas de cada reino A
quarta exposiccedilatildeo trata do reino humano a quinta aponta para a sucessatildeo dos quatro
435 O Heptaplus ndash De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione ndash foi finalizado em 1489 e dedicado a
Lorenzo dersquoMedici A editio princeps consta de 1490 Quando Gianfrancesco Pico editou a primeira Opera Omnia referente agraves obras do tio optou por colocar o Heptaplus em seu iniacutecio uma posiccedilatildeo mantida nas ediccedilotildees subsequentes Em 1555 a obra foi traduzida para o italiano e em 1578 para o francecircs (cf Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 pp 8-10) As traduccedilotildees para o portuguecircs presentes neste Capiacutetulo satildeo de nossa responsabilidade utilizando-se como guia a traduccedilatildeo de Eugenio Garin para o italiano (que em muitos trechos natildeo eacute estritamente literal mas adequada a um melhor entendimento do leitor)
436 Escreve Pico que diante de tantos inteacuterpretes quase natildeo ousaria ldquopensar em escrever algo de novo ou acrescer qualquer comentaacuterio original sobre o argumentordquo (Heptaplus p 177) Entre os inteacuterpretes do Gecircnesis citados em seu preacircmbulo encontram-se Ambroacutesio Agostinho Estrobeu Egiacutedio Fiacutelon Oriacutegenes e vaacuterios outros alguns menos conhecidos inclusive do ciacuterculo caldeu e hebraico (ibid pp179-181)
437 Heptaplus P2 p198 Para dar relecircvo a suas palavras Pico cita Agostinho que em sua exposiccedilatildeo sobre o Gecircnesis escrevera ldquoSe podes aprendes essas coisas se natildeo podes deixa-as a quem vale mais do que tirdquo (ldquoHaec tu si potes apprehendas si nondum potes relinquas valentioribusrdquo) A referecircncia de Agostinho encontra-se na nota agrave traduccedilatildeo de GARIN (Augustini De Gen ad litt V 3 (6) P L XXXIV 323)
438 Heptaplus P1 p170 439 Heptaplus P1 p177 A mesma alusatildeo jaacute havia sido feita por Pico em sua Apologia quando justificando suas
Conclusiones perante aos padres afirmara que ldquoos tesouros da lei espiritual estariam sepultados na obra de Moiseacutesrdquo
440 De fato Pico nomeia cada parte de sua obra de ldquoExpositiordquo ou ldquoLiberrdquo
138
mundos presentes na narrativa biacuteblica a sexta expotildee as relaccedilotildees entre esses mundos
e a seacutetima aponta para o destino que lhes cabe dentro do desenho universal O
objetivo nuclear do autor eacute demonstrar que os vaacuterios mundos natildeo satildeo membra
disiecta (membros dispersos) mas que estatildeo relacionados entre si e tecircm no homem
seu ponto de uniatildeo441 Cada uma das exposiccedilotildees por sua vez encontra-se dividida em
outras sete partes ndash correspondentes a cada um dos seis dias da Criaccedilatildeo narrados na
Biacuteblia acrescidas cada qual com o seacutetimo capiacutetulo ldquoem Cristordquo Explica o autor no
Segundo Proecircmio que o seacutetimo capiacutetulo de cada Livro representa ldquoo fim da Lei o
nosso saacutebado a nossa paz a nossa felicidaderdquo ndash assim como narrado no Gecircnesis em
que o saacutebado eacute o dia do repouso442
Segundo Eugenio Garin a redaccedilatildeo fluente e contiacutenua proposta por Pico no
Heptaplus faz parte de um meacutetodo em que a forma escrita remete agrave difusatildeo e agrave
interpenetraccedilatildeo entre os vaacuterios planos de existecircncia Os mundos com seus
variegados planos apresentam-se natildeo apenas correspondentes mas entrelaccedilados uns
aos outros quase como perspectivas muacuteltiplas (e intriacutensecas no homem) de uma
mesma realidade443 Ademais a obra apresenta um constante movimento dialeacutetico
que a faz transitar de forma harmoniosa entre a feacute e a razatildeo refletindo a perfeita
seguranccedila de Pico sobre a relaccedilatildeo entre as obras da Criaccedilatildeo e a racionalidade de suas
leis (ldquotoda obra da natureza eacute obra da inteligecircnciardquo)444 Retorna-se mais uma vez
para a relaccedilatildeo entre religiatildeo e filosofia ndash abordada no Capiacutetulo 3 ndash cuja centralidade
no pensamento piquiano seraacute retomada no Capiacutetulo final
Assim como em outras obras a dialeacutetica razatildeo-feacute eacute permeada por uma terceira
perspectiva relacionada agrave presenccedila do elemento esoteacuterico a ser verificada no decorrer
do Capiacutetulo Sob o prisma de uma hermenecircutica esoteacuterica o Heptaplus pode ser
dividido em trecircs leituras a) a primeira concentra-se no Primeiro Proecircmio escrito por
Pico agrave guisa de introduccedilatildeo em que satildeo apresentadas vaacuterias referecircncias utilizadas pelo
autor como instrumentos para a afirmaccedilatildeo da existecircncia de verdades que devem ser
preservadas da escrita b) a segunda concerne agrave alegoria do ldquoTabernaacuteculordquo de Moiseacutes
nuacutecleo do Segundo Proecircmio utilizada como fundamento metafoacuterico sobre o qual
ergue-se o projeto do Heptaplus porquanto conteacutem a representaccedilatildeo de trecircs dos
mundos tratados no conjunto da obra c) a terceira perspectiva eacute colhida da uacuteltima
parte da obra uma espeacutecie de ldquoapecircndicerdquo em que o autor apresenta de forma
detalhada a aplicaccedilatildeo de seu meacutetodo cabaliacutestico Agraves trecircs partes mais nobres de sua
obra ndash os dois proecircmios em que a intenccedilatildeo do autor eacute expressa e o apecircndice que
finaliza o todo ndash junta-se a concepccedilatildeo do projeto como um todo (em seus sete Livros)
que embora natildeo tratado aqui eacute erigido sobre uma leitura que enxerga sob a letra das
Escrituras significados ocultos
441 Heptaplus V 7 p305 442 Heptaplus P2 p203 443 GARIN LUmanesimo italiano 2008 p 125 444 Heptaplus I 1 p207 ldquoomne opus naturae opus esse intelligentiaerdquo
139
1 As referecircncias esoteacutericas do Primeiro Proecircmio
Cocircnscio da dificuldade que teria em despertar qualquer interesse filosoacutefico por
seu trabalho de hermenecircutica biacuteblica Pico preocupou-se logo agrave abertura do
Heptaplus em dar credibilidade ao autor do Gecircnesis ndash que ele como os demais agrave
eacutepoca acreditava ser Moiseacutes Assim uma parte do Primeiro Proecircmio escrito como
preacircmbulo agrave obra eacute utilizada para justificar a autoridade de Moiseacutes perante um
grupo de oponentes (natildeo identificados) que teriam estabelecido uma distinccedilatildeo entre a
forma literaacuteria do texto mosaico (o Pentateuco) e a dos tradicionais escritos
filosoacuteficos ndash esses sob tal enfoque tidos como superiores
Sua defesa se divide em dois momentos Primeiramente eacute feita uma
argumentaccedilatildeo fundamentada sobre algumas autoridades da Antiguidade que de
alguma forma teriam contribuiacutedo para propagar o nome de Moiseacutes como mestre ldquode
conhecimento humano e de suma sabedoria em todas as doutrinas e literaturasrdquo445
Os indiacutecios utilizados para sustentar a reputaccedilatildeo do mencionado Profeta satildeo
provenientes a) de Lucas e Fiacutelon respeitaacuteveis testemunhos de que Moiseacutes fora
instruiacutedo em todas as doutrinas dos egiacutepcios446 b) dos egiacutepcios que teriam instruiacutedo
alguns dentre os mais celebrados filoacutesofos gregos ndash como Pitaacutegoras Platatildeo
Empeacutedocles e Demoacutecrito (menccedilatildeo que permite ao Autor inserir Moiseacutes no centro da
Filosofia grega)447 c) do neopitagoacuterico Numecircnio que chamara Platatildeo de ldquoo Moiseacutes
Aacuteticordquo (registro que chama a atenccedilatildeo para a similaridade entre as doutrinas dos dois
saacutebios)448 d) do pitagoacuterico Hermipo que teria afirmado que Pitaacutegoras transferira
muitas coisas da lei mosaica para sua proacutepria filosofia449
Em segundo lugar para explicar a disparidade existente entre a aparente rudez
do texto mosaico considerado comum e trivial (ldquomedio et trivialerdquo) e a complexidade
proacutepria de uma grande obra de Filosofia Pico recorre a referecircncias colhidas em
tradiccedilotildees erigidas sobre a oralidade e a misteriologia introduzindo no centro do
Primeiro Proecircmio uma argumentaccedilatildeo filosoacutefica de dimensatildeo esoteacuterica Nesse
sentido para se estabelecer em uma linha contraacuteria agrave consolidada entre os
acadecircmicos ndash a de que Moiseacutes seria inculto e pouco similar a um filoacutesofo ou
teoacutelogo450 ndash Pico se abastece de alguns fatos e personagens histoacutericos de forma a
justificar aquele tipo rude de escrita uma tentativa de demonstrar que tal estilo seria
445 Heptaplus P1 p171 446 Heptaplus idem O testemunho de Lucas estaacute em Atos 722 ldquoMoiseacutes foi instruiacutedo em toda a sabedoria dos
egiacutepciosrdquo o de Fiacutelon em De Vita Mosis 121-24 447 Heptaplus idem Na obra De mysteriis Aegyptiorum Chaldeorum Atque Assyriorum de Jacircmblico haacute uma
lista similar ldquoPythagoras Plato Democritus Eudoxus et multi ad sacerdotes Aegyptios accesseruntrdquo (traduccedilatildeo de Ficino Opera omnia repr Turin Bottega drsquoErasmo 1962)
448 Heptaplus P1 pp171-173 A referecircncia a Numecircnio encontra-se na obra de Euseacutebio Preparatio evangelica IX 6 e XI 10
449 Heptaplus P1 p173 Hermipo escreveu um Vida de Pitaacutegoras que serviu de fonte para Dioacutegenes Laerte Essa ideia contudo natildeo consta nos fragmentos atualmente existentes de Hermipo (cf Crofton BLACK 2006 p 96 e 145)
450 ldquoAut philosophus aut theologusrdquo (Hept P1 p172)
140
necessaacuterio para resguardar a preciosidade de determinado conteuacutedo451 Seu
argumento esoteacuterico se compotildee por uma sequecircncia de vaacuterias passagens452
a) ldquoExiste entre os hebreus sob o nome do sapientiacutessimo Salomatildeo um livro intitulado Sapientia natildeo esse que temos hoje obra de Fiacutelon mas outro escrito naquela linguagem secreta que chamamos lsquohierosolymarsquo cujo autor e inteacuterprete da natureza das coisas como se acredita declara ter recebido toda a sua sabedoria da profundidade da lei mosaicardquo453
b) ldquo[] devemos lembrar um famoso costume dos antigos saacutebios o de se abster de escrever acerca das coisas divinas ou sobre elas escrever veladamente e por isso satildeo chamados Misteacuterios Natildeo eacute misteacuterio o que natildeo eacute ocultordquo454
c) ldquo[Os segredos] foram observados por Indianos Etiacuteopes [] e Egiacutepcios Esse eacute o significado das Esfinges defronte aos templosrdquo455
d) ldquoInstruiacutedo por eles [os Egiacutepcios] Pitaacutegoras tornou-se mestre do silecircncio natildeo entregou suas doutrinas agrave escrita com exceccedilatildeo de muito pouco que ao morrer confiou agrave sua filha Damo De fato ele natildeo foi o verdadeiro autor de Aurea carmina mas sim Filolaurdquo [] ldquoA lei do silecircncio foi uma tradiccedilatildeo mantida ininterrupta ateacute que Hiparco a teria violado conforme deplorou Lysisrdquo456
e) ldquoSobre essa [a preservaccedilatildeo do silecircncio] juraram os disciacutepulos de Amocircnio Oriacutegenes Plotino e Herecircnio como testemunha Porfiacuteriordquo457
451 Heptaplus P1 pp 172 176 452 Para a discussatildeo das fontes utilizadas por Pico veja-se Chaim WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos
Encounter with Jewish Mysticism 1987 pp 123-132 453 Heptaplus P1 p170 ldquoExtat apud Hebraeos Salomonis illius cognomento sapientissimi liber cui Sapientia
titulus non qui nunc in manibus est Philonis opus sed alter hierosolyma quam vocant secretiore lingua compositus in quo vir naturae rerum sicuti putatur interpres omnem se illiusmodi disciplinam fatetur de Mosaicae legis penetralibus accepisserdquo Natildeo haacute fontes precisas sobre esse livro que Pico esclarece natildeo se tratar da obra homocircnima de Fiacutelon Referecircncia a tal trabalho pode ser encontrada no comentaacuterio de Nahmacircnides ao Pentateuco do qual uma coacutepia hebraica consta no inventaacuterio da biblioteca de Pico (Commentary of Nahmanides on Genesis ed Newman pp 25-27) Sobre o fato de Pico ter lido o comentaacuterio de Nahmacircnides veja-se BLACK opcit capiacutetulo 7 Veja-se ainda WIRSZUBSKI opcit p 219 Nahmacircnides na obra em questatildeo diz que o Livro da Sabedoria atribuiacutedo a Salomatildeo estaacute escrito em aramaico enquanto Pico escreve que estaacute na linguagem hierosolyma
454 Heptaplus P1 p172 ldquo[] revocemus eo mentem fuisse veterum sapientum celebre institutum res divinas ut aut plane non scriberent aut scriberent dissimulanter Hinc appellata mysteria (nec mysteria quae non occulta)rdquo
455 Heptaplus P1 p172 ldquohoc ab Indis hoc ab Aethiopibus [] hoc ab Aegyptiis observatum quod et Sphinges illae pro templis insinuabantrdquo A fonte utilizada por Pico para a informaccedilatildeo sobre os Indianos eacute provavelmente Euseacutebio (Preparatio evangelica IX 6 e 7) Sobre as Esfinges Pico dissera na Oratio (p157) que ldquoesculpidas nas frentes dos templos egiacutepcios advertiam que os ensinamentos miacutesticos deviam ser guardados com os noacutes dos enigmas inviolaacuteveis para a multidatildeo profanardquo A fonte de Pico para as Esfinges poderia ser Plutarco De Iside et Osiride 9
456 Idem ldquoab eis edoctus Pythagoras silentii factus est magister nec ipse quicquam litteris mandavit praeter omnino paucula quae Damae filiae moriens commendavit Non enim quae circumferuntur aurea carmina Pythagorae sunt ut vulgo etiam doctioribus persuasum est sed Philolairdquo [] ldquoLegem deinceps eam Pythagorici religiosissime tutati sunt Eam Lysis ab Hypparco violatam quaeriturrdquo A carta de Lysis para Hiparco mencionada por Pico diz ldquoMuitas pessoas dizem que vocecirc filosofa em puacuteblico o que Pitaacutegoras negou como indigno ele confiando suas notas escritas para sua filha Damo notificou que ela natildeo deveria entregaacute-los a ningueacutem fora da comunidaderdquo (Epistolographi Graeci org HERCHER Paris Ambrosio Firmin Didot 1873 p 603 apud BLACK 2006 n p146) Os pitagoacutericos efetivamente tornaram a postura da transmissatildeo unicamente oral uma exigecircncia de ordem praacutetica
457 Heptaplus P1 p172 ldquoIn eam denique iuratos Ammonii discipulos Origenem Plotinum et Herennium Porphyrius est auctorrdquo A fonte de Pico eacute Porfiacuterio que descreve tal pacto em seu Vida de Plotino 3 ldquoUm pacto foi feito por Herecircnio Oriacutegenes e Plotino para natildeo revelarem as doutrinas de Amocircnio que ele havia ensinado em palestras (PORPHYRE La vie de Plotin II ed Brisson Paris Vrin 1982) De acordo com Porfiacuterio Oriacutegenes foi
141
f) ldquoO nosso Platatildeo escondeu as proacuteprias crenccedilas sob veacuteus enigmaacuteticos siacutembolos
de mitos imagens matemaacuteticas e argumentos de sentido obscuro a ponto de contar nas epiacutestolas que apoiando-se em seus escritos ningueacutem teria compreendido claramente seu pensamento sobre as coisas divinasrdquo458
g) ldquoJesus Cristo natildeo escreveu o Evangelho mas o pregou Pregou para as massas atraveacutes de paraacutebolas e separadamente para poucos disciacutepulos aos quais era concedido compreender os misteacuterios do reino dos ceacuteus abertamente e sem imagens mesmo assim natildeo desvelou tudo agravequeles poucos uma vez que havia coisas que eles poderiam natildeo suportarrdquo459
h) ldquoJoatildeo [o apoacutestolo] revelou bem mais do que os outros sobre os segredos da divindade [] mas falou brevemente e de forma obscurardquo460
i) ldquoPaulo [] apenas aos perfeitos falaria a linguagem da sabedoriardquo461
j) ldquoDioniacutesio o Areopagita escreveu que nas Igrejas houve o sagrado e respeitado costume de natildeo transmitir doutrinas secretas por escrito mas apenas agrave voz e para os devidamente iniciadosrdquo462
pupilo de Amocircnio no mesmo tempo que Plotino e Herecircnio se eacute verdade que os trecircs fizeram um pacto de natildeo revelar em escritos as doutrinas de seu professor tanto Herecircnio quanto Oriacutegenes quebraram suas promessas
458 Idem ldquoPlato noster ita involucris aenigmatum fabularum velamine mathematicis imaginibus et subobscuris recedentium sensuum indiciis sua dogmata occultavit ut et ipse dixerit in Epistulis neminem ex his quae scripserit suam sententiam de divinis aperte intellecturum et re minus credentibus comprobaveritrdquo A passagem refere-se agrave Carta II (312 d-e) tambeacutem mencionada por Pico na Oratio (p157) na qual Platatildeo escrevendo a Dioniacutesio sobre os modos das substacircncias supremas afirma ldquoEacute necessaacuterio exprimir-nos mediante enigmas de modo que se alguma vez por acaso a carta cair na matildeo de um outro natildeo seja percebido pelos outros aquilo que escrevordquo Os segredos conceituais que Platatildeo natildeo teria submetido agrave escrita referem-se a questotildees tratadas em suas aulas ldquoSobre o Bemrdquo nas quais eram discutidos os Princiacutepios Parte de tais concepccedilotildees foram transmitidas atraveacutes da filosofia neoplatocircnica chegando a Pico atraveacutes das traduccedilotildees de Ficino Para toda a problemaacutetica em torno agraves ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo de Platatildeo veja-se o fundamental Para uma nova Interpretaccedilatildeo de Platatildeo de Giovanni Reale trad Marcelo Perine (Satildeo Paulo Loyola 1997)
459 Heptaplus P1 p174 ldquoIesus Christus imago substantiae Dei Evangelium non scripsit sed praedicavit praedicavit autem turbis quidem in parabolis seorsum autem paucis discipulis quibus datum erat nosse mysteria regni caelorum palam citraque figuras neque omnia paucis illis quia non omnium capaces et multa erant quae portare non poterant donec adveniens Spiritus docuit omnem veritatemrdquo A ideia de que Jesus teria revelado muitos misteacuterios apenas aos seus disciacutepulos eacute atribuiacuteda por Pico a Oriacutegenes no Commento na Apologia e na Oratio (p157) ldquoOriacutegenes afirma que Jesus Cristo mestre de vida revelou aos disciacutepulos muitas coisas que eles natildeo quiseram escrever para natildeo se tornarem vulgarizados Tal fato confirma-o sobretudo Dioniacutesio Areopagita o qual diz que os misteacuterios mais secretos foram transmitidos pelos fundadores da nossa religiatildeo ek nou eis noun dia meson logon isto eacute de mente a mente sem escritos mediante o Verbordquo
460 Pico complementa que Joatildeo revelou o misteacuterio do logos apenas com a finalidade de combater os Ebionitas que afirmavam o Cristo homem mas negavam sua divindade ldquoIoannes qui prae omnibus maxime divinitatis secreta revelavit tribus pridem vulgatis Evangeliis et a Domini cruce multis exactis annis coactus loqui quae diu tacuerat ad abolendam haeriesim Ebionitarum quae Christum hominem non etiam Deum asseverabat de aeterna Filii generatione sed paucis sed obscure pronunciavit inde exorsus in principio erat Verbumrdquo (ibid pp 174-176)
461 Heptaplus P1 p176 ldquoPaulus Corinthiis negat solidum cibum propterea quod adhuc carnis legibus vivant non autem spiritus et sapientiam loquitur ante perfectosrdquo A referecircncia (Cor I 511) encontra-se na proacutepria ediccedilatildeo Em outra passagem referida na Oratio (p157) Pico escreve ldquomanter portanto tudo isto oculto do vulgo a fim de o comunicar apenas aos perfeitos entre os quais unicamente Paulo (Cor I 2-6) afirma pronunciar palavras de sapiecircncia natildeo foi obra de humana prudecircncia mas de divina sabedoriardquo
462 Heptaplus P1 p176 ldquoDionysius Areopagita sanctum et ratum institutum fuisse scribit ecclesiis ne dogmata secretiora per litteras sed voce tantum iis qui rite essent initiati communicarenturrdquo A passagem de Pseudo Dioniacutesio encontra-se em De Coelesti Hierarchia II (cf ref na ediccedilatildeo do Heptaplus)
142
A presenccedila de vaacuterios registros relacionados agrave tradiccedilatildeo oral utilizados como
principal ferramenta de sustentaccedilatildeo para afirmar a autoridade de Moiseacutes mostra-se
um recurso introdutoacuterio necessaacuterio para dar credibilidade ao conjunto da obra
estruturada sobre uma linguagem alegoacuterica que pede uma maior acuidade daquele
que a lecirc Poreacutem longe de ser um artifiacutecio retoacuterico suas referecircncias refletem uma
categoria proacutepria e fluiacuteda do pensamento piquiano O denominador comum entre os
exemplos histoacutericos eacute a ideia de demarcaccedilatildeo entre os natildeo-iniciados e os iniciados
concepccedilatildeo que por sua vez conduz o leitor agrave aceitaccedilatildeo de uma divisatildeo da
interpretaccedilatildeo biacuteblica entre literal e natildeo-literal A leitura literal corresponde agrave
ldquomultidatildeordquo enquanto a natildeo-literal na terminologia que toma emprestado de Paulo e
dos primeiros cristatildeos ldquoaos perfeitosrdquo Seguindo as pistas de leituras relacionadas agrave
miacutestica hebraica Pico pretende evidenciar que essa dicotomia eacute fundamental para a
recepccedilatildeo das revelaccedilotildees contidas na Biacuteblia abrindo caminho para sua interpretaccedilatildeo
do Gecircnesis Esse tipo de procedimento hermenecircutico em que o fator esoteacuterico eacute
empregado como ponto de analogia entre representantes da Feacute de um lado e da
Filosofia de outro jaacute havia sido adotado em outras obras anteriores ao Heptaplus
postura filosoacutefica que se mostrara desenvolvida em torno a lsquo86 Por exemplo em sua
Conclusio cabalistica 63 Pico dizia
Assim como Aristoacuteteles dissimulou sob a superfiacutecie da
especulaccedilatildeo filosoacutefica aquela mais divina filosofia que os
filoacutesofos antigos haviam escondido com mitos e faacutebulas
mantendo-a obscura com a concisatildeo de suas palavras assim o
Rabbi Moiseacutes egiacutepcio no livro que os latinos intitulam O Guia
dos Perplexos atraveacutes da casca superficial das palavras daacute a
impressatildeo de caminhar com os filoacutesofos enquanto pelos
intentos velados de seu profundo sentir abraccedila os misteacuterios da
Cabala463
Apresentam-se ainda profusas indicaccedilotildees da utilizaccedilatildeo de fontes esoteacutericas
no Commento na De Hominis Dignitate ndash como verificado no Capiacutetulo IV ndash e na
Apologia Efetivamente repetem-se nas trecircs obras algumas das mesmas referecircncias
usadas por Pico no Heptaplus464 Entretanto haacute nessa obra uma diferenccedila
fundamental diversamente das obras anteriores a tradiccedilatildeo cabalista natildeo eacute citada
junto ao elenco esoteacuterico embora a mesma mantenha-se tatildeo central quanto nos
relatos anaacutelogos daquelas obras A ausecircncia de qualquer menccedilatildeo ao termo ldquocabalardquo
na inteira obra pode ter sido responsaacutevel pelo surgimento de certas interpretaccedilotildees
conflituosas embora a maior parte dos inteacuterpretes considere o conteuacutedo do
Heptaplus como exclusivamente cabalista465 Eugenio Garin em sua obra Giovanni
463 Concl (II) XI 63 Rabbi Moiseacutes egiacutepcio refere-se ao filoacutesofo medieval Maimocircnides ao qual Pico atribui trecircs
opiniotildees nas Conclusiones ldquoSicut Aristoteles diuiniorem philosophiam quam philosophi antiqui sub fabulis et apologis uelarunt ipse sub philosophicae speculationis facie dissimulauit et uerborum breuitate obscurauit ita Rabi Moyses aegyptius in libro qui a latinis dicitur dux neutrorum dum per superficialem uerborum corticem uidetur cum Philosophis ambulare per latentes profundi sensus intelligentias mysteria complectitur Cabalaerdquo
464 Veja-se por exemplo algumas das mesmas referecircncias esoteacutericas na Apologia (p27) e na Oratio (p 157) 465 Alguns dentre os relevantes inteacuterpretes que consideram o Heptaplus fundamentalmente cabalista satildeo
Matter Dorez Liebert e Vulliaud Guido MASSETANI (La Filosofia Cabalistica di Giovanni Pico della
143
Pico della Mirandola constata (a) que Pico coroou seus conhecimentos cabaliacutesticos
atraveacutes do Heptaplus (b) que as origens dessa obra estatildeo em seus profundos estudos
sobre a gnose hebraica e (c) que existe afinidade formal entre o Heptaplus e as obras
da Cabala466
De qualquer forma ao retomar em lsquo89 as concepccedilotildees de ordem esoteacuterica
propostas em seus trabalhos anteriores Pico decide remover deliberadamente a
utilizaccedilatildeo daquela palavra que poderia desencadear suspeitas de heresia e que
segundo ele teria sido a causa da condenaccedilatildeo papal que sofrera Cabe lembrar que
enquanto escrevia o Heptaplus ainda estava em vigor a bula emitida por Inocecircncio
VIII condenando as Conclusiones467 Assim eacute bastante provaacutevel que ao voltar a
redigir seus paracircmetros de fontes Pico tenha conscientemente eliminado as
referecircncias agrave Cabala por razotildees de prudecircncia Tal remoccedilatildeo parece ter sido mais
aparente do que substancial porquanto o nuacutecleo do conteuacutedo doutrinal cabaliacutestico foi
preservado (em alguns casos com as mesmas palavras das obras anteriores) como
seraacute visto a seguir Seu modelo hieraacuterquico de mundos encontra vaacuterios pontos de
convergecircncia com os mundos da doutrina cabaliacutestica utilizados para sustentar o
projeto pretendido Mais adiante atraveacutes da verificaccedilatildeo do apecircndice da obra
inteiramente consagrado a demonstrar a aplicabilidade do meacutetodo cabaliacutestico tem-se
a comprovaccedilatildeo definitiva de que a ausecircncia de qualquer menccedilatildeo ao termo Cabala
tenha sido apenas um expediente utilizado para natildeo acirrar os acircnimos ao seu redor
2 Os Mundos na Cabala no Heptaplus
ldquoA Antiguidade imaginou trecircs mundosrdquo468 Com essas palavras Pico abre seu
Segundo Proecircmio em cuja narrativa confirma a posiccedilatildeo superna do mundo
suprassensiacutevel ldquoque os teoacutelogos chamam lsquoangeacutelicorsquo e os filoacutesofos lsquointeligiacutevelrsquo nunca
cantado por ningueacutem de forma adequadardquo segundo ldquoo que diz Platatildeo no Fedrordquo469
Abaixo desse haacute o mundo celeste e por uacuteltimo o nosso mundo sublunar ldquoEste ndash
continua Pico ndash eacute o mundo das trevas aquele da luz o celeste eacute composto de luz e
trevasrdquo O mundo sensiacutevel eacute representado pela aacutegua substacircncia mutaacutevel aquele pelo
fogo em razatildeo do esplendor da luz o ceacuteu natureza intermeacutedia eacute composto de aacutegua e
fogo e por tal razatildeo eacute chamado pelos hebreus de lsquoasciamaimrsquo termo composto de
Mirandola Empoli 1897) por sua vez natildeo se mostrou convencido com as correspondecircncias entre os mundos da Cabala e os propostos por Pico
466 As passagens encontram-se respectivamente (a) e (b) na paacutegina 39 (c) na paacutegina 158 (GARIN 2011) 467 A bula de Inocecircncio VIII foi emitida em 15 de dezembro de 1487 e permaneceu em vigor ateacute 18 de junho de
1493 A decisatildeo de omitir a palavra ldquocabalardquo do Heptaplus obteve um certo resultado positivo pois embora natildeo tenha ficado satisfeito com o surgimento da obra ndash considerando-a uma continuidade dos erros precedentes ndash o papa natildeo lhe conferiu o mesmo desprezo que agraves Conclusiones
468 Heptaplus P2 p185 ldquoTres mundos figurat antiquitasrdquo 469 Idem ldquoSupremum omnium ultramundanum quem theologi angelicum philosophi autem intellectualem
vocant quem a nemine satis pro dignitate decantatum Plato inquit in Phaedrordquo A passagem de Platatildeo encontra-se em Fedro 247c Na continuidade do trecho Pico complementa que as consideraccedilotildees acerca dos trecircs mundos natildeo possuem novidade alguma aos olhos dos estudiosos do mundo antigo
144
fogo (es) e aacutegua (maim)470 O caraacuteter intermeacutedio do mundo celeste eacute especialmente
acentuado por Pico que traz analogias extraiacutedas de suas fontes cabaliacutesticas Tal
caraacuteter eacute marcado pela mistura de propriedades presentes em cada um dos outros
dois mundos Assim tem-se no mundo terreno vida e morte no inteligiacutevel eterna
vida e contiacutenua atividade no celeste estabilidade de vida poreacutem com vicissitudes de
atividades e posiccedilotildees O mundo terrestre eacute constituiacutedo pela natureza caduca dos
corpos o mundo inteligiacutevel pela natureza divina da mente o ceacuteu pelo corpo embora
incorruptiacutevel e pela mente apesar de sujeita ao corpo O terceiro ldquoeacute movido pelo
segundo enquanto o segundo eacute governado pelo primeirordquo471 Continuando
os trecircs mundos satildeo apenas um natildeo apenas porque todos se
reportam de um uacutenico princiacutepio a um uacutenico fim ou em razatildeo
de sendo regulados por leis determinadas estarem coligados
por um certo liame harmonioso da natureza e por um
ordenamento em graus mas porque tudo aquilo que estaacute na
totalidade dos mundos estaacute tambeacutem em cada um e natildeo haacute algo
em qualquer um desses que natildeo esteja em cada um dos
outros472
No uacuteltimo trecho o autor fundamenta-se na concepccedilatildeo miacutestica judaica que
atribui agrave Unidade criadora a qualidade de se manifestar fora de si mesma em trecircs
planos de existecircncia que se encontram perfeitamente integrados ldquoo que se encontra
no mundo inferior estaacute incluso nos superiores mas em forma mais elevada por
analogia o que se encontra nos superiores estaacute no mundo inferior mas em condiccedilatildeo
degenerada e com uma natureza adulteradardquo473 Em linguagem que o aproxima ao
Platonismo o filoacutesofo complementa sua argumentaccedilatildeo por meio de exemplos
extraiacutedos da esfera dos fenocircmenos
470 Heptaplus P2 p187 Pico jaacute havia abordado a questatildeo do ceacuteu feito de fogo e aacutegua em sua Conclusio
cabalistica secundum opinionem propriam 67 ldquoHic tenebrarum mundus ille autem lucis caelum ex luce et tenebris temperatur Hic per aquas notatur fluxa instabilique substantia ille per ignem lucis candore et loci sublimitate caelum natura media idcirco ab Hebraeis asciamaim quasi ex es et maim idest ex igne et aqua quam diximus compositum nuncupaturrdquo
471 Heptaplus P2 pp185-187 ldquomovetur tertius a secundo secundus a primo regiturrdquo A analogia com a posiccedilatildeo mediana da alma humana entre corpo e espiacuterito natildeo eacute mencionada mas estaacute subentendida Em qualquer criatura (ou ente ou niacutevel de existecircncia) a trindade se manifesta No homem o aspecto superior eacute o Espiacuterito o aspecto mediano eacute a Alma ou princiacutepio animador o aspecto inferior eacute o corpo No corpo fiacutesico o aspecto superior eacute representado pelo ceacuterebro e sistema nervoso consciente o mediano pelo sistema nervoso simpaacutetico e os vasos sanguiacuteneos o inferior pelos demais oacutergatildeos e suas funccedilotildees vitais Veja-se em LORENZ outros detalhes das relaccedilotildees fiacutesicashumanas com os trecircs mundos (Cabala - A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente 1997 pp 57-65)
472 Heptaplus P2 p189 ldquoHaec satis de tribus mundis in quibus illud in primis magnopere observandum unde et mostra fere tota pendet intentio esse hos tres mundos mundum unum non solum propterea quod ab uno principio et ad eumdem finem omnes referantur aut quoniam debitis numeris temperati et armonica quadam naturae cognatione atque ordinaria graduum serie colligentur sed quoniam quicquid in omnibus simul est mundis id et in singulis continetur neque est aliquis unus ex eis in quo non omnia sint quae sunt in singulis Quam Anaxagorae credo fuisse opinionem si recte eum sensisse putamus explicatam deinde a Pythagoricis et Platonicisrdquo Pico conclui essa passagem sugerindo que esse seria ldquoo pensamento de Anaxaacutegoras exposto pelos Pitagoacutericos e Platocircnicosrdquo Tal menccedilatildeo encontra-se em Simpliacutecio Phys 27 2 (cf ref na proacutepria ediccedilatildeo) A ideia de que ldquotudo estaacute em tudordquo encontra paralelos ademais em Proclo Elementos de Teologia proposiccedilotildees 170173 e 176
473 Heptaplus P2 p189 ldquoVerum quae in mundo sunt inferiori in superioribus sunt sed meliore nota quae itidem sunt in superioribus in postremis etiam visuntur sed degeneri conditione et adulterata ut sic dixerim naturardquo
145
O calor eacute em nosso mundo qualidade elementar nos ceacuteus
virtude caloriacutefica nas mentes angeacutelicas Ideia de calor Ou com
mais precisatildeo no mundo inferior o fogo eacute elemento o sol eacute o
fogo do ceacuteu na regiatildeo ultramundana o fogo seraacutefico eacute Intelecto
[] O fogo elementar queima o fogo celeste vivifica o fogo
supraceleste ama474
A escolha das palavras acima natildeo eacute feita ao acaso A anaacutelise do Gecircnesis feita
por Pico releva que a escolha das palavras ali empregadas para descrever a Criaccedilatildeo
natildeo eacute tampouco aleatoacuteria mas fruto da intenccedilatildeo em revelar verdades que natildeo
poderiam ser explicitadas de outra forma A eleiccedilatildeo do redator biacuteblico por palavras
simples ligadas aos elementos permitiria sua adequaccedilatildeo a outras interpretaccedilotildees em
virtude de seus significados metafoacutericos Assim conforme explica no Segundo
Proecircmio ldquoteria tratado Moiseacutes de cada um dos mundos de forma que nas mesmas
palavras e no mesmo contexto pudesse tratar de todosrdquo475 Eis a razatildeo da utilizaccedilatildeo de
certas palavras (no Gecircnesis) como ceacuteu terra aacutegua e luz A utilizaccedilatildeo de uma
linguagem filosoacutefica para tratar da Criaccedilatildeo com termos anaacutelogos a ldquocausa agenterdquo
ldquomateacuteriardquo ldquoqualidaderdquo e ldquoformardquo apenas serviriam para descrever o mundo
corruptiacutevel mas natildeo os demais Infere Pico que esse eacute um ldquosinal da admiraacutevel
habilidaderdquo de Moiseacutes na medida em que ele se serviu de determinados termos e os
dispocircs em uma ordem conveniente para representar todos os mundos ldquoassim no
Gecircnesis palavras contexto e ordem conveacutem plenamente a ilustrar os segredos de
todos os mundos e de toda a naturezardquo476
No percurso de suas expositiones o tema dos elementos eacute explorado por Pico
que descreve sua manifestaccedilatildeo em cada um dos mundos em oitavas diferenciadas Eacute
provaacutevel que uma de suas fontes principais para a reflexatildeo tenha sido Proclo e o Liber
de Causis que levara seu mestre Alemanno a escrever uma obra com o mesmo
conteuacutedo477 Abraatildeo Yaguel tempos depois retomaria o assunto reafirmando de
forma mais clara que os quatro elementos natildeo satildeo encontrados apenas no mundo
inferior mas existem igualmente nos corpos celestes e nas inteligecircncias separadas e
ainda ldquono que estaacute acima deles no arqueacutetipo do mundo a Causa de todas as Causas e
o Princiacutepio de todos os Princiacutepiosrdquo Contudo elucida o rabino no mundo sublunar
satildeo encontrados ldquocomo dejetos e mateacuteriardquo no ceacuteu satildeo potecircncias ou virtudes nos
mundos superiores satildeo formas arquetiacutepicas ldquomais perfeitas que no ceacuteurdquo478
474 Heptaplus P2 pp188-190 ldquo[] est apud nos calor qualitas elementaris est in caelestibus virtus
excalfactoria est in angelicis mentibus idea caloris Dicam aliquid expressius est apud nos ignis quod est elementum Sol ignis in caelo est est in regione ultramundana ignis saraphicus intellectus Sed vide quid differant Elementaris urit caelestis vivificat supercaelestis amatrdquo
475 Heptaplus P2 p195 476 Heptaplus Livro II ldquoSobre o Mundo Celesterdquo 477 A traduccedilatildeo aacuterabe de alguns trechos do Elementos de Teologia de Proclo conhecida como Liber de Causis
foi atribuiacuteda por muito tempo de forma errocircnea a Aristoacuteteles Sobre a relaccedilatildeo da obra de Alemanno Minkhat Yehudaacute e de outros textos anteriores que tratam do tema com o Liber de Causis veja-se IDEL 2008b p 509
478 Abraatildeo YAGUEL Beit Yaar haLevanon in Manuscrito de Oxford 1304 f 6r-6v (apud IDEL 2008b pp 512-513) Infere Idel que o texto de Yaguel em sua abordagem dos distintos estados dos quatro elementos primaacuterios apresenta noccedilotildees neoplatocircnicas que condizem com sua visatildeo sobre a essecircncia dos mundos noccedilotildees fortemente utilizadas por Alemanno
146
Para um melhor entendimento da mensagem do Heptaplus faz-se necessaacuterio
adentrar nas conceituaccedilotildees dos mundos manifestos segundo a miacutestica hebraica Em
uma passagem do Gecircnesis (Secircfer Bereshit) tem-se a revelaccedilatildeo da existecircncia de trecircs
mundos sob o prisma cabaliacutestico ldquoEntatildeo formou Deus o homem do poacute da terra e
soprou-lhe (ruach) nas narinas o focirclego de vida (neshamaacute) e o homem tornou-se
uma alma vivente (nefesh)rdquo479 O enunciado encerra trecircs princiacutepios que podem ser
relacionados tanto a partes concernentes agrave triacuteplice integridade do homem quanto agrave
existecircncia de trecircs mundos em sentido cosmoloacutegico Os trecircs princiacutepios satildeo Neshamaacute
o princiacutepio superior atinente ao Espiacuterito e agrave esfera das Inteligecircncias mais elevadas
Ruach o princiacutepio mediano relativo agrave Alma e agrave hierarquia dos seres astrais e
Nefesh o princiacutepio inferior relativo ao corpo vital e ao plano fiacutesico480 Entretanto no
seacuteculo XII o Zohar mencionaria quatro mundos acrescentando aos trecircs do Gecircnesis o
elemento relacionado diretamente agrave divindade Assim estabelecem-se sob registro
cabaliacutestico quatro concepccedilotildees a saber (a) o mundo da Emanaccedilatildeo do princiacutepio divino
(Olam HaAtzilut) (b) o mundo da Criaccedilatildeo (Olam HaBriaacute) no qual o homem
contemplativo colhe revelaccedilotildees atraveacutes do princiacutepio neshamaacute (c) o mundo da
Formaccedilatildeo (Olam HaYetsiraacute) relacionado a ruach e (d) o mundo da Produccedilatildeo (Olam
HaAssiaacute) correspondente a nefesh481
A quaacutedrupla concepccedilatildeo de existecircncia eacute extraiacuteda outrossim a partir de outra
passagem em Isaiacuteas ldquoa todos os que satildeo chamados pelo meu nome e os que criei
para a minha gloacuteria eu os formei e tambeacutem eu os fizrdquo482 Os cabalistas colhem nesse
versiacuteculo indicaccedilotildees das quatro dimensotildees ou reinos ndash partindo do divino emanente
e prosseguindo com os outros trecircs em ordem hieraacuterquica decrescente com suas
denominaccedilotildees inspiradas naquela sentenccedila os respectivos mundos da Criaccedilatildeo da
Formaccedilatildeo e da Realizaccedilatildeo conforme paraacutegrafo anterior Esses nomes indicam a
transformaccedilatildeo do tipo de influxo com as quais as Sefirot governam o mundo A
tradiccedilatildeo miacutestica associa a esses mundos as trecircs reparticcedilotildees da antiga cosmogonia
rabiacutenica Assim na Criaccedilatildeo Briaacute coloca-se o Trono da Gloacuteria ou a Ideia original da
Criaccedilatildeo onde se encontram as formas arquetiacutepicas e a dimensatildeo angeacutelica mais
elevada483 Na Formaccedilatildeo Yetsiraacute tambeacutem habitada por hostes angelicais a Ideia
adquire forma a mateacuteria astral se compotildee e a separaccedilatildeo se distingue em elementos
479 Gecircnesis 27 Encontram-se traduccedilotildees similares para dois dos termos hebraicos presentes na passagem
mencionada A palavra ruach significa espiacuterito e sopro de Deus neshamaacute eacute traduzido por ldquofocirclego de vidardquo e tambeacutem ldquosopro de Deusrdquo O paralelismo entre o ldquoespiacuterito de Deusrdquo e ldquoo sopro do Todo-poderosordquo eacute frequente na Biacuteblia
480 LORENZ Cabala - A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente 1997 p60 481 LORENZ opcit p60 SENDER opcit pp 71-72 482 Isaiacuteas 437 483 LORENZ (opcit p61 ss) coloca na dimensatildeo da Criaccedilatildeo o movimento pelo qual o Espiacuterito saindo de seu
isolamento se manifesta como Espiacuterito em geral preceito da origem da multiplicidade A utilizaccedilatildeo do termo ldquoIdeiardquo que remete ao Platonismo eacute de Lorenz provavelmente fundamentado em escritos do rabino Abraatildeo Yaguel que no seacuteculo XVI se dirigia agraves emanaccedilotildees com o termo ldquoIdeiirdquo ldquoa forccedila que se encontra nos entes inferiores pode [igualmente] ser encontrada em maior pureza e limpidez nas Sefirot sagradas e puras que satildeo na verdade as Ideii (sic) para todas as coisasrdquo [] ldquoas Ideii satildeo uma forma simples superior aos corpos agraves almas e agraves inteligecircncias [] na terminologia dos platocircnicos aquela primeira configuraccedilatildeo eacute denominada Ideiirdquo Cf Manuscrito de Oxford 1304 f10v apud IDEL 2008-b pp 513-514
147
relativamente individuais484 Finalmente na Realizaccedilatildeo Assiaacute estabelecem-se os
mundos fiacutesico e sensiacutevel atraveacutes dos reinos mineral vegetal e animal485
Para ilustrar a concepccedilatildeo dos Trecircs Mundos no Heptaplus ndash e em
concomitacircncia confirmar a existecircncia de uma dimensatildeo esoteacuterica dentro da Biacuteblia ndash
Pico expotildee no Segundo Proecircmio uma amostra de como sob as palavras mosaicas
escritas em forma simples encontram-se revelaccedilotildees acerca da triacuteplice realidade
Referindo-se a alguns versiacuteculos biacuteblicos que tratam do ldquotabernaacuteculordquo construiacutedo por
Moiseacutes eacute efetuada uma analogia com os mundos subdivinos ali representados ldquoem
modo muito evidenterdquo como diria o autor486 Segundo a narrativa biacuteblica e como
visto no Capiacutetulo IV Moiseacutes dividira o tabernaacuteculo em trecircs partes cada uma delas
concernentes a um dos mundos A primeira parte sem teto ou proteccedilatildeo alguma
encontrava-se exposta aos vaacuterios fenocircmenos da natureza sendo frequentada por
homens tanto puros quanto impuros aleacutem de animais de toda espeacutecie assim como
no mundo sublunar as contiacutenuas vicissitudes de vida e morte se intercalavam As
outras duas partes do tabernaacuteculo estavam protegidas e imunes agraves questotildees
exteriores assim como ocorre com o mundo celeste e supraceleste As duas partes
eram chamadas ldquosantasrdquo poreacutem a mais protegida era chamada ldquoSanto dos Santosrdquo
Pico esclarece que embora os dois mundos celeste e angeacutelico sejam santos (ldquopois
apoacutes a queda de Luacutecifer natildeo restou pecado acima da luardquo) o mundo angeacutelico eacute
considerado de maior santidade e divindade487 Enquanto na Oratio o tema fora
tratado sob uma perspectiva relacionada ao homem dentro de um cenaacuterio que
contempla processos iniciaacuteticos individuais o enfoque dado no Heptaplus encontra-
se inteiramente voltado agrave confirmaccedilatildeo religiosa dos trecircs mundos em um acircmbito que
chamariacuteamos cosmoloacutegico488
484 Eacute nesse plano que ocorre a separaccedilatildeo dos aspectos masculino e feminino que no mundo antecedente
constituiacuteam uma unidade Isso explica o duplo relato biacuteblico da criaccedilatildeo do homem o primeiro em Gecircnesis 1-27 e o segundo em Gecircnesis 2-7 No primeiro relato ldquoe criou Deus o homem agrave sua imagem criou-o agrave imagem de Deus e criou-os masculino e femininordquo o verbo utilizado eacute ldquocriarrdquo referindo-se agrave Briaacute o mundo da Criaccedilatildeo No segundo relato onde se lecirc ldquoo Senhor Deus formou pois o homem do barro da terra e inspirou no seu rosto um sopro de vidardquo o verbo utilizado eacute ldquoformarrdquo o que o situa em Yetsiraacute o mundo da Formaccedilatildeo no qual o ser adquire forma e deixa de ser androacutegino (cf SENDER opcit pp 36-37)
485 As denominaccedilotildees e atribuiccedilotildees de cada Mundo sofrem pequenas variaccedilotildees semacircnticas dependendo do comentarista Uma das principais divergecircncias que podem ser encontradas refere-se agrave colocaccedilatildeo do sistema planetaacuterio que para alguns faz parte do Mundo da Formaccedilatildeo e para outros do mundo da Realizaccedilatildeo em razatildeo de sua materialidade ndash o que natildeo deixa de fazer sentido Veja-se IDEL 2008b pp 512-513 SCHOLEM 1978 p90 SENDER opcit pp 34-39 BUSI opcit p 19
486 Heptaplus P2 ldquoHoc non praetermiserim figuratos hos mundos trecircs a Mose evidentissime in admirabilis illius tabernaculi sui constructionerdquo Algumas passagens da Biacuteblia tratam do tema da construccedilatildeo do Tabernaacuteculo Em Ecircxodo 25 8-9 o Senhor daacute ordens a Moiseacutes para construir o Templo ou Tabernaacuteculo O Tabernaacuteculo (em hebraico mishkan ldquomoradiardquo ldquotenda da congregaccedilatildeordquo ou ldquosantuaacuterio conforme Ecircxodo 25 8) era a tenda usada pelos israelitas como lugar de adoraccedilatildeo enquanto viajavam pelo deserto Em Ecircxodo (29 42-46) o Senhor disse a Moiseacutes que seria no Tabernaacuteculo que Ele desceria para falar com ele e com Seu povo A tenda onde Moiseacutes se encontrava inicialmente com o Senhor foi armada fora do arraial (Ecircxodo 33 7) pois o povo tinha pecado e o Senhor lhe disse que natildeo mais seguiria no meio deles O Tabernaacuteculo era tambeacutem chamado de ldquotenda do Testemunhordquo porque nele estava guardado o Testemunho ou as taacutebuas da Lei (Ecircxodo 38 21 Nuacutemeros 1 50) Mais tarde o Tabernaacuteculo passou a ser conhecido como ldquoa Casa do Senhorrdquo (Deuteronocircmio 23 18) No lugar mais interior ficava o recinto conhecido como o ldquoSanto dos Santosrdquo pois aiacute era o local em que era colocada a arca e onde apenas o sumo sacerdote poderia entrar
487 Heptaplus P2 ldquoAmbae item sanctitatis nomine honestatae ita tamen ut quae erat secretior sancti sanctorum reliqua sancti tantum titulo decoraretur sicuti quamvis et caelestis et angelicus mundus uterque sanctus quoniam supra lunam post Luciferi casum nec macula nec peccatum aut est aut esse potest angelicus tamen caelesti longe sanctior et divinior habeturrdquo
488 A abordagem do tabernaacuteculo feita por Pico estaacute muito proacutexima daquela de alguns cabalistas que o italiano conheceu direta ou indiretamente como observou Chaim WIRSZUBSKI (Pic de la Mirandole et la Cabale 2007
148
Outra interpretaccedilatildeo do tema havia sido realizada pelo mestre de Pico Yohanan
Alemanno Ele encontrara paralelos entre a mesma narrativa biacuteblica e a questatildeo das
emanaccedilotildees sefiroacuteticas Em seu Collectanaea o tabernaacuteculo eacute descrito como
necessaacuterio para proteger os vasos que receberiam as emanaccedilotildees pois ldquoo povo havia
sido educado para crer na possibilidade de causar o descenso das forccedilas espirituais e
das emanaccedilotildees provenientes das alturas por meio de preparativos feitos pelo homem
para tal propoacutesito exatamente como quando Moiseacutes preparou o bezerro de ourordquo489
Embora Pico natildeo fale diretamente desse tipo de ritual a influecircncia de Alemanno
sobre ele eacute sabida O tabernaacuteculo eacute descrito portanto como um talismatilde complexo
que guarda e causa o descenso das forccedilas espirituais sendo uma das formas maacutegicas
descritas no Capiacutetulo anterior Ao descrever tal evento o mestre rabino se remete a
Moiseacutes como a um operador da Cabala Teuacutergica relacionando as emanaccedilotildees
sefiroacuteticas a ldquocanaisrdquo de transmissatildeo ldquoOs cabalistas acreditam que Moiseacutes tinha
conhecimento do mundo espiritual e das Sefirot [] e sabia como direcionar seus
pensamentos e aperfeiccediloar o efluxo divino que os cabalistas chamam de canaisrdquo490
Alemanno afirma ainda que o Profeta teria dito ldquolsquoascenderei ao Senhor para receber
instruccedilatildeo detalhada acerca dos preceitos pertinentes a duas instituiccedilotildeesrsquo ndash uma delas
salvaguarda o poder receptivo e diz respeito ao Tabernaacuteculo e aos seus vasosrdquo491 As
especulaccedilotildees de Alemanno conjugam o nuacutecleo conceitual cabaliacutestico ndash as emanaccedilotildees
sefiroacuteticas ndash com a geografia dos trecircs mundos depreendendo da figura de Moiseacutes o
arqueacutetipo do mago possuidor do domiacutenio das Sefirot ldquoa accedilatildeo de Moiseacutes fazia com
que os canais dirigissem a emanaccedilatildeo sobre o mundo inferior de acordo com a sua
vontaderdquo492 A ampla defesa de Moiseacutes realizada no Heptaplus por sua vez eacute
emblemaacutetica de uma percepccedilatildeo que somente se torna possiacutevel agrave luz da Cabala
Extaacutetica Pico leitor do cabalista Natan Saadia certamente via naquele personagem o
protoacutetipo do ser que realizou a uacuteltima etapa do processo extaacutetico algueacutem que ldquofoi
transformado em um ser universal depois de ser um ponto central particularrdquo
estabelecendo-se assim como o objetivo do homem inferior ldquoque ascende pela
virtude do poder do Nomerdquo493
As duas interpretaccedilotildees da passagem biacuteblica do tabernaacuteculo podem ser
inseridas em algum ou alguns dos niacuteveis hermenecircuticos atribuiacutedos pelos cabalistas agraves
Escrituras A necessidade de se manter oculta a Revelaccedilatildeo deu vazatildeo agrave ocorrecircncia de
graus de significaccedilatildeo dentro do texto biacuteblico que podem ser entendidos como veacuteus a
serem retirados de acordo com o desenvolvimento da percepccedilatildeo do leitor Haacute um
sentido literal chamado Peschat que se refere agrave compreensatildeo superficial e externa
do relato biacuteblico em que a atenccedilatildeo recai sobre o enredo e os personagens No niacutevel
p 401) Ainda sobre o tema da representaccedilatildeo do tabernaacuteculo em Pico veja-se Newton BIGNOTTO Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola 2010 pp146-47
489 ALEMANNO Manuscrito de Oxford 2234 f 22v Sobre a concepccedilatildeo do bezerro de ouro utilizado para causar o descenso das forccedilas veja-se IDEL (2008-b np 481)
490 ALEMANNO ibid f 8v IDEL atenta para a utilizaccedilatildeo do termo ldquocanaisrdquo Moiseacutes natildeo restaura a divindade mas sim os canais que transmitem as emanaccedilotildees divinas (2008-b np 480)
491 ALEMANNO ibid f 201b 492 ALEMANNO ibid f 8v apud BUSI Qabbalah 2011 p29 493 A passagem estaacute no livro Schaarei Tzedek do disciacutepulo direto do cabalista italiano Abulafia Natan Saadia e
fundamenta-se em Ezequiel I 26 (cf IDEL 2008-a p28)
149
chamado Remez embora preservada a interpretaccedilatildeo literal eacute maior a capacidade
abstrativa o enredo deixa de ser o objetivo principal da leitura e extrai-se um sentido
alegoacuterico A interpretaccedilatildeo talmuacutedica e midraacuteshica se refere a Derashaacute niacutevel que
indica um procedimento eacutetico ou religioso do qual deve ser extraiacutedo um
ldquoensinamentordquo Atraveacutes do relato biacuteblico o homem deduz o que eacute desejaacutevel ou
indesejaacutevel para o Divino o que eacute correto ou incorreto nas relaccedilotildees humanas
Finalmente no niacutevel chamado Sod que significa ldquosegredordquo eacute revelado o sentido
miacutestico que traz a revelaccedilatildeo dos mundos emanados e de seus habitantes O acesso do
miacutestico ao uacuteltimo niacutevel a partir da compreensatildeo de cada uma de suas dimensotildees
anteriores nunca eacute faacutecil ou raacutepido por tratar-se de um caminho cuja chave eacute
cifrada494
Retomando a concepccedilatildeo cabaliacutestica dos Quatro Mundos outra classificaccedilatildeo
bastante usual estabelece o mundo da Emanaccedilatildeo Atzilut em uma unidade distinta
dos demais enquanto os outros trecircs formam ndash como mundos em separaccedilatildeo ndash um
sistema triacuteplice tal conjunto conceitual alude ao aspecto duplo da Divindade ao
mesmo tempo imanente e transcendente495 A trindade derivando-se da unidade e
tendendo a reintegrar-se nela forma um ciclo quaternaacuterio que em tudo se manifesta
Ou em outras palavras os trecircs mundos manifestos somados agrave dimensatildeo primordial
do Absoluto integram os quatro mundos previstos no Zohar A divisatildeo apresentada
no Heptaplus encontra-se em analogia com a concepccedilatildeo inaugural de trecircs mundos
previstos na literatura cabaliacutestica contudo se for levada em conta a divisatildeo
quaternaacuteria do Zohar perceber-se-aacute que o meacutetodo piquiano natildeo espelha tal forma de
particcedilatildeo ndash natildeo por divergecircncia doutrinaacuteria mas em razatildeo de uma omissatildeo e de um
acreacutescimo Conforme as palavras do autor seu meacutetodo parte de ldquouma quaacutedrupla
exposiccedilatildeo de todo o texto mosaicordquo de maneira que em primeiro lugar eacute
interpretado ldquoo que escrito sobre o mundo angeacutelico e invisiacutevel em segundo lugar
como no primeiro cas0 sobre o mundo celeste depois sobre o sublunar e
corruptiacutevel em quarto sobre a natureza do homemrdquo496 Observe-se que o quarto
mundo de Pico sua principal originalidade em relaccedilatildeo a outras interpretaccedilotildees do
Gecircnesis refere-se ao homem ndash esse eacute seu acreacutescimo Embora a literatura cabaliacutestica
apresente vaacuterias analogias dos trecircs mundos com o aspecto triacuteplice do homem essas
satildeo um tanto distintas do tipo de interpretaccedilatildeo feita por Pico497 Por sua vez a divisatildeo
494 SCHOLEM A Cabala e seu Simbolismo 1978 p72 BUSI La Qabbalah 2011 pp10-11 SENDER pp15-16
A ideia da quaacutedrupla interpretaccedilatildeo do texto biacuteblico remete pelo menos ao seacuteculo XIII quando Moshe de Leacuteon o empregou em alguns matizes de seu significado De Leacuteon em um de seus textos mais tardios compara a Toraacute a uma noz composta de casca e cerne cujo acesso aos niacuteveis interiores se daacute atraveacutes do conhecimento das diferentes formas interpretativas Vejam-se maiores detalhes em SCHOLEM que discute amplamente a questatildeo do chamado Pardes com os vaacuterios significados histoacutericos do termo na seccedilatildeo II de seu livro Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition (New York 1960)
495 SENDER opcit p37 Essa eacute uma visatildeo que se aproxima das concepccedilotildees neoplatocircnicas 496 Heptaplus P2 p194 ldquoUnde quadruplex statim totius mosaicae lectionis expositio nascitur ut primo loco
quicquid ibi est scriptum de angelico mundo et invisibili nullam omnino de aliis mentionem habentes enarremus Secundo loco itidem omnia de caelesti mundo tum de sublunari hoc et corruptibili quarto de natura hominisrdquo
497 O Judaiacutesmo admite trecircs princiacutepios para a alma humana Nefesh forccedila de vida inata presente em homens e animais permite a atividade coordenada do corpo fisico ao qual estaacute intimamente ligada o corpo sem nefesh significa a morte corresponde no homem ao mundo manifesto de Assiaacute Ruach niacutevel de alma acima de nefesh relaciona-se tambeacutem agraves emoccedilotildees tendo certa independecircncia do corpo fiacutesico ruach pode abandonaacute-lo nos estados oniacutericos ou contemplativos trazendo impressotildees de Yetsiraacute ao qual corresponde Neshamaacute niacutevel mais
150
dos quatro mundos na Cabala inicia-se com o Atzilut mundo da Emanaccedilatildeo omitido
por Pico no Heptaplus A omissatildeo natildeo se refere a qualquer tipo de contraste
doutrinaacuterio mas apenas agrave utilizaccedilatildeo de um estilo hermenecircutico que se desenrola a
partir dos mundos manifestos de forma a concordaacute-lo com o modelo do Gecircnesis
Vejamos de forma mais aproximada
O muacuteltiplo dispotildee-se em trecircs reinos elementar celeste e
angeacutelico que se desvelam como realidade mundana
inteligecircncias que governam e animam esferas e mundos498
Na passagem acima extraiacuteda dos Comentaacuterios aos Salmos verifica-se que
Pico aborda os trecircs mundos manifestos inserindo-os na dimensatildeo do muacuteltiplo Tal
informaccedilatildeo por simetria loacutegica remete agrave existecircncia de uma dimensatildeo de unidade A
Unidade ou Absoluto existente acima do reino angeacutelico perpassa toda a obra
piquiana e para Ela toda sua filosofia converge Admitindo-se essa afirmaccedilatildeo natildeo
haveria portanto a necessidade de Pico atribuir uma particular ldquoexpositiordquo agravequela
dimensatildeo de existecircncia Considerando-se que o reino angeacutelico eacute parte do muacuteltiplo lecirc-
se no Livro III que trata do ldquoMundo Angeacutelico e Invisiacutevelrdquo
Tudo aquilo que no anjo eacute imperfeito seraacute atribuiacutedo agrave sua
natureza muacuteltipla A imperfeiccedilatildeo [que existe no anjo] existe na
qualidade de multiplicidade enquanto a capacidade de elevaccedilatildeo
cumprida eacute devida agrave unidade que se lhe acosta do Alto Deus eacute a
Unidade de onde o anjo deriva seu ser sua vida e toda
perfeiccedilatildeo499
Assim a presenccedila da Unidade emanatoacuteria acima dos trecircs mundos embora natildeo
expressa diretamente eacute extraiacuteda das passagens que apontam para os aspectos de
gradaccedilatildeo no interior da dimensatildeo da multiplicidade A verificaccedilatildeo do terceiro Livro
do Heptaplus certifica que Pico natildeo suprimiu o mundo emanatoacuterio de Atzilut em sua
interpretaccedilatildeo dos momentos sucessivos da expansatildeo divina A sequecircncia entrevecirc a
analogia existente entre os nuacutemeros depreendidos de leituras cabaliacutesticas e
pitagoacutericas500 e o reino angeacutelico conforme estabelecido por Pseudo Dioniso ndash ambos
os grupos colocados como elementos intermediaacuterios entre o Uno e os mundos
inferiores
sutil e superior da alma eacute o princiacutepio que a liga ao plano da divindade e responsaacutevel pelo grau mais elevado de discernimento no homem tanto intelectual quanto espiritual circulando em Briaacute o mundo da Criaccedilatildeo (cf SENDER 1992 p69 ss) Para Pico no homem ocorre o misto dos elementos ldquoonde reside o espiacuterito celeste a alma vegetal os sentidos dos brutos a razatildeo a mente angeacutelica e a imagem de Deusrdquo (Heptaplus P2 p193) A exposiccedilatildeo sobre a natureza ou ldquoreinordquo do homem eacute feita no Livro IV do Heptaplus
498 PICO Expositiones in Psalmos (trad Antonino Raspanti-Giacomo Raspanti Firenze 1997) Sobre os trecircs mundos elementaris coelestis et intellectuali veja-se Livro XLVII pp14-16
499 Heptaplus Livro III ldquoDe Mundo Angelico et Invisibilirdquo 1 p250 ldquoQuare quicquid in angelo imperfectum est angelicae multitudini quam inde habet unde est numerus idest creatura [] Utrumque igitur horum evenit angelo qua multitudo est Reliquum ut absolutio illi et consummatio ab accedente desuper fiat unitate Deus autem unitas unde ad angelum et esse et vita et omnis perfectio derivaturrdquo
500 Cf Heptaplus III 1 p249 ldquoRefiramos isso agraves coisas divinas segundo o costume pitagoacutericordquo
151
Tudo aquilo que depois da unidade eacute nuacutemero eacute perfeito e
completo por via da unidade A unidade de tudo simples por si
perfeita natildeo sai de si na sua indivisibilidade simples e solitaacuteria
adere a si mesma pois que basta a si [] O nuacutemero sendo por
sua proacutepria natureza muacuteltiplo eacute simples porquanto eacute capaz em
graccedila da unidade E embora cada nuacutemero que se afaste da
unidade caia em uma multiplicidade sempre mais extensa e em
uma sempre maior variedade e composiccedilatildeo de partes natildeo haacute
nada todavia tatildeo proacuteximo agrave unidade quanto tal multiplicidade
provida de unidade apenas acidentalmente natildeo por sua
natureza mas por composiccedilatildeo501
O desenvolvimento do tema conteacutem o modelo de emanaccedilatildeo proveniente de
Atzilut O anjo natildeo eacute unidade por si soacute do contraacuterio seria o Uno Resta que o anjo seja
nuacutemero (ldquoreliquum ut angelus numerus sitrdquo) E sendo nuacutemero ldquopor um aspecto eacute
muacuteltiplo e por outro eacute multiplicidade unificadardquo A descriccedilatildeo prossegue elucidando
que no anjo encontra-se uma dupla imperfeiccedilatildeo uma consiste no fato de natildeo ser o
proacuteprio Ser mas apenas uma essecircncia que pertence ao Ser por participaccedilatildeo a outra
se encontra no fato de natildeo ser a proacutepria Inteligecircncia mas sim participar agrave
Inteligecircncia porquanto sua natureza eacute intelecto capaz de entender Ambas as
imperfeiccedilotildees satildeo no anjo segundo sua multiplicidade enquanto a capacidade de
elevaccedilatildeo eacute devida agrave unidade que se lhe aproxima do alto Pico parece no entanto
atribuir ao nuacutemero uma possibilidade de perfeiccedilatildeo natildeo atribuiacuteda ao anjo ldquocada
nuacutemero eacute imperfeito enquanto multiplicidade embora perfeito enquanto
unidaderdquo502 A dimensatildeo angeacutelica mostra-se um dos momentos de difusatildeo do divino
um dos instrumentos atraveacutes dos quais a unidade se revela Sob tal perspectiva os
anjos as Sefirot as numeraccedilotildees se encontram em perene circularidade interligando
o Uno e o muacuteltiplo Em sua exposiccedilatildeo sobre os Anjos Pico cita fontes concordantes
como Averroacuteis (ldquoentre intelecto e inteligiacutevel cria-se uma unidade maior que entre
mateacuteria e formardquo) e Maimocircnides (ldquoa verdade se colhe de forma mais perfeita nos
anjos que no homemrdquo) para concluir que as espeacutecies inteligiacuteveis satildeo unidas na mente
angeacutelica por meio de uma ligaccedilatildeo eterna natildeo temporacircnea como ocorre no intelecto
humano503
A descriccedilatildeo acima natildeo apenas confirma a natildeo-supressatildeo do mundo da
emanaccedilatildeo primordial na obra piquiana como daacute-nos um modelo do meacutetodo
hermenecircutico utilizado para cada um dos mundos interpretados no Heptaplus Assim
como no Livro III eacute descrita a natureza angeacutelica e sua relaccedilatildeo com os outros planos ndash
501 Heptaplus III 1 p248 ldquoQuicquid est post unitatem numerus unitate perfectus et consummatus est Sola
unitas omnino simplex a se perfecta non egreditur se sed individua simplicitate et solitaria sibi cohaeret quia superest sibi nullius indiga plena suis divitiis Numerus sua natura cum sit multitudo unitatis beneficio sit simplex quantum ipse simplicitatis capax quamquam autem numerus quisque quo magis ab unitate sit procul in maiorem semper incidat multitudinem plusque in eo dissimilitudinis plus partium plus compositurae sit nullus est tamen ita unitati proximus qui multitudo non sit adventitiam habens unitatem unaque non natura sed compositionerdquo
502 Heptaplus III 1 p251 ldquoEst autem omnis numerus eatenus imperfectus quatenus multitudo perfectus autem quatenus unusrdquo
503 Heptaplus III 2 p255 A passagem de Averroacuteis estaacute em De an Beat IX 152 ab
152
em acircmbito de uma geografia universal ndash os demais Livros da obra descrevem a
natureza de cada particular mundo tratado em perfeita harmonia com os mundos
previstos na Cabala
3 A Occlusa Sapientia
Verificou-se no Capiacutetulo anterior a existecircncia de uma relaccedilatildeo entre as letras
hebraicas e significados ocultos vislumbrada por Pico ainda em rsquo86 As
caracteriacutesticas inerentes ao idioma hebraico satildeo afirmadas no fechamento de suas
Conclusiones Philosophicae ldquose existe uma liacutengua originaacuteria e natildeo casual resulta
evidente sobre a base das muacuteltiplas conjecturas que essa eacute a liacutengua hebraicardquo504
Segundo essa proposiccedilatildeo o hebraico apresentaria uma relaccedilatildeo privilegiada com a
verdade instituindo com as coisas uma relaccedilatildeo imediata e necessaacuteria e natildeo mediata
como ocorre com as outras liacutenguas505 Pico percebera que as combinaccedilotildees numeacutericas
e as expressotildees linguiacutesticas apresentam iacutentimas articulaccedilotildees loacutegicas atestando natildeo
apenas a existecircncia de uma racionalidade escondida sob as formas como um processo
de manifestaccedilatildeo divina ldquoos nuacutemeros nos abrem uma estrada para a investigaccedilatildeo e
compreensatildeo de cada coisardquo506 As letras do alfabeto hebraico seriam nesse sentido
apenas ldquoveacuteusrdquo que selam o pensamento divino pedindo que seja efetuada uma
elevaccedilatildeo da letra ao espiacuterito Essa a razatildeo como ainda relembra Pico de Oriacutegenes
evitar traduzir certos vocaacutebulos hebraicos porquanto cada traduccedilatildeo representa uma
despotencializaccedilatildeo da palavra sagrada507
Na inteira Lei natildeo existem letras que em suas formas
conjunccedilotildees separaccedilotildees flexotildees direccedilotildees defeitos e excessos
grandezas maiores ou menores e em seu coroamento
fechamento abertura e ordem natildeo remetam aos segredos das
Dez Numeraccedilotildees [as Sefirot]508
A valorizaccedilatildeo da letra hebraica como fonte criadora focircra registrada pela
primeira vez no Secircfer Yetsiraacute como foi visto Cada uma das 22 letras representa um
princiacutepio gerador de energia que encerra uma chave cognitiva encontrando cor-
respondecircncia com os elementos formados por seu intermeacutedio de forma que toda a
criaccedilatildeo encontra-se relacionada a um fenocircmeno de linguagem Assim como cada
504 Concl (II) II 80 (p77) ldquoSi qua est lingua prima et non casualis illam esse hebraicam multis patet
coniecturisrdquo 505 A deduccedilatildeo eacute de Albano BIONDI tradutor das Conclusiones em seus comentaacuterios introdutoacuterios
(Conclusiones Nongentae ndash Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pXXIX) 506 PICO Conclusiones de mathematicis (II) VII 11 ldquoPer numeros habetur via ad omnis scibilis
investigationem et intellectionemrdquo 507 Para um aprofundamento da temaacutetica das letras hebraicas e sua recepccedilatildeo por Pico leia-se Eugenio GARIN
(2011 pp 145-49) 508 PICO Concl (I) IX 33 (p60) ldquoNullae sunt litterae in tota lege quae in formis coniunctionibus
separationibus tortuositate directione defectu superabundantis minoritate maioritate coronatione clausura apertura et ordine decem numerationum secreta non manifestentrdquo
153
sefiraacute cada letra encerra um poder criador proacuteprio recebido a partir da divindade e
emanado em direccedilatildeo agrave mateacuteria e em sentido contraacuterio permitindo o acesso e a
compreensatildeo do operador apoacutes o justo processo aos elementos inteligiacuteveis que
participam da divindade atraveacutes de sua chave cognitiva Esse eacute o significado
expresso no Secircfer Yetsiraacute de ldquocom as letras descreva a alma de tudo o que foi
formado e tudo o que seraacute formado no futurordquo509
A narrativa do Gecircnesis ndash em que Deus com uma seacuterie de ordenamentos daacute
vida agrave criaccedilatildeo ndash eacute considerada para os cabalistas testemunho fiel de como a
realidade foi desencadeada pela liacutengua divina Com a mesma ordem de letras que se
sucedem no texto biacuteblico realiza-se o desenho constitutivo da realidade que exprime
o plano divino no domiacutenio fiacutesico da criaccedilatildeo510 Conforme ainda o Secircfer Yetsiraacute
ldquotudo o que eacute formado emana de um nomerdquo511
De fato fundamentada sobre a relaccedilatildeo existente entre as letras hebraicas e a
criaccedilatildeo desenvolveu-se ao longo dos seacuteculos uma longa tradiccedilatildeo exegeacutetica voltada a
aprimorar uma habilidade que permitisse aos iniciados penetrar aleacutem da superfiacutecie
das palavras e descobrir dentro das Escrituras os segredos de toda a criaccedilatildeo512 Para
alcanccedilar os significados ocultos os cabalistas empregam algumas teacutecnicas
relacionadas a operaccedilotildees com as letras513 Os meacutetodos mais utilizados para descobrir
significaccedilotildees hermenecircuticas fundamentam-se no modelo de Abulafia que
compreendia trecircs teacutecnicas baacutesicas o notarico a gematria e a temuraacute A primeira
cujo nome proveacutem da palavra latina ldquonotariusrdquo baseia-se na teacutecnica que analisa
como formar novas palavras partindo das letras iniciais meacutedias ou finais de outras
palavras Na segunda cada letra hebraica eacute substituiacuteda por seu correspondente valor
numeacuterico interpretando-se as palavras atraveacutes dos nuacutemeros resultantes das somas
de cada letra Conhecendo-se o valor numeacuterico de uma palavra ou frase poderatildeo ser
criadas conexotildees com palavras ou frases que tenham o mesmo valor estabelecendo
com elas algumas analogias A temuraacute por sua vez eacute a arte do anagrama ou seja de
permutar a posiccedilatildeo das letras em uma mesma palavra Isso significa que uma palavra
pode ser decomposta e recomposta para formar novas palavras que revelem o
significado completo da primeira514
509 Secircfer Yetsiraacute II 1 (trad KAPLAN 2005 p283) 510 BUSI 2011 p 23-24 511 Secircfer Yetsiraacute II 512 BUSI ibid p 23-24 GARIN 2011 p146 513 Como explica BUSI (ibid p 23) a mesma palavra hebraica seraf indica tanto a transmutaccedilatildeo alquiacutemica dos
metais quanto a permutaccedilatildeo das letras do alfabeto ldquoAssim como o alquimista escolhe os liames da mateacuteria para procurar nos metais menos nobres o segredo do ouro assim o exegeta hebreu transforma a ordem das letras para descobrir por traacutes do sentido aparente o verdadeiro significado do textordquo
514 Cf Guido MASSETANI La Filosofia cabbalistica di Giovanni Pico Della Mirandola 1897 pp 64-65 Um modelo de teacutecnica cabaliacutestica pode ser encontrado no Salmo 34 no qual cada verso inicia com uma das letras do alfabeto hebraico em sucessatildeo A sua funccedilatildeo cabaliacutestica estaacute esclarecida na obra Corona del buon nome de Avraham de Colonia que afirma seu valor cognitivo em relaccedilatildeo ao nome impronunciaacutevel de Deus o Tetragramma e agraves 10 Sefirot Esse aspecto impressiona Pico que utiliza o texto traduzido por Flavio Mitridate (FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633) Outros exemplos de uso da gematria satildeo apresentados por Tova SENDER em seu capiacutetulo ldquoGuematriardquo (1992 p21)
154
Pico debruccedilou-se sobre algumas dentre aquelas teacutecnicas ndash como se lecirc na
Apologia e em algumas de suas Teses ndash515 e tentou permutar nomes inicialmente
atraveacutes do procedimento da ars combinatoria praticado por Ramon Llull no seacuteculo
XII que apresentava certa diferenccedila com os outros meacutetodos aprendidos Estava certo
que aquele que possuiacutesse o conhecimento da ordenaccedilatildeo da liacutengua hebraica
aprendendo a mantecirc-la ldquoem maneira analoacutegicardquo nos vaacuterios campos do saber
possuiria ldquonorma e regra para a perfeita descoberta de qualquer objeto possiacutevel do
saberrdquo conforme havia deixado claro em sua conclusio paradoxal 55516 A teacutecnica com
a qual melhor se adaptou e conseguiu obter resultados foi a temuraacute que lhe permitiu
confirmar alguns dogmas e colher descobertas originais como informam algumas
teses cabaliacutesticas
Se no nome de Abraatildeo natildeo tivesse sido inserida a letra He
Abraatildeo natildeo teria proliferado517
As letras do nome de Cacodaemon que eacute o Priacutencipe deste
Mundo e as letras do nome do Deus Triagramaacutetico satildeo as
mesmas quem souber fazer a transposiccedilatildeo ordenada inferiraacute
um do outro518
Os sinais da existecircncia de certas chaves secretas apenas esboccedilados nas obras
anteriores eram agora confirmados por Pico na uacuteltima parte do Heptaplus intitulada
ldquoExposiccedilatildeo das primeiras palavras isto eacute lsquoNo Princiacutepiorsquordquo A comprovaccedilatildeo do
meacutetodo cabaliacutestico surpreenderia o proacuteprio autor ldquopara aleacutem de minhas esperanccedilas e
de qualquer convicccedilatildeo encontrei aquilo que nem eu mesmo poderia acreditar ter
encontrado nem outros acreditariam facilmente digo uma coisa maravilhosa
inaudita e inacreditaacutevelrdquo519 Atraveacutes da permutaccedilatildeo de letras reafirmava que nos
cinco livros da lei mosaica estava encerrada a cogniccedilatildeo de todas as artes e da
sabedoria divina e humana ldquoembora dissimulada e oculta entre as mesmas letras
entre as quais a formulaccedilatildeo da lei se compotildeerdquo Agrave diferenccedila de outras obras anteriores
nas quais Pico havia mencionado tais segredos sem revelaacute-los o autor concluiacutea o
periacuteodo com a promessa ldquocomo agora seraacute demonstradordquo520
515 Cf Apologia (I p175) Conclusiones magicae secundum opinionem propriam 10 19 20 21 e 22
Conclusiones Cabalisticae Secundum secretam doctrinam 33 35 Conclusiones Cabalisticae Secundum opinionem propriam 60 70
516 Cf Conclusiones Paradoxae (II) III 55 517 Concl (I) IX 15 (p56) ldquoNisi nomini Abraam litera ה id est ha addita fuisset Abraam non generassetrdquo De
fato conta o Gecircnesis (175) que Abraatildeo e Sara soacute puderam ter filhos apoacutes mudarem os proacuteprios nomes AVRaM ficou AVRaHam e SaRaI ficou SaRaacuteH recebendo os dois a letra Hecirc que representa um dos nomes de Deus assim tornando-se feacuterteis Acerca de tal passagem do Gecircnesis conta Satildeo Jerocircnimo que o nome anterior Abram significa ldquoPai elevadordquo enquanto Abraham significa ldquoPai de muitas naccedilotildeesrdquo (apud Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)
518 Concl (I) IX 19 (p58) ldquoEaedem sunt literae nominis cacodaemonis qui est princeps mundi huius et nominis Dei Triagrammaton et qui sciuerit ordinare transpositionem deduceret unum ex aliordquo Veja-se em FORNACIARI detalhes metodoloacutegicos das contas efetuadas para analogar um nome ao outro (2009 p79)
519 Heptaplus Expositio Primae Dictionis idest lsquoIn Principiorsquo p376 Igitur praeter spem meam praeter opinionem inveni quod neque inveniens ipse credebam neque credere alii facile potuerunt [] Rem dico mirabilem inauditam et incredibilemrdquo
520 Ibid p374 ldquo[hellip] dissimulatam autem et occultatam in litteris ipsis quibus dictiones legis contextae sunt quo modo nunc declarabimusrdquo
155
Propondo-se dar ao leitor uma ideia do funcionamento do sistema de
interpretaccedilatildeo cabaliacutestico Pico parte do primeiro periacuteodo do Gecircnesis que vai desde
ldquoNo princiacutepiordquo (11) ateacute ldquoe viu Deus a luz que era um bem (14)rdquo ndash constituiacutedo de
cento e trecircs letras hebraicas como observa ndash para efetuar sua anaacutelise Em sua
ldquoaparecircncia comum e vulgarrdquo como informa o Autor ldquotal disposiccedilatildeo de letras forma
apenas a casca de uma essecircncia de misteacuterios conservados dentro do textordquo Contudo
se for realizada a decomposiccedilatildeo daquelas palavras tomadas as mesmas letras em
separado e recompostas em novas palavras que se possam formar ldquosegundo regras
apreendidas dos hebreusrdquo ldquoveremos em plena luz maravilhosas verdades
secretiacutessimas de uma sabedoria conservada a respeito de muitas coisasrdquo Mas
conforme complementa apenas ldquose formos capazes de uma selada sabedoriardquo521 Para
comprovar sua descoberta aos leitores o autor elege apenas uma das palavras que
compotildeem o periacuteodo mencionado suficiente para demonstrar seu intento
Tomando assim a primeira palavra hebraica do Gecircnesis ldquoberesitrdquo que Pico
transcreve em caracteres hebraicos segue-se uma detalhada explicaccedilatildeo de todas as
separaccedilotildees permutaccedilotildees e uniotildees efetuadas entre as letras daquela palavra surgem
novos vocaacutebulos compostos com as letras da palavra inicial dos quais satildeo dados os
significados em latim finalmente as novas palavras satildeo reordenadas em uma nova
expressatildeo da qual emerge ldquoo Pai no Filho e pelo Filho princiacutepio e fim ou seja
quietude criou a cabeccedila o fogo e o fundamento do homem grande com o pacto
bomrdquo522 Note-se que essa inteira oraccedilatildeo eacute o resultado extraiacutedo da resoluccedilatildeo e
recomposiccedilatildeo daquela uacutenica palavra mostrada passo a passo pelo autor523
Embora como infere Pico qualquer cristatildeo seja capaz de compreender o
significado de ldquoo Pai criou no Filho e atraveacutes do Filhordquo natildeo seraacute faacutecil para ldquoos ignaros
em filosofiardquo compreender o significado de ldquocabeccedila fogo e fundamento do homem
521 Ibid p374 ldquoSumamus gratia exempli primam particulam libri Geneseos videlicet ab exordio usque ad
locum ubi est scriptum lsquoEt vidit Deus lucem quod esset bonumrsquo Est tota illa scriptura tribus et centum elementis coagmentata quae eo modo disposita quo ibi sunt dictiones constituunt quas legimus nihil nisi commune et triviale prae se ferentes Corticem scilicet conflat hic litterarum ordo hoc textum medullae interius abditae latentium mysteriorum At vocabulis resolutis elementa eadem divulsa si capiamus et iuxta regulas quas ipsi tradunt quae de eis conflaridictiones possunt rite coagmentemus futurum dicunt ut elucescant nobis si simus capaces occlusae sapientiae mira de rebus multis sapientissima dogmata et si in tota hoc fiat lege tum demum ex elementorum hac quae rite statuatur et positione et nexu erui in lucem omnem doctrinam secretaque omnium liberalium disciplinarumrdquo
522 Heptaplus ibid p 378 ldquoPater in Filio et per Filium principium et finem sive quietem creavit caput ignem et fundamentum magni hominis foedere bonordquo
523 Veja-se a inteira ordenaccedilatildeo de palavras cf Heptaplus p378 (levando-se em conta que os termos hebraicos estatildeo aqui escritos em ordem inversa agrave original apresentando-se no sentido latino) ldquoDictio illa apud Hebraeos hoc modo scribitur תישארב Ex hac igitur si tertiam litteram primae coniumgamus fit dictio בא idest ab Si geminatae primae secundam addamus fit רבב idest bebar Si praeter primam omnes legamus fit תישאר idest resith Si quartam primae et ultimate connectamus fit שתב idest sciabat Si tres primas quo iacent ordine statuamus fit ארב idest bara Si prima omissa tres sequentes fit שאר idest rosc Si omissis prima et secunda duas sequentes fit שא idest es Si tribus primus omissis quartam ultimae copulemos fit תש idest seth Rursus si secundam primae fit בר idest rab Si post tertiam quintam tum quartam statuamus fit שיא idest hisc Si primas duas duabus ultimas coagmentemus fit תירב idest berith Si ultimam primae fit ultima dictio et duodecima quae est בת idest thob verso quod frequentissimum apud Hebraeos thau in thet elementum Videamus autem quid primo haec latine significent tum quae per ea non ignaris philosophiae de tota natura mysteria revelentur Ab patrem significat bebar in filio et per filium (utrumque enim significat beth praepositio) resit principium sabath quietem et finem bara creavit rosc caput es ignem seth fundamentum rab magni hisc hominis berith foedere tob bono Et totam si ordine consequenti orationem texamus erit huiusmodi Pater in Filio et per Filium principium et finem sive quietem creavit caput ignem et fundamentum magni hominis foedere bonordquo
156
granderdquo e tampouco de ldquopactordquo ndash termos que encerram cada uma das leis dos
quatro mundos tratados no Heptaplus524 A concepccedilatildeo de ldquohomem granderdquo remete a
Moiseacutes que assim chama o mundo em contraposiccedilatildeo ao homem ldquopequeno mundordquo
Aos outros elementos da oraccedilatildeo Pico faz corresponder os trecircs mundos postulados na
Cabala e na Antiga Filosofia inteligiacutevel celeste e corruptiacutevel Assim em analogia com
o corpo humano ldquopor meio de uma precisa leirdquo a cabeccedila fonte do conhecimento
representa a parte mais alta do mundo correspondente ao mundo angeacutelico ou
inteligiacutevel o fogo princiacutepio de vida e calor ligado ao coraccedilatildeo representa a parte
meacutedia qual o sol no mundo celeste o fundamento ou princiacutepio de geraccedilatildeo e
corrupccedilatildeo representa o mundo sublunar Essas partes no mundo e no homem se
correspondem reciprocamente Ao final da passagem Pico explica
Esse pacto eacute bom porque eacute dirigido e orientado para Deus que eacute
o Bem de forma que assim como o mundo eacute uno na totalidade
de suas partes assim tambeacutem no final possa se tornar uno com
o seu Autor525
A descoberta obtida sob o veacuteu de uma uacutenica palavra satisfaz o autor que natildeo
pretendendo ultrapassar essa conquista admite natildeo ter a experiecircncia necessaacuteria para
se aprofundar em investigaccedilotildees ldquopenso ter feito uma coisa apraziacutevel aos homens de
meu tempo tornando manifesta aquela riqueza de gemas que se me oferece sem
penetrar em seus abismos costeio as margens desse marrdquo526 Se a mesma teacutecnica for
aplicada para toda a Lei induz Pico surgiraacute toda a doutrina e os segredos de todas as
disciplinas liberais Poreacutem adverte ndash mais uma vez ndash ldquose formos capazes de
sabedoria ocultardquo (ldquosi simus capaces occlusae sapientiaerdquo) Pois pode acontecer que
ldquoaproximando-nos de dissolver e compor algumas palavras nasccedilam de nossa
atividade muitos vocaacutebulos e uma variedade de discursos rica de grandes
ensinamentos e profundos significados mas inuacutetil fortuita e despreziacutevel para quem
natildeo tendo apreendido o valor por outra via natildeo possa colher seu sentidordquo527
O caminho de descoberta das verdades veladas nas Escrituras atraveacutes de
qualquer dos meacutetodos indicados eacute o caminho miacutestico sugerido nos chamados Atos
da Criaccedilatildeo Maassecirc Bereshit isto significa que se a Criaccedilatildeo se deu por meio da
linguagem seraacute por meio da linguagem que se deveraacute retornar ao Criador528 Para os
cabalistas a arte combinatoacuteria natildeo eacute mais que uma reconfiguraccedilatildeo da palavra e da
obra de Deus A apreensatildeo da alma presente nas letras passa a ser sob esse prisma
uma das ferramentas que possibilita o regresso do homem agrave Unidade uma concepccedilatildeo
depreendida da especulaccedilatildeo alfabeacutetica de Abulafia529 que certamente se apoiara no
Zohar ldquoOs mandamentos formam o corpo das Escrituras suas vestes satildeo as
524 Cf Heptaplus ibid pp379 381 525 Heptaplus p382 ldquoQuod foedus ideo est bonum quia ad Deum qui est ipsum bonum ita dirigitur et
ordinatur ut quem admodum inter se totus mundus unus ita et cum suo auctore postremo sit unumrdquo 526 Heptaplus p376 527 PICO Heptaplus p377 528 MAGHIDMAN 2014 p108 529 BUSI 2011 p 26
157
narraccedilotildees e finalmente haacute uma almardquo530 O inteiro Heptaplus atraveacutes de seu
comentaacuterio sobre o Gecircnesis pretende provar o ponto de vista de Pico de que a
linguagem cabaliacutestica ou natildeo transcende suas proacuteprias terminologias configurando
um processo cognitivo O seacutetuplo meacutetodo de interpretaccedilatildeo proposto por Pico encerra
um princiacutepio metafiacutesico de reciacuteproca contenccedilatildeo de todos os niacuteveis de realidade entre
si culminando na unificaccedilatildeo com o Absoluto
Imitemos tambeacutem noacutes a santiacutessima alianccedila do mundo de
forma a estarmos unidos entre noacutes por reciacuteproco amor e a
alcanccedilarmos atraveacutes do verdadeiro amor de Deus a feliz
unificaccedilatildeo Nele531
530 Zohar III 152a in VULLIAUD I p135 531 Heptaplus p382 p 382 ldquoImitemur et nos sanctissimum foedus mundi ut et mutua caritate invicem simus
unum et simul omnes per veram Dei dilectionem cum illo unum feliciter evadamosrdquo
158
CAPIacuteTULO VII
FILOSOFIA ESOTERISMO CONCOacuteRDIA
O seacutetimo e uacuteltimo Capiacutetulo tem por intento alinhavar as partes apresentadas
nos capiacutetulos anteriores buscando uma siacutentese interpretativa do que foi analisado
Para tanto alguns pontos aparentemente desconexos deveratildeo ser interligados e as
eventuais lacunas preenchidas Seraacute realizada inicialmente a elucidaccedilatildeo do
paradigma esoteacuterico verificando sua utilizaccedilatildeo em periacuteodos e escolas distintas em
seguida seratildeo vistos os tipos de conteuacutedos protegidos pelo sigilo apontando para sua
relaccedilatildeo com as tradiccedilotildees convergentes do projeto piquiano finalmente
fundamentando-nos em uma especiacutefica concepccedilatildeo utilizada por Pico della Mirandola
ndash a ldquoMorte do Beijordquo ndash seraacute proposta uma interpretaccedilatildeo capaz de lanccedilar uma
pequena luz na questatildeo da confluecircncia daquelas tradiccedilotildees para o mesmo fim
1 O Paradigma Esoteacuterico
A leitura das obras piquianas natildeo deixa duacutevidas acerca da utilizaccedilatildeo de uma
seacuterie de referecircncias de cunho esoteacuterico colhidas da leitura histoacuterica realizada pelo
Autor Como foi esboccedilado no Capiacutetulo II a praacutetica de uma atitude de proteccedilatildeo de
certos conteuacutedos encontra-se em registros relativos tanto a perspectivas teoloacutegicas
quanto filosoacuteficas denotando um modelo vaacutelido desde tempos antigos ndash seja do
periacuteodo pagatildeo quanto do cristatildeo Uma aproximaccedilatildeo a alguns modelos de
manifestaccedilotildees desse gecircnero de ocorrecircncia seraacute uacutetil para que se amplie a definiccedilatildeo de
ldquoesoterismordquo delineada na ldquoIntroduccedilatildeordquo desta tese
O adjetivo ldquoesoteacutericordquo (do grego esoterikoacutes) tem sido frequentemente atribuiacutedo
a Aristoacuteteles em verdade apenas a palavra ldquoexoteacutericordquo (exoterikoacutes) eacute encontrada nos
escritos que nos chegaram uma forma empregada para designar as obras destinadas
ao puacuteblico em contraposiccedilatildeo aos escritos acroamaacuteticos (ldquoakroacuteamardquo ldquoinstruccedilatildeo oralrdquo)
referidos agraves liccedilotildees apenas ouvidas ndash e tantas vezes anotadas532 Foi apenas no seacuteculo
II dC que o termo ldquoesoteacutericordquo e sua relaccedilatildeo com Aristoacuteteles fizeram sua primeira
apariccedilatildeo devidamente registrada atraveacutes de uma saacutetira de Luciano de Samoacutesata
Zeus e Hermes vendiam filoacutesofos como escravos no mercado anunciando que aquele
que comprasse um disciacutepulo de Aristoacuteteles receberia dois pelo preccedilo de um ldquoum visto
532 Veja-se por exemplo Politica 1278b 31 Metaphisica 1076a 28 Etica a Nicomaco 1102a 26 A
interpretaccedilatildeo heleniacutestica do termo exoterikoi logoi tomada como uma referecircncia aos escritos aristoteacutelicos eacute atribuiacuteda por Simpliacutecio mais tarde no seacuteculo VI a Eudemo de Rhodes em seu comentaacuterio agrave Fiacutesica de Aristoacuteteles referindo-se a uma passagem em que Aristoacuteteles teria lidado com um problema lsquoexoteacutericorsquo referente a uma questatildeo pertencente ao campo dialeacutetico (SIMPLICIUS In Ph 8327 8526 e 861 apud Wouter HANEGRAAFF Dictionary of Gnosis amp Western Esotericism 2006 p 336)
159
de fora outro visto de dentrordquo [] ldquoportanto se vocecirc o comprar lembre-se de dar ao
primeiro o nome de exoteacuterico e ao segundo o de esoteacutericordquo533 Confirmando a
anedota Clemente de Alexandria escrevia pouco tempo depois ldquoos disciacutepulos de
Aristoacuteteles dizem que alguns de seus tratados satildeo esoteacutericos outros comuns e
exoteacutericosrdquo E consolidando o significado de ldquosegredordquo acrescia que ldquoaqueles que
instituiacuteram os misteacuterios sendo filoacutesofos enterraram suas doutrinas em mitos para
natildeo serem oacutebvias para todosrdquo534 Observe-se que Clemente mescla na uacuteltima
passagem o acircmbito misterioloacutegico com o filosoacutefico ndash como faraacute Pico seacuteculos depois
ndash introduzindo uma conotaccedilatildeo de misticismo ao termo Na mesma linha escreveram
Oriacutegenes o Cristatildeo e Gregoacuterio de Nissa utilizando o termo ldquoesoteacutericordquo para referir-se
a ensinamentos secretos reservados a uma ldquoelite miacutesticardquo535
Esses breves relatos fazem notar a existecircncia de duas significaccedilotildees para a
mesma palavra sendo uma concernente ao sentido de ldquosigilordquo e a outra agrave qualidade
do que eacute ldquomiacutesticordquo Embora o sinocircnimo que mais se adeque a ldquoesoteacutericordquo seja
ldquosecretordquo na maior parte das vezes as duas caracteriacutesticas encontram-se mescladas
Etimologicamente o campo semacircntico do misticismo eacute proacuteximo ao do esoterismo a
palavra ldquomisteacuteriordquo conforme sua raiz grega mus significa ldquosilecircnciordquo ou ldquofechar a
bocardquo o ldquomyacutestesrdquo ou ldquoiniciadordquo eacute pois aquele que manteacutem os laacutebios selados
enquanto mysteacuterion refere-se ao culto de iniciaccedilatildeo em que eacute mantido um caraacuteter
secreto536 Assim em seu sentido mais imediato eacute aquilo que natildeo deve ser falado que
deve ser recebido e guardado em silecircncio em sentido mais profundo aquilo que deve
ser contemplado no silecircncio537 Verifica-se ainda um aspecto de transformaccedilatildeo
aniacutemica encerrado na qualidade do que eacute miacutestico que se relaciona com uma
aproximaccedilatildeo da divindade Resta observar que embora nem toda a miacutestica seja
ensinamento secreto e nem todo ensinamento secreto seja miacutestico538 os dois gecircneros
de manifestaccedilatildeo a miacutestica e a secreta tecircm caminhado juntos e se completam na
definiccedilatildeo de esoterismo Prosseguindo seratildeo mostrados trecircs modelos de esoterismo
relacionados a doutrinas bastante distintas ndash que muito provavelmente
influenciaram diretamente Giovanni Pico
Um exemplo expressivo relacionado aos misteacuterios egiacutepcios e tracejado no
Capiacutetulo I pode ser encontrado no Hermetismo que embora supostamente
533 LUCIANO DE SAMOacuteSATA Vitarum Rustio 26 apud HANEGRAAFF opcit p 336 534 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromata V 58 3-4 Jacircmblico mais tarde em Vida de Pitaacutegoras e em De
Comm Math (18) utilizaria a dicotomia para referir-se aos alunos de Pitaacutegoras divididos em duas classes ldquouma exoteacuterica e outra esoteacutericardquo
535 Vejam-se os detalhes e referecircncias em HANEGRAAFF opcit p 336 536 De acordo com Walter BURKERT encontra-se na traduccedilatildeo latina de mysteria myeis myesis a melhor
definiccedilatildeo para o termo que resulta em initia initiare initiatio introduzindo o conceito de ldquoiniciaccedilatildeordquo na linguagem ocidental Esse conceito ldquoeacute via de regra acompanhado pelo segredordquo (Antigos Cultos de Misteacuterio 1987 pp19-20)
537 A uacuteltima definiccedilatildeo eacute atribuiacuteda a Reneacute Gueacutenon Aperccedilus sur lrsquoinitiation 2004 Paris Editions Traditionnelles p125 apud Pierre RIFFARD Dicionaacuterio do Esoterismo 1993 p241
538 Gershom SCHOLEM Nome de Deus a Teoria da Linguagem e Outros estudos de Cabala e Miacutestica Judaica 1999 pp64-65 Em contexto diverso do tratado por Scholem tambeacutem o especialista em religiotildees misteacutericas Walter BURKERT afirma que nem todos os cultos secretos detecircm um caraacuteter miacutestico Como exemplo cita o caso da magia privada que apesar de secreta natildeo deve receber a alcunha de miacutestica assim tambeacutem o acesso de certas hierarquias sacerdotais a objetos ou locais sagrados natildeo constitui uma miacutestica apesar de seu caraacuteter secreto Haacute por outro lado estados de misticismo que podem ser alcanccedilados durante cultos religiosos abertos que natildeo caracterizam necessariamente um segredo (op cit pp19-21)
160
pertencente a periacuteodo anterior ao cenaacuterio de significaccedilotildees acima mencionadas
encerra ao mesmo tempo o sentido secreto e o caraacuteter miacutestico sendo-nos uacutetil para
ilustrar um modelo de esoterismo natildeo-ocidental preacute-cristatildeo bem aceito no seacuteculo XV
Os escritos hermeacuteticos ocultam por detraacutes de uma manifesta clareza ndash referente agrave
forma e ao conteuacutedo ldquoexternordquo ndash uma obscuridade quanto ao sentido mais profundo
que se encontra ldquoseladordquo O material hermeacutetico contempla trecircs planos diversos em
estreita relaccedilatildeo entre eles uma forma externa clara e linear que pode se tornar mais
complexa conforme a dificuldade do argumento um conteuacutedo ldquoexternordquo e
correspondente agrave simplicidade ou complexidade do enunciado um conteuacutedo
absolutamente ldquointernordquo e oculto que natildeo possui uma possibilidade expressiva ou
leacutexica adequada reenviando a um saber recebido em revelaccedilatildeo539 Esse uacuteltimo
aspecto relaciona-se ao caraacuteter miacutestico que contempla uma regeneraccedilatildeo do ser No
Tratado XVI do Corpus Hermeticum Ascleacutepio relata ao Rei Amon
ldquoHermes meu mestre dialogando frequentemente comigo seja
em particular que na presenccedila de Tat costuma dizer-me que
aqueles que leratildeo os meus livros encontraratildeo uma composiccedilatildeo
muito simples e clara enquanto ao contraacuterio essa eacute obscura e
esconde o sentido das palavras Ademais tornar-se-aacute
totalmente obscura quando sucessivamente os Gregos tentaratildeo
traduzir nossa liacutenguardquo540
Um segundo exemplo de natildeo-divulgaccedilatildeo de ensinamentos sagrados eacute
detectaacutevel em alguns registros da miacutestica cristatilde oficial541 embora o ensinamento
secreto natildeo tenha sido utilizado nesse caso como instrumento para propagar uma
tradiccedilatildeo como ocorreu no Judaiacutesmo542 Clemente de Alexandria pode ser tomado
como modelo de transmissatildeo esoteacuterica dentro da tradiccedilatildeo cristatilde tendo absorvido
ecos provenientes dos gregos perceptiacuteveis no uso que fez de termos como gnosis e
mysteria em suas discussotildees acerca dos sentidos literal e natildeo-literal da Biacuteblia543
539 Valeria SCHIAVONE trad e notas ao Corpus Hermeticum ed BUR-Rizzoli 2018 npp262-263 A
comentadora infere que a clareza da forma externa nos textos hermeacuteticos representa um sinal da luz da verdade profunda que vela mesmo que o conteuacutedo tenda a afastar o leitor do entendimento real da experiecircncia miacutestica que esconde Natildeo haacute como deixar de estabelecer uma analogia com os niacuteveis de leitura miacutestica hebraica explicados sob a conceituaccedilatildeo do chamado Pardes como verificado no Capiacutetulo V
540 CORPUS HERMETICUM Tratado XVI 1 ed Nock-Festugiegravere Bompiani 2005 p 429 Traduccedilatildeo do grego por Andregrave-Jean Festugiegravere traduccedilatildeo para o portuguecircs de nossa responsabilidade ldquoΕρμής μεν γάρ ό διδάσκαλός μου πολλάκις μοι διαλεγόμενος καί ιδία καί τού Τάτ ένίοτε παρόντος έλεγεν ότι δόξει τοΐς έντυγχάνουσί μου τοΐς βιβλίοις άπλουστάτη είναι ή σύνταξις καί σαφής έκ δέ των έναντίων άσαφής ούσα καί κεκρυμμένον τόν νοΰν των λόγων έχουσα καί έτι άσαφεστάτη των Ελλήνων ύστερον βουληθέντων τήν ήμετέραν διάλεκτον εις τήν ιδίαν μεθερμηνεύσαι οπερ έσται των γεγραμμένων μεγίστη διαστροφή τε καί άσάφειαrdquo A obra hermeacutetica eacute bastante ampla e abrangente em termos de conteuacutedo Uma visatildeo geral de seu teor foi apresentada no primeiro capiacutetulo embora apenas em sua parte estrutural e ldquoexteriorrdquo Um maior aprofundamento do conteuacutedo hermeacutetico fugiria ao escopo aqui traccedilado Para uma anaacutelise bastante aprofundada do tema leia-se CORPUS HERMETICUM (Nock-Festugiegravere opcit) e HERMETICA (Scott-Ferguson Clarendon Press Oxford 1924-36) duas das mais abrangentes obras sobre o tema
541 A miacutestica cristatilde natildeo-oficial abarca o inteiro movimento gnoacutestico Sua tradiccedilatildeo se perpetuou atraveacutes de maior ou menor grau de sigilo conforme a eacutepoca e a especiacutefica subdivisatildeo
542 SCHOLEM opcit pp64-65 543 Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo de termos gregos como gnosis e mysteria Jean PEacutePIN argumenta que nesse
sentido percebe-se ldquouma inconsciente comunhatildeo de culturas mais do que marcas deliberadasrdquo (Mythe et alleacutegorie les origines grecques et les contestations judeacuteo-chreacutetiennes Paris Eacutetudes Augustiniennes 1976 p 251 apud Crofton BLACK 2006 p 103) Antes de Clemente Fiacutelon de Alexandria (De vita contemplativa) escrevera sobre o tema a ideia de que um grupo intelectualmente superior de crentes poderia extrair um niacutevel mais alto de
161
Como antecipado no Capiacutetulo II a postura hermenecircutica desenvolvida por Pico em
algumas obras tem certa afinidade com os primeiros inteacuterpretes cristatildeos gregos e
muito provavelmente alguns dos elementos esoteacutericos que utilizou receberam o
influxo da obra Stromata544 ndash na qual Clemente distingue duas classes de puacuteblico
um digno de receber ensinamentos secretos e outro natildeo
Stromateis englobaraacute a verdade misturada com opiniotildees sobre
Filosofia embora velada e oculta exatamente como a parte
comestiacutevel da noz na casca desta forma eacute mais aceitaacutevel eu
creio que as sementes da verdade sejam mantidas apenas para
os cultivadores da crenccedila545
Clemente reuacutene uma lista de exemplos histoacutericos para comprovar que escolas
filosoacuteficas diferentes estavam unidas em ocultar a verdade dos ldquoindignosrdquo546
utilizando-se de um quadro geral de referecircncias muito similar ao que seria utilizado
por Pico seacuteculos mais tarde (como a carta de Liacutesis para Hiparco e a Segunda Carta de
Platatildeo)547 Menciona entre aquelas os epicuristas os estoicos os aristoteacutelicos e os
ldquofundadores dos misteacuteriosrdquo Afastando-se dos pagatildeos volta-se para Cristo e alguns de
seus disciacutepulos como Paulo destacando o uso feito por alguns apoacutestolos de palavras
como μυστήριoν e σoφία548 O destaque a tais termos faz parte de sua sustentaccedilatildeo da
transmissatildeo natildeo-escrita aplicada essencialmente para a interpretaccedilatildeo das
Escrituras acerca da qual Clemente distingue duas formas de entendimento a
ldquocrenccedilardquo (πίστις) e o ldquoconhecimentordquo (γνωσις)549 Haacute pois uma dicotomia entre
ldquoaqueles que apenas apreciam as Escrituras os lsquocrentesrsquo (πιστοί) e aqueles que
foram aleacutem tornando-se examinadores precisos da verdade e portadores portanto
da gnose (γνωστιχοί)550 O termo ldquognoserdquo eacute definido em Stromata I na discussatildeo do
sentido de sigilo pedido por Cristo A gnose segundo Clemente ldquosabedoriardquo eacute o
ldquoconhecimento e compreensatildeo das coisas que satildeo que seratildeo e que foramrdquo
conhecimento das Escrituras jaacute estava presente em seu trabalho exegeacutetico Tambeacutem Oriacutegenes de Alexandria depois de Clemente distinguiu nitidamente os sentidos literal e natildeo-literal argumentando que a confianccedila no primeiro causaria erro teoloacutegico (vejam-se referecircncias e discussatildeo em BLACK np105 pp108-110)
544 Natildeo se tem certeza se Pico teve acesso direto agrave principal obra de Clemente Stromata na qual eacute elaborada uma linha argumentativa com recursos loacutegicos que se fundamentam tanto nas Escrituras quanto na Filosofia ndash um caminho traccedilado no Heptaplus piquiano Haacute uma sua citaccedilatildeo especiacutefica de Stromata nas Disputationes (44) e a referecircncia a um manuscrito denominado stromata graeca no elenco do inventaacuterio de sua biblioteca entretanto natildeo eacute certo se tal manuscrito se refere ao trabalho de Clemente Um uacutenico exemplar sobrevivente daquela obra foi encontrado na biblioteca de Lorenzo dersquo Medici podendo ter sido utilizado pelo Conde
545 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromata IndashVI 708a-b (Les Stromates ed Le Boulluec 1981) Stromata ou Stromateis significa ldquoMiscelacircneasrdquo ldquoπεριέξουσι δέ οί Στρωματείς άναμεμιγμένην την αλήθειαν τοΐς φιλοσοφίας δόγμασι μάλλον δέ εγκεκαλυμμένην καί επικεκρυμμένην καθάπερ τω λεπύρω το εδώδιμον του καρύουmiddot αρμόζει γάρ οίμαι τής αληθείας τά σπέρματα μόνοις φυλάσσεσθαι τοΐς τής πίστεως γεωργοΐςrdquo
546 Cf CLEMENTE Stromata V 88b-101a 547 Ibid V 100a-b As referecircncias e conteuacutedos da carta de Liacutesis e da Segunda Carta de Platatildeo encontram-se
respectivamente em notas de rodapeacute dos Capiacutetulos IV e VI 548 Mysteacuterion e Sophia correspondem respectivamente a ldquoMisteacuteriordquo e ldquoSabedoriardquo Para a discussatildeo do tema
veja-se Salvatore LILLA Clement of Alexandria A Study in Christian Platonism and Gnosticism Oxford 1971 pp146-148
549 A distinccedilatildeo entre piacutestis e gnosis tem algumas ramificaccedilotildees Clemente usa piacutestis em diferentes sentidos dois dos quais concernentes agraves demonstraccedilotildees loacutegica e cientiacutefica e um dos quais referente agrave leitura das Escrituras Em geral ele usa os dois primeiros significados em suas polecircmicas contra os filoacutesofos e o uacuteltimo em suas polecircmicas contra os gnoacutesticos A ideia em cada caso eacute demonstrar que o Cristianismo natildeo eacute inferior nem agrave Filosofia nem ao Gnosticismo O tema eacute discutido por LILLA opcit pp 118-226
550 Cf CLEMENTE opcit VII 533a
162
apresentando-se sob veacuteus Dessa forma se ldquoa contemplaccedilatildeo eacute o objetivo do saacutebiordquo
entatildeo ldquoa contemplaccedilatildeo daqueles que ainda satildeo filoacutesofos [e natildeo ainda saacutebios]
procura com certeza a sabedoria divinardquo que poderaacute ser alcanccedilada por meio de um
aprendizado que permita a recepccedilatildeo da voz profeacutetica que se lhe revela atraveacutes da
qual ldquose compreende o que eacute seraacute e foirdquo Prosseguindo na mesma passagem o teoacutelogo
define que
ldquoa gnose em si eacute o que desceu por transmissatildeo a poucos
transmitida pelos apoacutestolos sem registro escritordquo551
O tipo de linguagem utilizado por Clemente caracteriza uma esfera que se
tornou reconhecida como esoteacuterica embora o uso de termos como Sophia Piacutestis e
Gnosis seja um convite para se adentrar em territoacuterio gnoacutestico Pico natildeo se utilizou
desse tipo de registro em seus procedimentos hermenecircuticos pelo menos natildeo de
forma direta552 De outras fontes fato certo colheu suas referecircncias pois que a
dicotomia iniciadonatildeo-iniciado se manteve preservada em outros ciacuterculos da
Antiguidade posterior a Clemente e no Medievo sobretudo nas tradiccedilotildees
neoplatocircnica e cabaliacutestica Em ambiente neoplatocircnico destacaram-se dois autores
em particular Macroacutebio e Pseudo-Dioniacutesio ambos presentes na biblioteca piquiana
O Commentarii in Somnium Scipionis de Macroacutebio e sobretudo o De Coelesti
Hierarchia de Dioniacutesio foram textos que ajudaram amplamente a disseminar a
postura esoteacuterica dos primeiros cristatildeos durante a Idade Meacutedia latina apoacutes alguns
escritos originais se terem tornado inacessiacuteveis553 Embora Dioniacutesio seja um bom
modelo de emprego do paradigma esoteacuterico em ambiente neoplatocircnico554 sua forma
de linguagem apesar de natildeo restrita agrave leitura das Escrituras apresenta semelhanccedilas
551 CLEMENTE Stromata VI 281c-284a Oriacutegenes (o Cristatildeo) tambeacutem se utilizou do termo ldquognoserdquo para
designar o entendimento do sentido natildeo-literal talvez porque tenha sido ensinado pelo proacuteprio Clemente (segundo Euseacutebio de Cesareia) Porfiacuterio por sua vez diz que Oriacutegenes foi ensinado por Amocircnio tendo sido seu pupilo ao mesmo tempo que Plotino (cf BLACK opcit p 110)
552 Um paralelismo foi tecido na obra de Jacques Matter Histoire critique du gnosticisme et de son influence publicada em 1828 entre o esoterismo e o gnosticismo do seacuteculo II ao efetuar consideraccedilotildees que partem de um sincretismo entre os ensinamentos de Cristo por um lado e as tradiccedilotildees religiosas orientais judaicas e gregas filosoacuteficas por outro Algumas das primeiras polecircmicas cristatildes contra os gnoacutesticos colocaram-se contra sua crenccedila de terem atingido uma esfera independente e mais alta de conhecimento ou revelaccedilatildeo inacessiacutevel ldquoa outrosrdquo (como os cristatildeos) A obra de Irineu de Lyon do seacuteculo II Contra as Heresias (I162) identifica e transcreve diversas escolas do gnosticismo efetuando uma exposiccedilatildeo em que contrasta suas crenccedilas com as que ele chama do cristianismo ortodoxo [ie o cristianismo ldquonatildeo hereacuteticordquo] assim refutando os ensinamentos de vaacuterios grupos gnoacutesticos (Adversus Haereses W FOERSTER Gnosis A Selection of Gnostic Texts Oxford Clarendon Press 1972 vol I pp138-139)
553 Em seu Comentaacuterio sobre o sonho de Cipiatildeo Macroacutebio postula que desde que a natureza se esconde do olhar da multidatildeo a discussatildeo de seus segredos deve ser velada da visatildeo comum (Commentarii in Somnium Scipionis I 24-18 Padova ed L Scarpa 1981 pp 76-80) Pico possuiacutea uma ediccedilatildeo impressa de tal obra (KIBRE The Library of Pico della Mirandola 1936 p 244) Uma exposiccedilatildeo de cunho esoteacuterico pode ser encontrada ainda em Simpliacutecio Euseacutebio Dioacutegenes Laeacutercio Plutarco Porfiacuterio e Jacircmblico Plotino tratara sobre a proibiccedilatildeo de tornar puacuteblico o conteuacutedo dos Misteacuterios (Eneacuteadas VI 9 11) mas suas referecircncias nesse sentido satildeo de menor expressatildeo
554 O corpus pseudo-dionisiacuteaco um grupo de obras de teor teoloacutegico escritas em grego por um autor desconhecido do final do quinto ou iniacutecio do seacuteculo VI de claro vieacutes neoplatocircnico foi atribuiacutedo (em sua primeira apariccedilatildeo registrada em 532) a outro autor Dioniacutesio o Areopagita Pico o considerava um convertido de Paulo vivido no seacuteculo I dC (ldquoDiscipulus Pauli Dionysius Areopagitardquo como mencionado em Heptaplus p176) A admiraccedilatildeo de Pico pelo Areopagita estaacute evidente no Commento onde o chama ldquopriacutencipe dos teoacutelogos cristatildeosrdquo (p462) e no qual muito provavelmente foram utilizadas as traduccedilotildees de parte do corpus dionisiacuteaco realizadas por Marsilio Ficino (cf BLACK opcit p 123) A recepccedilatildeo do corpus pseudo-dionisiacuteaco durante toda a Idade Meacutedia e Renascenccedila foi extremamente ampla pelo menos seis traduccedilotildees latinas diferentes do corpus (ou partes dele) foram feitas entre os seacuteculos IX e XV
163
com as colocaccedilotildees de Clemente555 Por essa razatildeo tomaremos como terceiro exemplo
outra tradiccedilatildeo a do misticismo hebraico
Os Capiacutetulos VI e VII apresentaram suficientes indicaccedilotildees da utilizaccedilatildeo do
esoterismo hebraico como forma de transmissatildeo de conhecimento entretanto a
forma de linguagem adotada por Yohanan Alemanno e Elia del Medigo para se referir
a um campo de conhecimento sigiloso ndash dimensatildeo que ambos defendiam ndash se
diferencia das abordagens hebraicas anteriores por expor um modelo que utiliza
paracircmetros retirados da linguagem filosoacutefica Diferentes em estilos e doutrinas os
dois mestres de Pico colocaram tal motivo em posiccedilatildeo de destaque nas introduccedilotildees de
suas principais obras Alemanno em seu Hay ha-olamim distingue trecircs tipos de
pessoas ldquoas que derivam seu conhecimento da demonstraccedilatildeo as que o apreendem
atraveacutes da dialeacutetica e as que ouvem a retoacutericardquo556 A mesma ideia eacute encontrada na
introduccedilatildeo do Behinat ha-dat de Elia del Medigo em que o escritor informa que haacute
ldquoprinciacutepios fundamentais que podem ser aceitos retoacuterica e dialeticamente ambos os
meacutetodos de estudo satildeo requeridos jaacute que o terceiro meacutetodo o demonstrativo eacute
impossiacutevel para as massas mas possiacutevel para os poucosrdquo Elia complementa que o
emprego do meacutetodo demonstrativo eacute beneacutefico para a comprovaccedilatildeo de alguns
princiacutepios fundamentais jaacute que leva ao conhecimento das coisas causadas e a partir
do conhecimento dessas ao conhecimento do Criador Em clara distinccedilatildeo entre um
padratildeo exoteacuterico e outro esoteacuterico conclui ser ldquoevidente que o meacutetodo demonstrativo
eacute obrigatoacuterio para o homem saacutebio mas natildeo para o judeu comumrdquo557
Nas especulaccedilotildees aacuterabe-judaicas medievais a retoacuterica era considerada com
base nos comentadores gregos tardios parte integrante das artes loacutegicas no entanto
sua aplicaccedilatildeo praacutetica na instruccedilatildeo de homens ldquolimitados intelectualmenterdquo diminuiacutea
o interesse dos filoacutesofos por essa disciplina558 A dialeacutetica por sua vez pode ser
entendida no caso dos exemplos acima citados como o procedimento racional
empregado em discussotildees com perguntas e respostas atraveacutes das quais se obteacutem
uma regra com a qual se julga o que eacute falso e verdadeiro O uacuteltimo tipo de
conhecimento derivado da demonstraccedilatildeo ldquoutiliza coisas compreensiacuteveis para
explicar as menos compreensiacuteveisrdquo559 Atraveacutes dela eacute possiacutevel demonstrar a essecircncia
das coisas por meio do conhecimento das suas causas remetendo como objetivo
555 Ao mencionar os Misteacuterios Pseudo-Dioniacutesio adverte que ldquonatildeo eacute correto interpretar por escrito as invocaccedilotildees
que pertencem aos misteacuterios nem trazer do sigilo para o conhecimento puacuteblico seu significado misteriosordquo (De ecclesiastica Hierarquia 565c) Ainda ldquoeacute necessaacuterio que as coisas sagradas natildeo sejam ditas comumente nem divulgadas aos natildeo-iniciadosrdquo (De divinis nominibus 597 c) e que ldquosejam envolvidas [as coisas sagradas] na parte mais secreta da mente protegendo-as como uma unidade da multidatildeo profanardquo (De caelesti hierarchia 145 c) Veja-se tambeacutem De ecclesiastica Hierarquia 372a onde trata da preservaccedilatildeo do Santo dos Santos mais tarde retomada por Pico (aqui abordado nos capiacutetulos IV e VI)
556 Hay ha-olamim ed Lelli p94 Fabrizio LELLI editor da obra para o italiano daacute-lhe o tiacutetulo ldquoLrsquoImmortalerdquo (Firenze Leo Olschki) O Hay ha-olamim compreende uma narrativa enciclopeacutedica de ascensatildeo individual atraveacutes das vaacuterias ciecircncias ateacute alcanccedilar o mais alto niacutevel atingiacutevel de perfeiccedilatildeo humana (IDEL The Study Program of R Jochanan Alemanno Tarbiz 48 (1979-1980) pp 303-331)
557 Sefer Behinat ha-Dat of Elijah Del-Medigo (Livro do Exame da Religiatildeo) Jacob Ross (org) Chaim Rosenberg School of Jewish Studies 1984
558 Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p64
559 A definiccedilatildeo encontra-se em Dioacutegenes Laeacutercio VII 1 45 bem como a anterior referente ao meacutetodo dialeacutetico ndash uma definiccedilatildeo bastante difundida na Idade Meacutedia que DL refere em seus estudos acerca das doutrinas estoacuteicas
164
final ao conhecimento das Causas Primeiras Os termos das discussotildees de Alemanno
e Del Medigo provecircm possivelmente da mesma fonte o Kitab fasl al-maqal (Livro
do Discurso Decisivo) em que Averroacuteis distingue os trecircs tipos de inteacuterpretes
apontados pelos mestres hebreus Para o aristoteacutelico a aquisiccedilatildeo do conhecimento
dos entes soacute poderia ser feita pela intervenccedilatildeo do silogismo racional ou seja atraveacutes
de um percurso demonstrativo560 O uso dessas formas nos modelos hebraicos
mencionados tem por propoacutesito distinguir campos de atuaccedilatildeo secretos de outros natildeo
secretos
Poderia se prosseguir com outros exemplos dada sua profusatildeo mas os trecircs
modelos apresentados satildeo suficientes para que se chegue logo adiante a algumas
conclusotildees Resta esclarecer que o substantivo ldquoesoterismordquo natildeo foi originalmente
uma autodenominaccedilatildeo atraveacutes da qual determinados autores ou ciacuterculos definiram
suas perspectivas O primeiro emprego do termo no sentido de um gecircnero de
procedimento vinculado a uma escolha de comportamento foi feito a posteriori em
1828 no trabalho de Jacques Matter sob contexto do Cristianismo inicial561
Contudo somente em 1990 por meio de Antoine Faivre o Esoterismo eacute introduzido
em acircmbito acadecircmico como ldquoforma de pensamentordquo sendo ampliada sua aceitaccedilatildeo
como um campo de estudos Em sua obra Accegraves de leacutesoteacuterisme occidental o autor
defende um paradigma que pode ser reconhecido pela presenccedila de quatro
caracteriacutesticas intriacutensecas agrave proacutepria definiccedilatildeo de esoterismo agraves quais duas natildeo
intriacutensecas podem ser eventualmente acrescentadas As caracteriacutesticas intriacutensecas
propostas por Faivre tomadas aqui em empreacutestimo pela pertinecircncia agrave temaacutetica
traccedilada satildeo (a) a crenccedila em ldquocorrespondecircnciasrdquo invisiacuteveis e natildeo causais entre todas
as dimensotildees visiacuteveis e invisiacuteveis do cosmo (b) a percepccedilatildeo da natureza como
permeada e animada por uma presenccedila divina ou forccedila vital (c) a concentraccedilatildeo na
imaginaccedilatildeo religiosa como um poder que daacute acesso a niacuteveis de realidades
intermediaacuterios entre o mundo material e Deus e (d) a crenccedila em um processo de
transmutaccedilatildeo espiritual atraveacutes do qual o homem interior eacute regenerado e reconectado
com o divino As duas caracteriacutesticas natildeo intriacutensecas ndash frequentemente mas nem
sempre presentes ndash satildeo (e) a crenccedila em uma concordacircncia fundamental entre vaacuterias
ou todas as tradiccedilotildees espirituais e (f) a ideia de uma transmissatildeo mais ou menos
secreta do conhecimento espiritual562
Conforme sugerido por alguns o paradigma de Faivre melhor se adequa agrave
filosofia hermeacutetica da Renascenccedila e ao contexto romacircntico-iluminista do final do
seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX563 De fato no que concerne ao ambiente renascentista a
560 AVERROacuteIS Discurso Decisivo IV No Artigo XVI Averroacuteis introduz os trecircs meacutetodos esclarecendo que cada
um eacute apropriado para determinada categoria da humanidade sendo o meacutetodo demonstrativo aplicado a um nuacutemero reduzido de pessoas (Artigo LII)
561 Jacques MATTER Histoire critique du gnosticisme et de son influence 1828 Menos de trecircs deacutecadas apoacutes ter sido empregado de forma ldquooficialrdquo na obra de Matter o substantivo ldquoesoterismordquo eacute reconhecido como uma nova palavra com direito a pertencer a um dicionaacuterio em 1852 atraveacutes do Novo Dicionaacuterio Universal de Maurice Lachacirctre onde eacute definido como ldquoa totalidade dos princiacutepios de uma doutrina secretardquo
562 Antoine FAIVRE Access to Western Esotericism 1994 pp10-15 Como aponta Hanegraaff (opcit p340) o valor heuriacutestico da definiccedilatildeo de Faivre eacute inegaacutevel e tem sido adotado por muitos estudiosos como ldquoo paradigma de Faivrerdquo
563 HANEGRAAFF opcit p 340
165
definiccedilatildeo acima condiz precisamente com a forma-pensamento de Pico della
Mirandola de acordo com os pontos destacados no decorrer desta tese Vejamos O
ponto lsquoarsquo referente agraves correspondecircncias invisiacuteveis entre as dimensotildees do cosmo
perpassa as vaacuterias obras de Pico encontrando-se seus sinais sobretudo no Heptaplus
no qual faz corresponder os vaacuterios reinos (ldquotudo que estaacute no mundo inferior estaacute nos
superiores de forma mais elevadardquo)564 A mesma profusatildeo de menccedilotildees se aplica ao
ponto lsquobrsquo sobre a percepccedilatildeo de uma natureza permeada pela presenccedila divina (ldquoo
mundo eacute uno na totalidade das suas partes por ser uno com o seu Autorrdquo)565 O ponto
lsquocrsquo que indica a utilizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeo religiosa para o acesso agraves realidades
intermediaacuterias eacute verificaacutevel nos exemplos de praacuteticas teuacutergicas oacuterficas e cabaliacutesticas
postuladas ndash sobretudo mas natildeo exclusivamente ndash nas Conclusiones O ponto lsquodrsquo
referente a um processo de transmutaccedilatildeo espiritual que reconecta o homem ao
divino eacute o tema fundamental da De Hominis Dignitate Quanto aos dois pontos natildeo
intriacutensecos tem-se no ponto lsquoersquo concernente agrave concordacircncia entre as tradiccedilotildees
espirituais a descriccedilatildeo do projeto de concoacuterdia que justamente se consagrou como o
principal interesse da vida de Pico por fim o ponto lsquofrsquo acerca da transmissatildeo secreta
do conhecimento espiritual eacute o tema desenvolvido neste trabalho Assim se
devecircssemos classificar a obra de Pico de acordo com os paracircmetros de Faivre os seis
itens acima a fariam constar perfeitamente entre os conteuacutedos esoteacutericos
Natildeo se encontra indicado no paradigma de Faivre contudo nem tampouco em
definiccedilotildees usuais acerca do esoterismo quais conteuacutedos devem ser preservados O
tipo de linguagem que demarca o motivo da transmissatildeo secreta apesar das
diferenccedilas de eacutepoca e estilo apresenta claras similaridades em seus usos muitas
vezes repetitivas conforme as palavras de Ascleacutepio ldquoaqueles que leratildeo meus livros
encontraratildeo uma composiccedilatildeo muito simples e clara enquanto ao contraacuterio essa eacute
obscura e esconde o sentido das palavrasrdquo em Clemente ldquoa verdade velada e oculta
estaraacute misturada com opiniotildees sobre Filosofiardquo em Del Medigo ldquoo meacutetodo
demonstrativo eacute impossiacutevel para as massasrdquo Pico absorvendo tais conteuacutedos os
utiliza de forma ampliada na Oratio tratando de Paulo escreve que o apoacutestolo
mantinha [tudo aquilo] ldquooculto do vulgordquo ldquoDioniacutesio Areopagita disse que os
misteacuterios mais secretos foram transmitidos de mente a mente sem escritosrdquo ldquoOrfeu
revestiu os misteacuterios dos seus dogmas com a veste das faacutebulasrdquo566 E acerca das
proacuteprias informaccedilotildees que iria transmitir o Mirandolano advertia que se fosse liacutecito
trazer a puacuteblico alguma coisa dos secretos misteacuterios o faria ldquosob o veacuteu do enigmardquo567
Observa-se que natildeo haacute menccedilatildeo aos conteuacutedos Em alguns casos esses nunca satildeo
revelados em outros apenas sugeridos Haacute no entanto alguns indiacutecios que apontam
para trecircs possiacuteveis conteuacutedos temaacuteticos a serem verificados a seguir
564 PICO Heptaplus p189 565 Ibid p383 566 As passagens da Oratio encontram-se respectivamente nas pgs 157 157 163 567 PICO Oratio p129
166
2 A Concordacircncia teleoloacutegica
Haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o Esoterismo e as tradiccedilotildees agraves quais Pico atribui
pontos de convergecircncia Colocado de outra forma os pontos de confluecircncia relativos
agraves tradiccedilotildees mencionadas na obra piquiana gravitam em torno a especiacuteficos nuacutecleos
de teor esoteacuterico Essa eacute a revitalizada intuiccedilatildeo do Autor que precede seu projeto de
Concoacuterdia Antes dele segundo sua proacutepria confirmaccedilatildeo outros jaacute haviam ingressado
em tal caminho Numecircnio tentara acordar bracircmanes magos egiacutepcios e hebreus
Moiseacutes Pitaacutegoras e Platatildeo Proclo apoacutes tentar a comunhatildeo entre Platatildeo e Aristoacuteteles
abordara a filosofia hieraacutetica atraveacutes de seus comentaacuterios a Orfeu tentando
comprovar a convergecircncia entre as doutrinas caldaicas oacuterficas hermeacuteticas e
platocircnicas568 As tentativas desses autores em concordar doutrinas aparentemente
dessemelhantes seguem um criteacuterio de escolha a partir do qual as escolas ou
doutrinas eleitas participam de meacutetodos de transmissatildeo sigilosa do conhecimento
provavelmente natildeo por coincidecircncia Dentre os diversos registros verificados seja
nas referecircncias esoteacutericas empregadas por seus antecessores seja naquelas
retomadas por Pico consegue-se identificar trecircs niacuteveis ou campos temaacuteticos de
utilizaccedilatildeo do segredo na transmissatildeo (1) o primeiro niacutevel caracteriza-se pela
necessidade de se proteger poderes empregados em atos de trocas entre os reinos (2)
o segundo niacutevel trata de informaccedilotildees referentes aos mundos intermediaacuterios
distribuiacutedos entre o sublunar e a Unidade (3) o terceiro niacutevel protege conteuacutedos
relacionados aos Princiacutepios ou ao Absoluto
1 No primeiro niacutevel o segredo protege os atos que envolvem as trocas
efetuadas entre o mundo sublunar e os supralunares por intermeacutedio de accedilotildees
humanas caracteriza-se portanto como um niacutevel ldquopraacuteticordquo Eacute o caso dos usos de
magia ou teurgia que envolvem ritos para atrair o descenso de forccedilas pertencentes a
esferas superiores dos sons utilizados nos Hinos oacuterficos para certas funccedilotildees dos usos
da Cabala Praacutetica da teurgia de Jacircmblico e Proclo dos rituais realizados nos
Misteacuterios menores para uma regeneraccedilatildeo psiacutequica transitoacuteria todos temas
abordados nos capiacutetulos anteriores Em ambiente hermeacutetico o Asclepius traz
referecircncias claras de praacuteticas para o descenso das forccedilas ndash como o apelo agraves almas dos
daimons e dos anjos para fazecirc-las morar em imagens sagradas de forma que tais
imagens pudessem ter a forccedila de fazer o bem e o mal569 ndash embora os meacutetodos em si
568 Pico teria lido sobre Numecircnio de Apameia em Euseacutebio (Prep Ev IX 7 XI 10 XII 5) conforme indicaccedilatildeo
do proacuteprio em seu prefaacutecio ao Heptaplus (a identificaccedilatildeo da obra de Euseacutebio encontra-se em GARIN 2001 n p 75 que a extraiu de ZELLER a Filosofia dos Gregos (1881) e de MATTER Histoire de lrsquoEacutecole drsquoAlexandrie (Paris 1848 vol III pp234-37) Acerca de Proclo suas reflexotildees encontram-se em Elementos de Teologia conforme Albano BIONDI Conclusiones Nongentae-Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pXXV
569 CORPUS HERMETICUM VIII 24 ed Nock-Festugiegravere 2005 pp557-559 ldquoNossos primeiros antepassados [] inventaram a arte de fazer deuses logo assim que os fizeram vincularam a eles uma virtude adequada inferida da natureza material misturando essa virtude com a substacircncia das estaacutetuas dado que natildeo podiam criar almas propriamente ditas e depois de invocarem as almas de daimons as introduziam em seus iacutedolos por meio de rituais santos e divinos de modo que esses iacutedolos tivessem o poder de fazer o bem e o malrdquo Ainda do ldquoLivro sagrado dedicado a Asclepiusrdquo (opcit 37 p583) ldquoTrata-se de estaacutetuas dotadas de uma alma conscientes cheias de sopro vital e que realizam um nuacutemero incalculaacutevel de prodiacutegios estaacutetuas que conhecem o futuro e o predizem atraveacutes das sortes da inspiraccedilatildeo profeacutetica dos sonhos e de muitos outros meacutetodos que enviam aos homens as enfermidades e as curam que concedem segundo nossos meacuteritos a dor ou a fortunardquo
167
sejam mantidos em segredo Plotino retomaria esse interesse como se lecirc em Eneacuteadas
IV ldquoos antigos saacutebios que quiseram os deuses presentes entre eles construindo-lhes
templos e estaacutetuas entenderam que eacute sempre faacutecil atrair a alma universal mas que eacute
particularmente trabalhoso mantecirc-la a menos que se construa algo afim e capaz de
receber-lhe a participaccedilatildeordquo pois ldquoa imagem figurada de uma coisa estaacute sempre
predisposta a sofrer a influecircncia da coisa copiada como um espelho capaz de
aprisionar a imagem que refleterdquo570 Os modelos hermeacutetico e plotiniano encontram
eco na concepccedilatildeo do bezerro de ouro da versatildeo de Alemanno vista na abordagem do
Heptaplus571
Amostras de correspondecircncias dentro desse campo de atuaccedilatildeo satildeo
apresentadas na obra piquiana na qual satildeo apontadas especiacuteficas similaridades entre
praacuteticas pertencentes a nuacutecleos distintos sobretudo nas teses que compotildeem os
uacuteltimos grupos de suas Conclusiones572 Em muitos casos as formas de magia ou
teurgia protegidas pelo segredo servem para ldquocasar o mundordquo e a partir de entatildeo
ldquoorganizar o caosrdquo como intuiu Pico em 1486573 Esse niacutevel de atuaccedilatildeo eacute via de regra
protegido por elevado grau de sigilo necessaacuterio para uma seguranccedila social ou legal
conforme a eacutepoca e a cultura ou para proteger certos tipos de conhecimento dos
perigos que podem desencadear em matildeos incautas Embora haja certas similaridades
entre algumas praacuteticas nesse niacutevel encontram-se maiores divergecircncias entre os
meacutetodos pelo fato de haver um distanciamento maior da Unidade
2 O segundo domiacutenio de registros esoteacutericos contempla o vasto campo
especulativo que trata da sistematizaccedilatildeo do mundo emanado ou da criaccedilatildeo do reino
da multiplicidade a partir da Unidade Embora distintos sistemas apresentem
diferenccedilas conceituais e lexicais verificam-se iacutentimas correspondecircncias no que
concerne aos niacuteveis de graduaccedilotildees entre os diferentes mundos que foram destacadas
e confirmadas ampla e repetidamente por Pico ndash que caracterizou esse estudo como
ldquometafiacutesica das formas inteligiacuteveis e angeacutelicasrdquo574 A obra piquiana mostra seu esforccedilo
para comprovar que concepccedilotildees teoreacuteticas distintas se conciliam em harmonia
Aquele que entre os cabalistas se chama Metatron eacute sem
duacutevida o que eacute denominado por Orfeo lsquoPallasrsquo por Zoroastro
lsquomente paternarsquo por Mercuacuterio lsquofilho de Deusrsquo por Pitaacutegoras
lsquosabedoriarsquo por Parmecircnides lsquoesfera inteligiacutevelrsquo575
570 PLOTINO Enneadi ed Giuseppe Faggin Bompiani Milano 2010 571 ALEMANNO Collectanaea Manuscrito de Oxford 2234 f 22v apud Moshe IDEL 2008b np 481 Na
concepccedilatildeo de Alemanno o preparo do bezerro de ouro por Moiseacutes eacute tido como necessaacuterio para o recebimento das emanaccedilotildees provenientes do descenso das forccedilas espirituais
572 Vejam-se algumas dessas correspondecircncias na uacuteltima parte do Capiacutetulo III 573 PICO Concl (II) IX 13 (p118) ldquoMagicam operari non est aliud quam maritare mundumrdquo 574 Cf Apologia p 29 ldquointeligibilibus angelicisque formis exactam methaphysicamrdquo 575 Concl (II) XI 10 (p128) ldquoIllud quod apud Cabalistas dicitur Hochmah illud est sine dubio quod ab
Orpheo Pallas a Zoroastre paterna mens a Mercurio dei filius a Pythagora sapientia a Parmenide sphera intelligibilis nominaturrdquo O termo Hochmah assim traduzido por Biondi e escrito no original em caracteres de provaacutevel hebraico foi traduzido por Farmer como Metraton seguindo a interpretaccedilatildeo de Wirszubski que afirma utilizar outras evidecircncias para tal conclusatildeo (cf FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses (1486) - The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 np 524) Optamos pela utilizaccedilatildeo de ldquoMetratonrdquo em nossa traduccedilatildeo ao portuguecircs em razatildeo de sua presenccedila em outras passagens de Pico Com
168
Em sua prospecccedilatildeo da metafiacutesica do Inteligiacutevel Pico identifica as Sefirot
cabaliacutesticas com os nuacutemeros pitagoacutericos e com as dez esferas da ordenaccedilatildeo hermeacutetica
ndash ldquomomentos sucessivos da expansatildeo da divindaderdquo ou ldquoatosrdquo com os quais Deus se
faz presente nas coisas576ndash concepccedilotildees que encontram sustentaccedilatildeo em sua tese
cabaliacutestica 36 ldquoDeus cobriu-se com dez vestimentas quando criou o mundordquo577 Tece
ainda paralelos entre os ldquodez vingadoresrdquo da teoria hermeacutetica e a maligna sequecircncia
denaacuteria da cabala (situada ldquodo lado esquerdordquo) sobre os quais Pico nada escreveu
ldquopor se tratar de um segredordquo578 Outra simetria eacute verificaacutevel entre certos graus
ldquofuncionaisrdquo contemplados no Hermetismo e na Cabala na teoria hermeacutetica da
ascensatildeo da alma pelas esferas a regeneraccedilatildeo da alma se daacute na oitava esfera
chamada ogdoaacutedica ndash relacionada ao nuacutemero oito ndash conforme se depreende do
Corpus Hermeticum XIII tambeacutem na Cabala existe essa concepccedilatildeo relacionada a
uma determinada Sefiraacute conforme estudo de Scholem579 Outra fonte utilizada por
Pico para compor suas correspondecircncias de estratos metafiacutesicos encontra-se nos
textos caldaicos que apresentam passagens com elaboraccedilotildees que unificam os vaacuterios
planos conforme pode ser lido na ordenaccedilatildeo dos Oraacuteculos Caldeus realizada por
Miguel Psello
Sustentam que haacute sete mundos reais um iacutegneo e primeiro trecircs
eteacutereos e trecircs materiais o uacuteltimo dos quais denominado
terrestre e inimigo da luz trata-se da regiatildeo sublunar que aleacutem
do mais encerra em si mesma a mateacuteria a que denominam
abismo [] Homenageiam certo Abismo paterno composto
pela triacuteade Pai Potecircncia e Intelecto Segue-se a Iynga inteligiacutevel
depois os Conectores (compostos de elementos iacutegneos eteacutereos e
materiais) depois os Teletarcas Em seguida os Pais Fontes
referecircncia agrave passagem em questatildeo observa-se que embora com nomenclaturas diferenciadas e pertinentes a cada respectiva tradiccedilatildeo Pico as faz corresponder em termos de posiccedilatildeo ou graduaccedilatildeo dentro do plano do Inteligiacutevel Sobre o mesmo tema Pico escrevera no Commento descrevendo como a mente criada procede do bem primeiro ldquoEssa primeira criatura eacute chamada seja pelos platocircnicos que pelos antigos filoacutesofos Mercuacuterio Trismegisto e Zoroastro ora filho de Deus ora sabedoria mente ou razatildeo divina o qual alguns interpretaram inclusive como Verbordquo (Commento sopra una canzona drsquoamore I 5 1942 p 466) Pico se preocupa em diferenciar a emanaccedilatildeo do primeiro princiacutepio com ldquoaquele que foi chamado por nossos teoacutelogos como lsquofilho de Deusrsquordquo ldquoEd abbi ciascuno diligente avvertenzia di non intendere che questo sia quello che darsquo nostri Teologi egrave detto figliuolo di Dio perchegrave noi intendiamo per il figliuolo una medesima essenzia col padre a lui in ogni cosa equale creatore finalmente e non creatura ma debbesi comparare quello che ersquo Platonici chiamano figliuolo di Dio al primo e piugrave nobile angelo da Dio creatordquo (idem)
576 Cf Cesare VASOLI in ldquoIntroduzionerdquo a Giovanni Pico della Mirandola (Garin 2011) Pico estabelece niacuteveis de correspondecircncias outrossim entre determinados niacuteveis angeacutelicos e certas potecircncias integrantes do Orfismo como pode ser verificado em anaacutelise de Paolo FORNACIARI (2001) ldquoSatildeo inteligecircncias angeacutelicas e divindades homoacutelogas em funccedilatildeo e poder pois entre outras coisas as Potestades satildeo uma lsquodisposiccedilatildeo angeacutelica de tipo intermediaacuterio que eacute purificada iluminada e aperfeiccediloada pelos esplendores da divindadersquo bem como os lsquoCuretirsquo indicados nos Hinos oacuterficos 31 e 38 Em ambos os casos satildeo entidades mediadoras entre o uno e o mundo sensiacutevel geralmente benignos embora com enorme poder sobre o qual o homem deve manter-se consciente e com temor reverencialrdquo
577 PICO Concl (II) XI 36 (p135) ldquo[] cur dicatur apud Cabalistas quod Deus induit se decem vestimentis quando creauit saeculumrdquo
578 PICO Concl (I) VIII 10 (p55) ldquo[] de quibus ego in cabalisticis conclusionibus nichil possui quia est secretumrdquo Na deacutecima tese hermeacutetica Pico denomina os dez vingadores de lsquomala coordinatiorsquo verdadeiras e proacuteprias entidades negativas que se apresentam como o espelho perverso das Sefirot como deduz FORNACIARI (2001)
579 Gershom SCHOLEM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition 1960
169
tambeacutem chamados de lsquoGuias do Mundorsquo sendo o primeiro deles
aquele que se costuma dizer lsquounitariamente mais distantersquo
Finalmente vecircm os trecircs Implacaacuteveis e por uacuteltimo lsquoaquele que
estaacute cercado por baixorsquo580
Embora possa ser tentador investigar os significados das concepccedilotildees
mencionadas buscando seu aprofundamento esse se mostraria um caminho longo e
desnecessaacuterio para o tema tratado O que se pretende relevar ndash aleacutem de expor alguns
exemplos que ilustram o domiacutenio tratado ndash eacute que muitos dos conteuacutedos pertinentes
agraves estratificaccedilotildees dos planos metafiacutesicos ndash niacutevel onde Pico encontra elaboraccedilotildees
espaciais em elevada conformidade ndash envolvem tradiccedilotildees que lidam com a
transmissatildeo esoteacuterica e que compotildeem um segundo tipo de caracterizaccedilatildeo temaacutetica
Esse gecircnero de conteuacutedo encontra mais transposiccedilotildees para a linguagem escrita do
que o modelo anterior e o seguinte apesar de suas abstraccedilotildees constituiacuterem em
muitos casos um veacuteu indecifraacutevel De fato natildeo obstante as temaacuteticas atinentes ao
movimento de criaccedilatildeo e estabelecimento dos graus do muacuteltiplo serem mais
facilmente encontradas em material escrito ndash e portanto menos protegidas pelo
segredo ndash a ocultaccedilatildeo de suas particularidades se daacute por meio do recurso a uma
linguagem miacutetica alegoacuterica ou obscura (fundada sobre semacircnticas e formas
linguiacutesticas diferenciadas conforme a tradiccedilatildeo)
3 O terceiro domiacutenio contemplado pelo Esoterismo inclui em caraacuteter
acessoacuterio as formas de proteccedilatildeo a praacuteticas iniciaacuteticas que visam suplantar estaacutegios do
mundo sensiacutevel e intelectual O tema da ascese em direccedilatildeo agrave Unidade integra as
doutrinas mencionadas na De Hominis Dignitate visitadas no Capiacutetulo IV eacute um dos
conteuacutedos principais tratados no Pimandro hermeacutetico (a ascese a partir ldquodo reino da
natureza e da morterdquo) eacute o objetivo dos atos de contemplaccedilatildeo almejados na Cabala
Extaacutetica As crenccedilas oacuterficas de retorno agrave Unidade apresentam claras analogias com a
soteriologia encontrada no Segundo Tratado hermeacutetico Trismegisto que passara
pela experiecircncia iniciaacutetica da regeneraccedilatildeo diz a seu filho Tat que o ldquohomem
renascido seraacute deusrdquo581 em evidente paralelismo com os dizeres encontrados na
lacircmina oacuterfica de Turi do seacuteculo IV aC ldquoAlegra-te por teres sofrido o que nunca antes
sofreste de homem nasceraacutes um deusrdquo582
Tais processos iniciaacuteticos que objetivam alcanccedilar o mais alto grau da divindade
devem ser vistos como caracteriacutesticas secundaacuterias ou acessoacuterias como acima
disposto A caracteriacutestica efetivamente preciacutepua do terceiro domiacutenio esoteacuterico
encontra-se na proteccedilatildeo ao nuacutecleo concernente agraves Causas Primeiras Em torno a essa
dimensatildeo verifica-se uma confluecircncia doutrinaacuteria observada e relatada por Pico o
580 Francisco Garcia BAZAacuteN ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus 1991 p18 Trecho extraiacutedo da Exposiccedilatildeo
Caldaica de Miguel Psello [42 (54)] que tivera contato com os Oraacuteculos atraveacutes dos textos de Proclo Psello e Plethon realizaram comentaacuterios extensos sobre os Oraacuteculos Caldeus e suas coleccedilotildees foram aumentadas por Franciscus Patricuis que em 1593 publicou em latim aquele conteuacutedo sistematizado em 324 oraacuteculos (Zoroaster et eius 320 Oracula Chaldaica) acrescentando-lhes conceitos de Proclo Heacutermias Simpliacutecio Damaacutescio entre outros Essa obra foi a base da classificaccedilatildeo feita por Thomas Taylor (The Chaldean Oracles London 1806)
581 Corpus Hermeticum XIII opcit p 379 582 Otto KERN Orphicorum Fragmenta fr32 c-f
170
uacuteltimo grau de ordenaccedilatildeo do sistema caldeu coincide com o que se verifica em textos
hermeacuteticos oacuterficos pitagoacutericos e neoplatocircnicos pode-se dizer que seus fins
convergem em direccedilatildeo agravequele nuacutecleo ndash identificado como ldquoiniacuteciordquo e ldquofimrdquo583 Assim
tambeacutem se averigua em outros nuacutecleos investigativos para a possibilidade de tal
ldquoencontrordquo se volta Clemente ao buscar sentidos natildeo literais nas Escrituras de forma
paralela em relaccedilatildeo ao mesmo material voltam-se os cabalistas em suas buscas
interpretativas e contemplativas ndash almejando alcanccedilar o estado de devekut (uniatildeo
com a Divindade)584 e em acircmbito misterioloacutegico esse eacute o propoacutesito para o qual se
dirigem as orientaccedilotildees relacionadas ao alcance da epopteia eleusina Sob registro
filosoacutefico Elia Del Medigo escrevera que o emprego do meacutetodo demonstrativo seria
capaz de comprovar princiacutepios fundamentais ndash por conduzir ao conhecimento das
coisas causadas ldquoe finalmente do Criadorrdquo585
Em torno aos Princiacutepios tem-se pois o norte de chegada das doutrinas
teoloacutegicas filosoacuteficas e algumas ritualiacutesticas partiacutecipes do projeto vislumbrado por
Pico conforme os vaacuterios exemplos apontados na Oratio Para esse fim Pico
direcionou suas principais reflexotildees de teor filosoacutefico que denominou ldquocausas das
coisasrdquo586 como verificaacutevel no De Ente et Uno no qual procurou dirimir o conflito
entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash conforme delineado na abordagem das fundamentaccedilotildees
filosoacuteficas do Autor no Capiacutetulo II Para fazer confluir as doutrinas dos dois
Filoacutesofos foi encetada uma discussatildeo em torno agravequela esfera Da mesma forma para
fazer convergir doutrinas como as caldaicas as pitagoacutericas e as neoplatocircnicas foram
observadas as relaccedilotildees das mesmas com as Causas Primeiras atraveacutes de seus
registros comprovou que os saacutebios caldeus acreditavam ldquoem um Princiacutepio uacutenico de
todas as coisasrdquo celebrando-o ldquocomo Uno e Bemrdquondash587 claro exemplo de uma
protologia natildeo desconhecida As linhas doutrinais percorridas na obra piquiana
partilham pois por vias singulares de concepccedilotildees similares em torno aos ldquofinsrdquo de
formas convergentes de comunhatildeo com a Unidade Nesse grau o sigilo estaacute sempre
presente e seus conteuacutedos quando transmitidos ocorrem apoacutes aacuterdua trajetoacuteria Ora
Pitaacutegoras quando ensinava a seus disciacutepulos natildeo lhes dava o poder de interpretar as
causas das coisas nos primeiros estaacutegios de suas especulaccedilotildees ele lhes ensinava
primeiramente a ldquociecircnciardquo somente no uacuteltimo grau de discipulado ndash o grau de
teleiotecircs correspondente ao telos ndash lhes eram reveladas as Causas os Princiacutepios588
Nesse niacutevel de especulaccedilatildeo por sua proximidade com a proacutepria Unidade muitas das
divergecircncias satildeo diluiacutedas podendo-se falar de uma concordacircncia teleoloacutegica
583 Eugenio Garin (2011 p149) amplia a rede de afinidades acrescendo aos acima mencionados elementos do
pensamento cristatildeo do gnosticismo do platonismo da miacutestica de Satildeo Joatildeo de Paulo e Nicolau de Cusa (apesar como enfatiza das iacutentimas divergecircncias entre cada uma dessas correntes)
584 Veja-se o Capiacutetulo V 585 Veja-se o Item 1 586 Cf Oratio p131 587 Francisco Garcia BAZAacuteN ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus opcit 1991 p18 Os Oraacuteculos Caldeus talvez
por terem tido entre um de seus primeiros comentadores o neopitagoacuterico Numecircnio apresentam muitos elementos pitagoacutericos como a colocaccedilatildeo de uma Mocircnada ndash ou princiacutepio de Unidade ndash no veacutertice das coisas e de uma Diacuteade como princiacutepio do muacuteltiplo
588 Veja-se nota sobre o tema no Item 3 Capiacutetulo IV Cf Jacircmblico Vita Pythagorica 71-72 Dioacutegenes Laeacutercio VIII 10
171
Qual a razatildeo para a natildeo divulgaccedilatildeo de questotildees conceituais referentes aos
uacuteltimos niacuteveis metafiacutesicos Para Oriacutegenes os misteacuterios das Escrituras estatildeo ocultos
sob um veacuteu de coisas ldquovisiacuteveisrdquo para proteger aqueles ldquoincapazes de suportaacute-losrdquo589
Segundo Abulafia ldquoa alma humana natildeo pode suportar o influxo direto da inteligecircncia
superior graccedilas a certos ldquonoacutesrdquo que a mantecircm atada agrave mateacuteriardquo Maimocircnides de
forma mais extrema dizia que a nocividade da sabedoria metafiacutesica requer sua
transmissatildeo em alegorias pois ldquoaqueles que tentam compreender seus segredos sem
a devida preparaccedilatildeo seratildeo destruiacutedosrdquo590 O que se depreende de vaacuterias passagens
desse gecircnero eacute que o movimento em direccedilatildeo agrave cognoscibilidade comporta
necessariamente a ocultaccedilatildeo de tudo aquilo que natildeo pode ser compreendido pelo
intelecto finito Em termos teoloacutegicos a divindade soacute pode ser apreendida atraveacutes de
uma paulatina revelaccedilatildeo de sua verdade Pico utiliza uma linguagem mais requintada
para referir-se agrave mesma condiccedilatildeo ldquoAs doutrinas sagradas estatildeo escondidas sob
termos populares como dentro de uma concha para que os olhos menos agudos natildeo
sejam ofuscados Trazem pois a luz para beneficiar aos satildeos mas a trazem escondida
e velada para natildeo ofender aos homens de vista fraacutegilrdquo591
O ldquoponto de chegadardquo sugerido na argumentaccedilatildeo proposta constitui uma
justificativa para a utilizaccedilatildeo de categorias esoteacutericas Tal dimensatildeo natildeo se configura
como um patamar atingiacutevel por especulaccedilotildees filosoacuteficas As aporias encontradas ao
final de um percurso dialeacutetico natildeo se resolvem por aproximaccedilotildees da razatildeo mas pela
ocupaccedilatildeo de um espaccedilo proacuteprio caracterizado por todas as tradiccedilotildees que tratam com
fenocircmenos iniciaacuteticos Vislumbra-se pois a existecircncia de um ldquoabismordquo ndash um
ldquoespaccedilordquo entre o muacuteltiplo e o Uno natildeo ultrapassaacutevel por procedimentos intelectuais
ndash sugerido ou subentendido pelas formas linguiacutesticas utilizadas nas tradiccedilotildees
esoteacutericas Pico tentara elucidar a concepccedilatildeo ldquoo abismo eacute a capacidade inteligiacutevel no
profundo pois penetrante e perscrutadora acima dessa encontra-se a escuridatildeo ateacute
que seja iluminada pelos raios das cogniccedilotildees espirituaisrdquo592 Quando o intelecto se
apaga quando a escada utilizada para elevar-se eacute abandonada a funccedilatildeo da miacutestica eacute
entatildeo exercida aquele espaccedilo eacute alcanccedilaacutevel atraveacutes das transformaccedilotildees do miacutestico
que decorrem de seu contato com a divindade ndash as denominadas proteccedilotildees
ldquoacessoacuteriasrdquo dentro dos modelos apresentados de Esoterismo A forma de alcanccedilar tal
fim havia sido ademais sinalizada na Oratio dos trecircs niacuteveis supra-humanos aos
quais o homem pode elevar-se o niacutevel celeste eacute acessiacutevel pela razatildeo o niacutevel angeacutelico
pela dialeacutetica que permite o alcance do Inteligiacutevel o uacuteltimo niacutevel de conhecimento
do Absoluto ou da ldquounidade do espiacuterito com Deusrdquo poderaacute ser alcanccedilado atraveacutes do
589 Apud BLACK op cit pp103-104 590 MAIMOcircNIDES Dux neutrorum (Guia dos Perplexos) III 54 apud Naomi GOLDFELD Elia del Medigo e
lrsquoaverroismo hebraico in BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 45 Maimocircnides nessa passagem refere-se ao relato da entrada de quatro rabinos no Pardes nem todos preparados para receber ldquoa verdaderdquo conforme sua leitura do Talmud Babilocircnico Hagigah 15a
591 PICO Heptaplus P1 p180 ldquoNos credere possumus satisfactum rudibus auditoribus si lumen scientiae quod introspicerent sapientes crassioribus verbis quasi cornea texta circumdatum obduxerit ne hebetiores inde Oculi perstringerentur Attulerit ergo lumen ut sanis oculis proforet inclusum tamen et velatum attulerit ne lippientibus officeretrdquo
592 Heptaplus III p253 ldquoAbyssus intellectualis proprietas est profunda quaeque penetrans et perscrutans Super hanc tenebrae sunt donec spiritalium notionum quibus omnia videt et intuetur radiis non illustraturrdquo
172
processo asceacutetico que reconduz ao ldquocentro da proacutepria unidaderdquo593 Haacute pois uma
dimensatildeo natildeo ultrapassaacutevel para a qual a Theoriacutea594 conduz por intermeacutedio de suas
filhas a Filosofia e a Teologia a uacutenica forma de ir aleacutem eacute atraveacutes do ecircxtase miacutestico
situaccedilatildeo extrema apontada em vaacuterias das tradiccedilotildees pelas quais Giovanni Pico
transitou e para a qual encetou sua proacutepria reflexatildeo
3 A Morte do Beijo
Um dos pontos mais elevados da reflexatildeo piquiana encontra-se no recurso de
conceituaccedilatildeo biacuteblico-cabaliacutestica referente agrave ldquomors osculirdquo ldquomorte do beijordquo uma das
possiacuteveis definiccedilotildees do ecircxtase miacutestico O tema trata de uma relaccedilatildeo extaacutetica em que
dois amantes um terreno e outro celeste alcanccedilam a comunhatildeo A concepccedilatildeo
(poeacutetica miacutestica e filosoacutefica)595 descreve a morte figurada que ocorre por ocasiatildeo da
separaccedilatildeo da alma dos acidentes do mundo sensiacutevel quando essa se vecirc colhida em
um transporte transcendente simbolizado pela troca do beijo miacutestico O tema eacute
sintetizado por Pico nas teses cabaliacutesticas 11 e 13 ldquosecundum opinionem propriamrdquo e
ampliado no Commento sopra una canzona drsquoamore composta da Girolamo
Benivieni Conforme a conclusio cabalistica 11
O modo atraveacutes do qual as almas racionais satildeo sacrificadas a
Deus por intermeacutedio do Arcanjo natildeo especificado pelos
Cabalistas somente ocorre por via da separaccedilatildeo da alma do
corpo natildeo do corpo da alma exceto por acidente como
acontece na Morte do Beijo sobre a qual estaacute escrito lsquoPreciosa
na presenccedila do Senhor a morte de seus santosrsquo596
O fenocircmeno da separaccedilatildeo da alma do corpo conforme acima mencionado eacute
melhor descrito no Commento ldquoAgraves vezes se diz que a alma estaacute separada do corpo
mas natildeo o corpo dela e isto eacute quando cada uma das forccedilas da alma exceto a que o
corpo nutre chamada vegetativa estaacute ligada mas natildeo opera em nada como se natildeo
593 PICO Oratio p107 ldquo[] in unitatis centrum suae se receperit unus cum Deo spiritus factus in solitaria
Patris caliginerdquo 594 O termo se adequa agrave concepccedilatildeo grega do vocaacutebulo θεωρία ldquoespeculaccedilatildeo ou vida contemplativardquo conforme a
tradiccedilatildeo pitagoacuterica 595 A colocaccedilatildeo eacute de Paolo Fornaciari que adiciona a qualificaccedilatildeo ldquoplatocircnicardquo ao conteuacutedo O comentador
considera a recuperaccedilatildeo dessa ldquoverdadeira hierogamiardquo um dos aportes mais originais que Pico empresta da Cabala ao Cristianismo um dos instrumentos mais eficazes de sua tatildeo almejada ascensatildeo agrave pax unificardquo (FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 pp24-25)
596 Concl II XI 11 p128 ldquoModus quo rationabiles animae per archangelum Deo sacrificantur qui a Cabalistis non exprimitur non est nisi per separationem animae a corpore non corporis ab anima nisi per accidens ut contigit in morte osculi de quo scribitur lsquopraeciosa in conspectu domini mors sanctorum eiusrsquordquo Pico extrai o uacuteltimo trecho de Salmos 116 15-16 Como ajuiacuteza Paolo FORNACIARI (ibid np41) a ldquomorte do beijordquo em latim ldquomors osculirdquo em hebraico ldquomytat benesiqahrdquo eacute um tiacutepico exemplo de cruzamento entre temas platocircnicos [que podem ser melhor depreendidos da leitura do Commento] e cabaliacutesticos A relaccedilatildeo extaacutetica eacute tambeacutem retratada no Cacircntico dos Cacircnticos entre Salomatildeo e sua amada que a leitura anagoacutegica identifica como Deus e sua relaccedilatildeo com Israel inteiramente de acordo com o tema cabaliacutestico do matrimocircnio miacutestico entre a sefiraacute Yesod (o fundamento mas tambeacutem a virilidade) e Knesset Israrsquoel (a comunidade dos fieacuteis) (ibid p24)
173
estivesse em nadardquo Tal situaccedilatildeo ocorre continua o texto quando a parte intelectual ndash
chamada por Pico ldquorainha da almardquo ndash estaacute em ato e operante natildeo sofrendo em si o
ato de qualquer outra potecircncia597 Essa condiccedilatildeo entre a alma e o corpo eacute chamada
ldquoprimeira morterdquo598
Atraveacutes da primeira morte que eacute a separaccedilatildeo apenas da alma do
corpo e natildeo o contraacuterio a amada Vecircnus celestial poderaacute
portanto ver o amante e esse estar face a face com ela
contemplando sua imagem divina e com seus olhos purificados
assim se alimentar599
O amante representa a mente600 ou a parte intelectual da alma que se une
ldquoem amorrdquo com algum niacutevel natildeo esclarecido do Inteligiacutevel Pico chama ainda a
atenccedilatildeo para o fato de o eventual ecircxtase alcanccedilado envolver o risco de uma segunda
morte a final A excessiva prolongaccedilatildeo do estado de ecircxtase marca um dos eventos
capazes de ocasionar a segunda morte ldquose muito se fortalecer e prolongar a operaccedilatildeo
intelectual eacute necessaacuterio que desta uacuteltima parte vegetativa a alma tambeacutem se separe
de forma que ela do corpo e o corpo dela sejam separadosrdquo Haacute outra forma de
deflagrar a segunda morte indicada no Commento atraveacutes de uma obscura
advertecircncia em relaccedilatildeo a outro tipo de relaccedilatildeo que o praticante possa pretender ldquoE
note-se que a uniatildeo mais perfeita e iacutentima que o amante possa ter com a amada
celestial eacute denotada pela uniatildeo do beijo porque qualquer outro congresso ou coacutepula
usado no amor corporal natildeo eacute liacutecito usar em qualquer forma de transfiguraccedilatildeo601
neste santo e sagradiacutessimo amorrdquo602 Em caso de tal pretensatildeo o Autor daacute a entender
que a segunda morte pode ser almejada
Quem ainda mais intrinsecamente quiser possuiacute-la e natildeo
contente em vecirc-la e ouvi-la quiser ser digno dos seus abraccedilos
iacutentimos e beijos anelantes deve separar-se de si mesmo
totalmente atraveacutes da segunda morte do corpo e entatildeo natildeo soacute
ver e ouvir a Vecircnus celestial mas com um noacute indissoluacutevel
abraccedilaacute-la e com beijos de um ao outro sua proacutepria alma
597 A uacutenica potecircncia que ainda pode operar na alma nesse estado acresce Pico ldquoeacute a potecircncia nutritiva cujas
operaccedilotildees por seu grande distanciamento da alma natildeo satildeo de todo anuladas por seus atos embora muito debilitadasrdquo (Commento pp557-558)
598 Como informa Giulio BUSI (Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 p66) a ldquoprimeira morterdquo do corpo no leacutexico neoplatocircnico eacute o resultado do encaminhar-se em um percurso contemplativo que leva agrave morte figurada ou filosoacutefica
599 Commento p557 O texto original natildeo foi escrito em latim mas em italiano ldquoPuograve dunque per la prima morte che egrave separazione solo dellrsquoanima dal corpo e non per lrsquoopposito vedere lo amante lrsquoamata venere celeste e a faccia a faccia con lei ragionando della divina immagine sua ersquo suoi purificati occhi felicemente pascererdquo
600 Cf nota de Eugenio Garin agrave sua traduccedilatildeo do Commento (1942 np 557) 601 No texto original a palavra utilizada eacute lsquotraslazionersquo que Garin corrige em nota agrave traduccedilatildeo como
lsquotransunzionersquo (ed Vallecchi 1942 p 558) 602 Commento pp557-558 ldquoE nota che la piugrave perfetta e intima unione che possa lrsquoamante avere della celeste
amata si denota per lrsquounione del bacio perchegrave ogni altro congresso o copula piugrave in lagrave usata nello amore corporale non egrave licito per alcuno modo per traslazione alcuna usare in questo santo e sacratissimo amorerdquo
174
transfigurar estando tatildeo perfeitamente unidas que ambas
podem ser chamadas de uma soacute alma603
Nas Conclusiones Pico retoma a questatildeo da segunda morte do corpo dessa
vez em razatildeo de algum tipo de imperiacutecia praticado durante o ldquointercursordquo O preccedilo a
pagar estaacute bem expresso na conclusio cabalistica 13
Quem operar em Cabala sem a presenccedila de algum estranho se
exporaacute agrave binsica [Morte do Beijo] caso se prolongue muito no
trabalho E se cometer erros durante o trabalho ou se
aproximar deste sem a devida purificaccedilatildeo seraacute devorado por
Azazel de acordo com suas proacuteprias regras de justiccedila604
O Commento natildeo ultrapassa essas poucas indicaccedilotildees e seu autor deixa claro
que ldquonatildeo lereis nada a mais em seus livros [dos cabalistas] a natildeo ser que binsica isto
eacute a morte do beijo ocorre quando a alma no rapto intelectual se une agraves coisas
separadas e do corpo elevada em tudo o abandonardquo605 Provavelmente Pico obteve as
referecircncias sobre a Morte do Beijo atraveacutes de suas leituras de Maimocircnides que no
final do seacuteculo XI havia retomado do Talmud o tema do beijo divino oferecendo no
Guia dos Perplexos uma profunda exegese do assunto relacionando o uacuteltimo
intercurso ao desvanecimento do corpo na velhice condiccedilatildeo necessaacuteria para que o
impulso vital se transformasse em ldquopuro pensamentordquo606 Ou pode ter lido sobre o
assunto em Menachem Recanati outra de suas fontes que acerca do binsica elaborou
uma ldquoviagem extrema e alienanterdquo607 tendo legado um passo importante por
descrever de forma bastante detalhada o percurso miacutestico que pode conduzir ao
beijo beatificante e letal
Os padres morriam de um beijo Quando os pios e os homens de
accedilatildeo se encontravam em solidatildeo e imersos nos segredos
supernos a faculdade imaginativa de seus pensamentos fazia
que as coisas se mostrassem como gravadas perante eles E
603 Commento p557 ldquoma chi piugrave intrinsicamente ancora la vuole possedere e non contento del vederla e
udirla essere degnato dersquo suoi intimi amplessi e anelanti baci bisogna che per la seconda morte dal corpo per totale separazione si separi e allora non solo vede e ode la celeste Venere ma con nodo indissolubile a lei srsquoabbraccia e con baci lrsquouno in lrsquoaltro la propia anima trasfudendo non tanto cambiano quelle quanto che sigrave perfettamente insieme si uniscono che ciascheduna di loro dua anime e ambedue una sola anima chiamare si possonordquo
604 Concl II XI 13 p128 ldquoQui operatur in Cabala sine admixtione extranei si diu erit in opera morietur ex binsica et si errabit in opere aut non purificatus accesserit deuorabitur ab Azazele per proprietatem iudiciirdquo Conforme FORNACIARI (2009 np42) para atingir o estado de ldquobinsicardquo ou a ldquomorte do beijordquo a alma racional que aspira agrave separaccedilatildeo da alma do corpo deve encontrar-se soacute Azazel na demonologia cristatilde eacute uma das sete epifanias do lado maligno Provavelmente Pico tomou o conceito de Azazel de Abulafia e de seu comentaacuterio ao Guia dos Perplexos de Maimocircnides que lhe foi traduzido por Mitridate
605 Commento p558 ldquonegrave piugrave nersquo loro libri leggerai se non che binsica cioegrave morte di bacio egrave quando lrsquoanima nel ratto intellettuale tanto alle cose separate si unisce che dal corpo elevata in tutto lrsquoabbandonardquo O Binsica que fecha o Commento eacute na opiniatildeo de BUSI (2014 p68) o mais afortunado entre os hiacutebridos piquianos retomado posteriormente por renomados como Baldassare Castiglione e Giordano Bruno Na continuidade da passagem Pico narra que os cabalistas mencionam que alguns de seus padres ldquomorreram de binsica como eacute o caso de Abraatildeo Jacoacute Moiseacutes Aaron Maria e alguns outrosrdquo Pico provavelmente extrai isso do Talmud da Babilocircnia que apresenta passos com essas menccedilotildees
606 BUSI opcit 2014 p69 607 Cf traduccedilatildeo de Giulio Busi 2014 p70
175
enquanto uniam suas almas agrave alma superior as coisas se
multiplicavam e se revelavam da fonte do pensamento como
quem abre uma cisterna drsquoaacutegua que comeccedila a fluir O
pensamento unido eacute de fato como fonte e cisterna que natildeo se
exaure [] Graccedilas agrave uniatildeo do pensamento com a emanaccedilatildeo as
palavras se multiplicam e crescem e surgem na alegria Por isso
foi ensinado que lsquoa Sekinah natildeo se manifesta na indolecircncia mas
na alegriarsquo608
As vaacuterias faces do misticismo de Giovanni Pico devem ser unificadas a partir
de evidecircncias amplamente dispersas nas Teses e confirmadas por discussotildees
retomadas em outras obras O tema da ascensatildeo miacutestica que ocorre antes da uniatildeo
extaacutetica sugerida pela imagem da Morte do Beijo eacute tambeacutem desenvolvido no
Commento Em uma interpretaccedilatildeo pessoal da tradicional escada platocircnica do
amor609 Pico relata a ascensatildeo em sete passos que envolvem uma progressatildeo ao
conhecimento ndash ldquoconhecimento reflexivordquo em seus termos ndash com a gradual
transformaccedilatildeo aniacutemica do sensual para o racional e sucessivamente para as
faculdades inteligiacuteveis Nos uacuteltimos graus de ascese o quinto e o sexto a alma
alcanccedila a ldquoVecircnus celestialrdquo (o inteligiacutevel ou a mente angeacutelica) que se lhe revela em sua
proacutepria imagem ndash embora ainda natildeo com a ldquoplenitude total de sua belezardquo pois que
esta natildeo pode ser apreendida pelo intelecto particular ou ldquoparcialrdquo da alma Assim
atraveacutes do amor a alma une seu intelecto parcial ao inteligiacutevel universal a ldquoprimeira
das criaturas a uacuteltima e universal hospedagem da beleza idealrdquo610
O seacutetimo passo da exposiccedilatildeo piquiana contempla o termo da trajetoacuteria um
estado de quietismo sugerido pela suacutebita mudanccedila de paradigma de linguagem ndash de
ativa durante o processo intelectual para passiva ao descrever o estaacutegio mais
elevado da ascensatildeo miacutestica ndash como bem observou Stephan Farmer611 ao final de seu
percurso quando o homem nada mais pode alcanccedilar por meio de seus proacuteprios
recursos a alma eacute ldquoatraiacutedardquo ldquopossuiacutedardquo ldquointoxicadardquo ldquoconsumidardquo ldquoinspiradardquo
ldquoiluminadardquo ldquoaperfeiccediloadardquo e finalmente ldquofelicitadardquo por Deus Em tal ponto
608 Menachem RECANATI Bersquour lsquoal ha-Torah Lemberg Wa-yehi 1880-81 c37d apud BUSI 2014 p70 A
fonte agrave qual Recanati recorre para dar um conteuacutedo teoacuterico agrave passagem eacute Azriel de Gerona atraveacutes de seu Comentario agraves aggadot talmuacutedicas A concepccedilatildeo de Sekinah estaacute relacionada com a ideia de contraccedilatildeo da Presenccedila Divina presente na literatura midraacuteshica conforme verificado no Capiacutetulo V Aqui quer significar o espaccedilo da emanaccedilatildeo divina Maiores detalhes podem ser vistos em BUSI 2011 p21
609 Cf FARMER opcit p110 610 Commento pp 567-569 Pico remete-se ao Banquete e ao Fedro para efetuar sua exposiccedilatildeo conforme sua
proacutepria indicaccedilatildeo (ibid p567) No primeiro dos sete passos de sua progressatildeo ao conhecimento a beleza particular de um objeto eacute percebida pelos sentidos e eacute desejada por si mesma No segundo passo a beleza sensual eacute abstraiacuteda pela capacidade inerente agrave alma embora ainda permanecendo distante de sua origem No terceiro passo a alma ldquoconsidera a proacutepria natureza da beleza corporal em si mesmardquo contemplando a ldquobeleza universal de todos os corpos compreendidos em conjuntordquo A beleza corpoacuterea desempenha um papel apenas nesses trecircs primeiros passos No quarto passo a alma conclui que a visatildeo da beleza corpoacuterea universal natildeo procede de um objeto exterior sensiacutevel mas de sua proacutepria luz e poder intriacutensecos e assim transformando-se em si mesma vecirc a imagem de beleza ideal que participa do intelecto No quinto passo fundamentando-se no conhecimento ldquoreflexivordquo a alma se eleva de sua parte racional para sua parte intelectual permitindo-se acolher a ldquoVecircnus celestialrdquo em sua proacutepria imagem Por fim a alma se une ao intelecto universal atraveacutes do amor A realizaccedilatildeo dessa uniatildeo na sexta etapa conclui sua jornada pois natildeo lhe eacute permitido ir mais longe no seacutetimo grau ndash no qual deve descansar com alegria ao lado do primeiro Pai a fonte da beleza
611 FARMER pp39 ss 112
176
terminal Pico faz convergir o percurso filosoacutefico com a experiecircncia religiosa ao
sugerir que no cume do processo gnosioloacutegico do homem ndash que atribui aos
platocircnicos chamar de ldquounidade da almardquo ndash a alma ldquose une imediatamente a Deusrdquo612
De suas leituras socraacuteticas apreendera que o ecircxtase miacutestico era comparaacutevel ao
reencontro com a eternidade inteligiacutevel em um estado de contemplaccedilatildeo que sacia a
alma e a coloca frente a frente com a plenitude de cada realidade613 Concepccedilatildeo
similar fora descrita em termos religiosos na De Hominis Dignitate na qual se lecirc
que em seu estado miacutestico mais elevado o homem eacute ldquofeito um soacute espiacuterito com Deusrdquo
deixando de ser ele mesmo e passando a ser ldquoAquele mesmo que o fezrdquo614
A concepccedilatildeo da Morte do Beijo pode ser tomada como um bom modelo do
ldquofimrdquo ndash temporaacuterio na ldquoprimeira morterdquo ou definitivo na ldquosegundardquo ndash para o qual
convergem muitas das argumentaccedilotildees piquianas de teor esoteacuterico Tal concepccedilatildeo de
caraacuteter precipuamente teoloacutegico coaduna-se com o seacutetimo grau do percurso
filosoacutefico dialeacutetico postulado no Commento estaacutegio que fora sinteticamente exposto
na Conclusio 58 in doctrina Platonis
A caccedilada de Soacutecrates[] pode ser adequadamente dividida em
seis graus o primeiro eacute a existecircncia de mateacuteria externa o
segundo a existecircncia particular imaterial o terceiro a existecircncia
universal o quarto a existecircncia racional o quinto a existecircncia
inteligiacutevel particular o sexto a existecircncia inteligiacutevel total No
seacutetimo grau eacute preciso desistir da caccedilada615
612 Commento p479 ldquoel sommo di questa parte intellectiva chiamano ersquo Platonici unitagrave della anima [hellip]rdquo 613 Nicolas GRIMALDI Soacutecrates o Feiticeiro pp57-58 60-61 Haacute vaacuterias passagens nas quais Soacutecrates tece
analogias entre o ecircxtase miacutestico e o reencontro da alma com o Inteligiacutevel As analogias se relacionam ao deliacuterio amoroso (Fedro 265 a-b) ao deliacuterio poeacutetico (Iacuteon 534 b-d) e tambeacutem ao deliacuterio loacutegico mesmo que ldquoem estado de deliacuteriordquo deve haver juacutebilo ldquoem sentir-se arrebatado pela eternidaderdquo (Feacutedon 69 c-d)
614 Oratio pp123-125 615 PICO Conclvsiones II V 58 (grifo nosso) ldquoVenatio illa Socratis de qua in Protagora conuenienter per sex
gradus potest sic distribui ut primus sit esse materiae extrinsecae secundus esse particulare immateriale tertius esse uniuersale quartus esse rationale quintus esse particulare intellectuale sextus esse totale intellectuale in septimo tanquam in sabbato cessandum est a uenationerdquo Eugenio Garin ao rodapeacute da passagem corrige ldquointelectualrdquo utilizado por Pico por ldquointeligiacutevelrdquo O tema eacute extraiacutedo do Protaacutegoras (321 b ss) conforme informado pelo proacuteprio Pico na mencionada passagem
177
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
As obras de Pico della Mirandola analisadas ndash Conclusiones Nongentae De
Hominis Dignitate e Heptaplus ndash embora bastante distintas em termos de forma
conteuacutedo e propoacutesito apresentam em comum um amplo emprego de referecircncias
retiradas de doutrinas que se perpetuaram atraveacutes do Esoterismo Os elementos
pertinentes a esse campo coletados nas trecircs obras evidenciam que as reflexotildees do
Autor se apropriam daqueles conteuacutedos reutilizando-os em formas hermenecircuticas
proacuteprias Conforme o intento proposto para esta tese foram identificadas tais
referecircncias cuja inserccedilatildeo em meio agraves argumentaccedilotildees se faz de forma fluiacuteda sem
instituir contrastes com categorias do universo filosoacutefico A verificaccedilatildeo de constantes
repeticcedilotildees desses modelos permite que seu conjunto seja estabelecido como uma
categoria proacutepria do pensamento piquiano Um objetivo secundaacuterio foi mostrar que o
recrutamento de tais elementos mostra-se no decorrer da leitura das obras uma
condiccedilatildeo essencial para o alcance de suas siacutenteses
A anaacutelise das Conclusiones realizada no Terceiro Capiacutetulo permitiu que
algumas constataccedilotildees fossem dispostas Entre o conglomerado de sistemas presentes
na obra foi visto que alguns temas despertam maior interesse do Autor vindo a se
condensar nas teses que integram os uacuteltimos grupos da obra Embora natildeo
apresentadas em formato argumentativo as teses dos quatro uacuteltimos grupos (que
tratam de doutrinas maacutegicas oacuterficas caldaicas e cabaliacutesticas) apresentam em seu
conjunto um postulado doutrinaacuterio de acentuado tom esoteacuterico cujos indiacutecios
conceituais satildeo verificaacuteveis no percurso das demais obras piquianas O mesmo
Capiacutetulo expotildee especiacuteficas teses de cunho teoloacutegico-cristatildeo que poderiam soar
estranhas dentro de uma investigaccedilatildeo que tem por objetivo tratar da utilizaccedilatildeo de
paradigmas esoteacutericos Essa abordagem mostrou-se uacutetil por permitir evidenciar
primeiramente que o Pico que se aproxima de teologias natildeo-cristatildes o faz como
algueacutem em posse de efetivo conhecimento daquele campo em segundo lugar a
verificaccedilatildeo do material teoloacutegico permitiu a discussatildeo da relaccedilatildeo feacute-razatildeo no
pensamento piquiano necessaacuteria para a compreensatildeo da teleologia envolvida em sua
busca por convergecircncias doutrinaacuterias A partir dessa abordagem foi possiacutevel
constatar que a visatildeo piquiana de religiatildeo estaacute relacionada em um primeiro
momento a uma busca racional (pois ldquoa feacute que eacute simples disposiccedilatildeo a crer eacute inferior
agrave razatildeordquo) busca essa que no entanto deve ser abandonada em seu uacuteltimo estaacutegio
(pois ldquoa feacute verdadeira eacute superior ao intelecto conjugando-nos imediatamente a
Deusrdquo)
Na De Hominis Dignitate tratada no Quarto Capiacutetulo verificou-se que a
concepccedilatildeo de dignidade do homem em Pico eacute diretamente relacionada agrave ideia de
transcendecircncia de cada um de seus princiacutepios ndash vegetal animal racional intelectual
ndash apontando em direccedilatildeo agrave necessidade de exerciacutecios para a efetivaccedilatildeo de sua
liberdade ndash condiccedilatildeo que capacita o homem a encetar um percurso de auto
178
transformaccedilatildeo Assim o apregoado processo de transmutaccedilatildeo atraveacutes do qual o
homem inferior eacute regenerado e reconectado com o divino eacute entendido pelo Escritor
como um caminho a ser percorrido com o auxiacutelio de corretas ferramentas Os sete
modelos de processos triaacutedicos examinados extraiacutedos de registros histoacutericos
defendidos na obra ndash a dialeacutetica platocircnica o modelo angeacutelico pseudo-dionisiacuteaco a
misteriologia grega os paradigmas miacuteticos de Dioniso e Osiacuteris a representaccedilatildeo do
tabernaacuteculo da tradiccedilatildeo hebraica as praacuteticas asceacuteticas pitagoacutericas e a misteriologia
caldaica ndash fundamentam-se na tradiccedilatildeo oral ou na utilizaccedilatildeo de formas de linguagem
enigmaacuteticas que encobrem seus verdadeiros significados Os sete paradigmas de
trajetoacuterias asceacuteticas apontam na uacuteltima etapa para a experiecircncia de encontro com
um centro de unidade termo da trajetoacuteria em que o movimento asceacutetico atinge o
Absoluto
O mesmo fim eacute postulado atraveacutes do seacutetuplo meacutetodo de interpretaccedilatildeo proposto
por Pico no Heptaplus que representa uma clara indicaccedilatildeo de preparaccedilatildeo do homem
ndash no qual se encerra um princiacutepio metafiacutesico de contenccedilatildeo de todos os niacuteveis de
realidade ou dos Mundos analogados na obra ndash que culmina em sua unificaccedilatildeo com
o divino O Sexto Capiacutetulo testifica que para erigir seu projeto de teoria global de
representaccedilatildeo do mundo o Autor recruta registros que se fundamentam sobre
transmissotildees orais a comprovaccedilatildeo de idoneidade de Moiseacutes principal alicerce
referencial sobre o qual se edifica o projeto do Heptaplus eacute concebida a partir de
testemunhos retirados em sua totalidade de fontes esoteacutericas ndash ou tidas como
esoteacutericas ndash como os Misteacuterios gregos e egiacutepcios o pitagoacuterico Hermipo Pseudo-
Dioniacutesio os disciacutepulos de Amocircnio e ainda Platatildeo Jesus e seus disciacutepulos Paulo e
Joatildeo Satildeo assim utilizados mais uma vez paracircmetros utilizados em obras
anteriores ndash nesse caso para defender a autoridade de Moiseacutes paradigma essencial
em sua representaccedilatildeo do ser que alcanccedilou o uacuteltimo estaacutegio de uniatildeo com o divino
No uacuteltimo Capiacutetulo argumentou-se que o apelo a uma dimensatildeo alcanccedilada por
intermeacutedio de uma experiecircncia miacutestica pessoal eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para que se
alcance o ldquofimrdquo apregoado nas obras piquianas Em De Ente et Uno Pico havia
refletido que soacute a razatildeo natildeo seria garantia de obtenccedilatildeo de qualquer resposta
postulando a impossibilidade de se colher Deus com o simples recurso do intelecto
ldquoo homem enquanto criatura racional se debate em vatildeo entre a necessidade de
afirmar a unidade que sente em sua proacutepria raiz e a impossibilidade derivada de sua
mesma subsistecircncia como natureza racional de alcanccedilaacute-la mantendo-se ele mesmordquo
Deparar-se com o abismo que o separa da Divindade mostra-se inevitaacutevel O ecircxtase
miacutestico eacute um caminho que possibilita realizar tal travessia A linguagem miacutetica ou
alegoacuterica por sua vez natildeo apenas protege tal dimensatildeo iniciaacutetica como permite a
apreensatildeo intelectual de tal fenocircmeno A Morte do Beijo a epopteia eleusina a visatildeo
de Moiseacutes no Sinai a illuminatio angeacutelica a contemplaccedilatildeo do ldquosol do meio-diardquo
agostiniano o devekut cabaliacutestico representam momentos de unidade temporaacuteria ndash
a ldquoprimeira morterdquo descrita por Pico ndash que espelham a dissoluccedilatildeo na Unidade final
179
Apesar de aparentemente fragmentaacuteria a obra de Giovanni Pico acolhe torna
suas e finalmente refaz sob outros prismas as perguntas filosoacuteficas mais difiacuteceis A
sua tentativa de obter respostas eacute ampliada pelo acreacutescimo de um novo paradigma
categorial Mais do que isso a utilizaccedilatildeo da categoria esoteacuterica torna-se condiccedilatildeo
absolutamente necessaacuteria para o alcance do fim apontado em suas obras Resta
pontuar que o conjunto da obra piquiana natildeo se mostra algo distante pois de fato ali
estaacute relatada natildeo uma meta atingida mas uma perene busca Esse caminho encontra-
se descrito no De Ente et Uno qual uma previsatildeo pessoal natildeo intencional na qual o
Autor intui que ldquoo processo de colher Deus natildeo resulta em uma unidade que se
determina e resolve para sempre mas sim de um processo de unificaccedilatildeo que
procede ao infinitordquo
180
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
1 Fontes Primaacuterias
Traduccedilotildees de obras de Giovanni Pico della Mirandola
De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Eugenio Garin (org) Firenze Vallecchi 1942
Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Albano Biondi (org) Firenze Leo S Olschki 19952013
Conclusiones Cabalisticae Paolo Edoardo Fornaciari (org) Milano Mimesis 2009
Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Paolo Edoardo Fornaciari (org) Milano Mimesis 2009
Disputationes adversus Astrologiam Divinatricem Eugenio Garin (org) Vol I e II Firenze Vallecchi 1946-1952
Discorso sulla Dignitagrave dellrsquouomo Francesco Bausi (org) Parma Guanda 2003
Oratio de Hominis Dignitate Trad Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Ediccedilotildees 70 2001
A Dignidade do Homem Trad Luiz Feracine Campo Grande Solivros 1999
Heptaplus La Settemplice Interpretazione dei sei giorni della Genesi Trad Eugenio Garin Carmagnola Arktos 1996
Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Paolo Edoardo Fornaciari (org) Firenze Sismel Edizioni 2010
Expositiones in Psalmos Trad Antonino Raspanti - Giacomo Raspanti Firenze Leo Olschki 1997
Outras Fontes Primaacuterias
AGOSTINHO DE HIPONA Comentaacuterio ao Gecircnesis Trad Agustinho Belmonte Satildeo Paulo Paulus 2014
____ A Cidade de Deus Trad J Dias Pereira VolI Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1996
CLEacuteMENT DrsquoALEXANDRIE Les Stromates Alain Le Boulluec (org) Trad Pierre Voulet Paris Eacuteditions du Cerf 1981
181
DIONIacuteSIO AREOPAGITA PSEUDO A Hierarquia Celeste Carin Zwilling (org) Satildeo Paulo Polar 2015
FICINO MARSILIO Theologia Platonica Milano Bompiani 2011
____ Opera Omnia Mario Sancipriano - Paul Oskar Kristeller (org) Torino Botega drsquoErasmo 1962 vol II
PICO DELLA MIRANDOLA GIANFRANCESCO Johannis Pici Mirandulae viri omni disciplinarum genere consummatissimi vita per Ioannem Franciscum illustris principis Galeotti Pici filium conscripta Bruno Andreolli (org) Modena Aedes Muratoriana 1994
PLATONE Tutte le opere Roma Newton Compton Editori 2010
PLOTINO Enneadi ed Giuseppe Faggin Milano Bompiani 2010
POLIZIANO Letters Shane Butler (org) Cambridge Harvard University Press 2006
CORPUS HERMETICUM Edizione e comento di Arthur Darby Nock Trad Andreacute-Jean Festugiegravere A cura di Ilaria Ramelli Milano Bompiani 2006
DE ORACULIS CHALDAICIS Trad Wilhelm Kroll Reprints from the collection of the University of Michigan Library [1894] Hildesheim G Olms 1962
SEcircFER YETSIRAacute O Livro da Criaccedilatildeo Aryeh Kaplan (org) Trad Erwin Von-Rommel Vianna Pamplona Satildeo Paulo Secircfer 2005
SEPHER HA-ZOHAR Trad Paul Vulliaud In Eacutetudes et Correspondance de Jean de Pauly Relatives au Sepher Ha-Zohar Paris Bibliothegraveque Chacornac 1933
ZOcircHAR RABI SHIMON BAR IOCHAI (atribuiacutedo a) Trad Diego Raigorodsky Satildeo Paulo Annablume Editora 2013 (Tomo I) 2014 (Tomo II)
2 Fontes Secundaacuterias
AMBESI ALBERTO CESARE Giovanni Pico della Mirandola Cenni biografici e presentazione dellrsquoopera In Heptaplus La Settemplice Interpretazione dei sei giorni della Genesi Carmagnola Arktos 1996
ANAGNINE EUGENIO Giovanni Pico della Mirandola Sincretismo religioso-filosofico Bari Laterza 1937
BACON ROGER Opus maius IV Oxford JH Bridges 1897
BACCHELLI FRANCO Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica Cittagrave di Castello Leo S Olschki 2001
182
BARON HANS The Crisis of Early Italian Renaissance Civic Humanism and Republican Liberty in an Age of Classicism and Tyranny New Jersey Princeton University PressNewberry Library 1966
____ En Busca del Humanismo Ciacutevico Florentino ndash Ensayos sobre el Cambio del Pensamiento Medieval al Moderno Trad Miguel Abelardo Camacho Ocampo Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Economica 1993
BARONE GIUSEPPE Antologia Giovanni Pico della Mirandola Milano Virgilio Editore 1973
BARTOLUCCI GUIDO Marsilio Ficino e le Origini della Cabala Cristiana In Fabrizio Lelli (org) Giovanni Pico e la Cabbalagrave Firenze Leo Olschki 2014
BASTITTA HARRIET FRANCISCO Recepcioacuten de los textos hermeacuteticos en el platonismo florentino del Quattrocento Marsilio Ficino y Giovanni Pico della Mirandola In Buffon-Drsquoamico (org) Hermes Platonicus Hermetismo y Platonismo en el Medioevo y la Modernidad temprana Santa Feacute Ediciones UNL 2016
BATKIN LEONID M LrsquoIdea di Individualitagrave nel Rinascimento Italiano Trad Valentina Rossi Roma-Bari Laterza 1992
BAUSI FRANCESCO (org) Giovanni Pico della Mirandola Opere complete Torino Lexis Progetti Editoriali 2000
____ Nec rethor neque philosophus Fonti lingua e stile nelle prime opere latine di Giovanni Pico della Mirandola (1484-87) Firenze Leo Olschki 1996
____ E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza Napoli Liguori 1998
BAZAacuteN FRANCISCO GARCIA ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus Madrid Biblioteca Claacutesica Gredos 1991
BEMPORAD DL ndash ZATELLI IDA (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Celebrazioni del V centenario della morte di Lorenzo il Magnifico Firenze Olschki 1998
BERTI DOMENICO Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti In Rivista Contemporanea VII vol XVI Torino 1859
BERTOZZI MARCO (org) Nello specchio del cielo Giovanni Pico della Mirandola e le ldquoDisputationes contro lrsquoastrologia divinatoriardquo Firenze Leo Olschki 2008
BIDEZ JOSEPH ndash CUMONT FRANZ Les mages helleniseacutes Paris Belles Lettres 1938
BIGNOTTO NEWTON Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola In O que nos faz pensar nr 27 2010
BIONDI ALBANO ldquoIntroduzionerdquo alle Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 2013
183
BLACK CROFTON Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics Boston Brill 2006
BORI PIER CESARE I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola In Annali di storia dellrsquoesegesi 132 1996 pp 551-564
____ Pluralitagrave delle vie Alle origine del Discordo sulla Dignitagrave umana di Pico della Mirandola Milano Feltrinelli 2000
BROCCHIERI MARIATERESA F B Pico della Mirandola Bari Laterza 2011
BURCHIELLARO GIANFRANCO ldquoIntroduzionerdquo a Mantova e la Qabbalah Milano Skira 2001
BURCKARDT JACOB La civiltagrave del Rinascimento in Italia Trad Valbusa Vol II Firenze Sansoni 1902
BURKERT WALTER Antigos Cultos de Misteacuterio Satildeo Paulo Edusp 1987
BUSI GIULIO La Qabbalah Roma-Bari Laterza 2011
____ Mantova e la Qabbalah Milano Skira 2001
____ Introduzione a Mistica ebraica Testi della tradizione segreta del giudaismo dal III al XVIII secolo Torino Busi e Loewenthal (eds) 1995
____ Pico fede ragione e Inquisizione In Il Sole-24 Ore 28082018
BUSI GIULIO - EBGI RAPHAEL Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah Torino Giulio Einaudi Editore 2014
CASSIRER ERNST Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento Trad F Federici Firenze La Nuova Italia 19351977
CASSUTO UMBERTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento Firenze Leo Olschki 1918 (ristampa 1965)
CATAgrave CESARE ldquoLidea di lsquoanima stellatarsquo nel Quattrocento fiorentino Andrea da Barberino e la teoria psico-astrologica in Marsilio Ficinordquo In Bruniana amp Campanelliana XVI 2 2010 pp 629-639
CERETTI FELICE Biografie pichensi II Mirandola 1909
____ Giulia Boiardo In Atti e Memorie della Deput di Storia Patria dellEmilia Modena 1881
CHASTEL ANDREacute LrsquoArtista In Eugenio Garin (org) LrsquoUomo del Rinascimento Bari Laterza 2016
COLLI GIORGIO A Sabedoria Grega ndash I (Fragmentos) Traduccedilatildeo Renato Ambroacutesio Satildeo Paulo Paulus 2012
COPENHAVER BRIAN Lrsquoocculto in Pico In Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola Firenze Leo Olschki 1997
184
____ The Secret of Picorsquos Oratio Cabala and Renaissance Philosophy In Midwest Studies in Philosophy 26 2002
____ Hermes Trismegistus Proclus and the Question of a Philosophy of Magic in the
Renaissance In Merkel-Debus (org) Hermeticism and the Renaissance Intellectual History and the Occult in Early Modern Europe Washington Associated University Presses 1988
COPENHAVER BRIAN ndash SCHMITT CHARLES Renaissance philosophy A History of Western Philosophy Oxford University Press 1992
CORAZZOL GIACOMO Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquo Oratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo In Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 pp9-61
CORBIN HENRY Lrsquohomme de lumiegravere dans le soufisme iranien Paris Eacuteditions Preacutesence 1971
CRAVEN WILLIAM G Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age Modern Interpretations of a Renaissance Philosopher Geacutenegraveve Librairie Droz 1981
CRINITO PIETRO De honesta disciplina Carlo Angeleri (org) Roma Fratelli Bocca 1955
CROCIANI LAMBERTO Chiesa fiorentina e comunitagrave ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico In Bemporad-Zatelli (orgs) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Olschki 1998 pp85-99
CROUZEL HENRY Pic de la Mirandole et Origegravene In Bulletin de litteacuterature eccleacutesiastique 66 1965 pp174-194 e pp272-288
DEacuteCARREAUX JEAN Les Grecs au Concile de lrsquo Union Ferrare-Florence 1438-1439 Paris A et J Picard 1970
DELLA TORRE ARNALDO Storia dellrsquoAccademia Platonica di Firenze Firenze G Carnesecchi e Figli 1902
DE RUGGIERO GUIDO La filosofia del Cristianesimo Vol III Bari Laterza 1920
DES PLACES EDOUARD Oracles chaldaiumlques Paris Les Belles Lettres 1971
DI NAPOLI GIOVANNI Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo Roma Desclee amp C Editori Pontifici 1965
____ LrsquoEssere e lrsquoUno in Pico della Mirandola In Rivista di Filosofia neoscolastica 46 1954 pp 356-389
DI NOLA ALFONSO MARIA Cabbala e mistica giudaica Roma Carucci 1984
DOREZ LEacuteON - THUASNE LOUIS Pic de la Mirandole em France (1485-88) Paris Ernest Leroux 1897 (Slatkine Reprints Genegraveve 1976)
185
DOREZ LEacuteON Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) In Giornale Storico della Letteratura italiana 25 1895
____ La mort de Pic de la Mirandole et lrsquoeacutedition aldine des oeuvres drsquoA Politien In Giornale Storico della Letteratura italiana 32 1898
DOUGHERTY MICHAEL V (org) Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008
DUJOVNE LEOacuteN Kabbala Sefer Yetsiraacute El libro de la Creacion Buenos Aires Sigal 1992
____ El Zohar Versioacuten Castellana Buenos Aires Sigal 1992
DUKAS JULES Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle Paris L Techener 1876
EDELHEIT AMOS Ficino Pico and Savonarola The evolution of Humanist Theology Leiden Brill 2008
FAIVRE ANTOINE Access to Western Esotericism Albany Suny Press 1994
FARMER STEPHAN ALAN Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems Temple Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies 1998
FAVARO A Lettera a Francesco Ingoli (org) In Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei v 6 Firenze Barbera Editore 1933
FERACINE LUIZ Prefaacutecio e Comentaacuterios a A Dignidade do Homem de Pico della Mirandola Campo Grande Solivros 1999
FESTUGIEgraveRE ANDREacute-JEAN Studia Mirandulana In Archives drsquohistoire doctrinale e litteraire du Moyen acircge Paris Librairie Vrin 1933
____ La reacuteveacutelation drsquoHermegraves Trismeacutegiste 4 volumes Paris Les Belles Lettres 1950-1954
FIELD ARTHUR The Platonic Academy of Florence In Marsilio Ficino his Theology his Philosophy his Legacy (Allen-Rees org) Leiden Brill 2002
FORNACIARI PAOLO EDOARDO Introduzione e Note a Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche Milano Mimesis 2009
____ Introduzione e Note a Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Milano Mimesis 2009
____ Introduzione e Note a Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze Sismel 2010
____ Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola In Bruniana e Campanelliana 7 2001 pp627-633
186
GARFAGNINI GIAN CARLO (org) Savonarola tra Giovanni e Gianfrancesco Pico In Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) Firenze Leo Olschki 1997
GARIN EUGENIO Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina Roma Edizioni di Storia e Letteratura 2011
____ Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico In Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento 1965
____ La cultura del Rinascimento Bari Laterza 1967
____ Rinascite e Rivoluzioni Bari Laterza 1975
____ Ermetismo del Rinascimento Pisa Della Normale 1986 (copia anastatica 2006)
____ Ritrati di Umanisti ndash Sette Protagonisti del Rinascimento Milano Bompiani 1996
____ Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento Bari Laterza 2007
____ LUmanesimo italiano Bari Laterza 2008
____ (org) LrsquoUomo del Rinascimento Bari Laterza 2016
GENTILE GIOVANNI Giordano Bruno e il pensiero del Rinascimento Firenze Codignola 1991
GENTILE SEBASTIANO Il ritorno di Platone dei platonici e del corpus ermetico Filosofia teologia e astrologia nellopera di Marsilio Ficino In Vasoli-Pissavino (org) Le filosofie del Rinascimento Milano Mondadori 2002
GILL JOSEPH Il Concilio di Firenze Firenze Sansoni 1967
GILSON ETIENNE Les Meacutetamorphoses de la Citeacute de Dieu Publications Universitaires de Louvain Librairie Philosophique Louvain-Paris J Vrin 1952
GOLDFELD NAOMI VOGELMANN Elia del Medigo e lrsquoAverroismo hebraico In BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998
GRAFTON ANTHONY Giovanni Pico della Mirandola Trials and Triumphs of an Omnivore In Commerce with the classics Ancient Books and Renaissance Readers Ann Arbor University of Michigan Press 1997
GRIFFITHS J GWYN (org) Plutarchs De Iside et Osiride University of Wales Press 1970
187
GRIMALDI NICOLAS Soacutecrates o Feiticeiro Trad Nicolaacutes Nyimi Campanaacuterio Satildeo Paulo Loyola 2006
GUICCIARDINI FRANCESCO Storie Fiorentine dal 1378 al 1509 Bari Laterza 1931
HANEGRAAFF WOUTER J (org) Dictionary of Gnosis amp Western Esotericism Leiden Brill 2006
HANKINS JAMES Plato in the Italian Renaissance Leiden Brill 1990
HAYMAN A PETER Sefer Yetsira Texts and Studies in Ancient Judaism Tubingen Mohr Siebeck 2004
IDEL MOSHE Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico In Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998
____ Kabbalah New Perspectives New Haven Yale University Press 1988
____ Golem Jewish Magical and Mystical Traditions on the artificial Anthropoid Albany Suny 1990
____ Kabballah and Hermeticism in Dame Frances A Yatesrsquos Renaissance In Eacutesoterism gnoses et imaginaire symbolique Leuven 2001 pp71-90
____ Uma Introduccedilatildeo In Cabala Cabalismo e Cabalistas (Idel et al org) Trad Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 2008-a
____ As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista In Cabala Cabalismo e Cabalistas (Idel et al org) Trad Eliana Langer e Margarida Goldsztajn Satildeo Paulo Perspectiva 2008-b
JACOBELLI JADER Pico della Mirandola Prefaacutecio de Eugenio Garin Milano Longabesi amp C 1986
KAPLAN ARIEH Secircfer Ietsiraacute O Livro da Criaccedilatildeo Teoria e Praacutetica Trad Vianna Pamplona Satildeo Paulo Secircfer 2005
KEPLER JOHANNES De Stella Nova Harmonice Mundi In Gesammelte Werke Beck Muumlnchen Max Caspar 1938
KERN OTTO Orfici ndash Testimonianze e Frammenti nellrsquoedizione di Otto Kern A cura di Elena Verzura Milano Bompiani 2011
KIBRE PEARL The library of Pico della Mirandola New York Columbia University Press 1936
KIESZKOWSKI BOHDAN Averroismo e Platonismo in Italia negli ultimi decenni del sec XV In Giornale critico della Filosofia Italiana 1933 4
____ Averroismo e Platonismo in Italia In Studi sul Platonismo del Rinascimento in Italia Firenze 1936 capVII
188
____ Studi sul platonismo del Rinascimento in Italia Firenze Sansoni 1936
____ Les Rapports entre Elie del Medigo e Pic de la Mirandola In Rinascimento XV 1964 pp 41-81
KRISTELLER PAUL OSKAR Supplementum ficinianum (org) Firenze Leo Olschki 1937
____ The scholastic background of Marsilio Ficino (1944) In Studies in Renaissance Thought and Letters Vol I Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1956
____ Movimenti filosofici del Rinascimento In Giornale critico della Filosofia Italiana 1950 29
____ La tradizione classica nel pensiero del Rinascimento Firenze La Nuova Italia 1975
____ Concetti Rinascimentali dellrsquouomo ed altri saggi Firenze La Nuova Italia 1978
____ Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano Trad M Pentildealoza Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1970
____ El pensamiento renacentista y sus fuentes Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1982
____ Studies in Renaissance Thought and Letters Vol IV Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1996
KRISTELLER PAUL OSKAR - SANCIPRIANO MARIO (org) Marsilio Ficino Opera Omnia Torino Botega drsquoErasmo 1962 vol II
LEBECH METTE On the Problem of Human Dignity A Hermeneutical and Phenomenological Investigation Wurzburg Konigshausen amp Neumann 2009
LELLI FABRIZIO Alemanno Giovanni Pico della Mirandola e la cultura ebraica italiana del XV secolo In Gian Carlo Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola VolI Firenze Leo Olschki 1997
____ Giovanni Pico e la Cabbalagrave (org) Firenze Leo Olschki 2014
____ Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno In BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998
____ Pico della Mirandola Giovanni In Wouter Hanegraaf (org) Dictionary of Gnosis and Western Esotericism Leiden 2005 pp949-954
LILLA SALVATORE Clement of Alexandria A Study in Christian Platonism and Gnosticism Oxford Oxford University Press 1971
LIPINER ELIAS As Letras do Alfabeto na criaccedilatildeo do mundo ndash Contribuiccedilatildeo agrave pesquisa da natureza da linguagem Rio de Janeiro Imago 1992
LORENZ FV Cabala A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente Satildeo Paulo Pensamento 1997
189
LUBAC HENRI DE Pico della Mirandola LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento Trad G Colombo - A dellrsquoAsta Vol 29 Milano Jaca Book 1977
____ Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions Paris Aubier Montaigne 1974
MAGHIDMAN MARCELO Secircfer Yetsiraacute A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico Satildeo Paulo Annablume 2014
MAQUIAVEL NICOLAU Histoacuteria de Florenccedila Satildeo Paulo Martins Fontes 2007
MASAI FRANCcedilOIS Pleacutethon et le Platonisme de Mistra Paris Les Belles Lettres 1956
MASSETANI GUIDO La Filosofia cabbalistica di Giovanni Pico Della Mirandola Empoli Tipografia di Edisso Traversari 1897
MATTER JACQUES Histoire critique du gnosticisme et de son influence Paris FG Levrault 1828 (reprint 2011)
MONFASANI JOHN Bessarione La Natura delibera la Natura e lrsquoArte ldquoPrefassionerdquo In Accendere-Privitera (org) Milano Bompiani 2014
MOLINARI JONATHAN Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola Bologna Il Mulino 2015
MUNK SALOMON Meacutelanges de philosophie juive et aacuterabe Paris A Franck 1857
PEGONE ENRICO Timeo Note e Trad In Platone Tutte le Opere Roma Newton Compton Editori 2010
PINA MARTINS JOSEacute VITORINO Jean Pic de la Mirandole Un portrait inconnu de lrsquohumanisme une eacutedition trecircs rare de ses Conclusiones Paris Presses Universitaires de France 1976
____ Pico della Mirandola e o Humanismo Italiano nas origens do Humanismo Portuguecircs Lisboa Sep de Estudos Italianos em Portugal 1964
____ Cultura Italiana Lisboa Editorial Verbo 1971
RABI SHIMON BAR IOCHAI Zocirchar Trad Diego Raigorodsky Satildeo Paulo Annablume 2013
RABIN SHEILA Pico on Magic and Astrology In Dougherty MV (org) Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008
____ Keplerrsquos Attitude toward Pico and the Anti-Astrology Polemic In Renaissance Quarterly 50 1997 pp 750ndash70
RAGNISCO PIETRO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo In Atti e Memorie della Reale Accademia di Scienze Lettere ed Arti in Padova Padova 1891
190
RASPANTI ANTONINO Filosofia teologia religione lrsquounitagrave della visione in Giovanni Pico Palermo Edi Oftes 1991
REALE GIOVANNI Para uma nova Interpretaccedilatildeo de Platatildeo Trad Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 1997
RENAN ERNEST Averroegraves et lrsquoAverroiumlsme Paris A Durand 1852
RHODE ERWIN Psyche Roma-Bari Laterza 2006
RIFFARD PIERRE Dicionaacuterio de Esoterismo Trad Maria Joatildeo Freire Lisboa Editorial Teorema 1993
ROTONDI SECCHI TARUGI LUISA LErmetismo nellrsquo Antichitagrave e nel Rinascimento Milano Nuovi Orizzonti 1998
RUGGIERO GUIDO DE La filosofia del Cristianesimo Vol III Bari Laterza 1920
RUTKIN H DARREL Giovanni Pico della Mirandolarsquos Early reform of Astrology an Interpretation of vera astrologia in the Cabalistic Conclusions In Bruniana e Campanelliana 10 2004 pp495-498
SARTORI ALBERTO Giovanni Pico della Mirandola Filosofia teologia concordia Padova Facoltagrave Teologica del Triveneto 2017
SCOTT WALTER - FERGUSON ALEXANDER STEWART Hermetica The Ancient Greek and Latin Writings which contain religious or philosophic teachings ascribed to Hermes Trismegistus Oxford Clarendon Press 1924-36
SCHIAVONE VALERIA Corpus Hermeticum Trad e Notas Milano BUR Rizzoli 2018
SCHMITT CHARLES Gianfrancesco Picorsquos Attitude toward his Uncle In (AAVV org) Llsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze 1965
SCHNITZER JOSEPH Savonarola Vol1 Trad E Rutili Milano Fratelli Treves 1931
SCHOLEM GERSHOM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York Theological Seminary of America 1960
____ A Miacutestica Judaica Trad Jacob Guinsburg et al Satildeo Paulo Perspectiva 1972
____ A Cabala e seu simbolismo Trad Hans Borger e Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 1988
____ Cabala Enciclopeacutedia judaica Vol 9 Trad H Burlamaqui JC Guimaratildees e ML Braga Rio de Janeiro A Koogan 1989
____ As Grandes correntes da Miacutestica Judaica Trad Jacob Guinsburg e outros Satildeo Paulo Perspectiva 1995
191
____ Nome de Deus a Teoria da Linguagem e Outros estudos de Cabala e Miacutestica Judaica Trad Ruth Solon e Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 1999
SECRET FRANCcedilOIS Lrsquointerpretazione della Kabbala nel Rinascimento In ldquoConviviumrdquo 25 1956 pp541-552
____ Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance Milano Archegrave Arma artis 1985
SENDER TOVA Iniciaccedilatildeo agrave Cabala Rio de Janeiro Record 1991
SEMPRINI GIOVANNI Giovanni Pico della Mirandola La Fenice degli Ingegni Todi Casa Editrice Atanograver 1921
SIRGADO GANHO MARIA LURDES Comentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitate Lisboa Ediccedilotildees 70 2001
SUDDUT MICHAEL Pico della Mirandolarsquos Philosophy of Religion In Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008
TENENTI A Florence agrave lrsquoEacutepoque des Medicis Paris Flammarion 1968
THORNDIKE LYNN A History of Experimental Science Vol 4 Fourteenth and Fifteenth Centuries New York Columbia University Press 1934
VALCKE LOUIS Pic de la Mirandole un itineacuteraire philosophique Paris Les Belles Lettres 2005
VALVERDE A J R Aportes a Oratio de Hominis Dignitate de Pico della Mirandola In Revista de Filosofia Aurora Vol 21 29 pp 457-480 Curitiba Champagnat 2009
VASOLI CESARE Introduccedilatildeo agrave Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina (EGarin) Roma Edizioni Storia e Letteratura 2011
____ Imagini Umanistiche Napoli Morano 1983
____ Conclusioni In Gian Carlo Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) VolII Firenze Leo Olschki 1997 pp641-695
____ The Renaissance Concept of Philosophy In Charles Schmitt (org) The Cambridge History of Renaissance Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1998
VILLARI PASQUALE Girolamo Savonarola Vol I Firenze Le Monnier 1910
WALKER DP Spiritual and demonic magic from Ficino to Campanella London The Warburg Institute 1958
WARBURG ABY La rinascita del paganesimo antico Contributi alla storia della cultura raccolti da G Bing Trad E Cantimori Firenze La Nuova Italia 1966
192
WEIL ERIC La Philosophie de Pietro Pomponazzi Pic de la Mirandole et la Critique de lrsquoAstrologie Paris Editions Vrin 1986
WIRSZUBSKI CHAIM Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Cambridge Harvard University Press 19871989
____ Pic de la Mirandole et la Cabale Paris Eacuteditions de lrsquoeacuteclat 2007
WOODHOUSE CHRISTOPHER M George Gemistos Plethon The last of the Hellenes Oxford Clarendon Press 1986
YATES FRANCES A Giordano Bruno e a Tradiccedilatildeo Hermeacutetica Satildeo Paulo Cultrix 1995
____ Giovanni Pico della Mirandola and Magic In Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo VolI Convegno Internazionale di Mirandola (1963) Firenze 1965 pp159-204
ZACCARIA RAFFAELLA MARIA Critiche e difesa dellrsquoHeptaplus In Paolo Viti (org) Pico Poliziano e lrsquoUmanesimo di fine Quattrocento Nr 16 Firenze Leo Olschki 1994
ZAMBELLI PAOLA Lapprendista stregone Astrologia cabala e arte lulliana in Pico della Mirandola e seguaci Venezia Saggi Marsilio 1995
ZONTA MAURO Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola In Rinascimento ndash Rivista dellrsquoIstituto Nazionale di Studi sul Rinascimento nr48 Firenze Leo Olschki 2009
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo
PUC-SP
ANNA MARIA CASORETTI
PICO DELLA MIRANDOLA
O ESOTERISMO COMO CATEGORIA FILOSOacuteFICA
DOUTORADO EM FILOSOFIA
Tese apresentada agrave Banca Examinadora da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo como exigecircncia parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo sob a orientaccedilatildeo do Professor Doutor Antonio Joseacute Romera Valverde
Satildeo Paulo
2020
BANCA EXAMINADORA
____________________________
Prof Dr Antonio Joseacute Romera Valverde
____________________________
Prof Dr Jorge Luiz Rodrigues Gutiegraverrez
____________________________
Prof Dr Marcelo Perine
____________________________
Prof Dr Maacuterio Ariel Gonzalez Porta
____________________________
Prof Dr Pedro Monticelli
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior ndash
Brasil (CAPES) 888871518022017-00 ndash Coacutedigo de Financiamento 001
This study was financed in part by the Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior ndash
Brasil (CAPES) 888871518022017-00 ndash Finance Code 001
AGRADECIMENTOS
Duas pessoas em comum nascidas sob a marca estelar da
perseveranccedila foram fundamentais para que este trabalho chegasse a
termo meu orientador Professor Antonio Valverde e minha matildee
Adriana A ele devo natildeo apenas as sempre apropriadas elucidaccedilotildees no
decorrer do estudo como natildeo menos importante a sustentaccedilatildeo
ldquoespiritualrdquo para levaacute-lo adiante perante os inuacutemeros empecilhos
ensinou-me a ter como norte apenas a Filosofia Ela sempre presente
deu-me um auxiacutelio inestimaacutevel no suporte das questotildees cotidianas e com
sua sabedoria de vida me incentivou em meus momentos de fraqueza a
dar simplesmente ldquoo proacuteximo passordquo Aos dois minha eterna gratidatildeo
Agradeccedilo aos examinadores presentes na Banca do Exame de
Qualificaccedilatildeo Professores Jorge Gutieacuterrez Pedro Monticelli e Marcelo
Perine ndash trecircs mestres com os quais tive a feliz oportunidade de interagir
em outras circunstacircncias acadecircmicas ndash pelas preciosas sugestotildees
compartilhadas na ocasiatildeo Agradeccedilo ainda aos demais membros
partiacutecipes e suplentes agrave Banca Examinadora da Defesa Professores Luiz
Marcos da Silva Eduardo Kickhoumlfel e Maacuterio Porta pelo aceite de nosso
convite
Por fim natildeo posso deixar de agradecer a meu pai pelo silencioso
acolhimento a meu marido por sempre estar por aceitar minhas
ausecircncias e compreender minhas escolhas a meu filho por me incentivar
e compartilhar de minhas aspiraccedilotildees intelectuais e ainda pelo importante
auxiacutelio instrumental em ocasiotildees essenciais
RESUMO
CASORETTI Anna Maria Pico della Mirandola O Esoterismo como categoria
filosoacutefica 2020 192 p Tese (Doutorado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de
Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2020
O filoacutesofo renascentista Pico della Mirandola teve por principal intento
elaborar a conciliaccedilatildeo entre diferentes doutrinas e sistemas guiado pela
percepccedilatildeo da existecircncia de concepccedilotildees metafiacutesicas passiacuteveis de integraccedilatildeo
em seus graus mais elevados A paixatildeo pela comprovaccedilatildeo de
correspondecircncias leva-o a um percurso de aproximaccedilatildeo reconciliadora
com o passado e agrave consequente construccedilatildeo de estrateacutegias de correlaccedilatildeo
cujo princiacutepio-chave se encontra na ideia de que conceitos concernentes
aos niacuteveis mais altos da realidade se penetram reciprocamente Seu projeto
de convergecircncia teleoloacutegica contempla elementos derivados das mais
diversas perspectivas sejam filosoacuteficas teoloacutegicas ou misterioloacutegicas Em
meio a tais perspectivas identifica-se a presenccedila de tradiccedilotildees que se
perpetuaram em torno a formas de transmissatildeo esoteacuterica como eacute o caso
da misteriologia grega da Cabala judaica e do Hermetismo egiacutepcio bem
como de alguns registros de teor filosoacutefico e de manifestaccedilotildees do
Cristianismo primitivo e posterior que empregaram especiacuteficas formas de
linguagem relacionadas ao sigilo O objetivo desta investigaccedilatildeo eacute apontar
para tais elementos e mostrar que sua repeticcedilatildeo permite caracterizar seu
conjunto como uma categoria presente no pensamento piquiano utilizada
natildeo apenas como recurso retoacuterico mas como possibilidade de ampliaccedilatildeo e
de siacutentese das possibilidades interpretativas Satildeo adotadas como fonte de
investigaccedilatildeo as obras De Hominis Dignitate Conclusiones Nongentae e
Heptaplus
Palavras-Chave Pico della Mirandola Renascimento Esoterismo Concoacuterdia
ABSTRACT
The main intention of the Renaissance philosopher Pico della Mirandola
was to conciliate different doctrines and systems guided by the perception
of the existence of metaphysical conceptions capable of integration in their
highest degrees The passion for the proof of correspondences leads him to
a path of reconciling with the past and the consequent construction of
correlation strategies whose key principle lies in the idea that concepts
concerning the highest levels of reality penetrate reciprocally His project
of teleological convergence contemplates elements derived from the most
diverse perspectives whether philosophical theological or mysteriological
The presence of traditions that have perpetuated themselves around forms
of esoteric transmission such as Greek mysteriology Jewish Kabbalah and
Egyptian Hermeticism is found in the midst of such perspectives as well
as some records of philosophical content and manifestations of primitive
Christianity that have employed specific forms of language related to
secrecy The aim of this investigation is to point out such elements and
show that their repetition allows us to characterize the set as a category
present in Picorsquos thought used not only as a rhetorical resource but as a
possibility of expansion and synthesis of interpretative possibilities De
Hominis Dignitate Conclusiones Nongentae and Heptaplus are adopted
as sources of investigation
Keywords Pico della Mirandola Renaissance Esotericism Concord
LISTA DE ABREVIATURAS
Concl (I) Giovanni PICO Conclusiones secundum opiniones aliorum Parte I in Albano Biondi (org) Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 19952013
Concl (II) Giovanni PICO Conclusiones secundum opinionem propriam Parte II in Albano Biondi (org) Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 19952013
Oratio Giovanni PICO De Hominis Dignitate in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942
Apologia Giovanni PICO Apologia in Paolo Edoardo Fornaciari (org) Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze Sismel Edizioni 2010
De Ente et Uno Giovanni PICO De Ente et Uno in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942
Commento Giovanni PICO Commento sopra una canzona drsquoamore composta da Girolamo Benivieni in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942
Heptaplus Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942
Heptaplus P1 Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione (opcit) ldquoPrimeiro Proecircmiordquo
Heptaplus P2 Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione (opcit) ldquoSegundo Proecircmiordquo
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 11
I ASPECTOS POUCO LEMBRADOS DO RENASCIMENTO 14
II GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA 28
1 A Vida 30
2 As bases filosoacuteficas entre a Academia e o Liceu 41
3 A aproximaccedilatildeo aos estudos miacutesticos 47
III AS CONCLUSIONES NONGENTAE E SUA OCCULTA CONCATENATIO 52
1 A Secreta Conexatildeo 55
2 Religiatildeo ou Filosofia 63
3 Maritare Mundum 69
IV A ORATIO E SEUS ELEMENTOS ASCENSIONAIS 79
1 O tema da Dignidade do homem 81
2 O tema da Concoacuterdia 87
3 O tema da Ascese 91
V RESSONAcircNCIAS CABALIacuteSTICAS E SEU INFLUXO SOBRE PICO 108
1 As fontes hebraicas da tradiccedilatildeo esoteacuterica 110
2 O Cosmo Cabalista 121
3 As divisotildees da Cabala e suas formas de aproximaccedilatildeo agrave divindade 127
VI O HEPTAPLUS Agrave LUZ DA CABALA 137
1 As referecircncias esoteacutericas do Primeiro Proecircmio 139
2 Os Mundos na Cabala no Heptaplus 143
3 A Occlusa Sapientia 152
VII FILOSOFIA ESOTERISMO CONCOacuteRDIA 158
1 O Paradigma Esoteacuterico 158
2 A Concordacircncia teleoloacutegica 166
3 A Morte do Beijo 172
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 177
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 180
Nulla res spiritualis descendens
inferius operatur sine indumento
Nenhuma realidade espiritual que
descenda aos mundos inferiores
opera sem se velar
(Pico della Mirandola Conclusio
secundum doctrinam sapientum
hebraeorum Cabalistarum XXV)
11
INTRODUCcedilAtildeO
A presente tese propotildee identificar a presenccedila de elementos esoteacutericos na obra
do filoacutesofo Giovanni Pico della Mirandola mostrando que a recorrecircncia de tais
indiacutecios permite que lhes seja atribuiacuteda a qualificaccedilatildeo de categoria filosoacutefica Com o
termo ldquocategoriardquo pretende-se significar a presenccedila de um padratildeo discerniacutevel dentro
de um processo reflexivo formado pelo agrupamento de determinadas caracteriacutesticas
que se repetem a ponto de poderem ser classificadas sob uma denominaccedilatildeo comum
O termo ldquoesoterismordquo por sua vez abriga dois principais significados tantas vezes
confundidos Contempla de um lado um conjunto de tradiccedilotildees ou interpretaccedilotildees ndash
de cunho filosoacutefico teoloacutegico ou misterioloacutegico ndash que buscam proteger do puacuteblico
determinados assuntos por meio da manutenccedilatildeo do segredo ou da transmissatildeo oral
comunicando-os apenas a um restrito nuacutemero de adeptos De outro admite amiuacutede
um sentido associado ao ldquomisticismordquo relacionado a praacuteticas que conduzem ao que
chamariacuteamos hoje de experiecircncias fenomenoloacutegicas pessoais As duas significaccedilotildees
encontram-se abrangidas pela obra piquiana Seus registros foram colhidos pelo
Autor a partir de fontes pagatildes cristatildes e hebraicas encontrando-se dispostos de
forma fluiacuteda e harmocircnica lado a lado com categorias do universo filosoacutefico e
teoloacutegico Apontar para a presenccedila de tais padrotildees eacute o intento pretendido Como
objetivo secundaacuterio seraacute sugerida no uacuteltimo Capiacutetulo a existecircncia de um propoacutesito
teleoloacutegico que pede a utilizaccedilatildeo de tais paradigmas para o fechamento de certas
hipoacuteteses sob o arco da estruturaccedilatildeo do pensamento piquiano
Trecircs razotildees permitem inserir esta contribuiccedilatildeo no campo de conhecimento da
Histoacuteria da Filosofia a saber (a) o papel proeminente de seu protagonista uacuteltimo
pensador do Quattrocento italiano no panorama do Pensamento do seacuteculo XV (b) os
aportes derivados da averiguaccedilatildeo de doutrinas pertencentes a culturas e tradiccedilotildees
ocidentais e natildeo-ocidentais e (c) a apuraccedilatildeo da utilizaccedilatildeo de elementos esoteacutericos ndash
tese aqui desenvolvida ndash em cenaacuterio filosoacutefico Em outras palavras (a) Giovanni Pico
natildeo sem fundamento foi elevado agrave condiccedilatildeo de um dos mais significativos
representantes de sua eacutepoca em virtude de sua obra manifestar muitos dos
relevantes fermentos e anseios que caracterizaram seu periacuteodo embora seu quadro
intelectual de referecircncias se encontrasse fora do alcance da maioria de seus
contemporacircneos suas reflexotildees natildeo estavam isentas das principais preocupaccedilotildees de
seu tempo Ademais (b) a adesatildeo do Autor a um novo esquema epistemoloacutegico de
revisatildeo dos saberes com os quais esteve em contato o leva muito aleacutem dos problemas
filosoacuteficos nucleares dos seacuteculos que o antecedem permitindo ao leitor conhecer
doutrinas pertencentes a culturas exteriores agrave Ocidental ndash caso do Hermetismo
egiacutepcio da Cabala judaica e do Zoroastrismo persa ndash integrantes da ampla unificaccedilatildeo
pretendida por Pico Alguns daqueles conteuacutedos ndash natildeo suficientemente estudados ndash
oferecem relevantes aportes agrave Filosofia sobretudo para as temaacuteticas que concernem agrave
sistematizaccedilatildeo do mundo inteligiacutevel Finalmente (c) o estudo de um padratildeo de
pensamento colhido de fontes esoteacutericas natildeo apenas nos coloca em contato com
12
tradiccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas que fizeram uso do segredo para se perpetuar como
fornece novos paradigmas de investigaccedilatildeo e de linguagem O emprego de elaboraccedilotildees
mentais extraiacutedas de tradiccedilotildees orais natildeo eacute simples recurso retoacuterico utilizado pelo
Autor mas aporte necessaacuterio para alcanccedilar certas siacutenteses Ao contraacuterio do que possa
acreditar o senso comum haacute uma forccedila racional presente em grande parte das
doutrinas que se erigem em torno agrave transmissatildeo esoteacuterica mostrando-se seu estudo
uma importante ampliaccedilatildeo das possibilidades interpretativas
A motivaccedilatildeo para apresentar tal conjunto de temas deve-se precipuamente ao
fato de a obra de Pico della Mirandola ter sido pouco estudada no cenaacuterio filosoacutefico
nacional Tanto as traduccedilotildees quanto as interpretaccedilotildees em portuguecircs satildeo escassas
Tem-se agrave disposiccedilatildeo em primeira linha apenas as traduccedilotildees da Oratio de Hominis
Dignitate realizadas por Luiz Feracine e Maria de Lurdes Sirgado nas quais os
autores apresentam prefaacutecios introdutoacuterios ao trabalho de traduccedilatildeo Com relaccedilatildeo agrave
obra Conclusiones Nongentae principal projeto do autor os conteuacutedos
interpretativos natildeo apenas satildeo inexistentes em acircmbito nacional como bastante
exiacuteguos em termos mundiais Ademais com relaccedilatildeo agraves tradiccedilotildees orientais acolhidas
por Pico o material para discussatildeo de suas doutrinas mostra-se em ambiente paacutetrio
insuficiente o que contribui para manter sua obra em um patamar de
impenetrabilidade Essas mesmas condiccedilotildees determinaram a opccedilatildeo por uma
apresentaccedilatildeo mais ampla e integrativa da obra piquiana um trabalho desenvolvido
de forma pontual estruturado apenas em torno aos especiacuteficos pontos esoteacutericos
coletados dos textos piquianos traria uma especificidade soacute aceitaacutevel em um
territoacuterio onde tanto o autor quanto sua obra fossem suficientemente conhecidos
Em termos de divisatildeo dos capiacutetulos segue-se uma apresentaccedilatildeo que se inicia
com os aspectos exteriores ligados agrave sociedade e agrave vida do Autor para em seguida
abordar as produccedilotildees concernentes ao seu pensamento Assim embora natildeo se mostre
uma exigecircncia para o tema desenvolvido o Primeiro Capiacutetulo agrave guisa de ldquosegunda
introduccedilatildeordquo tem por funccedilatildeo dispor o cenaacuterio temaacutetico e reconstituir uma parte da
atmosfera intelectual renascentista preparando o leitor para o acolhimento de alguns
dos elementos fundamentais que compotildeem o universo do pensamento piquiano O
Segundo Capiacutetulo contempla a biografia de Giovanni Pico devida por estar
diretamente vinculada ao desenvolvimento de seu modus cogitandi essa a razatildeo de
ser abordada no mesmo capiacutetulo a formaccedilatildeo de seu pensamento atraveacutes da
apuraccedilatildeo das principais Escolas doutrinaacuterias com as quais o filoacutesofo teve contato
Esse percurso basilar evidencia que Pico natildeo se lanccedila a argumentaccedilotildees de cunho
esoteacuterico como algueacutem desprovido de qualquer bagagem acadecircmico-filosoacutefica Antes
o contraacuterio Eacute a dimensatildeo de tal bagagem que lhe permite vislumbrar os pontos de
convergecircncia entre vaacuterias escolas e linhagens de conhecimento ndash ocorrecircncia que
pouco se verifica nas investigaccedilotildees acerca da filosofia natural ou moral mas mostra-
se de forma significativa em torno aos pontos mais elevados de suas especulaccedilotildees
metafiacutesicas ndash protegidos mais das vezes pela transmissatildeo oral
13
Do Terceiro ao Sexto Capiacutetulos satildeo apresentadas e discutidas trecircs das
principais obras de Pico as Conclusiones Nongentae a Oratio De Hominis Dignitate
e o Heptaplus O influxo do Esoterismo na obra piquiana soacute poderia ser confirmado
por meio da abordagem de certo nuacutemero de obras em seu conjunto a verificaccedilatildeo de
uma uacutenica obra natildeo traria a dimensatildeo fiel de tal influxo podendo caracterizar um
caso isolado Entre os capiacutetulos mencionados o Quinto deve ser entendido como uma
necessaacuteria digressatildeo para introduzir a seccedilatildeo seguinte contentora de informaccedilotildees
pertinentes ao Cabalismo que requerem elucidaccedilotildees porquanto o leacutexico cabaliacutestico e
muitas de suas concepccedilotildees natildeo satildeo usuais na literatura filosoacutefica Finalmente no
Seacutetimo e uacuteltimo Capiacutetulo satildeo alinhavados os capiacutetulos precedentes de forma a lhes
dar uma coerecircncia em forma de epiacuteteto
O desenho do conjunto conforme a sequecircncia de seus capiacutetulos segue um
formato que de certa forma acompanha o desenvolvimento intelectual do Autor
poderia outrossim designar um modelo de trajeto de desenvolvimento gnosioloacutegico
partindo da esfera puacuteblica na qual satildeo apreendidas informaccedilotildees pertinentes ao
ldquoespiacuteritordquo da proacutepria eacutepoca (I) passa pelas experiecircncias de aprendizado e estudos
pessoais (II) que levam agrave elaboraccedilatildeo de ordenaccedilotildees intelectuais decorrentes das
escolas e doutrinas assimiladas (III) permitindo vislumbrar a partir delas
possibilidades de elevaccedilatildeo e de dignificaccedilatildeo do homem (IV) alcanccedilado tal estaacutegio o
pensamento lanccedila-se em especulaccedilotildees metafiacutesicas em torno agraves esferas do Inteligiacutevel
(V e VI) ateacute finalmente alcanccedilar o fim para onde tendem todas as doutrinas (VII)
Sob tal perspectiva a ordem da leitura auxilia de forma complementar a vislumbrar
a siacutentese almejada por Pico della Mirandola norte de suas investigaccedilotildees mais
profundas e fundamento para a recepccedilatildeo das mais diversas doutrinas manifestas ou
natildeo
14
CAPIacuteTULO I
ASPECTOS POUCO LEMBRADOS DO RENASCIMENTO
No ano de 1440 Joatildeo VIII Imperador Bizantino era recebido na casa
florentina de Cosimo il Vecchio1 um dos mais proeminentes integrantes dos Medici
O encontro dos dois poderia ateacute natildeo ser digno de nota natildeo fosse o fato que ali se
encontravam os personagens siacutembolos de duas das mais fecundas ocorrecircncias que a
cidade de Florenccedila vivenciaria naquele seacuteculo para o campo do Pensamento o
Conciacutelio para unificaccedilatildeo das Igrejas e o Mecenato O soberano de Bizacircncio chegara agrave
cidade para aquele encontro ecumecircnico com o qual se esperava conter o avanccedilo dos
turcos2 no que foi seguido por consideraacutevel nuacutemero de teoacutelogos que traziam para o
solo italiano textos ineacuteditos Durante o periacuteodo em que durou ndash entre lsquo39 e lsquo44 em
meio agrave vigecircncia delrsquo Vecchio ndash3 deu-se o encontro entre as figuras mais
representativas do mundo cristatildeo (gregos e latinos) com profiacutecuas consequecircncias
para os seacuteculos XV e posteriores visto que se difundiram informaccedilotildees confrontaram-
se doutrinas e crenccedilas e abriram-se as portas para o afluxo de novos livros sobretudo
dos campos filosoacutefico e teoloacutegico Somada agrave iniciativa de mecenas como Cosimo ndash
que incentivou a aquisiccedilatildeo e traduccedilatildeo de manuscritos ndash as duas ldquoinstituiccedilotildeesrdquo
criaram as bases para a implementaccedilatildeo de um ambiente propiacutecio tanto para o retorno
a fontes antigas quanto para a abertura a novas doutrinas estranhas agrave cristatilde
O encontro de culturas foi um acontecimento sem antecedentes naquele
territoacuterio Embora a Florenccedila do seacuteculo XV natildeo possa ser comparada agrave Bagdaacute do
seacuteculo X ou agrave Toledo do seacuteculo XIII lugares onde ocorreram encontros significativos
entre as trecircs culturas monoteiacutestas mais importantes essa cidade deveria ser
mencionada como bem observa Moshe Idel imediatamente depois delas4 A urbe
toscana assistiu natildeo apenas agrave chegada dos bizantinos como acolheu um nuacutemero
significativo de judeus ndash alguns provenientes de Constantinopla mas a maior parte
expulsos da Espanha e de outros territoacuterios Ainda que a representatividade aacuterabe
natildeo tenha sido expressiva como nas outras duas cidades sua presenccedila em solo
florentino foi garantida atraveacutes dos gregos e judeus que traduziam e difundiam seus
textos entre os latinos As contribuiccedilotildees estrangeiras abriram as portas ao Platonismo
de teor miacutestico-teoloacutegico que dominou alguns ambientes intelectuais da segunda
metade do seacuteculo XV cujos rastros propiciaram a abertura para tradiccedilotildees de teor
esoteacuterico Vejamos como
1 A alcunha ldquoCosimo il Vecchiordquo eacute comumente traduzida por ldquoCosme o Velhordquo ndash assim sem viacutergula Optamos
por manter os nomes italianos em seu idioma original 2 O projeto como se sabe mostrou-se malogrado o seacuteculo XV assiste agrave tomada decisiva do Impeacuterio do Oriente
por Maomeacute II que agrave frente dos otomanos conquista Constantinopla em 1453 3 O Conciacutelio para a uniatildeo das Igrejas iniciara em Basileia em 1431 sendo depois transferido para Ferrara e
finalmente para Florenccedila em 1439 Cosimo dersquo Medici regeu a cidade de Florenccedila entre 1434 e 1464 Para maiores detalhes acerca do Conciacutelio leia-se Joseph GILL Il Concilio di Firenze Firenze Sansoni 1967
4 Moshe IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 34
15
Apoacutes a tomada da capital de seu Impeacuterio pelos otomanos que ocorreria poucos
anos apoacutes o teacutermino do Conciacutelio muitos bizantinos permaneceram na Itaacutelia Alguns
dentre eles antes daquele periacuteodo vinham ajudando a incrementar o ensino do
grego necessaacuterio para o diaacutelogo com os Antigos5 contudo a contribuiccedilatildeo bizantina
mostrou-se bem mais significativa Dois personagens em particular corroboraram a
mudanccedila de paradigma intelectual que estava por vir Basiacutelio Bessarion e George
Gemistos ambos com papeacuteis seminais dentro da organizaccedilatildeo do Conciacutelio Bessarion
chegara agrave Itaacutelia em vestes de arcebispo acompanhado de Nicolau de Cusa revelando-
se um importante sustentador da uniatildeo das Igrejas Gemistos que se tornara
conhecido como George Plethon passara a integrar o Conselho de Florenccedila a partir
de rsquo38 tornando-se conselheiro do Imperador oriental Desde o iniacutecio daquelas
reuniotildees Bessarion mostrara-se preocupado em proteger os uacuteltimos vestiacutegios da
cultura grega de uma provaacutevel extinccedilatildeo assim ao mudar-se para a Itaacutelia de forma
definitiva decide transferir e doar agrave cidade de Veneza sua inteira biblioteca bizantina
exercendo ateacute o fim de seus dias uma incansaacutevel atividade de procura de textos
antigos6 O viacutenculo entre os dois eruditos iniciara ainda na Greacutecia quando durante
seis anos Bessarion frequentara em Mistra a escola de George Plethon mestre que o
introduzira agrave filosofia platocircnica7 Agrave eacutepoca Plethon se apresentava com um
comportamento profeacutetico atraveacutes do qual anunciava o fim das trecircs grandes religiotildees
e o consequente advento da cidade platocircnica8 Mais tarde seria ele o mestre de
Mistra um dos grandes responsaacuteveis pelo florescimento do Platonismo em Florenccedila
Sua presenccedila em solo toscano que de imediato provocaria uma profunda impressatildeo
no ciacuterculo de intelectuais florentinos lhe permitiria exercer um efetivo influxo sobre
seu pensamento sobretudo em duas frentes o estiacutemulo para uma mudanccedila de
orientaccedilatildeo filosoacutefica de Aristoacuteteles em direccedilatildeo a Platatildeo e a abertura para doutrinas
5 Alguns gregos de elevada erudiccedilatildeo como Argiropoulos George de Trebizonda Teodoro Gaza e seu disciacutepulo
Demetrio Calcondila alavancaram o ensino do grego entre os humanistas italianos (Eugenio GARIN Lo zodiaco della vita - La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007 p63) A caacutetedra de grego focircra inaugurada por Manuel Chrysoloras em Florenccedila no seacuteculo anterior sendo recebida com exclamaccedilotildees por Leonardo Bruni ldquoEram setecentos anos que a Itaacutelia ignorava o grego fonte de todas as doutrinasrdquo (Leonardi ARETINI Rerum suo tempore gestarum commentarius in ldquoMuratorirdquo Rev Ital Script XIX 3 1926 p403 apud GARIN LUmanesimo italiano 2008 p48)
6 GARIN Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007 p63 Apoacutes a queda de Constantinopla Bessarion sentiu a necessidade de formar uma biblioteca que protegesse a sobrevivecircncia da civilizaccedilatildeo grega e bizantina Conseguiu comprar ou fazer copiar a maior parte das obras do Helenismo antigo e escolheu como abrigo a cidade de Veneza natildeo somente pela confianccedila em seu sistema constitucional republicano como pelo fato de que ali prosperava uma expressiva colocircnia grega que lhe parecia constituir uma segunda Bizacircncio Os inventaacuterios das vaacuterias doaccedilotildees que foram feitas agrave Biblioteca de San Marco foram elencados por Lotte LABOWSKY em Bessarions Library and the Biblioteca Marciana - Six early inventories Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1979 Para maiores informaccedilotildees acerca de Bessarion veja-se Jonathan MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 sobretudo a nota 120 p 52 para amplas referecircncias bibliograacuteficas
7 Em Mistra antiga Esparta Plethon fundara uma escola filosoacutefico-religiosa de tendecircncias neoplatocircnicas antes de vir para a Itaacutelia participar do Grande Conciacutelio Em duas cartas (uma de 1446-47 e a outra de 1454) Bessarion se refere a seu mestre Plethon como ldquoo mais saacutebio dos homensrdquo e ldquomais semelhante a Platatildeo em sabedoria e qualquer outra virtude do que qualquer outro nascido na Greacutecia desde a Antiguidaderdquo Embora cristatildeo Bessarion sugeria que conforme a doutrina da transmigraccedilatildeo das almas adotada por seu mestre ldquonatildeo se poderaacute negar que a alma de Platatildeo tomou por morada o corpo de Plethonrdquo (John MONFASANI Bessarione La Natura delibera la Natura e lrsquoArte Milano 2014 apud MOLINARI op cit np60)
8 Franccedilois MASAI Pleacutethon et le Platonisme de Mistra 1956 pp 300-314 Para maiores detalhes sobre a vida de George Plethon vejam-se as obras de Christopher WOODHOUSE George Gemistos Plethon - The last of the Hellenes Oxford Clarendon Press 1986 (pp 154-170) Arnaldo DELLA TORRE Storia dellrsquoAccademia platonica di Firenze Firenze 1902 Eugenio GARIN Rinascite e Rivoluzioni Bari Laterza 1975
16
estrangeiras ndash de cunho misterioloacutegico ndash que apresentavam viacutenculos teoreacuteticos entre
si
Assim pode-se dizer que a presenccedila grega em territoacuterio italiano natildeo propiciou
apenas o aprendizado de um idioma e o afluxo de manuscritos trouxe outros
desdobramentos Nas discussotildees em que defendiam a originalidade do pensamento
grego frente aos latinos os padres gregos contribuiacuteram em algum niacutevel e mesmo que
de forma involuntaacuteria a acelerar a crise da filosofia escolaacutestica no Ocidente atraveacutes
da instauraccedilatildeo de um certo ambiente de repuacutedio a Aristoacuteteles em seus ciacuterculos em
linhas gerais difundiam a opiniatildeo que os silogismos do Estagirita nada acresciam agrave
Teologia estranhando a forma como seus contemporacircneos latinos sustentavam teses
a partir de arsenais dialeacuteticos9 Cabe observar que certos fundamentos da tradiccedilatildeo
monaacutestica bizantina corroboravam tal direcionamento seus mosteiros eram
marcados pela miacutestica e pelo pietismo faces de uma especiacutefica forma doutrinal que
levava muitos padres gregos a se identificarem mais intimamente com os teores
neoplatocircnicos10
As discussotildees teoloacutegicas somaram-se agraves entatildeo existentes discussotildees
acadecircmicas que dividiam humanistas e aristoteacutelicos11 Um dos principais atores a lhes
fornecer municcedilatildeo foi George Plethon ao escrever um polecircmico opuacutesculo que em
breve tempo se tornaria objeto de intenso debate nos ciacuterculos de imigrados gregos ndash
sobretudo aqueles reunidos em torno a Bessarion ndash passando a verter para os
nuacutecleos latinos12 O opuacutesculo sustentava o ldquoprimadordquo de Platatildeo o que provocou a
reaccedilatildeo de seu conterracircneo George de Trebizonda que sairia em defesa de Aristoacuteteles
atraveacutes de sua Comparatio philosophorum Aristotelis et Platonis de 1458 A questatildeo
assume ressonacircncia puacuteblica levando o entatildeo cardeal Bessarion a efetuar uma
contrarreacuteplica Surge assim em 1459 a primeira versatildeo em grego do In
calumniatorem Platonis texto de capital importacircncia no qual sem atacar Aristoacuteteles
ndash cujos escritos ensinados por dois seacuteculos nas universidades europeias eram
considerados superiores em clareza e ordem expositiva ndash Bessarion se esforccedila por
mostrar que as razotildees habitualmente utilizadas para justificar a preferecircncia pelo
Liceu eram inconsistentes pois originadas de uma incompreensatildeo das verdadeiras
9 Jean DEacuteCARREAUX Les Grecs au Concile de lrsquoUnion Ferrare-Florence 1438-1439 1970 p106 Ainda para
as reaccedilotildees contra o Aristotelismo veja-se Joseph GILL Il Concilio di Firenze 1967 p270 10 A partir de 1347 a igreja bizantina havia adotado a doutrina esicasta que representava mais do que uma
retomada de posiccedilotildees neoplatocircnicas Para muitos patriotas bizantinos era uma forma de inovaccedilatildeo que andava em direccedilatildeo contraacuteria tanto agrave Igreja ortodoxa quanto agrave antiga tradiccedilatildeo filosoacutefica ligada ao Aristotelismo (cf James HANKINS Plato in the Italian Renaissance Brill Leiden 1990 pp 193-197 apud MOLINARI opcit np60) Natildeo nos cabe aprofundar uma reflexatildeo em torno agraves complexas discussotildees teoloacutegicas entre gregos e latinos que influiriam em seus direcionamentos filosoacuteficos nossa intenccedilatildeo eacute pincelar alguns matizes que conduzem aos conteuacutedos a serem tratados
11 As disputas entre aristoteacutelicos e platonistas perpassam o seacuteculo XV sendo comprovadas atraveacutes de grande quantidade de material epistolar A Filosofia quattrocentesca eacute efetivamente marcada pela presenccedila de dois principais troncos a disputar o mesmo seacuteculo De um lado perpetua-se o pensamento escolaacutestico herdado dos medievais representado pela cidade de Paacutedua verdadeira rocha da tradiccedilatildeo aristoteacutelica-averroiacutesta de outro consolida-se o receacutem-nascido pensamento humanista com sua sede na eleita Florenccedila que em muitas narrativas define a ideologia do seacuteculo em questatildeo Maiores detalhes sobre o tema podem ser lidos em Paul Oskar KRISTELLER Studies in Renaissance Thought and Letters 1996 Eugenio GARIN LUmanesimo italiano 2008 Francesco BAUSI E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza 1998
12 O opuacutesculo de George Plethon seria publicado em latim apenas no seacuteculo seguinte sob o tiacutetulo De differentiis Platonis et Aristotelis
17
intenccedilotildees que estavam na origem dos Diaacutelogos A forma enigmaacutetica da obra
platocircnica acentuada pelo uso de mitos e de imagens poeacuteticas nascia natildeo de uma
escassa preparaccedilatildeo loacutegica de seu Autor ou de um suposto desprezo pelo rigor
cientiacutefico mas sim em razatildeo da elevada altitude metafiacutesica de seu discurso que natildeo
poderia nem deveria ser expresso em termos a todos compreensiacuteveis A ideia de
conteuacutedos que natildeo poderiam ser revelados na obra de Platatildeo enfatizada por
Bessarion frutificaria sobretudo entre os ciacuterculos que viriam a frequentar a
Academia de Florenccedila
Outro fator concorrente para a orientaccedilatildeo da vida intelectual italiana que
tomaria um rumo de crescentes conotaccedilotildees miacutesticas foi a chegada de rabinos
miacutesticos e estudiosos de teosofia hebraica provenientes dos lugares mais distantes da
Diaacutespora que souberam desenvolver escolas de estudo e laboratoacuterios de escrita e
estampa a ponto de exercerem um influxo original sobre a cultura europeia13 Assim
enquanto a primeira metade do Quatrocentos presencia o influxo bizantino na
segunda metade do seacuteculo estreitam-se as relaccedilotildees entre os intelectuais cristatildeos e os
judeus sobretudo em razatildeo da toleracircncia exercida pelo neto de Cosimo Lorenzo e
pelos ciacuterculos ligados a Pico della Mirandola14 As trocas entre judeus e cristatildeos
gregos ndash ambos depositaacuterios da antiga sabedoria helecircnica ndash natildeo eram novidade
ocorrecircncia que podia ser verificada ainda em solos bizantinos15 Dessa vez as
contribuiccedilotildees do nuacutecleo intelectual hebraico somadas agrave bagagem trazida pelos
bizantinos voltavam-se agrave latinidade cristatilde Ademais uma significativa quantidade de
mestres hebreus tornou propiacutecia a divulgaccedilatildeo de textos ateacute entatildeo desconhecidos no
seacuteculo XV seja em razatildeo da dificuldade de traduccedilatildeo dos originais ndash gregos hebraicos
ou aacuterabes ndash seja em razatildeo do caraacuteter sigiloso de alguns textos hebraicos ndash que devido
a certas contingecircncias comeccedilaram a ser divulgados16
13 Gianfranco BURCHIELLARO ldquoIntroduccedilatildeordquo a Mantova e la Qabbalah 2001 14 IDEL opcit 1998 pp 39-40 Tais relaccedilotildees satildeo comprovadas por epiacutestolas como uma carta de Ficino de
1485 que relata os frutiacuteferos encontros entre doutos hebreus e cristatildeos (Ficino Opera I pp903-904 apud Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 64) Lorenzo dersquo Medici teve uma especial benevolecircncia com os judeus acolhendo em sua casa meacutedicos (a legislaccedilatildeo eclesiaacutestica proibia que cristatildeos fossem tratados por meacutedicos judeus mas as terras florentinas natildeo seguiram essa vedaccedilatildeo) muacutesicos como Guglielmo da Pesaro e filoacutesofos ligados ao seu amigo Pico della Mirandola Houve pregadores especialmente das Ordens Mendicantes que tentaram levantar a populaccedilatildeo contra os judeus como em outras eacutepocas mas as consequecircncias de suas pregaccedilotildees foram bastante limitadas e controladas nesse periacuteodo Sobre o teacutermino da benevolecircncia com os judeus a partir do advento de Savonarola leia-se Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p54 Para maiores detalhes acerca da aceitaccedilatildeo dos judeus em solo toscano veja-se Lamberto CROCIANI Chiesa fiorentina e comunitagrave ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico ibid 1998 p85Veja-se ainda Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 pp56-61 Cesare VASOLI ldquoQuadro drsquoInsiemerdquo in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 5
15 George Plethon por exemplo antes de chegar agrave Itaacutelia estudara por muitos anos na escola de um renomado mestre hebreu Elisseo (Elischa) que por sua vez era sequaz dos inteacuterpretes aacuterabes de Aristoacuteteles Elisseo foi um importante transmissor natildeo apenas da cultura aacuterabe como da grega e persa tendo sido ele a iniciar Plethon no pensamento de Zoroastro que mais tarde chegaria agrave Academia florentina (cf MASAI opcit pp 57-60)
16 IDEL opcit 1998 p 34 Em resposta agrave nova segregaccedilatildeo dos judeus que viria no seacuteculo XV e da queima de seus livros sagrados houve um incremento de publicaccedilotildees de textos judaicos considerados segretos como forma de reaccedilatildeo agraves perseguiccedilotildees e frente ao perigo de aniquilamento da proacutepria cultura (Giulio BUSI Mantova e la Qabbalah 2001 p 28)
18
Conquanto desde o iniacutecio do lsquo400 alguns humanistas cristatildeos seguissem aulas
com professores de hebraico17 foi somente a partir da segunda metade do seacuteculo que
alguns doutos hebreus se tornariam renomados entre os ciacuterculos natildeo-hebraicos
passando a se expor em um clima de liberdade e de proficuidade sem precedentes na
histoacuteria intelectual judaica18 Antes desse periacuteodo o pensamento judaico natildeo havia
exercido nenhuma influecircncia decisiva sobre os maiores representantes do
pensamento cristatildeo salvo raras exceccedilotildees como foi o caso do influxo do Guia dos
Perplexos de Maimocircnides sobre Tomaacutes de Aquino e da influecircncia de A Fonte da
Vida de Avicebron sobre a teologia franciscana19 Agora bem mais que mediadores
linguiacutesticos os judeus mais ilustrados interpretavam textos criativamente e
capacitavam seus patronos cristatildeos a apreender formas de pensamento mais antigas e
ateacute entatildeo inacessiacuteveis em razatildeo de seus idiomas originais Alguns judeus tornaram-se
assim mestres requisitados como foi o caso dos ceacutelebres Flaacutevio Mitridate e Elia del
Medigo que mediavam o conhecimento hebraico e o aacuterabe bem como de Yohanan
Alemanno que teve acesso agraves mais importantes obras platocircnicas e neoplatocircnicas a
partir da tradiccedilatildeo filosoacutefica judaico-aacuterabe ndash trecircs autores aos quais seraacute feita uma
aproximaccedilatildeo nos proacuteximos capiacutetulos
A partir do uacuteltimo quartel do seacuteculo XV verifica-se uma significativa mudanccedila
de direccedilatildeo nas reflexotildees daqueles trecircs mestres sintomaacutetica da nova atmosfera
intelectual que se firmava ou quem sabe de uma maior liberdade que permitia o
afloramento de seus verdadeiros interesses temaacuteticos Conteuacutedos filosoacuteficos de teor
metafiacutesico passam a ser relacionados com conteuacutedos maacutegicos em diferentes
formatos que emergem em linha paralela com o interesse intelectual cristatildeo
passando a contaminar os ciacuterculos de Florenccedila A interpretaccedilatildeo com feiccedilotildees maacutegicas
da Cabala aparece seja nas traduccedilotildees latinas de Mitridate como nos escritos de
Alemanno na mesma eacutepoca em que Ficino traduz textos ldquomaacutegicosrdquo colhidos de obras
neoplatocircnicas e hermeacuteticas20 Contudo e apesar da reciacuteproca atraccedilatildeo por assuntos de
magia entre estudiosos dos dois grupos religiosos os autores judeus gozavam de
maior liberdade intelectual do que os autores cristatildeos que se encontravam sob a mira
da Igreja21 Assim fontes neoplatocircnicas e hermeacuteticas ndash e no caso de Giovanni Pico e
seus amigos judeus tambeacutem cabaliacutesticas ndash podem ser encontradas nos escritos da
eacutepoca unidas em amaacutelgamas que caracterizam uma forma original de pensamento
Da mesma forma como ocorreu com os gregos os judeus mais eruditos
receberam amplos incentivos de mecenas tanto cristatildeos quanto pertencentes ao
17 Caso de Poggio Bracciolini e Giannozzo Manetti 18 Sobre o tema leia-se Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 pp274-278 19 IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e
Cabalistas 2008-b p 457 20 Moshe IDEL efetua uma anaacutelise acerca do significativo paralelo que se estabeleceu entre os intelectuais
judeus e cristatildeos precisamente no mesmo periacuteodo e na mesma aacuterea geograacutefica considerando esse um dilema interessante da histoacuteria intelectual ainda natildeo esclarecido (1998 pp 23-25) Franco BACCHELLI (Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p 36) confirma a reciprocidade de tais influxos muitas marcas das discussotildees sobre Magia e Astrologia mantidas entre Pico e Ficino ndash no contexto das duas longas polecircmicas que perpassaram o seacuteculo ndash encontram-se nas obras posteriores de Alemanno
21 Segundo Idel existem registros de encontros entre magos cristatildeos e judeus durante o Renascimento (2008-b np464) Sobre a sutil fusatildeo de elementos neoplatocircnicos com aspectos do misticismo judaico vejam-se na mesma obra as paacuteginas 499-501 Ainda Giulio BUSI La Qabbalah 2011 pp28-29
19
nuacutecleo hebraico Agrave eacutepoca de Lorenzo dersquo Medici a tradiccedilatildeo familiar do mecenato
hebraico alcanccedilou seu maacuteximo esplendor atraindo para Florenccedila numerosas
personalidades do mundo hebraico no mesmo periacuteodo a Academia florentina se
abria para o mundo22 Suas contribuiccedilotildees juntamente com as discussotildees entre padres
gregos e latinos ajudaram a disseminar a filosofia neoplatocircnica enquanto em modo
simultacircneo se renovava o interesse pela mensagem velada natildeo-escrita George
Plethon de forma preciacutepua embora falecendo quase dez anos antes do surgimento
do ciacuterculo de estudos platocircnicos seria o responsaacutevel por transmitir consistentes
sementes que se desenvolveriam dentro daquele ambiente vindo a dar frutos a partir
da segunda metade do seacuteculo
A Academia antigas tradiccedilotildees novas traduccedilotildees
A chegada de Plethon agrave cidade dos Medici entusiasmou o velho Cosimo que
costumava estar entre aqueles que ouviam os discursos do filoacutesofo bizantino Plethon
vindo para o Conciacutelio que ajudaria a pacificar os acircnimos religiosos aproveitou para
dar a seus ouvintes latinos todos enamorados de Aristoacuteteles uma ideia da grandeza
de Platatildeo Cativado por tais discursos apaixonados foi sendo concebido no Patriarca
natildeo sem as devidas sugestotildees do amigo grego o desenho de um plano para instaurar
um centro de estudos de vieacutes platocircnico em solo toscano Em certo ponto Cosimo
decide realizar tal obra e escolhe o filho de seu meacutedico o ainda jovem Marsilio Ficino
para levar a termo tal empreitada Assim no ano de 1462 ndash ano considerado de
fundaccedilatildeo da Academia ndash Cosimo daacute a Ficino uma villa em Careggi incumbindo-o da
traduccedilatildeo e comentaacuterios de alguns diaacutelogos platocircnicos23 O proacuteprio Ficino batiza o
local com o nome ldquoacademiardquo homenagem agrave antiga escola fundada por Platatildeo A
Academia de Careggi preluacutedio da Academia de Florenccedila que floresceria mais tarde
sob os auspiacutecios drsquoil Magnifico Lorenzo natildeo foi um organismo legalmente
constituiacutedo como uma instituiccedilatildeo mas um simples convecircnio de doutos reunidos em
nome de um mesmo interesse cultural Suas portas se abriram para receber os mais
diversos interessados desde pensadores ilustres como Angelo Poliziano Cristoforo
Landino e os irmatildeos Benivieni ateacute poetas oradores sacerdotes homens de governo
muacutesicos juristas meacutedicos e o proacuteprio Lorenzo
Do lado de fora o cenaacuterio florentino era incrementado pelo despertar do
interesse e do envolvimento cultural de crescente nuacutemero de habitantes da cidade
tatildeo amplo na segunda metade do seacuteculo que ultrapassava os meios acadecircmicos
estendendo-se aos burgueses meacutedicos funcionaacuterios puacuteblicos artesatildeos A discussatildeo
de obras difiacuteceis como De Ente et Uno de Pico della Mirandola de temaacutetica abstrata
e aparentemente reservada a poucos especialistas despertava o interesse de um
22 CASSUTO opcit 1918 pp301-303 O patriarca Yehiel da Pisa foi um dos grandes dinamizadores de
literatura e poesia da eacutepoca e seu neto tambeacutem Yehiel que viveu agrave eacutepoca de Lorenzo dersquo Medici acolheu em sua casa florentina por vaacuterios anos uma verdadeira corte de literatos hebreus Na casa de Yehiel Yohanan Alemanno foi criado desde ainda menino educado e instruiacutedo de forma ldquoamorosardquo como conta em ldquoPrefaacuteciordquo ao seu livro Chesel Shelomograve (apud CASSUTO ibid np303)
23 GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006 pp15-16
20
puacuteblico consideraacutevel a ponto de entusiasmaacute-lo24 O habitat florentino em si com seu
fervor cultural representava uma experiecircncia culturalmente importante para os
jovens estudantes que chegavam agrave cidade pela primeira vez como narraria Yohanan
Alemanno em uma de suas obras25 Enquanto isso dentro da Academia ocorria um
movimento de renovaccedilatildeo da feacute encabeccedilado por Ficino que fundamentando-se nas
especulaccedilotildees de Plethon postulava a comunhatildeo entre Religiatildeo e Filosofia buscando
acomodar aquela aos novos tempos26 A unificaccedilatildeo entre o Cristianismo e os
redescobertos temas da filosofia platocircnica e neoplatocircnica ndash em grande parte
originalidade sua ndash juntamente com sua vasta obra de traduccedilatildeo foram os dois
importantes legados deixados por Ficino
Efetivamente as traduccedilotildees foram uma dimensatildeo importante do Renascimento
florentino promovidas sobretudo pelo mecenato dos dois Medici avocirc e neto Dois
grandes conjuntos de obras foram traduzidos na comitiva de Lorenzo o de idioma
grego que incluiacutea textos neoplatocircnicos e hermeacuteticos e o hebraico que contemplava
tratados natildeo apenas filosoacuteficos como cabaliacutesticos27 Assim ao iniacutecio da deacutecada de lsquo60
Ficino traduz Alciacutenoo Especircusipo os ldquoVersosrdquo outorgados a Pitaacutegoras e o texto
lAssioco atribuiacutedo a Xenoacutecrates Mais adiante os hinos atribuiacutedos a Orfeu a
Homero os de Proclo e a Teologia de Hesiacuteodo Em lsquo84 inicia a traduccedilatildeo das
Eneacuteadas de Plotino e entre lsquo88 e lsquo93 traduz Teofrasto Porfiacuterio Jacircmblico Prisciano
Sineacutesio Miguel Psello Pseudo-Dioniacutesio e os fragmentos de Atenaacutegoras Junte-se a
essas a traduccedilatildeo de trinta e seis obras platocircnicas e vaacuterias outras28 A magnitude da
obra de traduccedilatildeo ficiniana natildeo suficientemente destacada viria a ter um notaacutevel
influxo no pensamento renascentista europeu aleacutem de propiciar agravequela cultura um
patrimocircnio ateacute entatildeo desconhecido em sua complexidade Ora nos seacuteculos anteriores
a essa eacutepoca os textos de Platatildeo natildeo eram lidos diretamente da fonte original trecircs
seacuteculos antes de Ficino o abade Guglielmo de Saint Thierry escrevia sobre o amor
24 Esses detalhes da vida na cidade podem ser avaliados atraveacutes de cartas trocadas entre Pico e cidadatildeos
comuns que natildeo apenas se mostravam interessados como estavam aptos muitas vezes a debater ideias filosoacuteficas bastante eruditas (cf Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p96)
25 Alemanno escreve na obra Hay ha-olamim (Lrsquoimmortale) que a cidade digna de se tornar a meca ideal de todo jovem desejoso de aprofundar seus conhecimentos era ldquoFirenze in terra di Toscanardquo O autor elenca as virtudes dos florentinos assim efetuando um verdadeiro elogio humanista agrave Repuacuteblica de Florenccedila (M MORTARA Catalogo dei manoscritti ebraici della biblioteca della comunitagrave israelitica di Mantova Livorno I Costa e C 1878 pp22-29 apud Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 51)
26 George Plethon vivera uma ldquofeacuterdquo neoplatocircnica procurando explicar questotildees teoloacutegicas de forma racional Ficino por sua vez torna-se padre catoacutelico e embora pretendendo seguir os cacircnones de sua feacute cristatilde natildeo consegue renunciar agrave formulaccedilatildeo de uma teologia racional capaz de dar agrave feacute religiosa um fundamento filosoacutefico (Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano p71) Sobre as afinidades entre o Platonismo e o Cristianismo veja-se COPENHAVERndashSCHMITT Renaissance philosophy A History of Western Philosophy 1992 p152
27 Segundo Moshe IDEL (1998 pp 19 24) a obra grega traduzida por Ficino e o conjunto cabaliacutestico traduzido por Mitridate foram as fontes mais importantes para o desenvolvimento intelectual dos pensadores florentinos do final do seacuteculo XV e da Europa como um todo Suas contribuiccedilotildees foram devidamente reconhecidas pelos estudiosos as traduccedilotildees de Ficino de forma especial por Paul Oskar KRISTELLER (La tradizione classica nel pensiero del Rinascimento 1975) Jaacute as traduccedilotildees do hebraico mais recentemente foram analisadas detalhadamente por Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticis 19871989)
28 Como infere Mariateresa BROCCHIERI (opcit p24) ldquoem momentos proacutesperos da Histoacuteria ocorrem afortunados fenocircmenos de encontro entre o poder e a cultura trecircs seacuteculos antes na rica Andaluzia muccedilulmana o califa Abu Yarsquoqub Yusuf passara a Averroacuteis a tarefa de traduzir e comentar Aristoacutetelesrdquo dando o pontapeacute inicial para um longo periacuteodo de estudos aristoteacutelicos Agora era a vez de Cosimo Ficino e a abertura para os estudos platocircnicos
21
platocircnico baseado em fontes indiretas como Ciacutecero ou Agostinho Mas agora no
seacuteculo de Pico podia-se ler Platatildeo diretamente e as suas palavras tornavam-se pontos
de referecircncias primaacuterias29
Em meio ao material filosoacutefico houve ainda dentro da esfera intelectual da
Renascenccedila um amplo espaccedilo para temaacuteticas de cunho ldquotranscendenterdquo de
acentuado teor esoteacuterico apresentadas muitas das vezes revestidas por uma
roupagem filosoacutefica entretecida de tendecircncias neoplatocircnicas hermeacuteticas e ndash menos
perceptiacuteveis ndash cabaliacutesticas Um dos responsaacuteveis por instigar tal atmosfera fora
George Plethon cuja influecircncia natildeo se dera apenas em relaccedilatildeo ao Platonismo ele
tambeacutem trouxera Hermes Trismegisto e Zoroastro para Florenccedila jaacute devidamente
sistematizados pelo bizantino Miguel Psello no seacuteculo XI30 A partir das traduccedilotildees de
Ficino para o latim conteuacutedos permeados de misticismo e magia passam a ser
transmitidos a vaacuterios nuacutecleos da sociedade embora tal gecircnero de interesse se
mostrasse anterior tendo percorrido o seacuteculo por inteiro A relevacircncia dada ao tema
permite algumas especulaccedilotildees Para o homem meacutedio31 a religiatildeo apresentava uma
dicotomia mateacuteria-espiacuterito entatildeo natildeo mais tanto satisfatoacuteria a mateacuteria era causa de
afliccedilotildees e o reino do espiacuterito mostrava-se distante demais A intuiccedilatildeo de mundos
intermediaacuterios corroborada pelas discussotildees astroloacutegicas trazia possiacuteveis respostas agrave
sua precaacuteria existecircncia ao mesmo tempo em que o conhecimento de formas de magia
permitia natildeo se deixar dominar pelo fatuum32 Criava-se assim um espaccedilo entre a
religiatildeo e a mateacuteria preenchido pelo acesso agravequelas realidades intermeacutedias como
observou Eric Weil ldquoo homem renascentista iacutea agrave missa e depois ao astroacutelogordquo33
Ademais a crenccedila na Astrologia se intensifica em razatildeo de um difundido
anseio por unificaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o cosmo ao seu redor ndash tema estimado pelo
ldquoespiacuteritordquo do seacuteculo e razatildeo do incremento daquele estudo em meio aos humanistas
da Academia A invenccedilatildeo da prensa graacutefica tornou possiacutevel determinar com certo
grau de precisatildeo quais obras eram consideradas essenciais ou populares agrave eacutepoca
atraveacutes da detecccedilatildeo de quais conteuacutedos foram impressos mais cedo e em maior
nuacutemero a quantidade de volumes dedicados agrave Astrologia no Quattrocento italiano
aponta para a disseminaccedilatildeo de tal interesse juntamente com sua centralidade nas
29 COPENHAVER-SCHMITT opcit pp133 ss No ldquoPrefaacuteciordquo ao Supplementum ficinianum Giovanni
GENTILE escreve que Ficino eacute importante natildeo apenas para o entendimento do Renascimento italiano como do Platonismo europeu que sobreviveria dois seacuteculos depois dele portanto para o entendimento de muito da Filosofia Moderna de cujo desenrolar se plasmou o pensamento de nosso tempo (KRISTELLER Supplementum ficinianum 1937) Eugenio GARIN por sua vez ajuiacuteza que ldquoacerca da ressonacircncia enorme causada pela traduccedilatildeo de Ficino nunca se diraacute o suficienterdquo (op cit 2007 p73)
30 Arthur FIELD The Platonic Academy of Florence in Allen-Rees (org) Marsilio Ficino his Theology his Philosophy his Legacy 2002 pp 359-376 Ainda para o tema veja-se IDEL 2008 p499
31 A menccedilatildeo ao homem ldquomeacutediordquo eacute usual em textos intelectuais da eacutepoca como os de Ficino e Pico para indicar homens natildeo partiacutecipes do mundo do pensamento Veja-se por exemplo De Hominis Dignitate Heptaplus De Ente et Uno e scritti vari 1942 p396
32 Natildeo poucos textos de conteuacutedos declaradamente maacutegicos circulavam no Quattrocento Eugenio Garin considera que o tema da magia encontra-se no centro do quadro renascentista tal constataccedilatildeo faz o autor se distanciar sob esse quesito de Jacob Burckhardt e Giovanni Gentile (cf Michele CILIBERTO Prefaacutecio a GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006) Sobre o fatuum veja-se GARIN ibid p42
33 Eric WEIL La Philosophie de Pietro Pomponazzi Pic de la Mirandole et la Critique de lrsquoAstrologie 1986 p66 Weil acrescenta que o homem do lsquo400 vivia em si uma divisatildeo interna estanque ele se via cristatildeo iacutea agrave igreja cumpria todos seus deveres religiosos ele sabia da existecircncia da alma e que essa tinha um valor mas era um saber ldquomortordquo pois o que ocorria no mundo material natildeo tinha relaccedilatildeo com a sua alma
22
discussotildees metafiacutesicas34 a presenccedila constante de instacircncias profeacuteticas na vida
poliacutetica as representaccedilotildees artiacutesticas (a imagem do homem coacutesmico onde cada parte
ou oacutergatildeo do corpo se encontra ligada a um corpo celeste torna-se comum nos
tratados astroloacutegicos) e a importacircncia do papel do astroacutelogo ndash que se torna um ator
social requisitado Todas indicaccedilotildees de um fenocircmeno central e caracterizante de uma
eacutepoca35
Sob tal clima homens letrados recepcionam o Picatrix manuscrito aacuterabe de
conteuacutedo maacutegico36 Bem mais que um manual de magia cerimonial o texto
contempla uma mescla de temas filosoacuteficos teoloacutegicos e praacuteticos apresentando um
nexo ldquoentre pressupostos teoacutericos e praacuteticas operativas entre hermetismo
especulativo de vieacutes platonizante e magia entre teurgia e teosofia orientalrdquo37 Lecirc-se
em suas linhas que ldquoa ciecircncia procede por graus conhecido um logo surge outro a
ser apreendidordquo e que ldquoatraveacutes da ciecircncia o homem faz milagres compreende tudo
consegue ser tudordquo38 Chamaria a atenccedilatildeo da Academia o conceito de ldquoNatureza
Perfeitardquo uma entidade espiritual agrave qual os filoacutesofos participam em graus diversos
qual um caminho iniciaacutetico que se desvela agrave medida que se caminha ndash um segredo
escondido dentro da Filosofia No proacuteprio Picatrix encontra-se sua definiccedilatildeo atraveacutes
de um belo discurso atribuiacutedo a Hermes Trismegisto ldquoA Natureza Perfeita eacute o
espiacuterito do filoacutesofo e do saacutebio conjugado ao planeta que o governa Eacute ele que abre as
portas da ciecircncia que o faz compreender as coisas que de outra forma natildeo poderia
compreender e das quais procedem as operaccedilotildees da natureza tanto em vigiacutelia como
no sono Daiacute resulta claro que a Natureza Perfeita se comporta no saacutebio e no filoacutesofo
como o mestre em relaccedilatildeo ao disciacutepulordquo39
O que interessa destacar eacute como as correspondecircncias entre conteuacutedos supra-
mundanos despertaram a atenccedilatildeo de estudiosos como Ficino levando-os a perceber
34 A chamada ldquopolecircmica da astrologiardquo colocaria em evidecircncia a multiplicidade de temas com ela convergentes
ou contrastantes deixando como heranccedila uma vasta quantidade de material literaacuterio O debate que perpassa todo o seacuteculo XV envolvendo um total de pelo menos trecircs seacuteculos torna partiacutecipes tanto homens de inegaacutevel conhecimento cientiacutefico como Paolo Toscanelli quanto homens de profunda religiosidade como Ficino cujas conhecidas praacuteticas astroloacutegicas contrastavam com seu pensamento cristatildeo Tanto Toscanelli quanto Ficino apesar de terem ambos colocado em duacutevida a validade das previsotildees astrais continuavam dependentes das prescriccedilotildees astroloacutegicas como observa Cesare VASOLI em seu ldquoPrefaacuteciordquo agrave obra de Garin (2011) A cidade de Ferrara um dos principais redutos de intelectuais abrigava ciacuterculos de doutos que se reuniam para tentar decifrar os significados que se escondiam nas intrincadas relaccedilotildees formadas entre os astros eram homens de razatildeo que comungavam da mesma ldquofeacuterdquo nas estrelas (Ernst CASSIRER Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1935 pp165 ss) Para os impactos sociais da Astrologia leia-se GARIN Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007
35 Franz BOLL Sphaera Neue griechische Texte und Untersuchungen zur Geschichte der Sternbilder Hildesheim Georg Olms reprinted 1967 p415 ss (apud GARIN Giovanni Pico della Mirandola 2011 p173)
36 O Ghayat al-hakim (O propoacutesito do Saacutebio) ou Picatrix foi um ceacutelebre tratado aacuterabe de autor incerto cuja versatildeo latina manuscrita circulou na Itaacutelia especialmente na segunda metade do lsquo400 ocasionando tanto admiraccedilatildeo quanto indignaccedilatildeo entre alguns cristatildeos e muccedilulmanos ndash como o estudioso Ibn Khaldun ndash por ser visto como um manual de necromancia Giovanni Pico possuiacutea uma coacutepia do manuscrito em sua biblioteca Ludovico Lazzarelli o utilizou bem como no seacuteculo seguinte Cornelio Agrippa Giordano Bruno e Tommaso Campanella A obra encontra-se atualmente no Manuscrito de Munique 214 f51r (Moshe IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e Cabalistas 2008-b np463 p474) Para o tema leia-se GARIN La diffusione di un manuale di Magia la cultura filosofica del Rinascimento italiano Firenze 1961 pp159-165
37 Cf GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006 p47 38 Picatrix III vi trad Henry CORBIN Lrsquohomme de lumiegravere dans le soufisme iranien 1971 pp29-46 39 Picatrix III vi trad CORBIN (opcit)
23
que muitos temas do Picatrix estavam expostos no Pimander hermeacutetico ndash a ser
abordado adiante ndash confirmando a estreita conexatildeo entre Hermetism0 Magia e
Astrologia Indo aleacutem o Picatrix expunha um saber operativo capaz de colocar em
praacutetica as doutrinas hermeacuteticas receacutem-descobertas Com efeito Ficino e Pico se
interessaram pela efetuaccedilatildeo das experiecircncias maacutegicas contidas na obra O clima
excepcional de abertura ao sincretismo de pensamento existente em Florenccedila natildeo
impediu contudo que Ficino sofresse perseguiccedilotildees da Igreja Vozes maliciosas
acusavam-no de ter continuado a realizar praacuteticas maacutegicas juntamente com Pico no
periacuteodo em que este se encontrava confinado apoacutes a condenaccedilatildeo de sua obra
Conclusiones Nongentae e mesmo depois de Ficino ter sido ameaccedilado de
condenaccedilatildeo eclesiaacutestica40 O proacuteprio padre confessava ter utilizado o Picatrix em seu
Terceiro Livro do De Vita ao tratar das propriedades terapecircuticas dos talismatildes
reconhecendo ldquoatraveacutes de longa experiecircnciardquo que a concentraccedilatildeo de influxos celestes
sobre uma imagem realizada segundo as corretas regras apresentava um singular
efeito terapecircutico41 Fato eacute que enquanto Ficino era acusado de praacutetica de magia a
obra De Vita via suas ediccedilotildees se multiplicarem
A Simetria entre as Antigas Teologias
Um ano apoacutes Cosimo ter pedido a Ficino que traduzisse algumas obras
platocircnicas eis que o monge Leonardo de Pistoacuteia chega da Macedocircnia trazendo para
Florenccedila uma coacutepia do Corpus Hermeticum O impacto do surgimento desse material
eacute tatildeo extraordinaacuterio que Ficino se vecirc obrigado a suspender a traduccedilatildeo das obras de
Platatildeo para dedicar-se imediatamente ao novo manuscrito Em uma tradiccedilatildeo que fora
inaugurada por Miguel Psello o pensamento bizantino vinha mantendo por seacuteculos
o Corpus Hermeticum em um lugar de honra dentro do ensinamento platocircnico42 e os
mestres chegados de Bizacircncio para o Conciacutelio de Florenccedila cerca de duas deacutecadas
antes haviam sido os primeiros a apontar para a afinidade existente entre o
Hermetismo e o Platonismo no que concernia agrave sistematizaccedilatildeo do cosmo e agrave
ldquoantropologiardquo presentes em seus textos43 A suposta anterioridade de Hermes
Trismegisto em relaccedilatildeo a Platatildeo e a superioridade espiritual dos egiacutepcios sobre os
gregos ndash entatildeo paradigma maacuteximo do conhecimento ndash sugerida nas palavras
40 GARIN 2006 pp42-49 Nas paacuteginas do Picatrix eacute possiacutevel encontrar um compecircndio de foacutermulas maacutegicas
nas quais satildeo utilizados ingredientes como o oacutepio o haxixe e outras plantas psicoativas cujo consumo induziria a estados alterados e favoraacuteveis agrave clarividecircncia (GARIN 2007 pp51 ss)
41 Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano 1970 p71 Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 38
42 Miguel Psello foi uma das personalidades mais importantes da cultura bizantina poliacutetico conselheiro de imperadores professor da Universidade de Constantinopla autor de numerosos escritos e conhecido em particular por suas obras de Histoacuteria envolveu-se na recuperaccedilatildeo da cultura claacutessica ndash interesse que encontrou a hostilidade dos ciacuterculos tradicionalistas da Igreja Bizantina Comentador de Aristoacuteteles e Platatildeo Psello tambeacutem se interessou pelas obras dos neoplatocircnicos Psello efetuou um recolhimento das coleccedilotildees gregas referentes aos materiais hermeacutetico e caldeu a partir de fragmentos encontrados em Plotino Proclo e outras fontes similares tardias (cf Stephan FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses (1486) The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 pp486-487 A relaccedilatildeo de seus escritos pode ser vista em Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquo Oratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 p19
43 O tema eacute desenvolvido por Paul Oskar KRISTELLER em El pensamiento renacentista y sus fuentes (1982 pp 206-224)
24
atribuiacutedas ao rei-sacerdote44 talvez tenham sido duas entre as razotildees para que os
Diaacutelogos fossem deixados temporariamente de lado
Na medida em que tiveres o poder oacute rei que tudo pode
preserva a qualquer custo este discurso de toda traduccedilatildeo para
que misteacuterios assim grandes natildeo cheguem aos Gregos e a sua
orgulhosa fala com falta de forccedila natildeo faccedila empalidecer e natildeo
anule a gravidade a robustez a virtude operativa dos vocaacutebulos
de nossa liacutengua Pois que os Gregos oacute rei dispotildeem apenas de
discursos vazios afeitos a produzir demonstraccedilotildees e nisso na
realidade consiste toda a sua filosofia em um barulho de sons
Noacutes diversamente natildeo nos utilizamos simplesmente de
palavras mas de sons plenos de eficaacutecia45
O gesto de Cosimo de pedir a traduccedilatildeo de Hermes antes de Platatildeo natildeo estaria
livre de significados o contato com aqueles textos enigmaacuteticos marca com uma
impronta o acircmbito intelectual florentino e o Hermetismo passa a ser uma doutrina
cultuada em toda a sua complexidade maacutegica e teoloacutegica ademais seus ecos seratildeo
fortemente ouvidos no seacuteculo posterior como pode ser constatado atraveacutes de vasta
literatura46 Antes das novas traduccedilotildees o Asclepius um dos tratados hermeacuteticos
havia circulado no Medievo de forma que algumas de suas doutrinas natildeo eram
desconhecidas e vinham sendo estudadas por alguns sobretudo por intermeacutedio das
obras de Lactacircncio e Agostinho ndash o primeiro com seus elogios o segundo com suas
condenaccedilotildees47 Ficino conhecera o Asclepius sete anos antes de iniciar a traduccedilatildeo dos
demais tratados tendo copiado alguns de seus capiacutetulos em um manuscrito pessoal
De toda forma eacute somente a partir de seu amplo trabalho de traduccedilatildeo que o
44 Os humanistas do Renascimento natildeo tinham duacutevidas acerca da antiguidade e da autenticidade daqueles
textos ndash mais tarde revelados pseudoepigraacuteficos dos primeiros seacuteculos da era vulgar ndash e tampouco sobre Hermes ter sido um real sacerdote egiacutepcio
45 Corpus Hermeticum XVI 2 (ed NOCK-FESTUGIEgraveRE 2006 pp429 ss) όσον οΰν δυνατόν έστί σοι βασιλεΰ πάντα δέ δύνασαι τόν λόγον διατήρησον άνερμήνευτον ίνα μήτε είςΈλληνας έλθη τοιαΰτα μυστήρια μήτε ή τών Ελλήνων υπερήφανος φράσις καί έκλελυμένη καί ώσπερ κεκαλλωπισμένη έξίτηλον ποιήση τό σεμνόν καί στιβαρόν καί τήν ενεργητικήν τών ονομάτων φράσινΈλληνες γάρ ώ βασιλεΰ λόγους έχουσι κενούς αποδείξεων ενεργητικούς καί αΰτη έστίν Ελλήνων φιλοσοφία λόγων ψόφος ήμεΐς δέ ού λόγοις χρώμεθα άλλα φωναΐς μεστάΐς τών έργων Traduccedilatildeo do grego feita por Andregrave Festugiegravere traduccedilatildeo para o portuguecircs de nossa responsabilidade
46 Agrave primeira ediccedilatildeo latina do Corpus Hermeticum publicada em 1471 e ateacute entatildeo desconhecida no Ocidente seguiram-se ao menos vinte e quatro ediccedilotildees nos dois seacuteculos posteriores Somente o Pimander primeiro dos tratados teve dezesseis ediccedilotildees entre o final do seacutec XV e o final do seacutec XVI (cf KRISTELLER Studies in Renaissance thought and letters 1956 p223 ss) O impacto da obra hermeacutetica natildeo poderia deixar de atingir o mundo das Artes uma bela representaccedilatildeo de Hermes Trismegisto encontra-se no mosaico de maacutermore feito por Giovanni di Stefano em 1488 para a Catedral de Siena comprovando a aceitaccedilatildeo do saacutebio pagatildeo em territoacuterio cristatildeo Para as repercussotildees do tema veja-se Frances YATES ldquoThe Hermetic Tradition in Renaissance Sciencerdquo in Art Science and History in the Renaissance Baltimore Johns Hopkins Press 1968 pp 255-274 Eugenio GARIN Ermetismo del Rinascimento Pisa ed Della Normale 2006 James HEISER Prisci Theologi and the Hermetic Reformation in the Fifteenth Century Texas Repristination Press 2011 Luisa ROTONDI SECCHI TARUGI LErmetismo nellrsquo Antichitagrave e nel Rinascimento Milano Nuovi Orizzonti 1998
47 As citaccedilotildees hermeacuteticas de Lactacircncio partem da versatildeo de um escrito grego o Loacutegos teacuteleios difundido tambeacutem em versatildeo copta Em carta a Cosimo (contida no Proacutelogo agrave traduccedilatildeo do Pimander) Ficino faz referecircncia agraves acusaccedilotildees de Agostinho acerca das possiacuteveis origens divinatoacuterias ou demoniacuteacas das doutrinas de Hermes no Asclepius (De civitate Dei VIII 23-26) Por tal razatildeo o padre-filoacutesofo teria optado por seguir os juiacutezos mais favoraacuteveis de Lactacircncio Petrarca Coluccio Salutati e Nicolau de Cusa tambeacutem atestam conhecer o conteuacutedo do Asclepius sempre atraveacutes dos olhos de Lactacircncio e Agostinho Para as referecircncias das obras desses autores veja-se GARIN 2006 pp10 ss
25
Hermetismo passa a contribuir e natildeo pouco com a disseminaccedilatildeo de ldquouma nova
sensibilidaderdquo que incrementa ldquoo gosto pelo misteacuterio e pelo ocultordquo conforme ajuiacuteza
Eugenio Garin48
Dentre os dezoito tratados que compotildeem o Corpus49 o Pimander primeiro a
iniciar a ordenaccedilatildeo expotildee um relato sobre a criaccedilatildeo do mundo o homem e sua
Queda Os tratados seguintes descrevem a ascensatildeo da alma pelas esferas dos
planetas para o reino divino e seus processos de regeneraccedilatildeo O Asclepius ou
Discurso Perfeito ndash opuacutesculo desassociado dos demais tratados cuja traduccedilatildeo foi
erroneamente atribuiacuteda a Apuleio de Madaura por natildeo poucos filoacutelogos ndash50 trata da
religiatildeo dos egiacutepcios e seus ritos sacerdotais alguns polecircmicos por serem destinados
a atrair as forccedilas do cosmo para as estaacutetuas de seus deuses O ensinamento nuclear
do Pimander mostra conformidades com o processo de uniatildeo ao Inteligiacutevel descrito
no manual de magia Picatrix que natildeo deixariam de ser percebidas nos dois textos
mestre e disciacutepulo se unificam o diaacutelogo do ser eacute com o noucircs no primeiro e com a
ldquoNatureza Perfeitardquo no segundo ldquoPimander eacute o noucircs que acompanha sempre o
disciacutepulo eacute pois a Natureza Perfeitardquo51
Esse tipo de conteuacutedo tanto em suas partes teoreacuteticas quanto teuacutergicas seria
reconhecido outrossim em meio aos enunciados caldeus introduzidos na urbe por
Plethon Os Oraacuteculos Caldeus atribuiacutedos ao sacerdote persa Zoroastro foram
manuscritos muito bem recepcionados pelo seacuteculo XV tal como ocorreu com os
hermeacuteticos52 Seu conteuacutedo de acordo com juiacutezo de Darby Nock apresenta fortes
semelhanccedilas com escritos do Gnosticismo cristatildeo ndash que em muitos pontos
coincidem com o conteuacutedo do Platonismo dos seacuteculos II e III ndash como o anelo por
certeza e revelaccedilatildeo a propensatildeo agraves abstraccedilotildees metafiacutesicas e a preocupaccedilatildeo com a
alma e sua salvaccedilatildeo53 Des Places descreve o conteuacutedo dos Oraacuteculos como uma seacuterie
de ideias ldquosobre Deus os daimons a alma o cosmordquo aleacutem de indicaccedilotildees sobre ritos
teuacutergicos54 Algumas passagens satildeo descritivas revelando a natureza de Deus do
intelecto e das hipoacutestases derivadas do Uno outras prescritivas formulam
instruccedilotildees que o teurgo deve seguir para purificar suas almas racional e irracional e
o corpo com o objetivo de se juntar agrave fonte original55 Haacute um grande nuacutemero de
48 GARIN 2006 p74 49 A ordenaccedilatildeo foi realizada por Darby Nock que distingue o Corpus Hermeticum do Asclepius e de outros
fragmentos atribuiacutedos a Estobeu Entretanto o todo da obra hermeacutetica eacute chamado a grosso modo Corpus Hermeticum O manuscrito original encontra-se em Florenccedila na Biblioteca Riccardiana 709 ff10r-12r
50 A autoria do Asclepius manteacutem-se desconhecida Ficino atribui a Apuleio a traduccedilatildeo mais antiga do corpus ldquoE multis denique Mercurii libris duo sunt divini praecipue unus de voluntate divina alter de potestate et sapientia dei Ille Asclepius hic Pimander inscribitur Illum Apuleius platonicus latinum fecit alter usque ad haec tempora restitit apud graecosrdquo (Marsilio FICINO Pimander in Opera Omnia KRISTELLER-SANCIPRIANO 1962 p1836)
51 A siacutentese eacute de Eugenio GARIN (2006 pp45-46) conforme sua leitura do Picatrix 52 Ficino traduziu os Oraacuteculos a partir da versatildeo grega de Plethon acrescentando a eles seu proacuteprio comentaacuterio
(FARMER op cit p486) Fontes antigas propotildeem que o verdadeiro autor dos Oraacuteculos Caldeus ou Loacutegia Chaldaikaacute tenha sido Giuliano o Teurgo filho de Giuliano o Caldeu que viveu agrave eacutepoca de Marco Aureacutelio em cerca de 150 dC Sobre a recepccedilatildeo aos textos de Giuliano na Academia veja-se Bohdan KIESZKOWSKI Studi sul platonismo del Rinascimento in Italia 1936
53 Cf ldquoPrefaacuteciordquo de Arthur Darby Nock ao Corpus Hermeticum opcit p 16 54 Edouard DES PLACES Oracles chaldaiumlques 1971 p12 55 Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquoOratio indagine sui presupposti cabbalistici della
concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 p18
26
elementos que remetem ao Timeu platocircnico uma das razotildees que provavelmente
levou Plethon a colocar os Oraacuteculos como fundamento de sua teologia identificando-
os como a fonte das doutrinas zoroastrianas que se encontravam na origem da
teologia platocircnica Em resposta a George Scolario Plethon com efeito atestava ldquoQue
Platatildeo fez dessa filosofia a sua proacutepria eacute demonstrado pelos Oraacuteculos que nos
chegaram de Zoroastro e que concordam em todos os aspectos com as doutrinas de
Platatildeordquo56
Sabe-se que a mentalidade renascentista apreciava os arranjos simeacutetricos de
forma que todas essas traduccedilotildees pertencentes a tradiccedilotildees que natildeo somente detinham
uma prerrogativa de sabedoria como ainda apresentavam uma simetria entre seus
conteuacutedos seriam facilmente absorvidas pelos meios intelectuais sobretudo na
Academia Para muitos humanistas do lsquo400 as formas e os fenocircmenos religiosos
mais antigos eram em certo sentido verdadeiramente puros por se encontrarem
mais proacuteximos da forma original revelada pelo divino aos homens Assim havia um
terreno propiacutecio para o cultivo daqueles temas que contemplavam desde o fasciacutenio
do antigo Egito e seus rituais maacutegicos ateacute a concepccedilatildeo de uma renovaccedilatildeo religiosa
ademais proclamavam o lugar privilegiado do homem ndash tema que seria retomado
por alguns humanistas57 Ficino natildeo demora a incorporar aquelas doutrinas a seus
pensamentos percebendo semelhanccedilas com a filosofia platocircnica e descobrindo
correspondecircncias em Plotino Jacircmblico e Proclo reconhece simetrias teoreacuteticas
sobretudo nos enunciados pertinentes a sistemas cosmoloacutegicos e metafiacutesicos que
passariam a ser enfatizadas em suas obras58
A similaridade encontrada entre esses materiais constituiram para Ficino um
testemunho de arcana mysteria Na concepccedilatildeo ficiniana de inspiraccedilatildeo plethoniana
existiria uma antiga corrente de ensinamentos filosoacuteficos transmitidos por profetas-
teoacutelogos que teriam concebido uma organizaccedilatildeo dos planos inteligiacuteveis
fundamentada em revelaccedilotildees recebidas Sob seu olhar natildeo distante da visatildeo de
outros filoacutesofos ligados ao Neoplatonismo a atividade filosoacutefica coincide com a
teoloacutegica na medida em que prepara a alma-intelecto para acolher a ldquorevelaccedilatildeordquo Os
antigos teoacutelogos prisci theologi satildeo pois aqueles que conhecem por revelaccedilatildeo a
verdade sempre a mesma por se tratar de realidade natildeo sujeita ao devir Seguindo
uma tradiccedilatildeo ininterrupta as doutrinas de Trismegisto foram sendo transmitidas a
outros saacutebios da Antiguidade chegando ateacute Platatildeo compondo o que seria uma secta
philosophorum ndash como escreveria Ficino em sua carta a Cosimo dersquo Medici59
ldquoHermes por primeiro foi chamado teoacutelogo [primus igitur theologiae apellatus est
autor] o seguiu como segundo teoacutelogo Orfeu depois Aglaofemo Pitaacutegoras e
56 A passagem eacute citada e traduzida por S GENTILE Sulle prime traduzioni dal greco di Marsilio Ficino in
ldquoRinascimentordquo nr 30 1990 pp 64-65 apud CORAZZOL opcit p20 57 Para o influxo do Hermetismo sobre os Humanistas leia-se Paul Oskar KRISTELLER El pensamiento
renacentista y sus fuentes 1982 pp 206-219 58 Brian COPENHAVER Hermes Trismegistus Proclus and the Question of a Philosophy of Magic in the
Renaissance in Merkel-Debus (org) Hermeticism and the Renaissance Intellectual History and the Occult in Early Modern Europe 1988 pp 79-110
59 KRISTELLER Studies in Renaissance Thought and Letters 1996
27
Filolau mestre de nosso divino Platatildeordquo60 Plethon havia antecedido Ficino em sua
Prisca Theologia iniciando seu elenco com Zoroastro Certamente o influxo da
concepccedilatildeo intuiacuteda pelo mestre bizantino faria efeito sobre Ficino visto que em seu
ldquoproecircmiordquo agrave traduccedilatildeo das Eneacuteadas plotinianas de 1492 Hermes e Zoroastro seriam
colocados juntos em primeiro lugar como iniciadores da pia philosophia61
Nos anos proacuteximos agrave composiccedilatildeo do De Vita Ficino volta-se cada vez mais
para a traduccedilatildeo de obras de maior cunho esoteacuterico como eacute o caso do De Mysteriis
atribuiacutedo a Jacircmblico e do texto hieraacutetico de Proclo De sacrificio et Magia62 As
concepccedilotildees acerca da existecircncia de uma cadeia formada por antigos ldquoteoacutelogosrdquo a
abertura ao Platonismo estimulada pelos mestres bizantinos as repercussotildees do
misticismo hebraico as traduccedilotildees de Ficino as polecircmicas acerca da Astrologia e da
Magia que perpassam o seacuteculo satildeo todas caracteriacutesticas que se aliam para compor
um ldquoesprit du siegraveclerdquo abrindo espaccedilo para teologias estrangeiras que natildeo poderiam
deixar de influir na composiccedilatildeo do pensamento de Pico della Mirandola Resta
observar que a paulatina mudanccedila de consciecircncia trazida pela renovatio do
Quatrocentos deve-se em grande parte aos pressupostos metafiacutesicos trazidos pela
redescoberta de antigas doutrinas que fundamentaram muitos dos postulados
filosoacuteficos e teoloacutegicos da eacutepoca
60 Marsilio FICINO Proacutelogo ao Pimander (Opera Omnia Kristeller-Sancipriano (org) 1962 vol II p1836)
Para um estudo completo acerca da Prisca Theologia ficiniana leia-se DPWALKER Spiritual and demonic magic from Ficino to Campanella London The Warburg Institute 1958
61 Marsilio FICINO Opera Omnia opcit vol II p1537 ldquoFactum est ut pia quaedam philosophia quondam et apud Persas sub Zoroastre et apud Aegyptios sub Mercurio nasceretur utrobique sibimet consona nutriretur deinde apud Traces sub Orpheo atque Aglaophemo adolesceret quoque mox sub Pythagora apud Graecos et Italos tandem vero a divo Platone consummaretur Athenisrdquo
62 GARIN 2006 p68
28
CAPIacuteTULO II
GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA
Giovanni Pico foi um ser fascinante Mas natildeo feliz Seus mais intensos
projetos foram malogrados Todavia foi aclamado pelos criacuteticos como um dos mais
notaacuteveis representantes da Filosofia Renascentista por seus contemporacircneos como
o mais saacutebio filoacutesofo de sua eacutepoca1 Fruto de seu seacuteculo ou quem sabe de uma
personalidade marcada por contrastes seu pensamento natildeo estaacute livre de
contradiccedilotildees A mais visiacutevel que extravasa para a sua inteira obra encontra-se na
dicotomia entre feacute e ratio ou entre o piedoso servo da Igreja e o filoacutesofo que se liberta
de todo o dogma para investigar os mais diversos caminhos2 Tais contrastes ao se
aliarem a um forte carisma agrave fama de gecircnio multifacetado3 e a um conjunto de
circunstacircncias extraordinaacuterias ndash tais como uma vida marcada pela trageacutedia e a morte
prematura aos 31 anos ndash contribuiacuteram para criar uma atmosfera de encanto em
torno de seu nome a ponto de a cerca de trecircs deacutecadas de sua morte ainda ser
chamado de ldquohomem quase divinordquo por Maquiavel4
Enaltecimentos natildeo lhe faltaram A despeito dos elementos contrastantes em
sua obra ndash ou justamente por causa deles ndash seu legado pode ser considerado como a
siacutentese que agrega algumas das investigaccedilotildees mais marcantes de sua eacutepoca (ldquoas
causas das coisas os processos da natureza a razatildeo do universordquo)5 o que fez com que
ganhasse o interesse de famosos intelectuais europeus ao longo dos seacuteculos e
recebesse elogios de pensadores tatildeo diversos quanto Erasmo de Rotterdam Pierre
Gassendi Kepler e Voltaire6 O apreccedilo de Thomas More pela obra piquiana fez com
1 Giovanni Pico foi considerado ainda o mais jovem nobre e belo filoacutesofo de seu tempo O escolaacutestico Angelo
Poliziano se referia ao amigo em suas cartas como o ldquodivino Picordquo (sacer Picus) a ldquofecircnixrdquo (phoenix) o ldquosemideusrdquo (heros) a ldquoluz de todo o aprendizadordquo (lux omnium doctrinarum) e ldquoaquele que eacute bonito como ningueacutem e mais eminente em todos os ramos do aprendizadordquo (quo nec pulchrior alter mortalium nec in omnibus arbitror doctrinis excellentior) Para essa e outras passagens veja-se POLIZIANO Letters Shane Butler (org) Cambridge Harvard University Press 2006 1 36-37 118-19 134-35 193 Acerca da beleza do conde avultam as descriccedilotildees ldquoEra cosigrave bello colle chiome doro svolazzanti sul volto radioso quasi novello Adone come ce lo dipinge il Ramusio [Girolamo Ramusio] in un carme latinordquo (FLAMINI Girolamo Ramusio in Atti e Memorie di R Acc di Padova 1899-1900 vol XVI pp 11-37 apud Giovanni SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola - La Fenice degli Ingegni 1921 p9) Ver tambeacutem Joseacute Vitorino de PINA MARTINS Jean Pic de la Mirandole - Un portrait inconnu de lrsquohumanisme 1976
2 Como acentuou Newton BIGNOTTO Pico ldquofoi prisioneiro das duacutevidas que assaltavam os que se dispunham a lidar com novas ideias e continuar a viver no interior da feacute cristatilderdquo (Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola 2010 p147)
3 Tornou-se proverbial a prodigiosa memoacuteria de Pico Detinha na mente numerosas obras que o faziam ter uma habilidade enciclopeacutedica de oratoacuteria Sua capacidade de retenccedilatildeo era tal que podia recitar a inteira Divina Commedia de traacutes para frente iniciando do uacuteltimo verso ndash podendo fazer isso com qualquer poema que acabasse de ler (Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)
4 Nicolau MAQUIAVEL Histoacuteria de Florenccedila livro VIII 2007 p557 Tal obra foi escrita entre 1520 e 1527 portanto nos uacuteltimos anos da vida de Maquiavel
5 PICO De Hominis Dignitate Heptaplus De Ente et Uno et scritti vari 1942 p130 ldquoQuasi rerum causas naturae vias universi rationem []rdquo
6 Veja-se respectivamente Marc LAUREYS The Reception of Giovanni Pico in the Low Countries in Gian Carlo GARFAGNINI Giovanni Pico della Mirandola Convegno internazionale di studi nel cinquecentesimo anniversario della morte (1494ndash1994) 1997 p629 Brian VICKERS Critical Reactions to the Occult Sciences during the Renaissance in The Scientific Enterprise - The Bar-Hillel Colloquium Studies in History Philosophy
29
que a difundisse ao puacuteblico inglecircs em larga escala seja atraveacutes das traduccedilotildees das
cartas e pequenos textos de Pico seja por sua livre traduccedilatildeo do livro Vita de
Gianfrancesco Pico que constitui a primeira biografia impressa em inglecircs7 Em
tempos contemporacircneos foi alccedilado ao tiacutetulo de ldquoFecircnix dos Engenhosrdquo por Giovanni
Semprini ldquoAlma do Renascimento italianordquo por Eugenio Garin e ldquoAurora
inacabadardquo por Henri de Lubac8
A principal marca de Pico foi natildeo se ter entregue inteiramente a nenhuma
corrente de pensamento fosse filosoacutefica ou teoloacutegica Com isso suas ideias o
colocaram em constante linha de fogo cruzado natildeo lhe permitindo pertencer de
forma plena a nenhum ciacuterculo Nem mesmo as vestes de sua cepa aristocraacutetica foram
vestidas de forma confortaacutevel seu entusiasmo por ideias novas a paixatildeo pela
investigaccedilatildeo e a rapidez febril com as quais expunha suas opiniotildees afastavam-no da
prudecircncia tiacutepica de um bom cortesatildeo9 ademais a escolha de uma vida filosoacutefica natildeo
fazia parte do repertoacuterio da nobreza no seacuteculo XV cujo caminho usual passava pelo
clero ou pela corte A resposta a Andrea Corneo que o exortava a abraccedilar esta uacuteltima
indica a verdadeira propensatildeo de Pico
Me escrevestes lsquoaproxima-se o tempo em que deveraacutes colocar-
te a serviccedilo de algum dos grandes [priacutencipes] da Itaacuteliarsquo Parece-
me que ignoras a opiniatildeo que tecircm de si os amantes da Filosofia
Esses de acordo com Horaacutecio se consideram reis natildeo sabem
servir e adequar-se aos costumes de outros vivem consigo
mesmos contentes da proacutepria serenidade se bastam e natildeo
precisam de nada que esteja fora de si mesmos [] E eu
partilhando dessa opiniatildeo anteponho a minha pequena cela [no
claustro] os meus estudos os prazeres que me propiciam os
meus livros agraves salas reais aos negoacutecios puacuteblicos aos favores da
corte10
Seus pensamentos e escritos determinaram os acontecimentos de sua
trajetoacuteria Veremos que as accedilotildees sofridas e o fato de sua obra mais grandiosa natildeo ter
tido a chance de ser concluiacuteda foram consequecircncias dramaticamente ligadas agrave
originalidade de suas premissas
and Sociology of Science ed Edna Ullmann-Margalit Dordrecht 1992 nr 4 p 75 Sheila RABIN Keplerrsquos Attitude toward Pico and the Anti-Astrology Polemic in Renaissance Quarterly 50 1997 pp 750-70 Para as avaliaccedilotildees de Voltaire sobre Pico veja-se Henri De LUBAC Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions 1974 p 13
7 Essa e outras referecircncias podem ser encontradas na ldquoIntroduccedilatildeordquo de Michael DOUGHERTY agrave sua obra Pico della Mirandola New Essays 2008 pp 1-2
8 As criacuteticas embora de menor vulto tambeacutem natildeo faltaram Dentre os comentaristas Lynn THORNDIKE eacute o que faz uma das mais duras avaliaccedilotildees da obra de Pico considerando o autor ldquoimaturordquo (A History of magic and a experimental science vol 4 1934 p485)
9 Conforme relata o sobrinho Gianfrancesco agrave velocidade intelectual de compreensatildeo e de apreensatildeo correspondia em Pico uma escrita raacutepida nervosa algumas vezes difiacutecil de entender Escrevia em toda a parte em folhas soltas tanto que apoacutes sua morte foi bastante trabalhoso para o sobrinho pocircr ordem naqueles escritos muitos deles incompletos (Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p97)
10 PICO Carta de 15 Outubro 1486 in Opera omnia ediccedilatildeo Basileia 1557 (apud Albano BIONDI Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pVIII) NOTA As traduccedilotildees para o portuguecircs das citaccedilotildees presentes neste capiacutetulo satildeo de nossa responsabilidade
30
1 A Vida
A primeira biografia de Giovanni Pico escrita pelo sobrinho-escritor
Gianfrancesco11 conta que durante seu nascimento foi visto um brilhante ciacuterculo
iacutegneo pairando sobre a cama da matildee parturiente ali permanecendo por algum
tempo O fato ocorreu em 24 de Fevereiro de 1463 no castelo do condado de
Mirandola12 A imagem foi prontamente associada agrave perfeiccedilatildeo do pensamento de
Pico que ldquocomo o fogo estaacute sempre voltado agraves coisas celestesrdquo Essas palavras
completam a narrativa incomum publicada apoacutes a morte do biografado o autor
sabia que a descriccedilatildeo soacute seria bem aceita pelo puacuteblico se o personagem central fosse
detentor de uma reputaccedilatildeo que permitisse tal associaccedilatildeo13
Filho temporatildeo Giovanni cresce sob estrito zecirclo da matildee donna Giulia dei
Boiardo no coraccedilatildeo de uma nobre famiacutelia em meio a conflitos familiares (que
levariam agrave morte anos mais tarde do sobrinho-bioacutegrafo)14 Aos catorze anos eacute
encaminhado para estudar Direito Canocircnico em Bolonha seguindo o costume que o
destinava agrave vida eclesiaacutestica A cidade conhecida por transmitir as ideias humanistas
da Itaacutelia para a Europa foi responsaacutevel por despertar a atraccedilatildeo do jovem pela ordem
dominicana aleacutem do gosto pelas preacutedicas dos frades envolvidos com assuntos
acadecircmicos Apoacutes dois anos da mudanccedila ocorre o falecimento da matildee e o rapaz
encontrando-se oacuterfatildeo vecirc-se obrigado a tomar suas decisotildees dali em frente sozinho15
11 A primeira biografia sobre Pico foi escrita por seu sobrinho Gianfrancesco Pico della Mirandola e publicada
na primeira ediccedilatildeo da Opera Omnia em Bolonha em 20 de marccedilo de 1496 Com base em sua obra e ainda com um conjunto de 120 cartas sobreviventes eacute possiacutevel estabelecer uma biografia de Pico bastante detalhada A Opera Omnia foi traduzida para o inglecircs posteriormente por Sir Thomas More e impressa em Londres em 1510 (Thomas MORE Giovanni Pico della Mirandola His Life by His Nephew Giovanni Francesco Pico ed J M Rigg- D Nutt London l89o) A moderna ediccedilatildeo chamada apenas Vita denomina-se Ioannis Pici Mirandulae viri omni disciplinarum genere consumatissimi vita per Ioannem Franciscum illustris principis Galeotti Pici filium conscripta (ed B Andreolli Aedes Muratoriana Modena 1994) Vejam-se mais dados biograacuteficos em E GARIN Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina 2011 L VALCKE Pic de la Mirandole un itineacuteraire philosophique 2005 D BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola cenni e documenti inediti in Rivista contemporanea 1859 pp7-56 H de LUBAC Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions 1974 W CRAVEN Pico della Mirandola Bologna 1984 J JACOBELLI Pico della Mirandola 1986 G SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola-La Fenice degli Ingegni 1921
12 Daiacute ser chamado Giovanni Pico dos condes de Mirandola e Concoacuterdia 13 A reflexatildeo estaacute em BROCCHIERI opcit pp5-8 Natildeo se deve julgar precipitadamente o sobrinho-bioacutegrafo
por um suposto enaltecimento do tio Seus escritos mostram que natildeo haacute uma exaltaccedilatildeo mas antes o contraacuterio em muitos momentos Gianfrancesco eacute bastante severo e criacutetico acerca do pensamento de Pico Sobre as circunstacircncias do nascimento veja-se Felice CERETTI Giulia Boiardo in Atti e Memorie 1881 vol 4 part 3 p 213 Jacob BURCKARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1902 pp 142 e 232 Acerca das relaccedilotildees com a matildee ldquoDonna Giuliardquo veja-se SEMPRINI op cit pp1-3
14 Conforme historiadores durante o periacuteodo de Senhorio da famiacutelia Pico que durou quatro seacuteculos (ateacute 1710) os habitantes do condado gozaram de prosperidade econocircmica e estabilidade legislativa e poliacutetica aleacutem de certa liberdade religiosa que levou ao florescimento de novas ordens como a dos ldquoMendicantirdquo Da colaboraccedilatildeo com os Mendicantes nasceu em Mirandola o ldquoDesco dei Poverirdquo e o Monte do Pietagrave aleacutem do mosteiro feminino das Clarissas (cf BROCCHIERI opcit p4) Apoacutes a morte do pai que ocorre quando Giovanni era crianccedila seus irmatildeos Galeotto e Anton Maria viveram em perene discoacuterdia em razatildeo da posse do feudo A luta familiar terminaria por extinguir o sobrinho de Giovanni Gianfrancesco assassinado em 1533 por um de seus parentes (cf Felice CERETTI Biografie pichensi 1909 pp91-127)
15 Pasquale VILLARI Girolamo Savonarola 1910 pp 21-23 SEMPRINI opcit pp3-4 BROCCHIERI opcit pp4-5 GARIN 2011 pp3-5 Vejam-se dados biograacuteficos em ldquoProgetto Picordquo convecircnio entre a Universitagrave degli Studi di Bologna e a Brown University
31
Assim aos dezesseis anos abandonando a futura carreira de jurista parte para
Ferrara cidade das mais pujantes e populosas da Itaacutelia prestigiada por seu
endereccedilamento ao estudo das Humanidades Ferrara passaria a ser o local em que
Giovanni daria seus primeiros passos em direccedilatildeo agraves disciplinas filosoacuteficas e para onde
voltaria vaacuterias vezes em seus uacuteltimos anos de vida16 Na nova cidade passa a
frequentar os ciacuterculos de discussotildees acadecircmicas chamando a atenccedilatildeo por ser o
integrante mais jovem Entre as principais pessoas que vem a ter conhecimento estatildeo
Battista Guarino mestre que lhe apresenta um tipo de conhecimento laico ateacute entatildeo
desconhecido e o frei Girolamo Savonarola encontro que mais tarde seraacute
determinante em sua vida17 Apoacutes dois anos de intenso aprendizado o nuacutecleo de
Ferrara antes repleto de novidades passa a mostrar-se limitado Pico cada vez mais
interessado em escarafunchar conventos e bibliotecas atraacutes de novos volumes18
sente-se atraiacutedo por um ambiente mais renomado e vivo de disputas acadecircmicas19
Paacutedua
Em 1480 agora com dezoito anos Pico chega a Paacutedua Na mais famosa
universidade italiana da eacutepoca onde permaneceraacute por dois anos estudando o pupilo
abraccedila definitivamente a Teologia e a Filosofia20 A formaccedilatildeo aristoteacutelica iniciada em
Ferrara seria mantida uma vez que a Escola de Paacutedua seguia uma linha de tradiccedilatildeo
notadamente averroiacutesta O ambiente de estudos padovanos o satisfaz amplamente
como demonstra uma carta escrita ao novo amigo Ermolao Barbaro21 Uma das
razotildees encontrava-se no fato de ter contato com pessoas que viriam a ter significado
fundamental em seu desenvolvimento e em sua vida Aleacutem de Barbaro tornado
doutor e titular da caacutetedra de Filosofia Moral aos vinte e trecircs anos com o qual a
identificaccedilatildeo foi imediata Pico conheceu Nicoletto Vernia original professor que o
fez conhecer a concepccedilatildeo averroiacutesta de unidade do intelecto pela primeira vez ndash tema
que teria forte impacto sobre sua formaccedilatildeo e ao qual voltaria tempos depois22 O
mestre aristoteacutelico foi de certa forma tambeacutem o primeiro a influenciaacute-lo sobre a
harmonia de pensamento entre Platatildeo e Aristoacuteteles projeto que seria perseguido por
Pico durante os proacuteximos anos de sua vida Ainda em Paacutedua Pico conhece o coetacircneo
Elia del Medigo23 jovem brilhante que como ele teraacute uma morte prematura O
cretense douto hebreu e precoce tradutor de Averroacuteis e de outros textos aacuterabes
16 GARIN ibid pp 3-8 SEMPRINI opcit p5 17 SIRGADO GANHO Comentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitate 2001 pp 15-16 SEMPRINI opcit p4
GARIN 2011 p8 18 SEMPRINI ibid p6 19 As chamadas ldquodisputasrdquo eram debates de alto niacutevel que ocorriam nos ambientes acadecircmicos tendo o caraacuteter
do que hoje conhecemos por simpoacutesio ou congresso 20 BROCCHIERI op cit p9 DELLA TORRE Storia dellrsquoAccademia Platonica di Firenze 1902 p752
GARIN 2011 p10 Sobre a importacircncia de Paacutedua como centro averroiacutesta veja-se BURCKHARDT op cit pp 242-244 SEMPRINI op cit p12
21 Na carta ao filoacutesofo aristoteacutelico Ermolao Barbaro lecirc-se que de todos os ldquoginaacutesiosrdquo da Itaacutelia aquele de Paacutedua era o que mais o agradava (DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole en France 1879 p 9) Acerca das cartas de Pico deve-se frisar que graccedilas ao primoroso trabalho de recolhimento das epiacutestolas organizado por Leacuteon Dorez tornou-se possiacutevel acompanhar muitos detalhes da vida de Giovanni Pico
22 SEMPRINI op cit pp11-12 A concepccedilatildeo de unidade do intelecto eacute uma das marcas do pensamento do filoacutesofo aacuterabe Averroacuteis tradutor das obras de Aristoacuteteles no seacuteculo XII O tema seraacute retomado no proacuteximo item
23 Elia del Medigo mestre de filosofia oriental falece com apenas trinta e trecircs anos Maiores detalhes podem ser vistos em RAGNISCO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo Padova 1891 Para as circunstacircncias do encontro com Pico veja-se Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 BROCCHIERI opcit p9
32
imediatamente aprecia a aguda inteligecircncia daquele jovem ldquoapesarrdquo do visiacutevel gosto
por Platatildeo que nele comeccedilava a despontar ndash coisa mal vista por um aristoteacutelico
ortodoxo como Elia Tal encontro se mostraraacute um dos principais elementos
responsaacuteveis pela aproximaccedilatildeo do Mirandolano ao pensamento aacuterabe-hebraico ndash que
o levaraacute por vias indiretas ao estudo da Cabala24
Pouco antes de completar vinte anos talvez em razatildeo da receacutem-editada obra
de Marsilio Ficino a Theologia Platonica de immortalitate animorum observa-se
uma mudanccedila de direcionamento doutrinaacuterio Pico comeccedila a voltar-se fortemente ao
Platonismo Uma carta de final de lsquo82 testemunha o pedido feito a Ficino para que
aceite ser seu guia no novo caminho de estudos atraveacutes do qual pretende integrar
Aristoacuteteles e Platatildeo25 Coincidecircncia ou natildeo nessa mesma eacutepoca seu amigo Angelo
Poliziano26 o convida a participar do movimento literaacuterio florentino Ademais chega-
lhe a notiacutecia de que uma forte tradiccedilatildeo de estudos hebraicos propaga-se em Florenccedila
Essas podem ter sido as principais motivaccedilotildees que o fizeram deixar o centro
padovano e partir para a cidade do Arno27 Assim em 1484 receacutem liberto de
preocupaccedilotildees de ordem financeira28 Pico muda-se para a urbe entatildeo regida por
Lorenzo dersquo Medici patrono de personalidades como Michelangelo e mecenas do
ciacuterculo platocircnico ndash que dava agora as boas-vindas a seu mais novo ingressante
Em pouco tempo comeccedilam a ocorrer encontros de cristatildeos e hebreus na casa
do mais novo morador da cidade Um ciacuterculo de orientalistas reuacutene-se com
frequecircncia para discutir o Aristotelismo29 Natildeo raro podia ser encontrado Elia del
Medigo ndash o jovem mestre que seguindo os passos do aluno foi ter em Florenccedila ndash
sustentando debates filosoacuteficos e religiosos com outro hebraiacutesta o entatildeo convertido
Flavio Mitridate ndash que mais adiante viria a ser o proacuteximo professor do Conde30
24 Para Elia del Medigo assim como para outros acadecircmicos padovanos Aristoacuteteles representava ldquoo pai de
todos os filoacutesofosrdquo e Averroacuteis era ldquoo seu mais fiel comentadorrdquo Assim que a atitude de Del Medigo em relaccedilatildeo agrave Cabala natildeo seria tatildeo positiva quanto a de Pico ou como seraacute visto a de seu outro mestre hebreu Yohanan Alemanno justamente em razatildeo do forte acento neoplatocircnico encontrado naqueles textos Cf Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p284 ss BROCCHIERI opcit pp10-11 GARIN 2011 p11
25 Para essa e outras cartas veja-se DOREZ-THUASNE opcit p 10 Para a chegada em Florenccedila DELLA TORRE opcit p 747 SEMPRINI opcit pp16-17 GARIN 2011 p15
26 Entre os Humanistas era comum a substituiccedilatildeo do proacuteprio nome por outros Acircngelo Ambrogini nascido em Montepulciano era conhecido como Poliziano Tinha cerca de dez anos a mais que Pico e morreu no mesmo ano que ele 1494 Poliziano aos trinta anos era um filoacutelogo rigoroso preceptor dos filhos de Lorenzo dersquo Medici e conhecido em toda a Europa por manter em alta o nome do Studium florentino com suas liccedilotildees de literatura grega e latina aleacutem de defensor incansaacutevel de Pico Cf SEMPRINI opcit p18 SIRGADO GANHO opcit p17 BROCCHIERI opcit pp31-33
27 O interesse pelo ciacuterculo hebraico eacute hipoacutetese alccedilada por DOREZ-THUASNE especialmente em razatildeo da repercussatildeo dos estudos hebraicos empreendidos pelo humanista Gianozzo Manetti (Pic de la Mirandole en France 1485-1488 Paris 1897 p13)
28 Em 1483 os irmatildeos de Pico chegam a um acordo em seu conflito testamentaacuterio e fazendo uma reparticcedilatildeo deixam um terccedilo das rendas para Pico Seu irmatildeo mais velho passaria a administrar seu patrimocircnio Assim livre de quaisquer preocupaccedilotildees de ordem praacutetica Pico pode continuar sua vida de estudos Cf SEMPRINI opcit pp14-15 GARIN 2011 p15 ldquoMemorie storiche della cittagrave e dellantico ducato della Mirandolardquo tomo unico Mirandola 1874 II
29 GARIN 2011 p23 30 Flavio Mitridate era o nome do judeu siciliano convertido Guglielmo Raimondo di Moncada Trata-se de
figura enigmaacutetica tradutor de textos aacuterabes e hebraicos e favorito de Sexto IV Pico em suas cartas o apresenta como um mestre intransigente em relaccedilatildeo agrave natildeo-propagaccedilatildeo de seus ensinamentos tidos como misteacuterios sagrados Detentor de um caraacuteter irasciacutevel coleacuterico arrogante e impaciente inclusive com seus alunos de idiomas (os quais ele pretendia que passassem imediatamente agrave leitura dos textos antigos sem preacutevios estudos) desfrutava
33
Graccedilas em boa parte agrave influecircncia e ao estiacutemulo daqueles encontros a cidade de
Florenccedila se transforma sobretudo de lsquo86 em diante e assim permanecendo por
alguns anos em um local de relevantes contatos entre duas culturas em virtude das
eruditas discussotildees que corroboravam a formaccedilatildeo de intelectuais cristatildeos e hebreus
Dentre eles Yohanan Alemanno que tatildeo logo chega a Florenccedila pede para ser
apresentado ao entatildeo renomado conde de Mirandola31 ndash com o qual dividiraacute mais
tarde o entusiasmo pelos misteacuterios da Cabala Sob tal atmosfera natildeo eacute difiacutecil
entrever que a casa florentina de Pico transforma-se em um ambiente concorrido por
abrigar debates de vaacuterias vertentes ali podiam ser encontrados filoacutesofos de vaacuterias
correntes ndash aacuterabo-hebraicas aristoteacutelicas platocircnicas ndash poetas literatos estudiosos
de Petrarca e de Dante32
Durante o periacuteodo florentino Pico dedica-se ao aprendizado de idiomas como
o hebraico o caldeu e o aacuterabe A reconciliaccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Platatildeo ndash cujas
afinidades haviam sido apontadas por Nicoletto Vernia ndash toma ares cada vez mais
concretos levando-o entre lsquo85 e lsquo86 a transferir-se para o nuacutecleo de Paris principal
centro de teologia escolaacutestica onde teria agrave disposiccedilatildeo uma quantidade maior de
material medieval para ampliar seus estudos O ambiente dos teoacutelogos da Sorbonne
acolhe fortemente suas ideias aqueles passam a consideraacute-lo um dos seus ndash a ponto
de defendecirc-lo diante do perigo em futuro natildeo muito distante33 De volta a Florenccedila
imerge nos textos neoplatocircnicos de Proclo e investiga os textos hebraicos contando
com a ajuda de Elia del Medigo e de seu mais recente mestre Flavio Mitridate34
Debruccedila-se sobre os misteacuterios platocircnicos hermeacuteticos e caldeus dos quais o amigo
Ficino era tenaz estudioso Em certo ponto convence-se de que suas reflexotildees jaacute
estatildeo maduras o suficiente para serem colocadas agrave prova Passa a preparar entatildeo
com certo iacutempeto vaacuterios textos pertinentes a um debate puacuteblico organizados de
forma a alcanccedilar grande ressonacircncia O que natildeo estava previsto eacute que a partir da
primavera do mesmo ano importantes acontecimentos alterariam o rumo de sua
vida de forma definitiva
de uma vida um tanto licenciosa de acordo com seus bioacutegrafos Cf CASSUTO opcit 1918 BROCCHIERI opcit pp 15-16
31 Uma das comprovaccedilotildees do renome de Pico nos ciacuterculos intelectuais encontra-se no fato que ao completar vinte e um anos eacute escrita uma comeacutedia em sua homenagem por Tommaso Mezzo (BROCCHIERI op cit pp 16 47) Sobre o encontro de Pico e Alemanno veja-se Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento Firenze 1918 p305 Alberto AMBESI Giovanni Pico della Mirandola-Cenni biografici e presentazione dellrsquoopera 1996 p I Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 53
32 GARIN 2011 p23 Dante acolhido pelo Humanismo florentino do final do Quattrocento era finalmente perdoado por ter escrito em vulgar toscano Nas uacuteltimas deacutecadas daquele seacuteculo seus escritos eram retomados por muitos literatos e filoacutesofos de Florenccedila graccedilas ao impulso dado por Leonardo Bruni e sua obra Vita di Alighieri publicada em 1436 Dante que havia sido um aristoteacutelico estudioso de Tomaacutes transformava-se agora aos olhos dos humanistas em ldquoum platocircnico puro e profundo um delesrdquo (cf BROCCHIERI 2011 p51) Pico tambeacutem nutria profunda simpatia por Dante ldquoalma rude aacutespera mas atormentada por problemas mais amplosrdquo Seu vigor algumas vezes horridus asper strigosus sempre trazia uma ldquonutriccedilatildeo vitalrdquo (apud GARIN ibid p21)
33 GARIN 2011 p25 BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 p 7 34 BIONDI ldquoIntroduzionerdquo in Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 1995 pp X-XI
34
1486 o iniacutecio dos revezes
O ano de 1486 eacute crucial para Pico que se encontra com vinte e trecircs anos Nem
soacute de livros aulas e projetos extraordinaacuterios vive o jovem No mecircs de maio daquele
ano pouco depois de regressar de Paris Pico vive uma desafortunada e breviacutessima
aventura amorosa que tem Arezzo como pano de fundo Em rota para Roma para
onde se dirigia com o intuito de preparar sua proacutexima obra apaixona-se pela jovem e
bela ndash e casada com um Medici ndash Margherita Planeja um rapto que natildeo apenas
termina frustrado como expotildee de forma ampla os dois amantes impedindo-o de
prosseguir com a viagem35 O escacircndalo lhe traz aleacutem de arrependimento o ingresso
em um duradouro periacuteodo de austeridade com a consequente retomada dos estudos
Conforme juiacutezo de Garin ldquosua dor se transmuta em um iacutempeto de pesquisa capaz de
trazer renovadas forccedilasrdquo com as quais enfrentaria os obstaacuteculos que viriam no ano
sucessivo Acresce o historiador que aquele ldquoardor multiforme insaciaacutevel de gloacuteria
de amor de saber e no final de renuacutencia e miacutesticardquo formariam o ldquosubstrato
psicoloacutegico da celebraccedilatildeo piquiana da dignidade do homemrdquo36
Recolhido assim em seu retiro de Fratta proviacutencia de Perugia em meio aos
meses de veratildeo de rsquo86 o escritor comeccedila a elaborar aquele que seria seu projeto mais
audacioso Em complexa empreitada potildee-se a redigir inuacutemeras teses acerca de
muacuteltiplos temas passando da escolaacutestica ao averroiacutesmo das tradiccedilotildees hermeacuteticas e
persas agraves filosofias aacuterabe e judaica chegando agraves ciecircncias ocultas Tambeacutem nesse
periacuteodo esboccedila um elogio agrave concoacuterdia entre os vaacuterios sistemas filosoacuteficos parte do
qual viraacute a compor a segunda parte da De Hominis Dignitate A renovada motivaccedilatildeo
transparece em carta escrita a um amigo proacuteximo ldquoem breve saberaacutes quanto seu
amigo Pico colheu de vantagens da contemplaccedilatildeo durante esses meses de vida
obscura e solitaacuteriardquo37 Tendo por propoacutesito inicial organizar em Roma no mesmo
ano um convecircnio de intelectuais ndash a chamada Disputa Romana ndash para debater suas
proposiccedilotildees com doutos da Filosofia e da Teologia publica em 7 de dezembro de
1486 as Conclusiones Nongentae juntamente com o convite aos interessados no
debate O opuacutesculo fixado em vaacuterias universidades pode ter incomodado a alguns
levando-se em conta a idade do autor38
Giovanni Pico Mirandolano Conde de Concoacuterdia disputaraacute
publicamente acerca das seguintes novecentas proposiccedilotildees
dialeacuteticas morais fiacutesicas matemaacuteticas metafiacutesicas teoloacutegicas
maacutegicas e cabaliacutesticas sejam proacuteprias que dos sapientes
caldeus aacuterabes hebreus gregos egiacutepcios e latinos []39
35 Referente ao estado de acircnimo de Pico apoacutes o rapto de Margherita e os reflexos do episoacutedio sobre algumas
passagens da obra Commento sopra una Canzone drsquoamore composta da Girolamo Benivieni veja-se Pier Cesare BORI Pluralitagrave delle vie - Alle origine del Discordo sulla Dignitagrave umana di Pico della Mirandola 2000 pp11-21 Para maiores detalhes sobre o episoacutedio veja-se DELLA TORRE opcit pp758-59 SEMPRINI opcit pp56 ss BROCCHIERI opcit pp55-56 CASSUTO opcit p289
36 GARIN 2011 p26 37 BROCCHIERI opcit p64 38 Jules DUKAS Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 np47 39 BIONDI opcit pXII Como esclarece o tradutor italiano das Conclusiones natildeo se tem informaccedilotildees sobre a
distribuiccedilatildeo do opuacutesculo na Itaacutelia Fora da Itaacutelia o material foi reproduzido em Ingolstadt no ano sucessivo 1487
35
A possibilidade da discussatildeo agita os ciacuterculos teoloacutegicos de Roma devido natildeo
apenas agrave presenccedila em meio ao opuacutesculo de alguns nomes ldquohereacuteticosrdquo como tambeacutem
de palavras suspeitosas como Magia Astrologia e Cabalismo Roma achava que ali
disfarccedilado sob o verniz do humanismo florentino encontrava-se o sequaz praticante
ldquodas escolas de Paacutedua e de Paris o disciacutepulo de Averroacuteis de Alexandre de Afrodiacutesia e
dos hebreusrdquo40 Assim a intenccedilatildeo original de travar uma contenda ldquosobre todas as
coisas conhecidasrdquo (omni scibili) termina por despertar opositores inclusive entre os
amigos41 tanto em razatildeo do projeto ser visto como fruto de orgulho pretencioso
quanto pela alegaccedilatildeo da presenccedila de supostas heresias naqueles conteuacutedos E as
coacutepias publicadas acabam gerando consequecircncias desdobradas em um crescendo de
gravidade cada vez maior
De iniacutecio o papa Inocecircncio VIII manda imediatamente suspender o debate das
Conclusiones e dois meses apoacutes a publicaccedilatildeo do opuacutesculo constitui uma comissatildeo
para examinaacute-lo sob a presidecircncia de Giovanni Monissart Em seu breve deixava
claro que ldquoalgumas dessas teses desviam do caminho da ortodoxia da feacute outras satildeo
obscuras confusas e intrincadas e outras tem ar de heresiardquo de forma que as
mesmas deveriam ser confiadas ao reverendo senhor Giovanni bispo de Tournai que
teria ldquoa tarefa de revecirc-las discuti-las e avaliaacute-lasrdquo42 Em um segundo momento Pico eacute
convidado a dar esclarecimentos acerca de algumas Teses nessa ocasiatildeo reafirma
vigorosamente seus pontos de vista acerca do conteuacutedo relacionado agrave Magia e agrave
Cabala aleacutem de acusar seus juiacutezes de padecerem de ignoracircncia Poucos dias depois o
trabalho da comissatildeo se conclui com a condenaccedilatildeo daquelas teses O acusado
convocado para apresentar-se novamente e escutar o veredicto final natildeo comparece
Em sua ausecircncia a comissatildeo decide proceder ao julgamento sem sua presenccedila
Enquanto isso rendendo-se ao fato de que as Teses natildeo seriam debatidas nem em
Roma nem em qualquer outro lugar cristatildeo Pico decide redigir a Apologia43
composta de treze disputationes que comporiam sua defesa Mesmo sem
conhecimento do novo texto Inocecircncio VIII autoriza o tribunal em 6 de Junho a
punir o culpado por heresia conforme as leis canocircnicas fato que o leva em 31 de
e um exemplar estaacute descrito no British Museum - General Catalogue of Printed Books vol 189 London 1963 col612 (ibid pXIII) ldquoDe adscriptis numero noningentis Dialecticis Moralibus Physicis Mathematicis Metaphysicis Theologicis Magicis Cabalisticis cum suis tum sapientum chaldeorum arabum hebreorum graecorum aegyptorum latinorumque placitis disputabit publice Johannes Picus Mirandolanus Concordiae Comes etc []rdquo
40 GARIN 2011 p32 41 Em carta a Roberto Salviati o veneziano Ermolao Barbaro escrevia que ldquosem duacutevida o nosso Pico obteraacute dessa
distinta iniciativa uma gloacuteria imortal dando aos seus amigos uma incomparaacutevel felicidaderdquo Por outro lado com certa maliacutecia comparava seu amigo Pico ao sofista Goacutergias dando a entender que tal promoccedilatildeo de discussotildees puacuteblicas visava apenas ao enaltecimento da vaidade do autor
42 A iacutentegra do breve papal pode ser vista em DOREZ-THUASNE op cit pp114-115 Os verbais das reuniotildees ocorridas para o questionamento das Teses foram descobertos por Dorez em um manuscrito da Biblioteca do Seminaacuterio arcebispal de Malines e publicados na obra compilada em parceria com Thuasne (Pic de la Mirandole en France 1897)
43 A primeira ediccedilatildeo da Apologia eacute datada 31 de Maio de 1487 (ldquoDie ultima Madij Anno Domini MCCCCLXXXVIIrdquo) A data correta de publicaccedilatildeo eacute posterior mas para natildeo parecer uma afronta agrave condenaccedilatildeo papal ela eacute retrodatada para antes da condenaccedilatildeo Na obra dedicada a Lorenzo dersquo Medici Pico retoma temas presentes na Oratio
36
Julho a fazer ato de submissatildeo agraves decisotildees dos comissaacuterios pontiacutefices jurando natildeo
mais sustentar posiccedilotildees que os juiacutezes natildeo julgassem aceitaacuteveis44
A submissatildeo contudo chega tarde a repercussatildeo da Apologia explodia
justamente nesse periacuteodo fazendo chegar aos ouvidos do Papa que Pico havia feito
circular novos escritos sem esperar o veredicto final45 A obra apesar do tom doacutecil
incentivava a investigaccedilatildeo da magia natural e da interpretaccedilatildeo cabaliacutestica
reafirmando ainda a liberdade de crenccedila (libertas credendi)46 Com isso sua
situaccedilatildeo torna-se praticamente irreversiacutevel Em 5 de agosto do mesmo ano Inocecircncio
VIII natildeo apenas condena todas as Conclusiones como encarrega a comissatildeo de
intervir com um novo instrumento o da Inquisiccedilatildeo com ldquoautorizaccedilatildeo para citar
interrogar e punir conforme as faculdades canocircnicasrdquo47 Em paralelo o bispo de
Tournai impotildee que quem possua uma coacutepia das Conclusiones a entregue agraves
autoridades para serem ldquoanuladas pelo fogordquo Por fim o cardeal espanhol Pedro
Garzias que mais tarde escreveria uma confutaccedilatildeo formal da Apologia de Pico
solicita a intervenccedilatildeo do temido Torquemada entatildeo agrave frente da Inquisiccedilatildeo espanhola
para resolver a questatildeo Ora Pico lia com entusiasmo os textos hebraicos escutava e
comentava os ensinamentos de seus amigos e mestres hebreus acreditava que nos
segredos da Cabala podia-se encontrar explicaccedilotildees inclusive para a verdade dos
eventos cristatildeos o homem que magnificava a sabedoria dos hebreus dificilmente
seria absolvido48
Percebendo o perigo iminente o Conde decide afastar-se da Itaacutelia refugiando-
se na Franccedila torna-se com essa atitude um herege declaradamente reincidente um
relapsus um homem caccedilado que poderia ser capturado e lanccedilado ao caacutercere49 A
proibiccedilatildeo de discutir as treze teses condenadas por sua vez lanccedila todas as demais
teses em desgraccedila jaacute que ldquoum pouco de fermento pode corromper toda a massardquo
Com essa metaacutefora Antonio Flores membro da comissatildeo que havia condenado as
treze teses pede ajuda agrave Universidade de Paris para que Pico seja capturado na
Franccedila50 Entretanto os professores daquela universidade aleacutem de toda a corte do rei
Carlos VIII compartilham da mesma simpatia pelo ldquodoutiacutessimo e desventuradordquo
italiano a ponto de ajudaacute-lo pouco tempo depois51 em janeiro de lsquo88 quando Pico eacute
44 DOREZ-THUASNE op cit p140 ldquoEu Giovanni della Mirandola tendo sob os olhos aquilo que pensam e
decidem o nosso Senhor Santiacutessimo e os senhores deputados de Sua Santidade acerca de minhas teses confesso que as teses satildeo tais e quais determinam que sejam Sua Santidade e os juiacutezes e mantenho formalmente esta opiniatildeo Natildeo sustentarei mais nenhuma posiccedilatildeo sobre essas porque Sua Santidade e os juiacutezes julgam que natildeo devam ser sustentadas E assim jurordquo Para maiores detalhes sobre a questatildeo veja-se DOREZ-THUASNE op cit ldquoBreve 6 Giugnordquo pp144-46 SEMPRINI op cit pp87-89
45 Quando recebe a notiacutecia da Apologia o papa descobre que outros teoacutelogos externos agrave comissatildeo ldquoe pouco prudentesrdquo haviam convalidado seu conteuacutedo
46 DOREZ-THUASNE op cit p125ss Veja-se Apologia - Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione (org Paolo Edoardo FORNACIARI 2010)
47 DOREZ-THUASNE op cit pp144-146 BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti Torino 1859 p47 SEMPRINI opcit p89 BIONDI opcit pp XXI-XXII
48 Lembremos que na Espanha agrave mesma eacutepoca era feita a conversatildeo forccedilada dos judeus 49 BIONDI opcit p XXXI 50 BROCCHIERI opcit p68 51 No ano anterior agrave fuga para a Franccedila durante as discussotildees teoloacutegicas acerca da condenaccedilatildeo de Pico Jean
Cordier importante acadecircmico parisiense natildeo firmara o verbal de processo de Pico Apoacutes ter escutado as explicaccedilotildees do filoacutesofo italiano chegara agrave conclusatildeo de que as treze teses incriminadas eram ldquocatoacutelicasrdquo Poucos anos depois Cordier viria a ser reitor da Sorbonne (BROCCHIERI opcit pp 69 71)
37
feito prisioneiro no castelo de Vincennes satildeo daqueles nuacutecleos franceses juntamente
com alguns italianos que se levantam protestos contra sua prisatildeo Tais pressotildees
associadas com os pedidos de Lorenzo dersquo Medici ao Papa fazem que Pico seja
libertado ndash apesar de natildeo absolvido ndash com a condiccedilatildeo de permanecer apenas em
territoacuterio florentino sob a proteccedilatildeo do Magniacutefico Ali em Florenccedila Pico permaneceraacute
pelo resto de seus dias52
Apoacutes a proibiccedilatildeo da discussatildeo das Teses e sua consequente condenaccedilatildeo Pico
atravessa um momento difiacutecil de sua vida Como infere Garin os anos seguintes
presenciaram um homem ferido e ldquodobrado sobre si mesmordquo a condenaccedilatildeo do
supremo liacuteder do Cristianismo mesmo para um espiacuterito livre era recebida naquele
seacuteculo como um acontecimento graviacutessimo53 Mais do que o perdatildeo da Igreja Pico
esperava uma reparaccedilatildeo verbal atraveacutes da qual a Igreja o aceitasse novamente como
seu filho54
De toda forma os anos sob vigilacircncia em Florenccedila foram os de maior fervor
criativo O resultado eminente daquele periacuteodo de reclusatildeo seraacute o Heptaplus
dedicado a Lorenzo e publicado no outono de lsquo89 Uacuteltimo trabalho completo de Pico
o Heptaplus conhece imediato sucesso o que alivia em parte as frustraccedilotildees que havia
sofrido55 A obra eacute entusiasticamente recebida por um nuacutemero significativo de
intelectuais sobretudo humanistas muitos escrevem para expressar sua admiraccedilatildeo
entre eles Matteo Vero Girolamo Donato Cristoforo Landino Bartolomeo Fontio e
Ermolao Barbaro56 Poreacutem aos olhos do Papa o livro apresenta-se como uma
continuaccedilatildeo das tendecircncias hereacuteticas demonstradas nas Conclusiones fazendo que a
absolviccedilatildeo se mantenha como uma esperanccedila natildeo realizada No ano seguinte eacute
publicado o breve De Ente et Uno sobre alguns pontos da proposta de acordo entre
Platatildeo e Aristoacuteteles o texto contudo natildeo eacute finalizado Pouco tempo depois eacute
publicada a uacuteltima e mais longa obra piquiana a Disputationes adversus
astrologiam divinatricem acerca da qual o autor compotildee doze dos treze livros
pretendidos e sobre cujas circunstacircncias ainda hoje pairam duacutevidas entre os
inteacuterpretes como seraacute abordado adiante
Em 18 de Junho de 1493 o Papa Alessandro IV Borgia sucessor de Inocecircncio
VIII absolve Pico da condenaccedilatildeo de 148757 O novo Pontiacutefice mostra interesse por
alguns dos assuntos que haviam concorrido para a condenaccedilatildeo das Conclusiones
como a Magia e a Astrologia ademais vecirc o jovem filoacutesofo com simpatia sentindo-se
impelido a escrever um resumo contando suas desventuras ndash texto que
52 Crofton Black eacute de opiniatildeo que a atitude papal foi uma ldquosoluccedilatildeo pragmaacutetica para uma situaccedilatildeo
potencialmente embaraccedilosardquo Pico e suas ldquodoutrinas insalubresrdquo permaneceriam afastados de Roma e ele seria confinado agrave ldquoatmosfera rarefeita de bibliotecas florentinas e ao grupo de intelectuais agrave volta de Lorenzordquo (BLACK opcit pg 8) Para toda a questatildeo da fuga em Franccedila veja-se DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole en France (1485-1488) 1897 pp56-101
53 GARIN 2011 p39-40 54 BROCCHIERI opcit p41 55 BLACK opcit pg 8-9 BROCCHIERI op cit p86 56 Para as referecircncias das cartas trocadas a esse respeito veja-se BLACK ibid np10 57 Leacuteon DOREZ Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) in Giornale Storico della Letteratura
italiana 1895 I pp358-361
38
posteriormente seraacute publicado junto agrave ediccedilatildeo das obras piquianas em 1572 Em sua
absolviccedilatildeo descreve-o ainda como homem iluminado pela ldquoDivina Piedade e um fiel
filho da Igrejardquo58 O erudito Papa parecia entrever no Hermetismo e na Cabala
preacircmbulos significativos e prestigiosos da religiatildeo cristatilde exatamente como havia
pretendido comprovar o conde de Mirandola59
Os uacuteltimos anos e a relaccedilatildeo com Savonarola
Nos uacuteltimos anos da vida de Pico entre rsquo90 e rsquo94 desenvolve-se uma relaccedilatildeo
complexa e intensa com Girolamo Savonarola Durante os anos de estudos iniciais
em Bolonha o frade predicador chamara a atenccedilatildeo do ainda muito jovem aprendiz
ldquoem razatildeo de suas maneiras simples e rudes os olhos viviacutessimos a fronte sulcada
pelas rugas e a pele morena que contrastava com suas vestes brancasrdquo60 Assim era
Savonarola em seus vinte e cinco anos tatildeo emagrecido pelos jejuns e abstinecircncias
que ldquoa vecirc-lo passear pelos claustros mais parecia uma sombra que um homem
vivordquo61 A atraccedilatildeo pelos discursos de vieacutes aristoteacutelico foi o iacutematilde que o ligou ao frei
quando teve a oportunidade de escutaacute-lo em uma disputa escolaacutestica Seria
improvaacutevel pensar naquela ocasiatildeo que aquele homem douto austero e riacutegido teria
importacircncia singular em sua vida62
O reencontro se daacute quando Pico natildeo obtendo a absolviccedilatildeo esperada da Igreja
decide procurar Savonarola que entatildeo pregava na Itaacutelia setentrional pedindo-lhe
para intervir por ele junto ao principal dos Dominicanos O pedido sobre o qual seu
amigo Lorenzo continuava a insistir com o Pontiacutefice63 eacute frustrado mas de alguma
forma serve para reaproximar aquelas duas personalidades de maneira definitiva a
pedido de Pico Savonarola acaba sendo chamado pelo Medici ndash a ldquocontragostordquo ndash
para reger a Igreja de San Marco em Florenccedila a partir de Abril de rsquo8964
Tal relaccedilatildeo teria exercido um poderoso influxo nas mudanccedilas de
direcionamento do pensamento de Pico ensejando especulaccedilotildees de cunho
58 BROCCHIERI opcit p100 59 Para Henri de LUBAC a absolviccedilatildeo definitiva de Pico e de seus escritos ocorreraacute apenas duas deacutecadas
adiante graccedilas ao gesto do entatildeo Papa Leatildeo X que em Abril de 1519 autorizaraacute Gianfrancesco a republicar integralmente as obras do tio (Pico della Mirandola Lrsquoalba incompiuta del Rinascimento p453)
60 SEMPRINI opcit p4 61 Pasquale VILLARI Girolamo Savonarola 1910 Essa e outras descriccedilotildees encontram-se nas pp 21-23 62 Para maiores detalhes veja-se Joseph SCHNITZER Savonarola 1931 vol1 sobretudo a partir de pp101 ss
BROCCHIERI op cit p39 63 Como elucida Giulio Busi Inocecircncio VIII levou muito a seacuterio o projeto de ldquoutopia sapiencialrdquo do Conde de
Mirandola Em resposta a Lorenzo que insistia para que o amigo Pico fosse perdoado escrevia que ldquoisso eacute um caso importantiacutessimo coisa diversa de gratificar o jovem filho de Lorenzo em questotildees que natildeo satildeo casos de feacuterdquo Ou seja para o Pontiacutefice era coisa de menor importacircncia conferir a dignidade de cardeal ao filho de treze anos de Lorenzo de que transigir sobre o escacircndalo provocado pelas Teses piquianas (BUSI Pico fede ragione e Inquisizione in Il Sole-24 Ore 28082018)
64 AMBESI opcit p III Girolamo Savonarola tambeacutem conhecido como Jerocircnimo de Ferrara manteacutem-se agrave frente de San Marco ateacute 1994 Nesse ano apoacutes a morte de Pico e a queda de Piero filho de Lorenzo o frei toma o poder em Florenccedila Quatro anos depois em maio de 1498 seraacute enforcado e queimado (cf Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 54)
39
psicoloacutegico entre os estudiosos da obra piquiana65 A influecircncia de Savonarola natildeo
pode ser negada seja qual for seu vetor Em reflexatildeo sobre o tema ajuiacuteza Garin que
Pico e Savonarola eram ldquoduas almas tatildeo ardentes e originais quanto diferentes em
suas tendecircncias e atitudesrdquo No entanto ldquohavia algo na alma de Pico que somente
com o frei poderia ser identificadordquo66 Ambos amavam os livros de forma apaixonada
e neles viam natildeo apenas fontes de cultura mas respostas espirituais Moviam-se em
uma atmosfera distante daquela que respiravam os literatos contemporacircneos Os
problemas espirituais natildeo eram vistos como curiosidades intelectuais pertencentes ao
mundo dos doutos eram uma ldquoquestatildeo de vidardquo como prossegue Garin67 E ambos
buscavam verdades que natildeo enxergavam na Igreja do lsquo400 nem tampouco entre os
humanistas em geral Nas palavras do historiador
A existecircncia representava para ambos uma tarefa uma missatildeo
[] O mundo do espiacuterito natildeo se encontrava separado da vida
concreta a sua luz deveria permeaacute-la fundir-se a ela
transformaacute-la68
Certo eacute que durante o periacuteodo de isolamento acentuam-se em Pico claras
tendecircncias miacutesticas tornando-se Savonarola seu padre espiritual Tambeacutem chama a
atenccedilatildeo o fato de seus escritos do uacuteltimo periacuteodo apresentarem uma mudanccedila
substancial de concepccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas o autor chega a negar muitas das
teses anteriores e parece voltar-se a uma posiccedilatildeo mais ortodoxa Tal mudanccedila de
pensamento estaacute bem clara na obra Disputationes adversus astrologiam
divinatricem de forma acentuada nos uacuteltimos trecircs livros em que Pico trata com
desprezo a ciecircncia astroloacutegica dos egiacutepcios e caldeus fazendo uma minuciosa criacutetica
histoacuterica que parece lanccedilar por terra os ecircxitos daquelas antigas culturas Tal mudanccedila
de posicionamento natildeo passaria despercebida pelos criacuteticos levando a inuacutemeras
polecircmicas natildeo sem razatildeo a confutaccedilatildeo da Astrologia mateacuteria combatida de forma
ferrenha pelo frei e mentor dominicano representava um ataque que se colocava em
oposiccedilatildeo direta agraves doutrinas partilhadas pelas tradiccedilotildees agraves quais Pico prestara
homenagem em suas obras anteriores como o Hermetismo a Cabala o
Zoroastrismo o Neoplatonismo Em tentativa de esclarecer as mudanccedilas de rumo
da inacabada obra o editor Gianfrancesco Pico alegaria que as mesmas eram devidas
ao progressivo isolamento e agrave crescente religiosidade vividos por seu tio que o
levaram a passar por um processo de conversatildeo Entretanto essa afirmaccedilatildeo tem sido
colocada em duacutevida por alguns comentadores69
65 Para os efeitos psicoloacutegicos de Savonarola sobre Pico veja-se GARIN 2011 pp5-9 Para detalhes mais
completos sobre a relaccedilatildeo veja-se GARFAGNINI (org) Savonarola tra Giovanni e Gianfrancesco Pico In Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) 1997 pp 237-279 Ainda SEMPRINI opcit p4
66 GARIN 2011 p8 67 Idem 68 Idem As missotildees seja do mentor que do pupilo encontravam-se ligadas a certas formas de reaccedilatildeo a valores
religiosos e morais Suas atitudes contudo eram anacrocircnicas Pico buscava no passado a renovaccedilatildeo moral do presente Savonarola em suas preocupaccedilotildees doutrinais era um precursor das disputas religiosas que viriam no seacuteculo sucessivo (idem)
69 O tema da suposta conversatildeo de Pico e os comentaacuterios de vaacuterios inteacuterpretes podem ser conferidos na obra de William CRAVEN Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age Modern Interpretations of a Renaissance Philosopher 1981 pp 77-87 131-154 Para maiores detalhes acerca da mudanccedila de direccedilatildeo nas Disputationes
40
A hipoacutetese de conversatildeo seja espontacircnea ou relacionada com o eventual
influxo de Savonarola eacute enfraquecida diante de um interessante testemunho que
expotildee as verdadeiras convicccedilotildees e o entusiasmo conciliador de Pico ndash o mesmo de
seus anos anteriores Pietro Crinito membro fervoroso dos piagnoni ndash nome dado
aos seguidores de Savonarola ndash relata um encontro entre o Frei e o Conde na
biblioteca de San Marco Nessa ocasiatildeo os dois travam um intenso debate acerca do
valor da sabedoria dos Antigos no qual o Frei posiciona-se entre outros contra
Platatildeo e Aristoacuteteles70 Em resposta e referindo-se agraves doutrinas cristatildes acerca da
imortalidade da alma e do caraacuteter absoluto de Deus Pico efetua uma ampla e
eloquente defesa dos Prisci Theologi muito semelhante agraves posiccedilotildees sustentadas por
Ficino71 ldquoao longo de toda a vida dos mortais existiram alguns priacutencipes os maiores
em juiacutezo e em conhecimento das coisas como Moiseacutes Pitaacutegoras Mercuacuterio Zoroastro
e Soacutelon os quais com consenso unacircnime (qui omnes pari consensu) natildeo apenas
creram nessas coisas como tambeacutem as afirmaram maximamenterdquo72 Seu discurso
pretendia sinalizar que muitos saacutebios entre pagatildeos e cristatildeos compartilhavam dos
mesmos princiacutepios Quando o debate termina como prossegue Crinito Savonarola
mostra estar rendido perante a erudiccedilatildeo do jovem abraccedila-o e reconhece que ele eacute o
uacutenico em seu tempo a conjugar um conhecimento exaustivo tanto da Filosofia dos
Antigos como das doutrinas e leis cristatildes comparaacutevel apenas ao dos grandes Padres
da Igreja do Oriente e Ocidente73
As palavras de Pico trazem por um lado a constataccedilatildeo de uma natildeo irrestrita
anuecircncia agraves orientaccedilotildees do dominicano por outro a confirmaccedilatildeo da preservaccedilatildeo das
mesmas certezas de outrora em relaccedilatildeo ao tema da concordacircncia entre antigas
tradiccedilotildees Sob a luz de tal testemunho arrefece a suposiccedilatildeo de conversatildeo e mudanccedila
de direcionamento doutrinaacuterio E solidifica-se a hipoacutetese alccedilada por alguns de
adulteraccedilatildeo de alguns textos publicados postumamente por parte de seu religioso
sobrinho e editor sob a eacutegide de Savonarola74 Outro sinal que afasta a possibilidade
de conversatildeo pode ser verificado no discurso de post-mortem do Mirandolano no
qual o Frei demonstra com desilusatildeo que ldquoesperava mais do jovemrdquo ldquoEle demorou a
veja-se Anthony GRAFTON Giovanni Pico della Mirandola Trials and Triumphs of an Omnivore in Commerce with the classics Ancient Books and Renaissance Readers 1997 pp 93-134 Veja-se ainda Charles SCHMITT Gianfrancesco Picorsquos Attitude toward his Uncle in Llsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo pp 305-313 Stephen FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 pp 151-179 Eugenio GARIN Ricordando Giovanni e Gianfrancesco Pico della Mirandola in Giornale critico della filosofia italiana nr 74 1995 pp 5-19
70 Pietro CRINITO De honesta disciplina III 2 Roma Fratelli Bocca editori 1955 p 104 O debate eacute citado por Francisco BASTTITA HARRIET Recepcioacuten de los textos hermeacuteticos en el platonismo florentino del Quattrocento Marsilio Ficino y Giovanni Pico della Mirandola In Hermes Platonicus Hermetismo y Platonismo en el Medioevo y la Modernidad temprana 2016 p 218
71 Conforme expostas no Capiacutetulo I 72 CRINITO opcit pp 104-105 ldquoSed principes - inquit- in omni mortalium vita extiterunt aliquot et iudicio et
rerum cognitione maximi ut Moses Pythagoras Mercurius Zoroastres Solon qui omnes pari consensu non modo haec crediderunt sed maxime affirmaruntrdquo
73 CRINITO idem Na narrativa de Crinito dentre os Padres da Igreja aos quais Pico eacute igualado estatildeo Agostinho Gregoacuterio Dioniacutesio Jerocircnimo e Basiacutelio
74 BASTTITA HARRIET 2016 p 218 Para Alberto Cesare AMBESI a orientaccedilatildeo concordista de Pico contraacuteria agrave religiosidade de Savonarola que se manifestava de forma agressiva e intolerante elimina a hipoacutetese de conversatildeo que muitos quiseram crer (opcit p IV) Em razatildeo das incertezas de autoria que pairam sobre as Disputationes adversus astrologiam divinatricem preferimos nos abster de quaisquer comentaacuterios sobre a obra
41
abraccedilar a religiatildeo [] [mas] digo-vos que a alma dele em razatildeo das oraccedilotildees dos
frades e de algumas obras boas que realizou em vida estaacute no Purgatoacuteriordquo A ldquodemorardquo
em abraccedilar a religiatildeo deveu-se ao fato de o filoacutesofo natildeo se ter deixado convencer pelas
conversas com o padre que gostaria de tecirc-lo visto com o haacutebito dominicano75
Pico falece em 17 de novembro de 1494 em decorrecircncia de uma febre suacutebita e
violenta Logo surgem em Florenccedila suspeitas de assassinato76 Vestia na morte o
haacutebito dominicano aquele que em vida havia se recusado a usar No mesmo ano seu
sobrinho Gianfrancesco della Mirandola publica aquela que passaria agrave Histoacuteria da
Filosofia como a mais original contribuiccedilatildeo de Giovanni Pico a De Hominis
Dignitate
2 As bases filosoacuteficas entre a Academia e o Liceu
A recuperaccedilatildeo dos diaacutelogos platocircnicos transcorrida nos mesmos palcos em
que eram relidos os comentadores aristoteacutelicos levou ao nascimento de uma
polecircmica bastante aacutespera entre os sustentadores de cada uma daquelas linhagens
filosoacuteficas Apesar do florescente encantamento por Platatildeo sobretudo no nuacutecleo
florentino seria um equiacutevoco pensar que Aristoacuteteles tivesse sido esquecido na
segunda metade do seacuteculo XV Nas principais escolas por onde Pico passara ndash
Ferrara Bolonha Pavia e especialmente Paacutedua ndash os ensinamentos aristoteacutelicos
continuavam a fervilhar77 Mesmo entre os humanistas de vieacutes platocircnico mais
acentuado Aristoacuteteles era uma leitura obrigatoacuteria por representar a antiacutetese do
Platonismo servindo de fundamento aos mais amplos debates Tais debates
envolveriam alguns dos mais fundamentais filoacutesofos do periacuteodo de Nicolau de Cusa a
Pietro Pomponazzi passando por Ficino e deixando marcas em quase toda a
produccedilatildeo literaacuteria do seacuteculo78 A complexa temaacutetica da pressuposta antiacutetese entre o
pensamento de Platatildeo e o de Aristoacuteteles que dividia uma parcela dos acadecircmicos
ocupou uma relevante parte dos interesses de Giovanni Pico que trabalhou no
problema desde a De Hominis Dignitate ateacute o De Ente et Uno Aleacutem de todo seu
esforccedilo empregou na questatildeo a consistente bagagem que possuiacutea preenchida de
forma equacircnime pelo peso das duas vertentes que abasteciam sua biblioteca79
75 GARIN 2011 pp43 135 76 Leacuteon DOREZ apresenta a tese da morte por envenenamento por parte do secretaacuterio de Pico Cristoforo di
Casal Maggiore por razotildees financeiras ou poliacuteticas Pico havia feito empreacutestimos e destinado um lauto legado a Cristoforo (La mort de Pic de la Mirandole et lrsquoeacutedition aldine des oeuvres drsquoA Politien in Giornale St Letteratura italiana vol 32 1898 pp360-364)
77 Tambeacutem Florenccedila respirava um clima aristoteacutelico Desde o final do seacuteculo XIII e ateacute parte do lsquoXV o filoacutesofo mais estudado pelos grandes cidadatildeos de Florenccedila havia sido Aristoacuteteles Soacute no lsquo400 foram feitas trinta e duas novas traduccedilotildees de suas obras a maior parte em Veneza e em Florenccedila nesta uacuteltima durante o periacuteodo em que jaacute prevalecia em seu solo a filosofia platocircnica (cf BROCCHIERI 2011 p24)
78 Paul Oskar KRISTELLER Movimenti filosofici del Rinascimento in Giornale critico della Filosofia Italiana 1950 29
79 A biblioteca de Pico tornou-se famosa por ser uma das maiores de seu seacuteculo Ademais suas fontes eram todos os livros das bibliotecas de seu tempo segundo Giovanni DI NAPOLI (Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo 1955) tornando seu leque de referecircncias fora do alcance de seus
42
Seus primeiros anos de estudos foram ocupados com as problemaacuteticas em
torno ao Aristotelismo e as subsequentes questotildees alccediladas por seus comentadores
Em uma carta de 1485 em resposta ao humanista Ermolao Barbaro tem-se o
importante testemunho do enraizado conhecimento de suas doutrinas e da gratidatildeo
que Pico nutria por aquela Escola em aberto elogio aos ldquograndes mestres aacuterabes e
latinos da Idade Meacutediardquo relata que a eles dedicou ldquotodos os dias e noitesrdquo daqueles
que por seis anos consecutivos teriam sido seus ldquomelhores anos de estudordquo A carta
reproduz ademais a defesa dos grandes conteuacutedos em detrimento da filologia e da
retoacuterica humanista ndash defendida por Barbaro ndash tendo se tornado um documento de
elogio agrave Filosofia ldquonatildeo seremos ceacutelebres nas escolas dos gramaacuteticos []mas sim
onde se indagam as razotildees das realidades humanas e divinasrdquo80 Seus argumentos e
justificativas somam-se para defender o meacutetodo escolaacutestico tornando-se
emblemaacuteticos das discussotildees ensejadas no periacuteodo renascentista ndash em que os
defensores da elegacircncia linguiacutestica encontravam-se em oposiccedilatildeo aos defensores dos
conteuacutedos filosoacuteficos81
Fato certo eacute que nas linhas da escolaacutestica latina especialmente a mais tardia
Pico encontrara uma riqueza de pensamento que o ajudaria a solucionar muitas de
suas duacutevidas filosoacuteficas Eis a razatildeo para dedicar ao periacuteodo nada menos que 94 de
suas Conclusiones entre as quais se encontram proposiccedilotildees dos principais
representantes do Aristotelismo cristatildeo estudados em Paacutedua e Paris como Alberto
Magno o teoacutelogo Enrico de Gand e seu contemporacircneo Egidio Romano o
dominicano Tomaacutes de Aquino o franciscano Duns Escoto e seu disciacutepulo Francisco
de Meyronnes Sua trajetoacuteria de estudos inicia-se com Tomaacutes com o qual passaria
um longo periacuteodo de instruccedilatildeo que continuaria com o percurso das demais
interpretaccedilotildees latinas82 Impulsionado por seu crescente interesse em torno ao Liceu
em breve tempo Pico seria conduzido ao encontro com o pensamento aacuterabe a
Universidade de Paacutedua sobretudo agrave sua eacutepoca seguia uma linha majoritariamente
averroiacutesta83 O relevo dispensado a essa corrente de pensamento reflete-se em suas
contemporacircneos Apoacutes sua morte e conforme deixado em testamento a biblioteca foi herdada por seu irmatildeo Anton Maria que a vendeu ao cardeal Domenico Grimani amigo de Pico e de Elia del Medigo estudioso de filosofia oriental Outras informaccedilotildees sobre a biblioteca de Pico podem ser colhidas de GARIN Giovanni Pico della Mirandola 2011 pp 106 ss
80 A carta de Junho de 1485 eacute reproduzida dentre outros por Eugenio GARIN (org) Prosatori latini del Quattrocento Milano-Napoli 1952 pp804-823 Eugenio ANAGNINE examina com precisatildeo tal epiacutestola em seu Giovanni Pico della Mirandola 1937 pp 18 ss Veja-se ainda Francesco BAUSI E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza 1998 e alguns comentaacuterios de GARIN em sua traduccedilatildeo do De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 pp7 ss e em sua obra de 2011 p7
81 A carta para Barbaro tornou-se conhecida como De genere dicendi philosophorum ou ainda ldquoil manifesto del pensiero moderno allrsquouscire dalla sua infanzia drsquoun secolordquo (cf GARIN op cit pp22-23) O veneziano Ermolao Barbaro era disciacutepulo ferrenho de um novo Aristoacuteteles compreendido agrave luz do movimento humanista que rompia com a escolaacutestica medieval Em sua visatildeo aquela forma de interpretaccedilatildeo dogmatizava o Estagirita vinculando-o agrave loacutegica e a um padratildeo de pensamento teoloacutegico para ele ldquocoisa de conventordquo Acerca da polecircmica entre Ermolao Barbaro e Giovanni Pico veja-se Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos del Renacimiento Italiano p82 GARIN (org) Prosatori latini del Quattrocento Milano-Napoli 1952
82 Eugenio ANAGNINE (Giovanni Pico della Mirandola Sincretismo religioso-filosofico 1937 p32) de forma singular acentua a influecircncia tomista no pensamento de Pico
83 Em Paacutedua a pesquisa universitaacuteria em torno do aristotelismo-averroiacutesta ganhara uma notoacuteria dimensatildeo especialmente na deacutecada de 70 do seacuteculo XV Esse fato contribuiu para que acorressem ao burgo diversos jovens humanistas aacutevidos em aprofundar o conhecimento aristoteacutelico Paralelamente diversos tipoacutegrafos introduziram sua arte na cidade no uacuteltimo quartel daquele seacuteculo e por via da accedilatildeo tipograacutefica foram grandes divulgadores dos
43
82 teses dedicadas aos inteacuterpretes aacuterabes de Aristoacuteteles quase se igualando em
nuacutemero agraves dedicadas aos comentadores cristatildeos Dentre aqueles o estudioso
debruccedilou-se sobre o filoacutesofo persa Ibn Sina conhecido como Avicenna e seu mestre
de origem turca Al-Farabi e de forma singular sobre o andaluz conhecido como
Averroacuteis cujas obras ocupavam grande parte de sua biblioteca84
Em seus estudos de especulaccedilatildeo oriental a obra de Averroacuteis desempenharia
um papel fundamental muito graccedilas a seus mestres de Paacutedua Nicoletto Vernia e
sobretudo Elia del Medigo que efetivamente incitaram Pico a aprofundar-se no
pensamento do comentador de Aristoacuteteles Eacute bastante provaacutevel que Elia leitor atento
da concepccedilatildeo da ordem metafiacutesica averroiacutesta tenha sido o primeiro a lanccedilar na
mente de seu aluno a semente da ldquoverdade uacutenicardquo sobretudo exposta por Averroacuteis em
seu De animae beatudine determinante para as primeiras concepccedilotildees piquianas em
torno da concordacircncia final entre doutrinas que se desenvolveria nos anos
seguintes85 Outras duas concepccedilotildees averroiacutestas certamente tiveram efeito em seus
escritos quais sejam o encontro da unidade da verdade com a unidade do espiacuterito
que a busca ndash e que define a unidade uacuteltima do intelecto inteligente e inteligiacutevel ndash e a
cogniccedilatildeo racional que ocorre entre pensadores individuais que formam uma
continuidade de pensamento levando a um complemento do real que apenas assim
se atua de forma plena Pico estava disposto a debater essa uacuteltima concepccedilatildeo durante
a pretendida Disputa Romana pois dentre as teses atribuiacutedas a Averroacuteis lecirc-se que ldquoa
alma intelectiva eacute uacutenica em todos os homensrdquo86 Mas de forma particular foi a
doutrina que postula a possibilidade de uniatildeo do intelecto humano com a mente
divina que mais fortemente ecoaria e se repetiria na obra de Pico87 Na forma
pressuposta pelo filoacutesofo aacuterabe
Aquele intelecto entatildeo ascenderaacute pelo ato agrave assimilaccedilatildeo das
realidades abstratas e compreenderaacute ser seu o que eacute pelo ato o
intelecto88
comentaacuterios de Averroacuteis a Aristoacuteteles Sobre a accedilatildeo tipograacutefica em Paacutedua veja-se G ANTONELLI Sulle Opere di Aristotele col commento dellrsquoAverroe impresse in Padova dal Canozio negli anni 1472 73 e 74 (Ferrara 1842) A Escola de Paacutedua graccedilas aos sistemas cientificistas adotados em seus estudos foi a responsaacutevel por cunhar a expressatildeo ldquomeacutetodo cientiacuteficordquo para questotildees de acircmbito filosoacutefico
84 Em seu ldquoAppendicerdquo a Giovanni Pico della Mirandola (2011 pp 106 ss) no qual se encontra a relaccedilatildeo de obras que compunham a biblioteca de Pico escreve GARIN que o pensador do qual Pico ldquonatildeo sem significadordquo possuiacutea mais obras era justamente Averroacuteis (p118) Comentador de Aristoacuteteles por excelecircncia Abu al-Walid ibn Rushd mais frequentemente conhecido no Ocidente por Averroacuteis havia feito entre outras interpretaccedilotildees um comentaacuterio da Metafiacutesica agrave luz do Coratildeo A biblioteca de Pico continha vaacuterias de suas traduccedilotildees e comentaacuterios em aacuterabe hebraico e latim Para um maior enquadramento da problemaacutetica averroiacutesta veja-se a obra de Ernest RENAN Averroegraves et lrsquoAverroiumlsme 1852
85 Acerca do influxo de Averroacuteis sobre a concepccedilatildeo de concoacuterdia piquiana veja-se GARIN 2011 pp12 ss 84 ss 86 PICO Concl (I) II I 2 (p20) ldquoUna est anima intellectiua in omnibus hominibusrdquo Dentre as teses
atribuiacutedas por Giovanni Pico aos comentadores aacuterabes de Aristoacuteteles 41 foram dedicadas a Averroacuteis O tema da unidade de alma dos filoacutesofos eacute tratado na obra do filoacutesofo aacuterabe Destructio destructionum disp I fol 20 I-21 a ldquoSoacutecrates eacute diverso de Platatildeo em nuacutemero e contudo ele mesmo [Soacutecrates] e Platatildeo satildeo o mesmo na forma que eacute almardquo (ldquoSocrates est alius a Platone numero et tamen ipse et Plato sunt idem in forma quae est animardquo)
87 A uniatildeo da mente humana com o divino eacute concepccedilatildeo presente na inteira obra piquiana colocada por outras vias e atraveacutes de outras formas filosoacuteficas ou teoloacutegicas como seu objetivo final Sobre a especiacutefica reflexatildeo do tema averroiacutesta na obra de Pico veja-se Guido DE RUGGIERO La filosofia del Cristianesimo 1920 p56
88 AVERROacuteIS De animae beatudine Opera volIX 153 AB ldquoAscendet tunc ille intellectus is actu ad assimilationem rerum abstractarum et intelligit suum esse quod est actu intellectus []rdquo O tratado De animae beatudine foi uma compilaccedilatildeo posterior de dois curtos textos de Averroacuteis sobre o intelecto (Tractatus De animae
44
A ideia da conciliaccedilatildeo do indiviacuteduo com o intelecto universal e a ideia da
unidade de alma existente entre os filoacutesofos seriam colhidas e ajudariam a compor o
substrato do pensamento piquiano89 Tais concepccedilotildees muito provavelmente
fizeram-no abraccedilar com mais veemecircncia o Platonismo com o qual encontraria
similitudes conceituais ndash como na questatildeo da afinidade existente entre a parte da
alma capaz de entender as Ideias e a realidade inteligiacutevel permitindo sua uniatildeo Cabe
ressaltar que a inspiraccedilatildeo averroiacutesta de Pico foi de tal profundidade que o levou a
afastar-se dos tradicionais nuacutecleos de Paacutedua em razatildeo de divergecircncias em relaccedilatildeo a
especificidades daquela doutrina A cisatildeo com o academicismo padovano fez com que
Barbaro o chamasse de ldquotraidorrdquo na famosa carta de rsquo85 incomodado pela
aproximaccedilatildeo do amigo ao Platonismo o peripateacutetico atribuiu seu afastamento a uma
suposta adesatildeo incondicional agrave filosofia do ciacuterculo de Ficino Mas ao contraacuterio do
que tantos quiseram crer seu afastamento foi mais consequecircncia dos argumentos
retirados de seus intensos estudos sobre o pensamento aacuterabe aliados a uma forma
diferenciada de ler Averroacuteis90 Mais do que ter sido ldquoroubadordquo de Averroacuteis por Platatildeo
Pico foi impelido pelo Comentador ao Platonismo pois havia algo naquela filosofia
que dava espaccedilo para a transcendecircncia91
Embora seja redutivo outorgar agrave filosofia de Averroacuteis o creacutedito por uma
aproximaccedilatildeo ao nuacutecleo de pensamento da Academia cabe lembrar que o Pico que se
lanccedila com interesse sobre a ficiniana Theologia Platonica em 1482 tem a mente jaacute
moldada por uma robusta bagagem averroiacutesta que natildeo seria desprezada Seu
primeiro texto relevante o Commento sopra una Canzona drsquoamore composta da
Girolamo Benivieni92 apresenta um claro vieacutes platocircnico A inegaacutevel orientaccedilatildeo de seu
primeiro escrito mostra que embora o nuacutemero total de teses dedicadas ao
Platonismo na sucessiva obra de rsquo86 tenha sido menor a admiraccedilatildeo por suas
concepccedilotildees natildeo se mostra inferior do que a experimentada com as correntes
aristoteacutelicas Eacute bastante possiacutevel que ao aproximar-se de Platatildeo e dos neoplatocircnicos
Pico jaacute o faccedila trajando as vestes do conciliador que busca harmonizar os motivos
centrais do Liceu e da Academia Sob tal enfoque chama a atenccedilatildeo o fato de Proclo
beatudine - Aristotelis Opera cum Averrois Commentariis Venetiaa Junctas 1562 [reprinted Frankfurt 1962] Vol IX pp 148r-155r)
89 A concepccedilatildeo de que o intelecto eacute capaz de entender o agente primeiro e a si mesmo a partir da virtude racional eacute uma tese de Al-Farabi que Pico encontra tambeacutem em Avempace e em Maimocircnides (Doctor perplexorum I 68) neste uacuteltimo conforme elucida Salomon MUNK Le Guide des Egareacutes Paris 1856 volI n p 304-308 (GARIN 2011 p65)
90 Um detalhamento da interpretaccedilatildeo de Pico que o levou a divergir dos demais averroiacutestas nos afastaria do tema traccedilado Para o tema veja-se GARIN 2011 pp12 ss 84 ss
91 Conforme infere Moshe IDEL Averroacuteis ldquoo mais ortodoxo entre os aristoteacutelicos medievais e ao mesmo tempo conhecido por permitir a possibilidade da uniatildeo epistecircmica do humano com o Agente Intelectordquo eacute entendido por oferecer uma metafiacutesica e uma epistemologia que podem conter alguns elementos miacutesticos Trata-se pois de ldquoum racionalista que natildeo conseguindo justificar todas as coisas plenamente atraveacutes da razatildeo aceita a revelaccedilatildeordquo (IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 28-29)
92 Durante sua permanecircncia em Fratta apoacutes o fracasso amoroso com Margherita Pico concluiu seu comentaacuterio agrave canccedilatildeo de amor redigida pelo amigo Benivieni o chamado Commento obra que se tornou famosa e foi bastante comentada nas cartas do periacuteodo O texto foi editado uma primeira vez em 1519 no contexto das obras piquianas e em 1731 como texto autocircnomo com o tiacutetulo Dellrsquoamore celeste e divino - Canzone di GB fiorentino col comento di G Pico della Mirandola (Alberto Cesare AMBESI ldquoGiovanni Pico della Mirandola Cenni biografici e presentazione dellrsquooperardquo in Heptaplus 1996 pV)
45
ser homenageado com 55 teses dez a mais que seu estimado Aquinate Essa
quantidade revela natildeo apenas o apreccedilo de Pico pelo filoacutesofo grego como muito
provavelmente a vontade de dar continuidade ao projeto que aquele havia iniciado
jaacute entatildeo uma tentativa de levar a termo a conciliaccedilatildeo entre as duas escolas
filosoacuteficas93 Ademais assim como ele o uacuteltimo grande mestre neoplatocircnico
considerava como elemento preliminar agrave carreira filosoacutefica o entendimento das obras
loacutegicas de Aristoacuteteles Certo eacute que a ideia de encetar um estudo de verificaccedilatildeo da
concoacuterdia entre os dois grandes da Antiguidade iniciara pouco antes de seu
estabelecimento em Florenccedila ocorrido em rsquo84 encontrando-se expressa na epiacutestola a
Barbaro do mesmo ano na qual afirma ser apenas aparente tal discoacuterdia
Parece-me que em Platatildeo haacute dois aspectos a eloquecircncia
homeacuterica que se ergue ateacute os ceacuteus da poesia e um total acordo
com Aristoacuteteles se se vai a fundo Portanto se olharmos a
forma nada concorda entre os dois mas se natildeo olharmos a
forma nada se opotildee entre os dois94
O momento para retomar aquele projeto maior mantido vivo desde antes da
elaboraccedilatildeo das novecentas teses ocorre apoacutes o fracasso de seu intento com as
Conclusiones Para levaacute-lo a termo muniu-se de fundamentos encontrados tanto nas
similitudes descritas pelos comentadores que o influenciaram quanto em sentido
contraacuterio nas diferenccedilas entre os dois Filoacutesofos acentuadas sobretudo por George
Gemistos Plethon anos antes95 Assim durante os anos de rsquo90 e lsquo91 Pico se dedica
exaustivamente agrave ldquoconcordia Platonis et Aristotelisrdquo conseguindo concluir em 1492
o texto embrionaacuterio De Ente et Uno dedicado ao amigo Poliziano96 Nesse percurso
ocorre seu retorno agrave Escolaacutestica que pode ter sido decisivo assim como o
Averroiacutesmo anos antes o aproximara a Platatildeo Tomaacutes de Aquino seu mestre inicial
o reaproximava agora a Aristoacuteteles ndash natildeo sem a influecircncia da convivecircncia com
93 Em sua ldquoIntroduccedilatildeordquo agraves Conclusiones Pico esclarece que o acordo entre Platatildeo e Aristoacuteteles ldquopor muitos
considerado possiacutevelrdquo natildeo havia sido por ningueacutem ldquosuficientemente provadordquo Por ldquomuitosrdquo Pico referia-se a Boeacutecio Simpliacutecio Agostinho e Joatildeo Gramaacutetico ldquoBoeacutecio [] parece que nunca cumpriu o que sempre disse querer fazer Simpliacutecio entre os Gregos tinha sustentado a mesma coisa quem dera tivesse mantido quanto prometera Ateacute mesmo Agostinho no livro Contra os Acadecircmicos escreve que muitos foram os que tentaram provar que a filosofia de Platatildeo e de Aristoacuteteles satildeo uma mesma filosofia Assim Joatildeo Gramaacutetico que afirma que Platatildeo difere de Aristoacuteteles soacute para os que natildeo percebem o texto de Platatildeo deixou aos vindouros a demonstraccedilatildeordquo (Concl p145) Naomi GOLDFELD observa que o mestre Elia del Medigo foi outro dentre os que encontraram dificuldades para conciliar Platatildeo e Aristoacuteteles seguindo os passos de Averroacuteis que por sua vez havia encontrado dificuldades quase trecircs seacuteculos antes ao tentar essa conciliaccedilatildeo (Elia del Medigo e lrsquoaverroismo hebraico in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 43-44)
94 PICO Carta de 6 de Dezembro de 1484 in De Hominis Dignitate etc p9 (I 22) ldquo[] duo in Platone agnoscere et homerican illam eloquenti facultatem supra prosam orationem sese attollentem et sensum si quis eos altius introspiciat cum omnino communionem Ita ut si verba spectes nihil pugnantius si res nihil concordiusrdquo
95 Eacute bastante provaacutevel que a polecircmica de algumas deacutecadas gerada pelo opuacutesculo posteriormente intitulado De Differentiis que exerceu forte influxo nas concernentes discussotildees do seacuteculo XV ndash no qual o mestre de Mistra aborda as diferenccedilas entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash tenha afetado o jovem Pico Conforme foi visto no Capiacutetulo I a polecircmica sobre as divergecircncias ou similaridades entre os dois Filoacutesofos perpassou o seacuteculo de certa forma graccedilas agrave continuidade do debate mantida por George de Trebizonda e Basiacutelio Bessarion Para maiores detalhes acerca da questatildeo leia-se MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 James HANKINS Plato in the Italian Renaissance 1990 pp193 ss GARIN 2011 p128
96 A iacutentegra da obra pode ser encontrada na ediccedilatildeo de Vallecchi (org Eugenio Garin) da De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 Para dados adicionais sobre a discussatildeo do De Ente et Uno leia-se GARIN 2011 entre pp 79 e 98 sobretudo as pp80-81
46
Savonarola Como infere Di Napoli o retorno a Tomaacutes com sua ldquosiacutentese de superaccedilatildeo
da distinccedilatildeo entre Platatildeo e Aristoacutetelesrdquo seria ldquodeterminanterdquo para que Pico
embasasse sua concoacuterdia97 O esteio tomista traria a sustentaccedilatildeo necessaacuteria para
discorrer acerca da relaccedilatildeo entre o Uno e o Ser proscecircnio de uma das importantes
disputas entre acadecircmicos aristoteacutelicos e platocircnicos nas discussotildees teoloacutegicas do
seacuteculo Solucionar um dos grandes contrastes teoreacuteticos da eacutepoca cria o eixo de De
Ente et Uno para a fundamentaccedilatildeo do qual Pico apoia-se sobretudo na Metafiacutesica
de Aristoacuteteles e no Parmecircnides de Platatildeo98 Apesar de o intento natildeo ter sido
terminado e a concordacircncia portanto natildeo concluiacuteda nos moldes pretendidos a obra
aborda conceitos metafiacutesicos obrigatoacuterios para a questatildeo retratando de acordo com
Garin uma ldquonotaacutevel posiccedilatildeo especulativardquo99
A soacutelida estrutura preparada ao longo de anos para sustentar aquele que seria
um de seus mais importantes projetos filosoacuteficos o de dirimir as diferenccedilas entre os
dois Gregos permitiu-lhe especular sobre esferas metafiacutesicas elevadas Apesar de
uma exposiccedilatildeo mais ampla do De Ente et Uno mostrar-se secundaacuteria para a
composiccedilatildeo do tema aqui proposto tomar conhecimento de seu nuacutecleo e sobretudo
de para onde aponta seu fim eacute condiccedilatildeo devida para que se complete o cenaacuterio dos
alicerces que constituem o pensamento piquiano O nuacutecleo da obra concentra um
motivo de cunho ontoloacutegico visto que trata da discussatildeo acerca da unidade ou
multiplicidade do Ser tomando por base as visotildees aristoteacutelica e platocircnica referentes
ao Ser e ao Uno Partindo da passagem da Metafiacutesica ldquoo Ser eacute Unordquo100 que se opunha
agrave ldquoprioridade do Uno em relaccedilatildeo ao Enterdquo sustentada na Academia101 Pico pretende
averiguar se a Unidade eacute inerente ao Ser O fim de sua obra para o qual se orienta a
tentativa de dirimir o presumido conflito eleva-o para a esfera dos Princiacutepios ndash um
interesse relacionado agrave Origem protoloacutegico portanto Essa informaccedilatildeo deve ser
guardada Em torno a essa esfera e natildeo abaixo dela concentram-se muitas das
demais argumentaccedilotildees piquianas algumas de acircmbito supra filosoacutefico sobretudo as
que recorrem a argumentos retirados da dimensatildeo esoteacuterica como seraacute visto Seus
interesses de ordem religiosa ou miacutestica procuram justamente encontrar o ponto de
convergecircncia entre aquelas doutrinas e os Princiacutepios
97 Giovanni DI NAPOLI Pico e la problematica dottrinale del suo tempo 1965 p223 Para o influxo de Tomaacutes
de Aquino sobre o pensamento de Pico em seus uacuteltimos anos veja-se Andreacute-Jean FESTUGIEgraveRE Studia Mirandulana in Archives drsquohistoire doctrinale e litteraire du Moyen acircge 1933 pp151 e ss ANAGNINE (opcit p32)
98 A discussatildeo do Parmecircnides envolveu muitos eruditos no seacuteculo XV como Bessarion e Ficino que enxergavam no diaacutelogo o coraccedilatildeo da teologia platocircnica Alguns pontos da obra contrapuseram Pico ndash que considerava a obra apenas como um exerciacutecio dialeacutetico ndash a Ficino que diria ldquono Parmecircnides Platatildeo encerrou a inteira teologiardquo (Ficino Opera Henricpetrina Basilea 1576 p1137 apud MOLINARI opcit p81) Ainda GARIN LrsquoUmanesimo Italiano 2008 pXVII As interpretaccedilotildees dos dois autores renascentistas sobre o pensamento de Platatildeo exerceraacute uma influecircncia profunda nos seacuteculos seguintes alcanccedilando desde os Platocircnicos de Cambridge ateacute a literatura alematilde atingindo Winckelmann Herder Goethe Schelling e Hegel (cf CASSIRER ldquoFicinorsquos Place in Intelectual Historyrdquo in Journal of the History of Ideas nr 6 1945)
99 GARIN 2011 p42 Como reflete o comentador em outra obra Pico mergulhou na problemaacutetica da discoacuterdia natildeo para eliminar seu dissenso mas para integrar ndash e distribuir em niacuteveis distintos ndash seus conteuacutedos (GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo 1965 p17) Mesmo natildeo tendo concluiacutedo a obra de conciliaccedilatildeo entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash tema que continuaraacute em todo o seacuteculo XVI ndash soacute o fato de tecirc-la proposto em termos novos e tecirc-la iniciado mostram como era forte a necessidade de suplantar certas posiccedilotildees humanistas do lsquo400 e como jaacute despontavam em Pico questotildees que seriam a tocircnica do seacuteculo vindouro (GARIN 2008 p 98)
100 Metaphysica IV 2 1003b-23 ldquoens et unum idem et eadem natura suntrdquo 101 PICO De Ente et Uno p389
47
3 A aproximaccedilatildeo aos estudos miacutesticos
O contato com a consistente corrente d0 pensamento padovano natildeo trouxe
apenas a convicccedilatildeo de conciliar Platatildeo e Aristoacuteteles Jaacute agrave eacutepoca de seus estudos
iniciais havia-se encastelado na mente de Pico aquele que viria a ser seu desafio
maior encontrar os pontos de acordo entre sistemas filosoacuteficos e doutrinas religiosas
pertencentes a tradiccedilotildees distintas102 Natildeo por acaso observa-se em sua biografia uma
alternacircncia de temaacuteticas de pesquisa que transitam entre Filosofia e doutrinas ligadas
ao campo da Revelaccedilatildeo Essas uacuteltimas satildeo retomadas no periacuteodo imediato ao retorno
da Franccedila para Florenccedila quando ocorre a aproximaccedilatildeo ao misticismo hebraico
atraveacutes de uma renovaccedilatildeo nos estudos biacuteblicos Em fase de introspecccedilatildeo inicia-se a
redaccedilatildeo de uma seacuterie incompleta de comentaacuterios sobre os Salmos e embora natildeo
comprovado uma nova traduccedilatildeo e alguns comentaacuterios sobre partes do Livro de Joacute
Nessa fase tocado pelo estado de espiacuterito de seu amigo Lorenzo escreve para o
embaixador papal em Roma Giovanni Lanfredini contando que Pico ldquovive muito
piamente como um monge canta os Salmos e escreve conteuacutedos teoloacutegicosrdquo E
acresce que ldquopoucos satildeo os homensrdquo que lhe despertam ldquotanta estimardquo103 A carta ndash
uma tentativa para a reabilitaccedilatildeo do sentenciado ainda natildeo absolvido de sua
condenaccedilatildeo ndash termina sendo malsucedida pois Inocecircncio VIII considera intoleraacutevel o
interesse contiacutenuo de Pico em Teologia preferindo que ele ldquose dedique agrave poesiardquo104
Esse tipo de interesse pelas Escrituras natildeo era novo Quando ainda estudante
em Paacutedua lanccedilara-se com premecircncia ao estudo do idioma hebraico em um primeiro
momento buscava apenas compreender as traduccedilotildees e interpretaccedilotildees hebraicas dos
pensadores aacuterabes e seus comentaacuterios referentes a Aristoacuteteles contudo em fase
posterior os textos originais hebraicos foram objeto de profundo interesse para a
busca de confirmaccedilotildees da verdade de suas crenccedilas cristatildes ndash interesse despertado
sobretudo pelo contato com Elia del Medigo durante o periacuteodo florentino A
proficiecircncia do idioma seria incrementada por Flaacutevio Mitridate ndash mestre que natildeo
apenas o ajudaria nas traduccedilotildees de alguns textos como se tornaria seu principal
instrutor de liacutenguas orientais105 Aleacutem do hebraico iniciou-o no aramaico e no aacuterabe
este entre outras coisas para que pudesse ler Maomeacute no original Assim em dado
periacuteodo o aprendiz lia simultaneamente o Coratildeo os Oraacuteculos Caldeus atribuiacutedos a
102 GARIN 2011 p13 BROCCHIERI opcit p13 103 A carta foi escrita em 13 de junho de 1489 Os conteuacutedos teoloacutegicos referem-se tanto aos Salmos quanto
presumivelmente ao Heptaplus (BLACK opcit pg 9) As cartas entre Giovanni Lanfredini e Lorenzo dersquo Medici podem ser vistas em Domenico BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti 1859 pp51-52 Ainda para a questatildeo veja-se GARIN 2011 pp39-40
104 Em 2 de Outubro de 1489 o embaixador Giovanni Lanfredini assim responderia a Lorenzo ldquoEt dixe [il papa] lsquoQueste cose della fede sono troppo tenere et non posso tollerarle Se lui [Lorenzo] gli vuole molto bene [a Pico] che lo facci scrivere opere di poesia et non cose theologiche percheacute saranno piugrave de sua denti percheacute il conte non egrave bene fondato et non ha visto tanto quanto bisogna ad chi scrive theologiarsquordquo (MS Firenze Archivio di Stato MAP 58 96 apud Raffaella Maria ZACCARIA Critiche e difesa dellrsquoHeptaplus in Pico Poliziano e LrsquoUmanesimo di fine Quattrocento 1994 pp 76-77)
105 Para os estudos com Mitridate leia-se Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 88 Domenico BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti in Rivista contemporanea 1859 pp36-37
48
Zoroastro e o Livro da Criaccedilatildeo pilar do misticismo judaico ndash buscando extrair seus
pontos de conversatildeo106
O contato com os mestres hebreus que frequentavam o ciacuterculo florentino
ligado agrave Academia acentuou ademais seu interesse pelo Esoterismo Elia del
Medigo natildeo lhe apresentaria apenas Averroacuteis e as filosofias orientais em carta ao
aluno no provaacutevel ano de rsquo85 mencionava a principal doutrina miacutestica judaica
afirmando que ldquopoucos entre os Antigos entenderam a Cabalardquo107 Ademais
continuava a carta seus textos obscuros pediam uma hermenecircutica especial que
possibilitasse a decodificaccedilatildeo das doutrinas secretas laacute ocultas ele Elia seria o
mestre capaz de fornecer a Pico os preciosos elementos para a compreensatildeo da gnose
hebraica108 Assim embora natildeo se tendo limitado aos ensinamentos de Elia que
nesse sentido foram um tanto escassos as primeiras indicaccedilotildees para seus estudos da
Cabala foram-lhe transmitidas por aquele jovem mestre que insistia para que fossem
extraiacutedas as partes teoreticamente mais profundas da miacutestica hebraica Elia colocava
e ressaltava continuamente o problema da convergecircncia entre Filosofia e Teologia
(ldquoo outro caminho para acreditar-se na Lei aleacutem da feacute se daacute pela via filosoacuteficardquo)109 ndash
uma concepccedilatildeo essencial para a formaccedilatildeo do pensamento piquiano
Natildeo somente Elia lhe abriria as portas para esse gecircnero de interesse A forte
dicotomia entre a leitura literal e natildeo literal era uma caracteriacutestica constante e
enfaacutetica da tradiccedilatildeo judaica medieval ainda mantida viva no seacuteculo XV e
apresentava evidentes paralelos com os modelos de transmissatildeo esoteacuterica greco-
cristatildeos tais ideias tinham portanto uma ressonacircncia contemporacircnea sendo objeto
de discussotildees teoacutericas na Itaacutelia ainda agrave eacutepoca em que Pico escrevia o Heptaplus110 De
forma que a postura hermenecircutica ali desenvolvida natildeo se fundamenta apenas na
miacutestica judaica mas encontra raiacutezes entre os primeiros inteacuterpretes latinos e gregos
Dentre as vaacuterias fontes agraves quais Pico teve acesso e que foram certamente utilizadas
em suas pesquisas verificam-se desde representantes do Cristianismo primitivo
quanto do meacutedio e novo Platonismo como Plutarco Dioacutegenes Laeacutercio Clemente
106 A questatildeo do aprendizado de liacutenguas estaacute bem documentada em vaacuterias cartas Veja-se Gian Francesco PICO
Vita di Giovanni Pico (org Sorbelli) 1963 DUKAS opcit pp69-70 CASSUTO op cit pp 282 299-300 GARIN 2011 pp97-98 Em resposta a uma carta de Ficino de setembro de 1486 em que esse lhe pede de volta a versatildeo latina do Coratildeo Pico conta-lhe sobre seu mecircs de esforccedilos para aprender o hebraico aleacutem de levar adiante os estudos do aacuterabe e do aramaico A carta pode ser lida em Chaim WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1987 pp 3-4 Escreve Wirszubski que ldquoo quanto Pico aprendeu em hebraico em termos de proficiecircncia eacute difiacutecil dizer natildeo eacute de forma alguma insignificanterdquo E na p 6 ldquoPico aprendeu muito com as traduccedilotildees de Mitridate infinitamente mais do que ele poderia ter aprendido com os originais hebraicos uma vez que tentou lecirc-los sem traduccedilotildeesrdquo
107 HELIAE CRETENSIS De efficientia mundi in RAGNISCO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo 1891 Veja-se ainda Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 BROCCHIERI opcit p9
108 CASSUTO opcit pp284 e ss Ainda para o tema BROCCHIERI opcit pp10-11 GARIN 2011 p11 SIRGADO GANHO opcit p17
109 HELIAE CRETENSIS De efficientia mundi fol 255 in RAGNISCO opcit A carta de Elia del Medigo foi publicada pela primeira vez por Jules DUKAS em Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 ldquo[] si quid tamen dictum sit contrarium Legi non mirum est quia tantum intentiones Philosophorum secundum fundamenta eorum dicere volui scitur nam quod via Legis cui magis creditur alia est a via Philosophicardquo Complementando a colocaccedilatildeo acima cabe observar que na visatildeo de Elia segundo Naomi GOLDFELD a feacute estaacute fundada sobre a razatildeo (ldquoElia del Medigo e lrsquoaverroismo hebraicordquo in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze 1998 p 43-44)
110 BLACK opcit pp 131-132
49
Euseacutebio Plotino Porfiacuterio e Jacircmblico Tendo sido adotada por alguns dentre os
primeiros exegetas cristatildeos a abordagem esoteacuterica foi mantida em circulaccedilatildeo por
intermeacutedio da tradiccedilatildeo neoplatocircnica mais tardia ndash levada adiante por Macroacutebio
Pseudo-Dioniacutesio e Simpliacutecio ndash depois que a mesma havia deixado de ser utilizada111
Jaacute em relaccedilatildeo agraves interpretaccedilotildees relativas ao Gecircnesis cujos sinais se mostram
na De Hominis Dignitate e em caraacuteter preciacutepuo no Heptaplus eacute bastante certo que
um limitado nuacutemero de textos tenha sido extraiacutedo das exegeses gregas da escola
alexandrina particularmente referentes a escritos de Oriacutegenes e de Fiacutelon A obra De
opificio mundi de Fiacutelon foi bem recepcionada por Ambroacutesio cujo pensamento
influiria sobre Agostinho mas apoacutes essa recepccedilatildeo cristatilde no seacuteculo IV sua utilizaccedilatildeo
parece ter desaparecido em grande parte112 Eacute possiacutevel que Pico tenha tido acesso ao
conteuacutedo de Fiacutelon atraveacutes de Ambroacutesio ou Agostinho
Passar do esoterismo grego e cristatildeo ao oriental foi um passo Pico percebia
atraveacutes de suas leituras que havia outros sistemas que em comum com aqueles
partilhavam de certo pendor por questotildees de cunho teoloacutegico ndash quando natildeo
puramente miacutestico Ainda antes de chegar a Florenccedila o jovem de Mirandola fora
atraiacutedo pelo Platonismo de Ficino um Platonismo de vieacutes teoloacutegico que tentava a
conciliaccedilatildeo com o Cristianismo O entatildeo ordenado padre via na obra platocircnica uma
filosofia divinamente inspirada na qual estava sintetizada toda a tradiccedilatildeo
especulativa oriental e grega113 Na concepccedilatildeo ficiniana todos os campos do real
encontravam-se convergentes em virtude de uma uniatildeo vital do mundo tal reflexatildeo
contemplava a perspectiva de uma pia philosophia na qual estariam alinhados
Zoroastro e Moiseacutes Hermes Trismegisto e Platatildeo os pitagoacutericos e os neoplatocircnicos
O legado de Ficino natildeo deixaria de acrescer importantes elementos na construccedilatildeo do
pensamento piquiano embora natildeo sem ressalvas114
Sobretudo os textos hermeacuteticos de acordo com as traduccedilotildees ficinianas teriam
exercido influecircncia nas reflexotildees do Conde alguns de seus temas como a liberdade
da alma em relaccedilatildeo ao corpo e a natureza mediadora do homem seriam amplamente
desenvolvidos nas obras posteriores a lsquo86115 Para alguns comentadores a
111 BLACK ibid p 147 O tema seraacute retomado no Capiacutetulo VII 112 BLACK idem Natildeo estaacute claro se esta obra foi incluiacuteda entre os manuscritos de Fiacutelon pertencentes agrave biblioteca
de Lorenzo Por outro lado ela estaacute atestada em dois manuscritos do Vaticano que foram incluiacutedos nos inventaacuterios de 1475 1481 e 1484
113 Para Ficino existia uma uacutenica Filosofia que consistia na ldquoreflexatildeo sobre as verdades eternas as Ideias que como tais permanecem inalteradas no tempo e transcendem a Histoacuteriardquo (cf Sebastiano GENTILE Il ritorno di Platone dei platonici e del lsquocorpusrsquo ermetico Filosofia teologia e astrologia nellopera di Marsilio Ficino in Vasoli-Pissavino (org) Le filosofie del Rinascimento 2002 pp 193-228)
114 Nem tudo foi apenas uniatildeo de ideias entre Ficino e Pico No Commento sopra una canzona drsquoamore da Girolamo Benivieni Pico faz aacutesperas criacuteticas a uma das obras de maior sucesso de Ficino o Commentarium in Convivium criticando a concoacuterdia estabelecida por Ficino de forma muito faacutecil entre o pensamento de Platatildeo e a doutrina cristatilde especialmente em pontos essenciais como a figura do Cristo Como escrevia Pico ldquoeacute preciso estar atento em natildeo confundir o filho de Deus [o demiurgo no texto de Platatildeo] com o filho de Deus dos teoacutelogos cristatildeos jaacute que este eacute de mesma essecircncia que o Pai criador e natildeo criaturardquo (GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento Firenze 1965 p28)
115 O conceito do homem-mediador na obra de Hermes Trismegisto eacute bem desenvolvido por SCOTT - FERGUSON em Hermetica The Ancient Greek and Latin Writings which Contain Religious or Philosophic Teachings Ascribed to Hermes Trismegistus 1924-36 p 120 ss
50
ldquoantropologiardquo foi um dentre os principais interesses extraiacutedos daquele
conhecimento em razatildeo do paraacutegrafo inicial da De Hominis Dignitate em que eacute
citada a ceacutelebre sentenccedila do Asclepius ldquoMagnum o Asclepi miraculum est homordquo116
uma entre diversas passagens hermeacuteticas que exaltam a grandeza do homem Ficino
havia citado a mesma passagem mais de dez anos antes em sua Theologia
Platonica117 mas com Pico a teoria hermeacutetica seraacute aprofundada e decisiva para a
questatildeo da dignidade Os escritos atribuiacutedos a Trismegisto foram ademais a fonte
utilizada para desenvolver seus pontos de vista sobre a magia branca capaz de
ldquocomungarrdquo o homem com o divino ndash tema a ser retomado no proacuteximo Capiacutetulo ndash
embora seus muacuteltiplos interesses o fizessem se envolver tambeacutem com certas
alquimias de conotaccedilatildeo praacutetica extraiacutedas do manual Picatrix118
Na Academia Pico inicia portanto a construir uma estrada proacutepria a partir ndash
natildeo da fusatildeo mas do encontro ndash de componentes comuns extraiacutedos de domiacutenios
distintos da teologia cristatilde da filosofia neoplatocircnica de escolas iniciaacuteticas egiacutepcias e
persas da miacutestica judaica A siacutentese daqueles estudos se mostraraacute na fase de reclusatildeo
no mosteiro de San Marco apoacutes o retorno da Franccedila uma nova etapa na qual o
pesquisador voltar-se-aacute para pensadores que fizeram da experiecircncia religiosa seu
campo de reflexatildeo Mergulhando de iniacutecio nas reflexotildees teoloacutegicas de Maimocircnides
adentra definitivamente pela porta do pensamento hebraico E ao trilhar essa
estrada comeccedila a vislumbrar a ideia de ter encontrado uma soluccedilatildeo para seus
problemas referentes agrave dificuldade em aliar Filosofia e Cristianismo119 A alegria de
encontrar no pensamento hebraico a confirmaccedilatildeo da identidade profunda entre
aquelas reflexotildees e suas crenccedilas ndash e ainda com as de outras culturas ndash seria relatada
posteriormente no Heptaplus
No ambiente de isolamento a cultura hebraica de Pico comeccedila efetivamente a
desabrochar Isso ocorre mormente atraveacutes das reflexotildees conduzidas junto a
Yohanan Alemanno Elia o tinha guiado em seus primeiros passos atraveacutes do
pensamento aacuterabe-hebraico mas o vieacutes aristoteacutelico de Elia natildeo permitia um maior
aprofundamento na Cabala com Flavio Mitridate natildeo haacute duacutevidas as cogniccedilotildees sobre
o tema se estenderam mas agora com Alemanno Pico consegue de modo efetivo
avanccedilar em suas intuiccedilotildees acerca da aplicaccedilatildeo dos meacutetodos cabaliacutesticos na soluccedilatildeo
das antiacuteteses entre Religiatildeo e Filosofia120 Os interesses de Alemanno comprovados
em sua bibliografia apresentavam muitos pontos de contato com a interpretaccedilatildeo
biacuteblica em geral e particularmente com o conteuacutedo desenvolvido no Heptaplus
116 PICO Oratio p 102 O tema seraacute retomado no Capiacutetulo IV 117 Marsilio FICINO Theologia platonica XIV 3 2 (ed Bompiani p1299) ldquoQuod admiratus Mercurius
Trismegistus inquit lsquoMagnum miraculum esse hominem animal venerandum et adorandum qui genus daemonum noverit quasi natura cognatum quive in deum transeat quasi ipse sit deusrsquordquo
118 Para a relaccedilatildeo de Pico com a magia extraiacuteda do Hermetismo leia-se Frances YATES Giordano Bruno e a Tradiccedilatildeo Hermeacutetica 1995 pp 84-116 Algumas questotildees relacionadas agrave magia praacutetica e alquimia satildeo descritas por Pietro CRINITO conta por exemplo que Pico ficou dias a preparar uma foacutermula alquiacutemica agrave base de certos venenos para curar Ermolao Barbaro E em eacutepoca de peste experimentou algumas misturas de venenos para encontrar a cura ldquoex oleo scorpionum linguisque aspidum et aliis eiusmodi venenis confectumrdquo (De honesta Disciplina I 7 p12 apud GARIN 2011 p44)
119 GARIN 2011 p27 120 GARIN 2011 pp38-39 WIRSZUBSKI op cit pp256-257
51
Atraveacutes da interpretaccedilatildeo cabaliacutestica poderia ser promovida a possiacutevel conciliaccedilatildeo
entre as Escrituras e a Filosofia como seraacute visto no Capiacutetulo VI Da mesma forma
que a Teologia cristatilde havia identificado ecos de suas doutrinas nos manuscritos de
caldeus e egiacutepcios como mostravam as recentes descobertas do Platonismo
florentino121 Pico tentaria encontrar nas Escrituras conteuacutedos que teriam derivado
das doutrinas cabaliacutesticas ndash natildeo com o intuito de subordinar umas agraves outras mas
com a firme vontade de dar verdade aos textos sagrados dentro da Filosofia que
buscava122
Com a apresentaccedilatildeo das Conclusiones Nongentae Giovanni Pico teria a
chance natildeo apenas de expor como de debater finalmente o cabedal de conhecimento
aprendido naqueles anos de estudos filosoacuteficos teoloacutegicos orientais e em parte
esoteacutericos Tendo sido apresentadas as circunstacircncias ao seu redor e os caminhos
atraveacutes dos quais se estruturou seu pensamento seraacute possiacutevel prosseguir em direccedilatildeo
ao objetivo traccedilado qual seja mostrar de que forma Pico mesclou em suas
argumentaccedilotildees paracircmetros de teor natildeo-filosoacutefico
121 Essa era a ideia prevalente no ciacuterculo de Ficino A relaccedilatildeo entre essas doutrinas e sua aceitaccedilatildeo na Academia
podem ser confirmadas pela recepccedilatildeo dos textos atribuiacutedos a Hermes do Egito e ao persa Zoroastro conforme abordado no Capiacutetulo I A aceitaccedilatildeo de Hermes como ldquoum dos seusrdquo pela Igreja pode ser comprovada atraveacutes do grande trabalho de marchetaria feito no piso do Duomo de Siena nos anos rsquo80 do seacuteculo XV onde Hermes Trismegisto estaacute representado de forma extraordinaacuteria mostrando sua recepccedilatildeo em territoacuterio cristatildeo
122 Bohdan KIESZKOWSKI Averroismo e Platonismo in Italia in Studi sul Platonismo del Rinascimento in Italia 1936 capVII
52
CAPIacuteTULO III
AS CONCLUSIONES NONGENTAE E SUA OCCULTA CONCATENATIO
As Conclusiones Nongentae1 ou Novecentas Teses formam em seu conjunto
a primeira obra de Giovanni Pico a ser estampada ndash e seu trabalho mais
desafortunado Os acontecimentos em torno ao assunto ocorreram em um ritmo
muito veloz A redaccedilatildeo foi concluiacuteda em 12 de Novembro de 1486 em 7 Dezembro o
manuscrito foi levado para ediccedilatildeo em Roma pelas matildeos de Eucharius Silber2 sem
que fosse aguardado o usual parecer de catolicidade por parte da comissatildeo pontifiacutecia
Em breve tempo algumas daquelas primeiras coacutepias seriam vetadas e em Marccedilo de
lsquo87 a comissatildeo ligada ao prelado proibiria definitivamente sua difusatildeo Treze teses
foram inicialmente censuradas Pico julgado e finalmente a totalidade das teses
condenada A proacutexima publicaccedilatildeo das Conclusiones somente ocorreria na segunda
metade do seacuteculo XVI na Basileacuteia terra natildeo catoacutelica3
Voltando-se atraacutes alguns meses para o periacuteodo de sua elaboraccedilatildeo verifica-se
que o principal projeto de Pico seguiu uma bem estruturada sistematizaccedilatildeo na
preparaccedilatildeo dos fundamentos erigida ao molde das construccedilotildees teoreacuteticas medievais
Em posse do conhecimento dos formatos escolaacutesticos o autor daria iniacutecio a uma
ordenaccedilatildeo das vaacuterias vertentes e escolas com as quais tivera contato com o objetivo
de apresentar seus pontos de analogia Assim a organizaccedilatildeo do conteuacutedo obedece a
uma sequecircncia de proposiccedilotildees extraiacutedas de sua criacutetica-histoacuterica organizada por
grupos de pensamento Em termos de estilo e aproveitando-se do meacutetodo de
argumentaccedilatildeo atraveacutes de nuacutemeros (calculationes) apreendido nos cursos de loacutegica
seguidos em Pavia Pico se serve do modelo de escrita ldquoparisiensisrdquo tendo por base a
loacutegica aristoteacutelica4 Tal estilo utilizado tanto nas Conclusiones quanto na Apologia
1 O tiacutetulo original conforme a editio princeps eacute Conclusiones DCCCC dialecticae morales physicae
mathematicae publice dispuntandae Romae Anno ab incarnatione Domini MCCCCLXXXVI die septime Decembris Sobre a escolha do nuacutemero de teses Pico explicaria em carta escrita a Girolamo Benivieni que seu intento inicial era o de escrever 700 teses chegando depois a 900 embora tivesse material para um nuacutemero maior O 900 seria o nuacutemero certo por seu significado miacutestico acerca do qual Pico apenas sinalizaria ldquose efetivamente a nossa ciecircncia dos nuacutemeros eacute digna de feacute tal cifra simboliza a alma que retorna a si apoacutes ter sido revolvida pela inspiraccedilatildeo das Musasrdquo (cf Leacuteon DOREZ Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) in Giornale Storico della Letteratura italiana XXV 1895 p358)
2 Eucharius Silber alias Franck era considerado o melhor tipoacutegrafo de Roma (cf Giulio BUSI Pico fede ragione e Inquisizione in ldquoIl Sole-24 Orerdquo 28082018) O texto original das Conclusiones estaacute contido atualmente em quatro manuscritos conservados e distribuiacutedos entre as cidades de Viena Munique e Erlangen (respectivamente nas seguintes bibliotecas Osterreichische Nationalbibliothek lat 14708 Bayerische Staatsbibliothek lat 11807 Universitatsbibliothek lat 646) Cf Mauro ZONTA Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 185
3 Para maiores detalhes sobre as circunstacircncias da publicaccedilatildeo veja-se Albano BIONDI ldquoIntroduzionerdquo a Conclusiones Nongentae 1995 ppV-XIII Ainda Edoardo FORNACIARI ldquoIntroduzionerdquo agrave traduccedilatildeo de Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p9 Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p63 Por mais de cinco seacuteculos as Conclusiones permaneceram em olvido com acesso apenas a poucos especialistas suas poucas ediccedilotildees remetem quase todas ao seacuteculo XVI sendo que sua uacuteltima ediccedilatildeo completa eacute de 1619 Apoacutes essa data a obra passou por um longo periacuteodo de esquecimento ateacute ser finalmente editada por Kieszkowski em 1973
4 PICO Concl (I) p7 ldquo[] in quibus recitandis non Romanae linguae nitorem sed celebratissimorum Parisiensium disputatorum dicendi genus est imitatusrdquo O ldquostylus parisiensesrdquo foi especialmente desenvolvido
53
constituiacutea a base da vulgata scholastica e comeccedilava a ser objeto de criacuteticas por parte
dos humanistas em razatildeo de sua linguagem considerada obstinadamente teacutecnica No
que concerne agrave discussatildeo puacuteblica para a qual as Teses haviam sido preparadas o
meacutetodo escolhido ndash sempre escolaacutestico ndash teria sido o das quaestiones5
A obra compotildee-se de novecentos aforismos ndash ou breves proposiccedilotildees ndash que natildeo
contemplam sua anaacutelise ou fundamentaccedilatildeo filosoacutefica Com efeito ao folhear as
paacuteginas das novecentas Conclusiones verifica-se uma sucessatildeo de sinteacuteticos
conteuacutedos filosoacuteficos teoloacutegicos cientiacuteficos e misterioloacutegicos6 que encerram aquilo
que seria uma revisatildeo de posiccedilotildees parte delas de autores ou escolas comentadas por
Pico (as primeiras quatrocentas) e as demais de autoria do proacuteprio Pico (as
quinhentas seguintes) O planejamento do conjunto previa pois a apresentaccedilatildeo de
propostas de discussatildeo ndash ponto fundamental para a compreensatildeo das consequecircncias
desencadeadas ndash e natildeo a discussatildeo em si Certamente obtendo o bom resultado que
o Autor esperava no debate o intento seria levado adiante
Contrariando no entanto aquela que seria a vontade de seu Escritor o vasto
material parte de um projeto natildeo finito e natildeo devidamente esclarecido difundiu-se
rapidamente A ediccedilatildeo das novecentas proposiccedilotildees embora tendo transgredido as
formalidades eclesiaacutesticas tinha por honesto intento uma devida apresentaccedilatildeo e
discussatildeo com os eruditos ndash antes de qualquer apresentaccedilatildeo puacuteblica A indevida
publicaccedilatildeo da obra de certa forma serviu para aumentar a notoriedade do jovem
conde que jaacute desfrutava de grande fama fazendo-o passar a ser reconhecido como
ldquodoutor universal dono de um saber privilegiado acerca do homem e da natureza dos
anjos e de Deusrdquo7 Mas nem todos naqueles finais do Quattrocento enxergaram as
Teses com tamanho otimismo Algumas vozes consideraram a obra na melhor das
hipoacuteteses uma tentativa superficial de fusatildeo de doutrinas outras a julgaram ldquoaudazrdquo
ldquotemeraacuteriardquo e ldquovangloriosardquo especialmente em razatildeo de sua imoderada dimensatildeo e do
abarcamento de vaacuterias aacutereas de conteuacutedos diversos em uma uacutenica obra8 Eacute irocircnico
durante a permanecircncia de Pico em Paris entre 1485 e 1486 (cf GARIN 2011 p24) Os ldquocalculatoresrdquo do seacuteculo XIV aplicaram a matemaacutetica para problemas tratados qualitativamente na fiacutesica aristoteacutelica (Stephan FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) 1998 np467) Veja-se ainda BIONDI (1995 pXI)
5 Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 pp 7-8 Conforme observa o comentador as especulaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas dos trecircs seacuteculos anteriores foram fundamentadas sobre esse meacutetodo Para maiores detalhes sobre os meacutetodos mencionados veja-se BIONDI ldquoIntroduzionerdquo e ldquoPremessa ai testirdquo em Conclusiones Nongentae opcit ppXI 4
6 O nuacutemero de distinccedilotildees temaacuteticas mencionadas por Pico na abertura das Conclusiones eacute maior ldquosatildeo proposiccedilotildees dialeacuteticas morais fiacutesicas metafiacutesicas teoloacutegicas maacutegicas e cabaliacutesticasrdquo (ed BIONDI p7) As proposiccedilotildees do tipo que hoje aceitariacuteamos como cientiacuteficas ndash que contemplam campos da fiacutesica biologia e astronomia ndash apresentam-se em nuacutemero bastante limitado Veja-se como exemplo a Conclusio 7 segundo Alberto Magno ldquoO som eacute levado conforme seu ser real ateacute o ponto onde inicia o nervo oacuteticordquo (II 7) Ou ainda a Conclusio 9 segundo Egidio Romano ldquoO calor poderaacute gerar o fogo mesmo quando natildeo estiver em contato diretordquo (IIVI 9)
7 Albano Biondi extrai essa imagem outorgada a Pico de uma carta do famoso poeta carmelita Battista Spagnoli de Mantova mestre de Filosofia e Teologia em Bologna (BIONDI ldquoIntroduzionerdquo opcit p VI)
8 Na De Hominis Dignitate elaborada como introduccedilatildeo agraves Conclusiones Pico antecipara a defesa das provaacuteveis criacuteticas que receberia justificando que a ideia de realizar um debate no molde praticado por respeitados filoacutesofos como Platatildeo e Aristoacuteteles era uma forma favoraacutevel para a obtenccedilatildeo da verdade ldquodo mesmo modo que as forccedilas do corpo se robustecem com a ginaacutestica assim tambeacutem sem duacutevida nesta espeacutecie de palestra do espiacuterito a energia da alma se torna mais forte e firmerdquo (Oratio p135) Ademais seu debate natildeo tinha como intenccedilatildeo ldquomostrar engenho e erudiccedilatildeordquo (idem) mas ldquoapenas a formaccedilatildeo de sua alma e o conhecimento da verdaderdquo (ibid p133) Em relaccedilatildeo agrave elevada quantidade de teses escritas considerada por muitos ambiciosa e ldquoacima das forccedilasrdquo do autor (ibid pp 133 139 147) Pico escreveria ldquoProcurei reduzir a discussatildeo ao menor nuacutemero possiacutevel de pontos Se eu
54
observar que o Autor que tanta atenccedilatildeo dedicou agrave questatildeo doutrinaacuteria da natildeo-
divulgaccedilatildeo de certas concepccedilotildees sigilosas de ordem universal assistiu agrave indevida
publicaccedilatildeo das Teses e sua decorrente leitura por mentes despreparadas conjuntura
que o levou a sofrer consequecircncias nefastas e ateacute quase seu atestado de morte
A rejeiccedilatildeo agrave obra alcanccedilou a contemporaneidade porquanto as Conclusiones
foram pouco entendidas e muito criticadas Alguns criacuteticos talvez por natildeo terem
colhido a ideia seminal contida em seu projeto acreditaram tratar-se de uma
miscelacircnea de pensamentos que natildeo faziam sentido ou que se encontravam
inconclusos Outros viram nas Conclusiones uma combinaccedilatildeo excecircntrica de
problemas incompatiacuteveis uma curiosidade literaacuteria sem qualquer coerecircncia interna9
Eugenio Garin foi dos poucos a apontar que aquele conglomerado de sistemas deveria
ser apreciado a partir de suas referecircncias aos maiores problemas filosoacuteficos da
Histoacuteria do Pensamento O historiador completa que a tentativa de conciliaccedilatildeo de
diferentes doutrinas filosoacuteficas deve ser entendida como a consciente percepccedilatildeo da
existecircncia de uma pluralidade de pontos de vista que podem ser integrados10 Apesar
de aparentemente fragmentaacuteria a obra de Pico acolhe torna suas e finalmente
refaz sob outros prismas as perguntas filosoacuteficas mais difiacuteceis procurando em
sentido contraacuterio ao errocircneo julgamento de querer demonstrar uma magnitude de
conhecimentos ldquoreduzirrdquo todo o seu scibile a compactas 900 teses11
A quantidade de temas pertencentes a cada setor de pensamento natildeo estaacute
distribuiacuteda de forma uniforme dentro da recomposiccedilatildeo piquiana alguns eleitos pelo
escritor recebem mais atenccedilatildeo do que outros Eacute o caso do amplo espaccedilo dado a
questotildees de Teologia ndash concernentes a tradiccedilotildees distintas ndash a especiacuteficas aacutereas da
Filosofia ndash como a Metafiacutesica as questotildees acerca da Alma e o campo que chamamos
de Cosmologia ndash e a algumas doutrinas pertencentes ao campo da Misteriologia ndash
caso por exemplo do grupo de teses voltadas agrave Magia ao Orfismo e agrave Cabala Os
toacutepicos a seguir procuraratildeo mostrar que tais escolhas obedecem a um planejamento
Apoacutes a averiguaccedilatildeo da estrutura das Conclusiones necessaacuteria para o entendimento
do desenho geral da obra e de algumas teses relacionadas aos temas filosoacuteficos
mencionados seratildeo verificadas as questotildees teoloacutegicas condenadas e sua relaccedilatildeo com
as crenccedilas do autor por fim as disposiccedilotildees de acircmbito misterioloacutegico
tivesse querido dividir e desmembrar as suas partes mdash como eacute habitual outros fazerem mdash teria escrito certamente uma quantidade inumeraacutevel de tesesrdquo (ibid p163)
9 Um desses criacuteticos foi J BRUCKER (Historia critica Philosophiae Lipsia 1766 pp57 ss) que escreveria que a obra ldquomistura tudo inadequadamente e nos confunde uns aos outrosrdquo no que foi seguido por vaacuterios (apud GARIN 2011 n p 74)
10 GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo 1965 p17 Em outra obra Garin considera que o que pareceria um ldquofloreio filosoacuteficordquo eacute na verdade a ldquoexaltante procura da pequena mas lsquoimortal contribuiccedilatildeorsquo que cada homem grego romano cristatildeo aacuterabe judeu dava agrave eternidade do pensamentordquo (GARIN 2011 pp72-76)
11 Joseacute Vitorino PINA MARTINS julga ainda que a obra eacute fruto do amadurecimento do autor decorrente de suas profundas reflexotildees (Cultura Italiana Lisboa 1971)
55
1 A Secreta Conexatildeo
O conjunto de novecentas teses divide-se em dois grupos No primeiro
composto de quatrocentas proposiccedilotildees Pico apresenta as teorias de vaacuterios
pensadores que o marcaram ligados a diferentes Escolas12 Nessa seccedilatildeo eacute realizada
uma siacutentese histoacuterico-doutrinaacuteria que introduz ao leitor o nuacutecleo do pensamento
piquiano Pouco mais da metade das teses desse grupo satildeo dedicadas aos autores de
tradiccedilatildeo aristoteacutelica divididos entre os escolaacutesticos cristatildeos ndash entre eles Tomaacutes de
Aquino e Joatildeo Escoto ndash os peripateacuteticos orientais ndash como Avicena Averroacuteis e
Maimocircnides13 ndash e os gregos ndash Alexandre de Afrodiacutesia e Teofrasto entre outros14 A
outra metade da primeira parte eacute formada por filoacutesofos da Escola neoplatocircnica ndash com
Plotino e Proclo entre seus principais representantes ndash seguidos por quatro seacuteries de
doutrinas singulares Tais seacuteries finais destacam-se das precedentes por contemplar
temas ligados a teologias natildeo cristatildes De fato as uacuteltimas teses do primeiro grupo
tratam da matemaacutetica pitagoacuterica e das doutrinas caldaicas hermeacuteticas e cabaliacutesticas
Cabe observar que embora aos autores aristoteacutelicos seja dedicado enquanto
conjunto um nuacutemero relativamente maior de teses o autor isolado ao qual satildeo
destinadas mais proposiccedilotildees eacute Proclo seguido pelas doutrinas cabaliacutesticas que
fecham o grupo15
O segundo grupo com as quinhentas proposiccedilotildees seguintes constitui a
primeira delineaccedilatildeo precisa de uma doutrina da pax unifica marcando a especulaccedilatildeo
original de Pico16 Essa seacuterie de teses denominadas secundum opinionem propriam
detinha um caraacuteter de novidade ao lanccedilar em debate inusitados campos de reflexatildeo
Distribuiacutedos entre onze sessotildees os temas dividem-se entre os denominados
ldquoparadoxais voltados a conciliar os pronunciamentos de Aristoacuteteles e Platatildeo seguidos
de outros doutos que se encontram em maior discoacuterdiardquo os ldquoem dissenso com a
filosofia correnterdquo17 os ldquoparadoxais que introduzem novas posiccedilotildees na filosofiardquo e os
teoloacutegicos ldquobastante diversos da comum formulaccedilatildeo dos teoacutelogosrdquo completam o
12 Na primeira parte da obra Pico mostra seu reconhecimento agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica das Escolas porquanto a
sequecircncia de autores eacute ordenada por sua filiaccedilatildeo doutrinaacuteria Natildeo satildeo inseridas citaccedilotildees originais dos autores escolhidos mas interpretaccedilotildees pessoais de alguns passos ou doutrinas a eles atribuiacutedos (e que Pico poderia ter recebido atraveacutes de outras fontes) De qualquer forma os conteuacutedos correspondem com maior ou menor exatidatildeo a informaccedilotildees que podem ser encontradas nos escritos daqueles autores (cf ZONTA MAURO Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 195)
13 Apesar de Maimocircnides ndash o chamado Moyse ldquoegiacutepciordquo - ser um filoacutesofo sefardita Pico o inclui no grupo dos aacuterabes (ldquosecundum doctrinam Arabumrdquo) possivelmente em razatildeo de Maimocircnides ter vivido no Egito e no Marrocos
14 As teses referentes agrave tradiccedilatildeo peripateacutetica estatildeo assim distribuiacutedas 94 dedicadas a seis autores escolaacutesticos latinos 82 distribuiacutedas entre oito filoacutesofos orientais e 29 dedicadas a cinco filoacutesofos gregos que professam o Aristotelismo O total de 205 teses que agraciam os disciacutepulos do Liceu reflete o acolhimento dado agravequela Escola durante os seis anos a ela dedicados conforme testemunha a carta escrita a Ermolao Barbaro vista no Capiacutetulo II
15 Dentre o elevado nuacutemero de fontes mencionadas por Pico (gregas latinas hebraicas e aacuterabes) algumas permanecem natildeo identificadas ateacute esta data Uma grande parte delas inclusos os autores aacuterabes e hebreus encontra-se identificada na obra de Stephan FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies Temple 1998
16 Eacute praticamente consensual a qualificaccedilatildeo da segunda parte das Conclusiones como sendo a expressatildeo da originalidade de Pico Veja-se BIONDI 1995 p XVIII
17 Natildeo apenas nesse especiacutefico grupo de teses como em linhas gerais Pico reconhecia que suas proposiccedilotildees apresentavam-se em linha contraacuteria aos haacutebitos argumentativos tradicionais tanto em relaccedilatildeo ao estilo quanto ao conteuacutedo (BIONDI idem)
56
conjunto as teses platocircnicas matemaacuteticas oacuterficas maacutegicas e mais uma vez outras
tantas relacionadas agraves teologias dos caldeus e dos cabalistas18 Curiosamente
constam nesse grupo dez teses sobre as doutrinas de certo filoacutesofo aacuterabe de nome
Abucaten Avenan19 Nas teses ldquoparadoxais conciliantesrdquo estatildeo lanccediladas as bases de
seu projeto de conciliaccedilatildeo entre pensadores e escolas que professavam doutrinas
tantas vezes entendidas como divergentes como os escolaacutesticos Tomaacutes e Duns
Escoto ou os aacuterabes Averroacuteis e Avicena ndash e que Pico mostraria em debate serem
concordantes20
A distribuiccedilatildeo estrutural das proposiccedilotildees certamente natildeo eacute ocasional
Tomando-se a primeira seacuterie de quatrocentas teses observa-se a seguinte sequecircncia
os pensadores aristoteacutelicos os neoplatocircnicos a teologia pitagoacuterica a caldaica a
hermeacutetica a cabalista Natildeo seria errado sugerir que essa ordenaccedilatildeo segue a
cronologia dos estudos percorridos por Pico21 Entretanto tal hipoacutetese natildeo explicaria
a colocaccedilatildeo da Cabala ao final de tudo visto que os estudos cabaliacutesticos iniciaram
muito provavelmente em periacuteodo anterior a alguns dentre aqueles Uma segunda
hipoacutetese pode ser proposta a partir do reconhecimento da existecircncia de uma
aproximaccedilatildeo gradual a filosofias relacionadas agrave Revelaccedilatildeo Ou seja a divisatildeo temaacutetica
responde a uma ordem sucessoacuteria que partindo do niacutevel aristoteacutelico-teoreacutetico vai ao
encontro das escolas neoplatocircnicas ndash em que a presenccedila de abstraccedilotildees metafiacutesicas eacute
maior de que no grupo anterior ndash e alcanccedila finalmente as uacuteltimas escolas de
proeminente conteuacutedo teoloacutegico-soterioloacutegico A hipoacutetese de uma gradativa
aproximaccedilatildeo a tais temaacuteticas se adequa ademais agrave criaccedilatildeo de condiccedilotildees
preparatoacuterias para receber o segundo grupo de teses aquelas tecidas ldquosegundo a
opiniatildeo do autorrdquo Essas iniciando-se com resoluccedilotildees e conciliaccedilotildees de acircmbito geral
filosoacutefico passam por questotildees de ordem teoloacutegica platocircnica e matemaacutetica
concluindo-se com aquele que seria um corpo uacutenico formado pelas doutrinas
misterioloacutegicas quais sejam o Zoroastrismo o Orfismo a Magia e a Cabala que
mais uma vez da mesma forma significativa como na primeira parte fecha a segunda
parte da obra
Nesse sentido a sequecircncia das proposiccedilotildees aponta para a existecircncia de uma
intencional organizaccedilatildeo ndash natildeo informada por Pico tampouco esclarecida por seus
comentadores Malgrado a escassez de informaccedilotildees expressas tais indiacutecios satildeo
18 ldquoConclusiones numero quingentae secundum opinionem propriam quae denaria diuisione diuiduntur in
Conclusiones Physicas Theologicas Platonicas Mathematicas Paradoxas dogmatizantes Paradoxas conciliantes Caldaicas Orphicas Magicas et Cabalisticasrdquo
19 Pico presume que Abucaten Avenan seja o autor de uma das mais ceacutelebres obras de cunho neoplatocircnico da filosofia medieval o Liber de Causis obra que Pico teria facilmente lido na versatildeo latina realizada por Gerardo de Cremona em torno a 1175 A questatildeo da identificaccedilatildeo desse autor que se manteve por muito tempo obscura foi talvez resolvida em 1998 quando se encontrou na lista de tradutores aacuterabes-islacircmicos presentes no grupo de al-Kindi (Bagdaacute seacuteculo IX ) fornecida no Cataacutelogo (Fihrist) do biblioacutegrafo aacuterabe medieval al-Nadim (m 987) o possiacutevel nome do personagem em questatildeo tratar-se-ia de Zaruba al-Nagravelsquoimi al-Himsi autor aacuterabe cristatildeo vivido no Iraque por volta do ano 850 (cf Mauro ZONTA Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 188)
20 Oratio p147 ldquoAddidimus autem et plures locos in quibus Scoti et Thomae plures in quibus Averrois et Avicennae sententias quae discordes existimantur concordes esse nos asseveramusrdquo
21 Conforme foi visto no capiacutetulo anterior Pico iniciou seus estudos pelas portas das universidades de Paacutedua Pavia e Ferrara nuacutecleos aristoteacutelicos apenas mais tarde aproximou-se do Platonismo e ainda depois atraveacutes da influecircncia de Ficino aproximou-se ao estudo de Hermes no nuacutecleo de Florenccedila
57
confirmados pelo proacuteprio quando poucos meses apoacutes a publicaccedilatildeo das Conclusiones
para justificar-se da acusaccedilatildeo de que seu trabalho representava um amontoado
caoacutetico de enunciados o reacuteu faria menccedilatildeo em sua Apologia22 agrave existecircncia de uma
ldquoocculta concatenatiordquo que traria significado e unidade agraves Teses23 A revelaccedilatildeo de
existecircncia de uma concordacircncia oculta nunca esclarecida pede que o leitor olhe de
forma discernitiva para o conteuacutedo das teses bem como para a quantidade de
enunciados atribuiacutedos a cada campo de conhecimento Verifica-se que mesclados aos
assuntos que passam por conceituaccedilotildees de fiacutesica astronomia biologia ontologia e
matemaacutetica firma-se uma prevalecircncia de determinados temas que se interligam
mais do que uma terccedila parte da totalidade das teses encontra-se distribuiacuteda entre
questotildees pertinentes agrave alma humana e questotildees relacionadas ao processo hieraacuterquico
do cosmo ndash parte dessas dedicadas agrave astrologia de ordem esoteacuterica Ademais uma
fraccedilatildeo relevante das teses trata de questotildees teoloacutegicas Esses temas concorrem a
compor uma importante faceta do pensamento piquiano e como seraacute visto no uacuteltimo
toacutepico integram os nuacutecleos das doutrinas misterioloacutegicas abordadas por Pico sendo
a possiacutevel chave da secreta conexatildeo sinalizada
Embora natildeo caiba aqui a anaacutelise individual de cada Conclusio24 uma pequena
amostra de cada um dos dois primeiros temas acima mencionados eacute benvinda para
retratar o panorama geral das Conclusiones O terceiro tema referente agrave Teologia
seraacute abordado no toacutepico seguinte Dentre as 900 teses uma quantidade miacutenima25 de
167 satildeo dedicadas agraves questotildees relacionadas agrave Alma ndash universal humana e suas inter-
relaccedilotildees ndash nas especiacuteficas nomenclaturas e subdivisotildees que recebe como Intelecto
Agente Intelecto Possiacutevel ou Mente26 Eacute o caso das natildeo poucas proposiccedilotildees filosoacuteficas
pertinentes ao processo dialeacutetico que se realiza dentro de um cenaacuterio epistemoloacutegico
22 A Apologia foi o texto escrito imediatamente apoacutes a condenaccedilatildeo das Teses preparado por Pico para defender-
se das acusaccedilotildees perante a comissatildeo romana Nela satildeo apresentadas extensas confutaccedilotildees acerca de cada uma das 13 teses inicialmente condenadas que Pico reformula em um total de 45 Vejam-se detalhes na fundamental organizaccedilatildeo de Paolo Edoardo FORNACIARI (Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze 2010) A Apologia firma-se como ldquoum documento exemplar que anuncia a grande reviravolta intelectual da Idade Modernardquo de acordo com Giulio BUSI que assim narra ldquoFu dunque nel mese di aprile 1487 che il Conte della Mirandola scrisse di getto in latino un testo appassionato difficile a tratti insolente con cui voleva mettere fine una volta per tutte alle accuse e insinuazioni sul suo conto Nacque cosigrave lApologia una delle creazioni piugrave significative dellintero Rinascimentordquo (Pico fede ragione eInquisizione in ldquoIl Sole -24 Orerdquo 28082018)
23 PICO Apologia fol235 ldquoin omnibus meis conclusionibus semper occulta quaedam est concatenatiordquo 24 O esforccedilo hercuacuteleo foi realizado por Stephan Farmer que apresenta ateacute o momento presente a mais completa
ediccedilatildeo comentada das novecentas teses em seu Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) de 1998 Em termos de ediccedilotildees criacuteticas das Conclusiones existem outras duas obras entre as publicaccedilotildees modernas atuais a realizada por Bohdan Kieszkowski em 1973 baseada no manuscrito de Erlangen (que segundo Farmer parece conter vaacuterios erros) e a publicada por Albano Biondi em 1995 acompanhada de traduccedilatildeo italiana (a primeira em quinhentos anos) Essa se baseia no manuscrito de Erlangen e na editio princeps contraposto aos manuscritos de Viena e de Mocircnaco (cf BIONDI p3) tratando-se da ediccedilatildeo aqui majoritariamente empregada para as traduccedilotildees das citaccedilotildees A ediccedilatildeo de Farmer acima mencionada baseia-se na verificaccedilatildeo de duas coacutepias da editio princeps presentes na British Library de Londres e na Biblioteca Apostoacutelica Vaticana em Roma Os detalhes acerca das trecircs ediccedilotildees satildeo comentados na obra de FARMER (1998 pp186-188)
25 Trata-se de um valor miacutenimo possivelmente sendo de ordem maior A obscuridade de certas proposiccedilotildees natildeo permite sequer sua classificaccedilatildeo temaacutetica
26 Nas teses ldquosegundo opiniatildeo dos platocircnicosrdquo conclusio nr 19 (ed Biondi II p 97) o proacuteprio Pico esclarece que a parte racional da alma que ele chama de ldquoIntelecto Possiacutevel seguindo os peripateacuteticosrdquo eacute aquela capaz de operar ldquosem conjunccedilotildees com os produtos da fantasiardquo
58
como se vecirc em algumas das asserccedilotildees extraiacutedas do Aristotelismo ndash grego e aacuterabe ndash
do Neoplatonismo e da Matemaacutetica27
Quando Aristoacuteteles sustenta em Metafisica IX que as
realidades separadas e divinas satildeo por noacutes totalmente
conhecidas ou totalmente ignoradas deve ser entendido tratar-
se daquele conhecimento pertinente agravequeles que jaacute alcanccedilaram
a primeira atuaccedilatildeo do intelecto28
(Conclusio secundum Alexandrum 5)
Felicidade uacuteltima do homem eacute a contiguidade entre intelecto
agente e intelecto possiacutevel do qual esse se faz forma29
(Conclusio secundum Auenroen 3)
Felicidade uacuteltima do homem eacute quando o nosso intelecto
particular se conjuga completamente com o intelecto total e
primordial30 (Conclusio secundum Plotinum 7)
Como os objetos da matemaacutetica se assumidos absolutamente
natildeo completam em nada o intelecto se assumidos como
imagens das realidades superiores nos conduzem pela matildeo
imediatamente para a especulaccedilatildeo dos Inteligiacuteveis31
(Conclusio de mathematicis 4)
Ainda compondo as questotildees concernentes agrave Alma verifica-se que um nuacutemero
substancial de asserccedilotildees eacute reservado para tratar em linguagem teoloacutegica ou filosoacutefica
do tema da Queda ou distinccedilatildeo de um princiacutepio de unidade e de seu consequente
retorno agravequele estado de acordo com cada Escola Os exemplos abaixo satildeo tomados
de teses referentes ao Peripatetismo grego ao Neoplatonismo e ao misticismo
hebraico
27 A classificaccedilatildeo das teses segue a formataccedilatildeo estabelecida por Albano Biondi (Conclusiones Nongentae Le
novecento Tesi dellrsquoanno 1486 1995) que efetua uma divisatildeo conforme grupos doutrinaacuterios A traduccedilatildeo das teses para o portuguecircs eacute de nossa responsabilidade tendo sido utilizada como guia a ediccedilatildeo de Biondi
28 PICO Concl (I) III IV 5 (p34) ldquoCum dicit Aristoteles nono Metaphysicae separata et diuina aut totaliter scriri a nobis aut totaliter ignorari intelligendum est de ea cognitione quae his contigit qui iam ad summam intellectus actuationem perueneruntrdquo A ediccedilatildeo de FARMER apresenta diferente posiccedilatildeo das teses a quinta de Alexandre de Afrodiacutesia em BIONDI corresponde agrave sexta de FARMER
29 Concl (I) II I 3 (p20) ldquoFelicitas ultima hominis est cum continatur intellectus agens possibili ut forma quam continuationemrdquo Segundo Stephan FARMER o problema da ldquounidade do intelectordquo colocado por Averroacuteis nasce sobre o comentaacuterio do De Anima 35 provavelmente segundo o autor o texto aristoteacutelico mais debatido entre os escolaacutesticos medievais (1998 np 252)
30 Concl (I) IV I 7 (p36) ldquoFelicitas hominis ultima est cum particularis intellectus noster total primoque intellectui plene coniungiturrdquo Provavelmente a concepccedilatildeo eacute extraiacuteda de Eneacuteadas I4 embora colocada com palavras de Pico O Autor elaborou essas teses seis anos antes de Ficino publicar a sua traduccedilatildeo das Eneacuteadas ndash que o proacuteprio Pico o havia incitado a realizar em 1484 ndash fato que apoia a hipoacutetese de que Pico tenha sido o primeiro filoacutesofo em seacuteculos a debater publicamente aquelas opiniotildees (FARMER ibid np 296-298)
31 Concl (II) VII 4 (p106) ldquoSicut subiecta mathematicorum si absolute accipiantur intellectum nihil perficiunt ita si ut imagines accipiantur superiorum immediate nos ad intelligibilium speculationem manu ducuntrdquo
59
Creio que o intelecto agente que apenas ilumina seja em
Temiacutestio a mesma coisa que na Cabala eacute Metraton32
(Conclusio secundum Themistium 2)
Natildeo toda descende a alma quando descende33
(Conclusio secundum Plotinum 2)
O intelecto agente natildeo eacute outra coisa que a parte da alma que
permanece no alto e natildeo participa da Queda34
(Conclusio secundum Adelandum Arabem 1)35
Quando a alma teraacute compreendido tudo aquilo que poderaacute
compreender e se uniraacute agrave alma superior se despiraacute de suas
vestes terrenas se extirparaacute de seu lugar e se conjugaraacute com o
divino36 (Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum
hebraeorum 44)
Outro grupo temaacutetico pode ser delineado a partir das teses que abordam
questotildees relacionadas a teorias de organizaccedilatildeo do cosmo verificadas em quantidade
proeminente e de forma mais especiacutefica do processo de gradaccedilatildeo dentro do desenho
universal Tal tema encontra representaccedilatildeo entre outras doutrinas na escolaacutestica e
na neoplatocircnica bem como em todas as misterioloacutegicas mencionadas por Pico
(tratadas na parte final)
As processotildees nas realidades divinas se distinguem segundo
intelecto e vontade37
(Conclusio secundum Henricum Gandauensem 3)
O artiacutefice ou construtor do mundo sensiacutevel eacute o seacutetimo da
hierarquia intelectual38 (Conclusio secundum Jamblichum 2)
32 Concl (I) III V 2 (p34) ldquoIntellectus agens illuminans tantum credo sit allud apud Themistium quod est
Metraton in Cabalardquo FARMER (p294) comenta que Pico transforma o Metraton cabaliacutestico em princiacutepio filosoacutefico
33 Concl (I) IV I 2 (p36) ldquoNon tota descendit anima quum descenditrdquo Segundo FARMER os argumentos mais similares da proposiccedilatildeo encontram-se em Eneacuteadas IV81 ss (opcit np297)
34 Concl (I) IV II 1 (p36) ldquoIntellectus agens nicbil est aliud quam pars animae quae sursum manet et non caditrdquo
35 Adelando Aacuterabe eacute na verdade Adelardo di Bath (cf FORNACIARI 2010 p LXIV) 36 Concl (I) IX 44 (p60) ldquoCum anima comprehenderit quidquid poterit comprehendere et coniungetur
animae superiori expoliabit indumentum terrenum a se et exstirpabitur de loco suo et coniungetur cum diuinitaterdquo
37 Concl (I) IV 3 (p16) ldquoProcessiones distinguuntur in diuinis penes intellectum et voluntatemrdquo A biblioteca de Pico continha as principais obras de Henrique de Gand ndash Summa Theologica Quodlibeta e uma compilaccedilatildeo de seus escritos (Pearl KIBRE The library of Pico della Mirandola 1936)
38 Concl (I) IV IV 2 (p40) ldquoOpifex sensibilis mundi septimus est hierarchiae intellectualisrdquo Muitas das conclusiones atribuiacutedas a Jacircmblico foram extraiacutedas do comentaacuterio de Proclo ao Timeu que preserva fragmentos do comentaacuterio perdido de Jacircmblico para esse diaacutelogo Outras tantas foram extraiacutedas do primeiro livro do De Mysteriis parte do qual Ficino traduziu para o latim dois anos apoacutes Pico ter publicado as 900 teses (FARMER np 310)
60
A particular temaacutetica da continuidade hieraacuterquica do real encontra em Proclo
de Liacutecia seu principal emissaacuterio Agraves doutrinas daquele que representava o uacuteltimo anel
da cadeia dos platocircnicos Pico destina 55 teses que sintetizam alguns conteuacutedos que
abrangem natildeo somente as processotildees como complexas questotildees astroloacutegicas Apoacutes
ter realizado uma preliminar carreira filosoacutefica debruccedilado sobre as obras de
Aristoacuteteles o neoplatocircnico instalara-se sobre a filosofia hieraacutetica e teuacutergica39 passos
similares aos que Pico agora seguia Em relaccedilatildeo ao visiacutevel realce que lhe foi deferido
e como bem observa Albano Biondi esse ldquoeacute um caso em que a quantidade demonstra
adequadamente a relevacircncia atribuiacuteda a um estilo de pensamentordquo40
Os deuses intelectuais trazem os elementos unificantes do Uno
primevo as substacircncias das realidades inteligiacuteveis as vidas
(perfeitas compreensivas e generantes do divino) das
realidades inteligiacuteveis e intelectuais a propriedade intelectual
de si mesmos41 (Conclusio secundum Proclum 10)
Apoacutes a setemplicidade intelectual devem ser colocados
imediatamente os deuses supramundanos natildeo ligados a partes
do universo e natildeo coordenaacuteveis a este mundo que esses aliaacutes
abraccedilam por cada parte segundo causa42
(Conclusio secundum Proclum 20)
Juacutepiter Netuno e Plutatildeo dividindo-se o reino de Saturno natildeo
herdam o reino de Saturno se natildeo por mediaccedilatildeo do fundador
Juacutepiter43 (Conclusio secundum Proclum 26)
Olhando para a quaternidade do ser por si animado o demiurgo
fabrica as quatro partes principais do mundo44
(Conclusio secundum Proclum 39)
39 Proclo efetivamente comentou os versos atribuiacutedos a Orfeu ndash em cujos moldes compunha hinos ndash e os
Oraacuteculos caldeus nos quais via a essecircncia de toda a sabedoria (cf BIONDI 1995 pXXV) As teses referentes a Proclo agrave exceccedilatildeo de algumas foram extraiacutedas de sua obra-prima Theologia Platonica Pico aparentemente utilizou o texto grego (FARMER opcit npp314-315 318)
40 BIONDI opcit pXXV Proclo que havia sido esquecido apoacutes o fechamento da Academia em 529 dC ressurgindo uma primeira vez no ciacuterculo de Miguel Psello em Bizacircncio renascia agora em Florenccedila pelas matildeos de Giovanni Pico
41 Concl IVV 10 (p44) ldquoIntellectuales dii uniones habent ab uno primo substantiales ab intelligibilibus uitas perfectas et contentiuas generativas diuinorum ab intelligibilus et intellectualibus intellectuales proprietatem a se ipsisrdquo
42 Concl IVV 20 (p44) ldquoPost intellectualem hebodmadam ordinati sunt immediate supermundani Dei a partibus uniuersi exempti et incoordinabiles ad hunc mundum et secundum causam eum undique circumplectentesrdquo
43 Concl (I) IV V 26 (p46) ldquoIupiter Saturnus et Pluto Saturni regnum partientes a Saturno regnum non accipiunt nisi per medium conditoris Iouisrdquo Conforme Theologia Platonica 6 Trata-se dos trecircs liacutederes henads da ordem procliana de deuses supramundanos (FARMER np324)
44 Acerca da participaccedilatildeo do demiurgo no processo emanatoacuterio tratam ainda as teses referentes a Proclo nrs 40 41 e 42 Concl IVV 39 (p48) ldquoOpifex ad quatemitatem respiciens per se animalis quatuor fabricat partes principales mundirdquo
61
Dentro do quadro cosmoloacutegico Pico anuncia ainda em meio agraves teses e atraveacutes
daquele que se mostra um de seus autores mais estimados a existecircncia dos trecircs
Mundos cujas concepccedilotildees seriam esclarecidas devidamente no Heptaplus
Por lsquolugar supracelestersquo devemos entender aquilo que da
segunda triacuteade eacute mais inteligiacutevel que intelectual por
lsquoconcavidade sub-celestersquo aquilo que eacute mais intelectual que
inteligiacutevel por lsquoceacuteursquo aquilo que participa igualmente de uma e
de outra realidade45 (Conclusio secundum Proclum 52)
e que atraveacutes de outras Escolas encontram analogia com os corpos do homem
Atraveacutes do segredo do raio direto refletido e refratado na
ciecircncia da perspectiva somos informados acerca da triacuteplice
natureza intelectual animal e corporal46
(Conclusio secundum Mathematicam Pythagorae 7)
A temaacutetica astroloacutegica tema que merece atenccedilatildeo por encontrar-se distribuiacutedo
entre vaacuterias seacuteries ocupa um espaccedilo natildeo pouco significativo47 Sua presenccedila na
maior parte das vezes expressa em linguagem velada contribui a firmar a
conceituaccedilatildeo da ordenaccedilatildeo universal tecida por Pico Eacute verificaacutevel particularmente
entre os representantes neoplatocircnicos e em conteuacutedo mais enigmaacutetico nas doutrinas
que fecham o segundo grupo de teses
Cada alma que participa de intelecto vulcacircnico eacute semeada na
Lua48 (Conclusio secundum Porphyrium 4)
Assim como Apolo eacute intelecto solar Ascleacutepio eacute intelecto lunar49
(Conclusio secundum Porphyrium 7)
Nos oito corpos do ceacuteu os elementos se encontram duas vezes
em modo celeste os encontraraacute aquele que proceder em ordem
retroacutegrada agravequela dupla numeraccedilatildeo de Binaacute50
(Conclusio secundum Jamblichum 4)
45 Concl IVV 52 (p50) ldquoPer supercoelestem locum habemus intelligere quod de secunda trinitate plus est
intelligibile quam intellectuale per subcoelestem concauitatem quod magis intellectuale quam intelligibile per coelum id quod aeque utroque participetrdquo Segundo Theologia Platonica 4
46 Concl (I) V 7 (p52) ldquoPer secretum radii recti reflexi et refracti in scientia perspectiuae triplicis naturae admonemur intellectualis animalis et corporalisrdquo
47 Trata-se de 37 teses que abordam de forma expressa a Astrologia A quantidade que pode natildeo parecer relevante eacute maior do que por exemplo o nuacutemero de teses atribuiacutedas a Tomaacutes de Aquino agrave matemaacutetica pitagoacuterica ou ao Orfismo entre alguns exemplos
48 Concl (I) IVIII 4 (p38) ldquoOmnia anima participans vulcanio intellectu seminatur in lunardquo 49 Concl IVIII 7 (p38) ldquoSicut Apollo est intellectus solaris ita Aesculapius est intellectus lunarisrdquo 50 Concl (I) IVIV 4 (p40) ldquoElementa in octo coeli corporibus coelesti modo bis inueniuntur quae quis
inueniet si retrogrado ordine in illa bina numeratione processeritrdquo De acordo com FARMER (opcit np311) essa proposiccedilatildeo eacute aparentemente inspirada no De mysteriis I17 A referecircncia agrave Binaacute ndash terceira dentre as Sefirot cabaliacutesticas ou numerationes correspondente agrave ldquoInteligecircnciardquo - que tem origens no Medioevo tardio natildeo poderia ser de Jacircmblico Pico provavelmente como ainda infere Farmer pretende derivar os ldquodois modos celestiaisrdquo dos
62
Provavelmente natildeo por coincidecircncia logo em seguida a Proclo satildeo tratadas as
doutrinas que se perpetuaram atraveacutes do esoterismo representadas nas teses
ldquosegundo a matemaacutetica pitagoacutericardquo ldquosegundo a opiniatildeo dos teoacutelogos caldeusrdquo
ldquosegundo a doutrina de Mercuacuterio Trismegistordquo51 e ldquosegundo as doutrinas dos saacutebios
da Cabalardquo52 Pela ordenaccedilatildeo dada natildeo seria incorreto deduzir que Pico pretendesse
confirmar a afinidade entre o misticismo do uacuteltimo dos platocircnicos e as doutrinas que
se lhe seguem De fato nas teses hermeacuteticas e caldaicas Pico descreve pontual e
sinteticamente as diversas estruturas metafiacutesicas do real que embora natildeo expresso
se analogam com as neoplatocircnicas Por vezes as aacutereas do saber satildeo de duvidosa
classificaccedilatildeo dado seu caraacuteter de difiacutecil decifraccedilatildeo ou em razatildeo da presenccedila de dois
ou mais campos de conhecimento que se mesclam Eacute o caso da aacuterea teoloacutegica da qual
123 teses podem ser discernidas de forma inequiacutevoca mas cuja presenccedila se encontra
entrelaccedilada entre outros tantos conteuacutedos de forma obliacutequa ou obscura dificultando
sua classificaccedilatildeo como no exemplo abaixo
A ordenada seacuterie dos inteligiacuteveis natildeo reside na coordenada seacuterie
intelectual como sustenta Amasis o Egiacutepcio Essa eacute em
verdade acima de cada hierarquia intelectual no abismo da
unidade primaacuteria e abscocircndita aleacutem de qualquer possibilidade
de participaccedilatildeo sob a neacutevoa da escuridatildeo originaacuteria53
(Conclusio secundum Chaldeorum Theologorum 5)
A discussatildeo conceitual das teses apresentadas mesmo em seu nuacutemero
reduzido traria natildeo apenas prolixidade ao texto como um distanciamento
desnecessaacuterio da trajetoacuteria traccedilada A amostra dos poucos exemplos tem por
finalidade apontar para a prevalecircncia de determinados conteuacutedos e mostrar na
continuidade que os especiacuteficos temas indicados encontram-se natildeo por acaso
especialmente presentes nas mateacuterias esoteacutericas contidas na segunda parte da obra
Uma etapa pois necessaacuteria para alcanccedilarmos nosso intento final Entre as dispersas
teses que parecem natildeo se relacionar encontram-se elos que indicam a existecircncia de
um projeto de composiccedilatildeo que seleciona dentro de cada sistema doutrinal temas
caracteriacutesticos que confirmam a oculta concatenaccedilatildeo anunciada pelo autor Outros
fatores indicativos de tal concatenaccedilatildeo poderatildeo ser verificados de forma mais clara a
partir do segundo grupo de teses aquelas elaboradas ldquosegundo a opiniatildeo do autorrdquo a
serem verificados no toacutepico final deste Capiacutetulo Antes seratildeo vistas as teses teoloacutegicas
condenadas pela Igreja que abrem espaccedilo para a discussatildeo da relaccedilatildeo entre Filosofia
elementos de Binaacute utilizando-se do meacutetodo de revolutio alphabetariae ou de alguma forma de gematria (concepccedilotildees a serem vistas no Capiacutetulo V)
51 Pico utiliza a versatildeo latina do nome de Hermes Trismegisto 52 Conclusiones [] ldquosecundum Mathematicam Pythagoraerdquo ldquosecundum opinionem Chaldeorum
Theologorumrdquo ldquosecundum priscam doctrinam Mercurii Trismegisti Aegyptiirdquo ldquosecundum doctrinam sapientum hebraeorum Cabalistarumrdquo
53 Concl (I) VII 5 (p54) ldquoCoordinatio intelligibilis non est in intellectuali coordination ut dixit Amasis Aegyptius sed est super omnem intellectualem hierarchiam in abysso primo unitatis et sub caligine primarum tenebrarum imparticipaliter absconditardquo Farmer ajuiacuteza que as proposiccedilotildees caldaicas tenham sido extraiacutedas de fontes neoplatocircnicas embora Pico afirmasse ter em sua posse manuscritos originais caldeus (np338)
63
e Teologia na estruturaccedilatildeo do pensamento de Pico reflexatildeo que serviraacute de preacircmbulo
natildeo apenas para o uacuteltimo item como particularmente para os Capiacutetulos VI e VII
2 Religiatildeo ou Filosofia
Em Veneza a ediccedilatildeo das Conclusiones foi publicamente queimada por 14 dias
consecutivos54 esse foi apenas o iniacutecio dos graves conflitos que Pico viria a ter com a
Igreja e que culminariam em sua ordem de julgamento pela Inquisiccedilatildeo ndash seguidos da
fuga prisatildeo parcial clemecircncia papal (sem absolviccedilatildeo) e finalmente a voluntaacuteria (e
vigiada) reclusatildeo ateacute quase o uacuteltimo ano de sua vida55 Afinal o que havia de ldquomalrdquo
nas Conclusiones Aos olhos da Cuacuteria Pontifiacutecia natildeo eram poucas as razotildees para
ensejar a proibiccedilatildeo daquela composiccedilatildeo que recolhia suficientes fatores para levar os
juiacutezes eclesiaacutesticos a se colocarem de sobreaviso
a) tanto a quantidade de inteacuterpretes aristoteacutelicos presentes entre as teses
quanto o estilo parisiense evocavam o racionalismo hereacutetico averroiacutesta e mais grave
alessandrino que se opunha agraves ideias humanist0-platocircnicas partilhadas pela
Igreja56
b) a menccedilatildeo a tradiccedilotildees pagatildes que traziam certos temas natildeo aceitos pelo
Cristianismo gerava uma situaccedilatildeo incocircmoda
Todos os saacutebios entre Indianos Persas Egiacutepcios e Caldeus
acreditaram na transmigraccedilatildeo das almas isto eacute na sua
passagem de um corpo a outro57
(Conclusio secundum Adelandum Arabem 8)
c) a menccedilatildeo a teologias natildeo comprovadamente divergentes como a pitagoacuterica
a oacuterfica e a hermeacutetica mas tambeacutem natildeo exatamente alinhadas com a doutrina cristatilde
54 Paolo Edoardo FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p10 55 Graccedilas agraves descobertas feitas por Leacuteon Dorez em torno aos verbais das audiecircncias tidas pela Comissatildeo
Pontifiacutecia referentes agraves Teses de Pico eacute possiacutevel conhecer as condiccedilotildees que levaram agrave sua suspensatildeo e agrave supressatildeo do planejado debate (DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole em France 1485-88 18971976) Veja-se tambeacutem para uma reconstruccedilatildeo pontual dos acontecimentos em torno ao julgamento eclesiaacutestico Giovanni DI NAPOLI (Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo Roma 1965) ainda o item ldquoLe tappe del processo a Picordquo de FORNACIARI em sua ldquoIntroduccedilatildeordquo agrave Apologia lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione 2010 pp XIV-XXII
56 Pico apresentava a mesma necessidade de ldquoentenderrdquo o divino ultrapassando o veacuteu da Revelaccedilatildeo que outrora havia acometido Averroacuteis cujas doutrinas jaacute haviam sido condenadas ndash como a concepccedilatildeo de que apenas o Intelecto uacutenico poderia ser considerado imortal Os seguidores de Alessandro de Afrodiacutesia postulavam a mortalidade do corpo juntamente com a mortalidade do intelecto considerando a alma como uma funccedilatildeo do organismo portanto ligada a ele e agrave sua extinccedilatildeo Os alessandrinos chegaram a reconhecer posteriormente a presenccedila de certa imortalidade da alma mas tratar-se-ia de um tipo de imortalidade impessoal natildeo condizente com o Cristianismo Para outras informaccedilotildees veja-se GARIN 2011 pp 32 ss 140 ss
57 Concl (I) IV II 8 (p38) ldquoTranscorporationem animarum crediderunt omnes sapientes Indorum Persarum Aegyptiorum et Chaldaeorumrdquo
64
constituiacutea uma questatildeo delicada A complexidade de certos temas mesclados a
questotildees teoloacutegicas deveria ser devidamente avaliada e autorizada pela Igreja
Quem conheceraacute a sucessatildeo 1 2 3 4 5 12 teraacute nas matildeos com
precisatildeo a distribuiccedilatildeo da Providecircncia58
(Conclusio secundum Mathematicam Pythagorae 4)
d) a presenccedila de vinte e nove Conclusiones theologicae intituladas ldquodiversas
do modo comum dos teoacutelogosrdquo59 era por si soacute ousada e soava arrogante aos olhos da
Cuacuteria Romana Ademais o conteuacutedo das asserccedilotildees teoloacutegicas ndash que compotildeem a
maior parte das teses inicialmente condenadas ndash era ofensivo e de alto teor hereacutetico
e) a presenccedila de Conclusiones Magicae e de um grande nuacutemero de
Conclusiones Cabalisticae cujo conteuacutedo entre outras coisas tentava demonstrar a
existecircncia de um sentido oculto nas Escrituras natildeo poderia ser tolerada
A Comissatildeo romana inicialmente condenou treze teses quase todas extraiacutedas
das Conclusiones in Theologia secundum opinionem propriam em sua maior parte
foram julgadas como falsas errocircneas hereacuteticas ou escandalosas sendo uma ou mais
dessas qualificaccedilotildees conjuntas60 A leitura de algumas entre as teses condenadas pode
dar uma amostra da complexidade do debate em que Pico pretendia se envolver
Se se segue a doutrina comum acerca da possiacutevel encarnaccedilatildeo
[de Deus] em qualquer criatura o corpo de Cristo pode estar
presente sobre o altar segundo a verdade do sacramento da
Eucaristia sem a conversatildeo do patildeo no corpo de Cristo ou sem a
anulaccedilatildeo da substacircncia do patildeo E isso seja dito em termos de
possibilidade natildeo de realidade61 (Conclusio in Theologia 2)
58 Concl (I) VI 4 (p52) ldquoQui I II III IV V XII ordines cognouerit prouidentiae distributionem exacte
tenebitrdquo 59 Conclusiones in Theologia numero XXIX secundum opinionem propriam a communi modo dicendi
Theologorum satis diuersam 60 No breve de Inocecircncio VIII de 20 de fevereiro de 1487 se lecirc ldquo[] segundo o juiacutezo de homens doutiacutessimos
algumas entre aquelas [teses] por efeito de sua formulaccedilatildeo desviam do reto caminho da ortodoxia algumas de tal forma obscuras confusas e intrincadas natildeo poderiam absolutamente ser apresentadas em puacuteblica discussatildeo sem preacutevios esclarecimentos outras satildeo tatildeo paradoxais que poderiam ser proibidas pela Igreja pelo sabor de heresia que emanam assim que se fossem apresentadas em debate puacuteblico poderiam engendrar escacircndalo entre as pessoas incultas e inexperientesrdquo (DOREZ-THUASNE opcit 1976 pp114-115)
61 Concl (II) IV 2 (p88) ldquoSi teneatur communis via de possibilitate suppositationis in respectu ad quamcumque creaturam dico quod sine conuersione panis in corpus Christi uel paneitatis annichilatione potest fieri ut in altari sit corpus Christi secundum veritatem sacramenti Eucharistiae quod sit dictum loquendo de possibili non de sic esserdquo De acordo com FARMER (opcit np 422) muitas das questotildees implicadas nas teses condenadas satildeo derivadas da vasta tradiccedilatildeo de comentaacuterios medievais encontrados nas Sentenccedilas de Petrus Lombardus nas quais Pico se fundamentou As principais oposiccedilotildees das teses teoloacutegicas satildeo endereccediladas a escritos de Tomaacutes de Aquino (FARMER idem) Outros comentaacuterios acerca das teses teoloacutegicas podem ser encontrados em Jader JACOBELLI Pico della Mirandola Longanesi 1986 pp 96-98
65
As palavras ldquoeste eacute o meu corpordquo e as demais pronunciadas
durante a Consagraccedilatildeo devem ser interpretadas materialmente
e natildeo indicativamente62 (Conclusio in Theologia 10)
Natildeo se deve adorar nem a cruz de Cristo nem outra imagem
alguma segundo adoraccedilatildeo de latria tampouco na forma como
a entende Tomaacutes63 (Conclusio in Theologia 14)
Um pecado mortal finito no tempo natildeo pode ser punido com
uma pena infinita segundo o tempo mas apenas com uma pena
temporalmente finita64 (Conclusio in Theologia 20)
Eacute mais racional acreditar que Oriacutegenes esteja salvo de que o
considerar condenado65 (Conclusio in Theologia 29)
Natildeo haacute ciecircncia que nos assegure mais sobre a divindade de
Cristo do que a Magia e a Cabala66 (Conclusio magica 9)
Como se vecirc satildeo todas proposiccedilotildees que discutem a Teologia cristatilde mas natildeo
apenas quase todas apresentam um conteuacutedo dificilmente compreensiacutevel ao crente
de pouca erudiccedilatildeo pois natildeo se referem a temas da ldquofeacute comumrdquo Pico sabia e tentara
advertir que suas afirmaccedilotildees deveriam ser examinadas e debatidas apenas entre os
sapientes da religiatildeo Contudo a partir da divulgaccedilatildeo das teses as prelazias
eclesiaacutesticas natildeo tardaram a se preocupar com as interpretaccedilotildees equivocadas que
aquelas declaraccedilotildees poderiam suscitar dentre ldquoos simplesrdquo podendo levar os fieacuteis a
uma confusatildeo em suas crenccedilas Natildeo se tratava apenas de discutir assuntos que a
Igreja considerava natildeo ser de alccedilada de um filoacutesofo Pico proclamava que ningueacutem
deve ser obrigado a crer se natildeo for persuadido defendia a salvaccedilatildeo de Oriacutegenes
62 Concl (II) IV 10 (p90) ldquoIlia verba Hoc est corpus etc quae in consecracione dicuntur materialiter
tenentur non significatiuerdquo Segundo FARMER (np427) Pico faz uso da ldquoteoria da suposiccedilatildeordquo medieval tardia postular algo ldquomaterialmenterdquo seria equivalente ao uso moderno de ldquocolocar aspasrdquo em torno agravequilo enquanto que postular algo em ldquosentido indicativordquo seria propocirc-lo absolutamente A tese de Pico nesse sentido significaria que se a foacutermula da Eucaristia natildeo fosse colocada ldquomaterialmenterdquo entatildeo a sentenccedila ldquoeste eacute o meu corpordquo referir-se-ia ao corpo do sacerdote e natildeo ao de Cristo Ou na forma sintetizada por JACOBELLI (opcit pp 96-98) tomar as palavras ldquomaterialmenterdquo significa ldquocomo se as dissesse Cristordquo A hostilidade da comissatildeo para com Pico reflete-se no julgamento de que tal tese aparentemente inoacutecua fosse ldquoescandalosa e contraacuteria agrave opiniatildeo comum dos sagrados doutoresrdquo
63 Concl (II) IV 14 (p90) ldquoNec crux Christi nec ulla imago adoranda est adoratione latriae etiam eo modo quo ponit Thomasrdquo A ldquoadoraccedilatildeo de latriardquo significa a idolatria conforme JACOBELLI opcit p97
64 Concl (II) IV 20 (p92) ldquoPeccato mortali finite temporis non debetur poena infinita secundum tempus sed finita tantumrdquo Aqui segundo GARIN (2011 p142) Pico se baseia em Oriacutegenes e Agostinho para os quais seria ldquoimpossiacutevel e absurdordquo um mal que fosse todo mal
65 Concl (II) IV 29 (p92) ldquoRationabilius est credere Origenem esse saluum quam credere ipsum esse damnatumrdquo Em sua resposta oral agrave comissatildeo papal Pico alegou que desde que Oriacutegenes natildeo errou por ldquopertinecircncia de vontaderdquo seria mais provaacutevel e piedoso acreditar que ele estaria salvo (DOREZ-THUASNE opcit pp 124-25) A comissatildeo declarou que a tese de Pico ldquotinha sabor de heresiardquo uma vez que se opunha agrave determinaccedilatildeo da Igreja universal (ibid p130) A resposta de Pico relatada em sua Apologia ganhou consideraacutevel popularidade no seacuteculo XVI admirada pelos reformadores da Igreja em razatildeo dos limites que impunha agrave autoridade eclesiaacutestica Para Farmer (np435) havia um sentido pessoal na afirmaccedilatildeo de Pico de que Oriacutegenes natildeo fora condenado por suas heresias mas sim pela ldquogloacuteria da sua eloquecircncia e conhecimentordquo
66 Concl (II) IX 9 (p118) ldquoNulla est scientia quae nos magis certificet de diuinitate Christi quam magia et cabalardquo
66
negava a eternidade das penas do Inferno colocava-se contra a adoraccedilatildeo da cruz e de
qualquer imagem A busca por uma coerecircncia dentro dos dogmas o levava aleacutem de
limites tacitamente estabelecidos pela ortodoxia catoacutelica natildeo lhe permitindo parar
nem diante dos Sacramentos ingressando em sutilezas teoloacutegicas pretendia
submeter agrave discussatildeo a proacutepria questatildeo da transubstanciaccedilatildeo67 Aleacutem da condenaccedilatildeo
das teses seu artiacutefice foi declarado ldquoiacutempiordquo ldquoheregerdquo ldquomagordquo ldquoismaelitardquo e ldquojudeurdquo
Natildeo sou mago natildeo sou judeu nem ismaelita nem herege
Venero Jesus e trago sobre o meu corpo a cruz de Jesus atraveacutes
do qual o mundo eacute para mim crucifixo e eu sou crucifixo ao
mundo68
As razotildees que nos levam a abordar teses de especiacutefico teor teoloacutegico-cristatildeo em
uma investigaccedilatildeo que trata do uso de paradigmas esoteacutericos satildeo duas
Primeiramente para evidenciar que o Pico que se aproxima a teologias natildeo-cristatildes
natildeo o faz como um investigador desprovido de fundamentos pertinentes agrave teologia de
sua feacute mas sim como algueacutem em posse de efetivo conhecimento daquele campo em
segundo lugar a abordagem do material teoloacutegico permite a discussatildeo da relaccedilatildeo feacute-
razatildeo no pensamento piquiano necessaacuteria para o fechamento do uacuteltimo capiacutetulo Sob
tal prisma a citaccedilatildeo acima deve ser entendida como uma efetiva prova de feacute do autor
longe de uma tentativa de contemporizar com seus arguidores Por outro lado as
comprovaccedilotildees de certas atitudes poderiam lanccedilar duacutevidas sobre o fato a saber a
maior parte das posiccedilotildees contestadas nas Conclusiones foi mantida na Apologia em
clara confirmaccedilatildeo de suas opiniotildees salvo poucas modificaccedilotildees69 algumas passagens
da defesa tanto oral quanto escrita mostram a incontida irritaccedilatildeo do autor e por
vezes certo escaacuternio que tomaria ares de provocaccedilatildeo agrave Igreja70 o reiterado interesse
por conteuacutedos pertencentes a outras tradiccedilotildees teoloacutegicas e sobretudo o fato de
fechar as duas partes de sua obra com um conteuacutedo relacionado a uma doutrina
religiosa ldquoestrangeirardquo poderia sugerir que Pico natildeo mais encontrasse conforto nas
crenccedilas cristatildes
67 Observe-se que toda a discussatildeo contraacuteria agrave adoraccedilatildeo da cruz e de outros siacutembolos bem como a criacutetica
piquiana ao sacramento da Eucaristia ndash a disputa De Eucharistiae Sacramento ndash seriam dois dos grandes debates travados pelos Reformadores do seacuteculo XVI (cf GARIN 2011 pp 32-33)
68 PICO Apologia (p 8) ldquoNon magus non iudaeus sum non ismaelita non haereticus sed Iesum solo et Iesu crucem in corpore meo porto per quem mihi mundus crucifixus est et ego mundordquo
69 Os detalhes completos da defesa de cada tese condenada podem ser vistos em Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione (FORNACIARI 2010)
70 Pico escreve na Apologia (p 33) ldquoExaminando as questotildees condenadas como hereacuteticas pelos mestres de Roma faz-se necessaacuterio que eu mude minha linguagem devo falar o idioma dos baacuterbaros pois como diz jocosamente o proveacuterbio os balbuciantes apenas entendem outros balbuciantesrdquo Na argumentaccedilatildeo referente agrave terceira Quaestio concernente agrave conclusio in Theologia 14 que trata da adoraccedilatildeo da cruz e de imagens Pico chama de hereacuteticos seus examinadores utilizando um artifiacutecio retoacuterico bastante simples sendo a sua tese catoacutelica quem a condena postulando o contraacuterio eacute propriamente hereacutetico (ibid p 132) Em outra passagem replicando as suspeitas sobre a Cabala lecirc-se ldquosuspeitam [os interrogadores] que os cabalistas natildeo sejam seres humanos mas hircocervos [animal miacutetico da Antiguidade claacutessica metade bode metade veado] ou centauros ou qualquer coisa de todo monstruosardquo (ibid pp176-77) Na sua quinta quaestio que trata da defesa da tese maacutegica nr 9 Pico diz ter ouvido algueacutem dizer que ldquoCabalardquo fosse o nome de um inimigo de Cristo e natildeo de uma doutrina (ibid pp176-77) esse fato seria mais tarde relatado por Johannes Reuchlin que em 1516 em seu tratado Arte della Cabala refere que algueacutem teria perguntado durante o interrogatoacuterio de Pico o que era a ldquocabalardquo recebendo como resposta tratar-se de um lsquohomem peacuterfido e diaboacutelico que havia escrito contra Cristorsquo sendo seus disciacutepulos chamados cabalistasrdquo (apud Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)
67
No entanto e como assegura Eugenio Garin Pico era um ldquogrande espiacuterito
religiosordquo e toda sua obra filosoacutefica esteve voltada ao conhecimento de Deus e agrave sua
relaccedilatildeo com o homem e com a realidade71 O proacuteprio subtiacutetulo que abre as
Conclusiones secundum opinionem propriam eacute forte indicador da intenccedilatildeo
respeitosa do autor e de sua vontade de submeter as teses agrave discussatildeo natildeo de impocirc-
las ldquo[] em nenhuma delas afirmo qualquer posiccedilatildeo como assertiva ou provaacutevel
senatildeo na medida em que as retenha verdadeiras ou provaacuteveis a Sagrada Igreja
Romanardquo72 O fato desconfortaacutevel para o magisteacuterio eclesiaacutestico eacute que apesar de sua
autecircntica ldquopietasrdquo que se manifestava em ldquoatitudes de sacerdote em haacutebitos laicosrdquo
Pico permanecia alheio agraves formas exteriores e cerimoniais da experiecircncia religiosa o
repuacutedio pela adoraccedilatildeo de imagens natildeo era apenas escrito (conclusio IV 14) mas
factual Tratava-se de um fiel que praticava o Cristianismo ldquosem ritos e sem
exterioridadesrdquo de um cristatildeo que ldquointroduzia a criacutetica inclusive nos Evangelhosrdquo73
Eis a razatildeo para Pico salvar Oriacutegenes com evidente inocecircncia e aproveitando de
breve momento de liberdade juvenil74 porque o erro do teoacutelogo fora feito em boa feacute
ele se arrependera e sofrera o martiacuterio porque se a condenaccedilatildeo de Oriacutegenes fosse
aceita deveriam ser condenados os Evangelhos os Apoacutestolos e os Santos jaacute que
tantas de suas doutrinas a Igreja natildeo admitia porque natildeo eacute a Igreja mas apenas
Deus que condena Na inflamada defesa de Oriacutegenes Pico mostrava tanto seu caraacuteter
pio quanto a iacutentima rebeliatildeo que vivia em relaccedilatildeo agraves doutrinas eclesiaacutesticas75
O que Pico buscava de fato era uma via de saiacuteda que permitisse a conciliaccedilatildeo
entre as exigecircncias do pensamento loacutegico e os conteuacutedos da ldquorevelaccedilatildeordquo sempre
como parte de seu projeto maior de concoacuterdia Sua viacutevida feacute cristatilde poderia tecirc-lo
levado a se acomodar diante do fasciacutenio oferecido pelas liturgias da Ecclesia ou da
coerecircncia dialeacutetica de seus teoacutelogos mas sua inteligecircncia havia sido nutrida em
demasia com textos hermeacuteticos e cabaliacutesticos ndash que intimamente o haviam
convencido da existecircncia de outros significados na literatura sagrada76 Natildeo se
tratava portanto de uma negaccedilatildeo da experiecircncia cristatilde mas da necessidade de
71 Uma ampla discussatildeo acerca da religiosidade de Pico pode ser encontrada na obra de GARIN Giovanni Pico
della Mirandola 2011 especialmente entre as pp37-48 A relaccedilatildeo entre feacute e razatildeo religiosidade e filosofia tem recebido destaque entre vaacuterios comentadores
72 Abertura agraves Conclusiones secundum opinionem propriam [] in quibus omnibus nihil assertiue uel probabiliter pono nisi quatenus id uerum uel probabile iudicat sacrosancta Romana ecclesia et caput eius benemeritus Summus Pontifex Innocentius octauus cuius iuditio qui mentis suae iuducium non summittit mentem non habet
73 GARIN 2011 p48 A tendecircncia a dar uma nova interpretaccedilatildeo agrave experiecircncia religiosa e ao conhecimento das culturas orientais seria o preluacutedio agrave profunda renovaccedilatildeo religiosa que o mundo moderno assistiria Os orientalistas de rsquo500 a rsquo700 viram em Pico seu grande percursor Atraveacutes de Reuchlin o exemplo de Pico repercutiu nas novas correntes da criacutetica religiosa que confluiacuteram ou foram conexas ao tema reformador Natildeo apenas pelo fato de ser precursor dos estudos orientais mas tambeacutem por seu acento independente e sua livre pesquisa das Escrituras dos ritos dos cultos dos siacutembolos da Igreja e das teorias jaacute aceitas atitudes e estudos que refletiriam na Reforma (Cf GARIN 2011 pp 100 105 135)
74 A atribuiccedilatildeo eacute emprestada do tradutor Albano Biondi que considera as Conclusiones uma obra ldquotanto ingecircnua quanto sofisticadardquo como um diaacuterio de viagem de um intelectual que aproveita de uma ldquobreve liberdade sem condicionamentosrdquo (BIONDI opcit pXXXVIII)
75 A tese condenada referente ao cristatildeo Oriacutegenes (Concl II 4 29) eacute a uacutenica em que Pico pretende defender um autor e natildeo sua doutrina Sua defesa ocupa na Apologia um espaccedilo muito mais extenso que as restantes com exceccedilatildeo da defesa da Magia e da Cabala (cf Apologia ldquoDe salute Origenisrdquo) Oriacutegenes foi um dos poucos pensadores entre filoacutesofos e teoacutelogos cristatildeos a se interessar pelo conhecimento do pensamento e idioma hebreus Essa talvez tenha sido uma das causas do interesse de Pico por sua filosofia (GARIN 2011 pp141 ss)
76 Alberto AMBESI ldquoGiovanni Pico della Mirandola ndash Cenni biografici e presentazione dellrsquooperardquo Introduccedilatildeo ao Heptaplus Carmagnola 1996 p IV
68
ampliaacute-la Era um jovem entusiasmado com as recentes descobertas que
comprovavam as verdades de sua religiatildeo como havia escrito em sua introduccedilatildeo agraves
Teses procurando esclarecer aos Padres seu interesse pelas doutrinas cabaliacutesticas
ldquoas coisas tiradas dos antigos misteacuterios hebreus aleguei como confirmaccedilatildeo da
sacrossanta e catoacutelica feacuterdquo77 De fato atraveacutes de vaacuterios dos enunciados presentes na
seacuterie das Conclusiones Cabalisticae Pico propunha para debate comprovaccedilotildees ldquonatildeo
tanto da religiatildeo mosaica quanto da cristatilderdquo que dizia ter encontrado nos livros
sagrados78
Aqui os misteacuterios da Trindade aqui a encarnaccedilatildeo do Verbo
aqui a divindade do Messias aqui quanto diz respeito ao
pecado original agrave expiaccedilatildeo deste por meio de Cristo quanto
concerne agrave Jerusaleacutem Celeste agrave queda dos democircnios aos coros
angeacutelicos agraves penas do purgatoacuterio e do inferno li as mesmas
coisas que todos os dias lemos em Paulo e Dionisio em
Jerocircnimo e em Agostinho79
O entendimento da relaccedilatildeo religiatildeo-filosofia na obra de Pico natildeo estaacute isento de
dificuldades podendo denotar certa ambivalecircncia A inflamada defesa de sua proacutepria
filiaccedilatildeo religiosa como emerge na citaccedilatildeo acima deu margem a leituras puramente
cristoloacutegicas de sua obra80 No entanto haacute que se observar que na construccedilatildeo do
pensamento piquiano a religiatildeo representava a manifestaccedilatildeo final de conceitos
alcanccedilados plenamente apenas atraveacutes da Filosofia A feacute constituiacutea nesse sentido ldquoo
aacutepice de um processo racional que nela se manifesta e se potencializardquo Seu mais puro
sentimento a esse respeito emerge da carta escrita a Aldo Manuzio em 1491
ldquoPhilosophia veritatem quaerit Theologia invenit Religio Possidetrdquo81 A primazia da
Religiatildeo colocada acima da Teologia e da Filosofia conforme expressa na carta deve
ser entendida em sua correta dimensatildeo pois em outras passagens da obra piquiana a
dicotomia razatildeo-feacute apresenta-se em ordem invertida com a submissatildeo da religiatildeo agrave
77 Oratio pp 155-157 Para detalhes referentes ao confronto entre Cristianismo e Cabala veja-se Chaim
WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Cambridge 1989 78 Oratio pp159-161 79 Algumas das assertivas contidas na citaccedilatildeo encontram-se espalhadas entre as teses cabaliacutesticas (II) nrs 5 6
7 8 14 15 16 24 30 34 e 38 Aleacutem de presente na Oratio (idem) a citaccedilatildeo em questatildeo pode ser lida na Apologia (p30) ldquoHos ego libros non mediocri impensa mihi cum comparassem summa diligentia indefessis laboribus cum perlegissem vidi in illis - testis est Deus - religionem non tam Mosaicam quam Christianam Ibi Trinitatis mysterium ibi Verbi incarnatio ibi Messiae divinitas ibi de peccato originali de illius per Christum expiatione de caelesti Hierusalem de casu daemonum de ordinibus angelorum de purgatoriis de inferorum poenis eadem legi quae apud Paulum et Dionysium apud Hieronymum et Augustinum quotidie legimusrdquo
80 Para alguns que partilham do mesmo entendimento de William CRAVEN (Giovanni Pico della Mirandola symbol of his age modern interpretations of a Renaissance philosopher 1981 p107) o uacutenico interesse de Pico pela Cabala estava em demonstrar a verdade cristatilde ndash embora haja muitas divergecircncias quanto a esse ponto Outros como Michael SUDDUT vatildeo aleacutem defendendo uma ldquoCristologiardquo na obra de Pico (Pico della Mirandolarsquos Philosophy of Religion in Pico della Mirandola-New Essays 2008) Por outro vieacutes Pier Cesare BORI que natildeo coloca duacutevidas sobre a religiosidade cristatilde de Pico estaacute convencido de que a utilizaccedilatildeo da Cabala e outras teologias orientais satildeo ldquobem mais do que um expediente apologeacutetico a serviccedilo de um universalismo cristocecircntricordquo (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996)
81 ldquoA Filosofia procura a verdade a Teologia a encontra e a Religiatildeo a possuirdquo Assim escrevia Pico (Epiacutestola I 6) em 11 de fevereiro de 1491 ao humanista e editor de textos raros Aldo Manuzio ldquoAccinge ad philosophiam sed hac lege ut memineris nullam esse philosophiam quae a mysteriorum veritate nos avocet Philosophia veritatem quaerit theologia invenit religio possidetrdquo (Oratio np37)
69
filosofia eacute o caso da passagem ldquoseria necessaacuterio que a Filosofia iluminasse as mentesrdquo
e que a Igreja soubesse reconhecer a sua forma capaz de ldquopersuadir e convencer
racionalmenterdquo82 A argumentaccedilatildeo alude que apenas quem conhece e sabe discutir
criticamente as fontes pode julgar seu conteuacutedo e sua eventual pretensatildeo de verdade
Segundo Pico de fato o ato de crer natildeo depende apenas da vontade mas tambeacutem do
intelecto83 Nesse caso contraacuterio ao conteuacutedo anterior expresso na carta a Manuzio a
necessidade de submeter a religiatildeo agrave razatildeo deve ser entendida em relaccedilatildeo a uma
dimensatildeo religiosa que se mostra em caraacuteter dogmaacutetico horizontal em oposiccedilatildeo agrave
dimensatildeo religiosa enquanto experiecircncia real Os indiacutecios de tal dimensatildeo da
experiecircncia de uma efetiva religiatildeo84 Pico teria encontrado em seus estudos
relacionados a teologias e teurgias tomadas da literatura neoplatocircnica
posteriormente complementadas com os Hinos Oacuterficos os Oraacuteculos Caldeus e a
praacutetica da Cabala Tratava-se pois de uma real vivecircncia religiosa que extrapolava os
dogmas de qualquer religiatildeo particular Sob tal entendimento quaisquer
correspondecircncias encontradas nas teses que se relacionem com as doutrinas da Igreja
natildeo devem ser interpretadas como uma defesa ortodoxa do Cristianismo mas como
um passo a mais em direccedilatildeo agrave conjunccedilatildeo dos ldquofinsrdquo que tendem ao Absoluto
Seguindo essa acepccedilatildeo Pico teria encontrado em Proclo sua definiccedilatildeo de ldquoverdadeira
religiatildeordquo
Assim como a feacute que eacute simples disposiccedilatildeo a crer eacute inferior agrave
ciecircncia assim a feacute que eacute feacute verdadeira eacute supra
substancialmente superior agrave ciecircncia e ao intelecto conjugando-
nos imediatamente a Deus85
(Conclusio secundum Proclum 44)
3 Maritare Mundum
Nas 144 teses que distribuiacutedas em quatro seacuteries concluem as 500
Conclusiones secundum opinionem propriam eacute possiacutevel descobrir alguns elos que
datildeo sentido ao conjunto de forma que as secretas analogias apontadas na Apologia
possam ser delineadas A segunda metade da obra contempla os principais e mais
82 O tema eacute amplamente discutido em GARIN 2011 pp137-142 Ainda BUSI Pico fede ragione e
Inquisizione in Il Sole 24 Ore 28082018 83 Conclusiones in Theologia (II) IV 18 (p91) Como aponta GARIN (2011 pp137-142) natildeo por acaso o Padre
da Igreja que Pico mais amou e meditou sobre foi justamente Oriacutegenes Parecia-lhe absurda a ideia de impor uma feacute sem demonstraacute-la assim como castigar um herege e condenaacute-lo por erro teoacuterico (cf Apologia ldquoDe libertate credendirdquo)
84 A ideia contemporacircnea que se tem do termo ldquoreligiatildeordquo estaacute bastante esvaziada de seu sentido original a ponto de poder causar estranheza a dignidade que Pico lhe atribui colocando-a acima da Filosofia e da Teologia Nunca eacute tarde para recordar a origem etimoloacutegica do termo ldquoreligiatildeordquo proveniente do verbo ldquoreligarerdquo que aponta para a real uniatildeo com o divino um estado de plena vivecircncia espiritual que ultrapassa as questotildees teoreacuteticas relacionadas agrave Filosofia ou agrave Teologia
85 Concl (I) IVV 44 (p48) ldquoSicut fides quae est credulitas est infra scientiam ita fides quae est vere fides est supersubstantialiter supra scientiam et intellectum nos Deo inmediate coniungensrdquo
70
originais argumentos que seriam utilizados para debater uma teoria global da
representaccedilatildeo do mundo realizando a consonacircncia com os temas verificados no
primeiro toacutepico deste Capiacutetulo Observa-se que o realizador da obra estava seguro por
ter encontrado ocultas correspondecircncias que se mostram particularmente claras no
exame das seacuteries finais das Conclusiones intituladas ldquosegundo opiniatildeo dos
enunciados de Zoroastrordquo ldquomaacutegicasrdquo ldquosegundo os hinos de Orfeu [] e aquele saber
relativo agraves coisas divinas e agraves coisas naturaisrdquo e ldquoconsolidantes da religiatildeo cristatilde a
partir dos fundamentos colocados pelos saacutebios hebreusrdquo86 O complexo dessas quatro
seacuteries representa um corpo uacutenico no pensamento de Pico apresentando uma
substancial unidade entre os saberes da Magia da Teurgia e da Teologia
Vaacuterias correspondecircncias satildeo estabelecidas ainda entre as teses caldaicas
maacutegicas oacuterficas e cabaliacutesticas com os demais temas da inteira obra seguindo um
planejamento em que se destacam especiacuteficos teores o aceno aos trecircs mundos que
Pico havia mencionado atraveacutes de Proclo dentro de um cenaacuterio de organizaccedilatildeo do
cosmo87 a confirmaccedilatildeo de certa escolha temaacutetica que prestigia as questotildees
relacionadas ao conhecimento da alma a tonalidade teoloacutegica que se mostra
mesclada a vaacuterias teses e sobretudo o entrelaccedilamento entre distintos campos do
saber que afirmam a presenccedila da concoacuterdia buscada Os modelos temaacuteticos citados a
seguir todos extraiacutedos das ldquoteses segundo o significado das sentenccedilas de Zoroastro e
de seus exegetas caldeusrdquo apresentam natildeo somente aforismos que retratam os temas
mencionados como ainda um exemplo da multidisciplinariedade piquiana
verificaacutevel no uacuteltimo dos enunciados no qual se confirma a correspondecircncia entre as
teologias caldaica cristatilde e hebraica
No aforismo 17 [do enunciado de Zoroastro] com o triacuteplice
indumento de linho pano e pele os Magos natildeo entendem outra
coisa aleacutem da triacuteplice morada da alma celeste espiritual e
terrena88 (Conclusio secundum propriam opinionem de
intelligentia dictorum Zoroastris 8)
86 Conforme a sequecircncia e tiacutetulos completos dados por Pico temos Conclusiones secundum propriam
opinionem de intelligentia dictorum Zoroastris et expositorum eius Chaldaeorum Conclusiones Magicae Conclusiones secundum propriam opinionem de modo intelligendi hymnos Orphei secundum Magiam id est secretam diuinarum rerum naturaliumque sapientiam a me primum in eis repertam Conclusiones Cabalisticae secundum opinionem propriam ex ipsis Hebraeorum sapientum fundamentis Cristianam Religionem maxime confirmantes
87 Conclusio secundum Proclum 52 88 Concl (II) VIII 8 (p116) ldquoMagi in XVII aphorismo nichil aliud intelligunt per triplex indumentum ex lino
panno et pellibus quam triplex animae habitaculum coeleste spirituale et terrenumrdquo O trecho de acordo com FARMER (opcit np489) eacute extraiacutedo dos Oraacuteculos Caldeus A sessatildeo caldaica das Conclusiones conteacutem material natildeo encontrado no recolhimento de Miguel Psello ou George Plethon nem mesmo a numeraccedilatildeo dos Oraacuteculos de Pico coincide com a ordem encontrada naquelas coleccedilotildees anteriores A questatildeo das fontes que Pico consultou na sessatildeo caldaica eacute tatildeo misteriosa quanto a versatildeo dos Oraacuteculos que ele tinha em matildeos Em carta a Ficino de 1486 Pico fala de libellus de dogmatis Chaldaicae theologiae tum Persarum Graecorum et Chaldaeorum in illa divina et locupletissima enarratione [ldquoum pequeno livro sobre os ensinamentos da teologia caldaica naquela exposiccedilatildeo divina e opulenta dos persas gregos e caldeusrdquo] que lhe tinha chegado recentemente agraves matildeos (FARMER opcit pp486-487)
71
Aquilo que dizem os exegetas caldeus acerca do primeiro
enunciado de Zoroastro sobre a ldquoescala do taacutertaro ao primeiro
fogordquo natildeo significa outra coisa que a seacuterie das naturezas do
universo do natildeo grau da mateacuteria ao grau que gradualmente se
sobrepotildee acima de cada grau89 (idem 1)
Graccedilas ao enunciado de Zoroastro lsquosacrificareis ainda por trecircs
dias e natildeo maisrsquo me resultou evidente atraveacutes da aritmeacutetica do
caacutelculo dos dias da Mercavaacute superior que naquele enunciado
estava prevista expressamente a vinda de Cristo90
(idem 14)
A menccedilatildeo agrave aritmeacutetica da Mercavaacute superior alude agrave existecircncia de um campo
conceitual que requer um preparo especial tantas vezes guardado pelo segredo O
autor desse material mostra ter consciecircncia da necessidade de proteger certas aacutereas
conceituais que natildeo devem ser divulgadas ndash e dos riscos envolvidos em sua eventual
divulgaccedilatildeo Esse cuidado eacute referido de forma velada algumas vezes e de forma
expressa em outras Na abertura do penuacuteltimo grupo de suas teses intituladas
ldquoconforme o modo de interpretar os hinos de Orfeu segundo magiardquo Pico sugere ter
colhido nos Hinos Oacuterficos certas verdades cuja divulgaccedilatildeo seria arriscada por
necessidade em razatildeo da restriccedilatildeo pedida pelo segredo teria que expressar-se em
modo eliacuteptico utilizando-se de aforismos para conseguir despertar ldquoa mente dos
contemplativosrdquo91 Assim se lecirc em sua Conclusio oacuterfica nr 1
Expor em puacuteblico a magia secreta por mim extraiacuteda por
primeiro dos Hinos de Orfeu natildeo eacute liacutecito mas seraacute uacutetil delineaacute-
la para estimular as mentes dos contemplativos mesmo que por
meio de aforismos92
(Conclusio de modo intelligendi hymnos Orphei 1)
89 Concl (II) VIII 1 (p114) ldquoQuod dicunt interpretes chaldaei super primum dictum Zoroastris de scala a
tartaro ad primum ignem nichil aliud significat quam seriem naturarum universi a non gradu materiae ad eum qui est super omnem gradum graduate protensumrdquo
90 Concl (II) VIII 14 (p116) ldquoPer dictum illud Zoroastris ad huc tres dies sacrificabitis et non ultra apparuit michi per arithmeticam superioris merchaveacute illos computandi dies esse in eo dicto expresse praedictum aduentum Christirdquo A Mercavaacute superior (carruagem) representa a parte especulativa da Cabala concernente agraves coisas divinas como esclarece o escritor cabalista Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1989 pp 193-94)
91 Pico tinha consciecircncia dos riscos de uma interpretaccedilatildeo errocircnea ou da utilizaccedilatildeo delituosa da teurgia oacuterfica Marsiacutelio Ficino que jaacute havia traduzido para o latim os Hinos Oacuterficos havia decidido evitar sua publicaccedilatildeo por julgaacute-los perigosos (cf Paolo Edoardo FORNACIARI Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Milano 2009 pp 73-74) ainda do mesmo autor veja-se Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola p 630) O acesso de Pico aos Hinos oacuterficos eacute comprovado pela existecircncia em sua biblioteca de pelo menos um manuscrito contendo natildeo apenas aqueles hinos como tambeacutem os Hinos homeacutericos e os de Proclo (Pearl KIBRE opcit 1936 pp148 205)
92 Concl (II) X 1 (p120) ldquoSicut secretam magiam a nobis primum ex Orphei hymnis elicitam fas non est in publicum explicare ita nutu quodam ut in infrascriptis fiet conclusionibus eam per aphorismorum capita demonstrasse utile erit ad excitandas contemplatiuorum mentesrdquo
72
Depreende-se da asserccedilatildeo acima uma forte conotaccedilatildeo iniciaacutetica tocircnica que
conflui no complexo orgacircnico das uacuteltimas seacuteries revelando a existecircncia de uma
dimensatildeo ndash conhecida por Pico ndash que admite o adepto atraveacutes de graus que elevam
ao conhecimento ndash desde que ele seja capaz de ingressar por suas portas de iniciaccedilatildeo
A conclusio oacuterfica 7 conta que existe uma ldquoestrada de analogia secretardquo que soacute poderaacute
ser trilhada por aquele que souber ldquointelectualizar perfeitamente as propriedades
sensiacuteveisrdquo a serem extraiacutedas dos Hinos de Orfeu93 Vecirc-se que eacute dada ecircnfase seja na
primeira que na seacutetima tese acima ao uso intelectual ou contemplativo das
informaccedilotildees recebidas agrave guisa de precauccedilatildeo para natildeo ser aprisionado por elementos
negativos ndash advertecircncia que embora natildeo expressa nas teses acima encontra-se na
tese 10 segundo Hermes Trismegisto e na tese cabaliacutestica 1394 A conclusio maacutegica 17
sugere que para ultrapassar os limites estabelecidos pela natureza existem ldquodevidas
modalidades conhecidas pelos saacutebiosrdquo95 Nesse percurso a Magia representa o
primeiro grau96 por se tratar conforme a conclusio maacutegica 4 da parte ldquomais nobre
da ciecircncia naturalrdquo sendo o conhecimento do mundo fiacutesico em primeira etapa o
alimento da alma racional97
Se se verifica em noacutes uma natureza imediata que seja
simplesmente ou pelo menos prevalentemente racional essa
tem seu aacutepice na arte maacutegica E graccedilas agrave participaccedilatildeo maacutegica
tal natureza pode ascender nos homens a uma maior
perfeiccedilatildeo98 (Conclusio Magica 14)
A Magia conforme se depreende da explanaccedilatildeo realizada na De Hominis
Dignitate99 ocupa-se das relaccedilotildees da vida humana com a toda a criaccedilatildeo daiacute a
outorga de nobreza que Pico lhe concede em caraacuteter privilegiado tem por objeto a
93 Concl (II) X 7 (p122) 94 A tese cabaliacutestica 13 adverte que ldquoquem opera na Cabala se cometer erros durante o trabalho ou se aproximar
deste sem a devida purificaccedilatildeo preacutevia seraacute devorado por Azazel de acordo com suas proacuteprias regras de justiccedilardquo A tese 10 segundo as doutrinas de Trismegisto informa sobre a existecircncia de uma maligna sequecircncia denaacuteria correspondente agrave existente na Cabala a respeito da qual Pico declara que natildeo poderaacute escrever nada ldquopor tratar-se de um segredordquo
95 Concl (II) IX 17 (p118) A inteira sentenccedila postula que ldquoa magia eacute proacutepria daquela natureza que eacute horizonte de tempo e eternidade e de laacute deve ser extraiacuteda segundo as devidas modalidades notas aos saacutebiosrdquo O significado da primeira oraccedilatildeo segundo FORNACIARI eacute que a natureza eacute o limite do tempo no sentido que o tempo intriacutenseco agrave natureza eacute limitado e natildeo eterno (Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche 2009 p64)
96 Na De Hominis Dignitate Pico dedica muitas linhas a esclarecer o que entende por ldquomagiardquo defendendo-a contra entendimentos equivocados eou preacute-concebidos
97 Cf FORNACIARI Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche 2009 pp 58 63 98 Concl (II) IX 14 (p118) ldquoSi qua est natura immediata nobis quae sit uel simpliciter uel saltem ut multum
rationaliter rationalis magicam habet in summo et eius participatione potest in hominibus esse perfectiorrdquo FARMER (np498) comenta que a questatildeo concerne agrave alma purificada do mago capaz de reunir todas as forccedilas racionais distribuiacutedas entre o mundo celestial e terrestre e elevaacute-las Nesta tese lecirc-se que a magia envolve naturezas ldquoracionaisrdquo na correlata tese cabaliacutestica 12 encontra-se que a ldquoCabala purardquo (haacute tambeacutem variedades inferiores como seraacute visto no Capiacutetulo V) envolve a ldquoparte intelectualrdquo da alma racional
99 Aleacutem da ampla defesa da Magia realizada na Apologia (Quaestio V de magia naturali et cabala hebraeorum pp 154-193) Pico dedica natildeo poucas linhas para a questatildeo na De Hominis Dignitate ldquoRepleta de profundiacutessimos misteacuterios [a ldquoboa magiardquo] abraccedila a contemplaccedilatildeo mais alta das coisas mais secretas e por fim o conhecimento total da natureza Esta como que trazendo das profundidades agrave luz as virtudes dispersas e disseminadas no mundo pela bondade de Deus mais do que realizar milagres coloca-se ao serviccedilo da milagrosa natureza Esta perscrutando intimamente o secreto acordo do universo a que os Gregos chamam de uma maneira muito significativa sympateacuteia [ldquoharmonia do universordquo] explorando a muacutetua ligaccedilatildeo das naturezas traz agrave luz como se ela proacutepria fosse o artiacutefice as maravilhas escondidas nas profundezas do mundo no seio da natureza e dos misteacuterios de Deusrdquo (p153)
73
relaccedilatildeo entre o mundo fiacutesico e a alma imortal pois que o mago opera para realizar a
conexatildeo do mundo sublunar com os mundos superiores100 como seraacute visto adiante
Alguns dos meacutetodos agrave disposiccedilatildeo do sapiente praacutetico para alccedilar-se atraveacutes dos niacuteveis
intelectuais relacionam-se diretamente com o uso de sons e mantras ndash como se
extrai de algumas teses oacuterficas maacutegicas e cabaliacutesticas A tese oacuterfica 2 por exemplo
sinaliza que ldquonas operaccedilotildees de magia natural nada eacute mais eficaz que os Hinos de
Orfeurdquo acrescendo em tom de precauccedilatildeo ldquodesde que sejam aplicadas a correta
muacutesica a correta intenccedilatildeo de acircnimo e todas as demais circunstacircncias que os
sapientes conhecemrdquo101 A quarta tese oacuterfica confirma a analogia de praacuteticas e
resultados entre teologias distintas
Assim como os Hinos de Davi se prestam de forma admiraacutevel agraves
operaccedilotildees da Cabala assim os Hinos de Orfeu se prestam agraves
operaccedilotildees da magia autecircntica liacutecita e natural102
(Conclusio de modo intelligendi hymnos Orphei 4)
Observa-se uma relaccedilatildeo entre os resultados obtidos atraveacutes das praacuteticas oacuterficas
e as cabaliacutesticas pois que nos Salmos de Davi encontra-se uma aplicaccedilatildeo maacutegica
pertencente ao esoterismo hebraico que Pico certamente conhecia103 Embora se
situem em patamares distintos104 as duas dimensotildees operativas apresentam
analogias como revela a tese oacuterfica 6 ldquoa propriedade analoacutegica de qualquer virtuderdquo
(no sentido de qualidade poder ou potecircncia)105 seja natural ou divina eacute a mesma
ldquoguardadas as devidas proporccedilotildeesrdquo assim como satildeo os mesmos os nomes (utilizados
na magia natural) os hinos (na teurgia oacuterfica) e o operar (em sentido cabaliacutestico)
ldquoquem tentaraacute interpretaacute-los encontraraacute as correspondecircnciasrdquo completa o texto106
Pico alerta outrossim que para a aplicaccedilatildeo operativa de determinados hinos
oacuterficos107 seraacute necessaacuteria a participaccedilatildeo da operaccedilatildeo cabaliacutestica como postula a tese
oacuterfica 21 ldquoNatildeo haacute aplicaccedilatildeo operativa daqueles [especiacuteficos] hinos sem a operaccedilatildeo da
Cabalardquo108
100 Cf FORNACIARI 2009 p 58 101 Concl (II) X 2 (p120) Proclo em seu proecircmio ao Comentaacuterio ao Timeu atesta que os textos sagrados do
Orfismo continham indicaccedilotildees taumatuacutergicas Ademais ao proacuteprio Proclo foram atribuiacutedos o poder de auto-cura e de curar o proacuteximo atraveacutes do recurso a hinos inclusive os oacuterficos conforme se lecirc em Vita Procli de Marino Neapolis (apud FORNACIARI 2009 p74) Complementa Fornaciari (p75) que eacute a concentraccedilatildeo do pensamento no mago ou teurgo que propicia o movimento interior desde que acompanhado do cumprimento dos preceitos e das palavras certas pronunciadas nas oraccedilotildees
102 Concl (II) X 4 (p122) ldquoSicut hymni Dauid operi Cabalae mirabiliter deseruiunt ita hymni Orphei operae vere licitae et naturalis Magiaerdquo Os Hinos de Davi referem-se aos Salmos
103 A hinografia atribuiacuteda ao rei Davi exerce uma funccedilatildeo sagrada no Judaiacutesmo e houve uma sua aplicaccedilatildeo maacutegica chamada simmusy tehillim (ldquouso dos Salmosrdquo) Vejam-se esclarecimentos sobre a questatildeo e as implicaccedilotildees em acircmbito cabaliacutestico em FORNACIARI (2009 p76)
104 No capiacutetulo VI seratildeo esclarecidas as distinccedilotildees entre os procedimentos teuacutergicos e os procedimentos de tipo superior realizados em certo tipo de praacutetica cabaliacutestica
105 A complementaccedilatildeo ao termo ldquovirtuterdquo eacute de FORNACIARI (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p630)
106 Concl (II) X 6 (p122) ldquoQuarumcunque virtutum naturalium vel diuinarum eadem est proprietas analogica idem etiam nomen idem hymnus idem opus seruata proportione et qui temptauerit exponere uidebit correspondentiamrdquo
107 Trata-se dos Hinos aos quais Pico se refere na tese oacuterfica 20 (p125) endereccedilados agrave mente Paterna ldquoProtogeni Palladis Saturni Veneri Rheae Legis Bacchirdquo
108 Concl (II) X 21 (p124) A Cabala possui as propriedades para ldquocolocar em ato cada quantidade formal contiacutenua e discretardquo como estaacute complementado na mesma tese 21 Essa tese um tanto complexa recebeu de WIRSZUBSKI (opcit pp141-145) e de Brian COPENHAVER (Lrsquoocculto in Pico in Giovanni Pico della
74
Da mesma forma que efetua em relaccedilatildeo ao Orfismo Pico tece muacuteltiplas
analogias entre a Cabala e a Magia109 dois peculiares temas que exorbitam os limites
de seus proacuteprios grupos e que satildeo encontrados de forma esparsa correspondendo-se
natildeo apenas entre si como com outros dos demais elementos presentes nas Teses
Aleacutem da tese maacutegica 8 condenada pelos teoacutelogos de Inocecircncio VIII que conjuga
Magia e Cabala (no caso para afirmar a divindade de Cristo) as duas precedentes 6 e
7 tambeacutem comportam a assunccedilatildeo da Cabala ao lado da Magia ambas convergindo
para ingressar em um plano superior teoloacutegico Na conclusio maacutegica 6 Pico assume
que todas as operaccedilotildees maacutegicas eou cabaliacutesticas encontram sua referecircncia direta em
Deus
Qualquer obra que suscite estupor seja de tipo maacutegico
cabaliacutestico ou de qualquer outro gecircnero deve ser em
primeiriacutessima instacircncia referida a Deus glorioso e bendito
cuja graccedila espalha as superabundantes aacuteguas de milagrosas
virtudes sobre os homens contemplativos de boa vontade110
(Conclusio Magica 6)
A tese seguinte de nuacutemero 7 provavelmente surpreendente aos ouvidos
cristatildeos afirma que ldquoas obras de Cristo natildeo poderiam ter sido realizadas nem por via
de Magia nem por via de Cabalardquo111 A afirmaccedilatildeo parece significar que Cristo possuiria
virtudes superiores em respeito agrave Magia e agrave Cabala rendendo ambas inuacuteteis
Entretanto segundo a interpretaccedilatildeo de Paolo Fornaciari Pico estaria em verdade
sustentando que Cristo teria operado milagres graccedilas agrave forccedila da Magia e da Cabala
conjuntas112 Fato que parece sugerido na condenada tese de nuacutemero 9 amplamente
discutida na Apologia ldquonatildeo existe ciecircncia que nos afirme a divindade de Cristo mais
do que a Magia e a Cabalardquo113 A intriacutenseca relaccedilatildeo entre Magia e Cabala estaacute ainda
presente na tese maacutegica 15 que atribui agrave Cabala a propriedade tida como
imprescindiacutevel de consentir ao mago de operar com sucesso no mundo fiacutesico
Mirandola 1997 p98) interpretaccedilotildees acuradas e distintas o primeiro em acircmbito cabaliacutestico e o segundo em acircmbito matemaacutetico-geomeacutetrico Jaacute a interpretaccedilatildeo de FORNACIARI (2009 pp91-92) mais alinhada com o desenho geral da Conclusiones faz corresponder as trecircs quantidades formal contiacutenua e discreta aos trecircs mundos inteligiacutevel intermeacutedio e sublunar cujas formas podem ser operacionalizadas e quantificadas pela Cabala atraveacutes da gematria (tipologia a ser verificada no Capiacutetulo VI)
109 Uma maior aproximaccedilatildeo agrave Cabala seraacute feita nos capiacutetulos V e VI Em relaccedilatildeo agrave Magia as 26 teses maacutegicas foram objeto de anaacutelise em artigo de Frances YATES (Giovanni Pico della Mirandola and Magic in LrsquoOpera e il pensiero di G Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze 1965 pp159-196) Para definiccedilotildees e esclarecimentos feitos pelo proacuteprio Pico remeter-se agrave parte da De Hominis Dignitate que trata de Magia e ainda agrave seccedilatildeo dedicada agrave quaestio ldquoDe magia naturalis et Cabala disputatiordquo na Apologia
110 Concl (II) IX 6 (p118) ldquoQuodcumque fiat opus mirabile siue sit magicum siue cabalisticum siue cuiuscunque alterius generis principalissime referendum est in Deum gloriosum et benedictum cuius gratia supercoelestes mirabilium uirtutum aquas super contemplatiuos homines bonae voluntatis quotidie pluit liberaliterrdquo Para Pico as operaccedilotildees maacutegicas natildeo funcionam de forma mecacircnica mas dependem da mediaccedilatildeo de uma alma purificada (FARMER p497)
111 Concl (II) IX 7 (p118) ldquoNon potuerunt opera Christi uel per uiam magiae uel per uiam Cabalae fierirdquo 112 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p630 113 Concl (II) IX 9 (p118) ldquoNulla est scientia quae nos magis certificet de diuinitate Christi quam magia et
cabalardquo Veja-se ampla discussatildeo dessa tese em FARMER (opcit pp126-128) que se remete agrave obra de Frances Yates Giovanni Pico della Mirandola and Magic 1965
75
Nenhuma operaccedilatildeo de Magia pode ser de eficaacutecia se natildeo tiver
conexa a obra cabaliacutestica expliacutecita ou impliacutecita114
(Conclusio Magica 15)
Finalmente nas trecircs teses maacutegicas finais a relaccedilatildeo entre a Cabala e a Magia eacute
precisada Na conclusio 24 a partir de quanto ensina a Cabala Pico posiciona
conforme ldquoprinciacutepios secretos da Filosofiardquo as qualidades formais inscritas nos
siacutembolos (caracteres et figuras) acima das qualidades materiais no que concerne agrave
operatividade maacutegica115 na sucessiva tese 25 afirma a correspondecircncia entre os
siacutembolos (caracteres) usados nas operaccedilotildees maacutegicas e os nuacutemeros (numeri) usados
nas operaccedilotildees cabaliacutesticas Na tese 26 Pico sustenta que agrave diferenccedila de quanto
ocorre no campo maacutegico-natural onde o nexo causa-efeito eacute respeitado em modo
rigoroso na atuaccedilatildeo cabaliacutestica pode ocorrer que um acontecimento natildeo dependa da
mediaccedilatildeo das causas Nesse sentido a uacuteltima tese maacutegica pontua assim a distinccedilatildeo
de gradaccedilatildeo entre os dois saberes atraveacutes da obra cabaliacutestica pode ocorrer algo que
nenhuma magia pode alcanccedilar desde que o operar cabaliacutestico seja ldquopuro e
imediatordquo116
Para aleacutem das inter-relaccedilotildees temaacuteticas uma especial atenccedilatildeo deve ser
dispensada agraves Teses Cabaliacutesticas117 agraves quais alguns privileacutegios foram concedidos118
satildeo elas que encerram as duas seccedilotildees da obra piquiana como a ocupar um espaccedilo
nobre a quantidade de teses cabaliacutesticas em seu total de 118 supera a quantidade de
teses de cada um dos outros grupos119 e quatro-quintos das correspondecircncias
efetuadas entre os vaacuterios conteuacutedos envolvem a Cabala120 Efetivamente o nuacutemero de
conexotildees da Cabala com outros temas ultrapassa aquelas efetuadas com as duas
seacuteries acima mencionadas Aleacutem das 47 teses cabaliacutesticas ad mentem cabalistarum e
das 71 secundum opinionem propriam121 ao menos outras cinquenta fazem
114 Concl (II) IX 15 (p118) ldquoNulla potest esse operatio magica alicuius efficaciae nisi annexum habeat opus
cabalae explicitum uel implicitumrdquo Acerca desta tese FARMER (np499) interpreta que o sentido primaacuterio que Pico quer esclarecer eacute que a parte racional da alma (pertinente agrave ldquomagia naturalrdquo) deriva da parte intelectual da alma (pertinente agrave ldquocabala purardquo) sob tal prisma a Cabala estaria impliacutecita em qualquer ato maacutegico
115 Concl(II) IX 24 (p121) ldquoEx secretioris philosophiae principiis necesse est confiteri plus posse caracteres et figuras in opere Magico quam possit quaecunque qualitas materialisrdquo
116 Respectivamente Concl (II) IX 25 e 26 (p121) Basicamente nessas trecircs uacuteltimas teses Pico postula que as palavras maacutegicas podem ser traduzidas em nuacutemeros e os nuacutemeros em palavras maacutegicas aparentemente conforme inferecircncia de FARMER (np503) atraveacutes de equaccedilotildees de gematria A menccedilatildeo agrave Cabala pura e imediata ldquosi sit pura cabala et imediatardquo envolve a parte intelectual da alma como ainda completa Farmer (idem)
117 Paolo FORNACIARI realizou a interpretaccedilatildeo da totalidade das Conclusiones Cabalisticae (2009) utilizando-se da obra de Chaim WIRSZUBSKY (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 19871989) como paracircmetro hermenecircutico para o misticismo hebraico
118 De todas as obras de Pico as Conclusiones cabalisticae parecem ter conhecido melhor destino visto que foram publicadas mais vezes geralmente em latim (veja-se por exemplo FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche Milano 2009 p13) Para Albano BIONDI as Teses cabaliacutesticas ldquosecundum opinionem propriamrdquo representam o coroamento do inteiro edifiacutecio piquiano (2013 p XXVI)
119 Dentro do primeiro grupo eacute atribuiacutedo a Proclo o maior nuacutemero de teses um total de 55 seguido do grupo dos ldquoSaacutebios da Cabalardquo com 47 teses No segundo grupo as ldquoTeses sobre a Matemaacuteticardquo e as ldquoTeses pessoais acerca da doutrina de Platatildeordquo satildeo as que apresentam maior nuacutemero respectivamente 85 e 80 teses cada Contudo na somatoacuteria dos dois grupos o conjunto das doutrinas cabaliacutesticas eacute detentor da maior quantidade de teses 118 no total
120 Cf William CRAVEN Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age modern Interpretations of a Renaissance philosopher 1981 p107
121 O tiacutetulo do uacuteltimo grupo menciona 71 teses (Conclusiones Cabalisticae numero LXXI) embora sejam apresentadas de fato 72 Conforme Fornaciari (2009 p15) natildeo se trata de erro banal de Pico de seus editores de Roma e de Ingolstadt (com o qual esteve em relaccedilatildeo direta) dos inuacutemeros copistas e dos editores dos seacuteculos
76
referecircncia direta ao tema122 Embora a uacuteltima seacuterie cabaliacutestica ldquosegundo a opiniatildeo de
Picordquo apresente um grande nuacutemero de proposiccedilotildees teoloacutegicas que pretendem
confirmar as verdades do Cristianismo ndash originalidade da qual Pico se orgulhava em
razatildeo do triunfo da aplicaccedilatildeo de seu meacutetodo cabaliacutestico ndash123 o conjunto formado
pelas duas seacuteries referentes aos misteacuterios hebraicos contempla a maior incidecircncia de
aforismos de conteuacutedo obscuro ou esoteacuterico alguns apenas acessiacuteveis ao ciacuterculo dos
cabalistas
O Grande Aquilo eacute de maneira geral a fonte de todas as almas
Outros dias satildeo de algumas mas natildeo de todas124
(Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum
hebraeorum 6)
Na Cabala quem penetrar o misteacuterio das Portas da Inteligecircncia
conheceraacute o misteacuterio do Grande Jubileu125 (idem 13)
Aquele que na sequecircncia coordenada da direita compreender a
propriedade do meridional tambeacutem saberaacute a razatildeo de cada
partida de Abraatildeo ir sempre em direccedilatildeo ao Austro126 (idem 14)
Quem penetrar o caraacuteter proacuteprio de hosec e laila que eacute o
segredo da escuridatildeo saberaacute o porquecirc de os maus democircnios
serem mais perigosos agrave noite do que durante o dia127 (idem 21)
As trecircs uacuteltimas seacuteries de teses contemplam a existecircncia ndash e sugerem a
transcendecircncia por parte do homem ndash do mundo fenomecircnico natural do
sucessivos A hipoacutetese do comentador eacute que Pico tenha evitado propositalmente de escrever o nuacutemero 72 por se tratar de cifra sagrada pertencente agrave versatildeo mais ampla do ldquonome expandidordquo de Deus de 72 letras (conforme Ecircxodo 346-7) habitualmente impronunciaacutevel e que apenas o Gran Sacerdote teria o direito de proferir uma vez ao ano
122 Sheila RABIN apresenta uma completa especificaccedilatildeo das teses que mesclam conteuacutedos cabaliacutesticos caso da conclusio 2 segundo Temistio da nr 10 segundo Hermes e das referecircncias presentes nas teses matemaacuteticas entre outras (Pico on Magic and Astrology in Pico della Mirandola New Essays 2008 p 157)
123 Efetivamente atraveacutes de alguns meacutetodos como a gematria Pico consegue comprovar intrigantes relaccedilotildees entre os misteacuterios hebreus e a Teologia cristatilde Essas questotildees seratildeo verificadas nos capiacutetulos V e VI
124 Concl (I) VIII 6 (p56) ldquoMagnus Aquilo fons est animarum omnium simpliciter sicut alii Dies quarundam et non omniumrdquo Para explicar tal tese algumas interpretaccedilotildees foram tentadas Os ldquodiasrdquo da criaccedilatildeo satildeo concernentes a diferentes Sefirot (concepccedilatildeo a ser verificada adiante) O ldquoGrande Aquilordquo segundo FARMER representa um siacutembolo cabaliacutestico da quinta sefiraacute para FORNACIARI da quarta para WIRSZUBSKI (apud Farmer) o sentido eacute outro natildeo elucidado por Farmer
125 Concl (I) VIII 13 (p56) ldquoQui nouerit in Cabala mysterium portarum intelligentiae cognoscet mysterium Magni Iobelei rdquo
126 Concl (I) VIII 14 (p56) ldquoQui nouerit proprietatem meridionalem in dextrali coordinatione sciet cur omnis processio Abraam semper fit versus austrumrdquo Farmer procura esclarecer parte da tese informando que a ldquosequecircncia da direitardquo eacute uma distinccedilatildeo da emanaccedilatildeo das verdadeiras Sefirot da maleacutefica ldquosequecircncia da esquerdardquo que a reflete (np351) Wirszubski (1989 pp 32-33) cita uma longa passagem da traduccedilatildeo de Mitridate da Portae lustitiae de Gicatilla para tentar mostrar que ldquosequecircncia da direitardquo eacute simplesmente um siacutembolo para a quarta sefiraacute Farmer parece natildeo concordar com tal versatildeo pois afirma que a linguagem de Pico difere radicalmente da encontrada na traduccedilatildeo de Mitridate (que usa a palavra dextra mas nada diz sobre a coordenaccedilatildeo da ldquosequecircncia da direitardquo)
127 Concl (I) VIII 21 (p58) ldquoQui sciet proprietatem hosec et laila quae est secretum tenebrarum scit cur mali daemones plus in nocte quem in die nocentrdquo A ediccedilatildeo de Stephan Farmer (1998) suprime a expressatildeo ldquohosec et lailardquo
77
supramundano intermeacutedio e dos planos inteligiacuteveis bem como de uma dimensatildeo
epistemoloacutegica que permeia todos os planos A velada iniciaccedilatildeo sugerida por Pico tem
por principal intento alccedilar o homem ao entendimento do iacutentimo sistema de
correspondecircncias que se distribui entre os diversos niacuteveis O conhecimento do mundo
sublunar pode ser alcanccedilado pela Magia do celeste pela Teurgia oacuterfica e o acesso ao
Inteligiacutevel pela intermediaccedilatildeo da Cabala Sob esse prisma compreende-se que a
unificaccedilatildeo dos mundos eacute o objetivo final de toda a operaccedilatildeo seja maacutegica teuacutergica ou
cabaliacutestica
Natildeo existe nem no ceacuteu nem na terra virtude em estado
potencial e separada que o mago natildeo possa levar ao estado atual
e unificar128 (Conclusio Magica 5)
Entendendo o mundo como um complexo uacutenico articulado desde o mundano
aos sobremundanos o operador (ou iniciado) torna seu uacutenico escopo o aprendizado e
atuaccedilatildeo sobre os reinos que conjuga com seu proacuteprio intelecto elevando-se do saber
natural ao teoloacutegico atraveacutes de vaacuterios graus e meacutetodos O saacutebio eacute pois um
alquimista para quem ldquoa arte maacutegica natildeo adveacutem que por uniatildeo e atuaccedilatildeo de coisas
que na natureza existem em estado de potecircncia e separaccedilatildeordquo129 o ato de conjugar o
mundo ldquomaritare mundumrdquo torna-se assim sua meta preciacutepua e terminal130
Operar magia eacute simplesmente casar o mundo131
(Conclusio Magica 13)
Entender a natureza e ultrapassaacute-la elevando-se ateacute a mente divina esse eacute o
tema principal daquele texto escrito para servir de ldquointroduccedilatildeordquo agraves Teses Qualquer
das ferramentas operadas pelo homem para obter conhecimento soacute eacute digna se tiver
como finalidade sua elevaccedilatildeo Pois como lembra Pico ldquoa forma de todo o poder
maacutegico tem sua raiz na alma humanardquo mas somente ldquonaquela alma que se mostra
permanente e natildeo cadenterdquo132
A mensagem piquiana concernente ao conteuacutedo das Conclusiones de forma
particular no que se refere agraves uacuteltimas seacuteries natildeo pode ser adequadamente
elucidada133 Todavia o caminho para desvendar a occulta concatenatio mencionada
na Apologia pode ser trilhado a partir da constataccedilatildeo e subsequente averiguaccedilatildeo de
duas veementes marcas presentes dentre as novecentas teses ndash e que aqui foram
indicadas a primeira encontra-se na repeticcedilatildeo de temas relacionados agrave Cosmologia agrave
128 Concl (II) IX 5 (p118) ldquoNulla est virtus in coelo et in terra seminaliter et separata quam et actuare et
unire magus non possitrdquo 129 Concl (II) IX 11 (p118) ldquoMirabilia artis magicae non sunt nisi per unionem et actuacionem eorum quae
seminaliter et separate sunt in naturardquo 130 PICO Apologia pp 171-172 Veja-se discussatildeo aprofundada sobre o tema de ldquomaritarerdquo o mundo em Franco
BACCHELLI (2001 pp 72-73) 131 Concl (II) IX 13 (p118) ldquoMagicam operari non est aliud quam maritare mundumrdquo FARMER bem observa
que ldquoo homo-magus eacute um sacerdote coacutesmicordquo (p498) 132 Concl (II) IX 12 (p118) ldquoForma totius magicae uirtutis est ab anima hominis stante et non cadenterdquo 133 Segundo admite Paolo FORNACIARI tradutor e comentador das Conclusiones cabalisticae ldquonatildeo estamos
ainda em grau de esclarecer plenamente no estado atual dos estudos o significado da mensagem piquianardquo (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p16)
78
Alma e agrave Teologia difusos entre as seacuteries da inteira obra a segunda pode ser
depreendida das correspondecircncias encontradas entre as seacuteries finais das
Conclusiones que se relacionam agravequeles trecircs temas Veremos no proacuteximo Capiacutetulo
que tais temas estatildeo expostos de forma mais evidenciada na Oratio De Hominis
Dignitate concorrendo para a construccedilatildeo do homem piquiano Ademais as
constataccedilotildees levantadas acrescem algumas peccedilas ao tema principal a ser sintetizado
nas paacuteginas finais Resta pontuar que o debate no qual Pico discutiria suas Teses
esclarecendo quem sabe muitos de seus obscuros temas natildeo aconteceu Muitas
dentre aquelas doutrinas que natildeo poderiam ter seus conteuacutedos divulgados
continuaram com seu segredo resguardado
79
CAPIacuteTULO IV
A ORATIO E SEUS ELEMENTOS ASCENSIONAIS
A Oratio Ioannis Pici Mirandulani Concordiae Comitis134 foi considerada por
muitos a obra mais importante da literatura filosoacutefica do primeiro Renascimento135
Escrita para ser o discurso introdutoacuterio agraves Conclusiones a Oratio nunca foi
pronunciada e tampouco nominada foram seus editores e leitores a intitulaacute-la
ldquo(Oratio) De Hominis Dignitaterdquo (Discurso) Sobre a Dignidade do Homem nome
que apareceraacute apenas em sua ediccedilatildeo de 1557 Escrita em etapas que se alternaram
com a redaccedilatildeo das proacuteprias Conclusiones a Oratio foi definitivamente concluiacuteda
somente apoacutes a finalizaccedilatildeo das novecentas teses e quando algumas dentre elas jaacute
haviam sido submetidas a criacuteticas
Ultrapassando os limites do que seria uma simples introduccedilatildeo a obra natildeo
apenas esclarece a intenccedilatildeo pretendida com as Conclusiones como apresenta o
esboccedilo sinteacutetico daquele que seria o inteiro projeto de vida de seu autor razatildeo que
levou Burckhardt a chamaacute-la de ldquosuacutemulardquo do pensamento piquiano136 Com efeito o
breve texto guarda os principais motivos do pensamento de Pico a saber a
pluralidade das fontes a insistecircncia na conciliaccedilatildeo entre elementos considerados
usualmente diacutespares a presenccedila de elementos entatildeo considerados conservadores
tomados da tradiccedilatildeo medieval postos lado-a-lado com as frescas concepccedilotildees
humanistas da temaacutetica da dignidade a inovadora apresentaccedilatildeo da Cabala judaica A
Oratio natildeo apenas se ergue acima da ocasiatildeo para a qual foi criada como se apresenta
qual verdadeira declaraccedilatildeo filosoacutefica por si soacute razatildeo que a levou a ganhar fama
134 ldquoDiscurso de Giovanni Pico Mirandolano Conde de Concoacuterdiardquo Para o texto integral da Oratio veja-se o De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari trad Eugenio GARIN Vallecchi 1942 pp101-
165 O texto encontra-se tambeacutem disponiacutevel no site ldquoPico Projectrdquo convecircnio da Universidade de Bologna com a Brown University Haacute duas principais redaccedilotildees da Oratio a chamada Palatina copiada pelo humanista contemporacircneo de Pico Giovanni Nesi descoberta por Eugenio Garin e contida no codex Palatino 885 (ex 777) na Biblioteca Nazionale de Firenze (cf Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p56) e aquela entregue para ediccedilatildeo quase dois anos apoacutes a morte de Pico pelo sobrinho Gianfrancesco Haacute algumas (poucas) diferenccedilas entre as duas redaccedilotildees como o elogio de reconhecimento a Flavio Mitridate presente na primeira e que natildeo aparece em outras ediccedilotildees (cf Paolo Edoardo FORNACIARI Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione 2010 p LXXIX) NOTA As traduccedilotildees aqui apresentadas das citaccedilotildees foram feitas a partir do texto latino traduzido para o italiano na ediccedilatildeo acima mencionada de Eugenio Garin considerada pelos especialistas como bastante fiel ao pensamento de Pico Garin utilizou-se especialmente da ediccedilatildeo da De Hominis Dignitate editada em Basileacuteia em 1537 Foram tambeacutem utilizadas como paracircmetros as traduccedilotildees para o portuguecircs de Maria de Lurdes Sirgado Ganho e de Luiz Feracine ndash sendo que a autora portuguesa faz algumas omissotildees pouco relevantes em sua traduccedilatildeo Para os dados completos das vaacuterias ediccedilotildees veja-se ldquoPremessa ai Testirdquo na traduccedilatildeo das Conclusiones Nongentae de Albano Biondi 1995 pp3-5
135 Veja-se Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano Meacutexico 1970 p 91 Tambeacutem Eugenio Garin e Ernst Cassirer consideram o Discurso como a obra mais famosa do lsquo400 Em outra obra Concetti Rinascimentali dellrsquouomo ed altri saggi (1978 p132) reflete KRISTELLER que o Discurso conteacutem os fermentos mais patentes que caracterizam a eacutepoca do Renascimento Pier Cesare BORI considera que essas satildeo as paacuteginas ldquomais ceacutelebres do Humanismo italianordquo (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564) Para Mariateresa BROCCHIERI trata-se do ldquocoroamento do trabalho de Picordquo em razatildeo de sua singular qualidade (Pico della Mirandola 2011 p78)
136 Jacob BURCKHARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1927 vol II p95
80
proacutepria e a se firmar de forma independente das Teses ndash a ponto de Eugenio Garin
intitulaacute-la ldquoManifesto do Renascimentordquo137 expressatildeo muito bem aceita A Oratio eacute
essencialmente uma reflexatildeo sobre o homem construiacuteda a partir de uma enredada
estrutura que se apoia sobre um conjunto de doutrinas pertencentes a diferentes
periacuteodos da Histoacuteria do Pensamento
As duas principais linhas interpretativas concernentes ao todo da obra
piquiana podem ser tomadas como modelos de interpretaccedilatildeo de sua parte menor a
Oratio visto que nesta se encontram presentes vaacuterios elementos que se repetiratildeo nas
obras posteriores Uma tendecircncia dominante seguiu o influxo iniciado por Ernst
Cassirer e Giovanni Gentile confirmado anos depois por Eugenio Garin e Paul Oskar
Kristeller que sustenta as conexotildees entre Pico e a cultura maacutegica astroloacutegica
hermeacutetica e cabaliacutestica Outra tendecircncia protagonizada por Henri De Lubac em
seu Pic de la Mirandole138 afirmou sua continuidade com a tradiccedilatildeo teoloacutegica
fundamentada em uma heranccedila biacuteblica-judaica que perpassa os primeiros Padres e
alcanccedila a teologia escolaacutestica No entanto quaisquer diferenccedilas de perspectiva que
sigam tais orientaccedilotildees podem ser prontamente dirimidas quando unificadas sob a
aboacutebada da Concoacuterdia as linhas da obra mostram de forma bastante clara a
intenccedilatildeo de harmonizar entre si natildeo apenas doutrinas teoloacutegicas e filosoacuteficas
ocidentais como tambeacutem de harmonizaacute-las com o pensamento de outras culturas nos
moldes que o autor gostaria que houvesse em sua almejada pax filosoacutefica139
Entre os campos filosoacuteficos e teoloacutegicos associados a legados ocidentais e
orientais dois significativos temas podem ser observados no ldquomanifestordquo e tecircm sido
ressaltados pelos comentadores de forma quase unacircnime (a) a questatildeo da Dignidade
ndash que contempla o sub-tema da liberdade ndash e (b) a questatildeo da Concoacuterdia ambos
verificados a seguir com a finalidade de natildeo ocultar do leitor as interpretaccedilotildees mais
consensuais Seraacute proposto um terceiro tema parte preciacutepua deste Capiacutetulo presente
em vaacuterios momentos da obra e que natildeo tem recebido o devido destaque dos
comentadores (c) o percurso ascensional A aproximaccedilatildeo direta ao texto piquiano
mostra-se a melhor forma para constatar a presenccedila do elemento asceacutetico qual fio
condutor a unir as diferentes doutrinas trazidas no percurso histoacuterico percorrido por
Pico
137 GARIN ldquoIntroduzionerdquo a De Hominis Dignitate Heptaplus etc 1942 p23 138 Em nossa bibliografia utilizou-se a traduccedilatildeo italiana de Henri De LUBAC realizada por GColombo Pico
della Mirandola lrsquoalba incompiuta del Rinascimento 2016 139 Pier Cesare BORI apresenta uma anaacutelise pormenorizada das duas formas interpretativas citadas
segmentando de um lado as passagens biacuteblicas-teoloacutegicas da De Hominis Dignitate e de outro as maacutegicas etc (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996) Observa o autor que dentre as tendecircncias interpretativas dominantes destaca-se a originalidade de H Reinhardt em seu Freiheit zu Gott Der Grundgedanke des Systematikers Giovanni Pico della Mirandola que aponta para o caraacuteter preacute-moderno do pensamento sistemaacutetico de Pico
81
1 O tema da Dignidade do homem
Embora a Oratio tenha passado agrave Histoacuteria da Filosofia como o manifesto
acerca da dignidade do homem muito em razatildeo do nome dado agrave sua publicaccedilatildeo
realizada no seacuteculo XVI o tema da dignidade natildeo foi originalidade de Pico e algumas
variaccedilotildees de seu significado pedem uma reflexatildeo
Durante o Humanismo renascentista o tema da dignidade tornou-se bastante
precioso e levou alguns pensadores a buscarem fundamentos a partir dos primeiros
Padres para rebater a supressatildeo da questatildeo ocorrida em certos periacuteodos da Idade
Meacutedia Pode-se dizer que a ideia da Queda de Adatildeo encerra como consequecircncia a
perda de posiccedilatildeo hieraacuterquica do homem que em alguns momentos literaacuterios foram
registrados como uma perda de valoraccedilatildeo da qualidade do proacuteprio homem140
Sobretudo no baixo Medievo natildeo poucos teoacutelogos foram tomados de certo
pessimismo metafiacutesico perante tal condiccedilatildeo Um exemplo emblemaacutetico da questatildeo foi
postulado por Lotharii Cardinalis o influente papa Inocecircncio III que no seacuteculo XIII
em De miseria humane conditionis afirmava que o homem eacute ldquoindigno produtor de
lecircndeas piolhos vermes urina e fezesrdquo Tal afirmaccedilatildeo apenas confirmava a de Pedro
Damiatildeo que no seacuteculo XI proclamava ser o homem ldquouma criatura vil massa de
podridatildeo poacute e cinzardquo141 Diante de tal desencanto poucos seacuteculos mais tarde alguns
humanistas sentiram-se levados a responder a Inocecircncio III buscando
fundamentaccedilatildeo especialmente em Lactacircncio e Agostinho que haviam promovido o
reconhecimento do valor do homem apoiados no princiacutepio de sua criaccedilatildeo agrave imagem
de Deus142
O tratado inaugural acerca da dignidade humana primeira resposta textual a
Inocecircncio III surge com Bartolomeo Fazio que o escreve em contexto religioso e sob
inspiraccedilatildeo monaacutestica143 Seu contemporacircneo Lorenzo Valla em De Libero Arbitrio
de 1436 acresce elementos agrave reflexatildeo ao promover a valorizaccedilatildeo do livre arbiacutetrio
voltado sobretudo para o domiacutenio que o homem pode ter das forccedilas da natureza
introduzindo assim a discussatildeo teoreacutetica renascentista acerca da liberdade e
140 A ideia de miserabilidade humana remonta ateacute onde se sabe a Moiseacutes o homem embora criado agrave imagem
de Deus traz em si ldquoo jumento o reacuteptil e a bestardquo (Henri de LUBAC Pico della Mirandola LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento 2016) O tema relacionado agrave concepccedilatildeo da Queda e as consequentes formas de ldquolerrdquo o homem em uma estrutura hieraacuterquica teoloacutegica permite a elaboraccedilatildeo de uma tese por si soacute O caraacuteter ldquogeneacutericordquo de nossa abordagem visa salientar algumas interpretaccedilotildees mais significativas e pontuais da questatildeo
141 Petrus Damianus ou mais tarde San Pier Damiani foi uma autoridade bastante considerada no preacute-Humanismo Dante situou o cardeal reformador que seria alccedilado a Doutor da Igreja em 1823 num dos mais altos ciacuterculos do Paraiacuteso como precursor de Satildeo Francisco de Assis A citaccedilatildeo encontra-se em NUNES 1978 p 64 apud Antonio VALVERDE ldquoAportes a Oratio de Hominis Dignitate de Pico della Mirandolardquo in Revista de Filosofia Aurora v21 n29 2009 p464
142 Em relaccedilatildeo agrave valoraccedilatildeo do homem o influxo de Lactacircncio e Agostinho se manteve ateacute boa parte da Primeira Idade Meacutedia Algumas obras de Agostinho que abordam o tema satildeo De Doctrina Christiana e as Confissotildees Com relaccedilatildeo a tal influxo haacute que se observar que o valor do homem estava relacionado com sua criaccedilatildeo agrave imagem de Deus sendo sua salvaccedilatildeo advinda da redenccedilatildeo em Cristo O movimento humanista comeccedila de forma embrionaacuteria a vislumbrar ndash e postular ndash a valoraccedilatildeo do homem em razatildeo de sua liberdade ligada agrave proacutepria responsabilidade ndash o que levaria a uma concepccedilatildeo de salvaccedilatildeo relacionada agraves suas escolhas
143 O historiador Bartolomeo Fazio foi levado a escrever por certo monge beneditino que precisava de uma complementaccedilatildeo para o De miseria humane conditionis de Inocecircncio III Para maiores detalhes acerca de Fazio consultar Jacob BURCKHARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1902
82
necessidade ndash e dando o passo inicial para um longo processo de ruptura entre Feacute e
Filosofia144 Quase duas deacutecadas mais tarde Giannozzo Manetti amplia a questatildeo
com seu tratado De Dignitate et Excellentia Hominis escrito em 1452 no qual refuta
ponto a ponto o profundo pessimismo expresso por Inocecircncio III sobre a miseacuteria
humana estabelecendo o mundo intelectual do vir-a-ser oposto ao mundo natural
do que meramente eacute145 Manetti retoma ainda na mesma obra a questatildeo da
soberania do homem que havia sido lanccedilada por Valla ideia de cunho biacuteblico
expressa no Gecircnesis 2 (representada pela faculdade dada ao homem de atribuir
nomes) que seraacute mais tarde reafirmada por Marsilio Ficino e Pietro Pomponazzi146
Assim que embora o Discurso de Pico tenha sido quase unanimemente
celebrado em funccedilatildeo de certo entendimento ao redor da questatildeo da dignidade
humana fato eacute que o tema foi amplamente explorado bem antes do advento do
Mirandolano tendo continuado em discussatildeo nos seacuteculos XVI e XVII147 Contudo e
apesar de preservar pouca conexatildeo orgacircnica com o humanismo de sua eacutepoca o tema
da dignidade apresenta relevacircncia na obra de Pico natildeo obstante se faccedilam uacuteteis uma
ressalva e algumas distinccedilotildees entre seu desenvolvimento e o de seus antecessores
A ressalva situa-se no emprego e entendimento do termo ldquodignidaderdquo que
devido agraves variaccedilotildees sofridas ao longo da histoacuteria pode ter suscitado interpretaccedilotildees
tantas vezes equivocadas O tiacutetulo De Hominis Dignitate como foi visto natildeo foi obra
de Pico mas escolha poacutestuma O Autor ademais utiliza a palavra ldquodignidaderdquo apenas
uma vez em todo o seu Discurso ndash e natildeo para qualificar o homem148 No decorrer dos
seacuteculos o termo tem sido utilizado em grande parte das vezes como sinocircnimo de
virtude ou hombridade tendo sido essa sua principal acepccedilatildeo desde alguns escritos
da Antiguidade Entretanto no seacuteculo VI Boeacutecio deu novo rumo ao conceito de
dignitas ajudando a dirimir a ideia tradicional romana que dava agrave palavra a
envergadura de honradez e respeitabilidade que pressupunha a virtude modificando
a concepccedilatildeo trazida pelas leituras de Ciacutecero de considerar a honra como
144 Ernst CASSIRER Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1977 pp 131-132 145 Sobre o historiador Giannozzo Manetti veja-se BURCKHARDT 1991 p 170-179 LUBAC Pico della
Mirandola-LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento 2016 pp 247-259 Acerca do conteuacutedo de Manetti comenta CASSIRER que ldquosomente no interior do vir-a-ser o espiacuterito do homem encontraria sua morada e daria provas de sua dignidade e liberdaderdquo (Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1977 p 135 Para maiores detalhes sobre a questatildeo veja-se ainda Giovanni GENTILE Giordano Bruno e il pensiero del Rinascimento 1991 p66
146 Na ideia de soberania expressa por Ficino GENTILE aponta para a origem do ldquoregnum hominisrdquo (opcit p 66) Pomponazzi trata do tema em sua obra De incantationibus de 1520 Para outros detalhes veja-se GARIN Lo Zodiaco della Vita 2007 p116
147 Para toda a questatildeo veja-se em Antocircnio VALVERDE o toacutepico ldquoConcepccedilotildees distintas de dignidade humana da Antiguidade ao Renascimentordquo (Aportes a Oratio de Hominis Dignitate 2009) Ainda GARIN Lrsquoumanesimo Italiano 2008 Note-se que outros importantes autores aleacutem dos citados escreveram sobre o tema da dignidade como Petrarca (Scipio Africanus) Coluccio Salutati (De Herculegrave eiusque laboribus) Poggio Bracciolini (De Nobilitate) e Landino (De nobilitate animae) entre outros No seacuteculo XVI o tema da dignidade humana passa por forte criacutetica nas obras dos reformadores Lutero e Calvino e jaacute no XVII eacute retomado pelos platocircnicos de Cambridge
148 PICO Oratio p123 ldquo[]natildeo soacute os misteacuterios mosaicos ou os cristatildeos mas tambeacutem a teologia dos antigos nos mostra o valor e a dignidade das artes liberais que estou a discutirrdquo (ldquoVerum enimvero nec Mosaica tantum aut Christiana mysteria sed priscorum quoque teologia harum de quibus disputaturus accessi liberalium artium et emolumenta nobis et dignitatem ostenditrdquo)
83
manifestaccedilatildeo da dignidade149 Em seu De consolatione Philosophiae o termo
dignitas assume uma caracteriacutestica neutra perdendo a valecircncia positiva que lhe era
atribuiacuteda ateacute entatildeo (honor et dignitates non sunt summum bonum)150 Mais tarde jaacute
durante a Idade Meacutedia e a partir dos rastros de Boeacutecio a dignitas passa a ser
utilizada na terminologia teoloacutegico-filosoacutefica sob o significado de princiacutepio filosoacutefico
geral ou axioma postulado151 Por fim aquela que seria uma quarta acepccedilatildeo situa a
dignitas na especiacutefica categoria das hierarquias marcando assim uma posiccedilatildeo
dentro de um sistema hieraacuterquico Esse eacute o sentido que parece ser melhor extraiacutedo do
texto piquiano dentro de um contexto cosmoloacutegico que contempla uma seacuterie
ordenada de graus e dignidades ndash portanto de valoraccedilatildeo neutra ndash onde o homem eacute
colocado graccedilas a suas intriacutensecas caracteriacutesticas152
Quanto agraves principais dessemelhanccedilas observadas na reflexatildeo sobre o homem
realizada na Oratio em comparaccedilatildeo aos conteuacutedos verificados em obras de
humanistas anteriores chamam a atenccedilatildeo alguns pontos
a) As contribuiccedilotildees que os filoacutesofos humanistas deram agrave questatildeo da dignidade
ndash em se assumindo o entendimento que daacute ao termo a valecircncia positiva de virtude ndash
embora sem duacutevida dotadas de caracteriacutesticas que as distinguem entre si estiveram
voltadas em linhas gerais para a capacidade de utilizaccedilatildeo da razatildeo em acircmbito da
esfera civil ou do uso de uma potencial soberania sobre os reinos inferiores Sob tal
foco o homem era dignificado atraveacutes de valores como o respeito ao proacuteximo o
princiacutepio do dever e a busca pela felicidade Esse foi o caso da consistente reflexatildeo de
Giannozzo Manetti voltada sobretudo agrave questatildeo da atividade humana em termos
morais153 Tambeacutem para Coluccio Salutati e seu disciacutepulo Leonardo Bruni a perfeiccedilatildeo
moral do homem se traduzia de forma perfeita no ideal da vida ciacutevica Lorenzo Valla
por sua vez natildeo apenas se empenhou para afirmar a noccedilatildeo de soberania do homem
sobre a natureza anteriormente mencionada como valorizou a vida mundana em
todos os seus aspectos contra qualquer negaccedilatildeo asceacutetica Em uma famosa polecircmica
antiestoacuteica defendia que mesmo na natureza e na carne pode ser reconhecida a obra
de Deus154 A anaacutelise de Pico embora atuando no cenaacuterio antropoloacutegico que ocupava
espaccedilo cada vez maior dentro dos studia humanitatis acrescenta ao problema da
149 A fundamentaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo estaacute desenvolvida na obra de Mette LEBECH On the Problem of Human
Dignity A Hermeneutical and Phenomenological Investigation Wurzburg 2009 sobretudo p 62 150 BOEacuteCIO A Consolaccedilatildeo da Filosofia III 151 Veja-se Tomaacutes de AQUINO In Met III 5 390 VICO em Scienza Nuova manteacutem o uso de dignitas em seu
significado de ldquoaxiomardquo na parte em que trata ldquodos Elementosrdquo Essa utilizaccedilatildeo continuou ainda na Idade Moderna veja-se Galilei na passagem ldquoa terra natildeo pode separar-se de sua natureza de trecircs movimentos diversos ou seria necessaacuterio rejeitar muitas das dignidades manifestasrdquo (Cf Lettera a Francesco Ingoli in Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei (org) FAVARO 1933 pp 509-61)
152 Enquanto na Oratio Pico utiliza apenas uma vez o termo ldquodignidaderdquo (e natildeo no contexto de qualificaccedilatildeo do homem) no Heptaplus Pico falaraacute diretamente de dignidade do homem como posiccedilatildeo especial central dentro de uma escala ldquoNoacutes procuramos no homem uma nota que lhe seja peculiar com a qual se explique a dignidade que lhe eacute proacutepriardquo (Heptaplus V 6 ed 1942 p303) E ainda ldquoDevemos nos guardar em natildeo apreciar o grau de dignidade em que fomos colocadosrdquo (V 7 p307)
153 Cf De Dignitate et Excellentia Hominis Ver o toacutepico concernente a Manetti em GARIN Lrsquoumanesimo Italiano
154 GARIN LUmanesimo italiano 2008 respectivamente pp 69 e 62
84
filosofia moral uma dimensatildeo quase que estritamente metafiacutesica155 Essa distinccedilatildeo eacute
evidenciada logo na primeira paacutegina da Oratio em que o autor demonstra
insatisfaccedilatildeo com os enaltecimentos ateacute entatildeo proferidos aos atributos da natureza
humana certamente referindo-se agraves natildeo poucas obras anteriores escritas em seu
seacuteculo Entre os argumentos ldquoutilizados por muitosrdquo acerca da grandeza humana
Pico destaca o quase unacircnime elogio feito ao papel do homem qual ldquoviacutenculo das
criaturas superiores e inferioresrdquo ou ldquointeacuterprete da natureza em virtude da agudeza de
seus sentidos do poder indagador da razatildeo e da luz de seu intelectordquo Essas
qualidades no entanto natildeo o satisfazem e levam-no a um questionamento que natildeo
apenas sinaliza a criacutetica a seus antecessores como lhe permite ingressar em seu
argumento metafiacutesico
Grandes coisas estas sem duacutevida mas natildeo as mais importantes
isto eacute natildeo tais que consintam a reivindicaccedilatildeo do privileacutegio de
uma admiraccedilatildeo ilimitada Porque de fato natildeo deveremos noacutes
admirar mais os anjos e os beatiacutessimos coros celestes156
b) A pergunta introduz a reflexatildeo de Pico acerca da natureza indefinida do
homem nosso segundo ponto distintivo Em elaborado discurso o autor postula
atraveacutes de sua resposta a natureza ontologicamente indeterminada do homem que o
distingue tanto do mundo natural quanto do mundo angeacutelico abrind0-lhe a
possibilidade de se automodelar pelo uso que faz de sua faculdade de escolha Tal
natureza indeterminada natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo no homem mas ao contraacuterio um
privileacutegio que lhe permite natildeo ser constrangido por nenhuma limitaccedilatildeo e que lhe daacute o
atributo de em conformidade com sua vontade degenerar ou se regenerar A
concepccedilatildeo se erige atraveacutes das palavras proferidas ao primeiro homem pelo ldquodeus-
artiacuteficerdquo ndash personagem do Mito da Criaccedilatildeo piquiano
lsquoNatildeo te fizemos nem celeste nem terreno nem mortal nem
imortal a fim de que tu aacuterbitro e soberano artiacutefice de ti mesmo
te plasmasses e te moldasses na forma que tivesses
155 A filosofia moral natildeo eacute irrelevante para Pico ao contraacuterio eacute um estaacutegio importante de evoluccedilatildeo da posiccedilatildeo
humana como seraacute visto Mas natildeo desfruta da mesma importacircncia que para seus colegas Coluccio Salutati por exemplo em discurso contra a filosofia teoacuterica-metafiacutesica e a favor da moral escreveria em seu De nobilitate legum et medicinae ldquoMuito me admira afirmares que a sabedoria consiste na contemplaccedilatildeo cuja serva seria a prudecircncia havendo entre elas a mesma relaccedilatildeo que haacute entre o administrador e o senhor e dizeres que a sapiecircncia eacute a maior das virtudes pertencente agrave melhor parte da alma que eacute do intelecto e que a felicidade consiste em agir conforme a sapiecircncia E acrescentas que sendo a metafiacutesica a uacutenica ciecircncia livre o filoacutesofo quer que a especulaccedilatildeo preceda em tudo a accedilatildeo Mas a verdadeira sapiecircncia natildeo consiste como crecircs na especulaccedilatildeo pura Se tirares a prudecircncia natildeo acharaacutes nem sapiente nem sapiecircncia Chamarias porventura de sapiente a quem houvesse co-nhecido coisas celestes e divinas sem que houvesse provido a si mesmo sem que houvesse sido uacutetil aos amigos agrave famiacutelia aos parentes e agrave paacutetriardquo No mesmo espiacuterito Leonardo Bruni em Isagogicon moralis disciplinae (1424) afirmava a superioridade da filosofia moral sobre a filosofia teoacuterica Esse mostrou-se um vieacutes caracteriacutestico de muitos humanistas o de que soacute a filosofia moral seria ativa Veja-se ampla discussatildeo em GARIN LUmanesimo italiano 2008
156 PICO Oratio p102 ldquo(Horum dictorum rationem cogitanti mihi non satis illa faciebant quae multa de humanae naturae praestantia afferuntur a multis esse hominem creaturarum internuntium superis familiarem regem inferiorum sensuum perspicacia rationis indagine intellegentiae lumine naturae interpretem stabilis aevi et fluxi temporis interstitium er ndash quod Persae dicunt ndash mundi copulam immo hymenaeum ab angelis teste Davide paulo deminutum) Magna haec quidem sed non principalia id est quae summae admirationis privilegium sibi iure vindicent Cur enim non ipsos angelos er beatissimos caeli choros magis admiremurrdquo
85
seguramente escolhido Poderaacutes degenerar nas coisas inferiores
que satildeo os brutos poderaacutes regenerar-te ateacute agraves realidades
superiores que satildeo divinas por decisatildeo da tua vontadersquo157
A passagem que se estabelece como a mais celebrada da inteira obra piquiana
ndash e sobre a qual recai a parte majoritaacuteria das leituras que afirmaram a dignificaccedilatildeo do
homem ndash apresenta um problema de ordem protoloacutegica que concerne agrave origem
teoloacutegica do homem Pico natildeo reafirma a dignidade do homem com base em sua
semelhanccedila em Deus sem prejuiacutezo de sua feacute a originalidade158 de seu homem
consiste conforme suas palavras em natildeo ter uma natureza predefinida mas em ser
ldquoopus indiscretae imaginisrdquo159 A natildeo-determinaccedilatildeo do homem mais do que uma
ausecircncia se daacute em razatildeo de uma demasia jaacute que nele encontram-se todas as
sementes situaccedilatildeo que natildeo ocorre com as bestas (que ldquotrazem consigo tudo [e
apenas] aquilo que depois teratildeordquo) e tampouco com os espiacuteritos superiores (que
ldquodesde o princiacutepio ou pouco depois foram o que seratildeo eternamenterdquo)160
c) O terceiro ponto de sutil diferenccedila em relaccedilatildeo ao anterior apresenta uma
distinccedilatildeo na posiccedilatildeo hieraacuterquica do homem dentro do universo que ocupa ndash um
problema que chamariacuteamos de ordem cosmoloacutegica Embora sem negar a posiccedilatildeo
central do homem aceita na teologia medieval (ldquoo artiacutefice tomou o homem de
natureza indefinida e colocou-o no meio do mundordquo)161 Pico distancia-se
conscientemente da concepccedilatildeo hieraacuterquica mais usual conferindo ao homem um
novo status no universo Ele havia aprendido com seus principais mestres
escolaacutesticos que o lugar do homem estava determinado dentro da ordenaccedilatildeo
universal encontrando-se entre os reinos elementar celestial e angeacutelico Em sua
cosmovisatildeo o homem eacute retirado da fixidez escalar dos mundos ao ser-lhe
apresentada a possibilidade de ser e participar em todos os reinos No ponto (b)
acima trata-se de uma questatildeo de ldquosubstacircnciardquo jaacute que o homem carrega sementes
que os seres dos demais graus natildeo possuem Agora se trata de uma questatildeo de
mobilidade em razatildeo de seu proacuteprio arbiacutetrio Partindo de sua posiccedilatildeo central o
homem pode descer aos niacuteveis subumanos ou se elevar a niacuteveis supra-humanos
157 Oratio p 106 ldquoNec te caelestem neque terrenum neque mortalem neque immortalem fecimus ut tui ipsius
quasi arbitrarius honorariusque plastes er fictor in quam malueris tu te formam effingas Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerarirdquo
158 A concepccedilatildeo da natureza indeterminada do homem foi considerada e aceita como originalidade de Pico della Mirandola Fato certo eacute que tal originalidade se houver deve ser admitida no que concerne agrave tradiccedilatildeo teoloacutegica ocidental ndash entenda-se na Era Cristatilde Antes desse periacuteodo haacute registros de concepccedilotildees similares em outras tradiccedilotildees que natildeo apenas eram conhecidas por Pico como foram utilizadas de forma aberta na De Hominis Dignitate Veja-se mais no toacutepico ldquoO tema da Concoacuterdiardquo
159 ldquoObra de imagem indeterminadardquo Conforme a Oratio ldquoIgitur hominem accepit indiscretae opus imaginis atque in mundi positum meditulliordquo Provavelmente ao escrever que o homem eacute ldquoobra de imagem indeterminadardquo Pico natildeo pretendia contradizer qualquer noccedilatildeo teoloacutegica referente agrave complexa problemaacutetica da ldquoimagem-semelhanccedilardquo de Deus fazendo apenas um uso retoacuterico das palavras Essa talvez tenha sido a razatildeo de Garin ter optado por traduzir o trecho ldquoindiscretae imaginisrdquo por ldquonatureza indeterminadardquo ao inveacutes de ldquoimagem indeterminadardquo ldquoPerciograve [lrsquoottimo artefice] accolse lrsquo uomo come opera di natura indefinitardquo (ed 1942 pp104-105)
160 Oratio p106 ldquoBruta simulatque nascuntur id secum afferunt (ut ait Lucilius) e bulga matris quod possessura sunt Supremi spiritus aut ab initio aut paulo mox id fuerunt quod sunt futuri in perpetuas aeternitates Nascenti homini omnifaria semina et omnigenae vitae germina indidit paterrdquo
161 Oratio p106 ldquoMedium te mundi possuirdquo
86
condiccedilotildees que os elementos dos demais niacuteveis inclusos os anjos natildeo podem
experimentar
O tema da dignidade contempla ainda imbuiacutedo entre suas linhas um
importante desdobramento que concerne ao problema da liberdade do homem162 A
liberdade postulada por Pico natildeo se encontra pronta e soacute poderaacute ser adquirida
atraveacutes de constante exerciacutecio para sua efetivaccedilatildeo jaacute que a natureza humana abriga
vaacuterias formas de resistecircncia a tal efetivaccedilatildeo Uma mudanccedila de tocircnica que passa do
teor elogioso inicial para uma chamada de atenccedilatildeo em direccedilatildeo agraves fraquezas da
constituiccedilatildeo humana ndash com a subsequente prescriccedilatildeo do uso da liberdade como
soluccedilatildeo ndash pode ser observada nesse sentido quando se seguem as paacuteginas do
Discurso Ora pouco apoacutes afirmar que o homem pode ser tudo inclusive partiacutecipe da
vida angeacutelica Pico reflete que natildeo podemos atingir o modelo de vida dos Querubins
ldquonoacutes que somos carne e que temos o gosto das coisas terrenasrdquo Seraacute antes necessaacuterio
ldquodominar com a ciecircncia moral o iacutempeto das paixotildees dissipar a treva da razatildeo com a
dialeacutetica limpar a alma da ignoracircncia e do viacutecio para que as afecccedilotildees natildeo se
desencadeiem cegamente e tampouco a razatildeo imprudente algumas vezes delirerdquo163
Assim embora as primeiras paacuteginas do Discurso possam levar a qualificaacute-lo
como um tratado de otimismo em relaccedilatildeo ao homem o tom inicial de exaltaccedilatildeo (ldquooacute
suma e admiraacutevel felicidade do homem ao qual eacute concedido obter o que deseja ser
aquilo que querrdquo)164 eacute prontamente substituiacutedo pela constataccedilatildeo das dificuldades
ocasionadas por sua experiecircncia na mateacuteria seguida pela exortaccedilatildeo a assumir uma
responsabilidade eacutetica em relaccedilatildeo ao seu papel A argumentaccedilatildeo do tema se conclui
com a indicaccedilatildeo da utilizaccedilatildeo do livre-arbiacutetrio como meio de encetar sua necessaacuteria
transformaccedilatildeo Haacute pois nessa trajetoacuteria um pronunciado aspecto dialeacutetico165 na
medida em que Pico expotildee a necessidade do contiacutenuo exerciacutecio da razatildeo e de seu
poder indagador que o capacita a fazer escolhas Sob esse enfoque o problema
ontoloacutegico da natureza humana eacute colocado a posteriori nunca a priori diversamente
dos animais e anjos cuja natureza fixa natildeo pode ser modificada o homem pode de
acordo com suas escolhas transformar a proacutepria natureza
Finalmente haacute que se observar que tal possibilidade implica dois preceitos
por um lado essa ideia carrega uma exigecircncia aparentemente contraditoacuteria
162 A temaacutetica da liberdade presente no Discurso tem sido celebrada por comentadores ao longo dos uacuteltimos
seacuteculos Dentre os contemporacircneos por todos aqueles que seguiram os passos de Cassirer e Garin embora se verifiquem algumas poucas discordacircncias William Craven natildeo concorda com essa celebraccedilatildeo e Brian Copenhaver afirma que natildeo haacute na Oratio nada das noccedilotildees de liberdade criatividade e individualidade que lhe foram atribuiacutedas (acerca de Craven e Copenhaver veja-se Jonathan MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 n p 78)
163 PICO Oratio p113 A reflexatildeo acerca da condiccedilatildeo instaacutevel do homem se manteraacute em obras posteriores em sua uacuteltima obra Disputationes adversus Astrologiam Divinatricem Pico fala de ldquonoacutes homuacutenculosrdquo (ed Vallecchi 1952 p444) No Heptaplus aquilo que rendia o homem um ldquodivino camaleatildeordquo era tambeacutem aquilo que o caracterizava como uma ldquotoupeira cegardquo o seu ser perenemente colocado no veacutertice da incerteza suspenso entre a ldquosuma miseacuteriardquo e a ldquosuma felicidaderdquo capaz mais de amar a verdade do que de possuiacute-la (De Hominis Dignitate etc 1942 p339)
164 Oratio p106 ldquoO summam dei patris liberalitatem summam et admirandam hominis felicitatem cui datum id habere quod optat id esse quod velitrdquo
165 Veja-se a propoacutesito a reflexatildeo de SIRGADO GANHO (ldquoComentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitaterdquo 2001 pp26-28) acerca da dimensatildeo dialeacutetica eacutetica e metafiacutesica que podem ser reconhecidas na obra de Pico
87
porquanto o livre-arbiacutetrio deveraacute ser ativado para que ocorra a autotransformaccedilatildeo
condiccedilatildeo que instaurando uma conjuntura ciacuteclica aumentaraacute o grau de sua liberdade
e consequentemente o poder de se transformar Por outro lado percebe-se nessa
situaccedilatildeo uma condenaccedilatildeo do homem agrave liberdade jaacute que ele teraacute de escolher por si a
proacutepria condiccedilatildeo ndash tese notaacutevel para a eacutepoca Como explica o deus-artiacutefice
lsquoA natureza bem definida dos outros seres eacute refreada por leis por
noacutes prescritas Tu pelo contraacuterio natildeo constrangido por
nenhuma limitaccedilatildeo determina-la-aacutes para ti segundo o teu
arbiacutetriorsquo166
2 O tema da Concoacuterdia
As palavras iniciais que abrem o Discurso evidenciam a intenccedilatildeo de propor
uma filosofia conciliatoacuteria Dirigindo-se aos ldquopadri venerandirdquo (teoacutelogos e cardeais
para os quais satildeo apresentadas as justificativas) Pico dispotildee logo nas primeiras
linhas um autor da tradiccedilatildeo islacircmica acostado a outro da tradiccedilatildeo egiacutepcia O elogio
ao homem feito por Abdallah Sarraceno (ldquonada haacute de mais admiraacutevel do que o
homemrdquo) eacute comparado com a famosa sentenccedila de Hermes Trismegisto dirigida a
Ascleacutepio (ldquogrande milagre eacute o homemrdquo)167 Atraveacutes dessa escolha eacute dada autoridade a
um personagem proveniente do mundo islacircmico o maior dos antagonistas colocado
ao lado da entatildeo celebrada autoridade egiacutepcia dentro daquela Disputa que teria por
objetivo a paz filosoacutefica168
Li nos escritos dos Aacuterabes venerandos Padres que interrogado
Abdallah Sarraceno sobre qual fosse a seus olhos o espetaacuteculo
mais maravilhoso neste cenaacuterio do mundo tinha respondido
que nada via de mais admiraacutevel do que o homem Com esta
166 Oratio p106 ldquoTu nullis angustiis coercitus pro tuo arbitrio in cuius manu te posui tibi illam praefiniesrdquo 167 Eis a sentenccedila de Hermes na qual Pico se baseia ldquoPropter haec o Asclepi magnum miraculum est homo
animal adorandum et honorandum Hoc enim in naturam dei transit quasi ipse sit deus []rdquo (cf Corpus Hermeticum ed NOCK-FESTUGIEgraveRE Milano 2005 II)
168 Sobre Abdallah Sarraceno alguns comentadores acreditam tratar-se de Abd-Allah Ibn Al-Muquaffagrave escritor persa do seacuteculo VIII (cf FERACINE notas agrave Oratio 1999) Entretanto Pier Cesare Bori atraveacutes de uma pesquisa bastante aprofundada leva-nos a crer que se trate de Abdallah al-Tarjumacircn ou Anselmo Turmeda frade franciscano nascido em Palma de Maiorca no seacuteculo XIV estabelecido em Bolonha por razotildees de estudo Segundo sua autobiografia a Tuhfa ele teria recebido de um pio religioso a sugestatildeo de aproximar-se ao Islam e acabaria por converter-se na cidade de Tunis Em outra obra Disputa dellAsino de 1417 pode ser encontrada uma das fontes acerca da dignidade do homem na qual Turmeda apresenta um fundamento teoloacutegico muito similar agrave metaacutefora utilizada por Pico em seu Mito adacircmico Embora a Disputa dellAsino natildeo faccedila parte dos livros de Pico certamente a notiacutecia da disputa de Abdallah-Turmeda natildeo lhe era desconhecida Para maiores detalhes acerca de toda a questatildeo veja-se BORI I tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564 Do mesmo autor Pluralitagrave delle vie Milano 2000 pp43 ss Ainda ZAMBELLI Lapprendista stregone Astrologia cabala e arte lullina in Pico della Mirandola e seguaci 1995 p29
88
sentenccedila concorda aquela famosa de Hermes lsquoGrande milagre
oacute Ascleacutepio eacute o homemrsquo169
A passagem inaugura o elogio feito agrave filosofia de heterogecircneas escolas e
eacutepocas que perpassa todas as paacuteginas da Oratio como pode ser verificado atraveacutes de
variegadas tentativas de estabelecimento de acordo entre sistemas filosoacuteficos
considerados distintos170 Na passagem em que justifica a escolha dos temas das
Conclusiones Pico ressalta algumas dentre tais concordacircncias que natildeo se limitando
agrave Filosofia alcanccedilam a Teologia
[] insatisfeito por ter trazido aleacutem das doutrinas comuns
muitos assuntos da antiga teologia de Mercuacuterio Trismegisto
muitas das teorias dos Caldeus e de Pitaacutegoras muitos dos
escondidos misteacuterios dos Hebreus tambeacutem propus agrave discussatildeo
muitiacutessimos assuntos concernentes ao mundo natural e divino
encontrados e meditados por mim []Propus o acordo entre
Platatildeo e Aristoacuteteles [e] as sentenccedilas consideradas
contrastantes de Escoto e de Tomaacutes de Averroacuteis e de Avicena
que pelo contraacuterio satildeo concordantes171
Outras vaacuterias correspondecircncias satildeo efetuadas de forma fluiacuteda integrando
registros extraiacutedos do campo filosoacutefico teoloacutegico e misterioloacutegico em um estilo
literaacuterio proacuteprio Em meio agrave narrativa que trata da distribuiccedilatildeo de talentos feita por
Deus (ldquosummus pater architectus Deusrdquo) em seu Mito adacircmico Pico busca concordar
a tradiccedilatildeo biacuteblica com a pagatilde-filosoacutefica atraveacutes da menccedilatildeo agrave passagem inicial do
Gecircnesis (II 1) sobre a origem do mundo harmonizada com a passagem platocircnica
descrita no Timeu 41 (b-d) ldquouma vez tudo realizado como Moiseacutes e Timeu
atestam172 pensou por uacuteltimo criar o homemrdquo173 A concepccedilatildeo de distribuiccedilatildeo de
arqueacutetipos na mesma narrativa eacute emprestada de outro diaacutelogo platocircnico o
Protaacutegoras em que eacute narrado o ldquoMito da Criaccedilatildeo do Homemrdquo174 A analogia eacute clara
169 Oratio p 102 ldquoLegi Patres colendissimi in Arabum monumentis interrogatum Abdalam Sarracenum
quid in hac quasi mundana scena admirandum maxime spectaretur nihil spectari homine mirabilius respondisse Cui sententiae illud Mercuri adstipulatur lsquoMagnum o Asclepi miraculum est homorsquordquo
170 Para a questatildeo da Concoacuterdia filosoacutefica como sendo a principal intenccedilatildeo de Pico ao redigir a Oratio veja-se Cesare VASOLI Imagini Umanistiche 1983 p5
171 Oratio pp144-46 ldquoPropterea non contentus ego praeter communes doctrinas multa de Mercurii Trismegisti prisca theologia multa de Chaldaeorum de Pythagorae disciplinis multa de secretioribus Hebraeorum addidisse mysteriis plurima quoque per nos inventa et meditata de naturalibus et divinis rebus disputanda proposuimus Proposuimus primo Platonis Aristotelisque [] Addidimus autem et plures locos in quibus Scoti et Thomae plures in quibus Averrois et Avicennae sententias quae discordes existimantur concordes esse nos asseveramusrdquo
172 Na passagem em questatildeo Pico refere-se a Moiseacutes como autor do Gecircnesis Ademais refere-se diretamente a Timeo di Locri filoacutesofo pitagoacuterico vivido no IV seacuteculo aC contemporacircneo de Platatildeo e autor da obra De Anima Mundi muito provavelmente o personagem que interage com Soacutecrates no diaacutelogo Timeu (Cf Enrico PEGONE tradutor de Timeu em Platone Tutte le Opere Roma Newton Compton Editori 2010) O trecho de Platatildeo que trata do assunto estaacute em Timeu 41-b ss
173 Oratio p 104 ldquoIdcirco iam rebus omnibus (ut Moses Timaeusque testantur) absolutis de producendo homine postremo cogitavitrdquo
174 PLATAtildeO Protaacutegoras 320d-321e Conta o mito que apoacutes terem os deuses modelado dentro da terra os gecircneros mortais Epimeteu torna-se o responsaacutevel pela distribuiccedilatildeo de suas capacidades Ao terminar a tarefa seu irmatildeo Prometeu descobre que todos os animais receberam qualidades harmoniosamente enquanto o homem estaacute nu descalccedilo sem cobertas e sem armas
89
ldquodos arqueacutetipos natildeo restava nenhum sobre o qual moldar a nova criatura [o homem]
e nem dos lugares em todo o mundo restava algum em que pudesse sentar-se o
contemplador do universordquo175 Algumas paacuteginas adiante recorre mais uma vez agrave
concordacircncia entre a tradiccedilatildeo biacuteblica-cristatilde (agora representada por Moiseacutes e os
Padres da Igreja) e a platocircnica quando ao discorrer acerca do caminho eacutetico de
aperfeiccediloamento aponta para o amor como possibilidade regeneradora
Moiseacutes amou o Deus que viu e promulgou ao povo como juiz
aquilo que antes tinha visto na montanha como contemplador
Eis porque no meio o Querubim com a sua luz nos prepara
para a chama seraacutefica [] Esse eacute o noacute das primeiras mentes a
ordem sapiencial que preside agrave filosofia contemplativa isso
devemos antes de tudo emular investigar e compreender 176
A menccedilatildeo agrave ordem angeacutelica eacute utilizada para acostar um teoacutelogo cristatildeo de
tradiccedilatildeo neoplatocircnica Dioniacutesio ao principal emissaacuterio da tradiccedilatildeo hebraica a
sublimidade dos Serafins seraacute alcanccedilada atraveacutes da luz querubiacutenica da mesma forma
que Moiseacutes atraveacutes do amor despertado pela visatildeo de Deus pocircde transmitir ao povo
o que havia visto quando se encontrava em estado de contemplaccedilatildeo A qualidade da
luz ndash atribuiacuteda aos querubins conforme se lecirc em Dioniacutesio177 ndash eacute diretamente
relacionada ao conhecimento advindo da contemplaccedilatildeo como seraacute verificado no
proacuteximo item Essa eacute uma funccedilatildeo intermediaacuteria entre as ordens angeacutelicas anterior e
posterior que busca alcanccedilar a dimensatildeo do amor absoluto tornando-a anaacuteloga agrave
funccedilatildeo intermeacutedia da alma humana Na continuidade da sentenccedila Pico efetua uma
analogia com o domiacutenio platocircnico ao prescrever que apoacutes se entregar agrave filosofia
contemplativa o homem poderaacute ser alccedilado ldquoaos fastiacutegios do amorrdquo retornando em
seguida devidamente preparado para as tarefas da accedilatildeo178
Uma concordacircncia de outra categoria eacute apontada na obra quando ao tratar do
problema da natureza do homem e de sua possibilidade de tudo ser Pico encontra
conformidades em tradiccedilotildees iacutempares como a hebraica a islacircmica a caldaica e a
grega esta uacuteltima representada pela filosofia pitagoacuterica e empedocliana e pela
religiosidade dos Misteacuterios helecircnicos Vejamos Pico se remete a alguns tipos de
transformaccedilotildees promovidas durante os cultos misteacutericos de antigas tradiccedilotildees Eacute o
caso da transformaccedilatildeo narrada por certo Ascleacutepio ateniense179 que durante os ritos
ldquodevido ao aspecto mutaacutevel e a uma natureza capaz de se transformarrdquo dizia-se
175 Oratio p104 ldquoVerum nec erat in archetypis unde novam subolem effingeret nec in thesauris quod novo
filio hereditarium largiretur nec in subselliis totius orbis ubi universi contemplator iste sederetrdquo 176 Oratio p112 ldquoAmavit Moses Deum quem vidit et administravit iudex in populo quae vidit prius
contemplator in monte Ergo medius Cherub sua luce et saraphico igni nos praeparat et ad Thronorum iudicium pariter Illuminat hic est nodus Primarum mentium ordo palladicus philosophiae contemplativae praeses hic nobis et aemulandus primo et ambiendus atque adeo comprehendendus estrdquo
177 PSDIONISIO AREOPAGITA De Coelesti Hierarchia VI-VII 178 O tema seraacute visto de forma aproximada no proacuteximo toacutepico 179 O Ascleacutepio ateniense citado por Pico natildeo eacute identificaacutevel conforme informa Luiz Feracine em sua traduccedilatildeo
da obra (1999) Certo eacute que Pico quer distingui-lo do conhecido Ascleacutepio de Trales na Liacutedia filoacutesofo neoplatocircnico e disciacutepulo de Amocircnio vivido no seacuteculo VI dC e que deixou um comentaacuterio sobre os primeiros sete livros da Metafiacutesica de Aristoacuteteles Pela referecircncia aos Misteacuterios que envolvem Proteu ndash no Hino oacuterfico 25 eacute feita menccedilatildeo a Proteu ndash eacute provaacutevel tratar-se de personagem de periacuteodo anterior agrave Era Cristatilde
90
simbolizado por Proteu180 Ou ainda das metamorfoses que ocorrem em cerimocircnias
secretas da misteriologia aramaica que ldquotransformam ora Enoch santo no anjo da
divindade e o chama malakh haacute-chekli-natildeh ora outros noutros espiacuteritos divinosrdquo181
Embora natildeo se tenha maiores esclarecimentos acerca dessas duas passagens eacute
possiacutevel afirmar que ambas corroboram como fundamentos acessoacuterios a concepccedilatildeo
piquiana da capacidade seja degenerativa que regenerativa do homem Tal ideia eacute
ilustrada na continuidade do texto pela referecircncia a Maomeacute (ldquoquem se afasta da lei
divina torna-se uma bestardquo) e em acircmbito grego pela referecircncia ao Pitagorismo e a
Empeacutedocles (ldquoe os Pitagoacutericos transformam os celerados em bestas e a acreditar em
Empeacutedocles ateacute mesmo em plantasrdquo)182 O trecho introduz um novo elemento entre
os temas lanccedilados na obra atraveacutes da alusatildeo agrave metempsicosis183 Em relaccedilatildeo ao
Pitagorismo Pico certamente se refere de forma direta ou indireta ao fragmento 21
de Xenoacutefanes quando alude agrave transformaccedilatildeo ldquodos celerados em bestasrdquo uacutenico
fragmento a trazer um conteuacutedo similar agrave passagem em questatildeo184 Jaacute Empeacutedocles
trata do tema em seu Purificaccedilotildees onde afirma que agrave semelhanccedila dos outros
daacuteimones fora tambeacutem ele condenado agrave mortalidade (mas que apoacutes um correto ciclo
de encarnaccedilotildees a divindade poderia ser novamente atingiacutevel)185 Embora Pico natildeo
aborde o tema da transmigraccedilatildeo diretamente em nenhuma de suas obras ndash nas
Conclusiones por exemplo a menccedilatildeo eacute feita por via obliacutequa ndash186 eacute bastante relevante
o aceno agrave possibilidade de que o processo de regeneraccedilatildeo e degeneraccedilatildeo do homem
pode se dar natildeo apenas no decurso de uma vida mas na decorrecircncia de vaacuterias ndash um
conteuacutedo que encontra correspondecircncias em algumas das principais doutrinas de
cunho esoteacuterico recepcionadas por Pico A passagem se conclui com uma fonte
extraiacuteda dos caldeus atraveacutes da qual o autor aproxima-se de sua principal concepccedilatildeo
a de que o homem carrega todas as sementes
180 Oratio p106 ldquoQuem non immerito Asclepius Atheniensis versipellis huius ei se ipsam transformantis
naturae argumento per Proteum in mysteriis significari dixitrdquo 181 Oratio p108 ldquoNam et Hebraeorum theologia secretior nunc Enoch sanctum in angelum divinitatis quem
vocant lsquomalakh haacute-chekli-natildehrsquo nunc in alia alios numina reformatrdquo Acerca da expressatildeo Malakh haacute-chekli-natildeh ndash escrita por Pico em ideogramas hebraicos e suprimida de vaacuterias traduccedilotildees inclusive da tradicional de Garin de 1942 ndash seu significado eacute ldquoo anjo de sheklinatildehrdquo De acordo com a Biacuteblia o patriarca Enoque natildeo teve a morte comum dos mortais (Gecircnesis V 21-24) o que o torna segundo a crenccedila um ldquoanjo da divindaderdquo Por isso a misteriologia aramaica conservada nos livros apoacutecrifos atribui a Enoque o nome de Metraton e assim eacute designado no Talmud e no Midrash De acordo com tal tradiccedilatildeo Metraton equivale a ldquoanjo em que subsiste o nome de Deusrdquo Por extensatildeo semacircntica chegou-se a identificar o nome Metraton com os atributos da divindade e com o proacuteprio ser divino resultando daiacute a figura do Mithra de Zaratustra Pico mais ortodoxo no assunto usa o termo sheklinatildeh no sentido figurado de esplendor ou manifestaccedilatildeo de Deus (cf nota agrave traduccedilatildeo de Luiz FERACINE 1999)
182 Oratio p108 ldquoEt Pythagorici scelestos homines in bruta deformant ei si Empedocli creditur etiam in plantasrdquo
183 A metempsicose doutrina de transmigraccedilatildeo da alma em corpos sucessivos manifesta-se no mundo grego por volta do final do seacuteculo VI aC de acordo com o mais antigo testemunho o de Piacutendaro em sua segunda Ode Oliacutempica de 476 aC (cf Walter BURKERT Antigos Cultos de Misteacuterio 1987 p97 e Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica 1993 p568) Conferir para maiores detalhes a obra de Gabriele CORNELLI (O Pitagorismo como Categoria Historiograacutefica 2011 p145 ss)
184 No famoso fragmento (21 B7 DK Dioacutegenes Laeacutercio VIII 36) um dos mais antigos testemunhos sobre o assunto Xenoacutefanes estaria zombando de Pitaacutegoras ao insinuar que ele teria visto em um catildeo a alma de um amigo A crenccedila pitagoacuterica na metempsicose eacute ainda mencionada por Iacuteon de Chios Heroacutedoto Filolau Aristoacuteteles (que a descreve como faacutebula pitagoacuterica) e Platatildeo
185 O mote transmigracionista estaacute ainda presente no Poema lustral de Empeacutedocles que narra a aventura da alma-daacuteimon banida do Olimpo dos bem-aventurados jogada num corpo e ligada ao ciclo dos nascimentos durante tal jornada passa pela condiccedilatildeo de ldquomenino e menina arbusto passarinho e mudo peixe do marrdquo Vejam-se os fragmentos em KIRK RAVEN SCHOFIELD Os Filoacutesofos Preacute-Socraacuteticos Lisboa 2007 pp296 329-330
186 Vejam-se as Conclusiones nrs (I) IV II 8 (Adelando Aacuterabe) (I) VIII 4 (Zoroastro)
91
O persa Evantes onde expotildee a teoria caldaica escreve que o
homem natildeo possui uma sua especiacutefica e nativa imagem mas
muitas estranhas e adventiacutecias Daiacute o dito caldaico de que o
homem eacute animal de natureza vaacuteria multiforme e mutaacutevel187
Quase ao encerramento de seu Discurso e assim como o fez nas Conclusiones
Pico aborda a questatildeo da Cabala procurando mostrar atraveacutes de alguns de seus
maiores representantes a concoacuterdia com o Cristianismo (ldquoli as mesmas coisas que
todos os dias lemos em Paulo e Dioniacutesio em Jerocircnimo e em Agostinhordquo) e com a
Filosofia (ldquoparece-nos ouvir Pitaacutegoras e Platatildeordquo)188 A busca da paz final eacute segundo
Pico o ponto em que todas as filosofias se unem em concoacuterdia para regozijar-se na
ldquosantiacutessima pazrdquo apregoada pelos cristatildeos ldquodesfrutar da amizade concorderdquo
pitagoacuterica e alcanccedilar a ldquoindissoluacutevel uniatildeordquo apregoada por Averroacuteis Essa eacute a maneira
escrita em formas diferentes por meio da qual ldquotodas as almas natildeo soacute se acordam
numa uacutenica Mente que estaacute acima de cada mente mas tambeacutem de uma maneira
inefaacutevel se fundem em uma soacuterdquo189
O tema da Concoacuterdia ocupa espaccedilo proeminente no pensamento de Giovanni
Pico cuja proposta eacute reclamar a verdade atraveacutes do constante exerciacutecio dialeacutetico dos
pontos de vista Tendo sido alcanccedilado o objetivo referente a cada saber individual
cujas especiacuteficas concepccedilotildees foram escritas para a discussatildeo no debate romano o
proacuteximo passo do autor seria o de comprovar o acordo entre as vaacuterias tradiccedilotildees
abordadas prerrogativa para estabelecer a unidade da verdade O tema aqui iniciado
necessaacuterio para a siacutentese final seraacute retomado no Capiacutetulo VII pois que cada forma de
filosofar apresentada pelo autor mostra-se como um caminho de aproximaccedilatildeo agrave
verdade que uma vez alcanccedilada prescinde das particularidades de cada forma
Veremos a seguir que para estabelecer o caraacuteter universal da verdade Pico percorre
doutrinas que confluem em relaccedilatildeo a um paradigma que se estabelece pela
consecuccedilatildeo de estaacutegios relacionados a uma evoluccedilatildeo asceacutetica
3 O tema da Ascese
A liberdade preconizada sob o tema da dignidade encontra-se sujeita agrave
efetivaccedilatildeo e suplantaccedilatildeo de certos estaacutegios Meacutetodos para percorrer caminhos
187 Oratio p108 ldquoIdcirco scribit Euantes Persa ubi Chaldaicam theologiam enarrat non esse homini suam
ullam et nativam imaginem extrarias multas er adventicias Hinc illud Chaldaeorum lsquoEnosh hu shinnuim vekammah tebhaoth baal hajrsquo idest homo variae ac multiformis et desultoriae naturae animalrdquo No texto original Pico apresenta em ideogramas aparentemente hebraicos a passagem referente ao dito caldaico Acerca de Evantes e de acordo com nota do tradutor FERACINE (1999) sua identidade eacute desconhecida
188 Oratio p160 ldquo[]eadem legi quae apud Paulum et Dionysium apud Hieronymum et Augustinum quotidie legimus In his vero quae spectant ad philosophiam Pythagoram prorsus audias et Platonem [hellip]rdquo
189 Oratio p118 ldquo[hellip]optata pace perfruemur pace sanctissima individua copula unanimi amicitia qua omnes animi in una mente quae est super omnem mentem non concordent adeo sed ineffabili quodam modo unum penitus evadantrdquo
92
asceacuteticos fazem parte das praacuteticas esoteacutericas apregoadas e utilizadas em natildeo poucas
tradiccedilotildees em sua maioria com o objetivo de alcanccedilar um estado de uniatildeo com o
Absoluto Pico utiliza-se de alguns exemplos ascensionais dentro do procedimento
escolhido para demonstrar a unidade da verdade exemplos cuja convergecircncia
doutrinaacuteria eacute esperada em esferas mais elevadas Na metade inicial da Oratio
evidenciam-se treze passagens distintas referentes a condutas asceacuteticas de
competecircncia teoloacutegica ou filosoacutefica as quais em se eliminando aquelas pertencentes
a uma mesma tradiccedilatildeo perfazem um total de sete tradiccedilotildees especiacuteficas Como
fundamentaccedilatildeo para o seu modelo de itineraacuterio asceacutetico Pico percorre as seguintes
doutrinas crenccedilas ou sistemas
1) A dialeacutetica segundo a filosofia platocircnica
2) O modelo angeacutelico postulado por Dioniacutesio Areopagita
3) As iniciaccedilotildees misteacutericas da tradiccedilatildeo grega
4) Os Mitos de Dioniso e de Osiacuteris
5) A simbologia do tabernaacuteculo de Moiseacutes pertencente agrave tradiccedilatildeo hebraica
6) As praacuteticas asceacuteticas pitagoacutericas
7) A misteriologia caldaica
Antes da verificaccedilatildeo de cada um desses itens cabe observar que ainda em
meio agrave narrativa de seu Mito adacircmico Pico introduz a primeira problemaacutetica de
percurso asceacutetico perfeitamente presente no coraccedilatildeo de sua reflexatildeo acerca da
dignidade humana Partindo da premissa de existecircncia de quatro niacuteveis hieraacuterquicos
existentes no homem entendidos como corpos efetivos ou como possibilidades eacute
efetuada uma analogia com os reinos que representam graus da hierarquia coacutesmica
postulada pelo autor ndash que seria mais tarde tratada no Heptaplus190 O mito chama
a atenccedilatildeo para a presenccedila de tais naturezas ou potencialidades que integram o
homem bem como de sua possibilidade de superaccedilatildeo ou regressatildeo atraveacutes da
passagem entre um e outro niacutevel Assim ao se comportar como vegetal utilizando
sua natureza entorpecida e insensiacutevel ldquoo homem seraacute como plantardquo se for sensiacutevel
ldquose tornaraacute bestardquo em razatildeo de sua alma bruta e sensual se racional ldquoelevar-se-aacute a
animal celesterdquo pois ldquonatildeo eacute a forma circular que faz o ceacuteu mas a reta razatildeordquo se
intelectual puro contemplante seraacute anjo e filho de Deus ldquopois natildeo eacute a separaccedilatildeo do
corpo que faz o anjo mas sua inteligecircncia espiritualrdquo191
190 Cf PICO Heptaplus Quinta Exposiccedilatildeo p305 191 Oratio pp106 108 Alguns anos mais tarde em 1516 talvez sob a influecircncia da obra de Pico Pietro
Pomponazzi apresentaraacute sua proacutepria concepccedilatildeo da ordem natural no De immortalitate animae ldquoA natureza procede por graus Os vegetais tecircm um pouco de alma seguem os animais dotados apenas de tato gosto e imaginaccedilatildeo indefinida depois os animais tatildeo perfeitos que parecem dotados de inteligecircncia que constroem asas
93
Entre as referecircncias percorridas Pico insere ademais um siacutembolo de ascensatildeo
iniciaacutetica representado pela imagem biacuteblica da escada de Jacoacute ldquoo sapientiacutessimo
patriarca ensinar-nos-aacute mediante um siacutembolo [] que existem escadas que sobem do
fundo da terra ateacute ao cume dos ceacuteus distintas numa longa seacuterie de degrausrdquo192 A
passagem eacute narrada no Gecircnesis referindo-se agrave revelaccedilatildeo recebida em sonho por Jacoacute
atraveacutes da visatildeo de uma escada ligando ceacuteu e terra193 Essa representaccedilatildeo permite que
se efetuem analogias com diversas tradiccedilotildees como a tradiccedilatildeo angeacutelica referida por
Pseudo Dioniacutesio os Misteacuterios gregos e a Cabala194 Ao ser retirada do campo da feacute
traz a exigecircncia de que todos os degraus sejam percorridos passando pelos graus
irredutiacuteveis da filosofia natural da filosofia moral e dos procedimentos dialeacuteticos Os
traccedilos de tal percurso estatildeo bem definidos na dialeacutetica platocircnica primeiro dos sete
modelos asceacuteticos verificados a seguir
1) A primeira referecircncia agrave dialeacutetica filosoacutefica no Discurso eacute colhida de fontes
platocircnicas e disposta em linguagem miacutetica atraveacutes do convite para que o homem
abandone o que eacute terreno e ldquovoerdquo para as regiotildees supramundanas em direccedilatildeo agrave
divindade A menccedilatildeo ao voo reafirmada na passagem em que alude ao ldquoceacutelere voo
para a Jerusaleacutem Celeste atraveacutes de um bater de asasrdquo embora natildeo mencionada
diretamente remete agraves asas da alma que proporcionam a sua libertaccedilatildeo como fora
exaltado por Platatildeo no Fedro195
Desdenhemos das coisas da terra desprezemos as astrais e
abandonando tudo o que eacute terreno voemos para a sede
supramundana proacuteximo da sumidade da divindade196
Observe-se que conforme as palavras acima a Esfera Astral eacute um reino
inserido em territoacuterio ligado ao mundano197 acima do sublunar que remete agrave
imagem de um eixo vertical cujas etapas devem ser superadas A passagem encerra a
ideia de um movimento dinacircmico que pode ser realizado pela alma humana graccedilas agrave
e se organizam em sociedades civis como as abelhas (tanto que muitos homens parecem inferiores aos brutos por inteligecircncia)rdquo Em continuidade o autor apresenta seu conceito de ldquomedianidaderdquo ou planos ldquosintetizantesrdquo entre os reinos ldquoHaacute animais meacutedios entre as plantas e os animais como as esponjas marinhas fixas como as plantas mas sensiacuteveis como os animais haacute o macaco que natildeo se sabe se eacute animal ou homem e haacute a alma intelectiva mediana entre o temporal e o eternordquo Para maiores detalhes veja-se GARIN LrsquoUmanesimo italiano 2008 pp156-160
192 Oratio p 114 193 Cf Gecircnesis 28 12-13 ldquoE sonhou e eis uma escada posta na terra cujo topo tocava nos ceacuteus e eis que os
anjos de Deus subiam e desciam por elardquo 194 Algumas distintas interpretaccedilotildees dessa passagem foram realizadas Para Luiz FERACINE (1999) a escada de
Jacoacute significa a necessidade de ascender do muacuteltiplo ao uno simbolizado pelo desmembramento titacircnico do deus Dioniso Giulio BUSI identifica a escada com a deacutecima sefiraacute da tradiccedilatildeo cabaliacutestica correspondente a malkut vista em seu duplo aspecto de oraccedilatildeo e presenccedila divina conforme o autor depreende do Sefer ha-Zohar (La Qabbalah 2011 p11) Para Albano BIONDI (1995 ldquoIntroduccedilatildeordquo) a escada apresenta um significado estritamente dialeacutetico relacionado agrave Filosofia e seus graus de conhecimento
195 Cf PLATAtildeO Fedro 246 ss A passagem da Oratio que cita o Fedro encontra-se na p122 ldquoQuis non Socraticis illis furoribus a Platone in Phaedro decantatis sic afflari non velit ut alarum pedumque remigio hinc idest ex mundo qui est positus in maligno propere aufugiens ad caelestem Hierusalem concitatissimo cursu feraturrdquo
196 Oratio p110 ldquoDedignemur terrestria caelestia contemnamus et quicquid mundi est denique posthabentes ultramundanam curiam eminentissimae divinitati proximam advolemusrdquo
197 A mateacuteria referente agrave Esfera Astral eacute desenvolvida por Pico em suas Disputationes Adversus Astrologiam
94
sua posiccedilatildeo intermeacutedia dentro do desenho universal Agrave medida que se avanccedila no
texto torna-se patente que tal posiccedilatildeo consiste em uma tensatildeo vertical dialeacutetica
permanente que reporta ao Banquete Em seu Commento de lsquo86 Pico jaacute havia
explorado o diaacutelogo platocircnico e o tema da natureza carente de Eros intermediaacuteria
entre a ignoracircncia e a sabedoria sempre agrave procura desta uacuteltima198 O influxo daquela
obra pode ser agora percebido a partir da retomada do mesmo dinamismo que se
repete e percorre todo o Discurso Oriacutegenes havia feito menccedilatildeo ao mito contido no
Banquete e agrave sua analogia com a busca do homem por sabedoria e sabe-se que Pico
teve acesso agrave sua obra199 O Eros platocircnico assim como a alma piquiana ocupa uma
posiccedilatildeo intermeacutedia200 pois natildeo eacute divino nem terreno201 A potecircncia para atingir as
realidades supremas atraveacutes do amor pela sabedoria encontra-se nas representaccedilotildees
das duas obras Aleacutem da dinacircmica de atraccedilatildeo pelo saber o Discurso eacute perpassado
pela teoria platocircnica que distingue graus de conhecimento entre o sensiacutevel e o
inteligiacutevel e que postula a partir de tais pontos o meacutetodo dialeacutetico que permite a
passagem do grau inicial da pluralidade das opiniotildees ao grau final da unidade da
Ideia
A filosofia natural acalmaraacute os conflitos da opiniatildeo e os dissiacute-
dios que atormentam dividem e dilaceram de modos diversos
a alma inquieta [] A dialeacutetica acalmaraacute a razatildeo
tumultuosamente mortificada entre os contrastes das palavras e
dos silogismos capciosos202
Pico atribui ora agrave filosofia ldquonaturalrdquo ora agrave ldquomoralrdquo a competecircncia para tratar
das questotildees relacionadas agrave conduta humana203 Na primeira parte da passagem
acima ao tratar dos ldquoconflitos e opiniotildeesrdquo estabelece-se uma relaccedilatildeo com o segundo
grau de conhecimento apresentado na Repuacuteblica204 dimensatildeo da piacutestis e doxa cuja
superaccedilatildeo viraacute atraveacutes da filosofia moral Na segunda parte Pico coloca-se em grau
acima ao abordar a forma como a razatildeo poderaacute ser acalmada atraveacutes da dialeacutetica
Embora o meacutetodo dialeacutetico possa ser entendido como o sistema integral que abarca
todos os graus no sentido de movimento da consciecircncia que se move entre os graus
mais baixos e os mais altos ndash graccedilas agrave descoberta das contradiccedilotildees encontradas em
cada grau inferior de conhecimento ndash o mesmo pode tambeacutem ser dividido em duas
etapas a primeira dialeacutetica inferior opera com as contradiccedilotildees das opiniotildees e
crenccedilas isto eacute com a multiplicidade sensiacutevel moacutevel e dispersa a segunda superior
198 PLATAtildeO Banquete 203d-204c 199 A obra Contra Celsum do teoacutelogo Oriacutegenes havia sido publicada em latim em 1481 poucos anos antes da De
Hominis Dignitate A passagem em questatildeo encontra-se em IV 39 Ademais eacute conhecida a admiraccedilatildeo que Pico tinha por Oriacutegenes Para uma aprofundada reflexatildeo sobre a analogia entre o Banquete e a visatildeo dialeacutetica de Pico veja-se BORI I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996 pp 551-564
200 PLATAtildeO Banquete 202d 201 PLATAtildeO ibid 203e 202 Oratio p119 A inversatildeo dos periacuteodos na citaccedilatildeo acima foi feita por uma questatildeo de ordenamento necessaacuterio
ao que estaacute sendo tratado ldquoSedabit dialectica rationis turbas inter orationum pugnantias et syllogismorum captiones anxie tumultuantis Sedabit naturalis philosophia opinionis lites et dissidia quae inquietam hinc inde animam vexant distrahunt et laceranterdquo
203 De fato na paacutegina 122 da Oratio que conteacutem a passagem citada encontra-se tanto o uso de ldquomoralisrdquo quanto ldquonaturalis philosophiardquo
204 Veja-se PLATAtildeO (Rep 509d-511e) e seu ldquoSiacutemile das duas linhasrdquo
95
ou verdadeira dialeacutetica opera ultrapassando demonstraccedilotildees baseadas em hipoacuteteses
na medida em que a multiplicidade vai sendo ordenada e sistematizada ateacute alcanccedilar o
incondicionado a unidade inteligiacutevel Essa a dialeacutetica superior capaz de elevar-se de
hipoacutetese em hipoacutetese ateacute alcanccedilar o natildeo hipoteacutetico205 eacute aquela agrave qual Pico se refere
como o aliacutevio para ldquoacalmar a razatildeordquo
Seremos arrebatados se primeiro tivermos realizado tudo
quanto estaacute em noacutes se de fato com a moral forem refreados
dentro dos justos limites os iacutempetos das paixotildees de tal modo
que se harmonizem reciprocamente com estaacutevel acordo e se a
razatildeo proceder ordenadamente mediante a dialeacutetica206
Finalmente no pinaacuteculo da ascensatildeo ocorre o ldquoarrebatamentordquo momento em
que como ainda mencionado no Banquete (210a) a alma filosoacutefica encontra-se com
a Ideia Suprema O contato direto e imediato da inteligecircncia com o inteligiacutevel se daacute
no plano noeacutetico em que ocorre a visatildeo intelectual de uma ideia em decorrecircncia do
conhecimento adquirido por meio dos atos de intuiccedilatildeo intelectual a episteacuteme Segue-
se assim o quinto grau de conhecimento postulado na Carta Seacutetima e proclamado
por Pico como final de uma trajetoacuteria de conhecimento207
Rejeitadas as impurezas com a moral e a dialeacutetica se adorne da
mais vasta Filosofia como se fosse um ornamento real208
2) A ideia de desenvolvimento vertical humano eacute encontrada outrossim na
narrativa feita por Pseudo-Dioniacutesio acerca do mundo angeacutelico Pico se fundamenta
em seu modelo de ascese miacutestica em trecircs estaacutegios (purgatio illuminatio e perfectio)
ndash conforme a visatildeo recebida em revelaccedilatildeo por Paulo relatada em Coriacutentios acerca do
triacuteplice coro angeacutelico209 Iniciando sua argumentaccedilatildeo eacute lanccedilada a questatildeo de como
proceder para chegar aos Serafins Querubins e Tronos seres pertencentes ao
primeiro ciacuterculo dentro da hierarquia cosmoloacutegica descrita por Dioniacutesio210 a melhor
205 PLATAtildeO na Carta VII (343e) descreve que a passagem contiacutenua entre os vaacuterios niacuteveis hipoteacuteticos com o
deslocamento para o alto e para baixo em cada niacutevel mesmo sob dificuldades leva ao conhecimento da coisa buscada
206 Oratio p122 ldquoAgemur ab illis utique si quid est in nobis ipsi prius egerimus nam si et per moralem affectuum vires ita per debitas competentias ad modulos fuerint intentae ut immota invicem consonent concinentia et per dialecticam ratio ad numerum se progrediendo moverit []rdquo
207 PLATAtildeO Carta VII 342b-343c Na Carta Seacutetima Platatildeo amplia o que havia estabelecido na Repuacuteblica sobre os quatro modos de conhecimento ensinando que o quinto modo de conhecimento eacute a coisa-em-si mesma ou a percepccedilatildeo intelectual direta da coisa cognosciacutevel A funccedilatildeo do quarto modo que eacute o conhecimento (342b) eacute preparar-nos para alcanccedilar o objeto real e soacute atraveacutes de uma fricccedilatildeo chegamos a ele Essa fricccedilatildeo produz uma faiacutesca como uma luz que surge na alma (341d) e nos faz ver a pura ideia da coisa Pico coloca no teacutermino de sua explanaccedilatildeo dialeacutetica o alcance da Filosofia (nesse sentido indicando o momento supremo do conhecimento) qual ldquoornamento realrdquo
208 Oratio p120 ldquo[] postquam per uroralem et dialecticam suas Bordes excusserit multiplici philosophia quasi aulico apparatu se exornarit []
209 Cf Oratio p113 A passagem de Paulo que trata de seu ldquoarrebatamentordquo ao terceiro ceacuteu estaacute em 2 Coriacutentios 12 2-4 ldquoConheccedilo um homem em Cristo que haacute catorze anos[] foi arrebatado ao terceiro ceacuteu E sei que o tal homem[] foi arrebatado ao paraiacuteso e ouviu palavras inefaacuteveis que ao homem natildeo eacute liacutecito falarrdquo
210 Pico passa diretamente para o escalatildeo mais alto na hierarquia dos seres angeacutelicos a chamada Primeira Ordem Abaixo destes haacute a Segunda e Terceira Ordem composta cada qual por trecircs gecircneros de seres Dioniacutesio Areopagita esclarece em sua obra que as alegorias das formas angeacutelicas utilizadas pelos teoacutelogos satildeo apenas pontos de partida para permitir a contemplaccedilatildeo dos seres inteligiacuteveis Eacute tambeacutem uma forma de ocultar atraveacutes de
96
forma para alcanccedilaacute-los seraacute atraveacutes da observaccedilatildeo de seu protoacutetipo de vida pois ldquose
tambeacutem noacutes a vivermos jaacute estaremos partilhando de igual ventura e de fato
podemosrdquo211 Assim a destinaccedilatildeo humana consiste precisamente em imitar aquelas
vidas Primeiramente os Tronos mais proacuteximos de noacutes representantes da vida ativa
disciplinada em seguida os Querubins modelo de vida contemplativa finalmente
os Serafins mais proacuteximos de Deus representantes da uniatildeo miacutestica no amor Os
Querubins encontrando-se no ponto intermeacutedio entre os dois outros graus da ordem
agrave qual pertencem representam por analogia a funccedilatildeo intermeacutedia do homem e sua
capacidade contemplativa torna-se exemplo do ponto mais alto que pode ser
alcanccedilado atraveacutes da capacidade intelectiva humana
Se a nossa vida deve ser modelada sobre a vida dos Querubins
devemos ter claro frente aos nossos olhos em que consiste tal
vida quais as accedilotildees e obras que devemos imitar212
Cada Ordem apreende da que lhe estaacute imediatamente superior tudo o que
concerne agraves suas operaccedilotildees retransmitindo agrave inferior aquilo que lhe eacute possiacutevel
transmitir (ldquoa ordem mediana eacute para a inferior inteacuterprete dos preceitos da ordem
superiorrdquo)213 Os Tronos tem seu nome originado a partir do conceito de sustentaacuteculo
Esse gecircnero de anjo eacute identificado pela total ausecircncia de qualquer concessatildeo aos
planos inferiores e a capacidade de se manter constante e firmemente tendendo para
os cumes Analogamente esse seria o estaacutegio da purgatio Os Querubins ldquoaqueles
que difundem sabedoriardquo satildeo tidos como a inteligecircncia mediadora entre o amor
divino e a reta razatildeo jaacute que sua inteligecircncia prepara o homem para o ardor seraacutefico e
ao mesmo tempo o ilumina pelo modelo da justiccedila dos Tronos (ldquoeis porque no meio o
Querubim com a sua luz nos prepara para a chama seraacutefica e nos ilumina
juntamente com o juiacutezo dos Tronosrdquo)214 Os Querubins designam aptidotildees ao
conhecimento e agrave contemplaccedilatildeo do Absoluto e acolhem em si a plenitude dos dons
que transmitem sabedoria comunicando-os agraves essecircncias inferiores graccedilas agrave
capacidade de emanaccedilatildeo da proacutepria sabedoria que lhes foi transmitida Sua posiccedilatildeo eacute
anaacuteloga ao grau asceacutetico da illuminatio O Serafim eacute o que ocupa a mais alta posiccedilatildeo
aquele que ldquoqueimardquo na luz divina Os Serafins tecircm por qualidades o movimento
perpeacutetuo em torno dos segredos divinos o calor a profundidade e a qualidade de
comunicar aos niacuteveis que lhe sucedem a luz e o calor Detecircm o poder de auto-
purificaccedilatildeo e a aptidatildeo para conservarem a sua proacutepria luz daiacute sua relaccedilatildeo com o
uacuteltimo grau asceacutetico a perfectio215
enigmas a misteriosa unidade dessas Inteligecircncias Os nomes atribuiacutedos agraves Inteligecircncias designam suas capacidades (De Coelesti Hierarchia II-VII) Pico possuiacutea vaacuterias coacutepias em grego e latim das obras principais de Ps Dioniacutesio (cf Garin 2011 p110)
211 Oratio p111 O trecho em questatildeo encontra-se na traduccedilatildeo de Feracine tendo sido omitido na traduccedilatildeo de Sirgado Ganho ldquoSed qua ratione aut quid tandem agentes Videamus quid illi agant quam vivant vitam Eam si et nos vixerimus (possumus enim) illorum sortem iam aequaverimusrdquo
212 Oratio p112 ldquoAt vero operae precium si ad exemplar vitae cherubicae vita nostra formanda est quae illa et qualis sit quae actiones quae illorum Opera []rdquo
213 Oratio p116 ldquoEt quoniam supremi ordinis monita medius ordo inferioribus interpretaturrdquo 214 Cf Oratio p113 215 PS DIONISIO De Coelesti Hierarchia VII Para detalhes adicionais veja-se nota da passagem em questatildeo
na traduccedilatildeo da Oratio de Luiz Feracine Informa o tradutor que Trono vem da raiz dar que passou para o sacircnscrito na palavra dhacircrana sustentaacuteculo O termo Querubim do hebraico kerub eacute considerado originaacuterio de
97
Pico pretende indicar a analogia existente entre as funccedilotildees angeacutelicas e o
caminho triaacutedico relacionado aos campos moral dialeacutetico e teoloacutegico que pode ser
verificado nas atribuiccedilotildees de cada Ordem Os Tronos se definem pelo reto
discernimento e a firmeza de juiacutezo qualidade que pode ser atingida atraveacutes do uso da
razatildeo e que em seu primeiro estaacutegio eacute capaz de encetar a filosofia moral No
Querubim estaacutegio intermediaacuterio apresenta-se a capacidade intelectual da
contemplaccedilatildeo ou o momento de ldquoesplendor da inteligecircnciardquo Finalmente no Serafim
tem-se o amor ao artiacutefice ao qual Pico em outras passagens ou obras refere-se
atraveacutes do termo ldquofeacuterdquo que o autor considera o uacuteltimo estaacutegio da ascese miacutestica
teoloacutegica216
Ainda que dedicados agrave vida ativa se assumirmos tratar as coisas
inferiores com reto discernimento afirmar-nos-emos com a
firmeza dos Tronos Se liberarmo-nos das accedilotildees meditando na
criaccedilatildeo o artiacutefice e no artiacutefice a criaccedilatildeo estaremos imersos na
paz da contemplaccedilatildeo e resplandeceremos rodeados de
querubiacutenica luz Se ardermos apenas por amor do artiacutefice
daquele fogo que consome todas as coisas inflamar-nos-emos
repentinamente com aspecto seraacutefico217
Ao ponto intermeacutedio querubiacutenico eleva-se a possibilidade humana alcanccedilaacutevel
pela dialeacutetica ldquoisso devemos emular investigar e compreender de modo a sermos
arrebatados ateacute aos fastiacutegios do amor descendo em seguida instruiacutedos e preparados
para as tarefas da accedilatildeordquo218 Assim para a pergunta ldquocomo se tornavam iluminados os
querubins como se elevavam ao estaacutegio seraacuteficordquo o autor indica o caminho da
contemplaccedilatildeo ldquoeste eacute o centro das primeiras mentes a ordem sapiencial que preside
agrave filosofia contemplativardquo219 Finalmente colocando palavras na boca do apoacutestolo
Paulo ndash se tivesse sido perguntado sobre o que faziam os exeacutercitos dos Querubins
enquanto esteve ele arrebatado no terceiro ceacuteu ndash responde Pico ldquopurificavam-se
eram iluminados e tornavam-se por fim perfeitosrdquo220 Repete-se o processo triaacutedico
intuiacutedo no modelo de ascetismo piquiano
Karibu que significa bendizente Em geral os Querubins satildeo associados aos gecircnios alados das mitologias egiacutepcias babilocircnicas e siro-feniacutecias O termo Serafim vem do hebraico sharaf serpente [ligado ao verbo saacuterof queimar] siacutembolo relacionado aos gecircnios e agrave divindade pelos cananeus Em geral nas representaccedilotildees lhes satildeo dadas as formas de serpente No livro Nuacutemeros (XXI 6-9) os Serafins indicam as serpentes venenosas enquanto em Isaiacuteas (VI) representam seres antropomorfos providos de seis asas Assim tanto os Serafins como os Querubins satildeo idealizaccedilotildees de seres superiores em que se fundem formas humanas com asas Essa heranccedila cultural influenciou a percepccedilatildeo dos autores biacuteblicos (FERACINE A Dignidade do Homem 1999)
216 Oratio pp111-113 217 Oratio p110 ldquoIgitur si actuosae addicti vitae inferiorum curam recto examine susceperimus Thronorum
stata soliditate firmabimur Si ab actionibus feriati in opificio opificem in opifice opificium meditantes in contemplandi otio negotiabimur luce Cherubica undique corruscabimus Si caritate ipsum opificem solum ardebimus illius igne qui edax est in Seraphicam effigiem repente flammabimurrdquo
218 Oratio p112 219 Oratio p113 Pier Cesare BORI relaciona a vida contemplativa dos Querubins com a vida intelectual que se
difunde nas vaacuterias disciplinas filosoacuteficas que seratildeo depois unificadas dialeticamente (I tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564)
220 Oratio p113
98
3) A pureza dos graus angeacutelicos pede uma correta preparaccedilatildeo que Pico
vislumbra nos graus de iniciaccedilatildeo previstos nos Misteacuterios gregos ndash ldquoin Graecorum
arcanis observati initiatorum gradusrdquo
Se eacute nosso dever [] imitar a vida dos anjos pergunto quem
ousaraacute tocar as escadas do Senhor ou com peacute impuro ou com
matildeos por lavar Ao impuro segundo os Misteacuterios eacute-lhe vedado
tocar aquilo que eacute puro221
As matildeos e os peacutes conforme o proacuteprio Pico explica representam ldquotoda a parte
sensiacutevel onde estatildeo sediadas as seduccedilotildees corpoacutereasrdquo que subjugam a alma ldquoPara natildeo
sermos expulsos daquelas escadasrdquo ndash as de Jacoacute ndash ldquocomo profanos e imundosrdquo222 faz-
se necessaacuteria uma devida purificaccedilatildeo ideia que integra grande parte das religiotildees
gregas misteacutericas conhecidas ndash sobre as quais Pico certamente tinha
conhecimento223
Que outra coisa de fato querem significar nos misteacuterios gregos
os graus habituais dos iniciados admitidos no misteacuterio atraveacutes
de uma purificaccedilatildeo obtida com a moral e com a dialeacutetica artes
que jaacute dissemos serem quase purificatoacuterias [] Quando
estavam preparados sobrevinha aquela epopteia isto eacute a
visatildeo das coisas divinas atraveacutes da luz da teologia224
A epopteia corresponde a um estado de arrebatamento atribuiacutedo ao nuacutecleo dos
Misteacuterios de Elecircusis Apoacutes cerca de um ano ultrapassando os devidos estaacutegios o
adepto estaria pronto para atingir o estado supremo no qual ocorria a visatildeo
transcendente e transformadora correspondente ao rito final da iniciaccedilatildeo225 Embora
apenas se tenha conhecimento das manifestaccedilotildees exteriores dos misteacuterios eleusinos
e mesmo assim de forma imprecisa226 uma descriccedilatildeo aproximada da visatildeo eleusina
pode ser extraiacuteda das palavras de Platatildeo No Fedro eacute narrada a experiecircncia iniciaacutetica
de contemplaccedilatildeo que ilustra um estado bastante proacuteximo ao que provavelmente
ocorria na epopteia
221 Oratio p114 ldquoQuod si hoc idem nobis angelicam affectantibus vitam factitandum est quaeso quis Domini
scalas vel sordidato pede vel male mundis manibus attinget Impuro ut habent mysteria purum attingere nefasrdquo
222 Oratio p115 223 O tema da purificaccedilatildeo eacute central nos Misteacuterios de Elecircusis de Dioniso e nos Oacuterficos para citar os mais
conhecidos A Lacircmina de Turi por exemplo achado arqueoloacutegico pertencente ao seacuteculo IV ou III aC traz as inscriccedilotildees ldquoEu venho puro dentre os purosrdquo indicando a terminaccedilatildeo de um processo purificatoacuterio condiccedilatildeo obrigatoacuteria para a recepccedilatildeo do iniciado em dimensotildees superiores (cf KERN Orphicorum Fragmenta fr 32d)
224 Oratio p122 ldquoQuid enim aluid sibi volunt in Graecorum arcanis observati initiatorum gradus quibus primum per illas quas diximus quasi februales artes moralem et dialecticam purificatis contingebat mysteriorum susceptio Quae quid aluid esse potest quam secretioris per philosophiam naturae interpretatio Tum demum ita dispositis illa adveniebat lsquoἐ π ο π τ ε ί αrsquo idest rerum divinarum per theologiae lumen inspectiordquo
225 Giorgio COLLI A Sabedoria Grega 2012 p33 226 De acordo com Erwin RHODE (Psyche 2006 p239) apenas o lado exterior das cerimocircnias eleusinas
possuem registros Nas festividades conhecidas como ldquoPequenos Misteacuteriosrdquo de Elecircusis o adepto tambeacutem poderia vivenciar uma breve visatildeo reveladora Contudo era no interno dos ldquoGrandes Misteacuteriosrdquo ndash apreendidos pelos epoptas e mantidos em segredo ndash que se dava a visatildeo transformadora (COLLI opcit p31)
99
Eacuteramos iniciados naquela que justamente eacute chamada a mais
feliz das iniciaccedilotildees aquele rito secreto que celebraacutevamos []
Inteiramente perfeitas simples sem tremor e felizes eram as
apariccedilotildees ndash em um esplendor puro ndash em que eacuteramos iniciados e
atingiacuteamos o cume da contemplaccedilatildeo Noacutes mesmos puros natildeo
encerrados na tumba que agora levamos conosco e chamamos
corpo ligados estreitamente a ele como a ostra agrave sua concha227
Como forma complementar ou para dar relevo agrave questatildeo logo apoacutes a menccedilatildeo
agraves visotildees eleusinas Pico se remete ao conceito platocircnico da ldquoinspiraccedilatildeordquo socraacutetica
aproximando aqueles rituais do domiacutenio filosoacutefico (ldquoaquela iniciaccedilatildeo que outra coisa
pode ser senatildeo a interpretaccedilatildeo da mais oculta natureza mediante a Filosofiardquo)228
Quem natildeo quereraacute ser inspirado pelo furor socraacutetico exaltado
por Platatildeo no Fedro arrebatado em ceacutelere voo para a Jerusaleacutem
Celeste fugindo rapidamente com um bater de asas daqui isto
eacute do mundo reino do democircnio Arrebatar-nos-atildeo oacute Padres
arrebatar-nos-atildeo os furores socraacuteticos trazendo-nos para fora
da mente a tal ponto que nos coloquemos a noacutes e agrave nossa mente
em Deus229
A mencionada passagem do Fedro narra que atraveacutes de purificaccedilotildees e
iniciaccedilotildees seria possiacutevel encontrar uma libertaccedilatildeo dos males mas apenas para quem
estivesse ldquosob maniardquo ou ldquopossuiacutedordquo pelos deuses ldquona forma certardquo230 O ldquotrazer para
fora da menterdquo eacute outra forma de aludir ao veacutertice da experiecircncia miacutestica quando
ocorre o estado de ldquoecircxtaserdquo sem a mediaccedilatildeo da razatildeo O extasis literalmente lsquosair-de-
sirsquo era o instrumento para a liberaccedilatildeo cognoscitiva rompida a individualidade do
iniciado esse passava a ver aquilo que os natildeo iniciados natildeo viam231 ldquoLibertar-se da
existecircncia corporal conhecer o ecircxtase e elevar-se aos ceacuteusrdquo satildeo temas recorrentes nos
discursos socraacuteticos232 dizia Soacutecrates que ldquoos bacantes das iniciaccedilotildees natildeo satildeo senatildeo
aqueles que se entregam agrave filosofia no sentido exatordquo233 tecendo uma
correspondecircncia entre o campo filosoacutefico e os Misteacuterios que natildeo seria ignorada na
Oratio piquiana Os bacantes adeptos partiacutecipes dos misteacuterios dionisiacuteacos podiam
atingir um estado de maniacutea no qual se dava uma visatildeo do tipo relatado nas epopteias
de Elecircusis Tratar-se-ia assim como naqueles cultos de uma visatildeo de caraacuteter
227 PLATAtildeO Fedro 250 b-c 228 Cf Oratio p123 229 Oratio p123 ldquoQuis non Socraticis illis furoribus a Platone in Phaedro decantatis sic afflari non velit ut
alarum pedumque remigio hinc idest ex mundo qui est positus in maligno propere aufugiens ad caelestem Hierusalem concitatissimo cursu feratur Agemur Patres agemur Socraticis furoribus qui extra mentem ita nos ponant ut mentem nostram et nos ponant in Deordquo
230 PLATAtildeO Fedro 244c-245a 231 A questatildeo da saiacuteda de si promovida pelo ecircxtase encontra unanimidade entre vaacuterios inteacuterpretes Para maiores
detalhes veja-se recolhimento de Giorgio COLLI (2012 p18) tanto fontes antigas quanto mais recentes reconhecem a relaccedilatildeo entre ecircxtase e saiacuteda-de-si Niezsche foi um deles bem como Rodhe com seu Psiche
232 As palavras citadas estatildeo em Nicolas GRIMALDI Soacutecrates o Feiticeiro 2006 p10 O autor complementa que a preparaccedilatildeo por meio de vaacuterios tipos de exerciacutecios asceacuteticos utilizados para ldquodesatar os noacutesrdquo que prendem a alma ao corpo estatildeo na base do ensinamento socraacutetico Veja-se nesse sentido Feacutedon 64c-68b e Repuacuteblica VI 509b-c VII 517b-c
233 PLATAtildeO Feacutedon 69c-d
100
macircntico podendo assumir um aspecto de conhecimento da verdade234 Atraveacutes das
etapas iniciaacuteticas e entatildeo ldquotornados filoacutesofosrdquo conclui Pico que os iniciados seriam
ldquoinebriados na harmonia celesterdquo e por fim Baco senhor das Musas revelaria ldquoos
seus misteacuteriosrdquo ou ldquoos invisiacuteveis segredos de Deusrdquo235
4) Os mitos de Osiacuteris e de Dioniso respectivamente egiacutepcio e grego
representam partes das concepccedilotildees cosmogocircnicas presentes em algumas teogonias
que contemplam o conflito entre a Ordem e o Caos Pico certamente tinha em mente
elaborar uma siacutentese entre os dois mitos para ilustrar suas concepccedilotildees filosoacuteficas A
queda descrita no chamado ldquoMito dos Titatildesrdquo que narra o nascimento morte e
ressurreiccedilatildeo do deus Dioniso eacute parte da Teogonia das Rapsoacutedias que integra o
corpus da doutrina oacuterfica236 As Conclusiones oacuterficas mostram que Pico teve acesso
aos Hinos de Orfeu uma de suas provaacuteveis fontes de acesso ao mito Ambos os mitos
abordam a questatildeo da fragmentaccedilatildeo da unidade universal e a criaccedilatildeo da
multiplicidade levando agrave necessidade assim como nas primeiras cosmogonias
filosoacuteficas de se suplantar a dualidade e retornar agrave unidade perdida Repetem nesse
sentido a ideia de usurpaccedilatildeo do trono que representa a unidade e a fragmentaccedilatildeo
daquele que o ocupava No caso de Osiacuteris seu irmatildeo Set o assassina apoacutes lhe tirar o
trono e posteriormente o esquarteja espalhando seus pedaccedilos por todo o Egito237
Jaacute Dioniso por encontrar-se no final da linhagem genealoacutegica dos deuses recebera
de seu pai Zeus o comando do mundo deixando enciumados os Titatildes ndash divindades
dos primeiros tempos ndash que terminam por atacaacute-lo e despedaccedilaacute-lo Dos resiacuteduos
finais de Dioniso e dos Titatildes ndash jaacute que estes tambeacutem acabam exterminados ndash nascem
natildeo apenas os homens como o novo Dioniso238
Na passagem ldquodesceremos dilacerando com forccedila titacircnica o um nos muitosrdquo239
Pico deixa evidente que estaacute a relatar a particcedilatildeo e a redistribuiccedilatildeo do Uno em seu
movimento de descese conteuacutedo que se encontra na raiz da ideia de ldquoquedardquo da
unidade ndash embora natildeo se trate da Queda original240 A concepccedilatildeo do distanciamento
da unidade encontra-se na origem do vetor que impulsiona os vaacuterios modelos de
movimento asceacutetico especialmente aqueles do paganismo Haacute que se observar que
grande parte dos mitos cosmogocircnicos lida com a reconstituiccedilatildeo da multiplicidade e o
necessaacuterio esforccedilo para que se refaccedila a unidade e para sua preservaccedilatildeo Assim em
paralelo ao nascimento de um novo Dioniso em acircmbito grego tem-se no mito
egiacutepcio a reconstituiccedilatildeo do corpo de Osiacuteris por sua esposa Iacutesis permitindo desse
234 COLLI opcit pp17-19 235 Cf Oratio p 123 236 Alberto BERNABEacute Hieros Logos - Poesia oacuterfica sobre os deuses a alma e o aleacutem Satildeo Paulo 2012 p24 237 O mito de Osiacuteris tem seu principal relato em Plutarco De Iside e Osiride Set eacute identificado com o Tifeu dos
gregos e seu parentesco com os Titatildes ndash que eliminam Dioniso ndash eacute revelado no livro LXIX Para o tema veja-se J Gwyn GRIFFITHS (org) Plutarchs De Iside et Osiride University of Wales Press 1970
238 Em passagem de Olympiodoro lecirc-se ldquoIrritado contra eles [os Titatildes] Zeus os fulminou com um raio e do resiacuteduo dos vapores emitidos por eles produziu-se a mateacuteria da qual nasceram os homensrdquo (KERN Orphicorum Fragmenta fr 140 trad Alberto Bernabeacute) Para maiores detalhes veja-se BERNABEacute opcit p80 ss
239 PICO opcit p 116 ldquonunc unum in multitudinem vi titanica discerpentes descendemusrdquo 240 Alberto Bernabeacute provavelmente natildeo de forma isolada denomina a transgressatildeo cometida pelos Titatildes de
ldquopecado antecedenterdquo pelo fato de natildeo ter sido cometido pelo primeiro homem ndash caso em que seria ldquooriginalrdquo (Textos Oacuterficos y Filosofia Presocratica Edit Trotta Madrid 2004)
101
modo a concepccedilatildeo poacutestuma de seu filho Horus que representa a continuidade241
Nascimento Morte (desmembramento) e Ressurreiccedilatildeo (reconstituiccedilatildeo) constituem
em acircmbito miacutetico o triacuteplice movimento filosoacutefico que parte da Unidade fragmenta-
se na Multiplicidade e completa-se com o retorno agrave Unidade
5) A passagem biacuteblica do ldquoTabernaacuteculo de Moiseacutesrdquo narra a construccedilatildeo de um
santuaacuterio moacutevel ordenada por Deus que deveria ser realizada pelo povo hebreu
durante sua permanecircncia de quarenta anos no deserto242 A partir da estrutura
triacuteplice que se forma no templo da tradiccedilatildeo hebraica Pico concebe um percurso
asceacutetico que encontra correspondecircncia em seu modelo triaacutedico de dialeacutetica filosoacutefica
Assim como o Heptaplus apresenta a analogia do tabernaacuteculo com os trecircs mundos do
cosmo piquiano243 a Oratio faz corresponder em escala reduzida as trecircs partes do
santuaacuterio a trecircs elementos do corpo humano reafirmando a analogia mosaica entre o
homem-microcosmo e o universo-macrocosmo244 Nesse sentido a parte do
tabernaacuteculo que se encontra sob ceacuteu aberto sem proteccedilatildeo alguma corresponde aos
oacutergatildeos genitais representando o corpo material ligado aos sentidos a aacuterea
intermeacutedia do santuaacuterio jaacute protegida dos fenocircmenos da natureza encontra
correspondecircncia no coraccedilatildeo consonante agraves emoccedilotildees mas tambeacutem ao uso
instrumental da razatildeo finalmente a parte sagrada do tabernaacuteculo chamada ldquoSanto
dos Santosrdquo representa a cabeccedila sede do conhecimento superior245
Os que ainda impuros tecircm necessidade moral fiquem com o
vulgo fora do tabernaacuteculo sob o ceacuteu descoberto como os
sacerdotes da Tessaacutelia ateacute estarem purificados246
Na parte externa do tabernaacuteculo exposta a toda sorte de intempeacuteries
encontra-se o vulgo a ldquocorte inferiorrdquo247 povoada por espeacutecies animais e tambeacutem
por homens bons e maus Esse primeiro estaacutegio eacute correspondente ao grau de
conhecimento daqueles que precisam despertar atraveacutes da filosofia moral Jaacute no
interior do tabernaacuteculo niacutevel equivalente ao saber intermeacutedio inicia-se a utilizaccedilatildeo
do corpo racional embora ainda natildeo filosoacutefico
241 Osiacuteris passa a ser considerado deus dos mortos e revivendo a partir de seu filho Horus ndash associado ao Sol e
identificado por Heroacutedoto com Apolo (2 144) ndash tambeacutem o deus da renovaccedilatildeo Cabe ressaltar que a presenccedila de duas naturezas no homem que o fazem viver sob constante escolha eacute um tema eacutetico abordado por Pico em outras passagens e obras cuja derivaccedilatildeo eacute colhida de suas fontes platocircnicas Parte da natureza do homem eacute trazida dos restos de Dioniso ingeridos pelos Titatildes ndash o que lhe proporciona um componente positivo e celeste ansioso por reintegrar-se agrave sua natureza originaacuteria a outra parte eacute proveniente dos Titatildes o que inflige ao homem um elemento negativo e imbuiacutedo da marca da infraccedilatildeo por aqueles cometida
242 Cf Ecircxodo 25-27 243 Os detalhes acerca da relaccedilatildeo do tabernaacuteculo com os trecircs mundos ndash sublunar celeste e angeacutelico ndash seratildeo
abordados no Capiacutetulo VI Para um entendimento do tabernaacuteculo conforme a visatildeo miacutestica hebraica veja-se Moshe IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista 2008-b pp481-484
244 ldquoO mundo eacute chamado por Moiseacutes de homem grande de fato se o homem eacute um pequeno mundo necessariamente o mundo eacute um homem granderdquo escreveraacute Pico no Heptaplus (p 381)
245 BUSI-EBGI Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 pp 348-349 246 Oratio p120 ldquoQui polluti adhuc morali indigent cum plebe habitent extra tabernaculum sub divo quasi
Thessali sacerdotes interim se expiantesrdquo 247 Expressatildeo utilizada por BUSI-EBGI opcit p 348
102
Os que jaacute atingiram uma vida reta acolhidos no santuaacuterio natildeo
se aproximem ainda das coisas sacras mas prestem-lhes pri-
meiro serviccedilo com um noviciado dialeacutetico como zelosos levitas
da filosofia248
Ao uacuteltimo grau de eminente caraacuteter teoloacutegico Pico outorga caracteriacutesticas
filosoacuteficas confirmando sua visatildeo de perfeita concoacuterdia entre a Teologia e a Filosofia
em seu grau superior As palavras ndash atribuiacutedas a Moiseacutes ndash que finalizam sua reflexatildeo
exortam para uma preparaccedilatildeo que permita o ingresso ldquona via para a futura gloacuteria dos
ceacuteus por meio da Filosofiardquo249 Estaacutegio alcanccedilado apoacutes o ingresso no uacuteltimo grau do
tabernaacuteculo o Santo dos Santos
Por fim admitidos tambeacutem eles contemplem agora no
sacerdoacutecio da Filosofia ora o multicolor quer dizer o sideacutereo
ornamento do palaacutecio de Deus ora o candelabro das sete
chamas ora os elementos de pele ateacute que acolhidos finalmente
no tabernaacuteculo do templo por meacuterito da sublimidade teoloacutegica
usufruam retirado totalmente o veacuteu da imagem da gloacuteria de
Deus250
6) A Escola pitagoacuterica se caracterizava por um longo processo percorrido
atraveacutes da passagem por graus parte integrante da ldquobios theoretikoacutesrdquo (vida
contemplativa) agrave qual os membros se dedicavam para alcanccedilar a purificaccedilatildeo da
alma251 Embora tenha tido acesso agraves informaccedilotildees acerca das praacuteticas pitagoacutericas252
tendo conhecimento portanto dos estaacutegios de iniciaccedilatildeo pertinentes ao aprendizado
da doutrina Pico se limita na Oratio a abordar algumas normas contidas nos
akouacutesmata pitagoacutericos Os akouacutesmata eram preceitos ouvidos e retransmitidos
atraveacutes dos quais a organizaccedilatildeo pitagoacuterica se perpetuava juntamente com os sinais
de reconhecimento entre os membros os symbola253 Vaacuterias das doutrinas relatadas
por autores tardios foram transmitidas verbalmente geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo graccedilas agrave
248 Oratio p120 ldquoQui mores iam composuerunt in sanctuarium recepti nondum quidem sacra attractent
sed prius dialectico famulatu seduli levitae philosophiae sacris ministrentrdquo 249 No texto biacuteblico Moiseacutes natildeo faz referecircncia agrave filosofia trata-se de interpretaccedilatildeo de Pico Cf Oratio p120
ldquoHaec nobis profecto Moses et imperat et imperando admonet excitat inhortatur ut per philosophiam ad futuram caelestem gloriam dum possums iter paremus nobisrdquo
250 Oratio p120 ldquoTum ad ea et ipsi admissi nunc superioris Dei regiae multicolorem idest sidereum aulicum ornatum nunc caelestem candelabrum septem luminibus distinctum nunc pellicea elementa in philosophiae sacerdotio contemplentur ut postremo per theologicae sublimitatis merita in templi adita recepti nullo imaginis intercedente velo divinitatis gloria perfruanturrdquo
251 Como relata Jacircmblico (Vita Pythagorica 71-72) os estaacutegios se dividiam em periacuteodo probatoacuterio dokimasiacutea periacuteodo preparatoacuterio paraskeiecirc e periacuteodo purificatoacuterio cathartisis no uacuteltimo grau o teleiocirctes correspondente ao fim telos eram reveladas as primeiras e uacuteltimas causas das coisas Esse testemunho eacute tambeacutem confirmado em Dioacutegenes Laeacutercio (VIII 10) que o atribui a Timeu
252 Pico teve acesso agraves ldquoVidasrdquo pitagoacutericas atraveacutes da leitura de Porfiacuterio e Dioacutegenes Laeacutercio nas traduccedilotildees de Ficino e atraveacutes da leitura direta de Jacircmblico do qual possuiacutea a Vida de Pitaacutegoras (cf ldquoBiblioteca di Picordquo in GARIN 2011 p109)
253 Aristoacuteteles em sua obra Sobre os Pitagoacutericos (fr195) relatada por Dioacutegenes Laeacutercio (VIII 34-5) expotildee e analisa vaacuterios akouacutesmata como a abstenccedilatildeo de favas e o impedimento de se tocar em galo branco ou em peixes sagrados O Estagirita contudo natildeo pocircde decifrar o que havia por baixo de seu simbolismo Alguns akouacutesmata foram recolhidos em uma lista conservada por Porfiacuterio em seu Vida de Pitaacutegoras com comentaacuterios de Aristoacuteteles referentes ao assunto Veja-se tambeacutem Jacircmblico Vita Pythagorica 82
103
manutenccedilatildeo de tal oralidade254 Como as doutrinas da escola eram consideradas um
segredo e sua propagaccedilatildeo estritamente reservada aos adeptos os iniciados
pitagoacutericos apreendiam seus conteuacutedos e os memorizavam A transmissatildeo dos
akouacutesmata se dava atraveacutes de enunciados enigmaacuteticos de indecifraacutevel entendimento
e Pico parece ter extraiacutedo suas interpretaccedilotildees de fontes neoplatocircnicas255
Exortar-nos-aacute [Pitaacutegoras] em primeiro lugar a natildeo nos
sentarmos em cima do alqueire isto eacute natildeo deixarmos inativa a
parte racional com a qual a alma tudo mede julga e examina
mas antes dirigi-la e mantecirc-la desperta com o exerciacutecio e as
regras da dialeacutetica256
Na passagem acima Pico leitor de Jacircmblico alude de forma indireta aos
especiacuteficos exerciacutecios (aacuteskesis) para o desenvolvimento da parte racional da alma
integrantes da biacuteos pitagoacuterica Dentre eles embora natildeo mencionados havia a
preocupaccedilatildeo com a dieteacutetica a utilizaccedilatildeo da muacutesica para fins terapecircuticos os
exerciacutecios voltados agrave contemplaccedilatildeo257 e os exerciacutecios para a memoacuteria258 Aleacutem desses
uma praacutetica necessaacuteria consistia apoacutes os graus iniciais do discipulado em
permanecer em silecircncio por cinco anos atraveacutes do qual as experiecircncias iniciaacuteticas se
mantinham como prerrogativas exclusivas de seus iniciados259 Voltando aos
preceitos da transmissatildeo oral Pico prossegue com a interpretaccedilatildeo de outro
akouacutesmata que se coaduna com sua proacutepria filosofia
Indicar-nos-aacute entatildeo duas coisas que acima de tudo devemos
evitar urinarmos voltados para o sol e cortarmos as unhas
durante o sacrifiacutecio Soacute quando tivermos expulso de noacutes
mediante a moral os turvos apetites da voluptuosidade e
tivermos cortado as garras aduncas da ira removidos os
aguilhotildees da alma soacute entatildeo comeccedilaremos a tomar parte nos
sacros misteacuterios de Baco260
254 Apoacutes o esfacelamento das comunidades pitagoacutericas os membros dispersos mais antigos continuavam a fazer
dos akouacutesmata seu guia (cf JAcircMBLICO Comm Mat) 255 Cf notas de Eugenio Garin agrave ediccedilatildeo do De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 256 Oratio p126 ldquoPraecipiet primo ne super modium sedeamus idest rationalem partem qua anima omnia
metitur iudicat et examinat ociosa desidia ne remittentes amittamus sed dialectica exercitatione ac regula et dirigamus assidue et excitemosrdquo
257 O vegetarianismo era praticado pelos pitagoacutericos numa eacutepoca em que o sacrifiacutecio animal era um dos pilares da cultura grega Os exerciacutecios de contemplaccedilatildeo estavam diretamente relacionados agraves especulaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas pitagoacutericas em clara sintonia com a concepccedilatildeo grega do vocaacutebulo θεωρία (theoriacutea) que carrega o significado de ldquoespeculaccedilatildeo ou vida contemplativardquo Nesse sentido a tradiccedilatildeo reconhece as especulaccedilotildees engendradas na escola pitagoacuterica tendo aiacute se originado o ideal grego de philosophia e theoriacutea (cf JAcircMBLICO Vita Pythagorica respectivamente 85 163-164)
258 O membro da koinoniacutea pitagoacuterica era instruiacutedo a dedicar um periacuteodo especiacutefico do dia para a praacutetica da anamneacutesis ldquoAcreditavam que se deveria reter e conservar na memoacuteria tudo aquilo que era ensinado e escutado[hellip] de forma que o pitagoacuterico natildeo se levantava da cama antes de ter chamado agrave memoacuteria aquilo que havia acontecido no dia anteriorrdquo (Aristoacutexeno 58 D1 DK Jacircmblico VP 164-166)
259 A propoacutesito dessa passagem lecirc-se em Jacircmblico que ldquode todas as provas de autocontrole aquela de frear a liacutengua eacute certamente a mais dura como bem demonstram aqueles que instituiacuteram os Misteacuteriosrdquo (VP 71-72)
260 Oratio p126 ldquoTum cavenda in primis duo nobis significabit ne auf adversus Solem emingamus auf inter sacrificandum unguem resecemus Sed postquam per moralem et superfluentium voluptatum eminxerimus appetentias et unguium praesegmina quasi acutas irae prominentias et animorum aculeos resecuerimus tum demum sacris idest de quibus mentionem fecimus Bacchi mysteriis []rdquo
104
Apesar de o iniacutecio do trecho acima natildeo poder ser elucidado a analogia com os
misteacuterios baacutequicos colocada como final do processo enfatiza o formato triaacutedico
repetido por Pico mais uma vez o adepto apoacutes ter passado pelos graus de purificaccedilatildeo
moral e intelectual-dialeacutetica eacute tomado por uma visatildeo final transformadora (os
sagrados misteacuterios de Baco) ou em termos filosoacuteficos consegue a unidade com o
Inteligiacutevel Apoacutes atingido tal estaacutegio seraacute necessaacuterio conservaacute-lo com a devida
alimentaccedilatildeo da alma
Aconselhar-nos-aacute por fim a alimentar o galo isto eacute a saciar
com soacutelida alimentaccedilatildeo e com a celeste ambrosia das coisas
divinas a parte divina da nossa alma261 []Eacute este o galo que
Soacutecrates na hora da morte no momento em que esperava
reunir o divino da sua alma agrave divindade de tudo e jaacute afastado do
perigo de qualquer doenccedila corpoacuterea considerava que devia a
Esculaacutepio isto eacute ao meacutedico da alma262
7) Em seus registros extraiacutedos dos Oraacuteculos Caldeus263 Pico encontra outro
modelo para comprovar sua concepccedilatildeo da triacuteplice via para a verdade em que se
repete o processo iniciado com a filosofia moral continuado com a dialeacutetica e
concluiacutedo nesse caso com a Teologia Observe-se a semelhanccedila do mito da alma
alada cuja narraccedilatildeo eacute atribuiacuteda a Zoroastro com o Mito do Cocheiro narrado no
Fedro264
Escrevem os inteacuterpretes caldaicos que Zoroastro havia dito ser a
alma alada e que quando lhe caem as asas se precipita no
corpo e volta a voar para o ceacuteu quando lhe tornam a crescer
Tendo-lhe os disciacutepulos perguntado de que modo poderiam
261 PORFIacuteRIO Vita Pythagorica 42 JAcircMBLICO Protrepticus 21 Vejam-se ainda os comentaacuterios de FICINO
acerca do simbolismo pitagoacuterico (Commentariolus in symbola Pyth in Supplementum Ficinianum II) Referecircncias conforme notas de GARIN agrave ediccedilatildeo de De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942
262 A passagem referida a Soacutecrates encontra-se em PLATAtildeO Feacutedon 118a Cf Oratio p126 ldquoPostremo ut gallum nutriamus nos admonebit idest ut divinam animae nostrae partem divinarum rerum cognitione quasi solido cibo et caelesti ambrosia pascamus []Hunc gallum moriens Socrates cum divinitatem animi sui divinitati maioris mundi copulaturum se speraret Aesculapio idest animarum medicordquo []
263 A atribuiccedilatildeo feita a Zoroastro das sentenccedilas presentes nos Oraacuteculos Caldeus eacute uma provaacutevel inferecircncia de George Plethon no que foi seguido por Marsiacutelio Ficino em sua Theologia platocircnica (Cf BIDEZ - CUMONT Les Mages helleacuteniseacutes Paris 1938) Pico cita na Oratio os oraacuteculos dos Magos Ezra Zoroastro e Melchiar menciona tambeacutem ldquoEvantes o persa que explica a teologia caldeiardquo e entre essas fontes indica certos textos que ldquoentre os gregos circularam de forma incompletardquo Os textos que circularam entre os gregos de forma incompleta provavelmente satildeo os recolhidos inicialmente por Miguel Psello (que os denomina ldquoditos caldeusrdquo) e depois por George Plethon (que os atribuiacutea aos Magos descendentes de Zoroastro) Cf Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquoOratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin 2013 pp9-61 Em carta a Ficino de 1486 Pico menciona ainda ldquoum livreto sobre os dogmas da teologia caldaica com uma divina e rica elucidaccedilatildeo dos Persas Gregos e Caldeus a propoacutesito de tais dogmasrdquo (apud KRISTELLER Supplementum Ficinianum 1937 pp 272-273) Uma nota na ediccedilatildeo do De Hominis Dignitate etc (1942 p128) confirma Plethon juntamente com Miguel Psello como fontes de acesso de Pico aos Oraacuteculos
264 Cf PLATAtildeO Fedro 246 ss
105
tornar a alma apta para o voo com asas bem plumadas disse
lsquoregai as asas com a aacutegua da vidarsquo265
Na sequecircncia da narrativa piquiana os disciacutepulos de Zoroastro teriam lhe
perguntado como poderiam obter tais aacuteguas A resposta introduz por meio de uma
paraacutebola (ldquoparabolamrdquo) extraiacuteda da boca do profeta um nuacutecleo epistemoloacutegico que
Pico faraacute corresponder ao sistema que estaacute a defender
lsquoO paraiacuteso de Deus eacute banhado e irrigado por quatro rios a partir
daiacute podereis atingir as aacuteguas salutares O nome daquele que
corre de setentriatildeo eacute Pischon que significa justiccedila o que vem
do ocaso chama-se Dichon isto eacute expiaccedilatildeo o que vem do
oriente eacute Chiddekel e significa luz por fim aquele que corre do
sul chama-se Perath que podemos interpretar como feacutersquo266
O modelo de quatro rios encontra-se no Gecircnesis267 e natildeo se sabe de quais
fontes Pico colheu a passagem considerada caldaica268 Aos quatro paradigmas
relacionados agrave justiccedila expiaccedilatildeo luz e feacute o autor faz corresponder um processo
relacionaacutevel agrave tripartita philosophia
Devemos purificar a viscosidade dos olhos com a ciecircncia moral
como com ondas ocidentais devemos dirigir atentamente o
olhar com a dialeacutetica como com um niacutevel boreal devemos nos
habituar a suportar na contemplaccedilatildeo da natureza a ainda fraca
luz da verdade primeiro indiacutecio do sol nascente ateacute que
finalmente com a meditaccedilatildeo teoloacutegica e o santiacutessimo culto de
Deus possamos aguentar vigorosamente como aacuteguias do ceacuteu o
fulgurante esplendor do sol do meio-dia269
265 Oratio p128 ldquoScribunt interpretes Chaldaei verbum fuisse Zoroastris alatam esse animam cumque alae
exciderent ferre illam praeceps in Corpus tum illis subcrescentibus ad superos revolare Percunctantibus eum discipulis alis quo pacto bene plumantibus volucres animos sortirentur lsquoirrigetis dixit alas aquis vitaersquordquo
266 Conforme as palavras atribuiacutedas a Zoroastro (Oratio p 128) ldquoQuattuor amnibus paradisus Dei abluitur et irrigatur indidem vobis salutares aquas hauriatis Nomen ei qui ab aquilone Pischon quod rectum denotat ei qui ab occasu Dichon quod expiationem significat ei qui ab ortu Chiddekel quod lumen sonat ei qui a meridie Perath quod pietatem interpretari possumusrdquo
267 Gecircnesis 2 10-14 ldquoNo Eacuteden nascia um rio que irrigava o jardim e depois se dividia em quatro O nome do primeiro eacute Pisom Ele percorre toda a terra de Havilaacute onde existe ouro [] O segundo que percorre toda a terra de Cuxe eacute o Giom O terceiro que corre pelo lado leste da Assiacuteria eacute o Tigre E o quarto rio eacute o Eufratesrdquo
268 No periacuteodo de redaccedilatildeo da Oratio Pico encontrava-se sob orientaccedilatildeo de Flavio Mitridate e cita em carta endereccedilada a Ficino n0 outono de 1486 seus estudos caldaicos (Supplementum Ficinianum pp 272-3) ldquoChaldaici hi libri sunt si libri sunt et non thesaurirdquo Pico tinha agrave disposiccedilatildeo alguns textos escritos em uma mescla de aramaico e hebraico conforme se extrai de alguns fragmentos Por exemplo os nomes dos rios paradisiacuteacos conforme constam no manuscrito Palatino parecem estar em caracteres etioacutepicos ou em liacutengua aramaico-hebraica conforme notou Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1987) Veja-se para toda a questatildeo Stephen FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) 1998 pp 13 486-87
269 Oratio p128 ldquo[] profecto nihil aliud nisi ut morali scientia quasi undis hibericis oculorum sordes expiemus dialectica quasi boreali amussi illorum aciem liniemus ad rectum Tum in naturali contemplatione debile adhuc veritatis lumen quasi nascentis solis incunabula pati assuescamus ut tandem per theologicam pietatem et sacratissimum Dei cultum quasi caelestes aquilae meridiantis solis fulgidissimum iubar fortiter perferamusrdquo
106
Nesta uacuteltima passagem para conseguir estabelecer uma simetria entre seu
pressuposto processo triaacutedico e as quatro qualidades postuladas pelos caldeus Pico
insere um intervalo no lugar de um dos quatro elementos do modelo caldaico como
se fosse um niacutevel preparatoacuterio colocado antes da etapa final teoloacutegica ldquodevemos nos
habituar a suportar na contemplaccedilatildeo da natureza a ainda fraca luz da verdaderdquo270 Tal
inserccedilatildeo que representa o primeiro contato com as ldquofaiacutescasrdquo iniciais da verdade
permite que seja mantida a analogia entre os trecircs ldquomomentosrdquo do processo filosoacutefico
e a misteriologia caldaica A despeito da impossibilidade de elucidaccedilatildeo do significado
dos rios no mito acima descrito torna-se relevante o esforccedilo realizado pelo escritor
para alcanccedilar uma simetria conceitual entre os conteuacutedos Sob tal prisma a resposta
para a questatildeo de como renovar as asas e tornaacute-las aptas para novos voos encontra-se
no caminho que se inicia com a filosofia moral se desenvolve por meio dos exerciacutecios
dialeacuteticos e se conclui na meditaccedilatildeo teoloacutegica O trecho faz menccedilatildeo ainda a ciclos
relacionados agrave luz solar o que leva Pico ao teacutermino de sua argumentaccedilatildeo a declarar
ter encontrado semelhanccedila com a concepccedilatildeo triaacutedica dos periacuteodos do dia ldquomatutinos
vespertinos e meridianosrdquo cantados primeiramente por Davi e em seguida
explicados por Agostinho271 Os trecircs periacuteodos se referem a fases do conhecimento do
homem sendo que o uacuteltimo referente agrave ofuscante luz do meio-dia encontra eco na
regiatildeo alcanccedilada atraveacutes da contemplaccedilatildeo conforme se conclui no final da exposiccedilatildeo
Esta eacute a luz meridional que inflama os Serafins e do mesmo
modo ilumina os Querubins272
Os sete modelos acima expostos cada qual pertencente a uma distinta
tradiccedilatildeo seja filosoacutefica teoloacutegica ou misterioloacutegica embora natildeo sistematizados pelo
Autor na forma aqui apresentada e aparentemente lanccedilados no texto qual uma
profusatildeo de referecircncias sem qualquer viacutenculo conceitual representam paradigmas
empregados para sustentar a ideia postulada na obra da existecircncia de formatos
270 Observe-se que nessa sentenccedila natildeo eacute feita correspondecircncia alguma com os niacuteveis da filosofia postulados pelo
autor enquanto agraves outras trecircs sentenccedilas Pico faz corresponder os graus da filosofia moral relacionada ao ocaso-ocidente-expiaccedilatildeo da passagem caldaica da dialeacutetica relacionada ao norte-boreal-justiccedila e por uacuteltimo da teologia que Pico relaciona ao sol do meio-dia e agrave feacute
271 Cf Oratio p128 ldquoHae illae forsan et a Davide decantatae primum et ab Augustino explicatae latius matutinae meridianae et vespertinae cognitionesrdquo As passagens mencionadas se encontram em Salmos 55 17 (Vulgata 54) Agostinho De Genesi ad Litteram IV 47 Conforme Agostinho em seu Comentaacuterio ao Gecircnesis ldquoo universo pode apresentar ao mesmo tempo o dia onde estaacute o sol a noite onde natildeo estaacute a tarde de onde o sol se afasta a manhatilde aonde se aproxima [] E noacutes natildeo podemos contemplar tudo isso ao mesmo tempo e natildeo devemos equiparar esta situaccedilatildeo terrena e o circuito temporal e local da luz corpoacuterea agravequela paacutetria celestial onde eacute sempre dia na contemplaccedilatildeo da Verdade incomutaacutevel sempre tarde no conhecimento da criatura em si mesma sempre manhatilde a partir deste conhecimento ao louvor do Criador Pois ali natildeo se fez tarde pela ausecircncia da luz superior mas pela diversidade de conhecimento inferior nem se faz manhatilde como o conhecimento matutino sucede agrave noite da ignoracircncia mas porque eleva para a gloacuteria do Criador o conhecimento vespertino Finalmente tambeacutem o salmista [Davi] natildeo mencionando a noite diz lsquode tarde pela manhatilde e ao meio dia cantarei e anunciarei e ouviraacutes a minha vozrsquordquo
272 Oratio p128 ldquoHaec est illa lux meridialis quae Seraphinos ad lineam inflammat et Cherubinos pariter illuminatrdquo
107
triaacutedicos asceacuteticos que se repetem sob registros diacutespares A partir de tal enfoque a
concepccedilatildeo de domiacutenio da natureza sugerida por alguns dos autores humanistas que
trataram da dignidade do homem antes de Pico eacute suplantada pela ideia de
transcendecircncia de cada um de seus princiacutepios (vegetal animal racional intelectual)
que encontra eco em um percurso de dignificaccedilatildeo (ou posicionamento espacial) em
acircmbito cosmoloacutegico Essa experiecircncia eacute entendida pelo escritor como um caminho a
ser percorrido com o auxiacutelio das corretas ferramentas ndash a teurgia dos Misteacuterios os
exerciacutecios dialeacuteticos filosoacuteficos a contemplaccedilatildeo do ldquosol do meio-diardquo agostiniano
Os sete paradigmas confirmam que a uacuteltima etapa em qualquer dos caminhos
percorridos eacute preenchida pela experiecircncia de encontro com um centro de unidade
final da trajetoacuteria em que o movimento asceacutetico atinge o Absoluto Para Pico esse eacute
um momento de cunho teoloacutegico ndash descartado de qualquer dogma como visto na
discussatildeo do Capiacutetulo III Esse eacute o significado de apoacutes a ldquofilosofia ter acalmado os
conflitos da opiniatildeordquo apoacutes ldquoa dialeacutetica ter acalmado a razatildeordquo entatildeo sim ldquoa teologia
mostraraacute o caminhordquo273 Destarte ao termo de qualquer dos modelos encetados
conhece-se uma dissoluccedilatildeo ndash mesmo no percurso filosoacutefico caso da ldquofaiacutescardquo platocircnica
ndash em prol daquela uniatildeo A esse gecircnero de ocorrecircncia Pico remete a experiecircncia de
Moiseacutes no monte Sinai ao tratar da questatildeo filosoacutefica do amor-Eros ldquoMoiseacutes amou o
Deus que viu e promulgou ao povo aquilo que antes tinha visto na montanha como
contempladorrdquo274
A epopteia de Elecircusis a illuminatio angeacutelica a pertenccedila ao Santo dos Santos
do tabernaacuteculo Giovanni Pico natildeo estava a lanccedilar dados de forma aleatoacuteria em seu
texto Cada referecircncia eacute um tijolo colocado para erigir seu projeto e afirmar sua
mensagem dentro de um planejamento No caso dos paradigmas acima sua intenccedilatildeo
eacute mostrar que o percurso de etapas ascensionais se faz necessaacuterio para a descoberta
de ensinamentos que levam agrave Unidade e que em razatildeo de sua preciosidade
encontram-se custodiados pelo segredo De forma mais patente esse tema seraacute
estabelecido no Heptaplus como seraacute visto a partir do proacuteximo Capiacutetulo
273 Oratio p119 (ldquoA dialeacutetica acalmaraacute a razatildeo a filosofia natural acalmaraacute os conflitos da opiniatildeo a teologia
mostraraacute o caminhordquo) ldquoSedabit dialectica rationis turbas inter orationum pugnantias et syllogismorum captiones anxie tumultuantis Sedabit naturalis philosophia opinionis lites et dissidia quae inquietam hinc inde animam vexant distrahunt et lacerant []Ad illam [theologia] ipsa et viam monstrabit et comes ducet quae procul nos videns properantesrdquo
274 Oratio p112 Para esse modelo de experiecircncia de religaccedilatildeo com o Espiacuterito de Deus Pico se fundamenta em teoacutelogos como Fiacutelon Gregoacuterio de Nissa (La vita di Mosegrave II 182) e sobretudo Dioniacutesio Areopagita (Cf Pier Cesare BORI ldquoI tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandolardquo in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996)
108
CAPIacuteTULO V
RESSONAcircNCIAS CABALIacuteSTICAS E SEU INFLUXO SOBRE PICO
Ao redor de 1480 o papa Sisto IV promove a traduccedilatildeo para o latim de alguns
textos de conteuacutedo cabaliacutestico com o objetivo de apresentaacute-los ao mundo cristatildeo275
Giovanni Pico agrave eacutepoca muito jovem narraria em seu Discurso anos depois como
teria encontrado e adquirido tais livros ldquocom natildeo pequeno dispecircndio de dinheirordquo
lendo-os ldquocom suma diligecircncia e incansaacutevel estudordquo276 Embora essas traduccedilotildees natildeo
tenham sido utilizadas diretamente nas obras piquianas o intento do papa eacute
sugestivo de um tipo de interesse que tomava forma naquele seacuteculo mesmo que de
forma muito tiacutemida277 Cerca de duzentos anos antes de Pico Ramon Llull na
Espanha havia tentado apresentar a Cabala judaica ao mundo latino mas sua
tentativa fora em breve esquecida278 no lsquo400 os estudos cabaliacutesticos ganharam certa
repercussatildeo entre alguns autores italianos especialmente em Florenccedila279 contudo e
de forma bastante consensual Pico foi o primeiro a introduzir com eficaacutecia a Cabala
no pensamento cristatildeo280 razatildeo suficiente para que o estudioso do Autor aproxime
seu olhar aos principais conceitos da doutrina
O Mirandolano define na Oratio o significado de ldquocabalardquo ldquoverdadeira
interpretaccedilatildeo da lei dada a Moiseacutes por Deus que para os Hebreus tem o mesmo
275 Cf PICO Oratio p159 Quais fossem esses textos e quem teria sido o tradutor natildeo eacute informado na obra
piquiana Entretanto sobre o mesmo argumento voltou-se o teoacutelogo alematildeo Konrad Summenhart em 1494 em sua obra Liber bipartitus informando que os textos cabaliacutesticos que interessaram ao papa teriam sido o Seder lsquoolam e o Neophastis A data de tais traduccedilotildees natildeo eacute informada mas deve ser estabelecida entre 1471 e 1484 periacuteodo do papado de Sisto IV Acerca da obra e comentaacuterios de Summenhart leia-se Guido BARTOLUCCI Marsilio Ficino e le Origini della Cabala Cristiana in Giovanni Pico e la Cabbalagrave (org F Lelli) 2014 p54
276 Cf PICO ibid p161 277 Eram poucos os que haviam ouvido falar das doutrinas cabaliacutesticas Tanto na corte pontifiacutecia quanto nas
universidades da Itaacutelia e da Europa nenhum cristatildeo fazia ideia do que fosse a Cabala ndash e nem estava interessado em saber (cf BUSI-EBGI Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 p296) O proacuteprio Pico conta na Apologia (ed Fornaciari 2010 p176-77) que um dos Padres ndash durante o interrogatoacuterio que se seguiu agrave publicaccedilatildeo das Conclusiones ndash perguntara quem era esse tal sujeito chamado ldquoCabalardquo Por outro lado nos casos em que a Cabala natildeo era completamente desconhecida seu estudo era visto como uma ldquobizarrice anedoacuteticardquo e natildeo como uma discussatildeo seacuteria conforme observou Cesare VASOLI em seu ldquoPrefaacuteciordquo (p XXV) a Giovanni Pico della Mirandola (GARIN 2011)
278 O teoacutelogo e filoacutesofo catalatildeo Ramon Llull florescido no seacuteculo XIII e conhecido em espanhol como Raimundo Lulio escreveu em aacuterabe latim e em occitano (langue doc) tendo recebido a alcunha de Arabicus Christianus (aacuterabe cristatildeo)
279 Interessaram-se pelo estudo da Cabala de forma a deixar registros Pier Leone da Spoleto Egidio da Viterbo e Domenico Grimani (Cf Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p 56)
280 Efetivamente Pico mostra ter descoberto confirmaccedilotildees para a revelaccedilatildeo cristatilde no coraccedilatildeo da miacutestica hebraica como antecipado nas Conclusiones e confirmado no Heptaplus A teologia cabaliacutestico-cristatilde de Pico interessaria no Quinhentos a filoacutesofos e miacutesticos sobretudo do ambiente franciscano tendo sido aperfeiccediloada por Johann Reuchlin e Cornelius Agrippa e reutilizada mais tarde pelos ldquoplatocircnicos de Cambridgerdquo Esses autores se serviram de muitas traduccedilotildees latinas realizadas por judeus convertidos ao Cristianismo Na Cabala cristatilde foram mantidos elementos hermenecircuticos maacutegicos e de natureza teosoacutefica sendo retirados os elementos ritualiacutesticos da religiatildeo judaica Sua originalidade em apresentar a Cabala ao mundo cristatildeo eacute confirmada por FORNACIARI (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 pp 14 23) BACCHELLI (Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 np56) CASSUTO (Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p319) GARIN (Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina 2011 p101) SECRET (Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Cap) entre outros
109
significado que receptiordquo uma doutrina recebida ldquopor meio de sucessivas revelaccedilotildees
que um recebia do outro como por direito hereditaacuteriordquo281 De fato a palavra hebraica
qabbalah significa ldquorecepccedilatildeordquo ldquotradiccedilatildeordquo ou ldquoaceitaccedilatildeordquo indicando a transmissatildeo de
doutrinas secretas do misticismo judaico e particularmente caracterizando um
movimento de pensamento de conotaccedilatildeo esoteacuterica282 Em seu valor de ldquorecepccedilatildeordquo
enuncia o conceito de continuidade com o passado e tambeacutem o sentido de
responsabilidade que essa heranccedila espiritual comporta Cada geraccedilatildeo eacute chamada a
receber da precedente o conjunto de valores e ensinamentos secretos sobre os quais
se funda o Judaiacutesmo devendo transmiti-la agrave sucessiva283 O termo que pode ser
encontrado com diferentes grafias ndash entre as quais ldquocabalardquo forma latina empregada
por Giovanni Pico e aqui utilizada ndash284 teria aparecido na literatura apenas no seacuteculo
XI em um escrito do poeta e filoacutesofo Salomon Ibn Gabirol285 enquanto que sua plena
conotaccedilatildeo de conhecimento secreto ganharia corpo por volta do tardio seacuteculo XIII
partindo do ciacuterculo de Isaac o Cego no sul da Franccedila286
A Cabala italiana que desde sua origem ateacute o iniacutecio do seacuteculo XVI exerceu
influxos mais efetivos sobre os pensadores cristatildeos renascentistas que se
interessaram pelo assunto tem sua ldquoespinha dorsalrdquo formada por trecircs cabalistas
como informa Moshe Idel Abraham Abulafia que compocircs a maior parte de suas
obras na Itaacutelia Menahem Recanati e o autor do livro Maarekhet haElohut (A Ordem
da Divindade)287 De acordo com o comentarista os trecircs tinham em comum a
caracteriacutestica conceitual da incompatibilidade com a tradicional visatildeo miacutetica da
divindade apresentando concepccedilotildees mais filosoacuteficas Tal forma diferenciada fez com
que por um lado os cabalistas espanhoacuteis que chegavam agrave Itaacutelia estranhassem as
interpretaccedilotildees da escola italiana por outro que os ciacuterculos neoplatocircnicos de Florenccedila
tivessem um encontro sem atritos com a teologia ldquoquaserdquo filosoacutefica dos rabinos
Abulafia e Recanati288 A forma de Cabala protagonizada na Itaacutelia de qualquer forma
manteve os temas fundamentais do movimento relacionados com a emanaccedilatildeo do
princiacutepio divino e com a concepccedilatildeo de que cada parte da criaccedilatildeo responde a uma
secreta harmonia de desenho transcendente Para melhor entender o emprego da
281 Cf PICO Oratio pp 157 159 Veja-se tambeacutem Apologia (ed Fornaciari 2010) p 29 282 De acordo com IDEL (2008-a p17) desde o seacuteculo X haacute testemunhos da existecircncia de uma forma especiacutefica
de tradiccedilatildeo judaica esoteacuterica mas somente a partir do seacuteculo XII comeccedilam a se organizar registros a esse respeito 283 Giulio BUSI La Qabbalah 2011 p3 284 As grafias mais utilizadas para o termo proveniente do verbo hebraico LeCaBeL (ldquoreceberrdquo) satildeo qabbalah
kabbalah ou CaBaLaacute Eacute de se notar que esta palavra eacute oxiacutetona em Hebraico mas frequentemente falada em outros idiomas tanto como paroxiacutetona (inglecircs) como agraves vezes proparoxiacutetona (espanhol)
285 Salomon Ibn-Gebirol ou Schlomo ben Judah tornou-se conhecido no mundo cristatildeo como Avicebron A atribuiccedilatildeo de ter sido o primeiro a mencionar o termo ldquocabalardquo consta na ldquoIntroduccedilatildeordquo da ediccedilatildeo em espanhol do Zohar do comentarista Leoacuten DUJOVNE (El Zohar Versioacuten Castellana Buenos Aires 1992 p XVII)
286 IDEL 2008a pp17-18 Para compor o quadro histoacuterico de desenvolvimento do misticismo hebraico satildeo relevantes tanto a obra de Gershom SCHOLEM As Grandes correntes da Miacutestica Judaica (opcit) quanto a de Giulio BUSI Introduzione a Mistica ebraica Testi della tradizione segreta del giudaismo dal III al XVIII secolo 1995
287 IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e Cabalistas 2008-b p460 O autor do Sefer Maarekhet haElohut do qual Idel menciona a ediccedilatildeo de Mantova de 1558 natildeo eacute conhecido Sabe-se da existecircncia de uma traduccedilatildeo da obra realizada por Abulafia (ibid np461)
288 IDEL ibid p460 Efetivamente a Cabala italiana era mais ldquoextaacuteticardquo (especificaccedilatildeo que seraacute vista adiante) Para Abulafia por exemplo a crenccedila nas dez Sefirot (a ser verificada adiante) era pior do que a crenccedila cristatilde na Trindade Esse uacuteltimo toacutepico eacute tratado por IDEL em sua tese de doutoramento (As obras e a Doutrina de Abraatildeo Abulaacutefia Universidade Hebraica de Jerusaleacutem 1976 pp436 ss)
110
Cabala nos estudos realizados por Pico e as fontes por ele utilizadas se faz necessaacuterio
inicialmente entender como se deu sua transmissatildeo atraveacutes da histoacuteria e na
sequecircncia quais as principais concepccedilotildees e terminologias utilizadas pelos cabalistas
1 As fontes hebraicas da tradiccedilatildeo esoteacuterica
A transmissatildeo oral
A primazia da transmissatildeo de concepccedilotildees cabalistas natildeo deve ser creditada aos
escritos que lhe foram dedicados ao contraacuterio foi a tradiccedilatildeo oral a ajudar a perpetuar
tais concepccedilotildees sendo que a ocorrecircncia de manuscritos deve ser entendida como
uma seacuterie de episoacutedios excepcionais ocorridos dentro de uma longa histoacuteria de
transmissotildees orais Pressotildees externas como perseguiccedilotildees religiosas sociais e
poliacuteticas determinavam as variaccedilotildees entre as diferentes fases do misticismo judaico e
as consequentes disposiccedilotildees entre o que seria resguardado como esoteacuterico e o que se
tornaria puacuteblico289 A diaacutespora europeia responsaacutevel por fragmentar o judaiacutesmo em
pequenas comunidades criou circunstacircncias que exigiram que a experiecircncia miacutestica
fosse confiada agrave paacutegina escrita uma forma mais concreta de ampliar sua difusatildeo natildeo
sem que se mantivesse o cuidado em preservar uma linguagem simboacutelica que
protegesse os verdadeiros significados Eis a razatildeo como observa Giulio Busi de
serem frequentes nos textos cabaliacutesticos passagens como ldquoquem eacute dotado de intelecto
entenderaacuterdquo indicando a existecircncia de uma aacuterea conceitual reservada apenas agrave
transmissatildeo oral e deixando claro que o texto escrito natildeo apresenta todas as
respostas290 A necessidade histoacuterica de se registrar de forma escrita a tradiccedilatildeo oral
remete ao periacuteodo de exiacutelio babilocircnico e estaacute bem narrada por Giovanni Pico na
Oratio
Esdras291 ao ver claramente que natildeo se podia manter a tradiccedilatildeo
fixada pelos antepassados de transmitir oralmente a doutrina
nos exiacutelios nos massacres nas fugas nos cativeiros do povo de
Israel dado que deste modo pereceriam os misteacuterios da celeste
doutrina concedidos por Deus e natildeo podendo se manter por
muito tempo a memoacuteria desta sem a interposiccedilatildeo de textos
escritos estabeleceu que reunidos os saacutebios entatildeo
sobreviventes cada um manifestasse quanto conservava
guardado na memoacuteria acerca dos misteacuterios da Lei Estes em
289 Tova SENDER Iniciaccedilatildeo agrave Cabala 1992 p9 290 BUSI La Qabbalah 2011 pp5-6 291 Pico refere-se aos livros biacuteblicos de Esdras Os dois primeiros o de Esdras e o de Neemias pertencem ao
elenco dos livros autecircnticos assumidos pela Igreja o terceiro eacute o Esdras grego o quarto eacute outro apoacutecrifo do gecircnero apocaliacuteptico Pico trabalha com o Esdras IV (cf Luiz FERACINE 1999 notas)
111
seguida chamados os escribas foram escritos em setenta
volumes292
Os primeiros sinais de uma reflexatildeo efetivamente miacutestica colocada em forma
escrita remetem ao iniacutecio do segundo seacuteculo de nossa Era periacuteodo em que se insere a
redaccedilatildeo da Mishnaacute ndash essencialmente um corpus juriacutedico Trata-se da ediccedilatildeo escrita
de grande parte da tradiccedilatildeo oral com o conteuacutedo das leis e dos costumes que foram
se enriquecendo atraveacutes de anos de convivecircncia293 Esse conjunto de tratados eacute
amplamente comentado por outro importante texto intitulado Guemaraacute Ao conjunto
Mishnaacute e Guemaraacute deu-se o nome de Talmud em suas duas versotildees uma de
Jerusaleacutem e outra da Babilocircnia294 Esses dois Talmudim (plural de Talmud)
constituem uma espeacutecie de enciclopeacutedia natildeo apenas das tradiccedilotildees legais como das
praacuteticas religiosas da exegese e das lendas difundidas em idade tardo-antiga
contendo consistentes elementos de reflexatildeo acerca de temas miacutesticos295 Ademais
era comum efetuar-se no Talmud referecircncias a partes da literatura que se
encontravam fora do Pentateuco ou seja aos conteuacutedos transmitidos oralmente Por
essa razatildeo as fontes talmuacutedicas embora escritas compotildeem o que seria a Toraacute oral
dentro da tradicional distinccedilatildeo entre lsquoToraacute escritarsquo e lsquoToraacute oralrsquo Conforme explica
Scholem296 a Toraacute escrita eacute o proacuteprio texto do Pentateuco297 jaacute a Toraacute oral eacute a soma
de tudo o que foi comentado por eruditos ou saacutebios acerca daquele corpus escrito
natildeo apenas pelos comentadores talmuacutedicos da Lei mas por todos os demais que
interpretaram o texto Retrocedendo aos tempos mosaicos e de acordo com a
tradiccedilatildeo rabiacutenica Moiseacutes teria recebido ao mesmo tempo ambas as Toraacutes no Monte
Sinai sendo que a parte referente aos ensinamentos natildeo escritos deveria ser
transmitida oralmente de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo ndash de acordo com a antiga proibiccedilatildeo ldquoo
que eacute transmitido oralmente natildeo pode ser escritordquo298 Para o Judaiacutesmo rabiacutenico tudo
quanto um erudito de qualquer eacutepoca viesse a deduzir da Toraacute estaria incluso
naquela tradiccedilatildeo oral fornecida a Moiseacutes validando-se assim a concepccedilatildeo de que as
duas Toraacutes satildeo uma soacute tradiccedilatildeo oral e palavra escrita completam-se mutuamente
292 PICO Oratio p159 ldquoEsdras tunc ecclesiae praefectus post emendatum Moseos librum cum plane
cognosceret per exilia caedes fugas captivitatem gentis Israeliticae institutum a maioribus morem tradendae per manus doctrinae servari non posse futurumque ut sibi divinitus indulta caelestis doctrinae arcana perirent quorum commentariis non intercedentibus durare diu memoria non poterat constituit ut convocatis qui tunc supererant sapientibus afferret unusquisque in medium quae de mysteriis legis memoriter tenebat adhibitisque notariis in septuaginta volumina redigerenturrdquo
293 A Mishnaacute eacute composta por 63 tratados compilados pelo Rabino Yehudaacuteh Hanassiacute no seacuteculo II dC 294 A ediccedilatildeo do Talmud da Babilocircnia eacute considerada a mais completa pois sua composiccedilatildeo iniciou durante o
exiacutelio babilocircnico em 586 aC e chegou ateacute por volta do seacuteculo V dC (cf Marcelo MAGHIDMAN Secircfer Yetsiraacute - A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico 2014 p71)
295 Maiores detalhes acerca da discussatildeo histoacuterica em torno da Mishnaacute podem ser colhidos na obra La Qabbalah de Giulio BUSI (opcit pp38-40) aleacutem de o autor apresentar uma especiacutefica bibliografia para o tema Acerca do Talmud veja-se ainda SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo 1978
296 SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo 1978 p61 297 A Toraacute eacute composta pelos 5 Livros de Moiseacutes (entre 1100 e 1300 aC) Bereshit Shemot Vaikraacute Bamidbar e
Devarim conhecidos respectivamente como Gecircnesis Ecircxodo Leviacutetico Nuacutemeros e Deuteronocircmio chamados anos depois de Antigo Testamento juntamente com os Livros de Profetas (Josueacute Juiacutezes Isaiacuteas Jeremias Ezequieletc) e Escritos (Salmos Proveacuterbios JoacuteDaniel Esdras etc) Todo esse conjunto de livros eacute chamado TaNaKh
298 MAGHIDMAN opcit p71
112
Dentre os pensadores cristatildeos Pico foi dos poucos a evidenciar o esoterismo
presente nas Escrituras como se infere a partir do destaque dado ao tema das duas
Leis recebidas por Moiseacutes A questatildeo da separaccedilatildeo entre a literalidade e oralidade
recebeu foco na Apologia depois de o tema ter se repetido em algumas passagens da
Oratio como a que narra o pedido do ldquoAltiacutessimordquo de tornar puacuteblico o primeiro
daqueles livros para ser lido pelos ldquodignos e indignosrdquo e de confiar os demais
[secretos e correspondentes agrave lei oral] ldquoapenas aos saacutebiosrdquo Em outra passagem Pico
afirma que aquele livro poderia se tornar puacuteblico ndash mantendo sua dimensatildeo secreta
preservada ndash desde que fossem observadas certas condiccedilotildees ldquoa Moiseacutes Deus ordenou
que divulgasse a lei mas que natildeo escrevesse a interpretaccedilatildeo da lei nem a divulgasse
mas a revelasse soacute a Jesus Nave [Josueacute] e este por sua vez aos sumos sacerdotes sob
o sagrado sigilo do absoluto silecircnciordquo299 Outros dois cristatildeos vaacuterios seacuteculos antes de
Pico haviam sido afetados pela temaacutetica da tradiccedilatildeo oral biacuteblica Hilaacuterio e Oriacutegenes
ambos mencionados na Oratio300
Com o passar do tempo os ensinamentos orais em geral passaram a ser
considerados como pertencentes agrave Cabala e o emprego do termo foi sendo cada vez
mais relacionado agrave transmissatildeo oral Exemplo de tal uso eacute verificado no comentaacuterio
feito por Judah Ben Barzilai no seacuteculo XII ao Secircfer Yetsiraacute ndash importante obra
cabaliacutestica a ser abordada adiante ndash ao narrar a criaccedilatildeo do Espiacuterito Santo conta o
talmudista que os saacutebios costumavam transmitir ldquoreservadamente num sussurro
atraveacutes da Cabala declaraccedilotildees dessa espeacutecierdquo301 O esoterismo deveria portanto ser
mantido por cada geraccedilatildeo em virtude da restriccedilatildeo em se confiar noccedilotildees mais
profundas aos textos escritos evitando-se que os segredos da Revelaccedilatildeo fossem
deturpados por leitores despreparados Por essa razatildeo a presenccedila de um mestre se
fazia necessaacuteria na transmissatildeo oral pois atraveacutes da relaccedilatildeo direta entre mestre e
disciacutepulo seria possiacutevel avaliar as intenccedilotildees e garantir as atitudes intelectuais e eacuteticas
do aprendiz preservava-se assim a verdade intacta
Em relaccedilatildeo aos graus que levam ao conhecimento miacutestico haacute informaccedilotildees de
que em eacutepocas mais remotas seguiam-se exigecircncias muito riacutegidas a respeito de
certos atributos morais e mesmo de traccedilos fisiognomocircnicos dos seus participantes302
Em tempos mais recentes ainda foram mantidas algumas limitaccedilotildees ao aprendizado
da Cabala como o limite miacutenimo de idade que dependendo da escola pode variar
dos trinta aos cinquenta anos Pico conhecia a restriccedilatildeo da idade mencionando-a na
Apologia ldquoEsses livros satildeo venerados com tanta devoccedilatildeo que ningueacutem pode tocaacute-los
antes de ter completado quarenta anosrdquo303 Quanto agrave trajetoacuteria iniciaacutetica natildeo haacute
evidecircncias da existecircncia de etapas preacute-definidas que o adepto devesse ou deva
299 PICO Oratio respectivamente pp159 e 155 Grifo nosso 300 Ibid p155 301 SCHOLEM Cabala-Enciclopeacutedia judaica opcit p 6 Grifo nosso 302 SENDER opcit p9 A menccedilatildeo agrave fisiognomia remete ao discipulado pitagoacuterico que talvez tenha exercido
alguma influecircncia em algum nuacutecleo cabaliacutestico posterior Natildeo encontramos em outras fontes quaisquer esclarecimentos nesse sentido
303 Apologia p31 ldquoHi libri apud hebraeos hac tempestate tanta religione coluntur ut neminem liceat nisi anos XL natum illos attingererdquo Paolo FORNACIARI informa que de acordo com a tradiccedilatildeo o estudo soacute pode ser enfrentado por indiviacuteduos do sexo masculino que tenham acima de quarenta anos (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p18)
113
cumprir para ingressar em niacuteveis distintos de conhecimento304 O que se depreende
dos comentaacuterios acerca do misticismo judaico em paralelismo com a forma de outros
percursos miacutesticos eacute que os segredos da transmissatildeo oral conduzem o proseacutelito a
atingir certo estado extaacutetico que lhe permite receber solitariamente uma Revelaccedilatildeo
Haacute portanto uma relaccedilatildeo estreita entre a transmissatildeo oral o segredo mantido
atraveacutes de tal oralidade e o estado de ecircxtase que antecede a recepccedilatildeo da Revelaccedilatildeo
O misticismo judaico e parte relevante dos exerciacutecios asceacuteticos organizam-se
de forma preciacutepua em torno agrave interpretaccedilatildeo das Escrituras Nelas se encerram os
segredos protegidos pela tradiccedilatildeo oral Em claro consenso todos os miacutesticos judeus
desde os Terapeutas descritos por Filon ateacute ao mais recente hassid concordam que a
Toraacute seja um organismo vivente animado por uma vida secreta que aguarda uma
interpretaccedilatildeo miacutestica305 Como explica Scholem a hermenecircutica dos textos sagrados
eacute uma das formas de alcanccedilar seu conteuacutedo ldquovivordquo possibilitando a ocorrecircncia de
dado momento em que a substacircncia de tal conteuacutedo eacute remodelada ao passar pela
ldquocorrente de fogo do sentimento miacutesticordquo Natildeo se contentando com um uacutenico ato
isolado de ecircxtase o miacutestico continuaraacute a buscar a revelaccedilatildeo de algo oculto que o
aproxime cada vez mais do divino306 A relaccedilatildeo entre as palavras sagradas e o segredo
que guardam estaacute tambeacutem descrita na obra cabaliacutestica Zohar ldquocada palavra da
Escritura encerra um misteacuterio supremordquo o sentido literal eacute ldquoapenas um invoacutelucrordquo e
tomaacute-lo por verdade pode ldquotrazer adversidadesrdquo agravequele que o recebe por essa forma
exterior307 Outra passagem do Zohar anuncia que nas mesmas palavras das
Escrituras com as quais se enxerga apenas o sentido literal em outro momento pode
ser enxergado um novo sentido miacutestico sendo cada palavra insubstituiacutevel para os
dois sentidos
ldquo[]assim como para o sentido literal cada palavra eacute
indispensaacutevel sem que se possa acrescer ou eliminar qualquer
uma delas assim tambeacutem para o sentido miacutestico cada palavra eacute
indispensaacutevel sem que se possa acrescer ou eliminar qualquer
palavrardquo308
O miacutestico portanto natildeo rejeita a autoridade do texto escrito ele apenas
invalida uma aparente verdade que possa se mostrar no significado literal
substituindo-a por uma interpretaccedilatildeo que decorre de intuiccedilatildeo a ser alcanccedilada
durante a reflexatildeo miacutestica309 Conforme complementa Scholem as exegeses miacutesticas
sempre partem de palavras exatas para em seguida ldquode forma genialrdquo transformar
304 BUSI opcit pp5-6 305 SCHOLEM As grandes correntes da miacutestica judaica opcit pp 15-16 Em De Vita Contemplativa obra em
que Fiacutelon aborda as seitas judaicas dos Terapeutas a Toraacute eacute relatada como algo afim a um ser vivo o sentido literal eacute o corpo enquanto a alma eacute o significado secreto debaixo da palavra escrita
306 SCHOLEM ibid p 11 Na concepccedilatildeo da ldquocorrente de fogordquo que une o adepto ao divino natildeo haacute como deixar de estabelecer uma analogia com a questatildeo filosoacutefica do ldquolampejordquo descrito por Platatildeo na Carta VII O processo filosoacutefico de conhecimento produz em dado momento uma faiacutesca e subitamente como num lampejo a alma tem uma visatildeo intelectual que pode ser comparada a uma intuiccedilatildeo
307 Zohar III 152a in VULLIAUD I p135 308 Zohar II 99a in VULLIAUD I pp137-38 309 SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo opcit pp 21-22
114
as Escrituras em um corpus simboacutelico permitindo que se abra um portatildeo atraveacutes do
qual o miacutestico passa ldquoum portatildeo que se lhe abre sempre de novordquo Assim ldquoa exegese
miacutestica esta nova revelaccedilatildeo concedida ao miacutestico tem o caraacuteter de uma chaverdquo310
Como havia escrito Oriacutegenes em contexto concernente ao esoterismo ldquoachar as
chaves certas que abriratildeo as portas eacute a grande e aacuterdua tarefardquo311 As formas para se
encontrar ldquoa chave certardquo fazem parte dos segredos protegidos pela tradiccedilatildeo oral
A literatura miacutestica
O conjunto da tradiccedilatildeo escrita cabaliacutestica eacute sustentado por dois importantes
pilares ndash o Zohar e o Secircfer Yetsiraacute ndash aos quais se acrescentam como terceiro pilar
vaacuterios textos de eacutepocas diferenciadas O Secircfer Yetsiraacute (Livro da Formaccedilatildeo) eacute um
pequeno e antigo livro metafiacutesico com apenas seis capiacutetulos Escrito provavelmente
em Terra de Israel estima-se que sua data de composiccedilatildeo se situe entre os seacuteculos II
e III (podendo chegar ateacute o VI dC)312 estabelecendo-se assim como o texto judaico
mais antigo de caraacuteter propriamente miacutestico mesmo em se levando em conta a
possibilidade de ter sofrido alteraccedilotildees ao longo dos seacuteculos313 Sua primeira versatildeo
impressa realizada em Mantova e datada de 1562 tem sido a mais aceita embora
muitas coacutepias circulassem antes no universo judaico e principalmente nos ciacuterculos
fechados dos cabalistas sob formas natildeo impressas314
Os comentaacuterios ao Secircfer Yetsiraacute fazem parte integrante da literatura miacutestica
hebraica e foram amplamente utilizados por seus estudiosos Entre esses sabe-se da
existecircncia de um relevante comentaacuterio perdido realizado por Abulafia que se
fundamentou em sua admiraccedilatildeo por Maimocircnides ndash autor que mesmo natildeo tendo
produzido literatura miacutestica chegou a escrever um comentaacuterio ao primeiro capiacutetulo
do Secircfer Yetsiraacute315 Malgrado a significativa quantidade de comentaacuterios que ensejou
310 SCHOLEM ibid pp 20-23 311 A passagem referida a Oriacutegenes encontra-se em Selecta in Psalmos ref Salmo I in MIGNE Patrologia
Graeca XII 1080 apud SCHOLEM 1978 p 20 312 SCHOLEM As grandes correntes da miacutestica judaica opcit p83 Nome de Deus e Teoria da linguagem
opcit p21 Para BUSI a data de compilaccedilatildeo do Secircfer Yetsiraacute situa-se entre os seacuteculos VI e VII (2011 p9 e 46 ss) 313 O Secircfer Yetsiraacute pode ser classificado naquilo que os hebreus chamam de Maassecirc Bereshit (Atos de Criaccedilatildeo)
conjunto representado por textos cosmoloacutegicos ou cosmogocircnicos relacionados agrave Criaccedilatildeo do Universo ndash o todo ou os seres em particular ndash em distinccedilatildeo aos escritos de Maassecirc Mercavaacute relacionados agrave natureza divina ao trono celestial e agrave hierarquia dos Anjos O nome ldquomercavaacuterdquo relaciona-se agrave visatildeo da carruagem de fogo subindo aos ceacuteus que estaacute descrita em Ezequiel 101 e Isaiacuteas 61-2 (cf MAGHIDMAN opcit p107)
314 A ediccedilatildeo de Mantova apresenta tanto uma versatildeo curta do Secircfer Yetsiraacute acrescida de comentaacuterios quanto uma versatildeo longa inclusa em seu apecircndice embora existam bem mais do que duas versotildees do Secircfer Yetsiraacute como pode ser verificado em estudo comparativo efetuado por Hayman no qual satildeo apresentadas dezenove versotildees seis variaccedilotildees do texto longo dez da versatildeo curta e outras trecircs frutos do comentaacuterio de Saadia Gaon (892-943) A uacuteltima versatildeo comentada por Gaon tem a data precisa do ano 931 e eacute interessante observar que o proacuteprio Gaon aponta para algumas alteraccedilotildees que realizou no texto original (mudando por exemplo o nuacutemero de Portotildees da Sabedoria Divina de 221 para 231 no paraacutegrafo 19) assim alimentando duacutevidas se teria feito outras alteraccedilotildees Os manuscritos tomados como base para cada uma das versotildees satildeo o existente na Biblioteca do Vaticano (versatildeo longa) o de Parma (versatildeo curta) e a versatildeo comentada de Saadia Gaon proveniente da Guenizaacute do Cairo e atualmente na Biblioteca de Cambridge (Peter HAYMAN Sefer Yetsira Texts and Studies in Ancient Judaism 2004 pp2 12-14 31) Sobre as versotildees do Secircfer Yetsiraacute veja-se ainda SCHOLEM (1989 pp21 27) O Apecircndice II da obra de MAGHIDMAN (opcit) apresenta em portuguecircs a versatildeo curta do Secircfer Yetsiraacute
315 Para Abulafia no Guia dos Perplexos de Maimocircnides encontra-se a verdadeira teoria do Cabalismo (SCHOLEM 1995 pp 141-142) Para a averiguaccedilatildeo de outros comentaacuterios acerca do Secircfer Yetsiraacute veja-se HAYMAN opcit p31 BUSI opcit p48 SCHOLEM 1989 pp26 46
115
o autor do Secircfer Yetsiraacute permanece desconhecido Por muito tempo considerou-se
que tivesse sido Abraatildeo a concebecirc-lo ndash a obra de Pico mostra a aceitaccedilatildeo dessa
autoria ainda no lsquo400 ndash muito provavelmente em razatildeo da menccedilatildeo feita ao patriarca
no uacuteltimo paraacutegrafo do livro onde se lecirc ldquoe quando Abraham nosso pai olhou viu
entendeu perscrutou gravou e entalhou teve ecircxitordquo316 Por esse motivo o Livro da
Formaccedilatildeo eacute tambeacutem conhecido pelo nome Otiot Deavraham Avinu (O alfabeto do
patriarca Abraatildeo)317 De toda forma e embora sua autoria mantenha-se
desconhecida ainda hoje o Secircfer Yetsiraacute eacute considerado o primeiro texto especulativo
escrito no idioma hebraico318 Sua peculiaridade encontra-se em estar voltado para a
alma individual humana ndash e natildeo para os judeus de modo particular ndash razatildeo de o
nuacutemero doze ser indicativo dos signos do zodiacuteaco por exemplo e natildeo das
tradicionais doze tribos de Israel Tambeacutem natildeo menciona Moiseacutes a Toraacute ou o
Messias Assim de forma incomum na literatura hebraica a obra traccedila o ldquodesenho
das forccedilas ocultas do cosmordquo sem fazer quase nenhuma referecircncia direta ao texto das
Escrituras ou agrave tradiccedilatildeo poacutes-biacuteblica como complementa Giulio Busi319
Em termos de conteuacutedo o Secircfer Yetsiraacute pode ser descrito em linhas bastante
sucintas320 como um apanhado de conhecimentos de cunho miacutestico com notas
filosoacuteficas astroloacutegicas e cosmoloacutegicas da Antiguidade em que predominam
princiacutepios de simetria reciprocidade e correspondecircncia Em linguagem enigmaacutetica
encontra-se delineado o paralelismo entre as letras do alfabeto hebraico com
categorias da criaccedilatildeo dos mundos (angeacutelico celeste e material) e com funccedilotildees de
natureza fiacutesica bioloacutegica e psiacutequica de forma a estabelecer uma relaccedilatildeo entre a
infinitude de Deus e a finitude de sua obra ou em outras palavras uma relaccedilatildeo entre
a dimensatildeo material e a espiritual O Secircfer Yetsiraacute introduz ainda a noccedilatildeo de Sefirot
ndash a ser verificada adiante ndash um dos nuacutecleos fundamentais do pensamento
cabaliacutestico capaz de presentear os miacutesticos com uma doutrina orgacircnica do aspecto
secreto da Criaccedilatildeo321
O Secircfer ha-Zohar (Livro do Esplendor) ndash ou apenas Zohar ndash embora
redigido vaacuterios seacuteculos apoacutes o Secircfer Yetsiraacute eacute considerado por muitos como o
trabalho mais importante acerca da Cabala322 A despeito de ter tido sua autoria
estabelecida durante muito tempo no segundo seacuteculo e atribuiacuteda ao rabino Shimon
Bar Yohai ndash fato que tradicionalmente ainda prevalece mesmo em ediccedilotildees mais
recentes ndash alguns estudos acadecircmicos do seacuteculo passado especialmente de Gershom
316 Secircfer Yetsiraacute trad MAGHIDMAN Apecircndice II 2014 p174 317 SENDER 1992 p27 Dentre as hipoacuteteses de autoria do Secircfer Yetsiraacute Sender aponta para Rabi Akiva que
teria vivido em Israel no seacuteculo II de nossa Era (ibid pp27-28) 318 MAGHIDMAN opcit p19 319 BUSI opcit p9 320 Natildeo cabe nestas paacuteginas a anaacutelise do Secircfer Yetsiraacute ao qual literatura especializada tem se dedicado Na
sequecircncia seratildeo verificadas as principais concepccedilotildees do Secircfer Yetsiraacute que exerceram influecircncia sobre Pico della Mirandola Para comentaacuterios referentes ao Secircfer Yetsiraacute em portuguecircs veja-se a obra de MAGHIDMAN (2014)
321 BUSI opcit pp9 e 46 ss SCHOLEM 1995 p83 322 SCHOLEM 1989 p 52 A importacircncia do Zohar pode ser medida pela relevacircncia que lhe foi dada por um
dos maiores cabalistas do seacuteculo XVI Isaac Luria (1534-1572) que o utilizou como principal base de seus estudos Luria foi o responsaacutevel por uma das mais importantes escolas de Cabala revolucionando o misticismo hebraico (inclusive com suas doutrinas de transmigraccedilatildeo) e todo o Cabalismo posterior
116
Scholem apontam para o judeu espanhol Moshe de Leoacuten como seu mais provaacutevel
autor aleacutem de responsaacutevel por sua publicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo no seacuteculo XIII323
Escrito em aramaico e hebraico medieval o Zohar natildeo eacute exatamente um livro
com um texto sistemaacutetico mas um conjunto de livros que reuacutene vaacuterios contos em que
os personagens utilizando-se da Biacuteblia como pretexto discutem e efetuam inserccedilotildees
narrativas O conjunto de textos aborda vaacuterios temas da vida judaica desde preceitos
e oraccedilotildees ateacute situaccedilotildees do cotidiano passando por anotaccedilotildees alquiacutemicas
astronocircmicas e astroloacutegicas As discussotildees progridem em direccedilatildeo a comentaacuterios
miacutesticos sobre a Toraacute revelando concepccedilotildees teosoacuteficas abrangentes acerca da
natureza de Deus da origem e da estrutura do universo da hierarquia dos mundos e
da transmigraccedilatildeo e destino das almas entre outros temas de natureza filosoacutefico-
metafiacutesica Seu fundo conceitual apoia-se na relaccedilatildeo entre as Sefirot e a regecircncia do
mundo desenvolvido a partir da ideia de que cada universo inferior reflete o seu
superior Cabe referir que em sua completude o Zohar natildeo trata apenas do bem
acolhe ainda uma intrincada representaccedilatildeo do domiacutenio das forccedilas negativas
designadas com a locuccedilatildeo sitra ahara que significa ldquoa outra parterdquo324
Aleacutem do Zohar e do Secircfer Yetsiraacute outras obras satildeo emblemaacuteticas e
obrigatoacuterias ao estudo do misticismo hebraico por apresentarem estreita relaccedilatildeo com
o Secircfer Yetsiraacute Quase todas se encontram entre as fontes de Giovanni Pico razatildeo de
nosso interesse Uma delas eacute o Secircfer ha-Bahir (Livro da Iluminaccedilatildeo) tambeacutem
conhecido como ldquoO Midrash do Rabino Nehuniah Ben Hakanahrdquo atribuiacutedo ao
rabino midraacuteshico que lhe daacute o nome325 O Bahir integra uma corrente estritamente
metafiacutesica da Cabala diretamente relacionada ao nuacutecleo de pensadores espanhoacuteis de
onde se originou Azriel de Gerona ndash que realizou um relevante escrito sobre as Sefirot
ndash mestre do notabilizado filoacutesofo e cabalista Nachmacircnides tambeacutem pertencente ao
mesmo grupo326 Aleacutem de tratar de questotildees acerca das emanaccedilotildees divinas o texto
aborda questotildees relacionadas agrave alma agrave transmigraccedilatildeo aos anjos e ao alfabeto
hebraico327
Compotildee ainda a construccedilatildeo do pensamento cabalista um rico repertoacuterio de
visotildees celestes guardado na chamada literatura dos ldquoaacutetrios celestiaisrdquo ou dos
Heikhalot (literalmente ldquopalaacuteciosrdquo) constituiacutedo por escritos enigmaacuteticos datados do
primeiro seacuteculo da era cristatilde ndash embora redigidos provavelmente em eacutepoca mais
323 Moshe de Leoacuten alegava ter descoberto (e natildeo escrito) o Zohar em Guadalajara cidade espanhola onde vivia SCHOLEM afirma que De Leoacuten ocultou-se atraacutes do nome de Shimon Bar Yohai para escrever aquela que seria sua obra maior (1989 p 52) Tambeacutem Pico atribuiacutea a autoria do Zohar a ldquoSimeon Antiquusrdquo
324 BUSI opcit pp 72-74 SENDER opcit p34 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p 630
325 Sheila RABIN Pico on Magic and Astrology in Pico della Mirandola New Essays (org Dougherty MV) 2008 p 156 SCHOLEM considera o texto como pertencente provavelmente ao seacuteculo XI (1989 p 39)
326 GARIN 2011 p115 Azriel ben Menahem de Gerona foi mestre de Mosheh ben Nahman de Gerona conhecido por Nachmacircnides Este uacuteltimo notabilizou-se por seus comentaacuterios miacutesticos do Pentateuco e por seus comentaacuterios ao Talmud
327 O conceito de transmigraccedilatildeo das almas penetrou na Cabala dos seacuteculos sucessivos graccedilas ao Bahir Veja-se maiores detalhes em BUSI opcit pp 55 63 MAGHIDMAN opcit p91 Existe uma traduccedilatildeo em portuguecircs do Bahir originalmente traduzido e comentado por Arieh KAPLAN (Bahir o Livro da Iluminaccedilatildeo-atribuiacutedo ao Rabino Nehuniaacute ben haKana) realizada por Maria Regina Nogueira contendo o texto original hebraico (Ed Imago Rio de Janeiro 1992)
117
tardia O material conteacutem relatos de experiecircncias pessoais de ascensatildeo aos planos
superiores representados por uma estrutura arquitetocircnica de luzes A partir do
misticismo dos Heikhalot os cabalistas herdaram um complexo sistema angeoloacutegico
e a representaccedilatildeo de uma ascese da alma articulada em etapas cognitivas sempre
mais elevadas Efetivamente a ampla tratativa aborda as vaacuterias etapas de um
percurso asceacutetico sob um gradual processo de conhecimento328 Os tratados
apresentam algumas narrativas obscuras em que tantas vezes soberbos anjos estatildeo
colocados como guardiotildees dos palaacutecios das regiotildees celestes Por exemplo no
Heikhalot rabbati o mais ceacutelebre o miacutestico pode alcanccedilar os peacutes do trono superno
somente se ultrapassar uma sucessatildeo de sete edifiacutecios cujos portotildees representam
tantas outras etapas de seu percurso iniciaacutetico ldquopenetrar nos palaacutecios divinos
significa portanto apoderar-se de uma geografia transcendente que retrata o
invisiacutevel com a precisatildeo de um mapardquo329 Dado que os guardiotildees angeacutelicos ndash
obstaacuteculos na ldquoviagem em direccedilatildeo agrave gloacuteria excelsardquo ndash podem ser dominados agrave medida
que se conheccedilam seus nomes e atributos os tratados dos Heikhalot servem como um
guia que ensina seus nomes e as respostas necessaacuterias para superar as provas
colocadas por esses seres ldquofeitos de granizo e fogordquo330 Pico mostrava ter
familiaridade com os Heikhalot pois na De Hominis Dignitate faz menccedilatildeo agraves
transformaccedilotildees de Enoch conforme episoacutedio narrado em outro desses tratados331
Assim como o Zohar que aborda as forccedilas negativas uma natildeo irrelevante integraccedilatildeo
eacute apresentada dentro da arquitetura supramundana dos Heikhalot o Midrash Konen
informa a existecircncia sempre nas moradas superiores de uma seacuterie simeacutetrica de
palaacutecios infernais guardados por anjos do mal332
Finalmente natildeo poderia deixar de ser citada a literatura midraacuteshica O termo
ldquomidrashrdquo significa em hebraico ldquointerpretaccedilatildeordquo e indica um amplo nuacutemero de
histoacuterias e comentaacuterios biacuteblicos que se mesclam entre documentos e lendas redigidos
entre o iniacutecio do seacuteculo V e a metade da Idade Meacutedia Nos vaacuterios Midrashim o texto
das Escrituras eacute submetido a uma anaacutelise minuciosa mostrando as implicaccedilotildees
escondidas sob suas linhas Assim em contraste com a interpretaccedilatildeo
literal o Midrash designa uma exegese profunda que tenta revelar o espiacuterito velado
das Escrituras examinando possibilidades que natildeo se mostram em uma leitura
literal do texto Seu principal objetivo nesse sentido eacute o de propor o maior nuacutemero
de significados possiacuteveis de acordo com o ensinamento rabiacutenico que prescreve ldquogirar
e regirar a Toraacute pois que nessa estaacute absolutamente tudordquo333 Assim como nos demais
328 A imagem da carruagem celeste eacute bastante presente simbolizando como em outras tradiccedilotildees ndash inclusive a
platocircnica ndash o deslocamento do adepto atraveacutes do espaccedilo supramundano graccedilas ao qual ele alcanccedila a contemplaccedilatildeo de uma complexa arquitetura coacutesmica Cf BUSI opcit pp9-10 43 SENDER op cit p34
329 BUSI opcit p43 330 BUSI idem 331 Cf Oratio p107 O tratado Alfabeta derabbirsquoAqiva descreve o episoacutedio de Enoch patriarca biacuteblico
antediluviano alccedilado aos ceacuteus pelo Senhor e transformado no anjo Metraton dominante sobre as hierarquias angeacutelicas e ao qual satildeo atribuiacutedos setenta e dois nomes
332 BUSI opcit p45 np145 Comentaacuterios e textos acerca dos Heikhalot podem ser encontrados nas seguintes obras indicadas na bibliografia de Giulio Busi GSCHOLEM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York 1960 PSCHAFER Hekhalot Studien Tubingen 1988 Para traduccedilotildees italianas veja-se RAVENNA-PIATELLI (org) Cabbala ebraica I sete santuari Milano 1990
333 BUSI opcit pp41-42
118
manuscritos de caraacuteter miacutestico utilizados pelos mekubalim334 os Midrashim incluem
natildeo poucas passagens de argumentaccedilotildees cosmogocircnicas que permitem especulaccedilotildees
acerca das origens da Criaccedilatildeo e da estrutura das moradas celestes A exposiccedilatildeo
midraacuteshica eacute comparada no Talmud a um ldquomartelo que desperta as faiacutescas
adormecidas na rochardquo335
As fontes cabaliacutesticas de Pico
Em carta endereccedilada ao sobrinho Gian Francesco Giovanni Pico informa
sobre alguns livros hebraicos que teria tomado emprestado de certo judeu siciliano
por um periacuteodo de vinte dias quando jaacute exercitava com relativa facilidade o
idioma336 O testemunho desse empreacutestimo junta-se a uma vasta documentaccedilatildeo que
comprova o fato de que o jovem aprendiz da Cabala teria lido todos os textos
hebraicos talmuacutedicos e midraacuteshicos que podia comprar encontrar ou pedir337 Parte
consideraacutevel desse material se lhe tornou disponiacutevel ou inteligiacutevel atraveacutes do auxiacutelio
de trecircs de seus principais mestres Elia Del Medigo Yohanan Alemanno e Flavio
Mitridate que desempenharam importante papel nas traduccedilotildees de muitos textos
seja do aacuterabe para o hebraico ou do hebraico para o latim338 A aquisiccedilatildeo da vasta
doutrina referente ao Hebraiacutesmo deve ser creditada ademais agraves conversaccedilotildees tidas
com tantos outros judeus eruditos e agraves leituras diretas de manuscritos hebraicos dos
quais comprovadamente possuiacutea um nuacutemero consideraacutevel339 Os manuscritos
foram sem duacutevidas o meio de acesso mais importante atraveacutes do qual o pensamento
judaico ndash especificamente o cabaliacutestico ndash se tornou disponiacutevel para Pico340
Nas duas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XV seria possiacutevel encontrar em Florenccedila
um nuacutemero consideraacutevel de manuscritos de conteuacutedo especulativo judaico Havia os
volumosos escritos de Alemanno com abundantes citaccedilotildees de fontes medievais
hebraicas341 os textos de Abraham Farisol que passou um tempo em Florenccedila com
menccedilotildees a um grande nuacutemero de livros judaicos as epiacutestolas do cabalista espanhol
334 Mekubalim ou ainda Maskilim (iniciados) satildeo denominaccedilotildees que muitos autores cabalistas recebem (cf
IDEL 2008a p17) 335 BUSI opcit pp41-42 336 GARIN 2011 p 99 337 Giovanni SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola - La Fenice degli Ingegni 1921 p143 338 Crofton BLACK Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics 2006 p 12 BUSI opcit p 84 339 Tatildeo ampla era a coleccedilatildeo de livros hebraicos de Pico que ensejou a criaccedilatildeo de obras especiacuteficas voltadas ao seu
estudo Veja-se por exemplo Pearl KIBRE The Library of Pico della Mirandola New York 1936 Giuliano TAMANI I libri ebraici di Pico della Mirandola in Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di studi del cinquecentesimo anniversario della morte (1494-1994) org G C Garfagnini Firenze 1997 pp 491-530 Giulio BUSI Chi non ammireragrave il nostro camaleonte La biblioteca cabbalistica di Giovanni Pico della Mirandola in Lenigma dellebraico nel Rinascimento Nino Aragno Editore Torino 2007 pp 25ndash45 Moshe IDEL The Throne and the Seven-Branched Candlestick Pico della Mirandolas Hebrew Source in Journal of the Warburg and Courtauld Institutes XL 1977 pp 290-292 R SIMON Bibliotheca selecta I Um bom recolhimento do conteuacutedo da biblioteca de Pico pode ser encontrado ainda no ldquoAppendice La Biblioteca di Picordquo na obra Giovanni Pico della Mirandola de GARIN (2011 pp106 ss) Acerca dos hebreus com os quais Pico teve contato veja-se Umberto CASSUTO (opcit pp316-318)
340 Chaim WIRSZUBSKI com o auxiacutelio de seus alunos Moshe Idel e Carmia Schneider deteacutem o meacuterito de ter seguido o percurso intelectual de Pico identificando os textos e os autores atraveacutes dos quais estudou a Cabala daiacute resultando seu fundamental volume Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Veja-se ali em especial entre as paacuteginas 60 a 64 toda a questatildeo das fontes cabaliacutesticas de Pico
341 Para uma lista das fontes mais importantes do pensamento de Alemanno veja-se IDEL The Study Program of R Yohanan Alemanno in Tarbiz XLVIII 1979 pp 303-330
119
Isaac Mar Hayyim os escritos de Moshe ben Yoav342 E de suma relevacircncia o vasto
volume de material cabaliacutestico traduzido por Flavio Mitridate para o latim343 A
maioria dos manuscritos que chegou agraves matildeos de Pico foi-lhe elucidada justamente
por Mitridate A principal missatildeo do mestre convertido exercida com paixatildeo era
comprovar ao pupilo o argumento de que a Cabala provava a verdade do
Cristianismo para tanto procurou realizar traduccedilotildees que fossem literais mas ao
mesmo tempo capazes de lidar com as sutilezas do vocabulaacuterio cabaliacutestico344 Os
manuscritos apresentam vaacuterias anotaccedilotildees feitas pelo mestre agraves margens das
traduccedilotildees para servir de guia ao pupilo em suas possiacuteveis analogias Um desses
comentaacuterios anotado agraves margens da traduccedilatildeo do De Secretis Legis de Abulafia
relata que os dois ele e o conde se encontravam em ldquouma missatildeo comum de
profunda seriedaderdquo sendo bastante significativo do grau de comprometimento que
pretendiam dar agravequeles estudos345
De maneira mais abrangente que Mitridate como parece ser consensual o
mestre cabalista Alemanno estava bem familiarizado com a maioria dos escritos
miacutesticos judaicos provenientes tanto de autores contemporacircneos e medievais ndash da
Itaacutelia Espanha e Alemanha ndash como de fontes anteriores pertencentes agrave literatura dos
Heikhalot Agrave exceccedilatildeo do livro do Zohar do qual Alemanno natildeo tinha estreito
conhecimento haacute registros de seu acesso a uma numerosa quantidade de textos
relacionados agrave literatura biacuteblica talmuacutedica e midraacuteshica Notadamente versado nas
mais variadas correntes filosoacuteficas fossem hebraicas gregas ou aacuterabes observa-se
nas citaccedilotildees de seus trabalhos uma quantidade surpreendente de livros raros ou
pouco difusos o que constitui prova de uma erudiccedilatildeo pouco comum346
Dentre os trecircs professores mencionados no entanto o primeiro a abrir para
Pico as portas de fato ao universo da Cabala embora o tema natildeo lhe despertasse
maior interesse347 foi Elia Del Medigo Em longa carta enviada a Giovanni o rabino
antecipava ldquoVendo que Vsa Senhoria se empenha muitiacutessimo nessa bendita Cabala
342 IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in BemporadndashZatelli (org) La
Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 21 343 Entre tantos outros Mitridate traduziu o livro do conhecido rabino Eleazar de Worms o Hokhmat ha-
Nefesh sob o tiacutetulo Liber De Anima em 1486 traduziu um grupo de comentaacuterios sobre o Secircfer Yetsiraacute presentes no cod Vat hebr 191 tambeacutem o De Secretis Legis (Sitre Torah) de Abulafia presente no cod Vat hebr 190 (cf Franco BACCHELLI opcit pp 35 57) Uma lista completa das traduccedilotildees de Mitridate pode ser encontrada no livro de WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism (1987 pp 10-65)
344 Alguns desses textos natildeo existem mais Os que ainda restam encontram-se em cinco manuscritos mantidos na biblioteca do Vaticano que juntos contabilizam mais de 3500 paacuteginas Os manuscritos sobreviventes satildeo Vat Ebr 189 Vat Ebr 190 Vat Ebr 191 Chigi A VI 190 e Vat Lat 4273 (BLACK opcit p 16) Em relevante desenvolvimento nos estudos de Pico um trabalho tem sido realizado para editar esse corpus em uma seacuterie entitulada The Kabbalistic Library of Giovanni Pico della Mirandola sob direccedilatildeo de Giulio Busi O primeiro volume da seacuterie foi publicado em 2004 intitulado The Great Parchment Flavius Mithridatess Latin Translation the Hebrew Text and an English Version (org) G Busi S M Bondoni e S Campanini (Ed Nino Aragno Torino 2004)
345 WIRSZUBSKI opcit p 69 BACCHELLI opcit 2001 p 57 346 CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p315 IDEL 1998 p 34 347 Elia de Medigo presidia a escola talmuacutedica italiana de vieacutes decididamente aristoteacutelico e hostil ao
pensamento cabaliacutestico mais em razatildeo da orientaccedilatildeo filosoacutefica de cunho neoplatocircnico que apresentava do que por um antagonismo aos seus procedimentos Tal aspecto incomodava muitos outros intelectuais aristoteacutelicos como assinala BROCCHIERI (Pico della Mirandola 2011 p12) Entretanto e apesar de natildeo mostrar especial interesse pelo tema os escritos de Del Medigo tanto em hebraico quanto em latim constituem uma fonte muito confiaacutevel para uma descriccedilatildeo abrangente da Cabala como pontua IDEL (1998 p 20)
120
quero vos indicar algo que ateacute hoje natildeo quis vos mostrarrdquo A carta ajuda a lanccedilar luz
sobre as pesquisas literaacuterias de seu aluno uma vez que inclui trecircs listas colunadas
com sugestotildees de bibliografias sendo uma essencialmente cabaliacutestica a primeira
coluna apresenta obras que serviriam aos estudos aristoteacutelicos de Pico a segunda
mostra uma seacuterie de autores aacuterabes na terceira haacute uma lista entitulada ldquoqabalahrdquo
Nesta leem-se os nomes (sic) ldquoSefer Hazzocirchar MeirahrsquoEnayim Scharsquoarei Orah
Reqanati Marsquoarekheth ha Elohouth Pegraverousch Sefer Uetsirahrdquo e ao final deles a
admissatildeo ldquoe muitos outros cujos nomes natildeo me ocorrem porque estou com muitas
ocupaccedilotildeesrdquo348
Mantendo-se a ordem apresentada Del Medigo refere-se primeiramente ao
Zohar Em seguida ao texto Meirah Einayim um provaacutevel comentaacuterio sobre
Nachmacircnides feito por Isaac de Acre que pode ser estabelecido entre o final do
seacuteculo XIII e a metade do seacuteculo XIV O Scharsquoarei Orah eacute um texto do comentador
cabalista espanhol Joseph Gikatilla aluno de Abulafia compreendido em periacuteodo
aproximativo ao anterior A indicaccedilatildeo segue com a menccedilatildeo impliacutecita a algum ou a
alguns comentaacuterios atribuiacutedos ao rabino Menahem Recanati do seacuteculo XIII e o
tratado anocircnimo Maarekhet ha-Elohut do final do seacuteculo XIII e iniacutecio do XIV
contendo algumas interpretaccedilotildees cabaliacutesticas A lista se encerra com a sugestatildeo de
um comentaacuterio referente ao Secircfer Yetsiraacute As inuacutemeras recorrecircncias de marcas em
algumas seccedilotildees desses manuscritos evidenciam que Pico leu tais textos marcou as
passagens de interesse e as reutilizou em seus proacuteprios trabalhos tanto como fontes
para suas Conclusiones Cabalisticae quanto como bases para a elaboraccedilatildeo do
Heptaplus349
Quanto ao fundamental Secircfer Yetsiraacute o proacuteprio Pico conta tecirc-lo lido em lsquo86
juntamente ao comentaacuterio com o qual estava unido embora o mesmo natildeo conste da
lista de Elia Em relaccedilatildeo ao Zohar indicado na bibliografia de Elia natildeo se sabe
exatamente se o conheceu de forma direta ou indireta embora o tenha mencionado
tanto nas Conclusiones cabalisticae quanto no Heptaplus350 Tambeacutem a Oratio
apresenta certa analogia com o Zohar no que diz respeito agrave celebraccedilatildeo da liberdade e
potecircncia do espiacuterito humano o que poderia comprovar a leitura daquela obra351
348 ldquo[] et multa alia quorum nomina non occurunt mihi quia multas habeo ocupacionesrdquo O manuscrito estaacute
em Paris Bibliothegraveque Nationale Lat 6508 ff 71r -77v Fragmentos dessa carta foram transcritos e discutidos por Jules DUKAS Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 pp 48-65 O trecho com a citaccedilatildeo das bibliografias em questatildeo encontra-se em f75r e estaacute transcrito nas pp 56-57 de DUKAS (opcit) e em seu Bulletin du Bibliophile vol XLII 1875 p340 Sobre as relaccedilotildees entre Pico e Del Medigo e outros detalhes sobre a carta em questatildeo veja-se Bohdan KIESZKOWSKI Les Rapports entre Elie del Medigo e Pic de la Mirandola 1964 pp 41-81
349 Efetivamente eacute consensual que Pico tenha utilizado Recanati como fonte principal para as Conclusiones Cabalisticae dois dos trabalhos do rabino foram traduzidos para Pico por Flavio Mitridate ndash os comentaacuterios ldquosobre o Pentateucordquo e ldquosobre as oraccedilotildeesrdquo Especialmente as 47 teses cabaliacutesticas do primeiro grupo satildeo quase todas inspiradas pelo Commento al Pentateuco (cf WIRSZUBSKI Picos Encounter with Jewish Mysticism 1989 pp53-56 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633 BLACK Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics 2006 p 17)
350 Respectivamente em Conclusiones II 24 p131 e em Heptaplus p180 No Heptaplus Pico faz alusatildeo ao presumiacutevel autor do Zohar Shimon Bar Yohai ldquoSimeon antiquusrdquo GARIN informa que ldquonatildeo se sabe ao certo se Pico conheceu o Zoharrdquo ou se o conheceu atraveacutes da leitura de Menahem Reca atribuindo a VULLIAUD (vol II p 19) a certeza de Pico ter lido o Zohar diretamente (2011 p102)
351 A celebraccedilatildeo da potecircncia humana no Zohar concentra-se na figura do Adam Kadmon o homem cuja natureza eacute determinada e estaacute acima de todos os anjos Em Pico diferentemente a natureza do homem natildeo eacute
121
Certeza eacute o fato que Pico possuiacutea o Secircfer ha-Bahir pertencente agrave corrente metafiacutesica
de cujo nuacutecleo saiacuteram os escritos de Nachmacircnides352 A obra consta do inventaacuterio de
seus livros integrado ainda por obras da corrente dos profetas miacutesticos como
Abraham ibn Ezra Moshe de Narbona Eleazar de Worms e Gikatilla este uacuteltimo
certamente estudado com atenccedilatildeo visto que fazia parte da lista de Del Medigo todas
essas obras jaacute estavam em sua posse no periacuteodo de redaccedilatildeo das Conclusiones Sua
biblioteca dispunha ainda de escritos dos comentaristas medievais Abulafia Azriel
de Gerona e do acima mencionado Menahem Recanati assim como de inuacutemeros
trabalhos anocircnimos353 Outrossim e antes de se dedicar aos estudos cabalistas Pico
havia meditado longamente sobre o pensamento de Maimocircnides e Avicebron judeus
ceacutelebres no mundo cristatildeo tendo encontrado neles algumas das raiacutezes da gnose
hebraica que reencontraria mais tarde Tambeacutem natildeo lhe passaram despercebidas as
ressonacircncias que certos procedimentos cabaliacutesticos exerceram sobre Ramon Llull na
Espanha a ponto de interessar-se pelos aspectos praacuteticos da Cabala como seraacute
visto354
2 O Cosmo Cabalista
Na mencionada carta de Elia Del Medigo na qual constam as indicaccedilotildees
bibliograacuteficas transmitidas ao pupilo Giovanni lecirc-se ldquoTrata-se de algo tatildeo secreto
que ningueacutem dentre os contemporacircneos tem se ocupado e poucos antigos
conheceram Eacute coisa pequena em quantidade mas grandiacutessima em qualidaderdquo
Antecipando seu conteuacutedo Elia complementaria ldquoOs devotos a estes textos obscuros
sustentam que o nome de Deus eacute infinito e que a um grau abaixo de Deus estatildeo as dez
Sefirot agentes da potecircncia que emana de Deus eacute atraveacutes dessas que o mundo
conserva a sua ordemrdquo355 Por meio dessas palavras o mestre descrevia in nuce os
elementos centrais da doutrina cabaliacutestica quais sejam a concepccedilatildeo do Infinito (Ein
Sof) e suas emanaccedilotildees as Sefirot
determinada e tanto ele pode continuar na indeterminaccedilatildeo quanto pode passar a ser tudo Apesar de preconizar que Pico tenha sido o primeiro divulgador do Zohar na cultura corrente da eacutepoca Garin sugere que a ideia de liberdade do homem defendida na Oratio tenha sido formada atraveacutes de leituras precedentes de obras ateacute mais significativas atribuiacutedas tanto a pensadores hebraicos tais quais Maimocircnides e Avicebron quanto a natildeo hebraicos como Fiacutelon Hermes e Honoacuterio de Autun A reflexatildeo estaacute em GARIN (2011 pp 90-91 93-105)
352 GARIN 2011 p115 RABIN opcit p 156 353 Cf Inventario delli libridel Conte Joanne de la Mirandola (pp 30 46 60 62 73 etc) elaborado por
Antonio Pizamano em 1498 em Florenccedila e editado em Memorie Storiche della cittagrave e dellantico ducato della Mirandola Harvard University vol XI 1897 p46 (apud GARIN 2011 p103) Chaim WIRSZUBSKI comprovou que Pico fizera uso no iniacutecio de sua carreira das obras de Abulafia (Um cabalista Cristatildeo lecirc a Lei Jerusaleacutem 1977 pp11 17 e ss apud IDEL 2008-b p 461)
354 Em sua Apologia (p192) Pico comenta sobre a ldquoars Raymundirdquo segundo KIBRE (1936 p318) possuiria do filoacutesofo catalatildeo o Ars Brevis Em relaccedilatildeo aos estudos sobre Maimocircnides Avicebron e o influxo de Llull veja-se menccedilatildeo em GARIN 2011 pp 100-101 Para a relaccedilatildeo percebida por Pico entre Avicebron e as doutrinas cabalistas veja-se Salomon MUNK Meacutelanges de philosophie juive et aacuterabe Paris 1857 pp275 ss que comporta ldquoDes Extraits Meacutethodiques de la Source de vie de Salomon Ibn-Gebirol (dit Avicebron) traduits de lrsquoarabe en heacutebreu par Ibn-Falaqueacuterardquo
355 DUKAS opcit pp 48-65 (Paris Bibliothegraveque Nationale Lat 6508 ff 71r -77v)
122
A emanaccedilatildeo sefiroacutetica
A estrutura metafiacutesica das Sefirot eacute uma das caracteriacutesticas medulares da
Cabala surgida por volta do seacuteculo III O termo ldquosefirotrdquo (ldquosefiraacuterdquo no singular)
ingressa de fato na miacutestica hebraica atraveacutes do Secircfer Yetsiraacute onde eacute mencionado
pela primeira vez356 Os cabalistas concordam em conceber as Sefirot como graus
ciclos ou niacuteveis atraveacutes dos quais o aspecto mais profundo do poder divino atua sobre
o universo criado ou em outras palavras como formas inteligiacuteveis atraveacutes das quais
o ldquoImanifestordquo passa a se manifestar357 Explica Paolo Fornaciari que a raiz de Sefirot
proveacutem do vocaacutebulo SFR que reconduz a uma aacuterea semacircntica que pode abranger trecircs
significados ldquoesferasrdquo ldquocifrasrdquo ou ldquosafirasrdquo Cada um desses termos remete agrave ideia
respectivamente de perfeiccedilatildeo geomeacutetrica-espacial de completude numeacuterica e de
beleza ou preciosidade ndash conceitos que se aplicam agraves qualificaccedilotildees atribuiacutedas agraves
Sefirot nas vaacuterias escolas358 Para Giulio Busi o termo hebraico pode ser traduzido
sucinta e literalmente por ldquonumeraccedilotildeesrdquo enquanto Tova Sender o traduz por
ldquocontagemrdquo em qualquer caso o nuacutemero eacute uma conotaccedilatildeo fundamental de seu
dinamismo359
O conceito de numeraccedilotildees estaacute diretamente relacionado ao nuacutemero dez
de acordo com o simbolismo numeacuterico que precede ao Secircfer Yetsiraacute e que
provavelmente recebeu influxos das doutrinas pitagoacutericas em razatildeo de sua relaccedilatildeo
com a estrutura profunda do ser e do cosmo360 Conforme sintetiza Scholem as
Sefirot satildeo os dez niacuteveis com que a natureza atuante de Deus se revela as dez forccedilas
elementares da Criaccedilatildeo os diversos aspectos da vida divina os estaacutegios pelos quais
essa vida passa ao se revelar na Criaccedilatildeo361 Na linguagem lacocircnica do Livro da
Formaccedilatildeo
ldquoDez Sefirot sem determinaccedilatildeo dez e natildeo nove dez e natildeo onze
[] a sua medida eacute dez que natildeo tecircm fimrdquo362
356 O texto integral do Secircfer Yetsiraacute pode ser visto nas seguintes obras Aryeh KAPLAN Secircfer Yetsiraacute- O Livro
da Criaccedilatildeo 2005 GRUENWALD A preliminary critical edition of the Sefer Yezirah in Israel oriental Studies 1 1971 pp132-177 A versatildeo curta do texto original em portuguecircs pode ser vista no apecircndice da obra de MAGHIDMAN Secircfer Yetsiraacute A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico 2014
357 SENDER 1992 p45 BUSI La Qabbalah 2011 p14 Observa Crofton BLACK que tal concepccedilatildeo das Sefirot foi frequentemente considerada hereacutetica entre alguns meios rabiacutenicos por parecer contradizer o estrito monoteiacutesmo do Judaiacutesmo (2006 p 140)
358 FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 np35 359 BUSI opcit p 47 SENDER opcit p28 KAPLAN contudo infere que natildeo eacute certo traduzir sefirot por
ldquonuacutemerosrdquo termo para o qual o hebraico tem uma palavra proacutepria (mispaacuter) seu significado aproxima-se mais de ldquocontardquo que remete ao conceito de nuacutemeros mas natildeo apenas (2005 p54) Flavio Mitridate em suas traduccedilotildees para o latim usava o termo numerationes
360 Gershom Scholem menciona a relaccedilatildeo com o Pitagorismo sem elucidar no entanto ndash ao menos nessa obra ndash se tal informaccedilatildeo eacute uma inferecircncia proacutepria ou se procede de fontes hebraicas (SCHOLEM Nome de Deus e Teoria da Linguagem 1999 p79) A pesquisa cabaliacutestica recolheu atraveacutes dos seacuteculos vasto material literaacuterio tanto para demonstrar o caraacuteter sagrado do dez quanto para encontrar nos antigos textos religiosos e na simbologia dos ritos a confirmaccedilatildeo de que esse nuacutemero fosse por si uma chave para o conhecimento Tudo aquilo que eacute numeraacutevel em dez representa na Cabala uma metaacutefora do mundo sefiroacutetico ndash os dedos das matildeos as enunciaccedilotildees de Deus no iniacutecio do Gecircnesis as dez esferas celestes da filosofia antiga (BUSI opcit pp 14-15)
361 SCHOLEM opcit p79 362 Secircfer Yetsiraacute I 4 5 (trad KAPLAN 2005 p283)
123
As dez Sefirot surgem ou satildeo criadas (o verbo natildeo estaacute estabelecido) a partir do
nada concepccedilatildeo repetida vaacuterias vezes no Capiacutetulo 1 do Secircfer Yetsiraacute ldquodez Sefirot do
nadardquo363 O texto trata outrossim ndash e conforme prometido em seu tiacutetulo ldquoyetsiraacuterdquo ndash
da formaccedilatildeo do universo (e natildeo criaccedilatildeo pois que o material para formar era
preexistente) por meio das vinte e duas letras do alfabeto hebraico que associadas agrave
deacutecada cabaliacutestica totalizam trinta e dois caminhos364 A combinaccedilatildeo das 22
consoantes hebraicas entre si por sua vez perfaz a totalidade de 231 resultados
possiacuteveis que representam 231 portotildees de saiacuteda do poder criador atraveacutes dos quais
ldquoo inexistente foi transformado em existenterdquo365 Agraves letras enquanto ldquofundaccedilatildeordquo do
universo satildeo dedicados quatro dos seis capiacutetulos da obra nos quais com linguagem
enigmaacutetica satildeo tratados seus significados e suas relaccedilotildees com os trecircs reinos da
criaccedilatildeo366
ldquoVinte e duas letras grava entalha pesa permuta transforma
e com elas descreve a alma de tudo o que foi formado e seraacute
formado no futurordquo367
Na maior parte das interpretaccedilotildees do Secircfer Yetsiraacute como informa Moshe Idel
o surgimento do sistema das Sefirot eacute descrito em termos de emanaccedilatildeo Atzilut ou de
expansatildeo Hitpaschetut ambos os processos cumprindo certa forma de cadeia
Schalschelet que relaciona o reino mais alto divino aos mundos mais baixos
produzidos pelas Sefirot368 Observe-se que Idel usa a palavra ldquoproduzirrdquo mundos em
concordacircncia com a passagem ldquotudo o que foi formado e que seraacute formadordquo do Secircfer
Yetsiraacute (II1) Eacute possiacutevel inferir que a ideia de emanaccedilatildeo decorra da percepccedilatildeo do
incessante dinamismo contido na conotaccedilatildeo numeacuterica atraveacutes desse movimento o
fluxo divino percorre o cosmo Dentro desse sistema cada sefiraacute corresponde a um
grau provisoacuterio (porque o fluxo natildeo eacute extaacutetico) de agregaccedilatildeo da energia divina
inserido em um contiacutenuo dinamismo de descese e ascese369 Sua mais
importante designaccedilatildeo eacute assumida no Zohar no qual cada grau de emanaccedilatildeo passa a
ser relacionado a um atributo divino recebendo nomes especiacuteficos em parte
retirados do primeiro livro das Crocircnicas370 Assim embora haja variaccedilotildees semacircnticas
363 Secircfer Yetsiraacute I 2 3 4 5 6 7 8 9 (ibid pp 283-284) 364 Secircfer Yetsiraacute I1 ldquoCom 32 maravilhosos caminhos de Sabedoria grava Yah o Senhor dos Exeacutercitosrdquo (opcit
p 283) A menccedilatildeo ao termo ldquocaminhordquo natildeo eacute aleatoacuteria mas real indicaccedilatildeo de 32 sendas miacutesticas dentro de um processo iniciaacutetico A deacutecima esfera a mais nobre e primeira em posiccedilatildeo eacute onde circulam as 22 letras (MAGHIDMAN 2014 p124)
365 Secircfer Yetsiraacute II 1 (trad KAPLAN 2005 p283) 366 Cada uma das vinte e duas letras tem seu proacuteprio significado co-essencial com atribuiccedilotildees que satildeo
transmitidas agraves coisas por meio delas formadas (SENDER opcit p30) 367 Secircfer Yetsiraacute II 1 (opcit p285) 368 IDEL 2008-a p21 No iniacutecio do seacuteculo XIV na literatura de inspiraccedilatildeo zohaacuterica ndash em modo particular no
Tiqqune ha-zohar (Os Ornamentos do Esplendor) e no Masseket atzilut (Tratado sobre a Emanaccedilatildeo) ndash o processo de emanaccedilatildeo comeccedila a ser distinguido em suas sucessivas fases denotando a distacircncia que separa o mundo superno da inferior realidade material (BUSI 2011 p 19)
369 BUSI opcit pp14 47 IDEL afirma que o caraacuteter dinacircmico das Sefirot constitui uma das principais caracteriacutesticas da Cabala (2008b p515) SCHOLEM trata do caraacuteter gnoacutestico das Sefirot em sua obra Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York 1960
370 O trecho no qual Davi bendiz Deus elencando seus atributos diz ldquotua eacute Senhor a magnificecircncia e o poder e a gloacuteria e o esplendor e a majestaderdquo (Crocircnicas 1 2911) Esses cinco atributos datildeo nomes a cinco das dez Sefirot Cf FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 np35 SENDER opcit pp 28 45
124
e de traduccedilatildeo os termos e significados mais utilizados para distinguir cada sefiraacute satildeo
Keter (Coroa) Hokhmaacute (Sabedoria) Binaacute (Inteligecircncia ou Compreensatildeo) Hesed
(Amor ou Grandeza) Guevuraacute (Bravura ou Potecircncia) Tiferet (Beleza) Netsah
(Eternidade ou Vitoacuteria) Hod (Magnificecircncia) Yesod (Fundamento) Malkut
(Reino)371 Assim cada uma das esferas corresponde a uma forma especiacutefica de
manifestaccedilatildeo de Deus uma middah ou atribuiccedilatildeo divina que pode ser ainda
identificada com um de Seus dez nomes sagrados Sob tal luz compreende-se a
conclusio cabaliacutestica 36 ldquoDeus endossou dez vestimentas quando criou o mundordquo372
Apesar de diferenciadas em suas caracteriacutesticas as dez Sefirot constituem uma
unidade como dez matizes da mesma luz
Em termos de ordenaccedilatildeo a estrutura sefiroacutetica tem sido contemplada com
diversos tipos de representaccedilotildees como por exemplo em forma de esferas dispostas
sobre a circunferecircncia de um ciacuterculo ou de letras hebraicas encerradas uma dentro da
outra mas a imagem que se tornou mais conhecida ndash divulgada na ediccedilatildeo do Pardes
Rimmonim (O jardim das romatildes) de Cordovero no lsquo500 ndash eacute a chamada aacutervore
sefiroacutetica na qual ao longo de trecircs eixos principais e paralelos estatildeo dispostos os
ciacuterculos que simbolizam as Sefirot ligados por canais transversais que sinalizam os
reciacuteprocos influxos373 Segundo a tradiccedilatildeo cabaliacutestica a descida das forccedilas celestes
adveacutem ao longo do lado da direita atraveacutes de hokhmaacute hesed e netsah enquanto a
ascensatildeo percorre o lado esquerdo atraveacutes de binaacute guevuraacute e hod O eixo central
sobre o qual se alinham keter tiferet yesod e malkut eacute conotado pela ideia de
presenccedila e completude do divino374 Os traccedilos de ligaccedilatildeo entre as Sefirot em nuacutemero
de vinte e dois ndash e em perfeita simetria geomeacutetrica com o total de letras do alfabeto
hebraico ndash constituem as vias atraveacutes das quais a luz infinita e a forccedila criadora se
propagam A metaacutefora da propagaccedilatildeo da luz eacute tatildeo utilizada quanto a do
derramamento de aacuteguas em uma de suas representaccedilotildees tem-se a imagem de
recipientes que recebem os fluiacutedos e que depois de cheios derramam o excesso para
os recipientes inferiores sucessivamente Outro ponto importante para a
compreensatildeo do conceito de emanaccedilotildees eacute que em qualquer representaccedilatildeo cada
sefiraacute eacute considerada passiva em relaccedilatildeo agravequela que a precede e ativa em relaccedilatildeo agraveque-
la que a sucede375 Para melhor compreensatildeo desta ideia as Sefirot podem ser
representadas por trecircs triacircngulos sendo um superior ascendente e dois inferiores
descendentes O triacircngulo ascendente tambeacutem chamado espiritual recebe luz e forccedila
do Alto e corresponde ao Mundo da Emanaccedilatildeo Os triacircngulos descendentes
371 Veja-se BUSI 2011 p16 FORNACIARI 2009 p 19 np35 CROFTON pp140-141 A sequecircncia das Sefirot
mais aceita eacute aquela que foi estabelecida na escola de Isaac o Cego em Narbonne no seacuteculo XIII Acresce FORNACIARI (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633) que cada sefiraacute a uma forma de manifestaccedilatildeo ou a uma inteligecircncia angeacutelica Os cabalistas encontram uma seacuterie de correspondecircncias entre as Sefirot e cada niacutevel da realidade como os astros os oacutergatildeos vitais os personagens biacuteblicos (Abraatildeo seria Hesed ou Guedulaacute) as manifestaccedilotildees da natureza etc Como explica BUSI (opcit p16) a referecircncia ao sol a Jacoacute ou agrave noccedilatildeo abstrata de beleza correspondentes a uma mesma sefiraacute natildeo significa que esses elementos tenham equivalecircncia mas sim que estatildeo ligados por uma harmonia que institui um nexo iacutentimo e um grau comum entre eles
372 PICO Concl (II) XI 36 p134 ldquo[] deus induit se decem uestimentis quando creauit saeculumrdquo 373 Veja-se representaccedilatildeo da aacutervore sefiroacutetica em IDEL 2008a p21 MAGHIDMAN 2014 p175 374 BUSI opcit pp15-17 375 SENDER opcit pp 46 ss
125
respectivamente o intelectual e o formativo absorvem as influecircncias superiores as
transfazem e conduzem em direccedilatildeo aos mundos fiacutesicos376
O Ein Sof
Acima da concepccedilatildeo das Sefirot a doutrina cabaliacutestica concebe a enigmaacutetica
existecircncia de outros trecircs niacuteveis supra espaccedilo-temporais O mais distante e
incompreensiacutevel dentre os trecircs encerra-se na ideia de Ain que se traduz como ldquonadardquo
O Ain natildeo representa a negaccedilatildeo da existecircncia mas a afirmaccedilatildeo de que ldquonenhum
termo do vocabulaacuterio humano poderaacute definir tal abstraccedilatildeordquo como define Tova
Sender Essa ideia exclui qualquer relaccedilatildeo com os mundos pertencentes ao tempo e
ao espaccedilo O Ain natildeo existe e natildeo estaacute eacute o ldquoImanifestordquo ou a ldquoExistecircncia Negativardquo377
Em seguida haacute o Ein Sof literalmente ldquosem fimrdquo ou ldquoinfinitordquo uma concepccedilatildeo
levemente mais definida que o Ain Difere do primeiro na medida em que pressupotildee
uma participaccedilatildeo no tempo e espaccedilo em razatildeo da inclusatildeo do termo ldquosofrdquo (ldquofimrdquo)
Permanece como no princiacutepio anterior a ideia de existecircncia negativa O Ein Sof Or
(ldquoluz infinitardquo) terceiro conceito aproxima-se da apreensatildeo humana em razatildeo da
presenccedila do termo ldquoorrdquo (ldquoluzrdquo) Contudo o Ein Sof Or manteacutem-se incompreensiacutevel e
constitui o terceiro veacuteu de existecircncia negativa378 Diferentemente das Sefirot que
podem ser conhecidas atraveacutes do estudo e da contemplaccedilatildeo a teologia hebraica
negativa postula que a verdadeira essecircncia de Deus nunca seraacute conhecida Assim na
maior parte das obras cabaliacutesticas a manifestaccedilatildeo de Deus no cosmo eacute concebida
somente a partir da emanaccedilatildeo que parte do Ein Sof Or fazendo com que Aquele se
revele ldquono emanado estaacute a forccedila do Emanador mas Este natildeo sofre diminuiccedilatildeo
algumardquo379 O sistema cabaliacutestico contempla ainda uma quarta concepccedilatildeo que seria
a unidade absoluta sintetizada no Tetragrama YHWH ndash ou ldquonome sagrado de Deus
de quatro letrasrdquo380
Na emanaccedilatildeo ocorre um processo de distinccedilatildeo atraveacutes do qual os seres satildeo
formados por separaccedilatildeo da unidade absoluta De acordo com Giulio Busi o problema
da passagem do Ein Sof ao domiacutenio da emanaccedilatildeo representou um dos pontos mais
tormentosos da especulaccedilatildeo cabalista381 Especialmente na Cabala do lsquo500 difundiu-
se a reflexatildeo sobre o aspecto secreto do desencadeamento da emanaccedilatildeo passando a
376 SENDER ibid p50 377 No sentido descendente a Aacutervore da Vida constitui o trajeto atraveacutes do qual o poder criador atuou no ato da
Criaccedilatildeo eacute a transformaccedilatildeo do AIN (ldquoNadardquo) em ANI (ldquoEurdquo) quando o Imanifesto torna-se Manifesto Note-se que AIN e ANI contecircm as mesmas letras e a permutaccedilatildeo entre elas segundo o meacutetodo cabalistico temuraacute ocorreu simultaneamente ao processo de involuccedilatildeo do poder criador (SENDER opcit p50)
378 SENDER opcit p46 Haacute registros de que o recurso agrave teologia negativa que opera com a impossibilidade de qualificar a iacutentima natureza do divino estava presente no iniacutecio do seacuteculo XIII nos ciacuterculos de Isaac o Cego (BUSI opcit p18)
379 A passagem eacute dos Sifre ha-lsquoiyyun (Livros da Contemplaccedilatildeo) redigidos na metade do seacuteculo XIII lecirc-se ainda ldquoEle eacute unido agraves suas forccedilas como a chama eacute unida agraves suas coresrdquo (cf Verman The Books of Contemplation Medieval Jewish Mystical Sources Albany 1992 apud BUSI opcit p18)
380 Paolo FORNACIARI (2009 p19) como outros autores pesquisados trata de forma bastante restrita o conceito de Tetragrama que tambeacutem eacute transliterado como IHVH Em outra qualificaccedilatildeo obscura informa SCHOLEM que o conjunto do universo estaacute selado em todos os seus seis lados com as seis permutaccedilotildees do nome IHVH e que todas as coisas existem por combinaccedilotildees dessas letras como assinaturas (1988 p201)
381 BUSI opcit p 20
126
ser bem aceita a concepccedilatildeo de que o impulso agrave manifestaccedilatildeo se deu como um
movimento espontacircneo da vontade divina expresso na ideia de expansatildeo Para que
tal manifestaccedilatildeo no cosmo fosse possiacutevel os cabalistas anuiacuteram que o Ein Sof tivesse
tido que se auto-limitar restringindo-se dentro do domiacutenio da compreensibilidade382
Tal ideia de contraccedilatildeo da Presenccedila Divina denominada Sekinah jaacute se encontrava
presente na literatura midraacuteshica e foi retomada no decorrer do seacuteculo XIII383 Mais
adiante no seacuteculo XVI Moshe Cordovero exprimiria o conceito de contraccedilatildeo divina
com um esclarecedor aforisma segundo o qual ldquoa emanaccedilatildeo eacute o espaccedilo de Sua
presenccedila no qual Ele se contraiurdquo de forma que ldquoSua grandeza mesmo que parcial
pudesse ser intuiacutedardquo Continuando dizia o cabalista que ldquoa razatildeo da emanaccedilatildeo eacute
dupla de uma parte Deus quis ocultar-se ateacute que as criaturas tivessem um limite de
outra parte Ele quis revelar-se para que as criaturas pudessem aferrar a Sua
grandezardquo384 As sentenccedilas confirmam conceitualmente o duplo movimento
presente na origem da Criaccedilatildeo o de ocultaccedilatildeo e o de manifestaccedilatildeo Ademais as
palavras de Cordovero que refletem uma posiccedilatildeo doutrinaacuteria aceita no Cabalismo
sustentam que o movimento em direccedilatildeo agrave cognoscibilidade comporta
necessariamente a ocultaccedilatildeo de tudo aquilo que natildeo pode ser compreendido pelos
seres finitos Sob esse prisma na concepccedilatildeo basilar de emanaccedilatildeo divina estaria
imbuiacuteda a ideia de uma paulatina revelaccedilatildeo de sua verdade ou de sua parcial
ocultaccedilatildeo Acerca do tema e especificamente de sua atuaccedilatildeo sobre o universo fiacutesico
escreveu de forma elucidativa o mestre de Pico Alemanno
O poder [divino] se estende e emana sobre todas as criaturas em
geral ainda que elas difiram no tocante agraves suas capacidades
receptivas assim os vegetais e os animais satildeo mais receptivos
ao efluxo divino do que os minerais O ser humano tem a maior
receptividade de todos [Mas] tambeacutem na espeacutecie humana os
homens possuem distintos graus de receptividade385
A passagem conquanto se refira agraves diversas formas de recepccedilatildeo das
emanaccedilotildees no universo fiacutesico confirma a atuaccedilatildeo da divindade sobre os mundos
inferiores atraveacutes de seus canais as Sefirot Outra caracteriacutestica integrante do
movimento emanente estaacute em seu retorno A presenccedila de um fluxo descendente e
outro ascendente estaacute clara nesta outra passagem de Alemanno ldquoEle recebe todos os
canais e as emanaccedilotildees dos mundos supernos e intermediaacuterios pois ningueacutem recebe
aquele bem na sua inteireza a natildeo ser Ele Quando Ele o recebe todas as emanaccedilotildees
382 Perceba-se que ao limitar-se em contraccedilatildeo ocorre uma queda de potecircncia Em cada subsequente estaacutegio ou
desniacutevel daacute-se uma consequente diminuiccedilatildeo da magnitude de poder da emanaccedilatildeo Essa concepccedilatildeo por si soacute pode propiciar algumas especulaccedilotildees teoloacutegicas
383 A contraccedilatildeo eacute definida em hebraico como simsum procedente da raiz simsem (BUSI 2011 p 20) A concepccedilatildeo da contraccedilatildeo divina sofre algumas variaccedilotildees ao longo do tempo Nachmacircnides trata do tema que tambeacutem consta do Midrash haacute-nersquoelam (O midrash escondido)
384 CORDOVERO Pardes Rimmonim A obra de Cordovero surgida pela primeira vez em Cracoacutevia em 1591 natildeo dispotildee atualmente de ediccedilatildeo comentada BUSI informa em sua bibliografia algumas traduccedilotildees da obra (2011 pp20-21 138)
385 ALEMANNO Collectanaea Manuscrito de Oxford 2234 f 105v Quanto aos graus de receptividade do homem a recepccedilatildeo de cada sefiraacute depende da estrutura do intelecto humano que pode participar do conhecimento apenas de forma gradual Sobre o tema veja-se BUSI 2011 p14
127
que descendem agrave terra estatildeo em equiliacutebrio e operam na perfeiccedilatildeordquo386 Haacute pois um
retorno ldquoa Elerdquo um movimento contraacuterio e necessaacuterio para o equiliacutebrio universal O
fluxo de ascese e descese passando atraveacutes da aacutervore sefiroacutetica permite que os
estamentos universais se estabeleccedilam
As conceituaccedilotildees referentes ao processo de emanaccedilatildeo a partir do Ein Sof
especialmente as escritas por Alemanno certamente natildeo deixariam de ser notadas
por Pico Em pelo menos duas conclusiones o tema eacute abordado diretamente Na tese
oacuterfica 15 eacute estabelecida uma correspondecircncia ldquosatildeo a mesma coisa a Noite em Orfeu e
o Ein Sof na Cabalardquo387 Para estabelecer tal analogia Pico estaria acolhendo em
ambas as designaccedilotildees a representaccedilatildeo da existecircncia informe ou da ausecircncia de
forma e distinccedilatildeo O tema eacute retomado na tese cabaliacutestica 31 secundum opinionem
propriam ldquoQuando os cabalistas colocam com o termo Tesuvah a ausecircncia de
forma esta deve ser entendida como estado antecedente agrave formardquo388 A concepccedilatildeo de
uma contraccedilatildeo divina tambeacutem natildeo deixaria de ser mencionada
Se concebermos Deus como infinito e uno e segundo si mesmo
de modo a compreender que drsquoEle nada procede sendo apenas
distanciamento das coisas total fechamento de si em si mesmo
e extremo profundo e solitaacuterio contrair-se no recesso mais
remoto da proacutepria divindade ndash entatildeo teremos uma intuiccedilatildeo
drsquoEle que se cobre no abismo de sua profundidade389
3 As divisotildees da Cabala e suas formas de aproximaccedilatildeo agrave divindade390
O vasto conjunto de materiais que foi sendo formado ao longo de seacuteculos
abrigando doutrinas que ora se complementavam ora natildeo dificilmente poderia
formar uma teoria unificada Assim que os milhares391 de textos e manuscritos
encontrados sob o leque do Cabalismo foram adquirindo tonalidades diferenciadas
que levaram agrave disposiccedilatildeo de alguns corpora com denominaccedilotildees distintas Embora
para Gershom Scholem toda a miacutestica judaica seja fundamentalmente uma teosofia ndash
386 ALEMANNO Einei haEdaacute (Os Olhos da Congregaccedilatildeo) Manuscrito de Jerusaleacutem 598 f 51r-v 387 Concl (II) X 15 p122 ldquoIdem est Nox apud Orpheum et Ensoph in Cabalardquo 388 Concl (II) XI 31 p132 ldquoCum audis cabalistas ponere in lsquoThesuarsquo informitatem intellige informitatem per
antecedentiam ad formalitatem non per priuationemrdquo 389 PICO Concl (II) XI 35 p132 ldquoSi deus in se ut infinitum ut unum et secundum se intelligatur ut sic nihil
intelligimus ab eo procedere sed separationem a rebus et omnimodam sui in seipso clausionem et extremam in remotissimo suae diuinitatis recessu profundam ac solitariam retractionem de eo intelligimus ipso penitissime in abysso suarum tenebrarum se contegente et nullo modo in dilatatione ac profusione suarum bonitatum ac fontani splendoris se manifestanterdquo Pontua FARMER (op cit p535) que Pico distingue nessa tese a natureza transcendente de Deus (Ein-Sof) de sua natureza manifesta (as Sefirot)
390 O termo ldquodivindaderdquo pode ser atribuiacutedo a uma miriacuteade de possibilidades dentro de uma estrutura hieraacuterquica de acordo com o modelo de Cabala e com a intenccedilatildeo do operador O conceito pode ser empregado para caracterizar desde entidades mais terrenas dentro de uma visatildeo que se aproxima ao paganismo como para designar o grau maacuteximo da Unidade Absoluta
391 Embora a quantidade possa parecer exagerada o nuacutemero de manuscritos espalhados atualmente entre vaacuterias bibliotecas do mundo eacute efetivamente avultoso como confirmam as obras dos especialistas Scholem e Idel
128
jaacute que trata da imersatildeo nos misteacuterios do mundo divino e de suas relaccedilotildees com o
mundo da Criaccedilatildeo ndash392 o proacuteprio reconhece algumas divisotildees temaacuteticas existentes na
Cabala dentre as quais duas principais a chamada Cabala Praacutetica Qabalaacute Maassit
e a chamada Cabala Especulativa Qabalaacute Iiunit393 Em suas Conclusiones
Cabalisticae Giovanni Pico mostrava ter conhecimento dessas duas divisotildees
testemunhando que a distinccedilatildeo jaacute era bem aceita pelos cabalistas da eacutepoca394 A
Cabala Especulativa tomou outra subdivisatildeo a saber o modelo teuacutergico-teosoacutefico
mais difundido e considerado mais importante e o modelo extaacutetico-meditativo
tambeacutem chamado profeacutetico Essas se tornaram as trecircs principais distinccedilotildees aceitas
pelos atuais comentaristas cabaliacutesticos representando sucintamente trecircs formas de
se relacionar com a Cabala a praacutetica em alguns casos chamada ldquomaacutegicardquo a teuacutergica e
a extaacutetica395 A elucidaccedilatildeo de tais modelos seraacute uacutetil para a compreensatildeo de seus
propoacutesitos e consequentemente de seu uso na obra piquiana
A Cabala Praacutetica
Difundida especialmente a partir da escola askenazita florescida no seacuteculo XII
e responsaacutevel por levar o misticismo judaico a uma fase de transiccedilatildeo396 a Cabala
Praacutetica lida com formas ritualiacutesticas que poderiam ser organizadas ao longo de uma
reacutegua de graduaccedilotildees Tambeacutem chamada ldquomaacutegico-talismacircnicardquo contempla um
conjunto de procedimentos voltados agrave obtenccedilatildeo de determinados benefiacutecios que se
distribuem em graus variaacuteveis de densidade material relacionados agrave utilizaccedilatildeo de
praacuteticas maacutegicas Nesse sentido a magia deve ser entendida como elemento que faz
parte do saber miacutestico judaico apresentando-se sob uma profusatildeo de formas
presentes desde o final da Antiguidade397 Com o passar do tempo ocorreu a
despotencializaccedilatildeo da Cabala maacutegica em virtude da crescente manipulaccedilatildeo de
elementos externos para a obtenccedilatildeo de benefiacutecios materiais eou pessoais levando a
Cabala Praacutetica a aproximar-se do paganismo398 Efetivamente vaacuterias narrativas
recolhidas nos Talmudim e Midrashim de eacutepoca tardo-antiga descrevem foacutermulas
392 SCHOLEM 1999 pp 64-65 Malgrado qualquer definiccedilatildeo que o termo ldquoteosofiardquo possa ter tomado apoacutes o
seacuteculo XVIII cabe ressaltar que o uso empregado pelos comentadores ao tratar das concepccedilotildees presentes na Cabala relaciona-se agrave forma como o mesmo era utilizado pelos neoplatocircnicos para indicar o conhecimento das coisas divinas proveniente da inspiraccedilatildeo direta de Deus Nesse sentido veja-se por exemplo Proclo (Theologia Platonica V 35) e Porfiacuterio (De abstinentia ab esu animalium IV 17)
393 SCHOLEM 1989 p5 Foi a escola espanhola a produzir a primeira literatura apontando para uma dicotomia entre Cabala praacutetica e especulativa Essa distinccedilatildeo pode ter relaccedilatildeo com a divisatildeo formulada por Maimocircnides entre filosofia especulativa e filosofia praacutetica em seu tratado sobre loacutegica Milot ha-Higaion (IDEL 2008-a p32)
394 PICO Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum hebraeorum 1 ldquoIndependentemente do que digam todos os outros cabalistas eu distinguirei o conhecimento da Cabala na Ciecircncia da Numeraccedilatildeo ou Sephirot e na Ciecircncia de Semot ou Nomes em relaccedilatildeo agrave ciecircncia praacutetica e especulativardquo Pico toma emprestada tal distinccedilatildeo do cabalista Abraham Abulafia (cf IDEL Lrsquoesperienza mistica di Abraham Abulafia Milano 1992 p46 apud FORNACIARI 2009 np35)
395 IDEL 2008a p19 veja-se o inteiro artigo para detalhes acerca dos modelos de Cabala 396 Leia-se mais em BUSI opcit p49 397 Algumas partes desse tipo de conhecimento sobreviveram e encontram-se em textos hebraicos e aramaicos
como informa IDEL (2008-a pp32-33) 398 IDEL 2008a p38 Na paacutegina 37 da mesma obra Idel cita um trecho do Pardes Rimonim obra claacutessica da
literatura de Safed de Cordovero em que se encontra descrita a forma de utilizaccedilatildeo das cores para atrair as forccedilas sefiroacuteticas
129
maacutegicas e extraordinaacuterios poderes de antigos mestres confirmados por achados
arqueoloacutegicos que provam sua difusatildeo durante a diaacutespora do Oriente Proacuteximo399
Na Idade Meacutedia sob o impacto de concepccedilotildees filosoacuteficas reinantes entre os
aacuterabes surgiram elaboraccedilotildees que se sustentavam sobre a ideia que canalizando a
fonte espiritual que governa o mundo o operador poderia manipular os
acontecimentos do mundo sublunar Por conseguinte desenvolveu-se na magia
medieval aacuterabe e judaica o conceito de atraccedilatildeo das forccedilas dos corpos celestiais Tais
forccedilas denominadas Pneumata Ruhaniyyat ou Ruhaniot ndash respectivamente em
grego aacuterabe e hebraico ndash poderiam ser atraiacutedas e capturadas por meio de tipos
especiais de objetos e rituais cujas naturezas deveriam estar em concordacircncia com as
feiccedilotildees dos correspondentes corpos celestiais400 Entre as maneiras de atrair os vaacuterios
gecircneros de forccedilas existentes a linguagem mostrava-se a principal forma utilizada
sendo um procedimento que de acordo com o modelo de Cabala poderia ser
empregado em oitavas diferenciadas401
Os resultados dos chamados ldquoencantamentosrdquo passam a se difundir nos
ciacuterculos cabaliacutesticos sobretudo a partir do seacuteculo XII eacutepoca de difusatildeo da obra de
magia Secircfer Raziel (O Livro de Raziel) inclusive entre os cristatildeos402 Para muitos
sua autoria deveria ser atribuiacuteda a Eleazar de Worms que teria escrito tambeacutem um
comentaacuterio ao Secircfer Yetsiraacute onde se leem algumas instruccedilotildees para a feitura de um
ser vivo intitulado Golem403 Ainda antes de difundir-se nos ciacuterculos renanos essa
intrigante concepccedilatildeo era conhecida entre os judeus da Itaacutelia meridional mesmo em
ambientes culturalmente elevados na obra Megillat Ahimarsquoas redigida na Puglia do
seacuteculo XI narra-se a criaccedilatildeo de um golem a partir da potecircncia do Tetragrama404
Contudo a maior absorccedilatildeo da literatura referente ao golem se daacute no Quattrocento
italiano certamente natildeo passaria despercebida aos ilustrados do Renascimento a
399 BUSI 2011 p27 Muitos dos achados arqueoloacutegicos traziam amuletos com nomes angeacutelicos frequentemente
agrupados em longas sequecircncias para reforccedilar seu valor apotropaico Maiores detalhes sobre a Cabala Praacutetica podem ser encontrados nas seguintes obras indicadas por BUSI PATAI R Alchimisti ebrei-Storia e fonti trad S Bondoni Genova 1997 SEacuteD N Lrsquoalchimie e la Science sacreeacute des lettres Notes sur lrsquoalchimie juive agrave propos de lrsquo ldquoEgravesh mesarephrdquo in Alchimie Art Histoire et mythes Paris-Milan 1995 pp547-649
400 Maimocircnides embora natildeo simpatizante dessa espeacutecie de atividade foi quem melhor descreveu as formas de atraccedilatildeo de forccedilas para objetivos praacuteticos nas passagens em que trata sobre idolatria (IDEL 2008-a p34)
401 O uso da Cabala Praacutetica natildeo se restringe agrave obtenccedilatildeo de benefiacutecios materiais ou egoiacutesticos como poderia ser entendido Como conta Tova SENDER (opcit p82) o poder da linguagem relacionado agrave leitura dos Salmos para citar um exemplo constitui um recurso utilizado por comunidades judaicas em tempos de perigo natildeo apenas na Antiguidade como nos dias atuais
402 SENDER opcit p79 O Secircfer Raziel eacute um manual contendo instruccedilotildees para a confecccedilatildeo de amuletos Veja-se o amplo material coletado por Franccedilois SECRET Sur quelques traductions du Sefer Raziel in Revue des Eacutetudes Juives 128 1969 pp223-245
403 Considera-se que a recitaccedilatildeo correta dos versos do Secircfer Yetsiraacute tem a forccedila para produzir uma criatura e dotaacute-la de vitalidade hiut e alma neschamaacute Como no idioma hebraico eacute possiacutevel natildeo definir o tempo verbal em razatildeo de sua ausecircncia de vogais as sentenccedilas presentes naquela obra podem ser lidas como ldquoEle combinou Ele formourdquo ou de forma imperativa ldquoCombine Formerdquo (cf MAGHIDMAN 2014 p109) Acerca da criaccedilatildeo real de um ser animado conta-se que no seacuteculo XVI em Praga notabilizou-se o rabino Loumlew por criar um golem partindo do barro e utilizando o Livro da Criaccedilatildeo Sobre o tema a composiccedilatildeo intitulada Sod Peulat haYetsiraacute (O Segredo da Operaccedilatildeo da Criaccedilatildeo) eacute um dos textos que descreve a criaccedilatildeo de um golem (cf IDEL As obras e a doutrina de Abratildeo Abulafia opcit 1976 p131) Tambeacutem de IDEL Golem Jewish Magical and Mystical Traditions on the artificial Anthropoid 1990 pp 54-80 96-118 127-163 Veja-se ainda SCHOLEM e seu capiacutetulo ldquoA ideia do Golemrdquo (A Cabala e seu Simbolismo 1978) BUSI e suas sugestotildees bibliograacuteficas acerca do tema (2011) SENDER (1992 p80)
404 BUSI idem
130
possibilidade de confeccionar um ser animado De fato como conta Franco Bacchelli
ldquonaqueles anos entre aqueles homens [do final do lsquo400] encontrava-se vivo natildeo
apenas o velho problema da possibilidade da geraccedilatildeo espontacircnea de animais
superiores mas tambeacutem a questatildeo da possibilidade de conferir vida para vaacuterios fins
operativos e sapienciais a mateacuterias inanimadasrdquo405 Satildeo justamente desse periacuteodo
as discussotildees ficinianas sobre as estaacutetuas que poderiam capturar daimons ou sobre a
geraccedilatildeo de ldquointelectosrdquo profeacuteticos estabelecidos por Lazzarelli a partir das receitas
para se confeccionar um golem406
O interesse pela magia eacute um elemento que compotildee a cena do seacuteculo XV como
visto no Capiacutetulo I e que mereceu destaque em obras piquianas como as
Conclusiones a Oratio e a Apologia O conhecimento de formas da magia hebraica
abriria espaccedilo para discussotildees mais profundas de teor eacutetico que envolveriam Pico
Alemanno e pronunciadas distinccedilotildees entre formas da Cabala consideradas puras e
impuras relacionadas aos lados ldquodireito e esquerdordquo407 A conceituaccedilatildeo do ldquolado
esquerdordquo tem suas origens ligadas muito provavelmente agrave ideia de sitra ahara
(ldquooutro ladordquo) expressa no Zohar Um manuscrito do seacuteculo XVI de autor anocircnimo
adverte para a necessidade de se preservar tais ensinamentos informando que ldquoa
Cabala praacutetica consiste em conjuraccedilotildees de anjos um saber que deve ser escondido
por causa daquelas pessoas que satildeo mestres da praacutexis [anschei baalei maaseacute]rdquo408
Alemanno demonstrara interesse pelo aspecto operativo da Cabala ainda antes
de conhecer seu disciacutepulo embora reconhecendo sua posiccedilatildeo inferior em relaccedilatildeo agraves
formas mais elevadas de especulaccedilatildeo cabaliacutestica Pico por sua vez sabia que eram
proibidas as praacuteticas que empregavam nomes divinos para encantar democircnios
deixando claro em sua Tese maacutegica nr 26 que apenas a Cabala ldquopura e imediatardquo
poderia mover algo ldquoque nenhuma magia alcanccedilardquo409 Alemanno ndash e mais tarde
Cordovero que acolheria o influxo de seus procedimentos em Safed ndash tinha ciecircncia
da similaridade entre o tipo de Cabala que estava propondo e as praacuteticas maacutegicas
pagatildes ndash e natildeo pretendia quebrar a ordem natural recorrendo a forccedilas demoniacuteacas que
poderiam destruir tal ordem Ao contraacuterio propunha um tipo de atividade que
complementasse o curso natural das coisas adicionando uma dimensatildeo da praacutexis
baseada em leis jaacute existentes Para um cabalista como Alemanno que utilizava a
405 Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione
cabaliacutestica 2001 p 62 406 BACCHELLI ibid p76 Na mesma obra em nota agrave p 82 o autor aborda a maneira como Lazzarelli em sua
obra Crater Hermetis absorveu a doutrina da criaccedilatildeo do Golem e a forma de utilizaccedilatildeo dos nomes divinos 407 Assim escreveria o Rabi Elias Menakhem Halfan mais tarde em uma epiacutestola do seacuteculo XVI ldquoa ciecircncia da
Cabala dividiu-se no iniacutecio em duas partes chamadas de lado direito e lado esquerdo O lado direito eacute todo pureza e santidade nomes divinos e angelicais e questotildees sagradas O lado esquerdo eacute todo [] democircnios e cascas do lado impurordquo (Manuscrito JTS 1822 f 153v)
408 IDEL 2008-a p32-33 O manuscrito em questatildeo originou-se na escola cabalista espanhola cuja tendecircncia agrave magia foi visiacutevel no seacuteculo XV Ao contraacuterio da magia naturalis aceita por Ficino Pico e Alemanno seus contemporacircneos espanhoacuteis cultivavam um tipo de magia diversa que lidava com conjuraccedilotildees de anjos e democircnios para uma variedade de desiacutegnios inclusive o escatoloacutegico Haacute relatos de que alguns cabalistas da Espanha cultivaram uma forma demoniacuteaca e violenta de Cabala maacutegica destinada a destruir a ordem histoacuterica e religiosa predominante que significava entre outras coisas tambeacutem o Cristianismo (IDEL Jewish Magic from the Renaissance to Early Hasidism in Neusner-Frerichs-McCracken (eds) New York-Oxford Oxford University Press 1989 pp 86-99)
409 PICO Concl (II) IX 26 p120 ldquo[] ita per opus Cabalae si sit pura Cabala et immediata fit aliquid ad quod nulla Magia attingitrdquo
131
magia em sua forma mais pura tal atividade era considerada sobrenatural apenas na
medida em que sua ordenaccedilatildeo se mostrava pertencente a uma ordem superior410 A
clara percepccedilatildeo da existecircncia de dimensotildees supracelestes puras e impuras bem como
de operadores cabalistas eticamente diferenciados em qualquer das formas
atribuiacuteveis agrave Cabala foi registrada pelo mestre de Pico
Qualquer homem bom ou mau que conheccedila a obra dos anjos
puros e impuros que satildeo superiores agraves estrelas pode atrair sua
fragracircncia sobre nossas cabeccedilas pois deu uma interpretaccedilatildeo
cabaliacutestica agrave Toraacute inteira Nisso estatildeo inclusos os mestres das
ciecircncias especulativas e praacuteticas das Sefirot411
A Cabala Teuacutergica
O modelo teuacutergico-teosoacutefico bastante amplo em relaccedilatildeo agrave quantidade de
material que lhe foi designado abrange de um lado o domiacutenio de especulaccedilatildeo que os
estudiosos descrevem como ldquoteosoacuteficordquo ndash pois lida com os diferentes e complexos
mapas do reino divino procurando revelar os misteacuterios da vida oculta de Deus suas
relaccedilotildees com a vida humana e as desta com a Criaccedilatildeo de outro a chamada ldquoteurgiardquo
ou a maneira atraveacutes da qual certos feitos religiosos humanos exercem impacto sobre
o referido reino412 Os teurgos entendem que o homem seja capaz de ativar o influxo
divino atraveacutes de cerimocircnias religiosas e invocaccedilotildees Um paradigma de pensamento
teuacutergico foi aquele desenvolvido por Jacircmblico baseado na eficaacutecia do rito como
ativador das forccedilas celestes Segundo o neoplatocircnico ldquograccedilas agraves forccedilas dos segredos
singulares que possui o teurgo natildeo comanda as potecircncias coacutesmicas como um
homemrdquo mas ldquocomo um ser que jaacute alcanccedilou o niacutevel dos deusesrdquo413 Esse eacute o
entendimento que se extrai das formas teuacutergicas mencionadas por Pico sobretudo
nas Conclusiones que tratam dos Hinos de Orfeu414 Sob o Cabalismo o conceito de
410 IDEL 2008-a pp 37-38 Em seu Collectanaea Alemanno elucida que o processo para a aquisiccedilatildeo de
poderes maacutegicos atraveacutes da emanaccedilatildeo das forccedilas superiores compreende dois estaacutegios em uma abordagem que parte do inferior ao superior inicialmente a pessoa receberia uma vibraccedilatildeo menos elevada do efluxo divino somente apoacutes habituar-se a ele poderia receber o efluxo adicional ldquoo espiacuterito do Deus vivordquo que caracterizaria o ldquodescenso da espiritualidaderdquo (horadat haRukhaniut) Para o autor se os atos para o descenso das forccedilas fossem feitos sob a utilizaccedilatildeo dos corretos mandamentos e ritos judaicos qualquer conduta ndash que em outra situaccedilatildeo seria irregular ndash tornar-se-ia atenuada Assim as consecuccedilotildees materiais e espirituais poderiam ser realizadas sem uma tentativa de ldquocurto-circuitarrdquo a ordem da natureza ou ldquosem forccedilar a vontade divinardquo (cf IDEL ibid p35) Note-se que em Florenccedila a ideia de descenso das forccedilas espirituais recebeu criacuteticas de Moiseacutes ben Yoav que considerava essa praacutetica idolatria em todos os aspectos Elia Del Medigo descartava completamente qualquer de suas formas Em sua obra Bekhinat haDat (O Exame da Religiatildeo) Del Medigo se opotildee agravequeles (como Alemanno provavelmente) que viam na Toraacute e nos preceitos meios para causar o descenso das forccedilas espirituais (ldquoeacute impossiacutevel que as forccedilas espirituais descendam para o mundo do modo que dizem os magos Ao examinarmos os dizeres da Toraacute vemos que ela se opotildee energicamente a tais praacuteticas idoacutelatrasrdquo) Cf IDEL 2008-b p 477 np 493
411 ALEMANNO Collectanaea in Manuscrito de Paris 849 f 7v 412 IDEL 2008a p 20 Essa forma de Cabala fez parte das discussotildees dos cabalistas espanhoacuteis encontrando no
Zohar uma forte expressatildeo florescendo posteriormente de forma mais vigorosa no ciacuterculo luriacircnico de Safed no seacuteculo XVI Para maiores detalhes acerca da notoacuteria escola desenvolvida por Isaac Luria veja-se IDEL 1998 pp 22-23
413 Apud BUSI (opcit p34) que natildeo cita a fonte de Jacircmblico 414 Veja-se por exemplo a Conclusio oacuterfica nr2 cf Cap III
132
Teurgia refere-se agrave crenccedila do cabalista em sua habilidade especiacutefica de influenciar no
processo e na condiccedilatildeo das Sefirot atribuindo ao rito uma especial forccedila operativa415
Tanto o fenocircmeno de recebimento do efluxo sefiroacutetico como a leitura dos
nomes divinos eram elementos familiares a Pico e integravam respectivamente a
ldquoCiecircncia das Sefirotrdquo e a ldquoCiecircncia Semotrdquo mencionadas nas Conclusiones416 A
conexatildeo entre esses dois aspectos eacute abordada no Takhlit heHakham obra conhecida
tanto por Pico como por Alemanno onde se lecirc ldquoAristoacuteteles disse que [] nos tempos
antigos os nomes divinos tinham uma certa capacidade para trazer a forccedila espiritual
agrave terra Agraves vezes essas forccedilas descendiam Outras vezes matavam o homem que as
utilizasserdquo417 A menccedilatildeo aos tempos de Aristoacuteteles eacute utilizada pelo autor do
manuscrito para prevenir contra o perigo envolvido nas praacuteticas de rituais teuacutergicos
quando natildeo eacute dada a devida atenccedilatildeo aos detalhes ndash advertecircncia referida em muitos
livros cabaliacutesticos O Sefer haAtzamin (f13) por exemplo determina ldquose a pessoa
natildeo for especialista e versada em causar o descenso das forccedilas e a execuccedilatildeo dos
rituais eles o mataratildeordquo418 Tambeacutem Pico era ciente dos riscos envolvidos nas
operaccedilotildees cabaliacutesticas tanto que assim escreveria em suas Teses ldquoQuem opera em
Cabala[] se cometer erros ao operar ou iniciar-se sem preacutevia purificaccedilatildeo seraacute
devorado por Azazel segundo as regras da justiccedilardquo419
Sob o prisma teuacutergico o estudo das estruturas das Sefirot natildeo denota apenas
uma ocupaccedilatildeo teoacuterica mas uma possibilidade de colocar o adepto em grau de intervir
diretamente sobre o mundo superno a ponto de influenciar a dinacircmica das forccedilas
divinas Enquanto a magia exercida na Cabala Praacutetica utiliza os efeitos da propagaccedilatildeo
de forccedilas superiores sobre o mundo material atraindo-as para baixo a Teurgia de
forma contraacuteria empurra o miacutestico em direccedilatildeo ao alto caracterizando-se assim
como uma forma de caminho iniciaacutetico420 O miacutestico-teurgo tem por objetivo elevar-
se ndash no caso dos cabalistas agrave dimensatildeo sefiroacutetica ndash usando como instrumentos os
especiacuteficos rituais destinados para influir sobre aquelas forccedilas Um importante
desdobramento da relaccedilatildeo causa-efeito entre as accedilotildees materiais e suas repercussotildees
celestes encerra-se na concepccedilatildeo cabaliacutestica de que as accedilotildees ritualiacutesticas natildeo satildeo as
415 IDEL 2008-b n p 461 416 Referentes agrave Cabala Especulativa e agrave Cabala Praacutetica cf Conclusio Cabalistica (II) XI 1 417 Cf Manuscrito de Munique 214 f51r apud IDEL 2008-b p474 Em outro artigo IDEL observa que a
magia heleniacutestica antiga lidava com o recebimento de forccedilas espirituais chamadas naquele contexto pneumata (2008-a p34)
418 IDEL 2008-b np 485 419 PICO Concl (II) XI 13 ldquoQui operatur in Cabalaet si errabit in opere aut non purificatus accesserit
deuorabitur ab Azazele per proprietatem iudicii A primeira parte da conclusio 13 postula que aquele que operar em Cabala da forma correta encontraraacute a conjunccedilatildeo com Deus (ou com o Absoluto conforme a concepccedilatildeo da ldquoMorte do Beijordquo) Elucida FORNACIARI que assim como o ecircxito positivo traz um resultado de dimensotildees absolutas o eventual ecircxito negativo natildeo se limitaraacute a um simples fracasso mas ao completo extermiacutenio do operador inexperiente atraveacutes da ldquofagocitoserdquo por parte do democircnio (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001)
420 BUSI opcit p34 ss A magia da Cabala Praacutetica transformou-se em Teurgia tatildeo logo o objeto do efluxo espiritual passou a ser a sefiraacute de Malkhut ndash a esfera mais proacutexima ao reino material ndash e natildeo a pessoa do cabalista ou o do mago Contudo as duas formas apresentam-se como um caminho de matildeo dupla o atrair as forccedilas para baixo pode se dar em dois estaacutegios o ato teuacutergico inicial opera levando a emanaccedilatildeo da sefiraacute mais elevada ateacute a uacuteltima Malkut onde eacute possiacutevel ndash usando uma linguagem neoplatocircnica ndash a uniatildeo do intelecto com o inteligiacutevel em seguida o influxo da uacuteltima sefiraacute eacute atraiacutedo para o reino sublunar ocasionando o que se chama ldquotransbordordquo das Sefirot um ato ligado ao territoacuterio da praacutetica ou magia (cf IDEL 2008-a pp 38-43 2008-b p 471)
133
uacutenicas a reverberarem no ceacuteu como explica Giulio Busi cada ato humano mesmo o
mais simples obteacutem um resultado velado na outra dimensatildeo ldquopropagando-se como
uma onda ateacute o mais iacutentimo do misteacuterio transcendenterdquo421 Pode-se entender assim
porque a Cabala tem um papel especial no processo de dignificaccedilatildeo do homem
proposto por Pico em quase todas as suas obras a especulaccedilatildeo cabaliacutestica atribui ao
homem uma extraordinaacuteria responsabilidade na medida em que o torna partiacutecipe do
equiliacutebrio divino
A interpretaccedilatildeo das Escrituras eacute uma das ferramentas utilizadas para alcanccedilar
a comunhatildeo objetivada como abordado no item referente agrave tradiccedilatildeo oral Outras
formas ritualiacutesticas assim como na Cabala Praacutetica se datildeo pelo uso da linguagem em
virtude de sua qualidade de refletir seja pelas letras ou por seu som a estrutura
interna do reino divino ndash isto eacute do sistema sefiroacutetico ndash visto que dele participam
Essa qualidade criadora presente nas letras hebraicas permite sua atuaccedilatildeo na
mateacuteria como melhor explica Lipiner ldquoas letras do alfabeto hebraico seriam espiacuterito
derivado de espiacuterito que deslizam progressivamente da sutil sabedoria e pensamento
divinos ateacute converterem-se em substacircncias das coisas materiais jaacute presentes
integralmente nelas em potecircnciardquo422 Por conseguinte os corretos vocaacutebulos
juntamente com a correta forma de pronuacutencia natildeo apenas permitem ao teurgo influir
sobre aquela estrutura como restauram a harmonia no interior do reino divino423
A Cabala Extaacutetica
Embora a Cabala Teuacutergica tivesse adotado visotildees neoplatocircnicas importantes
os elementos aristoteacutelicos presentes na Cabala Extaacutetica foram essenciais para que
essa forma predominasse na Itaacutelia onde exerceu maiores repercussotildees sobre
pensadores do lsquo400 em razatildeo das nuances que a aproximava agrave Filosofia
Manifestando-se entre o final do seacuteculo XIII e o iniacutecio do XIV sobretudo atraveacutes dos
manuscritos dos cabalistas espanhoacuteis Abraham Abulafia Natan Saadia e Isaac de
Acre ndash os trecircs em linhagem sucessoacuteria mestre-disciacutepulo ndash a Cabala Extaacutetica
estabeleceu-se cuidando da questatildeo que envolve a comunhatildeo do homem com o
Espiacuterito divino424 Tanto Alemanno quanto Pico estavam bem familiarizados com
esse modelo de Cabala graccedilas aos estudos sobre os escritos de Abulafia que agregou
421 Como exemplifica Busi a uniatildeo sexual entre um homem e uma mulher sob a oacutetica cabalista provoca a
conjunccedilatildeo sefiroacutetica entre Malkut a sefiraacute que representa o princiacutepio feminino ligado ao Reino e Tiferet a sefiraacute da Beleza que conota o princiacutepio masculino (2011 p35)
422 Elias LIPINER As letras do Alfabeto na criaccedilatildeo do mundo - Contribuiccedilatildeo agrave pesquisa da natureza da linguagem 1992 p107 A essecircncia dinacircmica contida nas letras defendida e chamada de ldquoalma das letrasrdquo por Isaac o Cego relembra caracteriacutesticas platocircnicas de potecircncia criadora oriunda do mundo das Formas e das Ideias como justamente infere SCHOLEM (1999 p33)
423 A ideia de restauraccedilatildeo de harmonia no interior do reino divino concepccedilatildeo que pode soar incocircmoda eacute melhor entendida atraveacutes da explicaccedilatildeo de Yohanan Alemanno ldquoEle [o divino] recebe todos os canais e as emanaccedilotildees dos mundos supernos e intermediaacuterios pois ningueacutem recebe aquele bem na sua inteireza a natildeo ser Ele Quando Ele o recebe todas as emanaccedilotildees que descendem agrave terra estatildeo em equiliacutebrio e operam na perfeiccedilatildeordquo Depreende-se dessas palavras que o fluxo espiritual ocorre em duas vias o reino divino natildeo apenas emite como ldquoreceberdquo as emanaccedilotildees conferindo assim perfeiccedilatildeo ao mundo inferior e perpetuando a proacutepria harmonia (ALEMANNO Einei haEdaacute ndash Os Olhos da Congregaccedilatildeondash in Manuscrito de Jerusaleacutem 598 f 51 r-v
424 IDEL 2008-a p29 No seacuteculo XVI a Cabala extaacutetica teraacute forte repercussatildeo atraveacutes dos escritos de Cordovero Iehudaacute Albotini e Haim Vital entre outros
134
elementos aristoteacutelicos significativos em suas concepccedilotildees fiacutesicas metafiacutesicas e
relacionadas agrave alma425 Diferentemente da Cabala Teuacutergica que atua na atraccedilatildeo de
forccedilas exteriores aqui o foco principal se concentra nos processos interiores que
ocorrem entre o intelecto humano e o coacutesmico por alguns denominado Intelecto
Ativo426
Assim como nas outras formas de Cabala a Extaacutetica utiliza algumas teacutecnicas
para atingir seus objetivos nesse caso voltados a alcanccedilar determinado estado de
ecircxtase ndash o chamado devekut ou uniatildeo com a Divindade ndash e excepcionalmente de
profecia427 Segundo Abulafia a profecia decorre do contato entre a inteligecircncia
pessoal e a inteligecircncia universal que envolve a Criaccedilatildeo A alma humana natildeo pode
suportar o influxo direto da inteligecircncia superior graccedilas a certos ldquonoacutesrdquo que a mantecircm
atada agrave mateacuteria O estado contemplativo permite que tais noacutes sejam desatados
atraveacutes da observaccedilatildeo extaacutetica de algum objeto sem sentido proacuteprio como por
exemplo a contemplaccedilatildeo das letras hebraicas ndash sem os riscos de outros
procedimentos Atraveacutes da escrita aleatoacuteria das letras sem a preocupaccedilatildeo de
formaccedilatildeo de algum sentido e da meditaccedilatildeo sobre cada uma de forma isolada evita-
se que a mente entre em processo de associaccedilotildees em cadeia A abstraccedilatildeo da mente
possibilita a rarefaccedilatildeo das faculdades sensoriais e a ocorrecircncia do estado de ecircxtase
com consequente abertura para o influxo da inteligecircncia superior Igualando-se na
forccedila espiritual de cada letra o miacutestico torna-se uno com ela vivenciando uma
experiecircncia de caraacuteter singular ndash conforme contam os relatos descritos em muitos
textos cabaliacutesticos428
Partes fundamentais desse processo satildeo os dispositivos e teacutecnicas para
assegurar sua consecuccedilatildeo Atraveacutes do relato de Isaac de Acre tem-se a informaccedilatildeo
das teacutecnicas conhecidas como ldquohitbodedutrdquo que se caracteriza pelo exerciacutecio da
solidatildeo e concentraccedilatildeo e ldquohischtavutrdquo a equanimidade ldquoAquele que merecer o
segredo da comunhatildeo [com o divino] mereceraacute o segredo da equanimidade se ele
425 Para elucidaccedilotildees sobre a forma que Abulafia e outros cabalistas italianos utilizaram o Aristotelismo em suas
filosofias veja-se IDEL The Study Program (opcit) pp 310-311 nota 68 para as leituras de Pico acerca de Abulafia veja-se em Wirszubski vaacuterias menccedilotildees (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism opcit) Ademais foge ao escopo traccedilado a abordagem das vaacuterias siacutenteses efetuadas entre as doutrinas cabaliacutesticas e as filosofias neoplatocircnica e aristoteacutelica no periacuteodo do Renascimento limitamo-nos portanto a apenas mencionar a existecircncia de tais inter-relaccedilotildees cujos estudos podem ser verificados nas obras de SCHOLEM Origins of the Kabbalah (Princeton University Press 1987 pp 316-320 327-330 363-364 389-390) e de IDEL Jewish Kabbalah and Neoplatonism in the Middle Ages and Renaissance (in Neoplatonism and Jewish Thought Albany Suny 1992 pp 319-351)
426 IDEL 1998 p 27 2008-a p28 427 IDEL 2008-a p29 Quando o fundador do hassidismo polonecircs Israel Baal-Schem expocircs no seacuteculo XVIII a
tese miacutestica de que a comunhatildeo com Deus (devekut) eacute mais importante do que o estudo de livros houve muita oposiccedilatildeo e sua ideia foi citada nas polecircmicas anti-hassiacutedicas como prova de tendecircncias subversivas e anti-rabiacutenicas do movimento A mesma teoria exposta duzentos anos antes por Isaac Luacuteria a grande autoridade miacutestica de Safed natildeo suscitara nenhum antagonismo Segundo SCHOLEM (1978) uma evidecircncia de mudanccedila no clima histoacuterico
428 Abraham Abursquol-Afiyah de Saragoza ndash ou Abulafia ndash que teve na ideia de profecia o propoacutesito fundamental de seu inteiro projeto cabaliacutestico realizou pesquisas acerca de tal fenocircmeno que resultaram em sua obra Chochmat Hatzeruf (A ciecircncia da combinaccedilatildeo das letras) Maiores detalhes acerca dessa forma de praacutetica cabalista podem ser encontrados em SCHOLEM A Cabala e seu Simbolismo 1988 Ainda em SCHOLEM o capiacutetulo sobre Abraham Abulafia na obra A Miacutestica Judaica conteacutem alguns registros antigos dessa experiecircncia com riqueza de detalhes Veja-se tambeacutem BUSI 2011 p 26 IDEL 2008-a pp28-30 IDEL The Mystical Experience in Abraham Abulafia 1987 IDEL Studies in Ecstatic Kabbalah 1988
135
receber esse segredo entatildeo conheceraacute tambeacutem o segredo de hitbodedut recebendo o
Espiacuterito Divino e daiacute a profeciardquo429 Essas teacutecnicas estatildeo relacionadas com a triacuteplice
purificaccedilatildeo ndash a limpeza do corpo a limpeza interior e a purificaccedilatildeo da imaginaccedilatildeo ndash
descrita por Alemanno em seu Collectanaea como meacutetodo para operar a realizaccedilatildeo
de milagres Uma vez despido de todas as sensaccedilotildees e pensamentos materiais deveraacute
o operador ler apenas a Toraacute e os nomes divinos nela escritos para que entatildeo lhe
sejam revelados ldquosegredos impressionantes e visotildees divinas tais como as que podem
ser emanadas sobre as almas puras preparadas para recebecirc-losrdquo430 A alusatildeo de
Alemanno refere-se pois ao estado extaacutetico atingiacutevel atraveacutes da contemplaccedilatildeo dos
nomes divinos Se na Cabala Teuacutergica a interpretaccedilatildeo da Toraacute eacute utilizada como
elemento de aproximaccedilatildeo agrave divindade na Extaacutetica seraacute a contemplaccedilatildeo de cada letra
a propiciar a abstraccedilatildeo necessaacuteria para atingir o ecircxtase
A praacutetica da contemplaccedilatildeo esteve presente desde a primeira fase do misticismo
judaico embora inicialmente relacionada agrave contemplaccedilatildeo dos mundos superiores
conforme os mencionados tratados dos Heikhalot os miacutesticos dedicavam-se entatildeo a
exerciacutecios meditativos que os permitissem visualizar os mundos celestiais a
ldquoCarruagemrdquo (Mercavaacute) o ldquoTrono da Gloacuteriardquo e os seres muitas vezes hostis que
correspondem agraves diversas ordens angelicais Apesar de essa jornada sugerir uma
ascensatildeo os visionaacuterios e exploradores dos planos celestiais eram chamados Iordei
Mercavaacute (ldquoos que descem agrave Carruagemrdquo) provavelmente aludindo natildeo a uma saiacuteda
de si mas a um aprofundamento dentro do proacuteprio ser431 A importacircncia da
contemplaccedilatildeo encontra-se ademais no centro do pensamento de Isaac o Cego
ldquotodos os atributos satildeo transmitidos para serem contempladosrdquo A descese do
princiacutepio divino eacute descrita como uma seacuterie de contemplaccedilotildees sucessivas que durante
suas ocorrecircncias plasmam as coisas e lhes fornecem o aspecto com o qual se
apresentam ao mundo O chamado ao silecircncio interior eacute frequente em sua obra ldquoo
caminho da contemplaccedilatildeo eacute de fato um absorver e natildeo um conhecer
discursivamenterdquo432 Eacute ainda atraveacutes da contemplaccedilatildeo que o homem pode percorrer
o caminho inverso da emanaccedilatildeo divina Esse eacute o ponto em que o Cabalismo mais se
aproxima do pensamento neoplatocircnico do qual se disse que ldquoa progressatildeo e a
inversatildeo constituem um processo uacutenicordquo a diaacutestole-siacutestole que movimenta o
universo433
Os trecircs modelos verificados costumam se apresentar mesclados nas praacuteticas
cabaliacutesticas e em raros casos foram tratados em abordagens completamente
429 Esse e outros relatos de experiecircncias extaacuteticas podem ser lidos em IDEL 2008-a 430 ALEMANNO Collectanaea in Manuscrito de Oxford 2234 f 164r 431 SENDER opcit pp 41-42 432 A principal obra teoacuterica de Isaac o Cego da qual se tem notiacutecia eacute o Comentaacuterio ao Secircfer Yetsiraacute abordado
por BUSI (opcit p 53) 433 SCHOLEM 1995 p22
136
estanques Natildeo satildeo poucos os relatos de operadores que partindo da contemplaccedilatildeo e
seu subsequente alcance do reino divino ndash em claro emprego da forma Extaacutetica ndash
atraem em seguida o poder superno para realizar operaccedilotildees teuacutergicas Da mesma
forma a Cabala Teuacutergica foi combinada amiuacutede com operaccedilotildees maacutegicas de maneira
a permitir que as emanaccedilotildees das Sefirot mais altas prosseguissem sua descida sobre o
mundo extradivino Em comum tais operaccedilotildees utilizam-se da potecircncia desencadeada
pela correta escolha ou pronuacutencia de certos vocaacutebulos ou atraveacutes da meditaccedilatildeo sobre
suas formas434 Giovanni Pico utilizou-se dos trecircs modelos em suas argumentaccedilotildees A
eficaacutecia dos sons e palavras na obra maacutegica eacute defendida seja na Oratio que na
Apologia seu uso teuacutergico eacute apontado em vaacuterias conclusiones a dimensatildeo extaacutetica
encontra eco nas reflexotildees mais profundas do Mirandolano a serem retomadas no
uacuteltimo Capiacutetulo Contudo a evidecircncia do uso de fontes e conceitos extraiacutedos dos
modelos descritos entre as paacuteginas piquianas embora uma razatildeo suficiente natildeo eacute a
uacutenica para a apresentaccedilatildeo deste capiacutetulo digressivo Enquanto a outras tradiccedilotildees de
cunho esoteacuterico Pico natildeo destinou nenhuma obra em caraacuteter exclusivo ao
conhecimento cabaliacutestico mesmo que natildeo de forma expressa foi dedicado o
Heptaplus assim o esclarecimento de alguns conceitos natildeo usuais na linguagem
filosoacutefica se coloca como uma necessidade para uma aproximaccedilatildeo mais fluiacuteda e
aprofundada ao texto
434 Para uma reflexatildeo bastante aprofundada acerca do uso maacutegico-operacional da linguagem veja-se Franco
BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 pp 43-48 Veja-se tambeacutem para reflexotildees sobre a natureza da linguagem desenvolvidas por cabalistas e alguns comentadores do Secircfer Yetsiraacute VAJDA Un chapitre de lrsquohistoire du conflit entre la kabbale et la philosophie in ldquoArchives drsquohistoire doctrinale et littegraveraire du Moyen Agerdquo XXXI 1956 pp49-56 e 127-133 IDEL Language Torah and Hermeneutics in Abraham Abulafia Albany 1989 pp1-28 (apud BACCHELLI ibid n p 51)
137
CAPIacuteTULO VI
O HEPTAPLUS Agrave LUZ DA CABALA
O Heptaplus435 vocaacutebulo que significa ldquosete vezes seterdquo nasce como um
comentaacuterio em sete partes ndash subdivididas em sete capiacutetulos cada ndash acerca dos seis
dias da criaccedilatildeo expostos no Gecircnesis 1 Antes de Giovanni Pico outros nomes entre
latinos gregos hebreus e caldeus se haviam lanccedilado a interpretar a mesma
passagem biacuteblica como o proacuteprio indicava no Primeiro Proecircmio que antecede sua
obra436 tinha portanto plena ciecircncia do fato de natildeo se tratar de originalidade sua
preocupando-se em avisar agora no Segundo Proecircmio que ldquonatildeo eacute o propoacutesito dessa
obra que quem natildeo tenha aprendido essas coisas em outro lugar as aprenda aqui
pela primeira vezrdquo437 A escolha do Gecircnesis como fundamento para ensejar uma obra
deveu-se agrave percepccedilatildeo de que sob aquela narrativa estariam guardados ldquosegredos de
todas as naturezasrdquo em mais uma evidecircncia de seu interesse em ter acesso a
realidades protegidas pela dimensatildeo esoteacuterica438 A opccedilatildeo por aquele especiacutefico livro
da Biacuteblia eacute esclarecida de forma a natildeo deixar duacutevidas se Moiseacutes tivesse sepultado
em alguma parte das Escrituras ldquoos tesouros de toda a filosofia verdadeirardquo teria
sido naquela parte que trata ldquoda emanaccedilatildeo de todas as coisas de Deus do grau do
nuacutemero da ordem das partes do mundo com elevadiacutessima capacidade filosoacuteficardquo439
Ou seja no Gecircnesis
A obra trata portanto de sete ldquoExposiccedilotildeesrdquo ou ldquoLivrosrdquo440 sucessivos que se
dedicam agrave narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo cada qual focado em uma das dimensotildees ndash ou
relaccedilotildees entre as dimensotildees ndash vislumbradas pelo autor As trecircs primeiras exposiccedilotildees
estabelecem respectivamente uma analogia entre os trecircs graus do real ndash o
elementar o celeste e o angeacutelico ndash com cada um dos trecircs mundos sub-divinos
admitidos pela Cabala descrevendo as devidas formas constitutivas de cada reino A
quarta exposiccedilatildeo trata do reino humano a quinta aponta para a sucessatildeo dos quatro
435 O Heptaplus ndash De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione ndash foi finalizado em 1489 e dedicado a
Lorenzo dersquoMedici A editio princeps consta de 1490 Quando Gianfrancesco Pico editou a primeira Opera Omnia referente agraves obras do tio optou por colocar o Heptaplus em seu iniacutecio uma posiccedilatildeo mantida nas ediccedilotildees subsequentes Em 1555 a obra foi traduzida para o italiano e em 1578 para o francecircs (cf Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 pp 8-10) As traduccedilotildees para o portuguecircs presentes neste Capiacutetulo satildeo de nossa responsabilidade utilizando-se como guia a traduccedilatildeo de Eugenio Garin para o italiano (que em muitos trechos natildeo eacute estritamente literal mas adequada a um melhor entendimento do leitor)
436 Escreve Pico que diante de tantos inteacuterpretes quase natildeo ousaria ldquopensar em escrever algo de novo ou acrescer qualquer comentaacuterio original sobre o argumentordquo (Heptaplus p 177) Entre os inteacuterpretes do Gecircnesis citados em seu preacircmbulo encontram-se Ambroacutesio Agostinho Estrobeu Egiacutedio Fiacutelon Oriacutegenes e vaacuterios outros alguns menos conhecidos inclusive do ciacuterculo caldeu e hebraico (ibid pp179-181)
437 Heptaplus P2 p198 Para dar relecircvo a suas palavras Pico cita Agostinho que em sua exposiccedilatildeo sobre o Gecircnesis escrevera ldquoSe podes aprendes essas coisas se natildeo podes deixa-as a quem vale mais do que tirdquo (ldquoHaec tu si potes apprehendas si nondum potes relinquas valentioribusrdquo) A referecircncia de Agostinho encontra-se na nota agrave traduccedilatildeo de GARIN (Augustini De Gen ad litt V 3 (6) P L XXXIV 323)
438 Heptaplus P1 p170 439 Heptaplus P1 p177 A mesma alusatildeo jaacute havia sido feita por Pico em sua Apologia quando justificando suas
Conclusiones perante aos padres afirmara que ldquoos tesouros da lei espiritual estariam sepultados na obra de Moiseacutesrdquo
440 De fato Pico nomeia cada parte de sua obra de ldquoExpositiordquo ou ldquoLiberrdquo
138
mundos presentes na narrativa biacuteblica a sexta expotildee as relaccedilotildees entre esses mundos
e a seacutetima aponta para o destino que lhes cabe dentro do desenho universal O
objetivo nuclear do autor eacute demonstrar que os vaacuterios mundos natildeo satildeo membra
disiecta (membros dispersos) mas que estatildeo relacionados entre si e tecircm no homem
seu ponto de uniatildeo441 Cada uma das exposiccedilotildees por sua vez encontra-se dividida em
outras sete partes ndash correspondentes a cada um dos seis dias da Criaccedilatildeo narrados na
Biacuteblia acrescidas cada qual com o seacutetimo capiacutetulo ldquoem Cristordquo Explica o autor no
Segundo Proecircmio que o seacutetimo capiacutetulo de cada Livro representa ldquoo fim da Lei o
nosso saacutebado a nossa paz a nossa felicidaderdquo ndash assim como narrado no Gecircnesis em
que o saacutebado eacute o dia do repouso442
Segundo Eugenio Garin a redaccedilatildeo fluente e contiacutenua proposta por Pico no
Heptaplus faz parte de um meacutetodo em que a forma escrita remete agrave difusatildeo e agrave
interpenetraccedilatildeo entre os vaacuterios planos de existecircncia Os mundos com seus
variegados planos apresentam-se natildeo apenas correspondentes mas entrelaccedilados uns
aos outros quase como perspectivas muacuteltiplas (e intriacutensecas no homem) de uma
mesma realidade443 Ademais a obra apresenta um constante movimento dialeacutetico
que a faz transitar de forma harmoniosa entre a feacute e a razatildeo refletindo a perfeita
seguranccedila de Pico sobre a relaccedilatildeo entre as obras da Criaccedilatildeo e a racionalidade de suas
leis (ldquotoda obra da natureza eacute obra da inteligecircnciardquo)444 Retorna-se mais uma vez
para a relaccedilatildeo entre religiatildeo e filosofia ndash abordada no Capiacutetulo 3 ndash cuja centralidade
no pensamento piquiano seraacute retomada no Capiacutetulo final
Assim como em outras obras a dialeacutetica razatildeo-feacute eacute permeada por uma terceira
perspectiva relacionada agrave presenccedila do elemento esoteacuterico a ser verificada no decorrer
do Capiacutetulo Sob o prisma de uma hermenecircutica esoteacuterica o Heptaplus pode ser
dividido em trecircs leituras a) a primeira concentra-se no Primeiro Proecircmio escrito por
Pico agrave guisa de introduccedilatildeo em que satildeo apresentadas vaacuterias referecircncias utilizadas pelo
autor como instrumentos para a afirmaccedilatildeo da existecircncia de verdades que devem ser
preservadas da escrita b) a segunda concerne agrave alegoria do ldquoTabernaacuteculordquo de Moiseacutes
nuacutecleo do Segundo Proecircmio utilizada como fundamento metafoacuterico sobre o qual
ergue-se o projeto do Heptaplus porquanto conteacutem a representaccedilatildeo de trecircs dos
mundos tratados no conjunto da obra c) a terceira perspectiva eacute colhida da uacuteltima
parte da obra uma espeacutecie de ldquoapecircndicerdquo em que o autor apresenta de forma
detalhada a aplicaccedilatildeo de seu meacutetodo cabaliacutestico Agraves trecircs partes mais nobres de sua
obra ndash os dois proecircmios em que a intenccedilatildeo do autor eacute expressa e o apecircndice que
finaliza o todo ndash junta-se a concepccedilatildeo do projeto como um todo (em seus sete Livros)
que embora natildeo tratado aqui eacute erigido sobre uma leitura que enxerga sob a letra das
Escrituras significados ocultos
441 Heptaplus V 7 p305 442 Heptaplus P2 p203 443 GARIN LUmanesimo italiano 2008 p 125 444 Heptaplus I 1 p207 ldquoomne opus naturae opus esse intelligentiaerdquo
139
1 As referecircncias esoteacutericas do Primeiro Proecircmio
Cocircnscio da dificuldade que teria em despertar qualquer interesse filosoacutefico por
seu trabalho de hermenecircutica biacuteblica Pico preocupou-se logo agrave abertura do
Heptaplus em dar credibilidade ao autor do Gecircnesis ndash que ele como os demais agrave
eacutepoca acreditava ser Moiseacutes Assim uma parte do Primeiro Proecircmio escrito como
preacircmbulo agrave obra eacute utilizada para justificar a autoridade de Moiseacutes perante um
grupo de oponentes (natildeo identificados) que teriam estabelecido uma distinccedilatildeo entre a
forma literaacuteria do texto mosaico (o Pentateuco) e a dos tradicionais escritos
filosoacuteficos ndash esses sob tal enfoque tidos como superiores
Sua defesa se divide em dois momentos Primeiramente eacute feita uma
argumentaccedilatildeo fundamentada sobre algumas autoridades da Antiguidade que de
alguma forma teriam contribuiacutedo para propagar o nome de Moiseacutes como mestre ldquode
conhecimento humano e de suma sabedoria em todas as doutrinas e literaturasrdquo445
Os indiacutecios utilizados para sustentar a reputaccedilatildeo do mencionado Profeta satildeo
provenientes a) de Lucas e Fiacutelon respeitaacuteveis testemunhos de que Moiseacutes fora
instruiacutedo em todas as doutrinas dos egiacutepcios446 b) dos egiacutepcios que teriam instruiacutedo
alguns dentre os mais celebrados filoacutesofos gregos ndash como Pitaacutegoras Platatildeo
Empeacutedocles e Demoacutecrito (menccedilatildeo que permite ao Autor inserir Moiseacutes no centro da
Filosofia grega)447 c) do neopitagoacuterico Numecircnio que chamara Platatildeo de ldquoo Moiseacutes
Aacuteticordquo (registro que chama a atenccedilatildeo para a similaridade entre as doutrinas dos dois
saacutebios)448 d) do pitagoacuterico Hermipo que teria afirmado que Pitaacutegoras transferira
muitas coisas da lei mosaica para sua proacutepria filosofia449
Em segundo lugar para explicar a disparidade existente entre a aparente rudez
do texto mosaico considerado comum e trivial (ldquomedio et trivialerdquo) e a complexidade
proacutepria de uma grande obra de Filosofia Pico recorre a referecircncias colhidas em
tradiccedilotildees erigidas sobre a oralidade e a misteriologia introduzindo no centro do
Primeiro Proecircmio uma argumentaccedilatildeo filosoacutefica de dimensatildeo esoteacuterica Nesse
sentido para se estabelecer em uma linha contraacuteria agrave consolidada entre os
acadecircmicos ndash a de que Moiseacutes seria inculto e pouco similar a um filoacutesofo ou
teoacutelogo450 ndash Pico se abastece de alguns fatos e personagens histoacutericos de forma a
justificar aquele tipo rude de escrita uma tentativa de demonstrar que tal estilo seria
445 Heptaplus P1 p171 446 Heptaplus idem O testemunho de Lucas estaacute em Atos 722 ldquoMoiseacutes foi instruiacutedo em toda a sabedoria dos
egiacutepciosrdquo o de Fiacutelon em De Vita Mosis 121-24 447 Heptaplus idem Na obra De mysteriis Aegyptiorum Chaldeorum Atque Assyriorum de Jacircmblico haacute uma
lista similar ldquoPythagoras Plato Democritus Eudoxus et multi ad sacerdotes Aegyptios accesseruntrdquo (traduccedilatildeo de Ficino Opera omnia repr Turin Bottega drsquoErasmo 1962)
448 Heptaplus P1 pp171-173 A referecircncia a Numecircnio encontra-se na obra de Euseacutebio Preparatio evangelica IX 6 e XI 10
449 Heptaplus P1 p173 Hermipo escreveu um Vida de Pitaacutegoras que serviu de fonte para Dioacutegenes Laerte Essa ideia contudo natildeo consta nos fragmentos atualmente existentes de Hermipo (cf Crofton BLACK 2006 p 96 e 145)
450 ldquoAut philosophus aut theologusrdquo (Hept P1 p172)
140
necessaacuterio para resguardar a preciosidade de determinado conteuacutedo451 Seu
argumento esoteacuterico se compotildee por uma sequecircncia de vaacuterias passagens452
a) ldquoExiste entre os hebreus sob o nome do sapientiacutessimo Salomatildeo um livro intitulado Sapientia natildeo esse que temos hoje obra de Fiacutelon mas outro escrito naquela linguagem secreta que chamamos lsquohierosolymarsquo cujo autor e inteacuterprete da natureza das coisas como se acredita declara ter recebido toda a sua sabedoria da profundidade da lei mosaicardquo453
b) ldquo[] devemos lembrar um famoso costume dos antigos saacutebios o de se abster de escrever acerca das coisas divinas ou sobre elas escrever veladamente e por isso satildeo chamados Misteacuterios Natildeo eacute misteacuterio o que natildeo eacute ocultordquo454
c) ldquo[Os segredos] foram observados por Indianos Etiacuteopes [] e Egiacutepcios Esse eacute o significado das Esfinges defronte aos templosrdquo455
d) ldquoInstruiacutedo por eles [os Egiacutepcios] Pitaacutegoras tornou-se mestre do silecircncio natildeo entregou suas doutrinas agrave escrita com exceccedilatildeo de muito pouco que ao morrer confiou agrave sua filha Damo De fato ele natildeo foi o verdadeiro autor de Aurea carmina mas sim Filolaurdquo [] ldquoA lei do silecircncio foi uma tradiccedilatildeo mantida ininterrupta ateacute que Hiparco a teria violado conforme deplorou Lysisrdquo456
e) ldquoSobre essa [a preservaccedilatildeo do silecircncio] juraram os disciacutepulos de Amocircnio Oriacutegenes Plotino e Herecircnio como testemunha Porfiacuteriordquo457
451 Heptaplus P1 pp 172 176 452 Para a discussatildeo das fontes utilizadas por Pico veja-se Chaim WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos
Encounter with Jewish Mysticism 1987 pp 123-132 453 Heptaplus P1 p170 ldquoExtat apud Hebraeos Salomonis illius cognomento sapientissimi liber cui Sapientia
titulus non qui nunc in manibus est Philonis opus sed alter hierosolyma quam vocant secretiore lingua compositus in quo vir naturae rerum sicuti putatur interpres omnem se illiusmodi disciplinam fatetur de Mosaicae legis penetralibus accepisserdquo Natildeo haacute fontes precisas sobre esse livro que Pico esclarece natildeo se tratar da obra homocircnima de Fiacutelon Referecircncia a tal trabalho pode ser encontrada no comentaacuterio de Nahmacircnides ao Pentateuco do qual uma coacutepia hebraica consta no inventaacuterio da biblioteca de Pico (Commentary of Nahmanides on Genesis ed Newman pp 25-27) Sobre o fato de Pico ter lido o comentaacuterio de Nahmacircnides veja-se BLACK opcit capiacutetulo 7 Veja-se ainda WIRSZUBSKI opcit p 219 Nahmacircnides na obra em questatildeo diz que o Livro da Sabedoria atribuiacutedo a Salomatildeo estaacute escrito em aramaico enquanto Pico escreve que estaacute na linguagem hierosolyma
454 Heptaplus P1 p172 ldquo[] revocemus eo mentem fuisse veterum sapientum celebre institutum res divinas ut aut plane non scriberent aut scriberent dissimulanter Hinc appellata mysteria (nec mysteria quae non occulta)rdquo
455 Heptaplus P1 p172 ldquohoc ab Indis hoc ab Aethiopibus [] hoc ab Aegyptiis observatum quod et Sphinges illae pro templis insinuabantrdquo A fonte utilizada por Pico para a informaccedilatildeo sobre os Indianos eacute provavelmente Euseacutebio (Preparatio evangelica IX 6 e 7) Sobre as Esfinges Pico dissera na Oratio (p157) que ldquoesculpidas nas frentes dos templos egiacutepcios advertiam que os ensinamentos miacutesticos deviam ser guardados com os noacutes dos enigmas inviolaacuteveis para a multidatildeo profanardquo A fonte de Pico para as Esfinges poderia ser Plutarco De Iside et Osiride 9
456 Idem ldquoab eis edoctus Pythagoras silentii factus est magister nec ipse quicquam litteris mandavit praeter omnino paucula quae Damae filiae moriens commendavit Non enim quae circumferuntur aurea carmina Pythagorae sunt ut vulgo etiam doctioribus persuasum est sed Philolairdquo [] ldquoLegem deinceps eam Pythagorici religiosissime tutati sunt Eam Lysis ab Hypparco violatam quaeriturrdquo A carta de Lysis para Hiparco mencionada por Pico diz ldquoMuitas pessoas dizem que vocecirc filosofa em puacuteblico o que Pitaacutegoras negou como indigno ele confiando suas notas escritas para sua filha Damo notificou que ela natildeo deveria entregaacute-los a ningueacutem fora da comunidaderdquo (Epistolographi Graeci org HERCHER Paris Ambrosio Firmin Didot 1873 p 603 apud BLACK 2006 n p146) Os pitagoacutericos efetivamente tornaram a postura da transmissatildeo unicamente oral uma exigecircncia de ordem praacutetica
457 Heptaplus P1 p172 ldquoIn eam denique iuratos Ammonii discipulos Origenem Plotinum et Herennium Porphyrius est auctorrdquo A fonte de Pico eacute Porfiacuterio que descreve tal pacto em seu Vida de Plotino 3 ldquoUm pacto foi feito por Herecircnio Oriacutegenes e Plotino para natildeo revelarem as doutrinas de Amocircnio que ele havia ensinado em palestras (PORPHYRE La vie de Plotin II ed Brisson Paris Vrin 1982) De acordo com Porfiacuterio Oriacutegenes foi
141
f) ldquoO nosso Platatildeo escondeu as proacuteprias crenccedilas sob veacuteus enigmaacuteticos siacutembolos
de mitos imagens matemaacuteticas e argumentos de sentido obscuro a ponto de contar nas epiacutestolas que apoiando-se em seus escritos ningueacutem teria compreendido claramente seu pensamento sobre as coisas divinasrdquo458
g) ldquoJesus Cristo natildeo escreveu o Evangelho mas o pregou Pregou para as massas atraveacutes de paraacutebolas e separadamente para poucos disciacutepulos aos quais era concedido compreender os misteacuterios do reino dos ceacuteus abertamente e sem imagens mesmo assim natildeo desvelou tudo agravequeles poucos uma vez que havia coisas que eles poderiam natildeo suportarrdquo459
h) ldquoJoatildeo [o apoacutestolo] revelou bem mais do que os outros sobre os segredos da divindade [] mas falou brevemente e de forma obscurardquo460
i) ldquoPaulo [] apenas aos perfeitos falaria a linguagem da sabedoriardquo461
j) ldquoDioniacutesio o Areopagita escreveu que nas Igrejas houve o sagrado e respeitado costume de natildeo transmitir doutrinas secretas por escrito mas apenas agrave voz e para os devidamente iniciadosrdquo462
pupilo de Amocircnio no mesmo tempo que Plotino e Herecircnio se eacute verdade que os trecircs fizeram um pacto de natildeo revelar em escritos as doutrinas de seu professor tanto Herecircnio quanto Oriacutegenes quebraram suas promessas
458 Idem ldquoPlato noster ita involucris aenigmatum fabularum velamine mathematicis imaginibus et subobscuris recedentium sensuum indiciis sua dogmata occultavit ut et ipse dixerit in Epistulis neminem ex his quae scripserit suam sententiam de divinis aperte intellecturum et re minus credentibus comprobaveritrdquo A passagem refere-se agrave Carta II (312 d-e) tambeacutem mencionada por Pico na Oratio (p157) na qual Platatildeo escrevendo a Dioniacutesio sobre os modos das substacircncias supremas afirma ldquoEacute necessaacuterio exprimir-nos mediante enigmas de modo que se alguma vez por acaso a carta cair na matildeo de um outro natildeo seja percebido pelos outros aquilo que escrevordquo Os segredos conceituais que Platatildeo natildeo teria submetido agrave escrita referem-se a questotildees tratadas em suas aulas ldquoSobre o Bemrdquo nas quais eram discutidos os Princiacutepios Parte de tais concepccedilotildees foram transmitidas atraveacutes da filosofia neoplatocircnica chegando a Pico atraveacutes das traduccedilotildees de Ficino Para toda a problemaacutetica em torno agraves ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo de Platatildeo veja-se o fundamental Para uma nova Interpretaccedilatildeo de Platatildeo de Giovanni Reale trad Marcelo Perine (Satildeo Paulo Loyola 1997)
459 Heptaplus P1 p174 ldquoIesus Christus imago substantiae Dei Evangelium non scripsit sed praedicavit praedicavit autem turbis quidem in parabolis seorsum autem paucis discipulis quibus datum erat nosse mysteria regni caelorum palam citraque figuras neque omnia paucis illis quia non omnium capaces et multa erant quae portare non poterant donec adveniens Spiritus docuit omnem veritatemrdquo A ideia de que Jesus teria revelado muitos misteacuterios apenas aos seus disciacutepulos eacute atribuiacuteda por Pico a Oriacutegenes no Commento na Apologia e na Oratio (p157) ldquoOriacutegenes afirma que Jesus Cristo mestre de vida revelou aos disciacutepulos muitas coisas que eles natildeo quiseram escrever para natildeo se tornarem vulgarizados Tal fato confirma-o sobretudo Dioniacutesio Areopagita o qual diz que os misteacuterios mais secretos foram transmitidos pelos fundadores da nossa religiatildeo ek nou eis noun dia meson logon isto eacute de mente a mente sem escritos mediante o Verbordquo
460 Pico complementa que Joatildeo revelou o misteacuterio do logos apenas com a finalidade de combater os Ebionitas que afirmavam o Cristo homem mas negavam sua divindade ldquoIoannes qui prae omnibus maxime divinitatis secreta revelavit tribus pridem vulgatis Evangeliis et a Domini cruce multis exactis annis coactus loqui quae diu tacuerat ad abolendam haeriesim Ebionitarum quae Christum hominem non etiam Deum asseverabat de aeterna Filii generatione sed paucis sed obscure pronunciavit inde exorsus in principio erat Verbumrdquo (ibid pp 174-176)
461 Heptaplus P1 p176 ldquoPaulus Corinthiis negat solidum cibum propterea quod adhuc carnis legibus vivant non autem spiritus et sapientiam loquitur ante perfectosrdquo A referecircncia (Cor I 511) encontra-se na proacutepria ediccedilatildeo Em outra passagem referida na Oratio (p157) Pico escreve ldquomanter portanto tudo isto oculto do vulgo a fim de o comunicar apenas aos perfeitos entre os quais unicamente Paulo (Cor I 2-6) afirma pronunciar palavras de sapiecircncia natildeo foi obra de humana prudecircncia mas de divina sabedoriardquo
462 Heptaplus P1 p176 ldquoDionysius Areopagita sanctum et ratum institutum fuisse scribit ecclesiis ne dogmata secretiora per litteras sed voce tantum iis qui rite essent initiati communicarenturrdquo A passagem de Pseudo Dioniacutesio encontra-se em De Coelesti Hierarchia II (cf ref na ediccedilatildeo do Heptaplus)
142
A presenccedila de vaacuterios registros relacionados agrave tradiccedilatildeo oral utilizados como
principal ferramenta de sustentaccedilatildeo para afirmar a autoridade de Moiseacutes mostra-se
um recurso introdutoacuterio necessaacuterio para dar credibilidade ao conjunto da obra
estruturada sobre uma linguagem alegoacuterica que pede uma maior acuidade daquele
que a lecirc Poreacutem longe de ser um artifiacutecio retoacuterico suas referecircncias refletem uma
categoria proacutepria e fluiacuteda do pensamento piquiano O denominador comum entre os
exemplos histoacutericos eacute a ideia de demarcaccedilatildeo entre os natildeo-iniciados e os iniciados
concepccedilatildeo que por sua vez conduz o leitor agrave aceitaccedilatildeo de uma divisatildeo da
interpretaccedilatildeo biacuteblica entre literal e natildeo-literal A leitura literal corresponde agrave
ldquomultidatildeordquo enquanto a natildeo-literal na terminologia que toma emprestado de Paulo e
dos primeiros cristatildeos ldquoaos perfeitosrdquo Seguindo as pistas de leituras relacionadas agrave
miacutestica hebraica Pico pretende evidenciar que essa dicotomia eacute fundamental para a
recepccedilatildeo das revelaccedilotildees contidas na Biacuteblia abrindo caminho para sua interpretaccedilatildeo
do Gecircnesis Esse tipo de procedimento hermenecircutico em que o fator esoteacuterico eacute
empregado como ponto de analogia entre representantes da Feacute de um lado e da
Filosofia de outro jaacute havia sido adotado em outras obras anteriores ao Heptaplus
postura filosoacutefica que se mostrara desenvolvida em torno a lsquo86 Por exemplo em sua
Conclusio cabalistica 63 Pico dizia
Assim como Aristoacuteteles dissimulou sob a superfiacutecie da
especulaccedilatildeo filosoacutefica aquela mais divina filosofia que os
filoacutesofos antigos haviam escondido com mitos e faacutebulas
mantendo-a obscura com a concisatildeo de suas palavras assim o
Rabbi Moiseacutes egiacutepcio no livro que os latinos intitulam O Guia
dos Perplexos atraveacutes da casca superficial das palavras daacute a
impressatildeo de caminhar com os filoacutesofos enquanto pelos
intentos velados de seu profundo sentir abraccedila os misteacuterios da
Cabala463
Apresentam-se ainda profusas indicaccedilotildees da utilizaccedilatildeo de fontes esoteacutericas
no Commento na De Hominis Dignitate ndash como verificado no Capiacutetulo IV ndash e na
Apologia Efetivamente repetem-se nas trecircs obras algumas das mesmas referecircncias
usadas por Pico no Heptaplus464 Entretanto haacute nessa obra uma diferenccedila
fundamental diversamente das obras anteriores a tradiccedilatildeo cabalista natildeo eacute citada
junto ao elenco esoteacuterico embora a mesma mantenha-se tatildeo central quanto nos
relatos anaacutelogos daquelas obras A ausecircncia de qualquer menccedilatildeo ao termo ldquocabalardquo
na inteira obra pode ter sido responsaacutevel pelo surgimento de certas interpretaccedilotildees
conflituosas embora a maior parte dos inteacuterpretes considere o conteuacutedo do
Heptaplus como exclusivamente cabalista465 Eugenio Garin em sua obra Giovanni
463 Concl (II) XI 63 Rabbi Moiseacutes egiacutepcio refere-se ao filoacutesofo medieval Maimocircnides ao qual Pico atribui trecircs
opiniotildees nas Conclusiones ldquoSicut Aristoteles diuiniorem philosophiam quam philosophi antiqui sub fabulis et apologis uelarunt ipse sub philosophicae speculationis facie dissimulauit et uerborum breuitate obscurauit ita Rabi Moyses aegyptius in libro qui a latinis dicitur dux neutrorum dum per superficialem uerborum corticem uidetur cum Philosophis ambulare per latentes profundi sensus intelligentias mysteria complectitur Cabalaerdquo
464 Veja-se por exemplo algumas das mesmas referecircncias esoteacutericas na Apologia (p27) e na Oratio (p 157) 465 Alguns dentre os relevantes inteacuterpretes que consideram o Heptaplus fundamentalmente cabalista satildeo
Matter Dorez Liebert e Vulliaud Guido MASSETANI (La Filosofia Cabalistica di Giovanni Pico della
143
Pico della Mirandola constata (a) que Pico coroou seus conhecimentos cabaliacutesticos
atraveacutes do Heptaplus (b) que as origens dessa obra estatildeo em seus profundos estudos
sobre a gnose hebraica e (c) que existe afinidade formal entre o Heptaplus e as obras
da Cabala466
De qualquer forma ao retomar em lsquo89 as concepccedilotildees de ordem esoteacuterica
propostas em seus trabalhos anteriores Pico decide remover deliberadamente a
utilizaccedilatildeo daquela palavra que poderia desencadear suspeitas de heresia e que
segundo ele teria sido a causa da condenaccedilatildeo papal que sofrera Cabe lembrar que
enquanto escrevia o Heptaplus ainda estava em vigor a bula emitida por Inocecircncio
VIII condenando as Conclusiones467 Assim eacute bastante provaacutevel que ao voltar a
redigir seus paracircmetros de fontes Pico tenha conscientemente eliminado as
referecircncias agrave Cabala por razotildees de prudecircncia Tal remoccedilatildeo parece ter sido mais
aparente do que substancial porquanto o nuacutecleo do conteuacutedo doutrinal cabaliacutestico foi
preservado (em alguns casos com as mesmas palavras das obras anteriores) como
seraacute visto a seguir Seu modelo hieraacuterquico de mundos encontra vaacuterios pontos de
convergecircncia com os mundos da doutrina cabaliacutestica utilizados para sustentar o
projeto pretendido Mais adiante atraveacutes da verificaccedilatildeo do apecircndice da obra
inteiramente consagrado a demonstrar a aplicabilidade do meacutetodo cabaliacutestico tem-se
a comprovaccedilatildeo definitiva de que a ausecircncia de qualquer menccedilatildeo ao termo Cabala
tenha sido apenas um expediente utilizado para natildeo acirrar os acircnimos ao seu redor
2 Os Mundos na Cabala no Heptaplus
ldquoA Antiguidade imaginou trecircs mundosrdquo468 Com essas palavras Pico abre seu
Segundo Proecircmio em cuja narrativa confirma a posiccedilatildeo superna do mundo
suprassensiacutevel ldquoque os teoacutelogos chamam lsquoangeacutelicorsquo e os filoacutesofos lsquointeligiacutevelrsquo nunca
cantado por ningueacutem de forma adequadardquo segundo ldquoo que diz Platatildeo no Fedrordquo469
Abaixo desse haacute o mundo celeste e por uacuteltimo o nosso mundo sublunar ldquoEste ndash
continua Pico ndash eacute o mundo das trevas aquele da luz o celeste eacute composto de luz e
trevasrdquo O mundo sensiacutevel eacute representado pela aacutegua substacircncia mutaacutevel aquele pelo
fogo em razatildeo do esplendor da luz o ceacuteu natureza intermeacutedia eacute composto de aacutegua e
fogo e por tal razatildeo eacute chamado pelos hebreus de lsquoasciamaimrsquo termo composto de
Mirandola Empoli 1897) por sua vez natildeo se mostrou convencido com as correspondecircncias entre os mundos da Cabala e os propostos por Pico
466 As passagens encontram-se respectivamente (a) e (b) na paacutegina 39 (c) na paacutegina 158 (GARIN 2011) 467 A bula de Inocecircncio VIII foi emitida em 15 de dezembro de 1487 e permaneceu em vigor ateacute 18 de junho de
1493 A decisatildeo de omitir a palavra ldquocabalardquo do Heptaplus obteve um certo resultado positivo pois embora natildeo tenha ficado satisfeito com o surgimento da obra ndash considerando-a uma continuidade dos erros precedentes ndash o papa natildeo lhe conferiu o mesmo desprezo que agraves Conclusiones
468 Heptaplus P2 p185 ldquoTres mundos figurat antiquitasrdquo 469 Idem ldquoSupremum omnium ultramundanum quem theologi angelicum philosophi autem intellectualem
vocant quem a nemine satis pro dignitate decantatum Plato inquit in Phaedrordquo A passagem de Platatildeo encontra-se em Fedro 247c Na continuidade do trecho Pico complementa que as consideraccedilotildees acerca dos trecircs mundos natildeo possuem novidade alguma aos olhos dos estudiosos do mundo antigo
144
fogo (es) e aacutegua (maim)470 O caraacuteter intermeacutedio do mundo celeste eacute especialmente
acentuado por Pico que traz analogias extraiacutedas de suas fontes cabaliacutesticas Tal
caraacuteter eacute marcado pela mistura de propriedades presentes em cada um dos outros
dois mundos Assim tem-se no mundo terreno vida e morte no inteligiacutevel eterna
vida e contiacutenua atividade no celeste estabilidade de vida poreacutem com vicissitudes de
atividades e posiccedilotildees O mundo terrestre eacute constituiacutedo pela natureza caduca dos
corpos o mundo inteligiacutevel pela natureza divina da mente o ceacuteu pelo corpo embora
incorruptiacutevel e pela mente apesar de sujeita ao corpo O terceiro ldquoeacute movido pelo
segundo enquanto o segundo eacute governado pelo primeirordquo471 Continuando
os trecircs mundos satildeo apenas um natildeo apenas porque todos se
reportam de um uacutenico princiacutepio a um uacutenico fim ou em razatildeo
de sendo regulados por leis determinadas estarem coligados
por um certo liame harmonioso da natureza e por um
ordenamento em graus mas porque tudo aquilo que estaacute na
totalidade dos mundos estaacute tambeacutem em cada um e natildeo haacute algo
em qualquer um desses que natildeo esteja em cada um dos
outros472
No uacuteltimo trecho o autor fundamenta-se na concepccedilatildeo miacutestica judaica que
atribui agrave Unidade criadora a qualidade de se manifestar fora de si mesma em trecircs
planos de existecircncia que se encontram perfeitamente integrados ldquoo que se encontra
no mundo inferior estaacute incluso nos superiores mas em forma mais elevada por
analogia o que se encontra nos superiores estaacute no mundo inferior mas em condiccedilatildeo
degenerada e com uma natureza adulteradardquo473 Em linguagem que o aproxima ao
Platonismo o filoacutesofo complementa sua argumentaccedilatildeo por meio de exemplos
extraiacutedos da esfera dos fenocircmenos
470 Heptaplus P2 p187 Pico jaacute havia abordado a questatildeo do ceacuteu feito de fogo e aacutegua em sua Conclusio
cabalistica secundum opinionem propriam 67 ldquoHic tenebrarum mundus ille autem lucis caelum ex luce et tenebris temperatur Hic per aquas notatur fluxa instabilique substantia ille per ignem lucis candore et loci sublimitate caelum natura media idcirco ab Hebraeis asciamaim quasi ex es et maim idest ex igne et aqua quam diximus compositum nuncupaturrdquo
471 Heptaplus P2 pp185-187 ldquomovetur tertius a secundo secundus a primo regiturrdquo A analogia com a posiccedilatildeo mediana da alma humana entre corpo e espiacuterito natildeo eacute mencionada mas estaacute subentendida Em qualquer criatura (ou ente ou niacutevel de existecircncia) a trindade se manifesta No homem o aspecto superior eacute o Espiacuterito o aspecto mediano eacute a Alma ou princiacutepio animador o aspecto inferior eacute o corpo No corpo fiacutesico o aspecto superior eacute representado pelo ceacuterebro e sistema nervoso consciente o mediano pelo sistema nervoso simpaacutetico e os vasos sanguiacuteneos o inferior pelos demais oacutergatildeos e suas funccedilotildees vitais Veja-se em LORENZ outros detalhes das relaccedilotildees fiacutesicashumanas com os trecircs mundos (Cabala - A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente 1997 pp 57-65)
472 Heptaplus P2 p189 ldquoHaec satis de tribus mundis in quibus illud in primis magnopere observandum unde et mostra fere tota pendet intentio esse hos tres mundos mundum unum non solum propterea quod ab uno principio et ad eumdem finem omnes referantur aut quoniam debitis numeris temperati et armonica quadam naturae cognatione atque ordinaria graduum serie colligentur sed quoniam quicquid in omnibus simul est mundis id et in singulis continetur neque est aliquis unus ex eis in quo non omnia sint quae sunt in singulis Quam Anaxagorae credo fuisse opinionem si recte eum sensisse putamus explicatam deinde a Pythagoricis et Platonicisrdquo Pico conclui essa passagem sugerindo que esse seria ldquoo pensamento de Anaxaacutegoras exposto pelos Pitagoacutericos e Platocircnicosrdquo Tal menccedilatildeo encontra-se em Simpliacutecio Phys 27 2 (cf ref na proacutepria ediccedilatildeo) A ideia de que ldquotudo estaacute em tudordquo encontra paralelos ademais em Proclo Elementos de Teologia proposiccedilotildees 170173 e 176
473 Heptaplus P2 p189 ldquoVerum quae in mundo sunt inferiori in superioribus sunt sed meliore nota quae itidem sunt in superioribus in postremis etiam visuntur sed degeneri conditione et adulterata ut sic dixerim naturardquo
145
O calor eacute em nosso mundo qualidade elementar nos ceacuteus
virtude caloriacutefica nas mentes angeacutelicas Ideia de calor Ou com
mais precisatildeo no mundo inferior o fogo eacute elemento o sol eacute o
fogo do ceacuteu na regiatildeo ultramundana o fogo seraacutefico eacute Intelecto
[] O fogo elementar queima o fogo celeste vivifica o fogo
supraceleste ama474
A escolha das palavras acima natildeo eacute feita ao acaso A anaacutelise do Gecircnesis feita
por Pico releva que a escolha das palavras ali empregadas para descrever a Criaccedilatildeo
natildeo eacute tampouco aleatoacuteria mas fruto da intenccedilatildeo em revelar verdades que natildeo
poderiam ser explicitadas de outra forma A eleiccedilatildeo do redator biacuteblico por palavras
simples ligadas aos elementos permitiria sua adequaccedilatildeo a outras interpretaccedilotildees em
virtude de seus significados metafoacutericos Assim conforme explica no Segundo
Proecircmio ldquoteria tratado Moiseacutes de cada um dos mundos de forma que nas mesmas
palavras e no mesmo contexto pudesse tratar de todosrdquo475 Eis a razatildeo da utilizaccedilatildeo de
certas palavras (no Gecircnesis) como ceacuteu terra aacutegua e luz A utilizaccedilatildeo de uma
linguagem filosoacutefica para tratar da Criaccedilatildeo com termos anaacutelogos a ldquocausa agenterdquo
ldquomateacuteriardquo ldquoqualidaderdquo e ldquoformardquo apenas serviriam para descrever o mundo
corruptiacutevel mas natildeo os demais Infere Pico que esse eacute um ldquosinal da admiraacutevel
habilidaderdquo de Moiseacutes na medida em que ele se serviu de determinados termos e os
dispocircs em uma ordem conveniente para representar todos os mundos ldquoassim no
Gecircnesis palavras contexto e ordem conveacutem plenamente a ilustrar os segredos de
todos os mundos e de toda a naturezardquo476
No percurso de suas expositiones o tema dos elementos eacute explorado por Pico
que descreve sua manifestaccedilatildeo em cada um dos mundos em oitavas diferenciadas Eacute
provaacutevel que uma de suas fontes principais para a reflexatildeo tenha sido Proclo e o Liber
de Causis que levara seu mestre Alemanno a escrever uma obra com o mesmo
conteuacutedo477 Abraatildeo Yaguel tempos depois retomaria o assunto reafirmando de
forma mais clara que os quatro elementos natildeo satildeo encontrados apenas no mundo
inferior mas existem igualmente nos corpos celestes e nas inteligecircncias separadas e
ainda ldquono que estaacute acima deles no arqueacutetipo do mundo a Causa de todas as Causas e
o Princiacutepio de todos os Princiacutepiosrdquo Contudo elucida o rabino no mundo sublunar
satildeo encontrados ldquocomo dejetos e mateacuteriardquo no ceacuteu satildeo potecircncias ou virtudes nos
mundos superiores satildeo formas arquetiacutepicas ldquomais perfeitas que no ceacuteurdquo478
474 Heptaplus P2 pp188-190 ldquo[] est apud nos calor qualitas elementaris est in caelestibus virtus
excalfactoria est in angelicis mentibus idea caloris Dicam aliquid expressius est apud nos ignis quod est elementum Sol ignis in caelo est est in regione ultramundana ignis saraphicus intellectus Sed vide quid differant Elementaris urit caelestis vivificat supercaelestis amatrdquo
475 Heptaplus P2 p195 476 Heptaplus Livro II ldquoSobre o Mundo Celesterdquo 477 A traduccedilatildeo aacuterabe de alguns trechos do Elementos de Teologia de Proclo conhecida como Liber de Causis
foi atribuiacuteda por muito tempo de forma errocircnea a Aristoacuteteles Sobre a relaccedilatildeo da obra de Alemanno Minkhat Yehudaacute e de outros textos anteriores que tratam do tema com o Liber de Causis veja-se IDEL 2008b p 509
478 Abraatildeo YAGUEL Beit Yaar haLevanon in Manuscrito de Oxford 1304 f 6r-6v (apud IDEL 2008b pp 512-513) Infere Idel que o texto de Yaguel em sua abordagem dos distintos estados dos quatro elementos primaacuterios apresenta noccedilotildees neoplatocircnicas que condizem com sua visatildeo sobre a essecircncia dos mundos noccedilotildees fortemente utilizadas por Alemanno
146
Para um melhor entendimento da mensagem do Heptaplus faz-se necessaacuterio
adentrar nas conceituaccedilotildees dos mundos manifestos segundo a miacutestica hebraica Em
uma passagem do Gecircnesis (Secircfer Bereshit) tem-se a revelaccedilatildeo da existecircncia de trecircs
mundos sob o prisma cabaliacutestico ldquoEntatildeo formou Deus o homem do poacute da terra e
soprou-lhe (ruach) nas narinas o focirclego de vida (neshamaacute) e o homem tornou-se
uma alma vivente (nefesh)rdquo479 O enunciado encerra trecircs princiacutepios que podem ser
relacionados tanto a partes concernentes agrave triacuteplice integridade do homem quanto agrave
existecircncia de trecircs mundos em sentido cosmoloacutegico Os trecircs princiacutepios satildeo Neshamaacute
o princiacutepio superior atinente ao Espiacuterito e agrave esfera das Inteligecircncias mais elevadas
Ruach o princiacutepio mediano relativo agrave Alma e agrave hierarquia dos seres astrais e
Nefesh o princiacutepio inferior relativo ao corpo vital e ao plano fiacutesico480 Entretanto no
seacuteculo XII o Zohar mencionaria quatro mundos acrescentando aos trecircs do Gecircnesis o
elemento relacionado diretamente agrave divindade Assim estabelecem-se sob registro
cabaliacutestico quatro concepccedilotildees a saber (a) o mundo da Emanaccedilatildeo do princiacutepio divino
(Olam HaAtzilut) (b) o mundo da Criaccedilatildeo (Olam HaBriaacute) no qual o homem
contemplativo colhe revelaccedilotildees atraveacutes do princiacutepio neshamaacute (c) o mundo da
Formaccedilatildeo (Olam HaYetsiraacute) relacionado a ruach e (d) o mundo da Produccedilatildeo (Olam
HaAssiaacute) correspondente a nefesh481
A quaacutedrupla concepccedilatildeo de existecircncia eacute extraiacuteda outrossim a partir de outra
passagem em Isaiacuteas ldquoa todos os que satildeo chamados pelo meu nome e os que criei
para a minha gloacuteria eu os formei e tambeacutem eu os fizrdquo482 Os cabalistas colhem nesse
versiacuteculo indicaccedilotildees das quatro dimensotildees ou reinos ndash partindo do divino emanente
e prosseguindo com os outros trecircs em ordem hieraacuterquica decrescente com suas
denominaccedilotildees inspiradas naquela sentenccedila os respectivos mundos da Criaccedilatildeo da
Formaccedilatildeo e da Realizaccedilatildeo conforme paraacutegrafo anterior Esses nomes indicam a
transformaccedilatildeo do tipo de influxo com as quais as Sefirot governam o mundo A
tradiccedilatildeo miacutestica associa a esses mundos as trecircs reparticcedilotildees da antiga cosmogonia
rabiacutenica Assim na Criaccedilatildeo Briaacute coloca-se o Trono da Gloacuteria ou a Ideia original da
Criaccedilatildeo onde se encontram as formas arquetiacutepicas e a dimensatildeo angeacutelica mais
elevada483 Na Formaccedilatildeo Yetsiraacute tambeacutem habitada por hostes angelicais a Ideia
adquire forma a mateacuteria astral se compotildee e a separaccedilatildeo se distingue em elementos
479 Gecircnesis 27 Encontram-se traduccedilotildees similares para dois dos termos hebraicos presentes na passagem
mencionada A palavra ruach significa espiacuterito e sopro de Deus neshamaacute eacute traduzido por ldquofocirclego de vidardquo e tambeacutem ldquosopro de Deusrdquo O paralelismo entre o ldquoespiacuterito de Deusrdquo e ldquoo sopro do Todo-poderosordquo eacute frequente na Biacuteblia
480 LORENZ Cabala - A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente 1997 p60 481 LORENZ opcit p60 SENDER opcit pp 71-72 482 Isaiacuteas 437 483 LORENZ (opcit p61 ss) coloca na dimensatildeo da Criaccedilatildeo o movimento pelo qual o Espiacuterito saindo de seu
isolamento se manifesta como Espiacuterito em geral preceito da origem da multiplicidade A utilizaccedilatildeo do termo ldquoIdeiardquo que remete ao Platonismo eacute de Lorenz provavelmente fundamentado em escritos do rabino Abraatildeo Yaguel que no seacuteculo XVI se dirigia agraves emanaccedilotildees com o termo ldquoIdeiirdquo ldquoa forccedila que se encontra nos entes inferiores pode [igualmente] ser encontrada em maior pureza e limpidez nas Sefirot sagradas e puras que satildeo na verdade as Ideii (sic) para todas as coisasrdquo [] ldquoas Ideii satildeo uma forma simples superior aos corpos agraves almas e agraves inteligecircncias [] na terminologia dos platocircnicos aquela primeira configuraccedilatildeo eacute denominada Ideiirdquo Cf Manuscrito de Oxford 1304 f10v apud IDEL 2008-b pp 513-514
147
relativamente individuais484 Finalmente na Realizaccedilatildeo Assiaacute estabelecem-se os
mundos fiacutesico e sensiacutevel atraveacutes dos reinos mineral vegetal e animal485
Para ilustrar a concepccedilatildeo dos Trecircs Mundos no Heptaplus ndash e em
concomitacircncia confirmar a existecircncia de uma dimensatildeo esoteacuterica dentro da Biacuteblia ndash
Pico expotildee no Segundo Proecircmio uma amostra de como sob as palavras mosaicas
escritas em forma simples encontram-se revelaccedilotildees acerca da triacuteplice realidade
Referindo-se a alguns versiacuteculos biacuteblicos que tratam do ldquotabernaacuteculordquo construiacutedo por
Moiseacutes eacute efetuada uma analogia com os mundos subdivinos ali representados ldquoem
modo muito evidenterdquo como diria o autor486 Segundo a narrativa biacuteblica e como
visto no Capiacutetulo IV Moiseacutes dividira o tabernaacuteculo em trecircs partes cada uma delas
concernentes a um dos mundos A primeira parte sem teto ou proteccedilatildeo alguma
encontrava-se exposta aos vaacuterios fenocircmenos da natureza sendo frequentada por
homens tanto puros quanto impuros aleacutem de animais de toda espeacutecie assim como
no mundo sublunar as contiacutenuas vicissitudes de vida e morte se intercalavam As
outras duas partes do tabernaacuteculo estavam protegidas e imunes agraves questotildees
exteriores assim como ocorre com o mundo celeste e supraceleste As duas partes
eram chamadas ldquosantasrdquo poreacutem a mais protegida era chamada ldquoSanto dos Santosrdquo
Pico esclarece que embora os dois mundos celeste e angeacutelico sejam santos (ldquopois
apoacutes a queda de Luacutecifer natildeo restou pecado acima da luardquo) o mundo angeacutelico eacute
considerado de maior santidade e divindade487 Enquanto na Oratio o tema fora
tratado sob uma perspectiva relacionada ao homem dentro de um cenaacuterio que
contempla processos iniciaacuteticos individuais o enfoque dado no Heptaplus encontra-
se inteiramente voltado agrave confirmaccedilatildeo religiosa dos trecircs mundos em um acircmbito que
chamariacuteamos cosmoloacutegico488
484 Eacute nesse plano que ocorre a separaccedilatildeo dos aspectos masculino e feminino que no mundo antecedente
constituiacuteam uma unidade Isso explica o duplo relato biacuteblico da criaccedilatildeo do homem o primeiro em Gecircnesis 1-27 e o segundo em Gecircnesis 2-7 No primeiro relato ldquoe criou Deus o homem agrave sua imagem criou-o agrave imagem de Deus e criou-os masculino e femininordquo o verbo utilizado eacute ldquocriarrdquo referindo-se agrave Briaacute o mundo da Criaccedilatildeo No segundo relato onde se lecirc ldquoo Senhor Deus formou pois o homem do barro da terra e inspirou no seu rosto um sopro de vidardquo o verbo utilizado eacute ldquoformarrdquo o que o situa em Yetsiraacute o mundo da Formaccedilatildeo no qual o ser adquire forma e deixa de ser androacutegino (cf SENDER opcit pp 36-37)
485 As denominaccedilotildees e atribuiccedilotildees de cada Mundo sofrem pequenas variaccedilotildees semacircnticas dependendo do comentarista Uma das principais divergecircncias que podem ser encontradas refere-se agrave colocaccedilatildeo do sistema planetaacuterio que para alguns faz parte do Mundo da Formaccedilatildeo e para outros do mundo da Realizaccedilatildeo em razatildeo de sua materialidade ndash o que natildeo deixa de fazer sentido Veja-se IDEL 2008b pp 512-513 SCHOLEM 1978 p90 SENDER opcit pp 34-39 BUSI opcit p 19
486 Heptaplus P2 ldquoHoc non praetermiserim figuratos hos mundos trecircs a Mose evidentissime in admirabilis illius tabernaculi sui constructionerdquo Algumas passagens da Biacuteblia tratam do tema da construccedilatildeo do Tabernaacuteculo Em Ecircxodo 25 8-9 o Senhor daacute ordens a Moiseacutes para construir o Templo ou Tabernaacuteculo O Tabernaacuteculo (em hebraico mishkan ldquomoradiardquo ldquotenda da congregaccedilatildeordquo ou ldquosantuaacuterio conforme Ecircxodo 25 8) era a tenda usada pelos israelitas como lugar de adoraccedilatildeo enquanto viajavam pelo deserto Em Ecircxodo (29 42-46) o Senhor disse a Moiseacutes que seria no Tabernaacuteculo que Ele desceria para falar com ele e com Seu povo A tenda onde Moiseacutes se encontrava inicialmente com o Senhor foi armada fora do arraial (Ecircxodo 33 7) pois o povo tinha pecado e o Senhor lhe disse que natildeo mais seguiria no meio deles O Tabernaacuteculo era tambeacutem chamado de ldquotenda do Testemunhordquo porque nele estava guardado o Testemunho ou as taacutebuas da Lei (Ecircxodo 38 21 Nuacutemeros 1 50) Mais tarde o Tabernaacuteculo passou a ser conhecido como ldquoa Casa do Senhorrdquo (Deuteronocircmio 23 18) No lugar mais interior ficava o recinto conhecido como o ldquoSanto dos Santosrdquo pois aiacute era o local em que era colocada a arca e onde apenas o sumo sacerdote poderia entrar
487 Heptaplus P2 ldquoAmbae item sanctitatis nomine honestatae ita tamen ut quae erat secretior sancti sanctorum reliqua sancti tantum titulo decoraretur sicuti quamvis et caelestis et angelicus mundus uterque sanctus quoniam supra lunam post Luciferi casum nec macula nec peccatum aut est aut esse potest angelicus tamen caelesti longe sanctior et divinior habeturrdquo
488 A abordagem do tabernaacuteculo feita por Pico estaacute muito proacutexima daquela de alguns cabalistas que o italiano conheceu direta ou indiretamente como observou Chaim WIRSZUBSKI (Pic de la Mirandole et la Cabale 2007
148
Outra interpretaccedilatildeo do tema havia sido realizada pelo mestre de Pico Yohanan
Alemanno Ele encontrara paralelos entre a mesma narrativa biacuteblica e a questatildeo das
emanaccedilotildees sefiroacuteticas Em seu Collectanaea o tabernaacuteculo eacute descrito como
necessaacuterio para proteger os vasos que receberiam as emanaccedilotildees pois ldquoo povo havia
sido educado para crer na possibilidade de causar o descenso das forccedilas espirituais e
das emanaccedilotildees provenientes das alturas por meio de preparativos feitos pelo homem
para tal propoacutesito exatamente como quando Moiseacutes preparou o bezerro de ourordquo489
Embora Pico natildeo fale diretamente desse tipo de ritual a influecircncia de Alemanno
sobre ele eacute sabida O tabernaacuteculo eacute descrito portanto como um talismatilde complexo
que guarda e causa o descenso das forccedilas espirituais sendo uma das formas maacutegicas
descritas no Capiacutetulo anterior Ao descrever tal evento o mestre rabino se remete a
Moiseacutes como a um operador da Cabala Teuacutergica relacionando as emanaccedilotildees
sefiroacuteticas a ldquocanaisrdquo de transmissatildeo ldquoOs cabalistas acreditam que Moiseacutes tinha
conhecimento do mundo espiritual e das Sefirot [] e sabia como direcionar seus
pensamentos e aperfeiccediloar o efluxo divino que os cabalistas chamam de canaisrdquo490
Alemanno afirma ainda que o Profeta teria dito ldquolsquoascenderei ao Senhor para receber
instruccedilatildeo detalhada acerca dos preceitos pertinentes a duas instituiccedilotildeesrsquo ndash uma delas
salvaguarda o poder receptivo e diz respeito ao Tabernaacuteculo e aos seus vasosrdquo491 As
especulaccedilotildees de Alemanno conjugam o nuacutecleo conceitual cabaliacutestico ndash as emanaccedilotildees
sefiroacuteticas ndash com a geografia dos trecircs mundos depreendendo da figura de Moiseacutes o
arqueacutetipo do mago possuidor do domiacutenio das Sefirot ldquoa accedilatildeo de Moiseacutes fazia com
que os canais dirigissem a emanaccedilatildeo sobre o mundo inferior de acordo com a sua
vontaderdquo492 A ampla defesa de Moiseacutes realizada no Heptaplus por sua vez eacute
emblemaacutetica de uma percepccedilatildeo que somente se torna possiacutevel agrave luz da Cabala
Extaacutetica Pico leitor do cabalista Natan Saadia certamente via naquele personagem o
protoacutetipo do ser que realizou a uacuteltima etapa do processo extaacutetico algueacutem que ldquofoi
transformado em um ser universal depois de ser um ponto central particularrdquo
estabelecendo-se assim como o objetivo do homem inferior ldquoque ascende pela
virtude do poder do Nomerdquo493
As duas interpretaccedilotildees da passagem biacuteblica do tabernaacuteculo podem ser
inseridas em algum ou alguns dos niacuteveis hermenecircuticos atribuiacutedos pelos cabalistas agraves
Escrituras A necessidade de se manter oculta a Revelaccedilatildeo deu vazatildeo agrave ocorrecircncia de
graus de significaccedilatildeo dentro do texto biacuteblico que podem ser entendidos como veacuteus a
serem retirados de acordo com o desenvolvimento da percepccedilatildeo do leitor Haacute um
sentido literal chamado Peschat que se refere agrave compreensatildeo superficial e externa
do relato biacuteblico em que a atenccedilatildeo recai sobre o enredo e os personagens No niacutevel
p 401) Ainda sobre o tema da representaccedilatildeo do tabernaacuteculo em Pico veja-se Newton BIGNOTTO Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola 2010 pp146-47
489 ALEMANNO Manuscrito de Oxford 2234 f 22v Sobre a concepccedilatildeo do bezerro de ouro utilizado para causar o descenso das forccedilas veja-se IDEL (2008-b np 481)
490 ALEMANNO ibid f 8v IDEL atenta para a utilizaccedilatildeo do termo ldquocanaisrdquo Moiseacutes natildeo restaura a divindade mas sim os canais que transmitem as emanaccedilotildees divinas (2008-b np 480)
491 ALEMANNO ibid f 201b 492 ALEMANNO ibid f 8v apud BUSI Qabbalah 2011 p29 493 A passagem estaacute no livro Schaarei Tzedek do disciacutepulo direto do cabalista italiano Abulafia Natan Saadia e
fundamenta-se em Ezequiel I 26 (cf IDEL 2008-a p28)
149
chamado Remez embora preservada a interpretaccedilatildeo literal eacute maior a capacidade
abstrativa o enredo deixa de ser o objetivo principal da leitura e extrai-se um sentido
alegoacuterico A interpretaccedilatildeo talmuacutedica e midraacuteshica se refere a Derashaacute niacutevel que
indica um procedimento eacutetico ou religioso do qual deve ser extraiacutedo um
ldquoensinamentordquo Atraveacutes do relato biacuteblico o homem deduz o que eacute desejaacutevel ou
indesejaacutevel para o Divino o que eacute correto ou incorreto nas relaccedilotildees humanas
Finalmente no niacutevel chamado Sod que significa ldquosegredordquo eacute revelado o sentido
miacutestico que traz a revelaccedilatildeo dos mundos emanados e de seus habitantes O acesso do
miacutestico ao uacuteltimo niacutevel a partir da compreensatildeo de cada uma de suas dimensotildees
anteriores nunca eacute faacutecil ou raacutepido por tratar-se de um caminho cuja chave eacute
cifrada494
Retomando a concepccedilatildeo cabaliacutestica dos Quatro Mundos outra classificaccedilatildeo
bastante usual estabelece o mundo da Emanaccedilatildeo Atzilut em uma unidade distinta
dos demais enquanto os outros trecircs formam ndash como mundos em separaccedilatildeo ndash um
sistema triacuteplice tal conjunto conceitual alude ao aspecto duplo da Divindade ao
mesmo tempo imanente e transcendente495 A trindade derivando-se da unidade e
tendendo a reintegrar-se nela forma um ciclo quaternaacuterio que em tudo se manifesta
Ou em outras palavras os trecircs mundos manifestos somados agrave dimensatildeo primordial
do Absoluto integram os quatro mundos previstos no Zohar A divisatildeo apresentada
no Heptaplus encontra-se em analogia com a concepccedilatildeo inaugural de trecircs mundos
previstos na literatura cabaliacutestica contudo se for levada em conta a divisatildeo
quaternaacuteria do Zohar perceber-se-aacute que o meacutetodo piquiano natildeo espelha tal forma de
particcedilatildeo ndash natildeo por divergecircncia doutrinaacuteria mas em razatildeo de uma omissatildeo e de um
acreacutescimo Conforme as palavras do autor seu meacutetodo parte de ldquouma quaacutedrupla
exposiccedilatildeo de todo o texto mosaicordquo de maneira que em primeiro lugar eacute
interpretado ldquoo que escrito sobre o mundo angeacutelico e invisiacutevel em segundo lugar
como no primeiro cas0 sobre o mundo celeste depois sobre o sublunar e
corruptiacutevel em quarto sobre a natureza do homemrdquo496 Observe-se que o quarto
mundo de Pico sua principal originalidade em relaccedilatildeo a outras interpretaccedilotildees do
Gecircnesis refere-se ao homem ndash esse eacute seu acreacutescimo Embora a literatura cabaliacutestica
apresente vaacuterias analogias dos trecircs mundos com o aspecto triacuteplice do homem essas
satildeo um tanto distintas do tipo de interpretaccedilatildeo feita por Pico497 Por sua vez a divisatildeo
494 SCHOLEM A Cabala e seu Simbolismo 1978 p72 BUSI La Qabbalah 2011 pp10-11 SENDER pp15-16
A ideia da quaacutedrupla interpretaccedilatildeo do texto biacuteblico remete pelo menos ao seacuteculo XIII quando Moshe de Leacuteon o empregou em alguns matizes de seu significado De Leacuteon em um de seus textos mais tardios compara a Toraacute a uma noz composta de casca e cerne cujo acesso aos niacuteveis interiores se daacute atraveacutes do conhecimento das diferentes formas interpretativas Vejam-se maiores detalhes em SCHOLEM que discute amplamente a questatildeo do chamado Pardes com os vaacuterios significados histoacutericos do termo na seccedilatildeo II de seu livro Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition (New York 1960)
495 SENDER opcit p37 Essa eacute uma visatildeo que se aproxima das concepccedilotildees neoplatocircnicas 496 Heptaplus P2 p194 ldquoUnde quadruplex statim totius mosaicae lectionis expositio nascitur ut primo loco
quicquid ibi est scriptum de angelico mundo et invisibili nullam omnino de aliis mentionem habentes enarremus Secundo loco itidem omnia de caelesti mundo tum de sublunari hoc et corruptibili quarto de natura hominisrdquo
497 O Judaiacutesmo admite trecircs princiacutepios para a alma humana Nefesh forccedila de vida inata presente em homens e animais permite a atividade coordenada do corpo fisico ao qual estaacute intimamente ligada o corpo sem nefesh significa a morte corresponde no homem ao mundo manifesto de Assiaacute Ruach niacutevel de alma acima de nefesh relaciona-se tambeacutem agraves emoccedilotildees tendo certa independecircncia do corpo fiacutesico ruach pode abandonaacute-lo nos estados oniacutericos ou contemplativos trazendo impressotildees de Yetsiraacute ao qual corresponde Neshamaacute niacutevel mais
150
dos quatro mundos na Cabala inicia-se com o Atzilut mundo da Emanaccedilatildeo omitido
por Pico no Heptaplus A omissatildeo natildeo se refere a qualquer tipo de contraste
doutrinaacuterio mas apenas agrave utilizaccedilatildeo de um estilo hermenecircutico que se desenrola a
partir dos mundos manifestos de forma a concordaacute-lo com o modelo do Gecircnesis
Vejamos de forma mais aproximada
O muacuteltiplo dispotildee-se em trecircs reinos elementar celeste e
angeacutelico que se desvelam como realidade mundana
inteligecircncias que governam e animam esferas e mundos498
Na passagem acima extraiacuteda dos Comentaacuterios aos Salmos verifica-se que
Pico aborda os trecircs mundos manifestos inserindo-os na dimensatildeo do muacuteltiplo Tal
informaccedilatildeo por simetria loacutegica remete agrave existecircncia de uma dimensatildeo de unidade A
Unidade ou Absoluto existente acima do reino angeacutelico perpassa toda a obra
piquiana e para Ela toda sua filosofia converge Admitindo-se essa afirmaccedilatildeo natildeo
haveria portanto a necessidade de Pico atribuir uma particular ldquoexpositiordquo agravequela
dimensatildeo de existecircncia Considerando-se que o reino angeacutelico eacute parte do muacuteltiplo lecirc-
se no Livro III que trata do ldquoMundo Angeacutelico e Invisiacutevelrdquo
Tudo aquilo que no anjo eacute imperfeito seraacute atribuiacutedo agrave sua
natureza muacuteltipla A imperfeiccedilatildeo [que existe no anjo] existe na
qualidade de multiplicidade enquanto a capacidade de elevaccedilatildeo
cumprida eacute devida agrave unidade que se lhe acosta do Alto Deus eacute a
Unidade de onde o anjo deriva seu ser sua vida e toda
perfeiccedilatildeo499
Assim a presenccedila da Unidade emanatoacuteria acima dos trecircs mundos embora natildeo
expressa diretamente eacute extraiacuteda das passagens que apontam para os aspectos de
gradaccedilatildeo no interior da dimensatildeo da multiplicidade A verificaccedilatildeo do terceiro Livro
do Heptaplus certifica que Pico natildeo suprimiu o mundo emanatoacuterio de Atzilut em sua
interpretaccedilatildeo dos momentos sucessivos da expansatildeo divina A sequecircncia entrevecirc a
analogia existente entre os nuacutemeros depreendidos de leituras cabaliacutesticas e
pitagoacutericas500 e o reino angeacutelico conforme estabelecido por Pseudo Dioniso ndash ambos
os grupos colocados como elementos intermediaacuterios entre o Uno e os mundos
inferiores
sutil e superior da alma eacute o princiacutepio que a liga ao plano da divindade e responsaacutevel pelo grau mais elevado de discernimento no homem tanto intelectual quanto espiritual circulando em Briaacute o mundo da Criaccedilatildeo (cf SENDER 1992 p69 ss) Para Pico no homem ocorre o misto dos elementos ldquoonde reside o espiacuterito celeste a alma vegetal os sentidos dos brutos a razatildeo a mente angeacutelica e a imagem de Deusrdquo (Heptaplus P2 p193) A exposiccedilatildeo sobre a natureza ou ldquoreinordquo do homem eacute feita no Livro IV do Heptaplus
498 PICO Expositiones in Psalmos (trad Antonino Raspanti-Giacomo Raspanti Firenze 1997) Sobre os trecircs mundos elementaris coelestis et intellectuali veja-se Livro XLVII pp14-16
499 Heptaplus Livro III ldquoDe Mundo Angelico et Invisibilirdquo 1 p250 ldquoQuare quicquid in angelo imperfectum est angelicae multitudini quam inde habet unde est numerus idest creatura [] Utrumque igitur horum evenit angelo qua multitudo est Reliquum ut absolutio illi et consummatio ab accedente desuper fiat unitate Deus autem unitas unde ad angelum et esse et vita et omnis perfectio derivaturrdquo
500 Cf Heptaplus III 1 p249 ldquoRefiramos isso agraves coisas divinas segundo o costume pitagoacutericordquo
151
Tudo aquilo que depois da unidade eacute nuacutemero eacute perfeito e
completo por via da unidade A unidade de tudo simples por si
perfeita natildeo sai de si na sua indivisibilidade simples e solitaacuteria
adere a si mesma pois que basta a si [] O nuacutemero sendo por
sua proacutepria natureza muacuteltiplo eacute simples porquanto eacute capaz em
graccedila da unidade E embora cada nuacutemero que se afaste da
unidade caia em uma multiplicidade sempre mais extensa e em
uma sempre maior variedade e composiccedilatildeo de partes natildeo haacute
nada todavia tatildeo proacuteximo agrave unidade quanto tal multiplicidade
provida de unidade apenas acidentalmente natildeo por sua
natureza mas por composiccedilatildeo501
O desenvolvimento do tema conteacutem o modelo de emanaccedilatildeo proveniente de
Atzilut O anjo natildeo eacute unidade por si soacute do contraacuterio seria o Uno Resta que o anjo seja
nuacutemero (ldquoreliquum ut angelus numerus sitrdquo) E sendo nuacutemero ldquopor um aspecto eacute
muacuteltiplo e por outro eacute multiplicidade unificadardquo A descriccedilatildeo prossegue elucidando
que no anjo encontra-se uma dupla imperfeiccedilatildeo uma consiste no fato de natildeo ser o
proacuteprio Ser mas apenas uma essecircncia que pertence ao Ser por participaccedilatildeo a outra
se encontra no fato de natildeo ser a proacutepria Inteligecircncia mas sim participar agrave
Inteligecircncia porquanto sua natureza eacute intelecto capaz de entender Ambas as
imperfeiccedilotildees satildeo no anjo segundo sua multiplicidade enquanto a capacidade de
elevaccedilatildeo eacute devida agrave unidade que se lhe aproxima do alto Pico parece no entanto
atribuir ao nuacutemero uma possibilidade de perfeiccedilatildeo natildeo atribuiacuteda ao anjo ldquocada
nuacutemero eacute imperfeito enquanto multiplicidade embora perfeito enquanto
unidaderdquo502 A dimensatildeo angeacutelica mostra-se um dos momentos de difusatildeo do divino
um dos instrumentos atraveacutes dos quais a unidade se revela Sob tal perspectiva os
anjos as Sefirot as numeraccedilotildees se encontram em perene circularidade interligando
o Uno e o muacuteltiplo Em sua exposiccedilatildeo sobre os Anjos Pico cita fontes concordantes
como Averroacuteis (ldquoentre intelecto e inteligiacutevel cria-se uma unidade maior que entre
mateacuteria e formardquo) e Maimocircnides (ldquoa verdade se colhe de forma mais perfeita nos
anjos que no homemrdquo) para concluir que as espeacutecies inteligiacuteveis satildeo unidas na mente
angeacutelica por meio de uma ligaccedilatildeo eterna natildeo temporacircnea como ocorre no intelecto
humano503
A descriccedilatildeo acima natildeo apenas confirma a natildeo-supressatildeo do mundo da
emanaccedilatildeo primordial na obra piquiana como daacute-nos um modelo do meacutetodo
hermenecircutico utilizado para cada um dos mundos interpretados no Heptaplus Assim
como no Livro III eacute descrita a natureza angeacutelica e sua relaccedilatildeo com os outros planos ndash
501 Heptaplus III 1 p248 ldquoQuicquid est post unitatem numerus unitate perfectus et consummatus est Sola
unitas omnino simplex a se perfecta non egreditur se sed individua simplicitate et solitaria sibi cohaeret quia superest sibi nullius indiga plena suis divitiis Numerus sua natura cum sit multitudo unitatis beneficio sit simplex quantum ipse simplicitatis capax quamquam autem numerus quisque quo magis ab unitate sit procul in maiorem semper incidat multitudinem plusque in eo dissimilitudinis plus partium plus compositurae sit nullus est tamen ita unitati proximus qui multitudo non sit adventitiam habens unitatem unaque non natura sed compositionerdquo
502 Heptaplus III 1 p251 ldquoEst autem omnis numerus eatenus imperfectus quatenus multitudo perfectus autem quatenus unusrdquo
503 Heptaplus III 2 p255 A passagem de Averroacuteis estaacute em De an Beat IX 152 ab
152
em acircmbito de uma geografia universal ndash os demais Livros da obra descrevem a
natureza de cada particular mundo tratado em perfeita harmonia com os mundos
previstos na Cabala
3 A Occlusa Sapientia
Verificou-se no Capiacutetulo anterior a existecircncia de uma relaccedilatildeo entre as letras
hebraicas e significados ocultos vislumbrada por Pico ainda em rsquo86 As
caracteriacutesticas inerentes ao idioma hebraico satildeo afirmadas no fechamento de suas
Conclusiones Philosophicae ldquose existe uma liacutengua originaacuteria e natildeo casual resulta
evidente sobre a base das muacuteltiplas conjecturas que essa eacute a liacutengua hebraicardquo504
Segundo essa proposiccedilatildeo o hebraico apresentaria uma relaccedilatildeo privilegiada com a
verdade instituindo com as coisas uma relaccedilatildeo imediata e necessaacuteria e natildeo mediata
como ocorre com as outras liacutenguas505 Pico percebera que as combinaccedilotildees numeacutericas
e as expressotildees linguiacutesticas apresentam iacutentimas articulaccedilotildees loacutegicas atestando natildeo
apenas a existecircncia de uma racionalidade escondida sob as formas como um processo
de manifestaccedilatildeo divina ldquoos nuacutemeros nos abrem uma estrada para a investigaccedilatildeo e
compreensatildeo de cada coisardquo506 As letras do alfabeto hebraico seriam nesse sentido
apenas ldquoveacuteusrdquo que selam o pensamento divino pedindo que seja efetuada uma
elevaccedilatildeo da letra ao espiacuterito Essa a razatildeo como ainda relembra Pico de Oriacutegenes
evitar traduzir certos vocaacutebulos hebraicos porquanto cada traduccedilatildeo representa uma
despotencializaccedilatildeo da palavra sagrada507
Na inteira Lei natildeo existem letras que em suas formas
conjunccedilotildees separaccedilotildees flexotildees direccedilotildees defeitos e excessos
grandezas maiores ou menores e em seu coroamento
fechamento abertura e ordem natildeo remetam aos segredos das
Dez Numeraccedilotildees [as Sefirot]508
A valorizaccedilatildeo da letra hebraica como fonte criadora focircra registrada pela
primeira vez no Secircfer Yetsiraacute como foi visto Cada uma das 22 letras representa um
princiacutepio gerador de energia que encerra uma chave cognitiva encontrando cor-
respondecircncia com os elementos formados por seu intermeacutedio de forma que toda a
criaccedilatildeo encontra-se relacionada a um fenocircmeno de linguagem Assim como cada
504 Concl (II) II 80 (p77) ldquoSi qua est lingua prima et non casualis illam esse hebraicam multis patet
coniecturisrdquo 505 A deduccedilatildeo eacute de Albano BIONDI tradutor das Conclusiones em seus comentaacuterios introdutoacuterios
(Conclusiones Nongentae ndash Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pXXIX) 506 PICO Conclusiones de mathematicis (II) VII 11 ldquoPer numeros habetur via ad omnis scibilis
investigationem et intellectionemrdquo 507 Para um aprofundamento da temaacutetica das letras hebraicas e sua recepccedilatildeo por Pico leia-se Eugenio GARIN
(2011 pp 145-49) 508 PICO Concl (I) IX 33 (p60) ldquoNullae sunt litterae in tota lege quae in formis coniunctionibus
separationibus tortuositate directione defectu superabundantis minoritate maioritate coronatione clausura apertura et ordine decem numerationum secreta non manifestentrdquo
153
sefiraacute cada letra encerra um poder criador proacuteprio recebido a partir da divindade e
emanado em direccedilatildeo agrave mateacuteria e em sentido contraacuterio permitindo o acesso e a
compreensatildeo do operador apoacutes o justo processo aos elementos inteligiacuteveis que
participam da divindade atraveacutes de sua chave cognitiva Esse eacute o significado
expresso no Secircfer Yetsiraacute de ldquocom as letras descreva a alma de tudo o que foi
formado e tudo o que seraacute formado no futurordquo509
A narrativa do Gecircnesis ndash em que Deus com uma seacuterie de ordenamentos daacute
vida agrave criaccedilatildeo ndash eacute considerada para os cabalistas testemunho fiel de como a
realidade foi desencadeada pela liacutengua divina Com a mesma ordem de letras que se
sucedem no texto biacuteblico realiza-se o desenho constitutivo da realidade que exprime
o plano divino no domiacutenio fiacutesico da criaccedilatildeo510 Conforme ainda o Secircfer Yetsiraacute
ldquotudo o que eacute formado emana de um nomerdquo511
De fato fundamentada sobre a relaccedilatildeo existente entre as letras hebraicas e a
criaccedilatildeo desenvolveu-se ao longo dos seacuteculos uma longa tradiccedilatildeo exegeacutetica voltada a
aprimorar uma habilidade que permitisse aos iniciados penetrar aleacutem da superfiacutecie
das palavras e descobrir dentro das Escrituras os segredos de toda a criaccedilatildeo512 Para
alcanccedilar os significados ocultos os cabalistas empregam algumas teacutecnicas
relacionadas a operaccedilotildees com as letras513 Os meacutetodos mais utilizados para descobrir
significaccedilotildees hermenecircuticas fundamentam-se no modelo de Abulafia que
compreendia trecircs teacutecnicas baacutesicas o notarico a gematria e a temuraacute A primeira
cujo nome proveacutem da palavra latina ldquonotariusrdquo baseia-se na teacutecnica que analisa
como formar novas palavras partindo das letras iniciais meacutedias ou finais de outras
palavras Na segunda cada letra hebraica eacute substituiacuteda por seu correspondente valor
numeacuterico interpretando-se as palavras atraveacutes dos nuacutemeros resultantes das somas
de cada letra Conhecendo-se o valor numeacuterico de uma palavra ou frase poderatildeo ser
criadas conexotildees com palavras ou frases que tenham o mesmo valor estabelecendo
com elas algumas analogias A temuraacute por sua vez eacute a arte do anagrama ou seja de
permutar a posiccedilatildeo das letras em uma mesma palavra Isso significa que uma palavra
pode ser decomposta e recomposta para formar novas palavras que revelem o
significado completo da primeira514
509 Secircfer Yetsiraacute II 1 (trad KAPLAN 2005 p283) 510 BUSI 2011 p 23-24 511 Secircfer Yetsiraacute II 512 BUSI ibid p 23-24 GARIN 2011 p146 513 Como explica BUSI (ibid p 23) a mesma palavra hebraica seraf indica tanto a transmutaccedilatildeo alquiacutemica dos
metais quanto a permutaccedilatildeo das letras do alfabeto ldquoAssim como o alquimista escolhe os liames da mateacuteria para procurar nos metais menos nobres o segredo do ouro assim o exegeta hebreu transforma a ordem das letras para descobrir por traacutes do sentido aparente o verdadeiro significado do textordquo
514 Cf Guido MASSETANI La Filosofia cabbalistica di Giovanni Pico Della Mirandola 1897 pp 64-65 Um modelo de teacutecnica cabaliacutestica pode ser encontrado no Salmo 34 no qual cada verso inicia com uma das letras do alfabeto hebraico em sucessatildeo A sua funccedilatildeo cabaliacutestica estaacute esclarecida na obra Corona del buon nome de Avraham de Colonia que afirma seu valor cognitivo em relaccedilatildeo ao nome impronunciaacutevel de Deus o Tetragramma e agraves 10 Sefirot Esse aspecto impressiona Pico que utiliza o texto traduzido por Flavio Mitridate (FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633) Outros exemplos de uso da gematria satildeo apresentados por Tova SENDER em seu capiacutetulo ldquoGuematriardquo (1992 p21)
154
Pico debruccedilou-se sobre algumas dentre aquelas teacutecnicas ndash como se lecirc na
Apologia e em algumas de suas Teses ndash515 e tentou permutar nomes inicialmente
atraveacutes do procedimento da ars combinatoria praticado por Ramon Llull no seacuteculo
XII que apresentava certa diferenccedila com os outros meacutetodos aprendidos Estava certo
que aquele que possuiacutesse o conhecimento da ordenaccedilatildeo da liacutengua hebraica
aprendendo a mantecirc-la ldquoem maneira analoacutegicardquo nos vaacuterios campos do saber
possuiria ldquonorma e regra para a perfeita descoberta de qualquer objeto possiacutevel do
saberrdquo conforme havia deixado claro em sua conclusio paradoxal 55516 A teacutecnica com
a qual melhor se adaptou e conseguiu obter resultados foi a temuraacute que lhe permitiu
confirmar alguns dogmas e colher descobertas originais como informam algumas
teses cabaliacutesticas
Se no nome de Abraatildeo natildeo tivesse sido inserida a letra He
Abraatildeo natildeo teria proliferado517
As letras do nome de Cacodaemon que eacute o Priacutencipe deste
Mundo e as letras do nome do Deus Triagramaacutetico satildeo as
mesmas quem souber fazer a transposiccedilatildeo ordenada inferiraacute
um do outro518
Os sinais da existecircncia de certas chaves secretas apenas esboccedilados nas obras
anteriores eram agora confirmados por Pico na uacuteltima parte do Heptaplus intitulada
ldquoExposiccedilatildeo das primeiras palavras isto eacute lsquoNo Princiacutepiorsquordquo A comprovaccedilatildeo do
meacutetodo cabaliacutestico surpreenderia o proacuteprio autor ldquopara aleacutem de minhas esperanccedilas e
de qualquer convicccedilatildeo encontrei aquilo que nem eu mesmo poderia acreditar ter
encontrado nem outros acreditariam facilmente digo uma coisa maravilhosa
inaudita e inacreditaacutevelrdquo519 Atraveacutes da permutaccedilatildeo de letras reafirmava que nos
cinco livros da lei mosaica estava encerrada a cogniccedilatildeo de todas as artes e da
sabedoria divina e humana ldquoembora dissimulada e oculta entre as mesmas letras
entre as quais a formulaccedilatildeo da lei se compotildeerdquo Agrave diferenccedila de outras obras anteriores
nas quais Pico havia mencionado tais segredos sem revelaacute-los o autor concluiacutea o
periacuteodo com a promessa ldquocomo agora seraacute demonstradordquo520
515 Cf Apologia (I p175) Conclusiones magicae secundum opinionem propriam 10 19 20 21 e 22
Conclusiones Cabalisticae Secundum secretam doctrinam 33 35 Conclusiones Cabalisticae Secundum opinionem propriam 60 70
516 Cf Conclusiones Paradoxae (II) III 55 517 Concl (I) IX 15 (p56) ldquoNisi nomini Abraam litera ה id est ha addita fuisset Abraam non generassetrdquo De
fato conta o Gecircnesis (175) que Abraatildeo e Sara soacute puderam ter filhos apoacutes mudarem os proacuteprios nomes AVRaM ficou AVRaHam e SaRaI ficou SaRaacuteH recebendo os dois a letra Hecirc que representa um dos nomes de Deus assim tornando-se feacuterteis Acerca de tal passagem do Gecircnesis conta Satildeo Jerocircnimo que o nome anterior Abram significa ldquoPai elevadordquo enquanto Abraham significa ldquoPai de muitas naccedilotildeesrdquo (apud Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)
518 Concl (I) IX 19 (p58) ldquoEaedem sunt literae nominis cacodaemonis qui est princeps mundi huius et nominis Dei Triagrammaton et qui sciuerit ordinare transpositionem deduceret unum ex aliordquo Veja-se em FORNACIARI detalhes metodoloacutegicos das contas efetuadas para analogar um nome ao outro (2009 p79)
519 Heptaplus Expositio Primae Dictionis idest lsquoIn Principiorsquo p376 Igitur praeter spem meam praeter opinionem inveni quod neque inveniens ipse credebam neque credere alii facile potuerunt [] Rem dico mirabilem inauditam et incredibilemrdquo
520 Ibid p374 ldquo[hellip] dissimulatam autem et occultatam in litteris ipsis quibus dictiones legis contextae sunt quo modo nunc declarabimusrdquo
155
Propondo-se dar ao leitor uma ideia do funcionamento do sistema de
interpretaccedilatildeo cabaliacutestico Pico parte do primeiro periacuteodo do Gecircnesis que vai desde
ldquoNo princiacutepiordquo (11) ateacute ldquoe viu Deus a luz que era um bem (14)rdquo ndash constituiacutedo de
cento e trecircs letras hebraicas como observa ndash para efetuar sua anaacutelise Em sua
ldquoaparecircncia comum e vulgarrdquo como informa o Autor ldquotal disposiccedilatildeo de letras forma
apenas a casca de uma essecircncia de misteacuterios conservados dentro do textordquo Contudo
se for realizada a decomposiccedilatildeo daquelas palavras tomadas as mesmas letras em
separado e recompostas em novas palavras que se possam formar ldquosegundo regras
apreendidas dos hebreusrdquo ldquoveremos em plena luz maravilhosas verdades
secretiacutessimas de uma sabedoria conservada a respeito de muitas coisasrdquo Mas
conforme complementa apenas ldquose formos capazes de uma selada sabedoriardquo521 Para
comprovar sua descoberta aos leitores o autor elege apenas uma das palavras que
compotildeem o periacuteodo mencionado suficiente para demonstrar seu intento
Tomando assim a primeira palavra hebraica do Gecircnesis ldquoberesitrdquo que Pico
transcreve em caracteres hebraicos segue-se uma detalhada explicaccedilatildeo de todas as
separaccedilotildees permutaccedilotildees e uniotildees efetuadas entre as letras daquela palavra surgem
novos vocaacutebulos compostos com as letras da palavra inicial dos quais satildeo dados os
significados em latim finalmente as novas palavras satildeo reordenadas em uma nova
expressatildeo da qual emerge ldquoo Pai no Filho e pelo Filho princiacutepio e fim ou seja
quietude criou a cabeccedila o fogo e o fundamento do homem grande com o pacto
bomrdquo522 Note-se que essa inteira oraccedilatildeo eacute o resultado extraiacutedo da resoluccedilatildeo e
recomposiccedilatildeo daquela uacutenica palavra mostrada passo a passo pelo autor523
Embora como infere Pico qualquer cristatildeo seja capaz de compreender o
significado de ldquoo Pai criou no Filho e atraveacutes do Filhordquo natildeo seraacute faacutecil para ldquoos ignaros
em filosofiardquo compreender o significado de ldquocabeccedila fogo e fundamento do homem
521 Ibid p374 ldquoSumamus gratia exempli primam particulam libri Geneseos videlicet ab exordio usque ad
locum ubi est scriptum lsquoEt vidit Deus lucem quod esset bonumrsquo Est tota illa scriptura tribus et centum elementis coagmentata quae eo modo disposita quo ibi sunt dictiones constituunt quas legimus nihil nisi commune et triviale prae se ferentes Corticem scilicet conflat hic litterarum ordo hoc textum medullae interius abditae latentium mysteriorum At vocabulis resolutis elementa eadem divulsa si capiamus et iuxta regulas quas ipsi tradunt quae de eis conflaridictiones possunt rite coagmentemus futurum dicunt ut elucescant nobis si simus capaces occlusae sapientiae mira de rebus multis sapientissima dogmata et si in tota hoc fiat lege tum demum ex elementorum hac quae rite statuatur et positione et nexu erui in lucem omnem doctrinam secretaque omnium liberalium disciplinarumrdquo
522 Heptaplus ibid p 378 ldquoPater in Filio et per Filium principium et finem sive quietem creavit caput ignem et fundamentum magni hominis foedere bonordquo
523 Veja-se a inteira ordenaccedilatildeo de palavras cf Heptaplus p378 (levando-se em conta que os termos hebraicos estatildeo aqui escritos em ordem inversa agrave original apresentando-se no sentido latino) ldquoDictio illa apud Hebraeos hoc modo scribitur תישארב Ex hac igitur si tertiam litteram primae coniumgamus fit dictio בא idest ab Si geminatae primae secundam addamus fit רבב idest bebar Si praeter primam omnes legamus fit תישאר idest resith Si quartam primae et ultimate connectamus fit שתב idest sciabat Si tres primas quo iacent ordine statuamus fit ארב idest bara Si prima omissa tres sequentes fit שאר idest rosc Si omissis prima et secunda duas sequentes fit שא idest es Si tribus primus omissis quartam ultimae copulemos fit תש idest seth Rursus si secundam primae fit בר idest rab Si post tertiam quintam tum quartam statuamus fit שיא idest hisc Si primas duas duabus ultimas coagmentemus fit תירב idest berith Si ultimam primae fit ultima dictio et duodecima quae est בת idest thob verso quod frequentissimum apud Hebraeos thau in thet elementum Videamus autem quid primo haec latine significent tum quae per ea non ignaris philosophiae de tota natura mysteria revelentur Ab patrem significat bebar in filio et per filium (utrumque enim significat beth praepositio) resit principium sabath quietem et finem bara creavit rosc caput es ignem seth fundamentum rab magni hisc hominis berith foedere tob bono Et totam si ordine consequenti orationem texamus erit huiusmodi Pater in Filio et per Filium principium et finem sive quietem creavit caput ignem et fundamentum magni hominis foedere bonordquo
156
granderdquo e tampouco de ldquopactordquo ndash termos que encerram cada uma das leis dos
quatro mundos tratados no Heptaplus524 A concepccedilatildeo de ldquohomem granderdquo remete a
Moiseacutes que assim chama o mundo em contraposiccedilatildeo ao homem ldquopequeno mundordquo
Aos outros elementos da oraccedilatildeo Pico faz corresponder os trecircs mundos postulados na
Cabala e na Antiga Filosofia inteligiacutevel celeste e corruptiacutevel Assim em analogia com
o corpo humano ldquopor meio de uma precisa leirdquo a cabeccedila fonte do conhecimento
representa a parte mais alta do mundo correspondente ao mundo angeacutelico ou
inteligiacutevel o fogo princiacutepio de vida e calor ligado ao coraccedilatildeo representa a parte
meacutedia qual o sol no mundo celeste o fundamento ou princiacutepio de geraccedilatildeo e
corrupccedilatildeo representa o mundo sublunar Essas partes no mundo e no homem se
correspondem reciprocamente Ao final da passagem Pico explica
Esse pacto eacute bom porque eacute dirigido e orientado para Deus que eacute
o Bem de forma que assim como o mundo eacute uno na totalidade
de suas partes assim tambeacutem no final possa se tornar uno com
o seu Autor525
A descoberta obtida sob o veacuteu de uma uacutenica palavra satisfaz o autor que natildeo
pretendendo ultrapassar essa conquista admite natildeo ter a experiecircncia necessaacuteria para
se aprofundar em investigaccedilotildees ldquopenso ter feito uma coisa apraziacutevel aos homens de
meu tempo tornando manifesta aquela riqueza de gemas que se me oferece sem
penetrar em seus abismos costeio as margens desse marrdquo526 Se a mesma teacutecnica for
aplicada para toda a Lei induz Pico surgiraacute toda a doutrina e os segredos de todas as
disciplinas liberais Poreacutem adverte ndash mais uma vez ndash ldquose formos capazes de
sabedoria ocultardquo (ldquosi simus capaces occlusae sapientiaerdquo) Pois pode acontecer que
ldquoaproximando-nos de dissolver e compor algumas palavras nasccedilam de nossa
atividade muitos vocaacutebulos e uma variedade de discursos rica de grandes
ensinamentos e profundos significados mas inuacutetil fortuita e despreziacutevel para quem
natildeo tendo apreendido o valor por outra via natildeo possa colher seu sentidordquo527
O caminho de descoberta das verdades veladas nas Escrituras atraveacutes de
qualquer dos meacutetodos indicados eacute o caminho miacutestico sugerido nos chamados Atos
da Criaccedilatildeo Maassecirc Bereshit isto significa que se a Criaccedilatildeo se deu por meio da
linguagem seraacute por meio da linguagem que se deveraacute retornar ao Criador528 Para os
cabalistas a arte combinatoacuteria natildeo eacute mais que uma reconfiguraccedilatildeo da palavra e da
obra de Deus A apreensatildeo da alma presente nas letras passa a ser sob esse prisma
uma das ferramentas que possibilita o regresso do homem agrave Unidade uma concepccedilatildeo
depreendida da especulaccedilatildeo alfabeacutetica de Abulafia529 que certamente se apoiara no
Zohar ldquoOs mandamentos formam o corpo das Escrituras suas vestes satildeo as
524 Cf Heptaplus ibid pp379 381 525 Heptaplus p382 ldquoQuod foedus ideo est bonum quia ad Deum qui est ipsum bonum ita dirigitur et
ordinatur ut quem admodum inter se totus mundus unus ita et cum suo auctore postremo sit unumrdquo 526 Heptaplus p376 527 PICO Heptaplus p377 528 MAGHIDMAN 2014 p108 529 BUSI 2011 p 26
157
narraccedilotildees e finalmente haacute uma almardquo530 O inteiro Heptaplus atraveacutes de seu
comentaacuterio sobre o Gecircnesis pretende provar o ponto de vista de Pico de que a
linguagem cabaliacutestica ou natildeo transcende suas proacuteprias terminologias configurando
um processo cognitivo O seacutetuplo meacutetodo de interpretaccedilatildeo proposto por Pico encerra
um princiacutepio metafiacutesico de reciacuteproca contenccedilatildeo de todos os niacuteveis de realidade entre
si culminando na unificaccedilatildeo com o Absoluto
Imitemos tambeacutem noacutes a santiacutessima alianccedila do mundo de
forma a estarmos unidos entre noacutes por reciacuteproco amor e a
alcanccedilarmos atraveacutes do verdadeiro amor de Deus a feliz
unificaccedilatildeo Nele531
530 Zohar III 152a in VULLIAUD I p135 531 Heptaplus p382 p 382 ldquoImitemur et nos sanctissimum foedus mundi ut et mutua caritate invicem simus
unum et simul omnes per veram Dei dilectionem cum illo unum feliciter evadamosrdquo
158
CAPIacuteTULO VII
FILOSOFIA ESOTERISMO CONCOacuteRDIA
O seacutetimo e uacuteltimo Capiacutetulo tem por intento alinhavar as partes apresentadas
nos capiacutetulos anteriores buscando uma siacutentese interpretativa do que foi analisado
Para tanto alguns pontos aparentemente desconexos deveratildeo ser interligados e as
eventuais lacunas preenchidas Seraacute realizada inicialmente a elucidaccedilatildeo do
paradigma esoteacuterico verificando sua utilizaccedilatildeo em periacuteodos e escolas distintas em
seguida seratildeo vistos os tipos de conteuacutedos protegidos pelo sigilo apontando para sua
relaccedilatildeo com as tradiccedilotildees convergentes do projeto piquiano finalmente
fundamentando-nos em uma especiacutefica concepccedilatildeo utilizada por Pico della Mirandola
ndash a ldquoMorte do Beijordquo ndash seraacute proposta uma interpretaccedilatildeo capaz de lanccedilar uma
pequena luz na questatildeo da confluecircncia daquelas tradiccedilotildees para o mesmo fim
1 O Paradigma Esoteacuterico
A leitura das obras piquianas natildeo deixa duacutevidas acerca da utilizaccedilatildeo de uma
seacuterie de referecircncias de cunho esoteacuterico colhidas da leitura histoacuterica realizada pelo
Autor Como foi esboccedilado no Capiacutetulo II a praacutetica de uma atitude de proteccedilatildeo de
certos conteuacutedos encontra-se em registros relativos tanto a perspectivas teoloacutegicas
quanto filosoacuteficas denotando um modelo vaacutelido desde tempos antigos ndash seja do
periacuteodo pagatildeo quanto do cristatildeo Uma aproximaccedilatildeo a alguns modelos de
manifestaccedilotildees desse gecircnero de ocorrecircncia seraacute uacutetil para que se amplie a definiccedilatildeo de
ldquoesoterismordquo delineada na ldquoIntroduccedilatildeordquo desta tese
O adjetivo ldquoesoteacutericordquo (do grego esoterikoacutes) tem sido frequentemente atribuiacutedo
a Aristoacuteteles em verdade apenas a palavra ldquoexoteacutericordquo (exoterikoacutes) eacute encontrada nos
escritos que nos chegaram uma forma empregada para designar as obras destinadas
ao puacuteblico em contraposiccedilatildeo aos escritos acroamaacuteticos (ldquoakroacuteamardquo ldquoinstruccedilatildeo oralrdquo)
referidos agraves liccedilotildees apenas ouvidas ndash e tantas vezes anotadas532 Foi apenas no seacuteculo
II dC que o termo ldquoesoteacutericordquo e sua relaccedilatildeo com Aristoacuteteles fizeram sua primeira
apariccedilatildeo devidamente registrada atraveacutes de uma saacutetira de Luciano de Samoacutesata
Zeus e Hermes vendiam filoacutesofos como escravos no mercado anunciando que aquele
que comprasse um disciacutepulo de Aristoacuteteles receberia dois pelo preccedilo de um ldquoum visto
532 Veja-se por exemplo Politica 1278b 31 Metaphisica 1076a 28 Etica a Nicomaco 1102a 26 A
interpretaccedilatildeo heleniacutestica do termo exoterikoi logoi tomada como uma referecircncia aos escritos aristoteacutelicos eacute atribuiacuteda por Simpliacutecio mais tarde no seacuteculo VI a Eudemo de Rhodes em seu comentaacuterio agrave Fiacutesica de Aristoacuteteles referindo-se a uma passagem em que Aristoacuteteles teria lidado com um problema lsquoexoteacutericorsquo referente a uma questatildeo pertencente ao campo dialeacutetico (SIMPLICIUS In Ph 8327 8526 e 861 apud Wouter HANEGRAAFF Dictionary of Gnosis amp Western Esotericism 2006 p 336)
159
de fora outro visto de dentrordquo [] ldquoportanto se vocecirc o comprar lembre-se de dar ao
primeiro o nome de exoteacuterico e ao segundo o de esoteacutericordquo533 Confirmando a
anedota Clemente de Alexandria escrevia pouco tempo depois ldquoos disciacutepulos de
Aristoacuteteles dizem que alguns de seus tratados satildeo esoteacutericos outros comuns e
exoteacutericosrdquo E consolidando o significado de ldquosegredordquo acrescia que ldquoaqueles que
instituiacuteram os misteacuterios sendo filoacutesofos enterraram suas doutrinas em mitos para
natildeo serem oacutebvias para todosrdquo534 Observe-se que Clemente mescla na uacuteltima
passagem o acircmbito misterioloacutegico com o filosoacutefico ndash como faraacute Pico seacuteculos depois
ndash introduzindo uma conotaccedilatildeo de misticismo ao termo Na mesma linha escreveram
Oriacutegenes o Cristatildeo e Gregoacuterio de Nissa utilizando o termo ldquoesoteacutericordquo para referir-se
a ensinamentos secretos reservados a uma ldquoelite miacutesticardquo535
Esses breves relatos fazem notar a existecircncia de duas significaccedilotildees para a
mesma palavra sendo uma concernente ao sentido de ldquosigilordquo e a outra agrave qualidade
do que eacute ldquomiacutesticordquo Embora o sinocircnimo que mais se adeque a ldquoesoteacutericordquo seja
ldquosecretordquo na maior parte das vezes as duas caracteriacutesticas encontram-se mescladas
Etimologicamente o campo semacircntico do misticismo eacute proacuteximo ao do esoterismo a
palavra ldquomisteacuteriordquo conforme sua raiz grega mus significa ldquosilecircnciordquo ou ldquofechar a
bocardquo o ldquomyacutestesrdquo ou ldquoiniciadordquo eacute pois aquele que manteacutem os laacutebios selados
enquanto mysteacuterion refere-se ao culto de iniciaccedilatildeo em que eacute mantido um caraacuteter
secreto536 Assim em seu sentido mais imediato eacute aquilo que natildeo deve ser falado que
deve ser recebido e guardado em silecircncio em sentido mais profundo aquilo que deve
ser contemplado no silecircncio537 Verifica-se ainda um aspecto de transformaccedilatildeo
aniacutemica encerrado na qualidade do que eacute miacutestico que se relaciona com uma
aproximaccedilatildeo da divindade Resta observar que embora nem toda a miacutestica seja
ensinamento secreto e nem todo ensinamento secreto seja miacutestico538 os dois gecircneros
de manifestaccedilatildeo a miacutestica e a secreta tecircm caminhado juntos e se completam na
definiccedilatildeo de esoterismo Prosseguindo seratildeo mostrados trecircs modelos de esoterismo
relacionados a doutrinas bastante distintas ndash que muito provavelmente
influenciaram diretamente Giovanni Pico
Um exemplo expressivo relacionado aos misteacuterios egiacutepcios e tracejado no
Capiacutetulo I pode ser encontrado no Hermetismo que embora supostamente
533 LUCIANO DE SAMOacuteSATA Vitarum Rustio 26 apud HANEGRAAFF opcit p 336 534 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromata V 58 3-4 Jacircmblico mais tarde em Vida de Pitaacutegoras e em De
Comm Math (18) utilizaria a dicotomia para referir-se aos alunos de Pitaacutegoras divididos em duas classes ldquouma exoteacuterica e outra esoteacutericardquo
535 Vejam-se os detalhes e referecircncias em HANEGRAAFF opcit p 336 536 De acordo com Walter BURKERT encontra-se na traduccedilatildeo latina de mysteria myeis myesis a melhor
definiccedilatildeo para o termo que resulta em initia initiare initiatio introduzindo o conceito de ldquoiniciaccedilatildeordquo na linguagem ocidental Esse conceito ldquoeacute via de regra acompanhado pelo segredordquo (Antigos Cultos de Misteacuterio 1987 pp19-20)
537 A uacuteltima definiccedilatildeo eacute atribuiacuteda a Reneacute Gueacutenon Aperccedilus sur lrsquoinitiation 2004 Paris Editions Traditionnelles p125 apud Pierre RIFFARD Dicionaacuterio do Esoterismo 1993 p241
538 Gershom SCHOLEM Nome de Deus a Teoria da Linguagem e Outros estudos de Cabala e Miacutestica Judaica 1999 pp64-65 Em contexto diverso do tratado por Scholem tambeacutem o especialista em religiotildees misteacutericas Walter BURKERT afirma que nem todos os cultos secretos detecircm um caraacuteter miacutestico Como exemplo cita o caso da magia privada que apesar de secreta natildeo deve receber a alcunha de miacutestica assim tambeacutem o acesso de certas hierarquias sacerdotais a objetos ou locais sagrados natildeo constitui uma miacutestica apesar de seu caraacuteter secreto Haacute por outro lado estados de misticismo que podem ser alcanccedilados durante cultos religiosos abertos que natildeo caracterizam necessariamente um segredo (op cit pp19-21)
160
pertencente a periacuteodo anterior ao cenaacuterio de significaccedilotildees acima mencionadas
encerra ao mesmo tempo o sentido secreto e o caraacuteter miacutestico sendo-nos uacutetil para
ilustrar um modelo de esoterismo natildeo-ocidental preacute-cristatildeo bem aceito no seacuteculo XV
Os escritos hermeacuteticos ocultam por detraacutes de uma manifesta clareza ndash referente agrave
forma e ao conteuacutedo ldquoexternordquo ndash uma obscuridade quanto ao sentido mais profundo
que se encontra ldquoseladordquo O material hermeacutetico contempla trecircs planos diversos em
estreita relaccedilatildeo entre eles uma forma externa clara e linear que pode se tornar mais
complexa conforme a dificuldade do argumento um conteuacutedo ldquoexternordquo e
correspondente agrave simplicidade ou complexidade do enunciado um conteuacutedo
absolutamente ldquointernordquo e oculto que natildeo possui uma possibilidade expressiva ou
leacutexica adequada reenviando a um saber recebido em revelaccedilatildeo539 Esse uacuteltimo
aspecto relaciona-se ao caraacuteter miacutestico que contempla uma regeneraccedilatildeo do ser No
Tratado XVI do Corpus Hermeticum Ascleacutepio relata ao Rei Amon
ldquoHermes meu mestre dialogando frequentemente comigo seja
em particular que na presenccedila de Tat costuma dizer-me que
aqueles que leratildeo os meus livros encontraratildeo uma composiccedilatildeo
muito simples e clara enquanto ao contraacuterio essa eacute obscura e
esconde o sentido das palavras Ademais tornar-se-aacute
totalmente obscura quando sucessivamente os Gregos tentaratildeo
traduzir nossa liacutenguardquo540
Um segundo exemplo de natildeo-divulgaccedilatildeo de ensinamentos sagrados eacute
detectaacutevel em alguns registros da miacutestica cristatilde oficial541 embora o ensinamento
secreto natildeo tenha sido utilizado nesse caso como instrumento para propagar uma
tradiccedilatildeo como ocorreu no Judaiacutesmo542 Clemente de Alexandria pode ser tomado
como modelo de transmissatildeo esoteacuterica dentro da tradiccedilatildeo cristatilde tendo absorvido
ecos provenientes dos gregos perceptiacuteveis no uso que fez de termos como gnosis e
mysteria em suas discussotildees acerca dos sentidos literal e natildeo-literal da Biacuteblia543
539 Valeria SCHIAVONE trad e notas ao Corpus Hermeticum ed BUR-Rizzoli 2018 npp262-263 A
comentadora infere que a clareza da forma externa nos textos hermeacuteticos representa um sinal da luz da verdade profunda que vela mesmo que o conteuacutedo tenda a afastar o leitor do entendimento real da experiecircncia miacutestica que esconde Natildeo haacute como deixar de estabelecer uma analogia com os niacuteveis de leitura miacutestica hebraica explicados sob a conceituaccedilatildeo do chamado Pardes como verificado no Capiacutetulo V
540 CORPUS HERMETICUM Tratado XVI 1 ed Nock-Festugiegravere Bompiani 2005 p 429 Traduccedilatildeo do grego por Andregrave-Jean Festugiegravere traduccedilatildeo para o portuguecircs de nossa responsabilidade ldquoΕρμής μεν γάρ ό διδάσκαλός μου πολλάκις μοι διαλεγόμενος καί ιδία καί τού Τάτ ένίοτε παρόντος έλεγεν ότι δόξει τοΐς έντυγχάνουσί μου τοΐς βιβλίοις άπλουστάτη είναι ή σύνταξις καί σαφής έκ δέ των έναντίων άσαφής ούσα καί κεκρυμμένον τόν νοΰν των λόγων έχουσα καί έτι άσαφεστάτη των Ελλήνων ύστερον βουληθέντων τήν ήμετέραν διάλεκτον εις τήν ιδίαν μεθερμηνεύσαι οπερ έσται των γεγραμμένων μεγίστη διαστροφή τε καί άσάφειαrdquo A obra hermeacutetica eacute bastante ampla e abrangente em termos de conteuacutedo Uma visatildeo geral de seu teor foi apresentada no primeiro capiacutetulo embora apenas em sua parte estrutural e ldquoexteriorrdquo Um maior aprofundamento do conteuacutedo hermeacutetico fugiria ao escopo aqui traccedilado Para uma anaacutelise bastante aprofundada do tema leia-se CORPUS HERMETICUM (Nock-Festugiegravere opcit) e HERMETICA (Scott-Ferguson Clarendon Press Oxford 1924-36) duas das mais abrangentes obras sobre o tema
541 A miacutestica cristatilde natildeo-oficial abarca o inteiro movimento gnoacutestico Sua tradiccedilatildeo se perpetuou atraveacutes de maior ou menor grau de sigilo conforme a eacutepoca e a especiacutefica subdivisatildeo
542 SCHOLEM opcit pp64-65 543 Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo de termos gregos como gnosis e mysteria Jean PEacutePIN argumenta que nesse
sentido percebe-se ldquouma inconsciente comunhatildeo de culturas mais do que marcas deliberadasrdquo (Mythe et alleacutegorie les origines grecques et les contestations judeacuteo-chreacutetiennes Paris Eacutetudes Augustiniennes 1976 p 251 apud Crofton BLACK 2006 p 103) Antes de Clemente Fiacutelon de Alexandria (De vita contemplativa) escrevera sobre o tema a ideia de que um grupo intelectualmente superior de crentes poderia extrair um niacutevel mais alto de
161
Como antecipado no Capiacutetulo II a postura hermenecircutica desenvolvida por Pico em
algumas obras tem certa afinidade com os primeiros inteacuterpretes cristatildeos gregos e
muito provavelmente alguns dos elementos esoteacutericos que utilizou receberam o
influxo da obra Stromata544 ndash na qual Clemente distingue duas classes de puacuteblico
um digno de receber ensinamentos secretos e outro natildeo
Stromateis englobaraacute a verdade misturada com opiniotildees sobre
Filosofia embora velada e oculta exatamente como a parte
comestiacutevel da noz na casca desta forma eacute mais aceitaacutevel eu
creio que as sementes da verdade sejam mantidas apenas para
os cultivadores da crenccedila545
Clemente reuacutene uma lista de exemplos histoacutericos para comprovar que escolas
filosoacuteficas diferentes estavam unidas em ocultar a verdade dos ldquoindignosrdquo546
utilizando-se de um quadro geral de referecircncias muito similar ao que seria utilizado
por Pico seacuteculos mais tarde (como a carta de Liacutesis para Hiparco e a Segunda Carta de
Platatildeo)547 Menciona entre aquelas os epicuristas os estoicos os aristoteacutelicos e os
ldquofundadores dos misteacuteriosrdquo Afastando-se dos pagatildeos volta-se para Cristo e alguns de
seus disciacutepulos como Paulo destacando o uso feito por alguns apoacutestolos de palavras
como μυστήριoν e σoφία548 O destaque a tais termos faz parte de sua sustentaccedilatildeo da
transmissatildeo natildeo-escrita aplicada essencialmente para a interpretaccedilatildeo das
Escrituras acerca da qual Clemente distingue duas formas de entendimento a
ldquocrenccedilardquo (πίστις) e o ldquoconhecimentordquo (γνωσις)549 Haacute pois uma dicotomia entre
ldquoaqueles que apenas apreciam as Escrituras os lsquocrentesrsquo (πιστοί) e aqueles que
foram aleacutem tornando-se examinadores precisos da verdade e portadores portanto
da gnose (γνωστιχοί)550 O termo ldquognoserdquo eacute definido em Stromata I na discussatildeo do
sentido de sigilo pedido por Cristo A gnose segundo Clemente ldquosabedoriardquo eacute o
ldquoconhecimento e compreensatildeo das coisas que satildeo que seratildeo e que foramrdquo
conhecimento das Escrituras jaacute estava presente em seu trabalho exegeacutetico Tambeacutem Oriacutegenes de Alexandria depois de Clemente distinguiu nitidamente os sentidos literal e natildeo-literal argumentando que a confianccedila no primeiro causaria erro teoloacutegico (vejam-se referecircncias e discussatildeo em BLACK np105 pp108-110)
544 Natildeo se tem certeza se Pico teve acesso direto agrave principal obra de Clemente Stromata na qual eacute elaborada uma linha argumentativa com recursos loacutegicos que se fundamentam tanto nas Escrituras quanto na Filosofia ndash um caminho traccedilado no Heptaplus piquiano Haacute uma sua citaccedilatildeo especiacutefica de Stromata nas Disputationes (44) e a referecircncia a um manuscrito denominado stromata graeca no elenco do inventaacuterio de sua biblioteca entretanto natildeo eacute certo se tal manuscrito se refere ao trabalho de Clemente Um uacutenico exemplar sobrevivente daquela obra foi encontrado na biblioteca de Lorenzo dersquo Medici podendo ter sido utilizado pelo Conde
545 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromata IndashVI 708a-b (Les Stromates ed Le Boulluec 1981) Stromata ou Stromateis significa ldquoMiscelacircneasrdquo ldquoπεριέξουσι δέ οί Στρωματείς άναμεμιγμένην την αλήθειαν τοΐς φιλοσοφίας δόγμασι μάλλον δέ εγκεκαλυμμένην καί επικεκρυμμένην καθάπερ τω λεπύρω το εδώδιμον του καρύουmiddot αρμόζει γάρ οίμαι τής αληθείας τά σπέρματα μόνοις φυλάσσεσθαι τοΐς τής πίστεως γεωργοΐςrdquo
546 Cf CLEMENTE Stromata V 88b-101a 547 Ibid V 100a-b As referecircncias e conteuacutedos da carta de Liacutesis e da Segunda Carta de Platatildeo encontram-se
respectivamente em notas de rodapeacute dos Capiacutetulos IV e VI 548 Mysteacuterion e Sophia correspondem respectivamente a ldquoMisteacuteriordquo e ldquoSabedoriardquo Para a discussatildeo do tema
veja-se Salvatore LILLA Clement of Alexandria A Study in Christian Platonism and Gnosticism Oxford 1971 pp146-148
549 A distinccedilatildeo entre piacutestis e gnosis tem algumas ramificaccedilotildees Clemente usa piacutestis em diferentes sentidos dois dos quais concernentes agraves demonstraccedilotildees loacutegica e cientiacutefica e um dos quais referente agrave leitura das Escrituras Em geral ele usa os dois primeiros significados em suas polecircmicas contra os filoacutesofos e o uacuteltimo em suas polecircmicas contra os gnoacutesticos A ideia em cada caso eacute demonstrar que o Cristianismo natildeo eacute inferior nem agrave Filosofia nem ao Gnosticismo O tema eacute discutido por LILLA opcit pp 118-226
550 Cf CLEMENTE opcit VII 533a
162
apresentando-se sob veacuteus Dessa forma se ldquoa contemplaccedilatildeo eacute o objetivo do saacutebiordquo
entatildeo ldquoa contemplaccedilatildeo daqueles que ainda satildeo filoacutesofos [e natildeo ainda saacutebios]
procura com certeza a sabedoria divinardquo que poderaacute ser alcanccedilada por meio de um
aprendizado que permita a recepccedilatildeo da voz profeacutetica que se lhe revela atraveacutes da
qual ldquose compreende o que eacute seraacute e foirdquo Prosseguindo na mesma passagem o teoacutelogo
define que
ldquoa gnose em si eacute o que desceu por transmissatildeo a poucos
transmitida pelos apoacutestolos sem registro escritordquo551
O tipo de linguagem utilizado por Clemente caracteriza uma esfera que se
tornou reconhecida como esoteacuterica embora o uso de termos como Sophia Piacutestis e
Gnosis seja um convite para se adentrar em territoacuterio gnoacutestico Pico natildeo se utilizou
desse tipo de registro em seus procedimentos hermenecircuticos pelo menos natildeo de
forma direta552 De outras fontes fato certo colheu suas referecircncias pois que a
dicotomia iniciadonatildeo-iniciado se manteve preservada em outros ciacuterculos da
Antiguidade posterior a Clemente e no Medievo sobretudo nas tradiccedilotildees
neoplatocircnica e cabaliacutestica Em ambiente neoplatocircnico destacaram-se dois autores
em particular Macroacutebio e Pseudo-Dioniacutesio ambos presentes na biblioteca piquiana
O Commentarii in Somnium Scipionis de Macroacutebio e sobretudo o De Coelesti
Hierarchia de Dioniacutesio foram textos que ajudaram amplamente a disseminar a
postura esoteacuterica dos primeiros cristatildeos durante a Idade Meacutedia latina apoacutes alguns
escritos originais se terem tornado inacessiacuteveis553 Embora Dioniacutesio seja um bom
modelo de emprego do paradigma esoteacuterico em ambiente neoplatocircnico554 sua forma
de linguagem apesar de natildeo restrita agrave leitura das Escrituras apresenta semelhanccedilas
551 CLEMENTE Stromata VI 281c-284a Oriacutegenes (o Cristatildeo) tambeacutem se utilizou do termo ldquognoserdquo para
designar o entendimento do sentido natildeo-literal talvez porque tenha sido ensinado pelo proacuteprio Clemente (segundo Euseacutebio de Cesareia) Porfiacuterio por sua vez diz que Oriacutegenes foi ensinado por Amocircnio tendo sido seu pupilo ao mesmo tempo que Plotino (cf BLACK opcit p 110)
552 Um paralelismo foi tecido na obra de Jacques Matter Histoire critique du gnosticisme et de son influence publicada em 1828 entre o esoterismo e o gnosticismo do seacuteculo II ao efetuar consideraccedilotildees que partem de um sincretismo entre os ensinamentos de Cristo por um lado e as tradiccedilotildees religiosas orientais judaicas e gregas filosoacuteficas por outro Algumas das primeiras polecircmicas cristatildes contra os gnoacutesticos colocaram-se contra sua crenccedila de terem atingido uma esfera independente e mais alta de conhecimento ou revelaccedilatildeo inacessiacutevel ldquoa outrosrdquo (como os cristatildeos) A obra de Irineu de Lyon do seacuteculo II Contra as Heresias (I162) identifica e transcreve diversas escolas do gnosticismo efetuando uma exposiccedilatildeo em que contrasta suas crenccedilas com as que ele chama do cristianismo ortodoxo [ie o cristianismo ldquonatildeo hereacuteticordquo] assim refutando os ensinamentos de vaacuterios grupos gnoacutesticos (Adversus Haereses W FOERSTER Gnosis A Selection of Gnostic Texts Oxford Clarendon Press 1972 vol I pp138-139)
553 Em seu Comentaacuterio sobre o sonho de Cipiatildeo Macroacutebio postula que desde que a natureza se esconde do olhar da multidatildeo a discussatildeo de seus segredos deve ser velada da visatildeo comum (Commentarii in Somnium Scipionis I 24-18 Padova ed L Scarpa 1981 pp 76-80) Pico possuiacutea uma ediccedilatildeo impressa de tal obra (KIBRE The Library of Pico della Mirandola 1936 p 244) Uma exposiccedilatildeo de cunho esoteacuterico pode ser encontrada ainda em Simpliacutecio Euseacutebio Dioacutegenes Laeacutercio Plutarco Porfiacuterio e Jacircmblico Plotino tratara sobre a proibiccedilatildeo de tornar puacuteblico o conteuacutedo dos Misteacuterios (Eneacuteadas VI 9 11) mas suas referecircncias nesse sentido satildeo de menor expressatildeo
554 O corpus pseudo-dionisiacuteaco um grupo de obras de teor teoloacutegico escritas em grego por um autor desconhecido do final do quinto ou iniacutecio do seacuteculo VI de claro vieacutes neoplatocircnico foi atribuiacutedo (em sua primeira apariccedilatildeo registrada em 532) a outro autor Dioniacutesio o Areopagita Pico o considerava um convertido de Paulo vivido no seacuteculo I dC (ldquoDiscipulus Pauli Dionysius Areopagitardquo como mencionado em Heptaplus p176) A admiraccedilatildeo de Pico pelo Areopagita estaacute evidente no Commento onde o chama ldquopriacutencipe dos teoacutelogos cristatildeosrdquo (p462) e no qual muito provavelmente foram utilizadas as traduccedilotildees de parte do corpus dionisiacuteaco realizadas por Marsilio Ficino (cf BLACK opcit p 123) A recepccedilatildeo do corpus pseudo-dionisiacuteaco durante toda a Idade Meacutedia e Renascenccedila foi extremamente ampla pelo menos seis traduccedilotildees latinas diferentes do corpus (ou partes dele) foram feitas entre os seacuteculos IX e XV
163
com as colocaccedilotildees de Clemente555 Por essa razatildeo tomaremos como terceiro exemplo
outra tradiccedilatildeo a do misticismo hebraico
Os Capiacutetulos VI e VII apresentaram suficientes indicaccedilotildees da utilizaccedilatildeo do
esoterismo hebraico como forma de transmissatildeo de conhecimento entretanto a
forma de linguagem adotada por Yohanan Alemanno e Elia del Medigo para se referir
a um campo de conhecimento sigiloso ndash dimensatildeo que ambos defendiam ndash se
diferencia das abordagens hebraicas anteriores por expor um modelo que utiliza
paracircmetros retirados da linguagem filosoacutefica Diferentes em estilos e doutrinas os
dois mestres de Pico colocaram tal motivo em posiccedilatildeo de destaque nas introduccedilotildees de
suas principais obras Alemanno em seu Hay ha-olamim distingue trecircs tipos de
pessoas ldquoas que derivam seu conhecimento da demonstraccedilatildeo as que o apreendem
atraveacutes da dialeacutetica e as que ouvem a retoacutericardquo556 A mesma ideia eacute encontrada na
introduccedilatildeo do Behinat ha-dat de Elia del Medigo em que o escritor informa que haacute
ldquoprinciacutepios fundamentais que podem ser aceitos retoacuterica e dialeticamente ambos os
meacutetodos de estudo satildeo requeridos jaacute que o terceiro meacutetodo o demonstrativo eacute
impossiacutevel para as massas mas possiacutevel para os poucosrdquo Elia complementa que o
emprego do meacutetodo demonstrativo eacute beneacutefico para a comprovaccedilatildeo de alguns
princiacutepios fundamentais jaacute que leva ao conhecimento das coisas causadas e a partir
do conhecimento dessas ao conhecimento do Criador Em clara distinccedilatildeo entre um
padratildeo exoteacuterico e outro esoteacuterico conclui ser ldquoevidente que o meacutetodo demonstrativo
eacute obrigatoacuterio para o homem saacutebio mas natildeo para o judeu comumrdquo557
Nas especulaccedilotildees aacuterabe-judaicas medievais a retoacuterica era considerada com
base nos comentadores gregos tardios parte integrante das artes loacutegicas no entanto
sua aplicaccedilatildeo praacutetica na instruccedilatildeo de homens ldquolimitados intelectualmenterdquo diminuiacutea
o interesse dos filoacutesofos por essa disciplina558 A dialeacutetica por sua vez pode ser
entendida no caso dos exemplos acima citados como o procedimento racional
empregado em discussotildees com perguntas e respostas atraveacutes das quais se obteacutem
uma regra com a qual se julga o que eacute falso e verdadeiro O uacuteltimo tipo de
conhecimento derivado da demonstraccedilatildeo ldquoutiliza coisas compreensiacuteveis para
explicar as menos compreensiacuteveisrdquo559 Atraveacutes dela eacute possiacutevel demonstrar a essecircncia
das coisas por meio do conhecimento das suas causas remetendo como objetivo
555 Ao mencionar os Misteacuterios Pseudo-Dioniacutesio adverte que ldquonatildeo eacute correto interpretar por escrito as invocaccedilotildees
que pertencem aos misteacuterios nem trazer do sigilo para o conhecimento puacuteblico seu significado misteriosordquo (De ecclesiastica Hierarquia 565c) Ainda ldquoeacute necessaacuterio que as coisas sagradas natildeo sejam ditas comumente nem divulgadas aos natildeo-iniciadosrdquo (De divinis nominibus 597 c) e que ldquosejam envolvidas [as coisas sagradas] na parte mais secreta da mente protegendo-as como uma unidade da multidatildeo profanardquo (De caelesti hierarchia 145 c) Veja-se tambeacutem De ecclesiastica Hierarquia 372a onde trata da preservaccedilatildeo do Santo dos Santos mais tarde retomada por Pico (aqui abordado nos capiacutetulos IV e VI)
556 Hay ha-olamim ed Lelli p94 Fabrizio LELLI editor da obra para o italiano daacute-lhe o tiacutetulo ldquoLrsquoImmortalerdquo (Firenze Leo Olschki) O Hay ha-olamim compreende uma narrativa enciclopeacutedica de ascensatildeo individual atraveacutes das vaacuterias ciecircncias ateacute alcanccedilar o mais alto niacutevel atingiacutevel de perfeiccedilatildeo humana (IDEL The Study Program of R Jochanan Alemanno Tarbiz 48 (1979-1980) pp 303-331)
557 Sefer Behinat ha-Dat of Elijah Del-Medigo (Livro do Exame da Religiatildeo) Jacob Ross (org) Chaim Rosenberg School of Jewish Studies 1984
558 Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p64
559 A definiccedilatildeo encontra-se em Dioacutegenes Laeacutercio VII 1 45 bem como a anterior referente ao meacutetodo dialeacutetico ndash uma definiccedilatildeo bastante difundida na Idade Meacutedia que DL refere em seus estudos acerca das doutrinas estoacuteicas
164
final ao conhecimento das Causas Primeiras Os termos das discussotildees de Alemanno
e Del Medigo provecircm possivelmente da mesma fonte o Kitab fasl al-maqal (Livro
do Discurso Decisivo) em que Averroacuteis distingue os trecircs tipos de inteacuterpretes
apontados pelos mestres hebreus Para o aristoteacutelico a aquisiccedilatildeo do conhecimento
dos entes soacute poderia ser feita pela intervenccedilatildeo do silogismo racional ou seja atraveacutes
de um percurso demonstrativo560 O uso dessas formas nos modelos hebraicos
mencionados tem por propoacutesito distinguir campos de atuaccedilatildeo secretos de outros natildeo
secretos
Poderia se prosseguir com outros exemplos dada sua profusatildeo mas os trecircs
modelos apresentados satildeo suficientes para que se chegue logo adiante a algumas
conclusotildees Resta esclarecer que o substantivo ldquoesoterismordquo natildeo foi originalmente
uma autodenominaccedilatildeo atraveacutes da qual determinados autores ou ciacuterculos definiram
suas perspectivas O primeiro emprego do termo no sentido de um gecircnero de
procedimento vinculado a uma escolha de comportamento foi feito a posteriori em
1828 no trabalho de Jacques Matter sob contexto do Cristianismo inicial561
Contudo somente em 1990 por meio de Antoine Faivre o Esoterismo eacute introduzido
em acircmbito acadecircmico como ldquoforma de pensamentordquo sendo ampliada sua aceitaccedilatildeo
como um campo de estudos Em sua obra Accegraves de leacutesoteacuterisme occidental o autor
defende um paradigma que pode ser reconhecido pela presenccedila de quatro
caracteriacutesticas intriacutensecas agrave proacutepria definiccedilatildeo de esoterismo agraves quais duas natildeo
intriacutensecas podem ser eventualmente acrescentadas As caracteriacutesticas intriacutensecas
propostas por Faivre tomadas aqui em empreacutestimo pela pertinecircncia agrave temaacutetica
traccedilada satildeo (a) a crenccedila em ldquocorrespondecircnciasrdquo invisiacuteveis e natildeo causais entre todas
as dimensotildees visiacuteveis e invisiacuteveis do cosmo (b) a percepccedilatildeo da natureza como
permeada e animada por uma presenccedila divina ou forccedila vital (c) a concentraccedilatildeo na
imaginaccedilatildeo religiosa como um poder que daacute acesso a niacuteveis de realidades
intermediaacuterios entre o mundo material e Deus e (d) a crenccedila em um processo de
transmutaccedilatildeo espiritual atraveacutes do qual o homem interior eacute regenerado e reconectado
com o divino As duas caracteriacutesticas natildeo intriacutensecas ndash frequentemente mas nem
sempre presentes ndash satildeo (e) a crenccedila em uma concordacircncia fundamental entre vaacuterias
ou todas as tradiccedilotildees espirituais e (f) a ideia de uma transmissatildeo mais ou menos
secreta do conhecimento espiritual562
Conforme sugerido por alguns o paradigma de Faivre melhor se adequa agrave
filosofia hermeacutetica da Renascenccedila e ao contexto romacircntico-iluminista do final do
seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX563 De fato no que concerne ao ambiente renascentista a
560 AVERROacuteIS Discurso Decisivo IV No Artigo XVI Averroacuteis introduz os trecircs meacutetodos esclarecendo que cada
um eacute apropriado para determinada categoria da humanidade sendo o meacutetodo demonstrativo aplicado a um nuacutemero reduzido de pessoas (Artigo LII)
561 Jacques MATTER Histoire critique du gnosticisme et de son influence 1828 Menos de trecircs deacutecadas apoacutes ter sido empregado de forma ldquooficialrdquo na obra de Matter o substantivo ldquoesoterismordquo eacute reconhecido como uma nova palavra com direito a pertencer a um dicionaacuterio em 1852 atraveacutes do Novo Dicionaacuterio Universal de Maurice Lachacirctre onde eacute definido como ldquoa totalidade dos princiacutepios de uma doutrina secretardquo
562 Antoine FAIVRE Access to Western Esotericism 1994 pp10-15 Como aponta Hanegraaff (opcit p340) o valor heuriacutestico da definiccedilatildeo de Faivre eacute inegaacutevel e tem sido adotado por muitos estudiosos como ldquoo paradigma de Faivrerdquo
563 HANEGRAAFF opcit p 340
165
definiccedilatildeo acima condiz precisamente com a forma-pensamento de Pico della
Mirandola de acordo com os pontos destacados no decorrer desta tese Vejamos O
ponto lsquoarsquo referente agraves correspondecircncias invisiacuteveis entre as dimensotildees do cosmo
perpassa as vaacuterias obras de Pico encontrando-se seus sinais sobretudo no Heptaplus
no qual faz corresponder os vaacuterios reinos (ldquotudo que estaacute no mundo inferior estaacute nos
superiores de forma mais elevadardquo)564 A mesma profusatildeo de menccedilotildees se aplica ao
ponto lsquobrsquo sobre a percepccedilatildeo de uma natureza permeada pela presenccedila divina (ldquoo
mundo eacute uno na totalidade das suas partes por ser uno com o seu Autorrdquo)565 O ponto
lsquocrsquo que indica a utilizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeo religiosa para o acesso agraves realidades
intermediaacuterias eacute verificaacutevel nos exemplos de praacuteticas teuacutergicas oacuterficas e cabaliacutesticas
postuladas ndash sobretudo mas natildeo exclusivamente ndash nas Conclusiones O ponto lsquodrsquo
referente a um processo de transmutaccedilatildeo espiritual que reconecta o homem ao
divino eacute o tema fundamental da De Hominis Dignitate Quanto aos dois pontos natildeo
intriacutensecos tem-se no ponto lsquoersquo concernente agrave concordacircncia entre as tradiccedilotildees
espirituais a descriccedilatildeo do projeto de concoacuterdia que justamente se consagrou como o
principal interesse da vida de Pico por fim o ponto lsquofrsquo acerca da transmissatildeo secreta
do conhecimento espiritual eacute o tema desenvolvido neste trabalho Assim se
devecircssemos classificar a obra de Pico de acordo com os paracircmetros de Faivre os seis
itens acima a fariam constar perfeitamente entre os conteuacutedos esoteacutericos
Natildeo se encontra indicado no paradigma de Faivre contudo nem tampouco em
definiccedilotildees usuais acerca do esoterismo quais conteuacutedos devem ser preservados O
tipo de linguagem que demarca o motivo da transmissatildeo secreta apesar das
diferenccedilas de eacutepoca e estilo apresenta claras similaridades em seus usos muitas
vezes repetitivas conforme as palavras de Ascleacutepio ldquoaqueles que leratildeo meus livros
encontraratildeo uma composiccedilatildeo muito simples e clara enquanto ao contraacuterio essa eacute
obscura e esconde o sentido das palavrasrdquo em Clemente ldquoa verdade velada e oculta
estaraacute misturada com opiniotildees sobre Filosofiardquo em Del Medigo ldquoo meacutetodo
demonstrativo eacute impossiacutevel para as massasrdquo Pico absorvendo tais conteuacutedos os
utiliza de forma ampliada na Oratio tratando de Paulo escreve que o apoacutestolo
mantinha [tudo aquilo] ldquooculto do vulgordquo ldquoDioniacutesio Areopagita disse que os
misteacuterios mais secretos foram transmitidos de mente a mente sem escritosrdquo ldquoOrfeu
revestiu os misteacuterios dos seus dogmas com a veste das faacutebulasrdquo566 E acerca das
proacuteprias informaccedilotildees que iria transmitir o Mirandolano advertia que se fosse liacutecito
trazer a puacuteblico alguma coisa dos secretos misteacuterios o faria ldquosob o veacuteu do enigmardquo567
Observa-se que natildeo haacute menccedilatildeo aos conteuacutedos Em alguns casos esses nunca satildeo
revelados em outros apenas sugeridos Haacute no entanto alguns indiacutecios que apontam
para trecircs possiacuteveis conteuacutedos temaacuteticos a serem verificados a seguir
564 PICO Heptaplus p189 565 Ibid p383 566 As passagens da Oratio encontram-se respectivamente nas pgs 157 157 163 567 PICO Oratio p129
166
2 A Concordacircncia teleoloacutegica
Haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o Esoterismo e as tradiccedilotildees agraves quais Pico atribui
pontos de convergecircncia Colocado de outra forma os pontos de confluecircncia relativos
agraves tradiccedilotildees mencionadas na obra piquiana gravitam em torno a especiacuteficos nuacutecleos
de teor esoteacuterico Essa eacute a revitalizada intuiccedilatildeo do Autor que precede seu projeto de
Concoacuterdia Antes dele segundo sua proacutepria confirmaccedilatildeo outros jaacute haviam ingressado
em tal caminho Numecircnio tentara acordar bracircmanes magos egiacutepcios e hebreus
Moiseacutes Pitaacutegoras e Platatildeo Proclo apoacutes tentar a comunhatildeo entre Platatildeo e Aristoacuteteles
abordara a filosofia hieraacutetica atraveacutes de seus comentaacuterios a Orfeu tentando
comprovar a convergecircncia entre as doutrinas caldaicas oacuterficas hermeacuteticas e
platocircnicas568 As tentativas desses autores em concordar doutrinas aparentemente
dessemelhantes seguem um criteacuterio de escolha a partir do qual as escolas ou
doutrinas eleitas participam de meacutetodos de transmissatildeo sigilosa do conhecimento
provavelmente natildeo por coincidecircncia Dentre os diversos registros verificados seja
nas referecircncias esoteacutericas empregadas por seus antecessores seja naquelas
retomadas por Pico consegue-se identificar trecircs niacuteveis ou campos temaacuteticos de
utilizaccedilatildeo do segredo na transmissatildeo (1) o primeiro niacutevel caracteriza-se pela
necessidade de se proteger poderes empregados em atos de trocas entre os reinos (2)
o segundo niacutevel trata de informaccedilotildees referentes aos mundos intermediaacuterios
distribuiacutedos entre o sublunar e a Unidade (3) o terceiro niacutevel protege conteuacutedos
relacionados aos Princiacutepios ou ao Absoluto
1 No primeiro niacutevel o segredo protege os atos que envolvem as trocas
efetuadas entre o mundo sublunar e os supralunares por intermeacutedio de accedilotildees
humanas caracteriza-se portanto como um niacutevel ldquopraacuteticordquo Eacute o caso dos usos de
magia ou teurgia que envolvem ritos para atrair o descenso de forccedilas pertencentes a
esferas superiores dos sons utilizados nos Hinos oacuterficos para certas funccedilotildees dos usos
da Cabala Praacutetica da teurgia de Jacircmblico e Proclo dos rituais realizados nos
Misteacuterios menores para uma regeneraccedilatildeo psiacutequica transitoacuteria todos temas
abordados nos capiacutetulos anteriores Em ambiente hermeacutetico o Asclepius traz
referecircncias claras de praacuteticas para o descenso das forccedilas ndash como o apelo agraves almas dos
daimons e dos anjos para fazecirc-las morar em imagens sagradas de forma que tais
imagens pudessem ter a forccedila de fazer o bem e o mal569 ndash embora os meacutetodos em si
568 Pico teria lido sobre Numecircnio de Apameia em Euseacutebio (Prep Ev IX 7 XI 10 XII 5) conforme indicaccedilatildeo
do proacuteprio em seu prefaacutecio ao Heptaplus (a identificaccedilatildeo da obra de Euseacutebio encontra-se em GARIN 2001 n p 75 que a extraiu de ZELLER a Filosofia dos Gregos (1881) e de MATTER Histoire de lrsquoEacutecole drsquoAlexandrie (Paris 1848 vol III pp234-37) Acerca de Proclo suas reflexotildees encontram-se em Elementos de Teologia conforme Albano BIONDI Conclusiones Nongentae-Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pXXV
569 CORPUS HERMETICUM VIII 24 ed Nock-Festugiegravere 2005 pp557-559 ldquoNossos primeiros antepassados [] inventaram a arte de fazer deuses logo assim que os fizeram vincularam a eles uma virtude adequada inferida da natureza material misturando essa virtude com a substacircncia das estaacutetuas dado que natildeo podiam criar almas propriamente ditas e depois de invocarem as almas de daimons as introduziam em seus iacutedolos por meio de rituais santos e divinos de modo que esses iacutedolos tivessem o poder de fazer o bem e o malrdquo Ainda do ldquoLivro sagrado dedicado a Asclepiusrdquo (opcit 37 p583) ldquoTrata-se de estaacutetuas dotadas de uma alma conscientes cheias de sopro vital e que realizam um nuacutemero incalculaacutevel de prodiacutegios estaacutetuas que conhecem o futuro e o predizem atraveacutes das sortes da inspiraccedilatildeo profeacutetica dos sonhos e de muitos outros meacutetodos que enviam aos homens as enfermidades e as curam que concedem segundo nossos meacuteritos a dor ou a fortunardquo
167
sejam mantidos em segredo Plotino retomaria esse interesse como se lecirc em Eneacuteadas
IV ldquoos antigos saacutebios que quiseram os deuses presentes entre eles construindo-lhes
templos e estaacutetuas entenderam que eacute sempre faacutecil atrair a alma universal mas que eacute
particularmente trabalhoso mantecirc-la a menos que se construa algo afim e capaz de
receber-lhe a participaccedilatildeordquo pois ldquoa imagem figurada de uma coisa estaacute sempre
predisposta a sofrer a influecircncia da coisa copiada como um espelho capaz de
aprisionar a imagem que refleterdquo570 Os modelos hermeacutetico e plotiniano encontram
eco na concepccedilatildeo do bezerro de ouro da versatildeo de Alemanno vista na abordagem do
Heptaplus571
Amostras de correspondecircncias dentro desse campo de atuaccedilatildeo satildeo
apresentadas na obra piquiana na qual satildeo apontadas especiacuteficas similaridades entre
praacuteticas pertencentes a nuacutecleos distintos sobretudo nas teses que compotildeem os
uacuteltimos grupos de suas Conclusiones572 Em muitos casos as formas de magia ou
teurgia protegidas pelo segredo servem para ldquocasar o mundordquo e a partir de entatildeo
ldquoorganizar o caosrdquo como intuiu Pico em 1486573 Esse niacutevel de atuaccedilatildeo eacute via de regra
protegido por elevado grau de sigilo necessaacuterio para uma seguranccedila social ou legal
conforme a eacutepoca e a cultura ou para proteger certos tipos de conhecimento dos
perigos que podem desencadear em matildeos incautas Embora haja certas similaridades
entre algumas praacuteticas nesse niacutevel encontram-se maiores divergecircncias entre os
meacutetodos pelo fato de haver um distanciamento maior da Unidade
2 O segundo domiacutenio de registros esoteacutericos contempla o vasto campo
especulativo que trata da sistematizaccedilatildeo do mundo emanado ou da criaccedilatildeo do reino
da multiplicidade a partir da Unidade Embora distintos sistemas apresentem
diferenccedilas conceituais e lexicais verificam-se iacutentimas correspondecircncias no que
concerne aos niacuteveis de graduaccedilotildees entre os diferentes mundos que foram destacadas
e confirmadas ampla e repetidamente por Pico ndash que caracterizou esse estudo como
ldquometafiacutesica das formas inteligiacuteveis e angeacutelicasrdquo574 A obra piquiana mostra seu esforccedilo
para comprovar que concepccedilotildees teoreacuteticas distintas se conciliam em harmonia
Aquele que entre os cabalistas se chama Metatron eacute sem
duacutevida o que eacute denominado por Orfeo lsquoPallasrsquo por Zoroastro
lsquomente paternarsquo por Mercuacuterio lsquofilho de Deusrsquo por Pitaacutegoras
lsquosabedoriarsquo por Parmecircnides lsquoesfera inteligiacutevelrsquo575
570 PLOTINO Enneadi ed Giuseppe Faggin Bompiani Milano 2010 571 ALEMANNO Collectanaea Manuscrito de Oxford 2234 f 22v apud Moshe IDEL 2008b np 481 Na
concepccedilatildeo de Alemanno o preparo do bezerro de ouro por Moiseacutes eacute tido como necessaacuterio para o recebimento das emanaccedilotildees provenientes do descenso das forccedilas espirituais
572 Vejam-se algumas dessas correspondecircncias na uacuteltima parte do Capiacutetulo III 573 PICO Concl (II) IX 13 (p118) ldquoMagicam operari non est aliud quam maritare mundumrdquo 574 Cf Apologia p 29 ldquointeligibilibus angelicisque formis exactam methaphysicamrdquo 575 Concl (II) XI 10 (p128) ldquoIllud quod apud Cabalistas dicitur Hochmah illud est sine dubio quod ab
Orpheo Pallas a Zoroastre paterna mens a Mercurio dei filius a Pythagora sapientia a Parmenide sphera intelligibilis nominaturrdquo O termo Hochmah assim traduzido por Biondi e escrito no original em caracteres de provaacutevel hebraico foi traduzido por Farmer como Metraton seguindo a interpretaccedilatildeo de Wirszubski que afirma utilizar outras evidecircncias para tal conclusatildeo (cf FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses (1486) - The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 np 524) Optamos pela utilizaccedilatildeo de ldquoMetratonrdquo em nossa traduccedilatildeo ao portuguecircs em razatildeo de sua presenccedila em outras passagens de Pico Com
168
Em sua prospecccedilatildeo da metafiacutesica do Inteligiacutevel Pico identifica as Sefirot
cabaliacutesticas com os nuacutemeros pitagoacutericos e com as dez esferas da ordenaccedilatildeo hermeacutetica
ndash ldquomomentos sucessivos da expansatildeo da divindaderdquo ou ldquoatosrdquo com os quais Deus se
faz presente nas coisas576ndash concepccedilotildees que encontram sustentaccedilatildeo em sua tese
cabaliacutestica 36 ldquoDeus cobriu-se com dez vestimentas quando criou o mundordquo577 Tece
ainda paralelos entre os ldquodez vingadoresrdquo da teoria hermeacutetica e a maligna sequecircncia
denaacuteria da cabala (situada ldquodo lado esquerdordquo) sobre os quais Pico nada escreveu
ldquopor se tratar de um segredordquo578 Outra simetria eacute verificaacutevel entre certos graus
ldquofuncionaisrdquo contemplados no Hermetismo e na Cabala na teoria hermeacutetica da
ascensatildeo da alma pelas esferas a regeneraccedilatildeo da alma se daacute na oitava esfera
chamada ogdoaacutedica ndash relacionada ao nuacutemero oito ndash conforme se depreende do
Corpus Hermeticum XIII tambeacutem na Cabala existe essa concepccedilatildeo relacionada a
uma determinada Sefiraacute conforme estudo de Scholem579 Outra fonte utilizada por
Pico para compor suas correspondecircncias de estratos metafiacutesicos encontra-se nos
textos caldaicos que apresentam passagens com elaboraccedilotildees que unificam os vaacuterios
planos conforme pode ser lido na ordenaccedilatildeo dos Oraacuteculos Caldeus realizada por
Miguel Psello
Sustentam que haacute sete mundos reais um iacutegneo e primeiro trecircs
eteacutereos e trecircs materiais o uacuteltimo dos quais denominado
terrestre e inimigo da luz trata-se da regiatildeo sublunar que aleacutem
do mais encerra em si mesma a mateacuteria a que denominam
abismo [] Homenageiam certo Abismo paterno composto
pela triacuteade Pai Potecircncia e Intelecto Segue-se a Iynga inteligiacutevel
depois os Conectores (compostos de elementos iacutegneos eteacutereos e
materiais) depois os Teletarcas Em seguida os Pais Fontes
referecircncia agrave passagem em questatildeo observa-se que embora com nomenclaturas diferenciadas e pertinentes a cada respectiva tradiccedilatildeo Pico as faz corresponder em termos de posiccedilatildeo ou graduaccedilatildeo dentro do plano do Inteligiacutevel Sobre o mesmo tema Pico escrevera no Commento descrevendo como a mente criada procede do bem primeiro ldquoEssa primeira criatura eacute chamada seja pelos platocircnicos que pelos antigos filoacutesofos Mercuacuterio Trismegisto e Zoroastro ora filho de Deus ora sabedoria mente ou razatildeo divina o qual alguns interpretaram inclusive como Verbordquo (Commento sopra una canzona drsquoamore I 5 1942 p 466) Pico se preocupa em diferenciar a emanaccedilatildeo do primeiro princiacutepio com ldquoaquele que foi chamado por nossos teoacutelogos como lsquofilho de Deusrsquordquo ldquoEd abbi ciascuno diligente avvertenzia di non intendere che questo sia quello che darsquo nostri Teologi egrave detto figliuolo di Dio perchegrave noi intendiamo per il figliuolo una medesima essenzia col padre a lui in ogni cosa equale creatore finalmente e non creatura ma debbesi comparare quello che ersquo Platonici chiamano figliuolo di Dio al primo e piugrave nobile angelo da Dio creatordquo (idem)
576 Cf Cesare VASOLI in ldquoIntroduzionerdquo a Giovanni Pico della Mirandola (Garin 2011) Pico estabelece niacuteveis de correspondecircncias outrossim entre determinados niacuteveis angeacutelicos e certas potecircncias integrantes do Orfismo como pode ser verificado em anaacutelise de Paolo FORNACIARI (2001) ldquoSatildeo inteligecircncias angeacutelicas e divindades homoacutelogas em funccedilatildeo e poder pois entre outras coisas as Potestades satildeo uma lsquodisposiccedilatildeo angeacutelica de tipo intermediaacuterio que eacute purificada iluminada e aperfeiccediloada pelos esplendores da divindadersquo bem como os lsquoCuretirsquo indicados nos Hinos oacuterficos 31 e 38 Em ambos os casos satildeo entidades mediadoras entre o uno e o mundo sensiacutevel geralmente benignos embora com enorme poder sobre o qual o homem deve manter-se consciente e com temor reverencialrdquo
577 PICO Concl (II) XI 36 (p135) ldquo[] cur dicatur apud Cabalistas quod Deus induit se decem vestimentis quando creauit saeculumrdquo
578 PICO Concl (I) VIII 10 (p55) ldquo[] de quibus ego in cabalisticis conclusionibus nichil possui quia est secretumrdquo Na deacutecima tese hermeacutetica Pico denomina os dez vingadores de lsquomala coordinatiorsquo verdadeiras e proacuteprias entidades negativas que se apresentam como o espelho perverso das Sefirot como deduz FORNACIARI (2001)
579 Gershom SCHOLEM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition 1960
169
tambeacutem chamados de lsquoGuias do Mundorsquo sendo o primeiro deles
aquele que se costuma dizer lsquounitariamente mais distantersquo
Finalmente vecircm os trecircs Implacaacuteveis e por uacuteltimo lsquoaquele que
estaacute cercado por baixorsquo580
Embora possa ser tentador investigar os significados das concepccedilotildees
mencionadas buscando seu aprofundamento esse se mostraria um caminho longo e
desnecessaacuterio para o tema tratado O que se pretende relevar ndash aleacutem de expor alguns
exemplos que ilustram o domiacutenio tratado ndash eacute que muitos dos conteuacutedos pertinentes
agraves estratificaccedilotildees dos planos metafiacutesicos ndash niacutevel onde Pico encontra elaboraccedilotildees
espaciais em elevada conformidade ndash envolvem tradiccedilotildees que lidam com a
transmissatildeo esoteacuterica e que compotildeem um segundo tipo de caracterizaccedilatildeo temaacutetica
Esse gecircnero de conteuacutedo encontra mais transposiccedilotildees para a linguagem escrita do
que o modelo anterior e o seguinte apesar de suas abstraccedilotildees constituiacuterem em
muitos casos um veacuteu indecifraacutevel De fato natildeo obstante as temaacuteticas atinentes ao
movimento de criaccedilatildeo e estabelecimento dos graus do muacuteltiplo serem mais
facilmente encontradas em material escrito ndash e portanto menos protegidas pelo
segredo ndash a ocultaccedilatildeo de suas particularidades se daacute por meio do recurso a uma
linguagem miacutetica alegoacuterica ou obscura (fundada sobre semacircnticas e formas
linguiacutesticas diferenciadas conforme a tradiccedilatildeo)
3 O terceiro domiacutenio contemplado pelo Esoterismo inclui em caraacuteter
acessoacuterio as formas de proteccedilatildeo a praacuteticas iniciaacuteticas que visam suplantar estaacutegios do
mundo sensiacutevel e intelectual O tema da ascese em direccedilatildeo agrave Unidade integra as
doutrinas mencionadas na De Hominis Dignitate visitadas no Capiacutetulo IV eacute um dos
conteuacutedos principais tratados no Pimandro hermeacutetico (a ascese a partir ldquodo reino da
natureza e da morterdquo) eacute o objetivo dos atos de contemplaccedilatildeo almejados na Cabala
Extaacutetica As crenccedilas oacuterficas de retorno agrave Unidade apresentam claras analogias com a
soteriologia encontrada no Segundo Tratado hermeacutetico Trismegisto que passara
pela experiecircncia iniciaacutetica da regeneraccedilatildeo diz a seu filho Tat que o ldquohomem
renascido seraacute deusrdquo581 em evidente paralelismo com os dizeres encontrados na
lacircmina oacuterfica de Turi do seacuteculo IV aC ldquoAlegra-te por teres sofrido o que nunca antes
sofreste de homem nasceraacutes um deusrdquo582
Tais processos iniciaacuteticos que objetivam alcanccedilar o mais alto grau da divindade
devem ser vistos como caracteriacutesticas secundaacuterias ou acessoacuterias como acima
disposto A caracteriacutestica efetivamente preciacutepua do terceiro domiacutenio esoteacuterico
encontra-se na proteccedilatildeo ao nuacutecleo concernente agraves Causas Primeiras Em torno a essa
dimensatildeo verifica-se uma confluecircncia doutrinaacuteria observada e relatada por Pico o
580 Francisco Garcia BAZAacuteN ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus 1991 p18 Trecho extraiacutedo da Exposiccedilatildeo
Caldaica de Miguel Psello [42 (54)] que tivera contato com os Oraacuteculos atraveacutes dos textos de Proclo Psello e Plethon realizaram comentaacuterios extensos sobre os Oraacuteculos Caldeus e suas coleccedilotildees foram aumentadas por Franciscus Patricuis que em 1593 publicou em latim aquele conteuacutedo sistematizado em 324 oraacuteculos (Zoroaster et eius 320 Oracula Chaldaica) acrescentando-lhes conceitos de Proclo Heacutermias Simpliacutecio Damaacutescio entre outros Essa obra foi a base da classificaccedilatildeo feita por Thomas Taylor (The Chaldean Oracles London 1806)
581 Corpus Hermeticum XIII opcit p 379 582 Otto KERN Orphicorum Fragmenta fr32 c-f
170
uacuteltimo grau de ordenaccedilatildeo do sistema caldeu coincide com o que se verifica em textos
hermeacuteticos oacuterficos pitagoacutericos e neoplatocircnicos pode-se dizer que seus fins
convergem em direccedilatildeo agravequele nuacutecleo ndash identificado como ldquoiniacuteciordquo e ldquofimrdquo583 Assim
tambeacutem se averigua em outros nuacutecleos investigativos para a possibilidade de tal
ldquoencontrordquo se volta Clemente ao buscar sentidos natildeo literais nas Escrituras de forma
paralela em relaccedilatildeo ao mesmo material voltam-se os cabalistas em suas buscas
interpretativas e contemplativas ndash almejando alcanccedilar o estado de devekut (uniatildeo
com a Divindade)584 e em acircmbito misterioloacutegico esse eacute o propoacutesito para o qual se
dirigem as orientaccedilotildees relacionadas ao alcance da epopteia eleusina Sob registro
filosoacutefico Elia Del Medigo escrevera que o emprego do meacutetodo demonstrativo seria
capaz de comprovar princiacutepios fundamentais ndash por conduzir ao conhecimento das
coisas causadas ldquoe finalmente do Criadorrdquo585
Em torno aos Princiacutepios tem-se pois o norte de chegada das doutrinas
teoloacutegicas filosoacuteficas e algumas ritualiacutesticas partiacutecipes do projeto vislumbrado por
Pico conforme os vaacuterios exemplos apontados na Oratio Para esse fim Pico
direcionou suas principais reflexotildees de teor filosoacutefico que denominou ldquocausas das
coisasrdquo586 como verificaacutevel no De Ente et Uno no qual procurou dirimir o conflito
entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash conforme delineado na abordagem das fundamentaccedilotildees
filosoacuteficas do Autor no Capiacutetulo II Para fazer confluir as doutrinas dos dois
Filoacutesofos foi encetada uma discussatildeo em torno agravequela esfera Da mesma forma para
fazer convergir doutrinas como as caldaicas as pitagoacutericas e as neoplatocircnicas foram
observadas as relaccedilotildees das mesmas com as Causas Primeiras atraveacutes de seus
registros comprovou que os saacutebios caldeus acreditavam ldquoem um Princiacutepio uacutenico de
todas as coisasrdquo celebrando-o ldquocomo Uno e Bemrdquondash587 claro exemplo de uma
protologia natildeo desconhecida As linhas doutrinais percorridas na obra piquiana
partilham pois por vias singulares de concepccedilotildees similares em torno aos ldquofinsrdquo de
formas convergentes de comunhatildeo com a Unidade Nesse grau o sigilo estaacute sempre
presente e seus conteuacutedos quando transmitidos ocorrem apoacutes aacuterdua trajetoacuteria Ora
Pitaacutegoras quando ensinava a seus disciacutepulos natildeo lhes dava o poder de interpretar as
causas das coisas nos primeiros estaacutegios de suas especulaccedilotildees ele lhes ensinava
primeiramente a ldquociecircnciardquo somente no uacuteltimo grau de discipulado ndash o grau de
teleiotecircs correspondente ao telos ndash lhes eram reveladas as Causas os Princiacutepios588
Nesse niacutevel de especulaccedilatildeo por sua proximidade com a proacutepria Unidade muitas das
divergecircncias satildeo diluiacutedas podendo-se falar de uma concordacircncia teleoloacutegica
583 Eugenio Garin (2011 p149) amplia a rede de afinidades acrescendo aos acima mencionados elementos do
pensamento cristatildeo do gnosticismo do platonismo da miacutestica de Satildeo Joatildeo de Paulo e Nicolau de Cusa (apesar como enfatiza das iacutentimas divergecircncias entre cada uma dessas correntes)
584 Veja-se o Capiacutetulo V 585 Veja-se o Item 1 586 Cf Oratio p131 587 Francisco Garcia BAZAacuteN ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus opcit 1991 p18 Os Oraacuteculos Caldeus talvez
por terem tido entre um de seus primeiros comentadores o neopitagoacuterico Numecircnio apresentam muitos elementos pitagoacutericos como a colocaccedilatildeo de uma Mocircnada ndash ou princiacutepio de Unidade ndash no veacutertice das coisas e de uma Diacuteade como princiacutepio do muacuteltiplo
588 Veja-se nota sobre o tema no Item 3 Capiacutetulo IV Cf Jacircmblico Vita Pythagorica 71-72 Dioacutegenes Laeacutercio VIII 10
171
Qual a razatildeo para a natildeo divulgaccedilatildeo de questotildees conceituais referentes aos
uacuteltimos niacuteveis metafiacutesicos Para Oriacutegenes os misteacuterios das Escrituras estatildeo ocultos
sob um veacuteu de coisas ldquovisiacuteveisrdquo para proteger aqueles ldquoincapazes de suportaacute-losrdquo589
Segundo Abulafia ldquoa alma humana natildeo pode suportar o influxo direto da inteligecircncia
superior graccedilas a certos ldquonoacutesrdquo que a mantecircm atada agrave mateacuteriardquo Maimocircnides de
forma mais extrema dizia que a nocividade da sabedoria metafiacutesica requer sua
transmissatildeo em alegorias pois ldquoaqueles que tentam compreender seus segredos sem
a devida preparaccedilatildeo seratildeo destruiacutedosrdquo590 O que se depreende de vaacuterias passagens
desse gecircnero eacute que o movimento em direccedilatildeo agrave cognoscibilidade comporta
necessariamente a ocultaccedilatildeo de tudo aquilo que natildeo pode ser compreendido pelo
intelecto finito Em termos teoloacutegicos a divindade soacute pode ser apreendida atraveacutes de
uma paulatina revelaccedilatildeo de sua verdade Pico utiliza uma linguagem mais requintada
para referir-se agrave mesma condiccedilatildeo ldquoAs doutrinas sagradas estatildeo escondidas sob
termos populares como dentro de uma concha para que os olhos menos agudos natildeo
sejam ofuscados Trazem pois a luz para beneficiar aos satildeos mas a trazem escondida
e velada para natildeo ofender aos homens de vista fraacutegilrdquo591
O ldquoponto de chegadardquo sugerido na argumentaccedilatildeo proposta constitui uma
justificativa para a utilizaccedilatildeo de categorias esoteacutericas Tal dimensatildeo natildeo se configura
como um patamar atingiacutevel por especulaccedilotildees filosoacuteficas As aporias encontradas ao
final de um percurso dialeacutetico natildeo se resolvem por aproximaccedilotildees da razatildeo mas pela
ocupaccedilatildeo de um espaccedilo proacuteprio caracterizado por todas as tradiccedilotildees que tratam com
fenocircmenos iniciaacuteticos Vislumbra-se pois a existecircncia de um ldquoabismordquo ndash um
ldquoespaccedilordquo entre o muacuteltiplo e o Uno natildeo ultrapassaacutevel por procedimentos intelectuais
ndash sugerido ou subentendido pelas formas linguiacutesticas utilizadas nas tradiccedilotildees
esoteacutericas Pico tentara elucidar a concepccedilatildeo ldquoo abismo eacute a capacidade inteligiacutevel no
profundo pois penetrante e perscrutadora acima dessa encontra-se a escuridatildeo ateacute
que seja iluminada pelos raios das cogniccedilotildees espirituaisrdquo592 Quando o intelecto se
apaga quando a escada utilizada para elevar-se eacute abandonada a funccedilatildeo da miacutestica eacute
entatildeo exercida aquele espaccedilo eacute alcanccedilaacutevel atraveacutes das transformaccedilotildees do miacutestico
que decorrem de seu contato com a divindade ndash as denominadas proteccedilotildees
ldquoacessoacuteriasrdquo dentro dos modelos apresentados de Esoterismo A forma de alcanccedilar tal
fim havia sido ademais sinalizada na Oratio dos trecircs niacuteveis supra-humanos aos
quais o homem pode elevar-se o niacutevel celeste eacute acessiacutevel pela razatildeo o niacutevel angeacutelico
pela dialeacutetica que permite o alcance do Inteligiacutevel o uacuteltimo niacutevel de conhecimento
do Absoluto ou da ldquounidade do espiacuterito com Deusrdquo poderaacute ser alcanccedilado atraveacutes do
589 Apud BLACK op cit pp103-104 590 MAIMOcircNIDES Dux neutrorum (Guia dos Perplexos) III 54 apud Naomi GOLDFELD Elia del Medigo e
lrsquoaverroismo hebraico in BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 45 Maimocircnides nessa passagem refere-se ao relato da entrada de quatro rabinos no Pardes nem todos preparados para receber ldquoa verdaderdquo conforme sua leitura do Talmud Babilocircnico Hagigah 15a
591 PICO Heptaplus P1 p180 ldquoNos credere possumus satisfactum rudibus auditoribus si lumen scientiae quod introspicerent sapientes crassioribus verbis quasi cornea texta circumdatum obduxerit ne hebetiores inde Oculi perstringerentur Attulerit ergo lumen ut sanis oculis proforet inclusum tamen et velatum attulerit ne lippientibus officeretrdquo
592 Heptaplus III p253 ldquoAbyssus intellectualis proprietas est profunda quaeque penetrans et perscrutans Super hanc tenebrae sunt donec spiritalium notionum quibus omnia videt et intuetur radiis non illustraturrdquo
172
processo asceacutetico que reconduz ao ldquocentro da proacutepria unidaderdquo593 Haacute pois uma
dimensatildeo natildeo ultrapassaacutevel para a qual a Theoriacutea594 conduz por intermeacutedio de suas
filhas a Filosofia e a Teologia a uacutenica forma de ir aleacutem eacute atraveacutes do ecircxtase miacutestico
situaccedilatildeo extrema apontada em vaacuterias das tradiccedilotildees pelas quais Giovanni Pico
transitou e para a qual encetou sua proacutepria reflexatildeo
3 A Morte do Beijo
Um dos pontos mais elevados da reflexatildeo piquiana encontra-se no recurso de
conceituaccedilatildeo biacuteblico-cabaliacutestica referente agrave ldquomors osculirdquo ldquomorte do beijordquo uma das
possiacuteveis definiccedilotildees do ecircxtase miacutestico O tema trata de uma relaccedilatildeo extaacutetica em que
dois amantes um terreno e outro celeste alcanccedilam a comunhatildeo A concepccedilatildeo
(poeacutetica miacutestica e filosoacutefica)595 descreve a morte figurada que ocorre por ocasiatildeo da
separaccedilatildeo da alma dos acidentes do mundo sensiacutevel quando essa se vecirc colhida em
um transporte transcendente simbolizado pela troca do beijo miacutestico O tema eacute
sintetizado por Pico nas teses cabaliacutesticas 11 e 13 ldquosecundum opinionem propriamrdquo e
ampliado no Commento sopra una canzona drsquoamore composta da Girolamo
Benivieni Conforme a conclusio cabalistica 11
O modo atraveacutes do qual as almas racionais satildeo sacrificadas a
Deus por intermeacutedio do Arcanjo natildeo especificado pelos
Cabalistas somente ocorre por via da separaccedilatildeo da alma do
corpo natildeo do corpo da alma exceto por acidente como
acontece na Morte do Beijo sobre a qual estaacute escrito lsquoPreciosa
na presenccedila do Senhor a morte de seus santosrsquo596
O fenocircmeno da separaccedilatildeo da alma do corpo conforme acima mencionado eacute
melhor descrito no Commento ldquoAgraves vezes se diz que a alma estaacute separada do corpo
mas natildeo o corpo dela e isto eacute quando cada uma das forccedilas da alma exceto a que o
corpo nutre chamada vegetativa estaacute ligada mas natildeo opera em nada como se natildeo
593 PICO Oratio p107 ldquo[] in unitatis centrum suae se receperit unus cum Deo spiritus factus in solitaria
Patris caliginerdquo 594 O termo se adequa agrave concepccedilatildeo grega do vocaacutebulo θεωρία ldquoespeculaccedilatildeo ou vida contemplativardquo conforme a
tradiccedilatildeo pitagoacuterica 595 A colocaccedilatildeo eacute de Paolo Fornaciari que adiciona a qualificaccedilatildeo ldquoplatocircnicardquo ao conteuacutedo O comentador
considera a recuperaccedilatildeo dessa ldquoverdadeira hierogamiardquo um dos aportes mais originais que Pico empresta da Cabala ao Cristianismo um dos instrumentos mais eficazes de sua tatildeo almejada ascensatildeo agrave pax unificardquo (FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 pp24-25)
596 Concl II XI 11 p128 ldquoModus quo rationabiles animae per archangelum Deo sacrificantur qui a Cabalistis non exprimitur non est nisi per separationem animae a corpore non corporis ab anima nisi per accidens ut contigit in morte osculi de quo scribitur lsquopraeciosa in conspectu domini mors sanctorum eiusrsquordquo Pico extrai o uacuteltimo trecho de Salmos 116 15-16 Como ajuiacuteza Paolo FORNACIARI (ibid np41) a ldquomorte do beijordquo em latim ldquomors osculirdquo em hebraico ldquomytat benesiqahrdquo eacute um tiacutepico exemplo de cruzamento entre temas platocircnicos [que podem ser melhor depreendidos da leitura do Commento] e cabaliacutesticos A relaccedilatildeo extaacutetica eacute tambeacutem retratada no Cacircntico dos Cacircnticos entre Salomatildeo e sua amada que a leitura anagoacutegica identifica como Deus e sua relaccedilatildeo com Israel inteiramente de acordo com o tema cabaliacutestico do matrimocircnio miacutestico entre a sefiraacute Yesod (o fundamento mas tambeacutem a virilidade) e Knesset Israrsquoel (a comunidade dos fieacuteis) (ibid p24)
173
estivesse em nadardquo Tal situaccedilatildeo ocorre continua o texto quando a parte intelectual ndash
chamada por Pico ldquorainha da almardquo ndash estaacute em ato e operante natildeo sofrendo em si o
ato de qualquer outra potecircncia597 Essa condiccedilatildeo entre a alma e o corpo eacute chamada
ldquoprimeira morterdquo598
Atraveacutes da primeira morte que eacute a separaccedilatildeo apenas da alma do
corpo e natildeo o contraacuterio a amada Vecircnus celestial poderaacute
portanto ver o amante e esse estar face a face com ela
contemplando sua imagem divina e com seus olhos purificados
assim se alimentar599
O amante representa a mente600 ou a parte intelectual da alma que se une
ldquoem amorrdquo com algum niacutevel natildeo esclarecido do Inteligiacutevel Pico chama ainda a
atenccedilatildeo para o fato de o eventual ecircxtase alcanccedilado envolver o risco de uma segunda
morte a final A excessiva prolongaccedilatildeo do estado de ecircxtase marca um dos eventos
capazes de ocasionar a segunda morte ldquose muito se fortalecer e prolongar a operaccedilatildeo
intelectual eacute necessaacuterio que desta uacuteltima parte vegetativa a alma tambeacutem se separe
de forma que ela do corpo e o corpo dela sejam separadosrdquo Haacute outra forma de
deflagrar a segunda morte indicada no Commento atraveacutes de uma obscura
advertecircncia em relaccedilatildeo a outro tipo de relaccedilatildeo que o praticante possa pretender ldquoE
note-se que a uniatildeo mais perfeita e iacutentima que o amante possa ter com a amada
celestial eacute denotada pela uniatildeo do beijo porque qualquer outro congresso ou coacutepula
usado no amor corporal natildeo eacute liacutecito usar em qualquer forma de transfiguraccedilatildeo601
neste santo e sagradiacutessimo amorrdquo602 Em caso de tal pretensatildeo o Autor daacute a entender
que a segunda morte pode ser almejada
Quem ainda mais intrinsecamente quiser possuiacute-la e natildeo
contente em vecirc-la e ouvi-la quiser ser digno dos seus abraccedilos
iacutentimos e beijos anelantes deve separar-se de si mesmo
totalmente atraveacutes da segunda morte do corpo e entatildeo natildeo soacute
ver e ouvir a Vecircnus celestial mas com um noacute indissoluacutevel
abraccedilaacute-la e com beijos de um ao outro sua proacutepria alma
597 A uacutenica potecircncia que ainda pode operar na alma nesse estado acresce Pico ldquoeacute a potecircncia nutritiva cujas
operaccedilotildees por seu grande distanciamento da alma natildeo satildeo de todo anuladas por seus atos embora muito debilitadasrdquo (Commento pp557-558)
598 Como informa Giulio BUSI (Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 p66) a ldquoprimeira morterdquo do corpo no leacutexico neoplatocircnico eacute o resultado do encaminhar-se em um percurso contemplativo que leva agrave morte figurada ou filosoacutefica
599 Commento p557 O texto original natildeo foi escrito em latim mas em italiano ldquoPuograve dunque per la prima morte che egrave separazione solo dellrsquoanima dal corpo e non per lrsquoopposito vedere lo amante lrsquoamata venere celeste e a faccia a faccia con lei ragionando della divina immagine sua ersquo suoi purificati occhi felicemente pascererdquo
600 Cf nota de Eugenio Garin agrave sua traduccedilatildeo do Commento (1942 np 557) 601 No texto original a palavra utilizada eacute lsquotraslazionersquo que Garin corrige em nota agrave traduccedilatildeo como
lsquotransunzionersquo (ed Vallecchi 1942 p 558) 602 Commento pp557-558 ldquoE nota che la piugrave perfetta e intima unione che possa lrsquoamante avere della celeste
amata si denota per lrsquounione del bacio perchegrave ogni altro congresso o copula piugrave in lagrave usata nello amore corporale non egrave licito per alcuno modo per traslazione alcuna usare in questo santo e sacratissimo amorerdquo
174
transfigurar estando tatildeo perfeitamente unidas que ambas
podem ser chamadas de uma soacute alma603
Nas Conclusiones Pico retoma a questatildeo da segunda morte do corpo dessa
vez em razatildeo de algum tipo de imperiacutecia praticado durante o ldquointercursordquo O preccedilo a
pagar estaacute bem expresso na conclusio cabalistica 13
Quem operar em Cabala sem a presenccedila de algum estranho se
exporaacute agrave binsica [Morte do Beijo] caso se prolongue muito no
trabalho E se cometer erros durante o trabalho ou se
aproximar deste sem a devida purificaccedilatildeo seraacute devorado por
Azazel de acordo com suas proacuteprias regras de justiccedila604
O Commento natildeo ultrapassa essas poucas indicaccedilotildees e seu autor deixa claro
que ldquonatildeo lereis nada a mais em seus livros [dos cabalistas] a natildeo ser que binsica isto
eacute a morte do beijo ocorre quando a alma no rapto intelectual se une agraves coisas
separadas e do corpo elevada em tudo o abandonardquo605 Provavelmente Pico obteve as
referecircncias sobre a Morte do Beijo atraveacutes de suas leituras de Maimocircnides que no
final do seacuteculo XI havia retomado do Talmud o tema do beijo divino oferecendo no
Guia dos Perplexos uma profunda exegese do assunto relacionando o uacuteltimo
intercurso ao desvanecimento do corpo na velhice condiccedilatildeo necessaacuteria para que o
impulso vital se transformasse em ldquopuro pensamentordquo606 Ou pode ter lido sobre o
assunto em Menachem Recanati outra de suas fontes que acerca do binsica elaborou
uma ldquoviagem extrema e alienanterdquo607 tendo legado um passo importante por
descrever de forma bastante detalhada o percurso miacutestico que pode conduzir ao
beijo beatificante e letal
Os padres morriam de um beijo Quando os pios e os homens de
accedilatildeo se encontravam em solidatildeo e imersos nos segredos
supernos a faculdade imaginativa de seus pensamentos fazia
que as coisas se mostrassem como gravadas perante eles E
603 Commento p557 ldquoma chi piugrave intrinsicamente ancora la vuole possedere e non contento del vederla e
udirla essere degnato dersquo suoi intimi amplessi e anelanti baci bisogna che per la seconda morte dal corpo per totale separazione si separi e allora non solo vede e ode la celeste Venere ma con nodo indissolubile a lei srsquoabbraccia e con baci lrsquouno in lrsquoaltro la propia anima trasfudendo non tanto cambiano quelle quanto che sigrave perfettamente insieme si uniscono che ciascheduna di loro dua anime e ambedue una sola anima chiamare si possonordquo
604 Concl II XI 13 p128 ldquoQui operatur in Cabala sine admixtione extranei si diu erit in opera morietur ex binsica et si errabit in opere aut non purificatus accesserit deuorabitur ab Azazele per proprietatem iudiciirdquo Conforme FORNACIARI (2009 np42) para atingir o estado de ldquobinsicardquo ou a ldquomorte do beijordquo a alma racional que aspira agrave separaccedilatildeo da alma do corpo deve encontrar-se soacute Azazel na demonologia cristatilde eacute uma das sete epifanias do lado maligno Provavelmente Pico tomou o conceito de Azazel de Abulafia e de seu comentaacuterio ao Guia dos Perplexos de Maimocircnides que lhe foi traduzido por Mitridate
605 Commento p558 ldquonegrave piugrave nersquo loro libri leggerai se non che binsica cioegrave morte di bacio egrave quando lrsquoanima nel ratto intellettuale tanto alle cose separate si unisce che dal corpo elevata in tutto lrsquoabbandonardquo O Binsica que fecha o Commento eacute na opiniatildeo de BUSI (2014 p68) o mais afortunado entre os hiacutebridos piquianos retomado posteriormente por renomados como Baldassare Castiglione e Giordano Bruno Na continuidade da passagem Pico narra que os cabalistas mencionam que alguns de seus padres ldquomorreram de binsica como eacute o caso de Abraatildeo Jacoacute Moiseacutes Aaron Maria e alguns outrosrdquo Pico provavelmente extrai isso do Talmud da Babilocircnia que apresenta passos com essas menccedilotildees
606 BUSI opcit 2014 p69 607 Cf traduccedilatildeo de Giulio Busi 2014 p70
175
enquanto uniam suas almas agrave alma superior as coisas se
multiplicavam e se revelavam da fonte do pensamento como
quem abre uma cisterna drsquoaacutegua que comeccedila a fluir O
pensamento unido eacute de fato como fonte e cisterna que natildeo se
exaure [] Graccedilas agrave uniatildeo do pensamento com a emanaccedilatildeo as
palavras se multiplicam e crescem e surgem na alegria Por isso
foi ensinado que lsquoa Sekinah natildeo se manifesta na indolecircncia mas
na alegriarsquo608
As vaacuterias faces do misticismo de Giovanni Pico devem ser unificadas a partir
de evidecircncias amplamente dispersas nas Teses e confirmadas por discussotildees
retomadas em outras obras O tema da ascensatildeo miacutestica que ocorre antes da uniatildeo
extaacutetica sugerida pela imagem da Morte do Beijo eacute tambeacutem desenvolvido no
Commento Em uma interpretaccedilatildeo pessoal da tradicional escada platocircnica do
amor609 Pico relata a ascensatildeo em sete passos que envolvem uma progressatildeo ao
conhecimento ndash ldquoconhecimento reflexivordquo em seus termos ndash com a gradual
transformaccedilatildeo aniacutemica do sensual para o racional e sucessivamente para as
faculdades inteligiacuteveis Nos uacuteltimos graus de ascese o quinto e o sexto a alma
alcanccedila a ldquoVecircnus celestialrdquo (o inteligiacutevel ou a mente angeacutelica) que se lhe revela em sua
proacutepria imagem ndash embora ainda natildeo com a ldquoplenitude total de sua belezardquo pois que
esta natildeo pode ser apreendida pelo intelecto particular ou ldquoparcialrdquo da alma Assim
atraveacutes do amor a alma une seu intelecto parcial ao inteligiacutevel universal a ldquoprimeira
das criaturas a uacuteltima e universal hospedagem da beleza idealrdquo610
O seacutetimo passo da exposiccedilatildeo piquiana contempla o termo da trajetoacuteria um
estado de quietismo sugerido pela suacutebita mudanccedila de paradigma de linguagem ndash de
ativa durante o processo intelectual para passiva ao descrever o estaacutegio mais
elevado da ascensatildeo miacutestica ndash como bem observou Stephan Farmer611 ao final de seu
percurso quando o homem nada mais pode alcanccedilar por meio de seus proacuteprios
recursos a alma eacute ldquoatraiacutedardquo ldquopossuiacutedardquo ldquointoxicadardquo ldquoconsumidardquo ldquoinspiradardquo
ldquoiluminadardquo ldquoaperfeiccediloadardquo e finalmente ldquofelicitadardquo por Deus Em tal ponto
608 Menachem RECANATI Bersquour lsquoal ha-Torah Lemberg Wa-yehi 1880-81 c37d apud BUSI 2014 p70 A
fonte agrave qual Recanati recorre para dar um conteuacutedo teoacuterico agrave passagem eacute Azriel de Gerona atraveacutes de seu Comentario agraves aggadot talmuacutedicas A concepccedilatildeo de Sekinah estaacute relacionada com a ideia de contraccedilatildeo da Presenccedila Divina presente na literatura midraacuteshica conforme verificado no Capiacutetulo V Aqui quer significar o espaccedilo da emanaccedilatildeo divina Maiores detalhes podem ser vistos em BUSI 2011 p21
609 Cf FARMER opcit p110 610 Commento pp 567-569 Pico remete-se ao Banquete e ao Fedro para efetuar sua exposiccedilatildeo conforme sua
proacutepria indicaccedilatildeo (ibid p567) No primeiro dos sete passos de sua progressatildeo ao conhecimento a beleza particular de um objeto eacute percebida pelos sentidos e eacute desejada por si mesma No segundo passo a beleza sensual eacute abstraiacuteda pela capacidade inerente agrave alma embora ainda permanecendo distante de sua origem No terceiro passo a alma ldquoconsidera a proacutepria natureza da beleza corporal em si mesmardquo contemplando a ldquobeleza universal de todos os corpos compreendidos em conjuntordquo A beleza corpoacuterea desempenha um papel apenas nesses trecircs primeiros passos No quarto passo a alma conclui que a visatildeo da beleza corpoacuterea universal natildeo procede de um objeto exterior sensiacutevel mas de sua proacutepria luz e poder intriacutensecos e assim transformando-se em si mesma vecirc a imagem de beleza ideal que participa do intelecto No quinto passo fundamentando-se no conhecimento ldquoreflexivordquo a alma se eleva de sua parte racional para sua parte intelectual permitindo-se acolher a ldquoVecircnus celestialrdquo em sua proacutepria imagem Por fim a alma se une ao intelecto universal atraveacutes do amor A realizaccedilatildeo dessa uniatildeo na sexta etapa conclui sua jornada pois natildeo lhe eacute permitido ir mais longe no seacutetimo grau ndash no qual deve descansar com alegria ao lado do primeiro Pai a fonte da beleza
611 FARMER pp39 ss 112
176
terminal Pico faz convergir o percurso filosoacutefico com a experiecircncia religiosa ao
sugerir que no cume do processo gnosioloacutegico do homem ndash que atribui aos
platocircnicos chamar de ldquounidade da almardquo ndash a alma ldquose une imediatamente a Deusrdquo612
De suas leituras socraacuteticas apreendera que o ecircxtase miacutestico era comparaacutevel ao
reencontro com a eternidade inteligiacutevel em um estado de contemplaccedilatildeo que sacia a
alma e a coloca frente a frente com a plenitude de cada realidade613 Concepccedilatildeo
similar fora descrita em termos religiosos na De Hominis Dignitate na qual se lecirc
que em seu estado miacutestico mais elevado o homem eacute ldquofeito um soacute espiacuterito com Deusrdquo
deixando de ser ele mesmo e passando a ser ldquoAquele mesmo que o fezrdquo614
A concepccedilatildeo da Morte do Beijo pode ser tomada como um bom modelo do
ldquofimrdquo ndash temporaacuterio na ldquoprimeira morterdquo ou definitivo na ldquosegundardquo ndash para o qual
convergem muitas das argumentaccedilotildees piquianas de teor esoteacuterico Tal concepccedilatildeo de
caraacuteter precipuamente teoloacutegico coaduna-se com o seacutetimo grau do percurso
filosoacutefico dialeacutetico postulado no Commento estaacutegio que fora sinteticamente exposto
na Conclusio 58 in doctrina Platonis
A caccedilada de Soacutecrates[] pode ser adequadamente dividida em
seis graus o primeiro eacute a existecircncia de mateacuteria externa o
segundo a existecircncia particular imaterial o terceiro a existecircncia
universal o quarto a existecircncia racional o quinto a existecircncia
inteligiacutevel particular o sexto a existecircncia inteligiacutevel total No
seacutetimo grau eacute preciso desistir da caccedilada615
612 Commento p479 ldquoel sommo di questa parte intellectiva chiamano ersquo Platonici unitagrave della anima [hellip]rdquo 613 Nicolas GRIMALDI Soacutecrates o Feiticeiro pp57-58 60-61 Haacute vaacuterias passagens nas quais Soacutecrates tece
analogias entre o ecircxtase miacutestico e o reencontro da alma com o Inteligiacutevel As analogias se relacionam ao deliacuterio amoroso (Fedro 265 a-b) ao deliacuterio poeacutetico (Iacuteon 534 b-d) e tambeacutem ao deliacuterio loacutegico mesmo que ldquoem estado de deliacuteriordquo deve haver juacutebilo ldquoem sentir-se arrebatado pela eternidaderdquo (Feacutedon 69 c-d)
614 Oratio pp123-125 615 PICO Conclvsiones II V 58 (grifo nosso) ldquoVenatio illa Socratis de qua in Protagora conuenienter per sex
gradus potest sic distribui ut primus sit esse materiae extrinsecae secundus esse particulare immateriale tertius esse uniuersale quartus esse rationale quintus esse particulare intellectuale sextus esse totale intellectuale in septimo tanquam in sabbato cessandum est a uenationerdquo Eugenio Garin ao rodapeacute da passagem corrige ldquointelectualrdquo utilizado por Pico por ldquointeligiacutevelrdquo O tema eacute extraiacutedo do Protaacutegoras (321 b ss) conforme informado pelo proacuteprio Pico na mencionada passagem
177
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
As obras de Pico della Mirandola analisadas ndash Conclusiones Nongentae De
Hominis Dignitate e Heptaplus ndash embora bastante distintas em termos de forma
conteuacutedo e propoacutesito apresentam em comum um amplo emprego de referecircncias
retiradas de doutrinas que se perpetuaram atraveacutes do Esoterismo Os elementos
pertinentes a esse campo coletados nas trecircs obras evidenciam que as reflexotildees do
Autor se apropriam daqueles conteuacutedos reutilizando-os em formas hermenecircuticas
proacuteprias Conforme o intento proposto para esta tese foram identificadas tais
referecircncias cuja inserccedilatildeo em meio agraves argumentaccedilotildees se faz de forma fluiacuteda sem
instituir contrastes com categorias do universo filosoacutefico A verificaccedilatildeo de constantes
repeticcedilotildees desses modelos permite que seu conjunto seja estabelecido como uma
categoria proacutepria do pensamento piquiano Um objetivo secundaacuterio foi mostrar que o
recrutamento de tais elementos mostra-se no decorrer da leitura das obras uma
condiccedilatildeo essencial para o alcance de suas siacutenteses
A anaacutelise das Conclusiones realizada no Terceiro Capiacutetulo permitiu que
algumas constataccedilotildees fossem dispostas Entre o conglomerado de sistemas presentes
na obra foi visto que alguns temas despertam maior interesse do Autor vindo a se
condensar nas teses que integram os uacuteltimos grupos da obra Embora natildeo
apresentadas em formato argumentativo as teses dos quatro uacuteltimos grupos (que
tratam de doutrinas maacutegicas oacuterficas caldaicas e cabaliacutesticas) apresentam em seu
conjunto um postulado doutrinaacuterio de acentuado tom esoteacuterico cujos indiacutecios
conceituais satildeo verificaacuteveis no percurso das demais obras piquianas O mesmo
Capiacutetulo expotildee especiacuteficas teses de cunho teoloacutegico-cristatildeo que poderiam soar
estranhas dentro de uma investigaccedilatildeo que tem por objetivo tratar da utilizaccedilatildeo de
paradigmas esoteacutericos Essa abordagem mostrou-se uacutetil por permitir evidenciar
primeiramente que o Pico que se aproxima de teologias natildeo-cristatildes o faz como
algueacutem em posse de efetivo conhecimento daquele campo em segundo lugar a
verificaccedilatildeo do material teoloacutegico permitiu a discussatildeo da relaccedilatildeo feacute-razatildeo no
pensamento piquiano necessaacuteria para a compreensatildeo da teleologia envolvida em sua
busca por convergecircncias doutrinaacuterias A partir dessa abordagem foi possiacutevel
constatar que a visatildeo piquiana de religiatildeo estaacute relacionada em um primeiro
momento a uma busca racional (pois ldquoa feacute que eacute simples disposiccedilatildeo a crer eacute inferior
agrave razatildeordquo) busca essa que no entanto deve ser abandonada em seu uacuteltimo estaacutegio
(pois ldquoa feacute verdadeira eacute superior ao intelecto conjugando-nos imediatamente a
Deusrdquo)
Na De Hominis Dignitate tratada no Quarto Capiacutetulo verificou-se que a
concepccedilatildeo de dignidade do homem em Pico eacute diretamente relacionada agrave ideia de
transcendecircncia de cada um de seus princiacutepios ndash vegetal animal racional intelectual
ndash apontando em direccedilatildeo agrave necessidade de exerciacutecios para a efetivaccedilatildeo de sua
liberdade ndash condiccedilatildeo que capacita o homem a encetar um percurso de auto
178
transformaccedilatildeo Assim o apregoado processo de transmutaccedilatildeo atraveacutes do qual o
homem inferior eacute regenerado e reconectado com o divino eacute entendido pelo Escritor
como um caminho a ser percorrido com o auxiacutelio de corretas ferramentas Os sete
modelos de processos triaacutedicos examinados extraiacutedos de registros histoacutericos
defendidos na obra ndash a dialeacutetica platocircnica o modelo angeacutelico pseudo-dionisiacuteaco a
misteriologia grega os paradigmas miacuteticos de Dioniso e Osiacuteris a representaccedilatildeo do
tabernaacuteculo da tradiccedilatildeo hebraica as praacuteticas asceacuteticas pitagoacutericas e a misteriologia
caldaica ndash fundamentam-se na tradiccedilatildeo oral ou na utilizaccedilatildeo de formas de linguagem
enigmaacuteticas que encobrem seus verdadeiros significados Os sete paradigmas de
trajetoacuterias asceacuteticas apontam na uacuteltima etapa para a experiecircncia de encontro com
um centro de unidade termo da trajetoacuteria em que o movimento asceacutetico atinge o
Absoluto
O mesmo fim eacute postulado atraveacutes do seacutetuplo meacutetodo de interpretaccedilatildeo proposto
por Pico no Heptaplus que representa uma clara indicaccedilatildeo de preparaccedilatildeo do homem
ndash no qual se encerra um princiacutepio metafiacutesico de contenccedilatildeo de todos os niacuteveis de
realidade ou dos Mundos analogados na obra ndash que culmina em sua unificaccedilatildeo com
o divino O Sexto Capiacutetulo testifica que para erigir seu projeto de teoria global de
representaccedilatildeo do mundo o Autor recruta registros que se fundamentam sobre
transmissotildees orais a comprovaccedilatildeo de idoneidade de Moiseacutes principal alicerce
referencial sobre o qual se edifica o projeto do Heptaplus eacute concebida a partir de
testemunhos retirados em sua totalidade de fontes esoteacutericas ndash ou tidas como
esoteacutericas ndash como os Misteacuterios gregos e egiacutepcios o pitagoacuterico Hermipo Pseudo-
Dioniacutesio os disciacutepulos de Amocircnio e ainda Platatildeo Jesus e seus disciacutepulos Paulo e
Joatildeo Satildeo assim utilizados mais uma vez paracircmetros utilizados em obras
anteriores ndash nesse caso para defender a autoridade de Moiseacutes paradigma essencial
em sua representaccedilatildeo do ser que alcanccedilou o uacuteltimo estaacutegio de uniatildeo com o divino
No uacuteltimo Capiacutetulo argumentou-se que o apelo a uma dimensatildeo alcanccedilada por
intermeacutedio de uma experiecircncia miacutestica pessoal eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para que se
alcance o ldquofimrdquo apregoado nas obras piquianas Em De Ente et Uno Pico havia
refletido que soacute a razatildeo natildeo seria garantia de obtenccedilatildeo de qualquer resposta
postulando a impossibilidade de se colher Deus com o simples recurso do intelecto
ldquoo homem enquanto criatura racional se debate em vatildeo entre a necessidade de
afirmar a unidade que sente em sua proacutepria raiz e a impossibilidade derivada de sua
mesma subsistecircncia como natureza racional de alcanccedilaacute-la mantendo-se ele mesmordquo
Deparar-se com o abismo que o separa da Divindade mostra-se inevitaacutevel O ecircxtase
miacutestico eacute um caminho que possibilita realizar tal travessia A linguagem miacutetica ou
alegoacuterica por sua vez natildeo apenas protege tal dimensatildeo iniciaacutetica como permite a
apreensatildeo intelectual de tal fenocircmeno A Morte do Beijo a epopteia eleusina a visatildeo
de Moiseacutes no Sinai a illuminatio angeacutelica a contemplaccedilatildeo do ldquosol do meio-diardquo
agostiniano o devekut cabaliacutestico representam momentos de unidade temporaacuteria ndash
a ldquoprimeira morterdquo descrita por Pico ndash que espelham a dissoluccedilatildeo na Unidade final
179
Apesar de aparentemente fragmentaacuteria a obra de Giovanni Pico acolhe torna
suas e finalmente refaz sob outros prismas as perguntas filosoacuteficas mais difiacuteceis A
sua tentativa de obter respostas eacute ampliada pelo acreacutescimo de um novo paradigma
categorial Mais do que isso a utilizaccedilatildeo da categoria esoteacuterica torna-se condiccedilatildeo
absolutamente necessaacuteria para o alcance do fim apontado em suas obras Resta
pontuar que o conjunto da obra piquiana natildeo se mostra algo distante pois de fato ali
estaacute relatada natildeo uma meta atingida mas uma perene busca Esse caminho encontra-
se descrito no De Ente et Uno qual uma previsatildeo pessoal natildeo intencional na qual o
Autor intui que ldquoo processo de colher Deus natildeo resulta em uma unidade que se
determina e resolve para sempre mas sim de um processo de unificaccedilatildeo que
procede ao infinitordquo
180
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
1 Fontes Primaacuterias
Traduccedilotildees de obras de Giovanni Pico della Mirandola
De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Eugenio Garin (org) Firenze Vallecchi 1942
Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Albano Biondi (org) Firenze Leo S Olschki 19952013
Conclusiones Cabalisticae Paolo Edoardo Fornaciari (org) Milano Mimesis 2009
Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Paolo Edoardo Fornaciari (org) Milano Mimesis 2009
Disputationes adversus Astrologiam Divinatricem Eugenio Garin (org) Vol I e II Firenze Vallecchi 1946-1952
Discorso sulla Dignitagrave dellrsquouomo Francesco Bausi (org) Parma Guanda 2003
Oratio de Hominis Dignitate Trad Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Ediccedilotildees 70 2001
A Dignidade do Homem Trad Luiz Feracine Campo Grande Solivros 1999
Heptaplus La Settemplice Interpretazione dei sei giorni della Genesi Trad Eugenio Garin Carmagnola Arktos 1996
Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Paolo Edoardo Fornaciari (org) Firenze Sismel Edizioni 2010
Expositiones in Psalmos Trad Antonino Raspanti - Giacomo Raspanti Firenze Leo Olschki 1997
Outras Fontes Primaacuterias
AGOSTINHO DE HIPONA Comentaacuterio ao Gecircnesis Trad Agustinho Belmonte Satildeo Paulo Paulus 2014
____ A Cidade de Deus Trad J Dias Pereira VolI Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1996
CLEacuteMENT DrsquoALEXANDRIE Les Stromates Alain Le Boulluec (org) Trad Pierre Voulet Paris Eacuteditions du Cerf 1981
181
DIONIacuteSIO AREOPAGITA PSEUDO A Hierarquia Celeste Carin Zwilling (org) Satildeo Paulo Polar 2015
FICINO MARSILIO Theologia Platonica Milano Bompiani 2011
____ Opera Omnia Mario Sancipriano - Paul Oskar Kristeller (org) Torino Botega drsquoErasmo 1962 vol II
PICO DELLA MIRANDOLA GIANFRANCESCO Johannis Pici Mirandulae viri omni disciplinarum genere consummatissimi vita per Ioannem Franciscum illustris principis Galeotti Pici filium conscripta Bruno Andreolli (org) Modena Aedes Muratoriana 1994
PLATONE Tutte le opere Roma Newton Compton Editori 2010
PLOTINO Enneadi ed Giuseppe Faggin Milano Bompiani 2010
POLIZIANO Letters Shane Butler (org) Cambridge Harvard University Press 2006
CORPUS HERMETICUM Edizione e comento di Arthur Darby Nock Trad Andreacute-Jean Festugiegravere A cura di Ilaria Ramelli Milano Bompiani 2006
DE ORACULIS CHALDAICIS Trad Wilhelm Kroll Reprints from the collection of the University of Michigan Library [1894] Hildesheim G Olms 1962
SEcircFER YETSIRAacute O Livro da Criaccedilatildeo Aryeh Kaplan (org) Trad Erwin Von-Rommel Vianna Pamplona Satildeo Paulo Secircfer 2005
SEPHER HA-ZOHAR Trad Paul Vulliaud In Eacutetudes et Correspondance de Jean de Pauly Relatives au Sepher Ha-Zohar Paris Bibliothegraveque Chacornac 1933
ZOcircHAR RABI SHIMON BAR IOCHAI (atribuiacutedo a) Trad Diego Raigorodsky Satildeo Paulo Annablume Editora 2013 (Tomo I) 2014 (Tomo II)
2 Fontes Secundaacuterias
AMBESI ALBERTO CESARE Giovanni Pico della Mirandola Cenni biografici e presentazione dellrsquoopera In Heptaplus La Settemplice Interpretazione dei sei giorni della Genesi Carmagnola Arktos 1996
ANAGNINE EUGENIO Giovanni Pico della Mirandola Sincretismo religioso-filosofico Bari Laterza 1937
BACON ROGER Opus maius IV Oxford JH Bridges 1897
BACCHELLI FRANCO Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica Cittagrave di Castello Leo S Olschki 2001
182
BARON HANS The Crisis of Early Italian Renaissance Civic Humanism and Republican Liberty in an Age of Classicism and Tyranny New Jersey Princeton University PressNewberry Library 1966
____ En Busca del Humanismo Ciacutevico Florentino ndash Ensayos sobre el Cambio del Pensamiento Medieval al Moderno Trad Miguel Abelardo Camacho Ocampo Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Economica 1993
BARONE GIUSEPPE Antologia Giovanni Pico della Mirandola Milano Virgilio Editore 1973
BARTOLUCCI GUIDO Marsilio Ficino e le Origini della Cabala Cristiana In Fabrizio Lelli (org) Giovanni Pico e la Cabbalagrave Firenze Leo Olschki 2014
BASTITTA HARRIET FRANCISCO Recepcioacuten de los textos hermeacuteticos en el platonismo florentino del Quattrocento Marsilio Ficino y Giovanni Pico della Mirandola In Buffon-Drsquoamico (org) Hermes Platonicus Hermetismo y Platonismo en el Medioevo y la Modernidad temprana Santa Feacute Ediciones UNL 2016
BATKIN LEONID M LrsquoIdea di Individualitagrave nel Rinascimento Italiano Trad Valentina Rossi Roma-Bari Laterza 1992
BAUSI FRANCESCO (org) Giovanni Pico della Mirandola Opere complete Torino Lexis Progetti Editoriali 2000
____ Nec rethor neque philosophus Fonti lingua e stile nelle prime opere latine di Giovanni Pico della Mirandola (1484-87) Firenze Leo Olschki 1996
____ E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza Napoli Liguori 1998
BAZAacuteN FRANCISCO GARCIA ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus Madrid Biblioteca Claacutesica Gredos 1991
BEMPORAD DL ndash ZATELLI IDA (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Celebrazioni del V centenario della morte di Lorenzo il Magnifico Firenze Olschki 1998
BERTI DOMENICO Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti In Rivista Contemporanea VII vol XVI Torino 1859
BERTOZZI MARCO (org) Nello specchio del cielo Giovanni Pico della Mirandola e le ldquoDisputationes contro lrsquoastrologia divinatoriardquo Firenze Leo Olschki 2008
BIDEZ JOSEPH ndash CUMONT FRANZ Les mages helleniseacutes Paris Belles Lettres 1938
BIGNOTTO NEWTON Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola In O que nos faz pensar nr 27 2010
BIONDI ALBANO ldquoIntroduzionerdquo alle Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 2013
183
BLACK CROFTON Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics Boston Brill 2006
BORI PIER CESARE I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola In Annali di storia dellrsquoesegesi 132 1996 pp 551-564
____ Pluralitagrave delle vie Alle origine del Discordo sulla Dignitagrave umana di Pico della Mirandola Milano Feltrinelli 2000
BROCCHIERI MARIATERESA F B Pico della Mirandola Bari Laterza 2011
BURCHIELLARO GIANFRANCO ldquoIntroduzionerdquo a Mantova e la Qabbalah Milano Skira 2001
BURCKARDT JACOB La civiltagrave del Rinascimento in Italia Trad Valbusa Vol II Firenze Sansoni 1902
BURKERT WALTER Antigos Cultos de Misteacuterio Satildeo Paulo Edusp 1987
BUSI GIULIO La Qabbalah Roma-Bari Laterza 2011
____ Mantova e la Qabbalah Milano Skira 2001
____ Introduzione a Mistica ebraica Testi della tradizione segreta del giudaismo dal III al XVIII secolo Torino Busi e Loewenthal (eds) 1995
____ Pico fede ragione e Inquisizione In Il Sole-24 Ore 28082018
BUSI GIULIO - EBGI RAPHAEL Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah Torino Giulio Einaudi Editore 2014
CASSIRER ERNST Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento Trad F Federici Firenze La Nuova Italia 19351977
CASSUTO UMBERTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento Firenze Leo Olschki 1918 (ristampa 1965)
CATAgrave CESARE ldquoLidea di lsquoanima stellatarsquo nel Quattrocento fiorentino Andrea da Barberino e la teoria psico-astrologica in Marsilio Ficinordquo In Bruniana amp Campanelliana XVI 2 2010 pp 629-639
CERETTI FELICE Biografie pichensi II Mirandola 1909
____ Giulia Boiardo In Atti e Memorie della Deput di Storia Patria dellEmilia Modena 1881
CHASTEL ANDREacute LrsquoArtista In Eugenio Garin (org) LrsquoUomo del Rinascimento Bari Laterza 2016
COLLI GIORGIO A Sabedoria Grega ndash I (Fragmentos) Traduccedilatildeo Renato Ambroacutesio Satildeo Paulo Paulus 2012
COPENHAVER BRIAN Lrsquoocculto in Pico In Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola Firenze Leo Olschki 1997
184
____ The Secret of Picorsquos Oratio Cabala and Renaissance Philosophy In Midwest Studies in Philosophy 26 2002
____ Hermes Trismegistus Proclus and the Question of a Philosophy of Magic in the
Renaissance In Merkel-Debus (org) Hermeticism and the Renaissance Intellectual History and the Occult in Early Modern Europe Washington Associated University Presses 1988
COPENHAVER BRIAN ndash SCHMITT CHARLES Renaissance philosophy A History of Western Philosophy Oxford University Press 1992
CORAZZOL GIACOMO Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquo Oratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo In Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 pp9-61
CORBIN HENRY Lrsquohomme de lumiegravere dans le soufisme iranien Paris Eacuteditions Preacutesence 1971
CRAVEN WILLIAM G Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age Modern Interpretations of a Renaissance Philosopher Geacutenegraveve Librairie Droz 1981
CRINITO PIETRO De honesta disciplina Carlo Angeleri (org) Roma Fratelli Bocca 1955
CROCIANI LAMBERTO Chiesa fiorentina e comunitagrave ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico In Bemporad-Zatelli (orgs) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Olschki 1998 pp85-99
CROUZEL HENRY Pic de la Mirandole et Origegravene In Bulletin de litteacuterature eccleacutesiastique 66 1965 pp174-194 e pp272-288
DEacuteCARREAUX JEAN Les Grecs au Concile de lrsquo Union Ferrare-Florence 1438-1439 Paris A et J Picard 1970
DELLA TORRE ARNALDO Storia dellrsquoAccademia Platonica di Firenze Firenze G Carnesecchi e Figli 1902
DE RUGGIERO GUIDO La filosofia del Cristianesimo Vol III Bari Laterza 1920
DES PLACES EDOUARD Oracles chaldaiumlques Paris Les Belles Lettres 1971
DI NAPOLI GIOVANNI Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo Roma Desclee amp C Editori Pontifici 1965
____ LrsquoEssere e lrsquoUno in Pico della Mirandola In Rivista di Filosofia neoscolastica 46 1954 pp 356-389
DI NOLA ALFONSO MARIA Cabbala e mistica giudaica Roma Carucci 1984
DOREZ LEacuteON - THUASNE LOUIS Pic de la Mirandole em France (1485-88) Paris Ernest Leroux 1897 (Slatkine Reprints Genegraveve 1976)
185
DOREZ LEacuteON Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) In Giornale Storico della Letteratura italiana 25 1895
____ La mort de Pic de la Mirandole et lrsquoeacutedition aldine des oeuvres drsquoA Politien In Giornale Storico della Letteratura italiana 32 1898
DOUGHERTY MICHAEL V (org) Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008
DUJOVNE LEOacuteN Kabbala Sefer Yetsiraacute El libro de la Creacion Buenos Aires Sigal 1992
____ El Zohar Versioacuten Castellana Buenos Aires Sigal 1992
DUKAS JULES Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle Paris L Techener 1876
EDELHEIT AMOS Ficino Pico and Savonarola The evolution of Humanist Theology Leiden Brill 2008
FAIVRE ANTOINE Access to Western Esotericism Albany Suny Press 1994
FARMER STEPHAN ALAN Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems Temple Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies 1998
FAVARO A Lettera a Francesco Ingoli (org) In Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei v 6 Firenze Barbera Editore 1933
FERACINE LUIZ Prefaacutecio e Comentaacuterios a A Dignidade do Homem de Pico della Mirandola Campo Grande Solivros 1999
FESTUGIEgraveRE ANDREacute-JEAN Studia Mirandulana In Archives drsquohistoire doctrinale e litteraire du Moyen acircge Paris Librairie Vrin 1933
____ La reacuteveacutelation drsquoHermegraves Trismeacutegiste 4 volumes Paris Les Belles Lettres 1950-1954
FIELD ARTHUR The Platonic Academy of Florence In Marsilio Ficino his Theology his Philosophy his Legacy (Allen-Rees org) Leiden Brill 2002
FORNACIARI PAOLO EDOARDO Introduzione e Note a Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche Milano Mimesis 2009
____ Introduzione e Note a Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Milano Mimesis 2009
____ Introduzione e Note a Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze Sismel 2010
____ Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola In Bruniana e Campanelliana 7 2001 pp627-633
186
GARFAGNINI GIAN CARLO (org) Savonarola tra Giovanni e Gianfrancesco Pico In Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) Firenze Leo Olschki 1997
GARIN EUGENIO Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina Roma Edizioni di Storia e Letteratura 2011
____ Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico In Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento 1965
____ La cultura del Rinascimento Bari Laterza 1967
____ Rinascite e Rivoluzioni Bari Laterza 1975
____ Ermetismo del Rinascimento Pisa Della Normale 1986 (copia anastatica 2006)
____ Ritrati di Umanisti ndash Sette Protagonisti del Rinascimento Milano Bompiani 1996
____ Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento Bari Laterza 2007
____ LUmanesimo italiano Bari Laterza 2008
____ (org) LrsquoUomo del Rinascimento Bari Laterza 2016
GENTILE GIOVANNI Giordano Bruno e il pensiero del Rinascimento Firenze Codignola 1991
GENTILE SEBASTIANO Il ritorno di Platone dei platonici e del corpus ermetico Filosofia teologia e astrologia nellopera di Marsilio Ficino In Vasoli-Pissavino (org) Le filosofie del Rinascimento Milano Mondadori 2002
GILL JOSEPH Il Concilio di Firenze Firenze Sansoni 1967
GILSON ETIENNE Les Meacutetamorphoses de la Citeacute de Dieu Publications Universitaires de Louvain Librairie Philosophique Louvain-Paris J Vrin 1952
GOLDFELD NAOMI VOGELMANN Elia del Medigo e lrsquoAverroismo hebraico In BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998
GRAFTON ANTHONY Giovanni Pico della Mirandola Trials and Triumphs of an Omnivore In Commerce with the classics Ancient Books and Renaissance Readers Ann Arbor University of Michigan Press 1997
GRIFFITHS J GWYN (org) Plutarchs De Iside et Osiride University of Wales Press 1970
187
GRIMALDI NICOLAS Soacutecrates o Feiticeiro Trad Nicolaacutes Nyimi Campanaacuterio Satildeo Paulo Loyola 2006
GUICCIARDINI FRANCESCO Storie Fiorentine dal 1378 al 1509 Bari Laterza 1931
HANEGRAAFF WOUTER J (org) Dictionary of Gnosis amp Western Esotericism Leiden Brill 2006
HANKINS JAMES Plato in the Italian Renaissance Leiden Brill 1990
HAYMAN A PETER Sefer Yetsira Texts and Studies in Ancient Judaism Tubingen Mohr Siebeck 2004
IDEL MOSHE Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico In Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998
____ Kabbalah New Perspectives New Haven Yale University Press 1988
____ Golem Jewish Magical and Mystical Traditions on the artificial Anthropoid Albany Suny 1990
____ Kabballah and Hermeticism in Dame Frances A Yatesrsquos Renaissance In Eacutesoterism gnoses et imaginaire symbolique Leuven 2001 pp71-90
____ Uma Introduccedilatildeo In Cabala Cabalismo e Cabalistas (Idel et al org) Trad Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 2008-a
____ As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista In Cabala Cabalismo e Cabalistas (Idel et al org) Trad Eliana Langer e Margarida Goldsztajn Satildeo Paulo Perspectiva 2008-b
JACOBELLI JADER Pico della Mirandola Prefaacutecio de Eugenio Garin Milano Longabesi amp C 1986
KAPLAN ARIEH Secircfer Ietsiraacute O Livro da Criaccedilatildeo Teoria e Praacutetica Trad Vianna Pamplona Satildeo Paulo Secircfer 2005
KEPLER JOHANNES De Stella Nova Harmonice Mundi In Gesammelte Werke Beck Muumlnchen Max Caspar 1938
KERN OTTO Orfici ndash Testimonianze e Frammenti nellrsquoedizione di Otto Kern A cura di Elena Verzura Milano Bompiani 2011
KIBRE PEARL The library of Pico della Mirandola New York Columbia University Press 1936
KIESZKOWSKI BOHDAN Averroismo e Platonismo in Italia negli ultimi decenni del sec XV In Giornale critico della Filosofia Italiana 1933 4
____ Averroismo e Platonismo in Italia In Studi sul Platonismo del Rinascimento in Italia Firenze 1936 capVII
188
____ Studi sul platonismo del Rinascimento in Italia Firenze Sansoni 1936
____ Les Rapports entre Elie del Medigo e Pic de la Mirandola In Rinascimento XV 1964 pp 41-81
KRISTELLER PAUL OSKAR Supplementum ficinianum (org) Firenze Leo Olschki 1937
____ The scholastic background of Marsilio Ficino (1944) In Studies in Renaissance Thought and Letters Vol I Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1956
____ Movimenti filosofici del Rinascimento In Giornale critico della Filosofia Italiana 1950 29
____ La tradizione classica nel pensiero del Rinascimento Firenze La Nuova Italia 1975
____ Concetti Rinascimentali dellrsquouomo ed altri saggi Firenze La Nuova Italia 1978
____ Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano Trad M Pentildealoza Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1970
____ El pensamiento renacentista y sus fuentes Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1982
____ Studies in Renaissance Thought and Letters Vol IV Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1996
KRISTELLER PAUL OSKAR - SANCIPRIANO MARIO (org) Marsilio Ficino Opera Omnia Torino Botega drsquoErasmo 1962 vol II
LEBECH METTE On the Problem of Human Dignity A Hermeneutical and Phenomenological Investigation Wurzburg Konigshausen amp Neumann 2009
LELLI FABRIZIO Alemanno Giovanni Pico della Mirandola e la cultura ebraica italiana del XV secolo In Gian Carlo Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola VolI Firenze Leo Olschki 1997
____ Giovanni Pico e la Cabbalagrave (org) Firenze Leo Olschki 2014
____ Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno In BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998
____ Pico della Mirandola Giovanni In Wouter Hanegraaf (org) Dictionary of Gnosis and Western Esotericism Leiden 2005 pp949-954
LILLA SALVATORE Clement of Alexandria A Study in Christian Platonism and Gnosticism Oxford Oxford University Press 1971
LIPINER ELIAS As Letras do Alfabeto na criaccedilatildeo do mundo ndash Contribuiccedilatildeo agrave pesquisa da natureza da linguagem Rio de Janeiro Imago 1992
LORENZ FV Cabala A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente Satildeo Paulo Pensamento 1997
189
LUBAC HENRI DE Pico della Mirandola LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento Trad G Colombo - A dellrsquoAsta Vol 29 Milano Jaca Book 1977
____ Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions Paris Aubier Montaigne 1974
MAGHIDMAN MARCELO Secircfer Yetsiraacute A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico Satildeo Paulo Annablume 2014
MAQUIAVEL NICOLAU Histoacuteria de Florenccedila Satildeo Paulo Martins Fontes 2007
MASAI FRANCcedilOIS Pleacutethon et le Platonisme de Mistra Paris Les Belles Lettres 1956
MASSETANI GUIDO La Filosofia cabbalistica di Giovanni Pico Della Mirandola Empoli Tipografia di Edisso Traversari 1897
MATTER JACQUES Histoire critique du gnosticisme et de son influence Paris FG Levrault 1828 (reprint 2011)
MONFASANI JOHN Bessarione La Natura delibera la Natura e lrsquoArte ldquoPrefassionerdquo In Accendere-Privitera (org) Milano Bompiani 2014
MOLINARI JONATHAN Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola Bologna Il Mulino 2015
MUNK SALOMON Meacutelanges de philosophie juive et aacuterabe Paris A Franck 1857
PEGONE ENRICO Timeo Note e Trad In Platone Tutte le Opere Roma Newton Compton Editori 2010
PINA MARTINS JOSEacute VITORINO Jean Pic de la Mirandole Un portrait inconnu de lrsquohumanisme une eacutedition trecircs rare de ses Conclusiones Paris Presses Universitaires de France 1976
____ Pico della Mirandola e o Humanismo Italiano nas origens do Humanismo Portuguecircs Lisboa Sep de Estudos Italianos em Portugal 1964
____ Cultura Italiana Lisboa Editorial Verbo 1971
RABI SHIMON BAR IOCHAI Zocirchar Trad Diego Raigorodsky Satildeo Paulo Annablume 2013
RABIN SHEILA Pico on Magic and Astrology In Dougherty MV (org) Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008
____ Keplerrsquos Attitude toward Pico and the Anti-Astrology Polemic In Renaissance Quarterly 50 1997 pp 750ndash70
RAGNISCO PIETRO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo In Atti e Memorie della Reale Accademia di Scienze Lettere ed Arti in Padova Padova 1891
190
RASPANTI ANTONINO Filosofia teologia religione lrsquounitagrave della visione in Giovanni Pico Palermo Edi Oftes 1991
REALE GIOVANNI Para uma nova Interpretaccedilatildeo de Platatildeo Trad Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 1997
RENAN ERNEST Averroegraves et lrsquoAverroiumlsme Paris A Durand 1852
RHODE ERWIN Psyche Roma-Bari Laterza 2006
RIFFARD PIERRE Dicionaacuterio de Esoterismo Trad Maria Joatildeo Freire Lisboa Editorial Teorema 1993
ROTONDI SECCHI TARUGI LUISA LErmetismo nellrsquo Antichitagrave e nel Rinascimento Milano Nuovi Orizzonti 1998
RUGGIERO GUIDO DE La filosofia del Cristianesimo Vol III Bari Laterza 1920
RUTKIN H DARREL Giovanni Pico della Mirandolarsquos Early reform of Astrology an Interpretation of vera astrologia in the Cabalistic Conclusions In Bruniana e Campanelliana 10 2004 pp495-498
SARTORI ALBERTO Giovanni Pico della Mirandola Filosofia teologia concordia Padova Facoltagrave Teologica del Triveneto 2017
SCOTT WALTER - FERGUSON ALEXANDER STEWART Hermetica The Ancient Greek and Latin Writings which contain religious or philosophic teachings ascribed to Hermes Trismegistus Oxford Clarendon Press 1924-36
SCHIAVONE VALERIA Corpus Hermeticum Trad e Notas Milano BUR Rizzoli 2018
SCHMITT CHARLES Gianfrancesco Picorsquos Attitude toward his Uncle In (AAVV org) Llsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze 1965
SCHNITZER JOSEPH Savonarola Vol1 Trad E Rutili Milano Fratelli Treves 1931
SCHOLEM GERSHOM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York Theological Seminary of America 1960
____ A Miacutestica Judaica Trad Jacob Guinsburg et al Satildeo Paulo Perspectiva 1972
____ A Cabala e seu simbolismo Trad Hans Borger e Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 1988
____ Cabala Enciclopeacutedia judaica Vol 9 Trad H Burlamaqui JC Guimaratildees e ML Braga Rio de Janeiro A Koogan 1989
____ As Grandes correntes da Miacutestica Judaica Trad Jacob Guinsburg e outros Satildeo Paulo Perspectiva 1995
191
____ Nome de Deus a Teoria da Linguagem e Outros estudos de Cabala e Miacutestica Judaica Trad Ruth Solon e Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 1999
SECRET FRANCcedilOIS Lrsquointerpretazione della Kabbala nel Rinascimento In ldquoConviviumrdquo 25 1956 pp541-552
____ Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance Milano Archegrave Arma artis 1985
SENDER TOVA Iniciaccedilatildeo agrave Cabala Rio de Janeiro Record 1991
SEMPRINI GIOVANNI Giovanni Pico della Mirandola La Fenice degli Ingegni Todi Casa Editrice Atanograver 1921
SIRGADO GANHO MARIA LURDES Comentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitate Lisboa Ediccedilotildees 70 2001
SUDDUT MICHAEL Pico della Mirandolarsquos Philosophy of Religion In Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008
TENENTI A Florence agrave lrsquoEacutepoque des Medicis Paris Flammarion 1968
THORNDIKE LYNN A History of Experimental Science Vol 4 Fourteenth and Fifteenth Centuries New York Columbia University Press 1934
VALCKE LOUIS Pic de la Mirandole un itineacuteraire philosophique Paris Les Belles Lettres 2005
VALVERDE A J R Aportes a Oratio de Hominis Dignitate de Pico della Mirandola In Revista de Filosofia Aurora Vol 21 29 pp 457-480 Curitiba Champagnat 2009
VASOLI CESARE Introduccedilatildeo agrave Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina (EGarin) Roma Edizioni Storia e Letteratura 2011
____ Imagini Umanistiche Napoli Morano 1983
____ Conclusioni In Gian Carlo Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) VolII Firenze Leo Olschki 1997 pp641-695
____ The Renaissance Concept of Philosophy In Charles Schmitt (org) The Cambridge History of Renaissance Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1998
VILLARI PASQUALE Girolamo Savonarola Vol I Firenze Le Monnier 1910
WALKER DP Spiritual and demonic magic from Ficino to Campanella London The Warburg Institute 1958
WARBURG ABY La rinascita del paganesimo antico Contributi alla storia della cultura raccolti da G Bing Trad E Cantimori Firenze La Nuova Italia 1966
192
WEIL ERIC La Philosophie de Pietro Pomponazzi Pic de la Mirandole et la Critique de lrsquoAstrologie Paris Editions Vrin 1986
WIRSZUBSKI CHAIM Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Cambridge Harvard University Press 19871989
____ Pic de la Mirandole et la Cabale Paris Eacuteditions de lrsquoeacuteclat 2007
WOODHOUSE CHRISTOPHER M George Gemistos Plethon The last of the Hellenes Oxford Clarendon Press 1986
YATES FRANCES A Giordano Bruno e a Tradiccedilatildeo Hermeacutetica Satildeo Paulo Cultrix 1995
____ Giovanni Pico della Mirandola and Magic In Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo VolI Convegno Internazionale di Mirandola (1963) Firenze 1965 pp159-204
ZACCARIA RAFFAELLA MARIA Critiche e difesa dellrsquoHeptaplus In Paolo Viti (org) Pico Poliziano e lrsquoUmanesimo di fine Quattrocento Nr 16 Firenze Leo Olschki 1994
ZAMBELLI PAOLA Lapprendista stregone Astrologia cabala e arte lulliana in Pico della Mirandola e seguaci Venezia Saggi Marsilio 1995
ZONTA MAURO Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola In Rinascimento ndash Rivista dellrsquoIstituto Nazionale di Studi sul Rinascimento nr48 Firenze Leo Olschki 2009
BANCA EXAMINADORA
____________________________
Prof Dr Antonio Joseacute Romera Valverde
____________________________
Prof Dr Jorge Luiz Rodrigues Gutiegraverrez
____________________________
Prof Dr Marcelo Perine
____________________________
Prof Dr Maacuterio Ariel Gonzalez Porta
____________________________
Prof Dr Pedro Monticelli
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior ndash
Brasil (CAPES) 888871518022017-00 ndash Coacutedigo de Financiamento 001
This study was financed in part by the Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior ndash
Brasil (CAPES) 888871518022017-00 ndash Finance Code 001
AGRADECIMENTOS
Duas pessoas em comum nascidas sob a marca estelar da
perseveranccedila foram fundamentais para que este trabalho chegasse a
termo meu orientador Professor Antonio Valverde e minha matildee
Adriana A ele devo natildeo apenas as sempre apropriadas elucidaccedilotildees no
decorrer do estudo como natildeo menos importante a sustentaccedilatildeo
ldquoespiritualrdquo para levaacute-lo adiante perante os inuacutemeros empecilhos
ensinou-me a ter como norte apenas a Filosofia Ela sempre presente
deu-me um auxiacutelio inestimaacutevel no suporte das questotildees cotidianas e com
sua sabedoria de vida me incentivou em meus momentos de fraqueza a
dar simplesmente ldquoo proacuteximo passordquo Aos dois minha eterna gratidatildeo
Agradeccedilo aos examinadores presentes na Banca do Exame de
Qualificaccedilatildeo Professores Jorge Gutieacuterrez Pedro Monticelli e Marcelo
Perine ndash trecircs mestres com os quais tive a feliz oportunidade de interagir
em outras circunstacircncias acadecircmicas ndash pelas preciosas sugestotildees
compartilhadas na ocasiatildeo Agradeccedilo ainda aos demais membros
partiacutecipes e suplentes agrave Banca Examinadora da Defesa Professores Luiz
Marcos da Silva Eduardo Kickhoumlfel e Maacuterio Porta pelo aceite de nosso
convite
Por fim natildeo posso deixar de agradecer a meu pai pelo silencioso
acolhimento a meu marido por sempre estar por aceitar minhas
ausecircncias e compreender minhas escolhas a meu filho por me incentivar
e compartilhar de minhas aspiraccedilotildees intelectuais e ainda pelo importante
auxiacutelio instrumental em ocasiotildees essenciais
RESUMO
CASORETTI Anna Maria Pico della Mirandola O Esoterismo como categoria
filosoacutefica 2020 192 p Tese (Doutorado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de
Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2020
O filoacutesofo renascentista Pico della Mirandola teve por principal intento
elaborar a conciliaccedilatildeo entre diferentes doutrinas e sistemas guiado pela
percepccedilatildeo da existecircncia de concepccedilotildees metafiacutesicas passiacuteveis de integraccedilatildeo
em seus graus mais elevados A paixatildeo pela comprovaccedilatildeo de
correspondecircncias leva-o a um percurso de aproximaccedilatildeo reconciliadora
com o passado e agrave consequente construccedilatildeo de estrateacutegias de correlaccedilatildeo
cujo princiacutepio-chave se encontra na ideia de que conceitos concernentes
aos niacuteveis mais altos da realidade se penetram reciprocamente Seu projeto
de convergecircncia teleoloacutegica contempla elementos derivados das mais
diversas perspectivas sejam filosoacuteficas teoloacutegicas ou misterioloacutegicas Em
meio a tais perspectivas identifica-se a presenccedila de tradiccedilotildees que se
perpetuaram em torno a formas de transmissatildeo esoteacuterica como eacute o caso
da misteriologia grega da Cabala judaica e do Hermetismo egiacutepcio bem
como de alguns registros de teor filosoacutefico e de manifestaccedilotildees do
Cristianismo primitivo e posterior que empregaram especiacuteficas formas de
linguagem relacionadas ao sigilo O objetivo desta investigaccedilatildeo eacute apontar
para tais elementos e mostrar que sua repeticcedilatildeo permite caracterizar seu
conjunto como uma categoria presente no pensamento piquiano utilizada
natildeo apenas como recurso retoacuterico mas como possibilidade de ampliaccedilatildeo e
de siacutentese das possibilidades interpretativas Satildeo adotadas como fonte de
investigaccedilatildeo as obras De Hominis Dignitate Conclusiones Nongentae e
Heptaplus
Palavras-Chave Pico della Mirandola Renascimento Esoterismo Concoacuterdia
ABSTRACT
The main intention of the Renaissance philosopher Pico della Mirandola
was to conciliate different doctrines and systems guided by the perception
of the existence of metaphysical conceptions capable of integration in their
highest degrees The passion for the proof of correspondences leads him to
a path of reconciling with the past and the consequent construction of
correlation strategies whose key principle lies in the idea that concepts
concerning the highest levels of reality penetrate reciprocally His project
of teleological convergence contemplates elements derived from the most
diverse perspectives whether philosophical theological or mysteriological
The presence of traditions that have perpetuated themselves around forms
of esoteric transmission such as Greek mysteriology Jewish Kabbalah and
Egyptian Hermeticism is found in the midst of such perspectives as well
as some records of philosophical content and manifestations of primitive
Christianity that have employed specific forms of language related to
secrecy The aim of this investigation is to point out such elements and
show that their repetition allows us to characterize the set as a category
present in Picorsquos thought used not only as a rhetorical resource but as a
possibility of expansion and synthesis of interpretative possibilities De
Hominis Dignitate Conclusiones Nongentae and Heptaplus are adopted
as sources of investigation
Keywords Pico della Mirandola Renaissance Esotericism Concord
LISTA DE ABREVIATURAS
Concl (I) Giovanni PICO Conclusiones secundum opiniones aliorum Parte I in Albano Biondi (org) Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 19952013
Concl (II) Giovanni PICO Conclusiones secundum opinionem propriam Parte II in Albano Biondi (org) Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 19952013
Oratio Giovanni PICO De Hominis Dignitate in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942
Apologia Giovanni PICO Apologia in Paolo Edoardo Fornaciari (org) Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze Sismel Edizioni 2010
De Ente et Uno Giovanni PICO De Ente et Uno in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942
Commento Giovanni PICO Commento sopra una canzona drsquoamore composta da Girolamo Benivieni in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942
Heptaplus Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942
Heptaplus P1 Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione (opcit) ldquoPrimeiro Proecircmiordquo
Heptaplus P2 Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione (opcit) ldquoSegundo Proecircmiordquo
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 11
I ASPECTOS POUCO LEMBRADOS DO RENASCIMENTO 14
II GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA 28
1 A Vida 30
2 As bases filosoacuteficas entre a Academia e o Liceu 41
3 A aproximaccedilatildeo aos estudos miacutesticos 47
III AS CONCLUSIONES NONGENTAE E SUA OCCULTA CONCATENATIO 52
1 A Secreta Conexatildeo 55
2 Religiatildeo ou Filosofia 63
3 Maritare Mundum 69
IV A ORATIO E SEUS ELEMENTOS ASCENSIONAIS 79
1 O tema da Dignidade do homem 81
2 O tema da Concoacuterdia 87
3 O tema da Ascese 91
V RESSONAcircNCIAS CABALIacuteSTICAS E SEU INFLUXO SOBRE PICO 108
1 As fontes hebraicas da tradiccedilatildeo esoteacuterica 110
2 O Cosmo Cabalista 121
3 As divisotildees da Cabala e suas formas de aproximaccedilatildeo agrave divindade 127
VI O HEPTAPLUS Agrave LUZ DA CABALA 137
1 As referecircncias esoteacutericas do Primeiro Proecircmio 139
2 Os Mundos na Cabala no Heptaplus 143
3 A Occlusa Sapientia 152
VII FILOSOFIA ESOTERISMO CONCOacuteRDIA 158
1 O Paradigma Esoteacuterico 158
2 A Concordacircncia teleoloacutegica 166
3 A Morte do Beijo 172
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 177
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 180
Nulla res spiritualis descendens
inferius operatur sine indumento
Nenhuma realidade espiritual que
descenda aos mundos inferiores
opera sem se velar
(Pico della Mirandola Conclusio
secundum doctrinam sapientum
hebraeorum Cabalistarum XXV)
11
INTRODUCcedilAtildeO
A presente tese propotildee identificar a presenccedila de elementos esoteacutericos na obra
do filoacutesofo Giovanni Pico della Mirandola mostrando que a recorrecircncia de tais
indiacutecios permite que lhes seja atribuiacuteda a qualificaccedilatildeo de categoria filosoacutefica Com o
termo ldquocategoriardquo pretende-se significar a presenccedila de um padratildeo discerniacutevel dentro
de um processo reflexivo formado pelo agrupamento de determinadas caracteriacutesticas
que se repetem a ponto de poderem ser classificadas sob uma denominaccedilatildeo comum
O termo ldquoesoterismordquo por sua vez abriga dois principais significados tantas vezes
confundidos Contempla de um lado um conjunto de tradiccedilotildees ou interpretaccedilotildees ndash
de cunho filosoacutefico teoloacutegico ou misterioloacutegico ndash que buscam proteger do puacuteblico
determinados assuntos por meio da manutenccedilatildeo do segredo ou da transmissatildeo oral
comunicando-os apenas a um restrito nuacutemero de adeptos De outro admite amiuacutede
um sentido associado ao ldquomisticismordquo relacionado a praacuteticas que conduzem ao que
chamariacuteamos hoje de experiecircncias fenomenoloacutegicas pessoais As duas significaccedilotildees
encontram-se abrangidas pela obra piquiana Seus registros foram colhidos pelo
Autor a partir de fontes pagatildes cristatildes e hebraicas encontrando-se dispostos de
forma fluiacuteda e harmocircnica lado a lado com categorias do universo filosoacutefico e
teoloacutegico Apontar para a presenccedila de tais padrotildees eacute o intento pretendido Como
objetivo secundaacuterio seraacute sugerida no uacuteltimo Capiacutetulo a existecircncia de um propoacutesito
teleoloacutegico que pede a utilizaccedilatildeo de tais paradigmas para o fechamento de certas
hipoacuteteses sob o arco da estruturaccedilatildeo do pensamento piquiano
Trecircs razotildees permitem inserir esta contribuiccedilatildeo no campo de conhecimento da
Histoacuteria da Filosofia a saber (a) o papel proeminente de seu protagonista uacuteltimo
pensador do Quattrocento italiano no panorama do Pensamento do seacuteculo XV (b) os
aportes derivados da averiguaccedilatildeo de doutrinas pertencentes a culturas e tradiccedilotildees
ocidentais e natildeo-ocidentais e (c) a apuraccedilatildeo da utilizaccedilatildeo de elementos esoteacutericos ndash
tese aqui desenvolvida ndash em cenaacuterio filosoacutefico Em outras palavras (a) Giovanni Pico
natildeo sem fundamento foi elevado agrave condiccedilatildeo de um dos mais significativos
representantes de sua eacutepoca em virtude de sua obra manifestar muitos dos
relevantes fermentos e anseios que caracterizaram seu periacuteodo embora seu quadro
intelectual de referecircncias se encontrasse fora do alcance da maioria de seus
contemporacircneos suas reflexotildees natildeo estavam isentas das principais preocupaccedilotildees de
seu tempo Ademais (b) a adesatildeo do Autor a um novo esquema epistemoloacutegico de
revisatildeo dos saberes com os quais esteve em contato o leva muito aleacutem dos problemas
filosoacuteficos nucleares dos seacuteculos que o antecedem permitindo ao leitor conhecer
doutrinas pertencentes a culturas exteriores agrave Ocidental ndash caso do Hermetismo
egiacutepcio da Cabala judaica e do Zoroastrismo persa ndash integrantes da ampla unificaccedilatildeo
pretendida por Pico Alguns daqueles conteuacutedos ndash natildeo suficientemente estudados ndash
oferecem relevantes aportes agrave Filosofia sobretudo para as temaacuteticas que concernem agrave
sistematizaccedilatildeo do mundo inteligiacutevel Finalmente (c) o estudo de um padratildeo de
pensamento colhido de fontes esoteacutericas natildeo apenas nos coloca em contato com
12
tradiccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas que fizeram uso do segredo para se perpetuar como
fornece novos paradigmas de investigaccedilatildeo e de linguagem O emprego de elaboraccedilotildees
mentais extraiacutedas de tradiccedilotildees orais natildeo eacute simples recurso retoacuterico utilizado pelo
Autor mas aporte necessaacuterio para alcanccedilar certas siacutenteses Ao contraacuterio do que possa
acreditar o senso comum haacute uma forccedila racional presente em grande parte das
doutrinas que se erigem em torno agrave transmissatildeo esoteacuterica mostrando-se seu estudo
uma importante ampliaccedilatildeo das possibilidades interpretativas
A motivaccedilatildeo para apresentar tal conjunto de temas deve-se precipuamente ao
fato de a obra de Pico della Mirandola ter sido pouco estudada no cenaacuterio filosoacutefico
nacional Tanto as traduccedilotildees quanto as interpretaccedilotildees em portuguecircs satildeo escassas
Tem-se agrave disposiccedilatildeo em primeira linha apenas as traduccedilotildees da Oratio de Hominis
Dignitate realizadas por Luiz Feracine e Maria de Lurdes Sirgado nas quais os
autores apresentam prefaacutecios introdutoacuterios ao trabalho de traduccedilatildeo Com relaccedilatildeo agrave
obra Conclusiones Nongentae principal projeto do autor os conteuacutedos
interpretativos natildeo apenas satildeo inexistentes em acircmbito nacional como bastante
exiacuteguos em termos mundiais Ademais com relaccedilatildeo agraves tradiccedilotildees orientais acolhidas
por Pico o material para discussatildeo de suas doutrinas mostra-se em ambiente paacutetrio
insuficiente o que contribui para manter sua obra em um patamar de
impenetrabilidade Essas mesmas condiccedilotildees determinaram a opccedilatildeo por uma
apresentaccedilatildeo mais ampla e integrativa da obra piquiana um trabalho desenvolvido
de forma pontual estruturado apenas em torno aos especiacuteficos pontos esoteacutericos
coletados dos textos piquianos traria uma especificidade soacute aceitaacutevel em um
territoacuterio onde tanto o autor quanto sua obra fossem suficientemente conhecidos
Em termos de divisatildeo dos capiacutetulos segue-se uma apresentaccedilatildeo que se inicia
com os aspectos exteriores ligados agrave sociedade e agrave vida do Autor para em seguida
abordar as produccedilotildees concernentes ao seu pensamento Assim embora natildeo se mostre
uma exigecircncia para o tema desenvolvido o Primeiro Capiacutetulo agrave guisa de ldquosegunda
introduccedilatildeordquo tem por funccedilatildeo dispor o cenaacuterio temaacutetico e reconstituir uma parte da
atmosfera intelectual renascentista preparando o leitor para o acolhimento de alguns
dos elementos fundamentais que compotildeem o universo do pensamento piquiano O
Segundo Capiacutetulo contempla a biografia de Giovanni Pico devida por estar
diretamente vinculada ao desenvolvimento de seu modus cogitandi essa a razatildeo de
ser abordada no mesmo capiacutetulo a formaccedilatildeo de seu pensamento atraveacutes da
apuraccedilatildeo das principais Escolas doutrinaacuterias com as quais o filoacutesofo teve contato
Esse percurso basilar evidencia que Pico natildeo se lanccedila a argumentaccedilotildees de cunho
esoteacuterico como algueacutem desprovido de qualquer bagagem acadecircmico-filosoacutefica Antes
o contraacuterio Eacute a dimensatildeo de tal bagagem que lhe permite vislumbrar os pontos de
convergecircncia entre vaacuterias escolas e linhagens de conhecimento ndash ocorrecircncia que
pouco se verifica nas investigaccedilotildees acerca da filosofia natural ou moral mas mostra-
se de forma significativa em torno aos pontos mais elevados de suas especulaccedilotildees
metafiacutesicas ndash protegidos mais das vezes pela transmissatildeo oral
13
Do Terceiro ao Sexto Capiacutetulos satildeo apresentadas e discutidas trecircs das
principais obras de Pico as Conclusiones Nongentae a Oratio De Hominis Dignitate
e o Heptaplus O influxo do Esoterismo na obra piquiana soacute poderia ser confirmado
por meio da abordagem de certo nuacutemero de obras em seu conjunto a verificaccedilatildeo de
uma uacutenica obra natildeo traria a dimensatildeo fiel de tal influxo podendo caracterizar um
caso isolado Entre os capiacutetulos mencionados o Quinto deve ser entendido como uma
necessaacuteria digressatildeo para introduzir a seccedilatildeo seguinte contentora de informaccedilotildees
pertinentes ao Cabalismo que requerem elucidaccedilotildees porquanto o leacutexico cabaliacutestico e
muitas de suas concepccedilotildees natildeo satildeo usuais na literatura filosoacutefica Finalmente no
Seacutetimo e uacuteltimo Capiacutetulo satildeo alinhavados os capiacutetulos precedentes de forma a lhes
dar uma coerecircncia em forma de epiacuteteto
O desenho do conjunto conforme a sequecircncia de seus capiacutetulos segue um
formato que de certa forma acompanha o desenvolvimento intelectual do Autor
poderia outrossim designar um modelo de trajeto de desenvolvimento gnosioloacutegico
partindo da esfera puacuteblica na qual satildeo apreendidas informaccedilotildees pertinentes ao
ldquoespiacuteritordquo da proacutepria eacutepoca (I) passa pelas experiecircncias de aprendizado e estudos
pessoais (II) que levam agrave elaboraccedilatildeo de ordenaccedilotildees intelectuais decorrentes das
escolas e doutrinas assimiladas (III) permitindo vislumbrar a partir delas
possibilidades de elevaccedilatildeo e de dignificaccedilatildeo do homem (IV) alcanccedilado tal estaacutegio o
pensamento lanccedila-se em especulaccedilotildees metafiacutesicas em torno agraves esferas do Inteligiacutevel
(V e VI) ateacute finalmente alcanccedilar o fim para onde tendem todas as doutrinas (VII)
Sob tal perspectiva a ordem da leitura auxilia de forma complementar a vislumbrar
a siacutentese almejada por Pico della Mirandola norte de suas investigaccedilotildees mais
profundas e fundamento para a recepccedilatildeo das mais diversas doutrinas manifestas ou
natildeo
14
CAPIacuteTULO I
ASPECTOS POUCO LEMBRADOS DO RENASCIMENTO
No ano de 1440 Joatildeo VIII Imperador Bizantino era recebido na casa
florentina de Cosimo il Vecchio1 um dos mais proeminentes integrantes dos Medici
O encontro dos dois poderia ateacute natildeo ser digno de nota natildeo fosse o fato que ali se
encontravam os personagens siacutembolos de duas das mais fecundas ocorrecircncias que a
cidade de Florenccedila vivenciaria naquele seacuteculo para o campo do Pensamento o
Conciacutelio para unificaccedilatildeo das Igrejas e o Mecenato O soberano de Bizacircncio chegara agrave
cidade para aquele encontro ecumecircnico com o qual se esperava conter o avanccedilo dos
turcos2 no que foi seguido por consideraacutevel nuacutemero de teoacutelogos que traziam para o
solo italiano textos ineacuteditos Durante o periacuteodo em que durou ndash entre lsquo39 e lsquo44 em
meio agrave vigecircncia delrsquo Vecchio ndash3 deu-se o encontro entre as figuras mais
representativas do mundo cristatildeo (gregos e latinos) com profiacutecuas consequecircncias
para os seacuteculos XV e posteriores visto que se difundiram informaccedilotildees confrontaram-
se doutrinas e crenccedilas e abriram-se as portas para o afluxo de novos livros sobretudo
dos campos filosoacutefico e teoloacutegico Somada agrave iniciativa de mecenas como Cosimo ndash
que incentivou a aquisiccedilatildeo e traduccedilatildeo de manuscritos ndash as duas ldquoinstituiccedilotildeesrdquo
criaram as bases para a implementaccedilatildeo de um ambiente propiacutecio tanto para o retorno
a fontes antigas quanto para a abertura a novas doutrinas estranhas agrave cristatilde
O encontro de culturas foi um acontecimento sem antecedentes naquele
territoacuterio Embora a Florenccedila do seacuteculo XV natildeo possa ser comparada agrave Bagdaacute do
seacuteculo X ou agrave Toledo do seacuteculo XIII lugares onde ocorreram encontros significativos
entre as trecircs culturas monoteiacutestas mais importantes essa cidade deveria ser
mencionada como bem observa Moshe Idel imediatamente depois delas4 A urbe
toscana assistiu natildeo apenas agrave chegada dos bizantinos como acolheu um nuacutemero
significativo de judeus ndash alguns provenientes de Constantinopla mas a maior parte
expulsos da Espanha e de outros territoacuterios Ainda que a representatividade aacuterabe
natildeo tenha sido expressiva como nas outras duas cidades sua presenccedila em solo
florentino foi garantida atraveacutes dos gregos e judeus que traduziam e difundiam seus
textos entre os latinos As contribuiccedilotildees estrangeiras abriram as portas ao Platonismo
de teor miacutestico-teoloacutegico que dominou alguns ambientes intelectuais da segunda
metade do seacuteculo XV cujos rastros propiciaram a abertura para tradiccedilotildees de teor
esoteacuterico Vejamos como
1 A alcunha ldquoCosimo il Vecchiordquo eacute comumente traduzida por ldquoCosme o Velhordquo ndash assim sem viacutergula Optamos
por manter os nomes italianos em seu idioma original 2 O projeto como se sabe mostrou-se malogrado o seacuteculo XV assiste agrave tomada decisiva do Impeacuterio do Oriente
por Maomeacute II que agrave frente dos otomanos conquista Constantinopla em 1453 3 O Conciacutelio para a uniatildeo das Igrejas iniciara em Basileia em 1431 sendo depois transferido para Ferrara e
finalmente para Florenccedila em 1439 Cosimo dersquo Medici regeu a cidade de Florenccedila entre 1434 e 1464 Para maiores detalhes acerca do Conciacutelio leia-se Joseph GILL Il Concilio di Firenze Firenze Sansoni 1967
4 Moshe IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 34
15
Apoacutes a tomada da capital de seu Impeacuterio pelos otomanos que ocorreria poucos
anos apoacutes o teacutermino do Conciacutelio muitos bizantinos permaneceram na Itaacutelia Alguns
dentre eles antes daquele periacuteodo vinham ajudando a incrementar o ensino do
grego necessaacuterio para o diaacutelogo com os Antigos5 contudo a contribuiccedilatildeo bizantina
mostrou-se bem mais significativa Dois personagens em particular corroboraram a
mudanccedila de paradigma intelectual que estava por vir Basiacutelio Bessarion e George
Gemistos ambos com papeacuteis seminais dentro da organizaccedilatildeo do Conciacutelio Bessarion
chegara agrave Itaacutelia em vestes de arcebispo acompanhado de Nicolau de Cusa revelando-
se um importante sustentador da uniatildeo das Igrejas Gemistos que se tornara
conhecido como George Plethon passara a integrar o Conselho de Florenccedila a partir
de rsquo38 tornando-se conselheiro do Imperador oriental Desde o iniacutecio daquelas
reuniotildees Bessarion mostrara-se preocupado em proteger os uacuteltimos vestiacutegios da
cultura grega de uma provaacutevel extinccedilatildeo assim ao mudar-se para a Itaacutelia de forma
definitiva decide transferir e doar agrave cidade de Veneza sua inteira biblioteca bizantina
exercendo ateacute o fim de seus dias uma incansaacutevel atividade de procura de textos
antigos6 O viacutenculo entre os dois eruditos iniciara ainda na Greacutecia quando durante
seis anos Bessarion frequentara em Mistra a escola de George Plethon mestre que o
introduzira agrave filosofia platocircnica7 Agrave eacutepoca Plethon se apresentava com um
comportamento profeacutetico atraveacutes do qual anunciava o fim das trecircs grandes religiotildees
e o consequente advento da cidade platocircnica8 Mais tarde seria ele o mestre de
Mistra um dos grandes responsaacuteveis pelo florescimento do Platonismo em Florenccedila
Sua presenccedila em solo toscano que de imediato provocaria uma profunda impressatildeo
no ciacuterculo de intelectuais florentinos lhe permitiria exercer um efetivo influxo sobre
seu pensamento sobretudo em duas frentes o estiacutemulo para uma mudanccedila de
orientaccedilatildeo filosoacutefica de Aristoacuteteles em direccedilatildeo a Platatildeo e a abertura para doutrinas
5 Alguns gregos de elevada erudiccedilatildeo como Argiropoulos George de Trebizonda Teodoro Gaza e seu disciacutepulo
Demetrio Calcondila alavancaram o ensino do grego entre os humanistas italianos (Eugenio GARIN Lo zodiaco della vita - La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007 p63) A caacutetedra de grego focircra inaugurada por Manuel Chrysoloras em Florenccedila no seacuteculo anterior sendo recebida com exclamaccedilotildees por Leonardo Bruni ldquoEram setecentos anos que a Itaacutelia ignorava o grego fonte de todas as doutrinasrdquo (Leonardi ARETINI Rerum suo tempore gestarum commentarius in ldquoMuratorirdquo Rev Ital Script XIX 3 1926 p403 apud GARIN LUmanesimo italiano 2008 p48)
6 GARIN Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007 p63 Apoacutes a queda de Constantinopla Bessarion sentiu a necessidade de formar uma biblioteca que protegesse a sobrevivecircncia da civilizaccedilatildeo grega e bizantina Conseguiu comprar ou fazer copiar a maior parte das obras do Helenismo antigo e escolheu como abrigo a cidade de Veneza natildeo somente pela confianccedila em seu sistema constitucional republicano como pelo fato de que ali prosperava uma expressiva colocircnia grega que lhe parecia constituir uma segunda Bizacircncio Os inventaacuterios das vaacuterias doaccedilotildees que foram feitas agrave Biblioteca de San Marco foram elencados por Lotte LABOWSKY em Bessarions Library and the Biblioteca Marciana - Six early inventories Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1979 Para maiores informaccedilotildees acerca de Bessarion veja-se Jonathan MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 sobretudo a nota 120 p 52 para amplas referecircncias bibliograacuteficas
7 Em Mistra antiga Esparta Plethon fundara uma escola filosoacutefico-religiosa de tendecircncias neoplatocircnicas antes de vir para a Itaacutelia participar do Grande Conciacutelio Em duas cartas (uma de 1446-47 e a outra de 1454) Bessarion se refere a seu mestre Plethon como ldquoo mais saacutebio dos homensrdquo e ldquomais semelhante a Platatildeo em sabedoria e qualquer outra virtude do que qualquer outro nascido na Greacutecia desde a Antiguidaderdquo Embora cristatildeo Bessarion sugeria que conforme a doutrina da transmigraccedilatildeo das almas adotada por seu mestre ldquonatildeo se poderaacute negar que a alma de Platatildeo tomou por morada o corpo de Plethonrdquo (John MONFASANI Bessarione La Natura delibera la Natura e lrsquoArte Milano 2014 apud MOLINARI op cit np60)
8 Franccedilois MASAI Pleacutethon et le Platonisme de Mistra 1956 pp 300-314 Para maiores detalhes sobre a vida de George Plethon vejam-se as obras de Christopher WOODHOUSE George Gemistos Plethon - The last of the Hellenes Oxford Clarendon Press 1986 (pp 154-170) Arnaldo DELLA TORRE Storia dellrsquoAccademia platonica di Firenze Firenze 1902 Eugenio GARIN Rinascite e Rivoluzioni Bari Laterza 1975
16
estrangeiras ndash de cunho misterioloacutegico ndash que apresentavam viacutenculos teoreacuteticos entre
si
Assim pode-se dizer que a presenccedila grega em territoacuterio italiano natildeo propiciou
apenas o aprendizado de um idioma e o afluxo de manuscritos trouxe outros
desdobramentos Nas discussotildees em que defendiam a originalidade do pensamento
grego frente aos latinos os padres gregos contribuiacuteram em algum niacutevel e mesmo que
de forma involuntaacuteria a acelerar a crise da filosofia escolaacutestica no Ocidente atraveacutes
da instauraccedilatildeo de um certo ambiente de repuacutedio a Aristoacuteteles em seus ciacuterculos em
linhas gerais difundiam a opiniatildeo que os silogismos do Estagirita nada acresciam agrave
Teologia estranhando a forma como seus contemporacircneos latinos sustentavam teses
a partir de arsenais dialeacuteticos9 Cabe observar que certos fundamentos da tradiccedilatildeo
monaacutestica bizantina corroboravam tal direcionamento seus mosteiros eram
marcados pela miacutestica e pelo pietismo faces de uma especiacutefica forma doutrinal que
levava muitos padres gregos a se identificarem mais intimamente com os teores
neoplatocircnicos10
As discussotildees teoloacutegicas somaram-se agraves entatildeo existentes discussotildees
acadecircmicas que dividiam humanistas e aristoteacutelicos11 Um dos principais atores a lhes
fornecer municcedilatildeo foi George Plethon ao escrever um polecircmico opuacutesculo que em
breve tempo se tornaria objeto de intenso debate nos ciacuterculos de imigrados gregos ndash
sobretudo aqueles reunidos em torno a Bessarion ndash passando a verter para os
nuacutecleos latinos12 O opuacutesculo sustentava o ldquoprimadordquo de Platatildeo o que provocou a
reaccedilatildeo de seu conterracircneo George de Trebizonda que sairia em defesa de Aristoacuteteles
atraveacutes de sua Comparatio philosophorum Aristotelis et Platonis de 1458 A questatildeo
assume ressonacircncia puacuteblica levando o entatildeo cardeal Bessarion a efetuar uma
contrarreacuteplica Surge assim em 1459 a primeira versatildeo em grego do In
calumniatorem Platonis texto de capital importacircncia no qual sem atacar Aristoacuteteles
ndash cujos escritos ensinados por dois seacuteculos nas universidades europeias eram
considerados superiores em clareza e ordem expositiva ndash Bessarion se esforccedila por
mostrar que as razotildees habitualmente utilizadas para justificar a preferecircncia pelo
Liceu eram inconsistentes pois originadas de uma incompreensatildeo das verdadeiras
9 Jean DEacuteCARREAUX Les Grecs au Concile de lrsquoUnion Ferrare-Florence 1438-1439 1970 p106 Ainda para
as reaccedilotildees contra o Aristotelismo veja-se Joseph GILL Il Concilio di Firenze 1967 p270 10 A partir de 1347 a igreja bizantina havia adotado a doutrina esicasta que representava mais do que uma
retomada de posiccedilotildees neoplatocircnicas Para muitos patriotas bizantinos era uma forma de inovaccedilatildeo que andava em direccedilatildeo contraacuteria tanto agrave Igreja ortodoxa quanto agrave antiga tradiccedilatildeo filosoacutefica ligada ao Aristotelismo (cf James HANKINS Plato in the Italian Renaissance Brill Leiden 1990 pp 193-197 apud MOLINARI opcit np60) Natildeo nos cabe aprofundar uma reflexatildeo em torno agraves complexas discussotildees teoloacutegicas entre gregos e latinos que influiriam em seus direcionamentos filosoacuteficos nossa intenccedilatildeo eacute pincelar alguns matizes que conduzem aos conteuacutedos a serem tratados
11 As disputas entre aristoteacutelicos e platonistas perpassam o seacuteculo XV sendo comprovadas atraveacutes de grande quantidade de material epistolar A Filosofia quattrocentesca eacute efetivamente marcada pela presenccedila de dois principais troncos a disputar o mesmo seacuteculo De um lado perpetua-se o pensamento escolaacutestico herdado dos medievais representado pela cidade de Paacutedua verdadeira rocha da tradiccedilatildeo aristoteacutelica-averroiacutesta de outro consolida-se o receacutem-nascido pensamento humanista com sua sede na eleita Florenccedila que em muitas narrativas define a ideologia do seacuteculo em questatildeo Maiores detalhes sobre o tema podem ser lidos em Paul Oskar KRISTELLER Studies in Renaissance Thought and Letters 1996 Eugenio GARIN LUmanesimo italiano 2008 Francesco BAUSI E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza 1998
12 O opuacutesculo de George Plethon seria publicado em latim apenas no seacuteculo seguinte sob o tiacutetulo De differentiis Platonis et Aristotelis
17
intenccedilotildees que estavam na origem dos Diaacutelogos A forma enigmaacutetica da obra
platocircnica acentuada pelo uso de mitos e de imagens poeacuteticas nascia natildeo de uma
escassa preparaccedilatildeo loacutegica de seu Autor ou de um suposto desprezo pelo rigor
cientiacutefico mas sim em razatildeo da elevada altitude metafiacutesica de seu discurso que natildeo
poderia nem deveria ser expresso em termos a todos compreensiacuteveis A ideia de
conteuacutedos que natildeo poderiam ser revelados na obra de Platatildeo enfatizada por
Bessarion frutificaria sobretudo entre os ciacuterculos que viriam a frequentar a
Academia de Florenccedila
Outro fator concorrente para a orientaccedilatildeo da vida intelectual italiana que
tomaria um rumo de crescentes conotaccedilotildees miacutesticas foi a chegada de rabinos
miacutesticos e estudiosos de teosofia hebraica provenientes dos lugares mais distantes da
Diaacutespora que souberam desenvolver escolas de estudo e laboratoacuterios de escrita e
estampa a ponto de exercerem um influxo original sobre a cultura europeia13 Assim
enquanto a primeira metade do Quatrocentos presencia o influxo bizantino na
segunda metade do seacuteculo estreitam-se as relaccedilotildees entre os intelectuais cristatildeos e os
judeus sobretudo em razatildeo da toleracircncia exercida pelo neto de Cosimo Lorenzo e
pelos ciacuterculos ligados a Pico della Mirandola14 As trocas entre judeus e cristatildeos
gregos ndash ambos depositaacuterios da antiga sabedoria helecircnica ndash natildeo eram novidade
ocorrecircncia que podia ser verificada ainda em solos bizantinos15 Dessa vez as
contribuiccedilotildees do nuacutecleo intelectual hebraico somadas agrave bagagem trazida pelos
bizantinos voltavam-se agrave latinidade cristatilde Ademais uma significativa quantidade de
mestres hebreus tornou propiacutecia a divulgaccedilatildeo de textos ateacute entatildeo desconhecidos no
seacuteculo XV seja em razatildeo da dificuldade de traduccedilatildeo dos originais ndash gregos hebraicos
ou aacuterabes ndash seja em razatildeo do caraacuteter sigiloso de alguns textos hebraicos ndash que devido
a certas contingecircncias comeccedilaram a ser divulgados16
13 Gianfranco BURCHIELLARO ldquoIntroduccedilatildeordquo a Mantova e la Qabbalah 2001 14 IDEL opcit 1998 pp 39-40 Tais relaccedilotildees satildeo comprovadas por epiacutestolas como uma carta de Ficino de
1485 que relata os frutiacuteferos encontros entre doutos hebreus e cristatildeos (Ficino Opera I pp903-904 apud Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 64) Lorenzo dersquo Medici teve uma especial benevolecircncia com os judeus acolhendo em sua casa meacutedicos (a legislaccedilatildeo eclesiaacutestica proibia que cristatildeos fossem tratados por meacutedicos judeus mas as terras florentinas natildeo seguiram essa vedaccedilatildeo) muacutesicos como Guglielmo da Pesaro e filoacutesofos ligados ao seu amigo Pico della Mirandola Houve pregadores especialmente das Ordens Mendicantes que tentaram levantar a populaccedilatildeo contra os judeus como em outras eacutepocas mas as consequecircncias de suas pregaccedilotildees foram bastante limitadas e controladas nesse periacuteodo Sobre o teacutermino da benevolecircncia com os judeus a partir do advento de Savonarola leia-se Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p54 Para maiores detalhes acerca da aceitaccedilatildeo dos judeus em solo toscano veja-se Lamberto CROCIANI Chiesa fiorentina e comunitagrave ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico ibid 1998 p85Veja-se ainda Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 pp56-61 Cesare VASOLI ldquoQuadro drsquoInsiemerdquo in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 5
15 George Plethon por exemplo antes de chegar agrave Itaacutelia estudara por muitos anos na escola de um renomado mestre hebreu Elisseo (Elischa) que por sua vez era sequaz dos inteacuterpretes aacuterabes de Aristoacuteteles Elisseo foi um importante transmissor natildeo apenas da cultura aacuterabe como da grega e persa tendo sido ele a iniciar Plethon no pensamento de Zoroastro que mais tarde chegaria agrave Academia florentina (cf MASAI opcit pp 57-60)
16 IDEL opcit 1998 p 34 Em resposta agrave nova segregaccedilatildeo dos judeus que viria no seacuteculo XV e da queima de seus livros sagrados houve um incremento de publicaccedilotildees de textos judaicos considerados segretos como forma de reaccedilatildeo agraves perseguiccedilotildees e frente ao perigo de aniquilamento da proacutepria cultura (Giulio BUSI Mantova e la Qabbalah 2001 p 28)
18
Conquanto desde o iniacutecio do lsquo400 alguns humanistas cristatildeos seguissem aulas
com professores de hebraico17 foi somente a partir da segunda metade do seacuteculo que
alguns doutos hebreus se tornariam renomados entre os ciacuterculos natildeo-hebraicos
passando a se expor em um clima de liberdade e de proficuidade sem precedentes na
histoacuteria intelectual judaica18 Antes desse periacuteodo o pensamento judaico natildeo havia
exercido nenhuma influecircncia decisiva sobre os maiores representantes do
pensamento cristatildeo salvo raras exceccedilotildees como foi o caso do influxo do Guia dos
Perplexos de Maimocircnides sobre Tomaacutes de Aquino e da influecircncia de A Fonte da
Vida de Avicebron sobre a teologia franciscana19 Agora bem mais que mediadores
linguiacutesticos os judeus mais ilustrados interpretavam textos criativamente e
capacitavam seus patronos cristatildeos a apreender formas de pensamento mais antigas e
ateacute entatildeo inacessiacuteveis em razatildeo de seus idiomas originais Alguns judeus tornaram-se
assim mestres requisitados como foi o caso dos ceacutelebres Flaacutevio Mitridate e Elia del
Medigo que mediavam o conhecimento hebraico e o aacuterabe bem como de Yohanan
Alemanno que teve acesso agraves mais importantes obras platocircnicas e neoplatocircnicas a
partir da tradiccedilatildeo filosoacutefica judaico-aacuterabe ndash trecircs autores aos quais seraacute feita uma
aproximaccedilatildeo nos proacuteximos capiacutetulos
A partir do uacuteltimo quartel do seacuteculo XV verifica-se uma significativa mudanccedila
de direccedilatildeo nas reflexotildees daqueles trecircs mestres sintomaacutetica da nova atmosfera
intelectual que se firmava ou quem sabe de uma maior liberdade que permitia o
afloramento de seus verdadeiros interesses temaacuteticos Conteuacutedos filosoacuteficos de teor
metafiacutesico passam a ser relacionados com conteuacutedos maacutegicos em diferentes
formatos que emergem em linha paralela com o interesse intelectual cristatildeo
passando a contaminar os ciacuterculos de Florenccedila A interpretaccedilatildeo com feiccedilotildees maacutegicas
da Cabala aparece seja nas traduccedilotildees latinas de Mitridate como nos escritos de
Alemanno na mesma eacutepoca em que Ficino traduz textos ldquomaacutegicosrdquo colhidos de obras
neoplatocircnicas e hermeacuteticas20 Contudo e apesar da reciacuteproca atraccedilatildeo por assuntos de
magia entre estudiosos dos dois grupos religiosos os autores judeus gozavam de
maior liberdade intelectual do que os autores cristatildeos que se encontravam sob a mira
da Igreja21 Assim fontes neoplatocircnicas e hermeacuteticas ndash e no caso de Giovanni Pico e
seus amigos judeus tambeacutem cabaliacutesticas ndash podem ser encontradas nos escritos da
eacutepoca unidas em amaacutelgamas que caracterizam uma forma original de pensamento
Da mesma forma como ocorreu com os gregos os judeus mais eruditos
receberam amplos incentivos de mecenas tanto cristatildeos quanto pertencentes ao
17 Caso de Poggio Bracciolini e Giannozzo Manetti 18 Sobre o tema leia-se Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 pp274-278 19 IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e
Cabalistas 2008-b p 457 20 Moshe IDEL efetua uma anaacutelise acerca do significativo paralelo que se estabeleceu entre os intelectuais
judeus e cristatildeos precisamente no mesmo periacuteodo e na mesma aacuterea geograacutefica considerando esse um dilema interessante da histoacuteria intelectual ainda natildeo esclarecido (1998 pp 23-25) Franco BACCHELLI (Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p 36) confirma a reciprocidade de tais influxos muitas marcas das discussotildees sobre Magia e Astrologia mantidas entre Pico e Ficino ndash no contexto das duas longas polecircmicas que perpassaram o seacuteculo ndash encontram-se nas obras posteriores de Alemanno
21 Segundo Idel existem registros de encontros entre magos cristatildeos e judeus durante o Renascimento (2008-b np464) Sobre a sutil fusatildeo de elementos neoplatocircnicos com aspectos do misticismo judaico vejam-se na mesma obra as paacuteginas 499-501 Ainda Giulio BUSI La Qabbalah 2011 pp28-29
19
nuacutecleo hebraico Agrave eacutepoca de Lorenzo dersquo Medici a tradiccedilatildeo familiar do mecenato
hebraico alcanccedilou seu maacuteximo esplendor atraindo para Florenccedila numerosas
personalidades do mundo hebraico no mesmo periacuteodo a Academia florentina se
abria para o mundo22 Suas contribuiccedilotildees juntamente com as discussotildees entre padres
gregos e latinos ajudaram a disseminar a filosofia neoplatocircnica enquanto em modo
simultacircneo se renovava o interesse pela mensagem velada natildeo-escrita George
Plethon de forma preciacutepua embora falecendo quase dez anos antes do surgimento
do ciacuterculo de estudos platocircnicos seria o responsaacutevel por transmitir consistentes
sementes que se desenvolveriam dentro daquele ambiente vindo a dar frutos a partir
da segunda metade do seacuteculo
A Academia antigas tradiccedilotildees novas traduccedilotildees
A chegada de Plethon agrave cidade dos Medici entusiasmou o velho Cosimo que
costumava estar entre aqueles que ouviam os discursos do filoacutesofo bizantino Plethon
vindo para o Conciacutelio que ajudaria a pacificar os acircnimos religiosos aproveitou para
dar a seus ouvintes latinos todos enamorados de Aristoacuteteles uma ideia da grandeza
de Platatildeo Cativado por tais discursos apaixonados foi sendo concebido no Patriarca
natildeo sem as devidas sugestotildees do amigo grego o desenho de um plano para instaurar
um centro de estudos de vieacutes platocircnico em solo toscano Em certo ponto Cosimo
decide realizar tal obra e escolhe o filho de seu meacutedico o ainda jovem Marsilio Ficino
para levar a termo tal empreitada Assim no ano de 1462 ndash ano considerado de
fundaccedilatildeo da Academia ndash Cosimo daacute a Ficino uma villa em Careggi incumbindo-o da
traduccedilatildeo e comentaacuterios de alguns diaacutelogos platocircnicos23 O proacuteprio Ficino batiza o
local com o nome ldquoacademiardquo homenagem agrave antiga escola fundada por Platatildeo A
Academia de Careggi preluacutedio da Academia de Florenccedila que floresceria mais tarde
sob os auspiacutecios drsquoil Magnifico Lorenzo natildeo foi um organismo legalmente
constituiacutedo como uma instituiccedilatildeo mas um simples convecircnio de doutos reunidos em
nome de um mesmo interesse cultural Suas portas se abriram para receber os mais
diversos interessados desde pensadores ilustres como Angelo Poliziano Cristoforo
Landino e os irmatildeos Benivieni ateacute poetas oradores sacerdotes homens de governo
muacutesicos juristas meacutedicos e o proacuteprio Lorenzo
Do lado de fora o cenaacuterio florentino era incrementado pelo despertar do
interesse e do envolvimento cultural de crescente nuacutemero de habitantes da cidade
tatildeo amplo na segunda metade do seacuteculo que ultrapassava os meios acadecircmicos
estendendo-se aos burgueses meacutedicos funcionaacuterios puacuteblicos artesatildeos A discussatildeo
de obras difiacuteceis como De Ente et Uno de Pico della Mirandola de temaacutetica abstrata
e aparentemente reservada a poucos especialistas despertava o interesse de um
22 CASSUTO opcit 1918 pp301-303 O patriarca Yehiel da Pisa foi um dos grandes dinamizadores de
literatura e poesia da eacutepoca e seu neto tambeacutem Yehiel que viveu agrave eacutepoca de Lorenzo dersquo Medici acolheu em sua casa florentina por vaacuterios anos uma verdadeira corte de literatos hebreus Na casa de Yehiel Yohanan Alemanno foi criado desde ainda menino educado e instruiacutedo de forma ldquoamorosardquo como conta em ldquoPrefaacuteciordquo ao seu livro Chesel Shelomograve (apud CASSUTO ibid np303)
23 GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006 pp15-16
20
puacuteblico consideraacutevel a ponto de entusiasmaacute-lo24 O habitat florentino em si com seu
fervor cultural representava uma experiecircncia culturalmente importante para os
jovens estudantes que chegavam agrave cidade pela primeira vez como narraria Yohanan
Alemanno em uma de suas obras25 Enquanto isso dentro da Academia ocorria um
movimento de renovaccedilatildeo da feacute encabeccedilado por Ficino que fundamentando-se nas
especulaccedilotildees de Plethon postulava a comunhatildeo entre Religiatildeo e Filosofia buscando
acomodar aquela aos novos tempos26 A unificaccedilatildeo entre o Cristianismo e os
redescobertos temas da filosofia platocircnica e neoplatocircnica ndash em grande parte
originalidade sua ndash juntamente com sua vasta obra de traduccedilatildeo foram os dois
importantes legados deixados por Ficino
Efetivamente as traduccedilotildees foram uma dimensatildeo importante do Renascimento
florentino promovidas sobretudo pelo mecenato dos dois Medici avocirc e neto Dois
grandes conjuntos de obras foram traduzidos na comitiva de Lorenzo o de idioma
grego que incluiacutea textos neoplatocircnicos e hermeacuteticos e o hebraico que contemplava
tratados natildeo apenas filosoacuteficos como cabaliacutesticos27 Assim ao iniacutecio da deacutecada de lsquo60
Ficino traduz Alciacutenoo Especircusipo os ldquoVersosrdquo outorgados a Pitaacutegoras e o texto
lAssioco atribuiacutedo a Xenoacutecrates Mais adiante os hinos atribuiacutedos a Orfeu a
Homero os de Proclo e a Teologia de Hesiacuteodo Em lsquo84 inicia a traduccedilatildeo das
Eneacuteadas de Plotino e entre lsquo88 e lsquo93 traduz Teofrasto Porfiacuterio Jacircmblico Prisciano
Sineacutesio Miguel Psello Pseudo-Dioniacutesio e os fragmentos de Atenaacutegoras Junte-se a
essas a traduccedilatildeo de trinta e seis obras platocircnicas e vaacuterias outras28 A magnitude da
obra de traduccedilatildeo ficiniana natildeo suficientemente destacada viria a ter um notaacutevel
influxo no pensamento renascentista europeu aleacutem de propiciar agravequela cultura um
patrimocircnio ateacute entatildeo desconhecido em sua complexidade Ora nos seacuteculos anteriores
a essa eacutepoca os textos de Platatildeo natildeo eram lidos diretamente da fonte original trecircs
seacuteculos antes de Ficino o abade Guglielmo de Saint Thierry escrevia sobre o amor
24 Esses detalhes da vida na cidade podem ser avaliados atraveacutes de cartas trocadas entre Pico e cidadatildeos
comuns que natildeo apenas se mostravam interessados como estavam aptos muitas vezes a debater ideias filosoacuteficas bastante eruditas (cf Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p96)
25 Alemanno escreve na obra Hay ha-olamim (Lrsquoimmortale) que a cidade digna de se tornar a meca ideal de todo jovem desejoso de aprofundar seus conhecimentos era ldquoFirenze in terra di Toscanardquo O autor elenca as virtudes dos florentinos assim efetuando um verdadeiro elogio humanista agrave Repuacuteblica de Florenccedila (M MORTARA Catalogo dei manoscritti ebraici della biblioteca della comunitagrave israelitica di Mantova Livorno I Costa e C 1878 pp22-29 apud Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 51)
26 George Plethon vivera uma ldquofeacuterdquo neoplatocircnica procurando explicar questotildees teoloacutegicas de forma racional Ficino por sua vez torna-se padre catoacutelico e embora pretendendo seguir os cacircnones de sua feacute cristatilde natildeo consegue renunciar agrave formulaccedilatildeo de uma teologia racional capaz de dar agrave feacute religiosa um fundamento filosoacutefico (Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano p71) Sobre as afinidades entre o Platonismo e o Cristianismo veja-se COPENHAVERndashSCHMITT Renaissance philosophy A History of Western Philosophy 1992 p152
27 Segundo Moshe IDEL (1998 pp 19 24) a obra grega traduzida por Ficino e o conjunto cabaliacutestico traduzido por Mitridate foram as fontes mais importantes para o desenvolvimento intelectual dos pensadores florentinos do final do seacuteculo XV e da Europa como um todo Suas contribuiccedilotildees foram devidamente reconhecidas pelos estudiosos as traduccedilotildees de Ficino de forma especial por Paul Oskar KRISTELLER (La tradizione classica nel pensiero del Rinascimento 1975) Jaacute as traduccedilotildees do hebraico mais recentemente foram analisadas detalhadamente por Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticis 19871989)
28 Como infere Mariateresa BROCCHIERI (opcit p24) ldquoem momentos proacutesperos da Histoacuteria ocorrem afortunados fenocircmenos de encontro entre o poder e a cultura trecircs seacuteculos antes na rica Andaluzia muccedilulmana o califa Abu Yarsquoqub Yusuf passara a Averroacuteis a tarefa de traduzir e comentar Aristoacutetelesrdquo dando o pontapeacute inicial para um longo periacuteodo de estudos aristoteacutelicos Agora era a vez de Cosimo Ficino e a abertura para os estudos platocircnicos
21
platocircnico baseado em fontes indiretas como Ciacutecero ou Agostinho Mas agora no
seacuteculo de Pico podia-se ler Platatildeo diretamente e as suas palavras tornavam-se pontos
de referecircncias primaacuterias29
Em meio ao material filosoacutefico houve ainda dentro da esfera intelectual da
Renascenccedila um amplo espaccedilo para temaacuteticas de cunho ldquotranscendenterdquo de
acentuado teor esoteacuterico apresentadas muitas das vezes revestidas por uma
roupagem filosoacutefica entretecida de tendecircncias neoplatocircnicas hermeacuteticas e ndash menos
perceptiacuteveis ndash cabaliacutesticas Um dos responsaacuteveis por instigar tal atmosfera fora
George Plethon cuja influecircncia natildeo se dera apenas em relaccedilatildeo ao Platonismo ele
tambeacutem trouxera Hermes Trismegisto e Zoroastro para Florenccedila jaacute devidamente
sistematizados pelo bizantino Miguel Psello no seacuteculo XI30 A partir das traduccedilotildees de
Ficino para o latim conteuacutedos permeados de misticismo e magia passam a ser
transmitidos a vaacuterios nuacutecleos da sociedade embora tal gecircnero de interesse se
mostrasse anterior tendo percorrido o seacuteculo por inteiro A relevacircncia dada ao tema
permite algumas especulaccedilotildees Para o homem meacutedio31 a religiatildeo apresentava uma
dicotomia mateacuteria-espiacuterito entatildeo natildeo mais tanto satisfatoacuteria a mateacuteria era causa de
afliccedilotildees e o reino do espiacuterito mostrava-se distante demais A intuiccedilatildeo de mundos
intermediaacuterios corroborada pelas discussotildees astroloacutegicas trazia possiacuteveis respostas agrave
sua precaacuteria existecircncia ao mesmo tempo em que o conhecimento de formas de magia
permitia natildeo se deixar dominar pelo fatuum32 Criava-se assim um espaccedilo entre a
religiatildeo e a mateacuteria preenchido pelo acesso agravequelas realidades intermeacutedias como
observou Eric Weil ldquoo homem renascentista iacutea agrave missa e depois ao astroacutelogordquo33
Ademais a crenccedila na Astrologia se intensifica em razatildeo de um difundido
anseio por unificaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o cosmo ao seu redor ndash tema estimado pelo
ldquoespiacuteritordquo do seacuteculo e razatildeo do incremento daquele estudo em meio aos humanistas
da Academia A invenccedilatildeo da prensa graacutefica tornou possiacutevel determinar com certo
grau de precisatildeo quais obras eram consideradas essenciais ou populares agrave eacutepoca
atraveacutes da detecccedilatildeo de quais conteuacutedos foram impressos mais cedo e em maior
nuacutemero a quantidade de volumes dedicados agrave Astrologia no Quattrocento italiano
aponta para a disseminaccedilatildeo de tal interesse juntamente com sua centralidade nas
29 COPENHAVER-SCHMITT opcit pp133 ss No ldquoPrefaacuteciordquo ao Supplementum ficinianum Giovanni
GENTILE escreve que Ficino eacute importante natildeo apenas para o entendimento do Renascimento italiano como do Platonismo europeu que sobreviveria dois seacuteculos depois dele portanto para o entendimento de muito da Filosofia Moderna de cujo desenrolar se plasmou o pensamento de nosso tempo (KRISTELLER Supplementum ficinianum 1937) Eugenio GARIN por sua vez ajuiacuteza que ldquoacerca da ressonacircncia enorme causada pela traduccedilatildeo de Ficino nunca se diraacute o suficienterdquo (op cit 2007 p73)
30 Arthur FIELD The Platonic Academy of Florence in Allen-Rees (org) Marsilio Ficino his Theology his Philosophy his Legacy 2002 pp 359-376 Ainda para o tema veja-se IDEL 2008 p499
31 A menccedilatildeo ao homem ldquomeacutediordquo eacute usual em textos intelectuais da eacutepoca como os de Ficino e Pico para indicar homens natildeo partiacutecipes do mundo do pensamento Veja-se por exemplo De Hominis Dignitate Heptaplus De Ente et Uno e scritti vari 1942 p396
32 Natildeo poucos textos de conteuacutedos declaradamente maacutegicos circulavam no Quattrocento Eugenio Garin considera que o tema da magia encontra-se no centro do quadro renascentista tal constataccedilatildeo faz o autor se distanciar sob esse quesito de Jacob Burckhardt e Giovanni Gentile (cf Michele CILIBERTO Prefaacutecio a GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006) Sobre o fatuum veja-se GARIN ibid p42
33 Eric WEIL La Philosophie de Pietro Pomponazzi Pic de la Mirandole et la Critique de lrsquoAstrologie 1986 p66 Weil acrescenta que o homem do lsquo400 vivia em si uma divisatildeo interna estanque ele se via cristatildeo iacutea agrave igreja cumpria todos seus deveres religiosos ele sabia da existecircncia da alma e que essa tinha um valor mas era um saber ldquomortordquo pois o que ocorria no mundo material natildeo tinha relaccedilatildeo com a sua alma
22
discussotildees metafiacutesicas34 a presenccedila constante de instacircncias profeacuteticas na vida
poliacutetica as representaccedilotildees artiacutesticas (a imagem do homem coacutesmico onde cada parte
ou oacutergatildeo do corpo se encontra ligada a um corpo celeste torna-se comum nos
tratados astroloacutegicos) e a importacircncia do papel do astroacutelogo ndash que se torna um ator
social requisitado Todas indicaccedilotildees de um fenocircmeno central e caracterizante de uma
eacutepoca35
Sob tal clima homens letrados recepcionam o Picatrix manuscrito aacuterabe de
conteuacutedo maacutegico36 Bem mais que um manual de magia cerimonial o texto
contempla uma mescla de temas filosoacuteficos teoloacutegicos e praacuteticos apresentando um
nexo ldquoentre pressupostos teoacutericos e praacuteticas operativas entre hermetismo
especulativo de vieacutes platonizante e magia entre teurgia e teosofia orientalrdquo37 Lecirc-se
em suas linhas que ldquoa ciecircncia procede por graus conhecido um logo surge outro a
ser apreendidordquo e que ldquoatraveacutes da ciecircncia o homem faz milagres compreende tudo
consegue ser tudordquo38 Chamaria a atenccedilatildeo da Academia o conceito de ldquoNatureza
Perfeitardquo uma entidade espiritual agrave qual os filoacutesofos participam em graus diversos
qual um caminho iniciaacutetico que se desvela agrave medida que se caminha ndash um segredo
escondido dentro da Filosofia No proacuteprio Picatrix encontra-se sua definiccedilatildeo atraveacutes
de um belo discurso atribuiacutedo a Hermes Trismegisto ldquoA Natureza Perfeita eacute o
espiacuterito do filoacutesofo e do saacutebio conjugado ao planeta que o governa Eacute ele que abre as
portas da ciecircncia que o faz compreender as coisas que de outra forma natildeo poderia
compreender e das quais procedem as operaccedilotildees da natureza tanto em vigiacutelia como
no sono Daiacute resulta claro que a Natureza Perfeita se comporta no saacutebio e no filoacutesofo
como o mestre em relaccedilatildeo ao disciacutepulordquo39
O que interessa destacar eacute como as correspondecircncias entre conteuacutedos supra-
mundanos despertaram a atenccedilatildeo de estudiosos como Ficino levando-os a perceber
34 A chamada ldquopolecircmica da astrologiardquo colocaria em evidecircncia a multiplicidade de temas com ela convergentes
ou contrastantes deixando como heranccedila uma vasta quantidade de material literaacuterio O debate que perpassa todo o seacuteculo XV envolvendo um total de pelo menos trecircs seacuteculos torna partiacutecipes tanto homens de inegaacutevel conhecimento cientiacutefico como Paolo Toscanelli quanto homens de profunda religiosidade como Ficino cujas conhecidas praacuteticas astroloacutegicas contrastavam com seu pensamento cristatildeo Tanto Toscanelli quanto Ficino apesar de terem ambos colocado em duacutevida a validade das previsotildees astrais continuavam dependentes das prescriccedilotildees astroloacutegicas como observa Cesare VASOLI em seu ldquoPrefaacuteciordquo agrave obra de Garin (2011) A cidade de Ferrara um dos principais redutos de intelectuais abrigava ciacuterculos de doutos que se reuniam para tentar decifrar os significados que se escondiam nas intrincadas relaccedilotildees formadas entre os astros eram homens de razatildeo que comungavam da mesma ldquofeacuterdquo nas estrelas (Ernst CASSIRER Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1935 pp165 ss) Para os impactos sociais da Astrologia leia-se GARIN Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007
35 Franz BOLL Sphaera Neue griechische Texte und Untersuchungen zur Geschichte der Sternbilder Hildesheim Georg Olms reprinted 1967 p415 ss (apud GARIN Giovanni Pico della Mirandola 2011 p173)
36 O Ghayat al-hakim (O propoacutesito do Saacutebio) ou Picatrix foi um ceacutelebre tratado aacuterabe de autor incerto cuja versatildeo latina manuscrita circulou na Itaacutelia especialmente na segunda metade do lsquo400 ocasionando tanto admiraccedilatildeo quanto indignaccedilatildeo entre alguns cristatildeos e muccedilulmanos ndash como o estudioso Ibn Khaldun ndash por ser visto como um manual de necromancia Giovanni Pico possuiacutea uma coacutepia do manuscrito em sua biblioteca Ludovico Lazzarelli o utilizou bem como no seacuteculo seguinte Cornelio Agrippa Giordano Bruno e Tommaso Campanella A obra encontra-se atualmente no Manuscrito de Munique 214 f51r (Moshe IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e Cabalistas 2008-b np463 p474) Para o tema leia-se GARIN La diffusione di un manuale di Magia la cultura filosofica del Rinascimento italiano Firenze 1961 pp159-165
37 Cf GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006 p47 38 Picatrix III vi trad Henry CORBIN Lrsquohomme de lumiegravere dans le soufisme iranien 1971 pp29-46 39 Picatrix III vi trad CORBIN (opcit)
23
que muitos temas do Picatrix estavam expostos no Pimander hermeacutetico ndash a ser
abordado adiante ndash confirmando a estreita conexatildeo entre Hermetism0 Magia e
Astrologia Indo aleacutem o Picatrix expunha um saber operativo capaz de colocar em
praacutetica as doutrinas hermeacuteticas receacutem-descobertas Com efeito Ficino e Pico se
interessaram pela efetuaccedilatildeo das experiecircncias maacutegicas contidas na obra O clima
excepcional de abertura ao sincretismo de pensamento existente em Florenccedila natildeo
impediu contudo que Ficino sofresse perseguiccedilotildees da Igreja Vozes maliciosas
acusavam-no de ter continuado a realizar praacuteticas maacutegicas juntamente com Pico no
periacuteodo em que este se encontrava confinado apoacutes a condenaccedilatildeo de sua obra
Conclusiones Nongentae e mesmo depois de Ficino ter sido ameaccedilado de
condenaccedilatildeo eclesiaacutestica40 O proacuteprio padre confessava ter utilizado o Picatrix em seu
Terceiro Livro do De Vita ao tratar das propriedades terapecircuticas dos talismatildes
reconhecendo ldquoatraveacutes de longa experiecircnciardquo que a concentraccedilatildeo de influxos celestes
sobre uma imagem realizada segundo as corretas regras apresentava um singular
efeito terapecircutico41 Fato eacute que enquanto Ficino era acusado de praacutetica de magia a
obra De Vita via suas ediccedilotildees se multiplicarem
A Simetria entre as Antigas Teologias
Um ano apoacutes Cosimo ter pedido a Ficino que traduzisse algumas obras
platocircnicas eis que o monge Leonardo de Pistoacuteia chega da Macedocircnia trazendo para
Florenccedila uma coacutepia do Corpus Hermeticum O impacto do surgimento desse material
eacute tatildeo extraordinaacuterio que Ficino se vecirc obrigado a suspender a traduccedilatildeo das obras de
Platatildeo para dedicar-se imediatamente ao novo manuscrito Em uma tradiccedilatildeo que fora
inaugurada por Miguel Psello o pensamento bizantino vinha mantendo por seacuteculos
o Corpus Hermeticum em um lugar de honra dentro do ensinamento platocircnico42 e os
mestres chegados de Bizacircncio para o Conciacutelio de Florenccedila cerca de duas deacutecadas
antes haviam sido os primeiros a apontar para a afinidade existente entre o
Hermetismo e o Platonismo no que concernia agrave sistematizaccedilatildeo do cosmo e agrave
ldquoantropologiardquo presentes em seus textos43 A suposta anterioridade de Hermes
Trismegisto em relaccedilatildeo a Platatildeo e a superioridade espiritual dos egiacutepcios sobre os
gregos ndash entatildeo paradigma maacuteximo do conhecimento ndash sugerida nas palavras
40 GARIN 2006 pp42-49 Nas paacuteginas do Picatrix eacute possiacutevel encontrar um compecircndio de foacutermulas maacutegicas
nas quais satildeo utilizados ingredientes como o oacutepio o haxixe e outras plantas psicoativas cujo consumo induziria a estados alterados e favoraacuteveis agrave clarividecircncia (GARIN 2007 pp51 ss)
41 Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano 1970 p71 Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 38
42 Miguel Psello foi uma das personalidades mais importantes da cultura bizantina poliacutetico conselheiro de imperadores professor da Universidade de Constantinopla autor de numerosos escritos e conhecido em particular por suas obras de Histoacuteria envolveu-se na recuperaccedilatildeo da cultura claacutessica ndash interesse que encontrou a hostilidade dos ciacuterculos tradicionalistas da Igreja Bizantina Comentador de Aristoacuteteles e Platatildeo Psello tambeacutem se interessou pelas obras dos neoplatocircnicos Psello efetuou um recolhimento das coleccedilotildees gregas referentes aos materiais hermeacutetico e caldeu a partir de fragmentos encontrados em Plotino Proclo e outras fontes similares tardias (cf Stephan FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses (1486) The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 pp486-487 A relaccedilatildeo de seus escritos pode ser vista em Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquo Oratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 p19
43 O tema eacute desenvolvido por Paul Oskar KRISTELLER em El pensamiento renacentista y sus fuentes (1982 pp 206-224)
24
atribuiacutedas ao rei-sacerdote44 talvez tenham sido duas entre as razotildees para que os
Diaacutelogos fossem deixados temporariamente de lado
Na medida em que tiveres o poder oacute rei que tudo pode
preserva a qualquer custo este discurso de toda traduccedilatildeo para
que misteacuterios assim grandes natildeo cheguem aos Gregos e a sua
orgulhosa fala com falta de forccedila natildeo faccedila empalidecer e natildeo
anule a gravidade a robustez a virtude operativa dos vocaacutebulos
de nossa liacutengua Pois que os Gregos oacute rei dispotildeem apenas de
discursos vazios afeitos a produzir demonstraccedilotildees e nisso na
realidade consiste toda a sua filosofia em um barulho de sons
Noacutes diversamente natildeo nos utilizamos simplesmente de
palavras mas de sons plenos de eficaacutecia45
O gesto de Cosimo de pedir a traduccedilatildeo de Hermes antes de Platatildeo natildeo estaria
livre de significados o contato com aqueles textos enigmaacuteticos marca com uma
impronta o acircmbito intelectual florentino e o Hermetismo passa a ser uma doutrina
cultuada em toda a sua complexidade maacutegica e teoloacutegica ademais seus ecos seratildeo
fortemente ouvidos no seacuteculo posterior como pode ser constatado atraveacutes de vasta
literatura46 Antes das novas traduccedilotildees o Asclepius um dos tratados hermeacuteticos
havia circulado no Medievo de forma que algumas de suas doutrinas natildeo eram
desconhecidas e vinham sendo estudadas por alguns sobretudo por intermeacutedio das
obras de Lactacircncio e Agostinho ndash o primeiro com seus elogios o segundo com suas
condenaccedilotildees47 Ficino conhecera o Asclepius sete anos antes de iniciar a traduccedilatildeo dos
demais tratados tendo copiado alguns de seus capiacutetulos em um manuscrito pessoal
De toda forma eacute somente a partir de seu amplo trabalho de traduccedilatildeo que o
44 Os humanistas do Renascimento natildeo tinham duacutevidas acerca da antiguidade e da autenticidade daqueles
textos ndash mais tarde revelados pseudoepigraacuteficos dos primeiros seacuteculos da era vulgar ndash e tampouco sobre Hermes ter sido um real sacerdote egiacutepcio
45 Corpus Hermeticum XVI 2 (ed NOCK-FESTUGIEgraveRE 2006 pp429 ss) όσον οΰν δυνατόν έστί σοι βασιλεΰ πάντα δέ δύνασαι τόν λόγον διατήρησον άνερμήνευτον ίνα μήτε είςΈλληνας έλθη τοιαΰτα μυστήρια μήτε ή τών Ελλήνων υπερήφανος φράσις καί έκλελυμένη καί ώσπερ κεκαλλωπισμένη έξίτηλον ποιήση τό σεμνόν καί στιβαρόν καί τήν ενεργητικήν τών ονομάτων φράσινΈλληνες γάρ ώ βασιλεΰ λόγους έχουσι κενούς αποδείξεων ενεργητικούς καί αΰτη έστίν Ελλήνων φιλοσοφία λόγων ψόφος ήμεΐς δέ ού λόγοις χρώμεθα άλλα φωναΐς μεστάΐς τών έργων Traduccedilatildeo do grego feita por Andregrave Festugiegravere traduccedilatildeo para o portuguecircs de nossa responsabilidade
46 Agrave primeira ediccedilatildeo latina do Corpus Hermeticum publicada em 1471 e ateacute entatildeo desconhecida no Ocidente seguiram-se ao menos vinte e quatro ediccedilotildees nos dois seacuteculos posteriores Somente o Pimander primeiro dos tratados teve dezesseis ediccedilotildees entre o final do seacutec XV e o final do seacutec XVI (cf KRISTELLER Studies in Renaissance thought and letters 1956 p223 ss) O impacto da obra hermeacutetica natildeo poderia deixar de atingir o mundo das Artes uma bela representaccedilatildeo de Hermes Trismegisto encontra-se no mosaico de maacutermore feito por Giovanni di Stefano em 1488 para a Catedral de Siena comprovando a aceitaccedilatildeo do saacutebio pagatildeo em territoacuterio cristatildeo Para as repercussotildees do tema veja-se Frances YATES ldquoThe Hermetic Tradition in Renaissance Sciencerdquo in Art Science and History in the Renaissance Baltimore Johns Hopkins Press 1968 pp 255-274 Eugenio GARIN Ermetismo del Rinascimento Pisa ed Della Normale 2006 James HEISER Prisci Theologi and the Hermetic Reformation in the Fifteenth Century Texas Repristination Press 2011 Luisa ROTONDI SECCHI TARUGI LErmetismo nellrsquo Antichitagrave e nel Rinascimento Milano Nuovi Orizzonti 1998
47 As citaccedilotildees hermeacuteticas de Lactacircncio partem da versatildeo de um escrito grego o Loacutegos teacuteleios difundido tambeacutem em versatildeo copta Em carta a Cosimo (contida no Proacutelogo agrave traduccedilatildeo do Pimander) Ficino faz referecircncia agraves acusaccedilotildees de Agostinho acerca das possiacuteveis origens divinatoacuterias ou demoniacuteacas das doutrinas de Hermes no Asclepius (De civitate Dei VIII 23-26) Por tal razatildeo o padre-filoacutesofo teria optado por seguir os juiacutezos mais favoraacuteveis de Lactacircncio Petrarca Coluccio Salutati e Nicolau de Cusa tambeacutem atestam conhecer o conteuacutedo do Asclepius sempre atraveacutes dos olhos de Lactacircncio e Agostinho Para as referecircncias das obras desses autores veja-se GARIN 2006 pp10 ss
25
Hermetismo passa a contribuir e natildeo pouco com a disseminaccedilatildeo de ldquouma nova
sensibilidaderdquo que incrementa ldquoo gosto pelo misteacuterio e pelo ocultordquo conforme ajuiacuteza
Eugenio Garin48
Dentre os dezoito tratados que compotildeem o Corpus49 o Pimander primeiro a
iniciar a ordenaccedilatildeo expotildee um relato sobre a criaccedilatildeo do mundo o homem e sua
Queda Os tratados seguintes descrevem a ascensatildeo da alma pelas esferas dos
planetas para o reino divino e seus processos de regeneraccedilatildeo O Asclepius ou
Discurso Perfeito ndash opuacutesculo desassociado dos demais tratados cuja traduccedilatildeo foi
erroneamente atribuiacuteda a Apuleio de Madaura por natildeo poucos filoacutelogos ndash50 trata da
religiatildeo dos egiacutepcios e seus ritos sacerdotais alguns polecircmicos por serem destinados
a atrair as forccedilas do cosmo para as estaacutetuas de seus deuses O ensinamento nuclear
do Pimander mostra conformidades com o processo de uniatildeo ao Inteligiacutevel descrito
no manual de magia Picatrix que natildeo deixariam de ser percebidas nos dois textos
mestre e disciacutepulo se unificam o diaacutelogo do ser eacute com o noucircs no primeiro e com a
ldquoNatureza Perfeitardquo no segundo ldquoPimander eacute o noucircs que acompanha sempre o
disciacutepulo eacute pois a Natureza Perfeitardquo51
Esse tipo de conteuacutedo tanto em suas partes teoreacuteticas quanto teuacutergicas seria
reconhecido outrossim em meio aos enunciados caldeus introduzidos na urbe por
Plethon Os Oraacuteculos Caldeus atribuiacutedos ao sacerdote persa Zoroastro foram
manuscritos muito bem recepcionados pelo seacuteculo XV tal como ocorreu com os
hermeacuteticos52 Seu conteuacutedo de acordo com juiacutezo de Darby Nock apresenta fortes
semelhanccedilas com escritos do Gnosticismo cristatildeo ndash que em muitos pontos
coincidem com o conteuacutedo do Platonismo dos seacuteculos II e III ndash como o anelo por
certeza e revelaccedilatildeo a propensatildeo agraves abstraccedilotildees metafiacutesicas e a preocupaccedilatildeo com a
alma e sua salvaccedilatildeo53 Des Places descreve o conteuacutedo dos Oraacuteculos como uma seacuterie
de ideias ldquosobre Deus os daimons a alma o cosmordquo aleacutem de indicaccedilotildees sobre ritos
teuacutergicos54 Algumas passagens satildeo descritivas revelando a natureza de Deus do
intelecto e das hipoacutestases derivadas do Uno outras prescritivas formulam
instruccedilotildees que o teurgo deve seguir para purificar suas almas racional e irracional e
o corpo com o objetivo de se juntar agrave fonte original55 Haacute um grande nuacutemero de
48 GARIN 2006 p74 49 A ordenaccedilatildeo foi realizada por Darby Nock que distingue o Corpus Hermeticum do Asclepius e de outros
fragmentos atribuiacutedos a Estobeu Entretanto o todo da obra hermeacutetica eacute chamado a grosso modo Corpus Hermeticum O manuscrito original encontra-se em Florenccedila na Biblioteca Riccardiana 709 ff10r-12r
50 A autoria do Asclepius manteacutem-se desconhecida Ficino atribui a Apuleio a traduccedilatildeo mais antiga do corpus ldquoE multis denique Mercurii libris duo sunt divini praecipue unus de voluntate divina alter de potestate et sapientia dei Ille Asclepius hic Pimander inscribitur Illum Apuleius platonicus latinum fecit alter usque ad haec tempora restitit apud graecosrdquo (Marsilio FICINO Pimander in Opera Omnia KRISTELLER-SANCIPRIANO 1962 p1836)
51 A siacutentese eacute de Eugenio GARIN (2006 pp45-46) conforme sua leitura do Picatrix 52 Ficino traduziu os Oraacuteculos a partir da versatildeo grega de Plethon acrescentando a eles seu proacuteprio comentaacuterio
(FARMER op cit p486) Fontes antigas propotildeem que o verdadeiro autor dos Oraacuteculos Caldeus ou Loacutegia Chaldaikaacute tenha sido Giuliano o Teurgo filho de Giuliano o Caldeu que viveu agrave eacutepoca de Marco Aureacutelio em cerca de 150 dC Sobre a recepccedilatildeo aos textos de Giuliano na Academia veja-se Bohdan KIESZKOWSKI Studi sul platonismo del Rinascimento in Italia 1936
53 Cf ldquoPrefaacuteciordquo de Arthur Darby Nock ao Corpus Hermeticum opcit p 16 54 Edouard DES PLACES Oracles chaldaiumlques 1971 p12 55 Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquoOratio indagine sui presupposti cabbalistici della
concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 p18
26
elementos que remetem ao Timeu platocircnico uma das razotildees que provavelmente
levou Plethon a colocar os Oraacuteculos como fundamento de sua teologia identificando-
os como a fonte das doutrinas zoroastrianas que se encontravam na origem da
teologia platocircnica Em resposta a George Scolario Plethon com efeito atestava ldquoQue
Platatildeo fez dessa filosofia a sua proacutepria eacute demonstrado pelos Oraacuteculos que nos
chegaram de Zoroastro e que concordam em todos os aspectos com as doutrinas de
Platatildeordquo56
Sabe-se que a mentalidade renascentista apreciava os arranjos simeacutetricos de
forma que todas essas traduccedilotildees pertencentes a tradiccedilotildees que natildeo somente detinham
uma prerrogativa de sabedoria como ainda apresentavam uma simetria entre seus
conteuacutedos seriam facilmente absorvidas pelos meios intelectuais sobretudo na
Academia Para muitos humanistas do lsquo400 as formas e os fenocircmenos religiosos
mais antigos eram em certo sentido verdadeiramente puros por se encontrarem
mais proacuteximos da forma original revelada pelo divino aos homens Assim havia um
terreno propiacutecio para o cultivo daqueles temas que contemplavam desde o fasciacutenio
do antigo Egito e seus rituais maacutegicos ateacute a concepccedilatildeo de uma renovaccedilatildeo religiosa
ademais proclamavam o lugar privilegiado do homem ndash tema que seria retomado
por alguns humanistas57 Ficino natildeo demora a incorporar aquelas doutrinas a seus
pensamentos percebendo semelhanccedilas com a filosofia platocircnica e descobrindo
correspondecircncias em Plotino Jacircmblico e Proclo reconhece simetrias teoreacuteticas
sobretudo nos enunciados pertinentes a sistemas cosmoloacutegicos e metafiacutesicos que
passariam a ser enfatizadas em suas obras58
A similaridade encontrada entre esses materiais constituiram para Ficino um
testemunho de arcana mysteria Na concepccedilatildeo ficiniana de inspiraccedilatildeo plethoniana
existiria uma antiga corrente de ensinamentos filosoacuteficos transmitidos por profetas-
teoacutelogos que teriam concebido uma organizaccedilatildeo dos planos inteligiacuteveis
fundamentada em revelaccedilotildees recebidas Sob seu olhar natildeo distante da visatildeo de
outros filoacutesofos ligados ao Neoplatonismo a atividade filosoacutefica coincide com a
teoloacutegica na medida em que prepara a alma-intelecto para acolher a ldquorevelaccedilatildeordquo Os
antigos teoacutelogos prisci theologi satildeo pois aqueles que conhecem por revelaccedilatildeo a
verdade sempre a mesma por se tratar de realidade natildeo sujeita ao devir Seguindo
uma tradiccedilatildeo ininterrupta as doutrinas de Trismegisto foram sendo transmitidas a
outros saacutebios da Antiguidade chegando ateacute Platatildeo compondo o que seria uma secta
philosophorum ndash como escreveria Ficino em sua carta a Cosimo dersquo Medici59
ldquoHermes por primeiro foi chamado teoacutelogo [primus igitur theologiae apellatus est
autor] o seguiu como segundo teoacutelogo Orfeu depois Aglaofemo Pitaacutegoras e
56 A passagem eacute citada e traduzida por S GENTILE Sulle prime traduzioni dal greco di Marsilio Ficino in
ldquoRinascimentordquo nr 30 1990 pp 64-65 apud CORAZZOL opcit p20 57 Para o influxo do Hermetismo sobre os Humanistas leia-se Paul Oskar KRISTELLER El pensamiento
renacentista y sus fuentes 1982 pp 206-219 58 Brian COPENHAVER Hermes Trismegistus Proclus and the Question of a Philosophy of Magic in the
Renaissance in Merkel-Debus (org) Hermeticism and the Renaissance Intellectual History and the Occult in Early Modern Europe 1988 pp 79-110
59 KRISTELLER Studies in Renaissance Thought and Letters 1996
27
Filolau mestre de nosso divino Platatildeordquo60 Plethon havia antecedido Ficino em sua
Prisca Theologia iniciando seu elenco com Zoroastro Certamente o influxo da
concepccedilatildeo intuiacuteda pelo mestre bizantino faria efeito sobre Ficino visto que em seu
ldquoproecircmiordquo agrave traduccedilatildeo das Eneacuteadas plotinianas de 1492 Hermes e Zoroastro seriam
colocados juntos em primeiro lugar como iniciadores da pia philosophia61
Nos anos proacuteximos agrave composiccedilatildeo do De Vita Ficino volta-se cada vez mais
para a traduccedilatildeo de obras de maior cunho esoteacuterico como eacute o caso do De Mysteriis
atribuiacutedo a Jacircmblico e do texto hieraacutetico de Proclo De sacrificio et Magia62 As
concepccedilotildees acerca da existecircncia de uma cadeia formada por antigos ldquoteoacutelogosrdquo a
abertura ao Platonismo estimulada pelos mestres bizantinos as repercussotildees do
misticismo hebraico as traduccedilotildees de Ficino as polecircmicas acerca da Astrologia e da
Magia que perpassam o seacuteculo satildeo todas caracteriacutesticas que se aliam para compor
um ldquoesprit du siegraveclerdquo abrindo espaccedilo para teologias estrangeiras que natildeo poderiam
deixar de influir na composiccedilatildeo do pensamento de Pico della Mirandola Resta
observar que a paulatina mudanccedila de consciecircncia trazida pela renovatio do
Quatrocentos deve-se em grande parte aos pressupostos metafiacutesicos trazidos pela
redescoberta de antigas doutrinas que fundamentaram muitos dos postulados
filosoacuteficos e teoloacutegicos da eacutepoca
60 Marsilio FICINO Proacutelogo ao Pimander (Opera Omnia Kristeller-Sancipriano (org) 1962 vol II p1836)
Para um estudo completo acerca da Prisca Theologia ficiniana leia-se DPWALKER Spiritual and demonic magic from Ficino to Campanella London The Warburg Institute 1958
61 Marsilio FICINO Opera Omnia opcit vol II p1537 ldquoFactum est ut pia quaedam philosophia quondam et apud Persas sub Zoroastre et apud Aegyptios sub Mercurio nasceretur utrobique sibimet consona nutriretur deinde apud Traces sub Orpheo atque Aglaophemo adolesceret quoque mox sub Pythagora apud Graecos et Italos tandem vero a divo Platone consummaretur Athenisrdquo
62 GARIN 2006 p68
28
CAPIacuteTULO II
GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA
Giovanni Pico foi um ser fascinante Mas natildeo feliz Seus mais intensos
projetos foram malogrados Todavia foi aclamado pelos criacuteticos como um dos mais
notaacuteveis representantes da Filosofia Renascentista por seus contemporacircneos como
o mais saacutebio filoacutesofo de sua eacutepoca1 Fruto de seu seacuteculo ou quem sabe de uma
personalidade marcada por contrastes seu pensamento natildeo estaacute livre de
contradiccedilotildees A mais visiacutevel que extravasa para a sua inteira obra encontra-se na
dicotomia entre feacute e ratio ou entre o piedoso servo da Igreja e o filoacutesofo que se liberta
de todo o dogma para investigar os mais diversos caminhos2 Tais contrastes ao se
aliarem a um forte carisma agrave fama de gecircnio multifacetado3 e a um conjunto de
circunstacircncias extraordinaacuterias ndash tais como uma vida marcada pela trageacutedia e a morte
prematura aos 31 anos ndash contribuiacuteram para criar uma atmosfera de encanto em
torno de seu nome a ponto de a cerca de trecircs deacutecadas de sua morte ainda ser
chamado de ldquohomem quase divinordquo por Maquiavel4
Enaltecimentos natildeo lhe faltaram A despeito dos elementos contrastantes em
sua obra ndash ou justamente por causa deles ndash seu legado pode ser considerado como a
siacutentese que agrega algumas das investigaccedilotildees mais marcantes de sua eacutepoca (ldquoas
causas das coisas os processos da natureza a razatildeo do universordquo)5 o que fez com que
ganhasse o interesse de famosos intelectuais europeus ao longo dos seacuteculos e
recebesse elogios de pensadores tatildeo diversos quanto Erasmo de Rotterdam Pierre
Gassendi Kepler e Voltaire6 O apreccedilo de Thomas More pela obra piquiana fez com
1 Giovanni Pico foi considerado ainda o mais jovem nobre e belo filoacutesofo de seu tempo O escolaacutestico Angelo
Poliziano se referia ao amigo em suas cartas como o ldquodivino Picordquo (sacer Picus) a ldquofecircnixrdquo (phoenix) o ldquosemideusrdquo (heros) a ldquoluz de todo o aprendizadordquo (lux omnium doctrinarum) e ldquoaquele que eacute bonito como ningueacutem e mais eminente em todos os ramos do aprendizadordquo (quo nec pulchrior alter mortalium nec in omnibus arbitror doctrinis excellentior) Para essa e outras passagens veja-se POLIZIANO Letters Shane Butler (org) Cambridge Harvard University Press 2006 1 36-37 118-19 134-35 193 Acerca da beleza do conde avultam as descriccedilotildees ldquoEra cosigrave bello colle chiome doro svolazzanti sul volto radioso quasi novello Adone come ce lo dipinge il Ramusio [Girolamo Ramusio] in un carme latinordquo (FLAMINI Girolamo Ramusio in Atti e Memorie di R Acc di Padova 1899-1900 vol XVI pp 11-37 apud Giovanni SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola - La Fenice degli Ingegni 1921 p9) Ver tambeacutem Joseacute Vitorino de PINA MARTINS Jean Pic de la Mirandole - Un portrait inconnu de lrsquohumanisme 1976
2 Como acentuou Newton BIGNOTTO Pico ldquofoi prisioneiro das duacutevidas que assaltavam os que se dispunham a lidar com novas ideias e continuar a viver no interior da feacute cristatilderdquo (Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola 2010 p147)
3 Tornou-se proverbial a prodigiosa memoacuteria de Pico Detinha na mente numerosas obras que o faziam ter uma habilidade enciclopeacutedica de oratoacuteria Sua capacidade de retenccedilatildeo era tal que podia recitar a inteira Divina Commedia de traacutes para frente iniciando do uacuteltimo verso ndash podendo fazer isso com qualquer poema que acabasse de ler (Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)
4 Nicolau MAQUIAVEL Histoacuteria de Florenccedila livro VIII 2007 p557 Tal obra foi escrita entre 1520 e 1527 portanto nos uacuteltimos anos da vida de Maquiavel
5 PICO De Hominis Dignitate Heptaplus De Ente et Uno et scritti vari 1942 p130 ldquoQuasi rerum causas naturae vias universi rationem []rdquo
6 Veja-se respectivamente Marc LAUREYS The Reception of Giovanni Pico in the Low Countries in Gian Carlo GARFAGNINI Giovanni Pico della Mirandola Convegno internazionale di studi nel cinquecentesimo anniversario della morte (1494ndash1994) 1997 p629 Brian VICKERS Critical Reactions to the Occult Sciences during the Renaissance in The Scientific Enterprise - The Bar-Hillel Colloquium Studies in History Philosophy
29
que a difundisse ao puacuteblico inglecircs em larga escala seja atraveacutes das traduccedilotildees das
cartas e pequenos textos de Pico seja por sua livre traduccedilatildeo do livro Vita de
Gianfrancesco Pico que constitui a primeira biografia impressa em inglecircs7 Em
tempos contemporacircneos foi alccedilado ao tiacutetulo de ldquoFecircnix dos Engenhosrdquo por Giovanni
Semprini ldquoAlma do Renascimento italianordquo por Eugenio Garin e ldquoAurora
inacabadardquo por Henri de Lubac8
A principal marca de Pico foi natildeo se ter entregue inteiramente a nenhuma
corrente de pensamento fosse filosoacutefica ou teoloacutegica Com isso suas ideias o
colocaram em constante linha de fogo cruzado natildeo lhe permitindo pertencer de
forma plena a nenhum ciacuterculo Nem mesmo as vestes de sua cepa aristocraacutetica foram
vestidas de forma confortaacutevel seu entusiasmo por ideias novas a paixatildeo pela
investigaccedilatildeo e a rapidez febril com as quais expunha suas opiniotildees afastavam-no da
prudecircncia tiacutepica de um bom cortesatildeo9 ademais a escolha de uma vida filosoacutefica natildeo
fazia parte do repertoacuterio da nobreza no seacuteculo XV cujo caminho usual passava pelo
clero ou pela corte A resposta a Andrea Corneo que o exortava a abraccedilar esta uacuteltima
indica a verdadeira propensatildeo de Pico
Me escrevestes lsquoaproxima-se o tempo em que deveraacutes colocar-
te a serviccedilo de algum dos grandes [priacutencipes] da Itaacuteliarsquo Parece-
me que ignoras a opiniatildeo que tecircm de si os amantes da Filosofia
Esses de acordo com Horaacutecio se consideram reis natildeo sabem
servir e adequar-se aos costumes de outros vivem consigo
mesmos contentes da proacutepria serenidade se bastam e natildeo
precisam de nada que esteja fora de si mesmos [] E eu
partilhando dessa opiniatildeo anteponho a minha pequena cela [no
claustro] os meus estudos os prazeres que me propiciam os
meus livros agraves salas reais aos negoacutecios puacuteblicos aos favores da
corte10
Seus pensamentos e escritos determinaram os acontecimentos de sua
trajetoacuteria Veremos que as accedilotildees sofridas e o fato de sua obra mais grandiosa natildeo ter
tido a chance de ser concluiacuteda foram consequecircncias dramaticamente ligadas agrave
originalidade de suas premissas
and Sociology of Science ed Edna Ullmann-Margalit Dordrecht 1992 nr 4 p 75 Sheila RABIN Keplerrsquos Attitude toward Pico and the Anti-Astrology Polemic in Renaissance Quarterly 50 1997 pp 750-70 Para as avaliaccedilotildees de Voltaire sobre Pico veja-se Henri De LUBAC Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions 1974 p 13
7 Essa e outras referecircncias podem ser encontradas na ldquoIntroduccedilatildeordquo de Michael DOUGHERTY agrave sua obra Pico della Mirandola New Essays 2008 pp 1-2
8 As criacuteticas embora de menor vulto tambeacutem natildeo faltaram Dentre os comentaristas Lynn THORNDIKE eacute o que faz uma das mais duras avaliaccedilotildees da obra de Pico considerando o autor ldquoimaturordquo (A History of magic and a experimental science vol 4 1934 p485)
9 Conforme relata o sobrinho Gianfrancesco agrave velocidade intelectual de compreensatildeo e de apreensatildeo correspondia em Pico uma escrita raacutepida nervosa algumas vezes difiacutecil de entender Escrevia em toda a parte em folhas soltas tanto que apoacutes sua morte foi bastante trabalhoso para o sobrinho pocircr ordem naqueles escritos muitos deles incompletos (Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p97)
10 PICO Carta de 15 Outubro 1486 in Opera omnia ediccedilatildeo Basileia 1557 (apud Albano BIONDI Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pVIII) NOTA As traduccedilotildees para o portuguecircs das citaccedilotildees presentes neste capiacutetulo satildeo de nossa responsabilidade
30
1 A Vida
A primeira biografia de Giovanni Pico escrita pelo sobrinho-escritor
Gianfrancesco11 conta que durante seu nascimento foi visto um brilhante ciacuterculo
iacutegneo pairando sobre a cama da matildee parturiente ali permanecendo por algum
tempo O fato ocorreu em 24 de Fevereiro de 1463 no castelo do condado de
Mirandola12 A imagem foi prontamente associada agrave perfeiccedilatildeo do pensamento de
Pico que ldquocomo o fogo estaacute sempre voltado agraves coisas celestesrdquo Essas palavras
completam a narrativa incomum publicada apoacutes a morte do biografado o autor
sabia que a descriccedilatildeo soacute seria bem aceita pelo puacuteblico se o personagem central fosse
detentor de uma reputaccedilatildeo que permitisse tal associaccedilatildeo13
Filho temporatildeo Giovanni cresce sob estrito zecirclo da matildee donna Giulia dei
Boiardo no coraccedilatildeo de uma nobre famiacutelia em meio a conflitos familiares (que
levariam agrave morte anos mais tarde do sobrinho-bioacutegrafo)14 Aos catorze anos eacute
encaminhado para estudar Direito Canocircnico em Bolonha seguindo o costume que o
destinava agrave vida eclesiaacutestica A cidade conhecida por transmitir as ideias humanistas
da Itaacutelia para a Europa foi responsaacutevel por despertar a atraccedilatildeo do jovem pela ordem
dominicana aleacutem do gosto pelas preacutedicas dos frades envolvidos com assuntos
acadecircmicos Apoacutes dois anos da mudanccedila ocorre o falecimento da matildee e o rapaz
encontrando-se oacuterfatildeo vecirc-se obrigado a tomar suas decisotildees dali em frente sozinho15
11 A primeira biografia sobre Pico foi escrita por seu sobrinho Gianfrancesco Pico della Mirandola e publicada
na primeira ediccedilatildeo da Opera Omnia em Bolonha em 20 de marccedilo de 1496 Com base em sua obra e ainda com um conjunto de 120 cartas sobreviventes eacute possiacutevel estabelecer uma biografia de Pico bastante detalhada A Opera Omnia foi traduzida para o inglecircs posteriormente por Sir Thomas More e impressa em Londres em 1510 (Thomas MORE Giovanni Pico della Mirandola His Life by His Nephew Giovanni Francesco Pico ed J M Rigg- D Nutt London l89o) A moderna ediccedilatildeo chamada apenas Vita denomina-se Ioannis Pici Mirandulae viri omni disciplinarum genere consumatissimi vita per Ioannem Franciscum illustris principis Galeotti Pici filium conscripta (ed B Andreolli Aedes Muratoriana Modena 1994) Vejam-se mais dados biograacuteficos em E GARIN Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina 2011 L VALCKE Pic de la Mirandole un itineacuteraire philosophique 2005 D BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola cenni e documenti inediti in Rivista contemporanea 1859 pp7-56 H de LUBAC Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions 1974 W CRAVEN Pico della Mirandola Bologna 1984 J JACOBELLI Pico della Mirandola 1986 G SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola-La Fenice degli Ingegni 1921
12 Daiacute ser chamado Giovanni Pico dos condes de Mirandola e Concoacuterdia 13 A reflexatildeo estaacute em BROCCHIERI opcit pp5-8 Natildeo se deve julgar precipitadamente o sobrinho-bioacutegrafo
por um suposto enaltecimento do tio Seus escritos mostram que natildeo haacute uma exaltaccedilatildeo mas antes o contraacuterio em muitos momentos Gianfrancesco eacute bastante severo e criacutetico acerca do pensamento de Pico Sobre as circunstacircncias do nascimento veja-se Felice CERETTI Giulia Boiardo in Atti e Memorie 1881 vol 4 part 3 p 213 Jacob BURCKARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1902 pp 142 e 232 Acerca das relaccedilotildees com a matildee ldquoDonna Giuliardquo veja-se SEMPRINI op cit pp1-3
14 Conforme historiadores durante o periacuteodo de Senhorio da famiacutelia Pico que durou quatro seacuteculos (ateacute 1710) os habitantes do condado gozaram de prosperidade econocircmica e estabilidade legislativa e poliacutetica aleacutem de certa liberdade religiosa que levou ao florescimento de novas ordens como a dos ldquoMendicantirdquo Da colaboraccedilatildeo com os Mendicantes nasceu em Mirandola o ldquoDesco dei Poverirdquo e o Monte do Pietagrave aleacutem do mosteiro feminino das Clarissas (cf BROCCHIERI opcit p4) Apoacutes a morte do pai que ocorre quando Giovanni era crianccedila seus irmatildeos Galeotto e Anton Maria viveram em perene discoacuterdia em razatildeo da posse do feudo A luta familiar terminaria por extinguir o sobrinho de Giovanni Gianfrancesco assassinado em 1533 por um de seus parentes (cf Felice CERETTI Biografie pichensi 1909 pp91-127)
15 Pasquale VILLARI Girolamo Savonarola 1910 pp 21-23 SEMPRINI opcit pp3-4 BROCCHIERI opcit pp4-5 GARIN 2011 pp3-5 Vejam-se dados biograacuteficos em ldquoProgetto Picordquo convecircnio entre a Universitagrave degli Studi di Bologna e a Brown University
31
Assim aos dezesseis anos abandonando a futura carreira de jurista parte para
Ferrara cidade das mais pujantes e populosas da Itaacutelia prestigiada por seu
endereccedilamento ao estudo das Humanidades Ferrara passaria a ser o local em que
Giovanni daria seus primeiros passos em direccedilatildeo agraves disciplinas filosoacuteficas e para onde
voltaria vaacuterias vezes em seus uacuteltimos anos de vida16 Na nova cidade passa a
frequentar os ciacuterculos de discussotildees acadecircmicas chamando a atenccedilatildeo por ser o
integrante mais jovem Entre as principais pessoas que vem a ter conhecimento estatildeo
Battista Guarino mestre que lhe apresenta um tipo de conhecimento laico ateacute entatildeo
desconhecido e o frei Girolamo Savonarola encontro que mais tarde seraacute
determinante em sua vida17 Apoacutes dois anos de intenso aprendizado o nuacutecleo de
Ferrara antes repleto de novidades passa a mostrar-se limitado Pico cada vez mais
interessado em escarafunchar conventos e bibliotecas atraacutes de novos volumes18
sente-se atraiacutedo por um ambiente mais renomado e vivo de disputas acadecircmicas19
Paacutedua
Em 1480 agora com dezoito anos Pico chega a Paacutedua Na mais famosa
universidade italiana da eacutepoca onde permaneceraacute por dois anos estudando o pupilo
abraccedila definitivamente a Teologia e a Filosofia20 A formaccedilatildeo aristoteacutelica iniciada em
Ferrara seria mantida uma vez que a Escola de Paacutedua seguia uma linha de tradiccedilatildeo
notadamente averroiacutesta O ambiente de estudos padovanos o satisfaz amplamente
como demonstra uma carta escrita ao novo amigo Ermolao Barbaro21 Uma das
razotildees encontrava-se no fato de ter contato com pessoas que viriam a ter significado
fundamental em seu desenvolvimento e em sua vida Aleacutem de Barbaro tornado
doutor e titular da caacutetedra de Filosofia Moral aos vinte e trecircs anos com o qual a
identificaccedilatildeo foi imediata Pico conheceu Nicoletto Vernia original professor que o
fez conhecer a concepccedilatildeo averroiacutesta de unidade do intelecto pela primeira vez ndash tema
que teria forte impacto sobre sua formaccedilatildeo e ao qual voltaria tempos depois22 O
mestre aristoteacutelico foi de certa forma tambeacutem o primeiro a influenciaacute-lo sobre a
harmonia de pensamento entre Platatildeo e Aristoacuteteles projeto que seria perseguido por
Pico durante os proacuteximos anos de sua vida Ainda em Paacutedua Pico conhece o coetacircneo
Elia del Medigo23 jovem brilhante que como ele teraacute uma morte prematura O
cretense douto hebreu e precoce tradutor de Averroacuteis e de outros textos aacuterabes
16 GARIN ibid pp 3-8 SEMPRINI opcit p5 17 SIRGADO GANHO Comentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitate 2001 pp 15-16 SEMPRINI opcit p4
GARIN 2011 p8 18 SEMPRINI ibid p6 19 As chamadas ldquodisputasrdquo eram debates de alto niacutevel que ocorriam nos ambientes acadecircmicos tendo o caraacuteter
do que hoje conhecemos por simpoacutesio ou congresso 20 BROCCHIERI op cit p9 DELLA TORRE Storia dellrsquoAccademia Platonica di Firenze 1902 p752
GARIN 2011 p10 Sobre a importacircncia de Paacutedua como centro averroiacutesta veja-se BURCKHARDT op cit pp 242-244 SEMPRINI op cit p12
21 Na carta ao filoacutesofo aristoteacutelico Ermolao Barbaro lecirc-se que de todos os ldquoginaacutesiosrdquo da Itaacutelia aquele de Paacutedua era o que mais o agradava (DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole en France 1879 p 9) Acerca das cartas de Pico deve-se frisar que graccedilas ao primoroso trabalho de recolhimento das epiacutestolas organizado por Leacuteon Dorez tornou-se possiacutevel acompanhar muitos detalhes da vida de Giovanni Pico
22 SEMPRINI op cit pp11-12 A concepccedilatildeo de unidade do intelecto eacute uma das marcas do pensamento do filoacutesofo aacuterabe Averroacuteis tradutor das obras de Aristoacuteteles no seacuteculo XII O tema seraacute retomado no proacuteximo item
23 Elia del Medigo mestre de filosofia oriental falece com apenas trinta e trecircs anos Maiores detalhes podem ser vistos em RAGNISCO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo Padova 1891 Para as circunstacircncias do encontro com Pico veja-se Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 BROCCHIERI opcit p9
32
imediatamente aprecia a aguda inteligecircncia daquele jovem ldquoapesarrdquo do visiacutevel gosto
por Platatildeo que nele comeccedilava a despontar ndash coisa mal vista por um aristoteacutelico
ortodoxo como Elia Tal encontro se mostraraacute um dos principais elementos
responsaacuteveis pela aproximaccedilatildeo do Mirandolano ao pensamento aacuterabe-hebraico ndash que
o levaraacute por vias indiretas ao estudo da Cabala24
Pouco antes de completar vinte anos talvez em razatildeo da receacutem-editada obra
de Marsilio Ficino a Theologia Platonica de immortalitate animorum observa-se
uma mudanccedila de direcionamento doutrinaacuterio Pico comeccedila a voltar-se fortemente ao
Platonismo Uma carta de final de lsquo82 testemunha o pedido feito a Ficino para que
aceite ser seu guia no novo caminho de estudos atraveacutes do qual pretende integrar
Aristoacuteteles e Platatildeo25 Coincidecircncia ou natildeo nessa mesma eacutepoca seu amigo Angelo
Poliziano26 o convida a participar do movimento literaacuterio florentino Ademais chega-
lhe a notiacutecia de que uma forte tradiccedilatildeo de estudos hebraicos propaga-se em Florenccedila
Essas podem ter sido as principais motivaccedilotildees que o fizeram deixar o centro
padovano e partir para a cidade do Arno27 Assim em 1484 receacutem liberto de
preocupaccedilotildees de ordem financeira28 Pico muda-se para a urbe entatildeo regida por
Lorenzo dersquo Medici patrono de personalidades como Michelangelo e mecenas do
ciacuterculo platocircnico ndash que dava agora as boas-vindas a seu mais novo ingressante
Em pouco tempo comeccedilam a ocorrer encontros de cristatildeos e hebreus na casa
do mais novo morador da cidade Um ciacuterculo de orientalistas reuacutene-se com
frequecircncia para discutir o Aristotelismo29 Natildeo raro podia ser encontrado Elia del
Medigo ndash o jovem mestre que seguindo os passos do aluno foi ter em Florenccedila ndash
sustentando debates filosoacuteficos e religiosos com outro hebraiacutesta o entatildeo convertido
Flavio Mitridate ndash que mais adiante viria a ser o proacuteximo professor do Conde30
24 Para Elia del Medigo assim como para outros acadecircmicos padovanos Aristoacuteteles representava ldquoo pai de
todos os filoacutesofosrdquo e Averroacuteis era ldquoo seu mais fiel comentadorrdquo Assim que a atitude de Del Medigo em relaccedilatildeo agrave Cabala natildeo seria tatildeo positiva quanto a de Pico ou como seraacute visto a de seu outro mestre hebreu Yohanan Alemanno justamente em razatildeo do forte acento neoplatocircnico encontrado naqueles textos Cf Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p284 ss BROCCHIERI opcit pp10-11 GARIN 2011 p11
25 Para essa e outras cartas veja-se DOREZ-THUASNE opcit p 10 Para a chegada em Florenccedila DELLA TORRE opcit p 747 SEMPRINI opcit pp16-17 GARIN 2011 p15
26 Entre os Humanistas era comum a substituiccedilatildeo do proacuteprio nome por outros Acircngelo Ambrogini nascido em Montepulciano era conhecido como Poliziano Tinha cerca de dez anos a mais que Pico e morreu no mesmo ano que ele 1494 Poliziano aos trinta anos era um filoacutelogo rigoroso preceptor dos filhos de Lorenzo dersquo Medici e conhecido em toda a Europa por manter em alta o nome do Studium florentino com suas liccedilotildees de literatura grega e latina aleacutem de defensor incansaacutevel de Pico Cf SEMPRINI opcit p18 SIRGADO GANHO opcit p17 BROCCHIERI opcit pp31-33
27 O interesse pelo ciacuterculo hebraico eacute hipoacutetese alccedilada por DOREZ-THUASNE especialmente em razatildeo da repercussatildeo dos estudos hebraicos empreendidos pelo humanista Gianozzo Manetti (Pic de la Mirandole en France 1485-1488 Paris 1897 p13)
28 Em 1483 os irmatildeos de Pico chegam a um acordo em seu conflito testamentaacuterio e fazendo uma reparticcedilatildeo deixam um terccedilo das rendas para Pico Seu irmatildeo mais velho passaria a administrar seu patrimocircnio Assim livre de quaisquer preocupaccedilotildees de ordem praacutetica Pico pode continuar sua vida de estudos Cf SEMPRINI opcit pp14-15 GARIN 2011 p15 ldquoMemorie storiche della cittagrave e dellantico ducato della Mirandolardquo tomo unico Mirandola 1874 II
29 GARIN 2011 p23 30 Flavio Mitridate era o nome do judeu siciliano convertido Guglielmo Raimondo di Moncada Trata-se de
figura enigmaacutetica tradutor de textos aacuterabes e hebraicos e favorito de Sexto IV Pico em suas cartas o apresenta como um mestre intransigente em relaccedilatildeo agrave natildeo-propagaccedilatildeo de seus ensinamentos tidos como misteacuterios sagrados Detentor de um caraacuteter irasciacutevel coleacuterico arrogante e impaciente inclusive com seus alunos de idiomas (os quais ele pretendia que passassem imediatamente agrave leitura dos textos antigos sem preacutevios estudos) desfrutava
33
Graccedilas em boa parte agrave influecircncia e ao estiacutemulo daqueles encontros a cidade de
Florenccedila se transforma sobretudo de lsquo86 em diante e assim permanecendo por
alguns anos em um local de relevantes contatos entre duas culturas em virtude das
eruditas discussotildees que corroboravam a formaccedilatildeo de intelectuais cristatildeos e hebreus
Dentre eles Yohanan Alemanno que tatildeo logo chega a Florenccedila pede para ser
apresentado ao entatildeo renomado conde de Mirandola31 ndash com o qual dividiraacute mais
tarde o entusiasmo pelos misteacuterios da Cabala Sob tal atmosfera natildeo eacute difiacutecil
entrever que a casa florentina de Pico transforma-se em um ambiente concorrido por
abrigar debates de vaacuterias vertentes ali podiam ser encontrados filoacutesofos de vaacuterias
correntes ndash aacuterabo-hebraicas aristoteacutelicas platocircnicas ndash poetas literatos estudiosos
de Petrarca e de Dante32
Durante o periacuteodo florentino Pico dedica-se ao aprendizado de idiomas como
o hebraico o caldeu e o aacuterabe A reconciliaccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Platatildeo ndash cujas
afinidades haviam sido apontadas por Nicoletto Vernia ndash toma ares cada vez mais
concretos levando-o entre lsquo85 e lsquo86 a transferir-se para o nuacutecleo de Paris principal
centro de teologia escolaacutestica onde teria agrave disposiccedilatildeo uma quantidade maior de
material medieval para ampliar seus estudos O ambiente dos teoacutelogos da Sorbonne
acolhe fortemente suas ideias aqueles passam a consideraacute-lo um dos seus ndash a ponto
de defendecirc-lo diante do perigo em futuro natildeo muito distante33 De volta a Florenccedila
imerge nos textos neoplatocircnicos de Proclo e investiga os textos hebraicos contando
com a ajuda de Elia del Medigo e de seu mais recente mestre Flavio Mitridate34
Debruccedila-se sobre os misteacuterios platocircnicos hermeacuteticos e caldeus dos quais o amigo
Ficino era tenaz estudioso Em certo ponto convence-se de que suas reflexotildees jaacute
estatildeo maduras o suficiente para serem colocadas agrave prova Passa a preparar entatildeo
com certo iacutempeto vaacuterios textos pertinentes a um debate puacuteblico organizados de
forma a alcanccedilar grande ressonacircncia O que natildeo estava previsto eacute que a partir da
primavera do mesmo ano importantes acontecimentos alterariam o rumo de sua
vida de forma definitiva
de uma vida um tanto licenciosa de acordo com seus bioacutegrafos Cf CASSUTO opcit 1918 BROCCHIERI opcit pp 15-16
31 Uma das comprovaccedilotildees do renome de Pico nos ciacuterculos intelectuais encontra-se no fato que ao completar vinte e um anos eacute escrita uma comeacutedia em sua homenagem por Tommaso Mezzo (BROCCHIERI op cit pp 16 47) Sobre o encontro de Pico e Alemanno veja-se Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento Firenze 1918 p305 Alberto AMBESI Giovanni Pico della Mirandola-Cenni biografici e presentazione dellrsquoopera 1996 p I Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 53
32 GARIN 2011 p23 Dante acolhido pelo Humanismo florentino do final do Quattrocento era finalmente perdoado por ter escrito em vulgar toscano Nas uacuteltimas deacutecadas daquele seacuteculo seus escritos eram retomados por muitos literatos e filoacutesofos de Florenccedila graccedilas ao impulso dado por Leonardo Bruni e sua obra Vita di Alighieri publicada em 1436 Dante que havia sido um aristoteacutelico estudioso de Tomaacutes transformava-se agora aos olhos dos humanistas em ldquoum platocircnico puro e profundo um delesrdquo (cf BROCCHIERI 2011 p51) Pico tambeacutem nutria profunda simpatia por Dante ldquoalma rude aacutespera mas atormentada por problemas mais amplosrdquo Seu vigor algumas vezes horridus asper strigosus sempre trazia uma ldquonutriccedilatildeo vitalrdquo (apud GARIN ibid p21)
33 GARIN 2011 p25 BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 p 7 34 BIONDI ldquoIntroduzionerdquo in Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 1995 pp X-XI
34
1486 o iniacutecio dos revezes
O ano de 1486 eacute crucial para Pico que se encontra com vinte e trecircs anos Nem
soacute de livros aulas e projetos extraordinaacuterios vive o jovem No mecircs de maio daquele
ano pouco depois de regressar de Paris Pico vive uma desafortunada e breviacutessima
aventura amorosa que tem Arezzo como pano de fundo Em rota para Roma para
onde se dirigia com o intuito de preparar sua proacutexima obra apaixona-se pela jovem e
bela ndash e casada com um Medici ndash Margherita Planeja um rapto que natildeo apenas
termina frustrado como expotildee de forma ampla os dois amantes impedindo-o de
prosseguir com a viagem35 O escacircndalo lhe traz aleacutem de arrependimento o ingresso
em um duradouro periacuteodo de austeridade com a consequente retomada dos estudos
Conforme juiacutezo de Garin ldquosua dor se transmuta em um iacutempeto de pesquisa capaz de
trazer renovadas forccedilasrdquo com as quais enfrentaria os obstaacuteculos que viriam no ano
sucessivo Acresce o historiador que aquele ldquoardor multiforme insaciaacutevel de gloacuteria
de amor de saber e no final de renuacutencia e miacutesticardquo formariam o ldquosubstrato
psicoloacutegico da celebraccedilatildeo piquiana da dignidade do homemrdquo36
Recolhido assim em seu retiro de Fratta proviacutencia de Perugia em meio aos
meses de veratildeo de rsquo86 o escritor comeccedila a elaborar aquele que seria seu projeto mais
audacioso Em complexa empreitada potildee-se a redigir inuacutemeras teses acerca de
muacuteltiplos temas passando da escolaacutestica ao averroiacutesmo das tradiccedilotildees hermeacuteticas e
persas agraves filosofias aacuterabe e judaica chegando agraves ciecircncias ocultas Tambeacutem nesse
periacuteodo esboccedila um elogio agrave concoacuterdia entre os vaacuterios sistemas filosoacuteficos parte do
qual viraacute a compor a segunda parte da De Hominis Dignitate A renovada motivaccedilatildeo
transparece em carta escrita a um amigo proacuteximo ldquoem breve saberaacutes quanto seu
amigo Pico colheu de vantagens da contemplaccedilatildeo durante esses meses de vida
obscura e solitaacuteriardquo37 Tendo por propoacutesito inicial organizar em Roma no mesmo
ano um convecircnio de intelectuais ndash a chamada Disputa Romana ndash para debater suas
proposiccedilotildees com doutos da Filosofia e da Teologia publica em 7 de dezembro de
1486 as Conclusiones Nongentae juntamente com o convite aos interessados no
debate O opuacutesculo fixado em vaacuterias universidades pode ter incomodado a alguns
levando-se em conta a idade do autor38
Giovanni Pico Mirandolano Conde de Concoacuterdia disputaraacute
publicamente acerca das seguintes novecentas proposiccedilotildees
dialeacuteticas morais fiacutesicas matemaacuteticas metafiacutesicas teoloacutegicas
maacutegicas e cabaliacutesticas sejam proacuteprias que dos sapientes
caldeus aacuterabes hebreus gregos egiacutepcios e latinos []39
35 Referente ao estado de acircnimo de Pico apoacutes o rapto de Margherita e os reflexos do episoacutedio sobre algumas
passagens da obra Commento sopra una Canzone drsquoamore composta da Girolamo Benivieni veja-se Pier Cesare BORI Pluralitagrave delle vie - Alle origine del Discordo sulla Dignitagrave umana di Pico della Mirandola 2000 pp11-21 Para maiores detalhes sobre o episoacutedio veja-se DELLA TORRE opcit pp758-59 SEMPRINI opcit pp56 ss BROCCHIERI opcit pp55-56 CASSUTO opcit p289
36 GARIN 2011 p26 37 BROCCHIERI opcit p64 38 Jules DUKAS Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 np47 39 BIONDI opcit pXII Como esclarece o tradutor italiano das Conclusiones natildeo se tem informaccedilotildees sobre a
distribuiccedilatildeo do opuacutesculo na Itaacutelia Fora da Itaacutelia o material foi reproduzido em Ingolstadt no ano sucessivo 1487
35
A possibilidade da discussatildeo agita os ciacuterculos teoloacutegicos de Roma devido natildeo
apenas agrave presenccedila em meio ao opuacutesculo de alguns nomes ldquohereacuteticosrdquo como tambeacutem
de palavras suspeitosas como Magia Astrologia e Cabalismo Roma achava que ali
disfarccedilado sob o verniz do humanismo florentino encontrava-se o sequaz praticante
ldquodas escolas de Paacutedua e de Paris o disciacutepulo de Averroacuteis de Alexandre de Afrodiacutesia e
dos hebreusrdquo40 Assim a intenccedilatildeo original de travar uma contenda ldquosobre todas as
coisas conhecidasrdquo (omni scibili) termina por despertar opositores inclusive entre os
amigos41 tanto em razatildeo do projeto ser visto como fruto de orgulho pretencioso
quanto pela alegaccedilatildeo da presenccedila de supostas heresias naqueles conteuacutedos E as
coacutepias publicadas acabam gerando consequecircncias desdobradas em um crescendo de
gravidade cada vez maior
De iniacutecio o papa Inocecircncio VIII manda imediatamente suspender o debate das
Conclusiones e dois meses apoacutes a publicaccedilatildeo do opuacutesculo constitui uma comissatildeo
para examinaacute-lo sob a presidecircncia de Giovanni Monissart Em seu breve deixava
claro que ldquoalgumas dessas teses desviam do caminho da ortodoxia da feacute outras satildeo
obscuras confusas e intrincadas e outras tem ar de heresiardquo de forma que as
mesmas deveriam ser confiadas ao reverendo senhor Giovanni bispo de Tournai que
teria ldquoa tarefa de revecirc-las discuti-las e avaliaacute-lasrdquo42 Em um segundo momento Pico eacute
convidado a dar esclarecimentos acerca de algumas Teses nessa ocasiatildeo reafirma
vigorosamente seus pontos de vista acerca do conteuacutedo relacionado agrave Magia e agrave
Cabala aleacutem de acusar seus juiacutezes de padecerem de ignoracircncia Poucos dias depois o
trabalho da comissatildeo se conclui com a condenaccedilatildeo daquelas teses O acusado
convocado para apresentar-se novamente e escutar o veredicto final natildeo comparece
Em sua ausecircncia a comissatildeo decide proceder ao julgamento sem sua presenccedila
Enquanto isso rendendo-se ao fato de que as Teses natildeo seriam debatidas nem em
Roma nem em qualquer outro lugar cristatildeo Pico decide redigir a Apologia43
composta de treze disputationes que comporiam sua defesa Mesmo sem
conhecimento do novo texto Inocecircncio VIII autoriza o tribunal em 6 de Junho a
punir o culpado por heresia conforme as leis canocircnicas fato que o leva em 31 de
e um exemplar estaacute descrito no British Museum - General Catalogue of Printed Books vol 189 London 1963 col612 (ibid pXIII) ldquoDe adscriptis numero noningentis Dialecticis Moralibus Physicis Mathematicis Metaphysicis Theologicis Magicis Cabalisticis cum suis tum sapientum chaldeorum arabum hebreorum graecorum aegyptorum latinorumque placitis disputabit publice Johannes Picus Mirandolanus Concordiae Comes etc []rdquo
40 GARIN 2011 p32 41 Em carta a Roberto Salviati o veneziano Ermolao Barbaro escrevia que ldquosem duacutevida o nosso Pico obteraacute dessa
distinta iniciativa uma gloacuteria imortal dando aos seus amigos uma incomparaacutevel felicidaderdquo Por outro lado com certa maliacutecia comparava seu amigo Pico ao sofista Goacutergias dando a entender que tal promoccedilatildeo de discussotildees puacuteblicas visava apenas ao enaltecimento da vaidade do autor
42 A iacutentegra do breve papal pode ser vista em DOREZ-THUASNE op cit pp114-115 Os verbais das reuniotildees ocorridas para o questionamento das Teses foram descobertos por Dorez em um manuscrito da Biblioteca do Seminaacuterio arcebispal de Malines e publicados na obra compilada em parceria com Thuasne (Pic de la Mirandole en France 1897)
43 A primeira ediccedilatildeo da Apologia eacute datada 31 de Maio de 1487 (ldquoDie ultima Madij Anno Domini MCCCCLXXXVIIrdquo) A data correta de publicaccedilatildeo eacute posterior mas para natildeo parecer uma afronta agrave condenaccedilatildeo papal ela eacute retrodatada para antes da condenaccedilatildeo Na obra dedicada a Lorenzo dersquo Medici Pico retoma temas presentes na Oratio
36
Julho a fazer ato de submissatildeo agraves decisotildees dos comissaacuterios pontiacutefices jurando natildeo
mais sustentar posiccedilotildees que os juiacutezes natildeo julgassem aceitaacuteveis44
A submissatildeo contudo chega tarde a repercussatildeo da Apologia explodia
justamente nesse periacuteodo fazendo chegar aos ouvidos do Papa que Pico havia feito
circular novos escritos sem esperar o veredicto final45 A obra apesar do tom doacutecil
incentivava a investigaccedilatildeo da magia natural e da interpretaccedilatildeo cabaliacutestica
reafirmando ainda a liberdade de crenccedila (libertas credendi)46 Com isso sua
situaccedilatildeo torna-se praticamente irreversiacutevel Em 5 de agosto do mesmo ano Inocecircncio
VIII natildeo apenas condena todas as Conclusiones como encarrega a comissatildeo de
intervir com um novo instrumento o da Inquisiccedilatildeo com ldquoautorizaccedilatildeo para citar
interrogar e punir conforme as faculdades canocircnicasrdquo47 Em paralelo o bispo de
Tournai impotildee que quem possua uma coacutepia das Conclusiones a entregue agraves
autoridades para serem ldquoanuladas pelo fogordquo Por fim o cardeal espanhol Pedro
Garzias que mais tarde escreveria uma confutaccedilatildeo formal da Apologia de Pico
solicita a intervenccedilatildeo do temido Torquemada entatildeo agrave frente da Inquisiccedilatildeo espanhola
para resolver a questatildeo Ora Pico lia com entusiasmo os textos hebraicos escutava e
comentava os ensinamentos de seus amigos e mestres hebreus acreditava que nos
segredos da Cabala podia-se encontrar explicaccedilotildees inclusive para a verdade dos
eventos cristatildeos o homem que magnificava a sabedoria dos hebreus dificilmente
seria absolvido48
Percebendo o perigo iminente o Conde decide afastar-se da Itaacutelia refugiando-
se na Franccedila torna-se com essa atitude um herege declaradamente reincidente um
relapsus um homem caccedilado que poderia ser capturado e lanccedilado ao caacutercere49 A
proibiccedilatildeo de discutir as treze teses condenadas por sua vez lanccedila todas as demais
teses em desgraccedila jaacute que ldquoum pouco de fermento pode corromper toda a massardquo
Com essa metaacutefora Antonio Flores membro da comissatildeo que havia condenado as
treze teses pede ajuda agrave Universidade de Paris para que Pico seja capturado na
Franccedila50 Entretanto os professores daquela universidade aleacutem de toda a corte do rei
Carlos VIII compartilham da mesma simpatia pelo ldquodoutiacutessimo e desventuradordquo
italiano a ponto de ajudaacute-lo pouco tempo depois51 em janeiro de lsquo88 quando Pico eacute
44 DOREZ-THUASNE op cit p140 ldquoEu Giovanni della Mirandola tendo sob os olhos aquilo que pensam e
decidem o nosso Senhor Santiacutessimo e os senhores deputados de Sua Santidade acerca de minhas teses confesso que as teses satildeo tais e quais determinam que sejam Sua Santidade e os juiacutezes e mantenho formalmente esta opiniatildeo Natildeo sustentarei mais nenhuma posiccedilatildeo sobre essas porque Sua Santidade e os juiacutezes julgam que natildeo devam ser sustentadas E assim jurordquo Para maiores detalhes sobre a questatildeo veja-se DOREZ-THUASNE op cit ldquoBreve 6 Giugnordquo pp144-46 SEMPRINI op cit pp87-89
45 Quando recebe a notiacutecia da Apologia o papa descobre que outros teoacutelogos externos agrave comissatildeo ldquoe pouco prudentesrdquo haviam convalidado seu conteuacutedo
46 DOREZ-THUASNE op cit p125ss Veja-se Apologia - Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione (org Paolo Edoardo FORNACIARI 2010)
47 DOREZ-THUASNE op cit pp144-146 BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti Torino 1859 p47 SEMPRINI opcit p89 BIONDI opcit pp XXI-XXII
48 Lembremos que na Espanha agrave mesma eacutepoca era feita a conversatildeo forccedilada dos judeus 49 BIONDI opcit p XXXI 50 BROCCHIERI opcit p68 51 No ano anterior agrave fuga para a Franccedila durante as discussotildees teoloacutegicas acerca da condenaccedilatildeo de Pico Jean
Cordier importante acadecircmico parisiense natildeo firmara o verbal de processo de Pico Apoacutes ter escutado as explicaccedilotildees do filoacutesofo italiano chegara agrave conclusatildeo de que as treze teses incriminadas eram ldquocatoacutelicasrdquo Poucos anos depois Cordier viria a ser reitor da Sorbonne (BROCCHIERI opcit pp 69 71)
37
feito prisioneiro no castelo de Vincennes satildeo daqueles nuacutecleos franceses juntamente
com alguns italianos que se levantam protestos contra sua prisatildeo Tais pressotildees
associadas com os pedidos de Lorenzo dersquo Medici ao Papa fazem que Pico seja
libertado ndash apesar de natildeo absolvido ndash com a condiccedilatildeo de permanecer apenas em
territoacuterio florentino sob a proteccedilatildeo do Magniacutefico Ali em Florenccedila Pico permaneceraacute
pelo resto de seus dias52
Apoacutes a proibiccedilatildeo da discussatildeo das Teses e sua consequente condenaccedilatildeo Pico
atravessa um momento difiacutecil de sua vida Como infere Garin os anos seguintes
presenciaram um homem ferido e ldquodobrado sobre si mesmordquo a condenaccedilatildeo do
supremo liacuteder do Cristianismo mesmo para um espiacuterito livre era recebida naquele
seacuteculo como um acontecimento graviacutessimo53 Mais do que o perdatildeo da Igreja Pico
esperava uma reparaccedilatildeo verbal atraveacutes da qual a Igreja o aceitasse novamente como
seu filho54
De toda forma os anos sob vigilacircncia em Florenccedila foram os de maior fervor
criativo O resultado eminente daquele periacuteodo de reclusatildeo seraacute o Heptaplus
dedicado a Lorenzo e publicado no outono de lsquo89 Uacuteltimo trabalho completo de Pico
o Heptaplus conhece imediato sucesso o que alivia em parte as frustraccedilotildees que havia
sofrido55 A obra eacute entusiasticamente recebida por um nuacutemero significativo de
intelectuais sobretudo humanistas muitos escrevem para expressar sua admiraccedilatildeo
entre eles Matteo Vero Girolamo Donato Cristoforo Landino Bartolomeo Fontio e
Ermolao Barbaro56 Poreacutem aos olhos do Papa o livro apresenta-se como uma
continuaccedilatildeo das tendecircncias hereacuteticas demonstradas nas Conclusiones fazendo que a
absolviccedilatildeo se mantenha como uma esperanccedila natildeo realizada No ano seguinte eacute
publicado o breve De Ente et Uno sobre alguns pontos da proposta de acordo entre
Platatildeo e Aristoacuteteles o texto contudo natildeo eacute finalizado Pouco tempo depois eacute
publicada a uacuteltima e mais longa obra piquiana a Disputationes adversus
astrologiam divinatricem acerca da qual o autor compotildee doze dos treze livros
pretendidos e sobre cujas circunstacircncias ainda hoje pairam duacutevidas entre os
inteacuterpretes como seraacute abordado adiante
Em 18 de Junho de 1493 o Papa Alessandro IV Borgia sucessor de Inocecircncio
VIII absolve Pico da condenaccedilatildeo de 148757 O novo Pontiacutefice mostra interesse por
alguns dos assuntos que haviam concorrido para a condenaccedilatildeo das Conclusiones
como a Magia e a Astrologia ademais vecirc o jovem filoacutesofo com simpatia sentindo-se
impelido a escrever um resumo contando suas desventuras ndash texto que
52 Crofton Black eacute de opiniatildeo que a atitude papal foi uma ldquosoluccedilatildeo pragmaacutetica para uma situaccedilatildeo
potencialmente embaraccedilosardquo Pico e suas ldquodoutrinas insalubresrdquo permaneceriam afastados de Roma e ele seria confinado agrave ldquoatmosfera rarefeita de bibliotecas florentinas e ao grupo de intelectuais agrave volta de Lorenzordquo (BLACK opcit pg 8) Para toda a questatildeo da fuga em Franccedila veja-se DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole en France (1485-1488) 1897 pp56-101
53 GARIN 2011 p39-40 54 BROCCHIERI opcit p41 55 BLACK opcit pg 8-9 BROCCHIERI op cit p86 56 Para as referecircncias das cartas trocadas a esse respeito veja-se BLACK ibid np10 57 Leacuteon DOREZ Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) in Giornale Storico della Letteratura
italiana 1895 I pp358-361
38
posteriormente seraacute publicado junto agrave ediccedilatildeo das obras piquianas em 1572 Em sua
absolviccedilatildeo descreve-o ainda como homem iluminado pela ldquoDivina Piedade e um fiel
filho da Igrejardquo58 O erudito Papa parecia entrever no Hermetismo e na Cabala
preacircmbulos significativos e prestigiosos da religiatildeo cristatilde exatamente como havia
pretendido comprovar o conde de Mirandola59
Os uacuteltimos anos e a relaccedilatildeo com Savonarola
Nos uacuteltimos anos da vida de Pico entre rsquo90 e rsquo94 desenvolve-se uma relaccedilatildeo
complexa e intensa com Girolamo Savonarola Durante os anos de estudos iniciais
em Bolonha o frade predicador chamara a atenccedilatildeo do ainda muito jovem aprendiz
ldquoem razatildeo de suas maneiras simples e rudes os olhos viviacutessimos a fronte sulcada
pelas rugas e a pele morena que contrastava com suas vestes brancasrdquo60 Assim era
Savonarola em seus vinte e cinco anos tatildeo emagrecido pelos jejuns e abstinecircncias
que ldquoa vecirc-lo passear pelos claustros mais parecia uma sombra que um homem
vivordquo61 A atraccedilatildeo pelos discursos de vieacutes aristoteacutelico foi o iacutematilde que o ligou ao frei
quando teve a oportunidade de escutaacute-lo em uma disputa escolaacutestica Seria
improvaacutevel pensar naquela ocasiatildeo que aquele homem douto austero e riacutegido teria
importacircncia singular em sua vida62
O reencontro se daacute quando Pico natildeo obtendo a absolviccedilatildeo esperada da Igreja
decide procurar Savonarola que entatildeo pregava na Itaacutelia setentrional pedindo-lhe
para intervir por ele junto ao principal dos Dominicanos O pedido sobre o qual seu
amigo Lorenzo continuava a insistir com o Pontiacutefice63 eacute frustrado mas de alguma
forma serve para reaproximar aquelas duas personalidades de maneira definitiva a
pedido de Pico Savonarola acaba sendo chamado pelo Medici ndash a ldquocontragostordquo ndash
para reger a Igreja de San Marco em Florenccedila a partir de Abril de rsquo8964
Tal relaccedilatildeo teria exercido um poderoso influxo nas mudanccedilas de
direcionamento do pensamento de Pico ensejando especulaccedilotildees de cunho
58 BROCCHIERI opcit p100 59 Para Henri de LUBAC a absolviccedilatildeo definitiva de Pico e de seus escritos ocorreraacute apenas duas deacutecadas
adiante graccedilas ao gesto do entatildeo Papa Leatildeo X que em Abril de 1519 autorizaraacute Gianfrancesco a republicar integralmente as obras do tio (Pico della Mirandola Lrsquoalba incompiuta del Rinascimento p453)
60 SEMPRINI opcit p4 61 Pasquale VILLARI Girolamo Savonarola 1910 Essa e outras descriccedilotildees encontram-se nas pp 21-23 62 Para maiores detalhes veja-se Joseph SCHNITZER Savonarola 1931 vol1 sobretudo a partir de pp101 ss
BROCCHIERI op cit p39 63 Como elucida Giulio Busi Inocecircncio VIII levou muito a seacuterio o projeto de ldquoutopia sapiencialrdquo do Conde de
Mirandola Em resposta a Lorenzo que insistia para que o amigo Pico fosse perdoado escrevia que ldquoisso eacute um caso importantiacutessimo coisa diversa de gratificar o jovem filho de Lorenzo em questotildees que natildeo satildeo casos de feacuterdquo Ou seja para o Pontiacutefice era coisa de menor importacircncia conferir a dignidade de cardeal ao filho de treze anos de Lorenzo de que transigir sobre o escacircndalo provocado pelas Teses piquianas (BUSI Pico fede ragione e Inquisizione in Il Sole-24 Ore 28082018)
64 AMBESI opcit p III Girolamo Savonarola tambeacutem conhecido como Jerocircnimo de Ferrara manteacutem-se agrave frente de San Marco ateacute 1994 Nesse ano apoacutes a morte de Pico e a queda de Piero filho de Lorenzo o frei toma o poder em Florenccedila Quatro anos depois em maio de 1498 seraacute enforcado e queimado (cf Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 54)
39
psicoloacutegico entre os estudiosos da obra piquiana65 A influecircncia de Savonarola natildeo
pode ser negada seja qual for seu vetor Em reflexatildeo sobre o tema ajuiacuteza Garin que
Pico e Savonarola eram ldquoduas almas tatildeo ardentes e originais quanto diferentes em
suas tendecircncias e atitudesrdquo No entanto ldquohavia algo na alma de Pico que somente
com o frei poderia ser identificadordquo66 Ambos amavam os livros de forma apaixonada
e neles viam natildeo apenas fontes de cultura mas respostas espirituais Moviam-se em
uma atmosfera distante daquela que respiravam os literatos contemporacircneos Os
problemas espirituais natildeo eram vistos como curiosidades intelectuais pertencentes ao
mundo dos doutos eram uma ldquoquestatildeo de vidardquo como prossegue Garin67 E ambos
buscavam verdades que natildeo enxergavam na Igreja do lsquo400 nem tampouco entre os
humanistas em geral Nas palavras do historiador
A existecircncia representava para ambos uma tarefa uma missatildeo
[] O mundo do espiacuterito natildeo se encontrava separado da vida
concreta a sua luz deveria permeaacute-la fundir-se a ela
transformaacute-la68
Certo eacute que durante o periacuteodo de isolamento acentuam-se em Pico claras
tendecircncias miacutesticas tornando-se Savonarola seu padre espiritual Tambeacutem chama a
atenccedilatildeo o fato de seus escritos do uacuteltimo periacuteodo apresentarem uma mudanccedila
substancial de concepccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas o autor chega a negar muitas das
teses anteriores e parece voltar-se a uma posiccedilatildeo mais ortodoxa Tal mudanccedila de
pensamento estaacute bem clara na obra Disputationes adversus astrologiam
divinatricem de forma acentuada nos uacuteltimos trecircs livros em que Pico trata com
desprezo a ciecircncia astroloacutegica dos egiacutepcios e caldeus fazendo uma minuciosa criacutetica
histoacuterica que parece lanccedilar por terra os ecircxitos daquelas antigas culturas Tal mudanccedila
de posicionamento natildeo passaria despercebida pelos criacuteticos levando a inuacutemeras
polecircmicas natildeo sem razatildeo a confutaccedilatildeo da Astrologia mateacuteria combatida de forma
ferrenha pelo frei e mentor dominicano representava um ataque que se colocava em
oposiccedilatildeo direta agraves doutrinas partilhadas pelas tradiccedilotildees agraves quais Pico prestara
homenagem em suas obras anteriores como o Hermetismo a Cabala o
Zoroastrismo o Neoplatonismo Em tentativa de esclarecer as mudanccedilas de rumo
da inacabada obra o editor Gianfrancesco Pico alegaria que as mesmas eram devidas
ao progressivo isolamento e agrave crescente religiosidade vividos por seu tio que o
levaram a passar por um processo de conversatildeo Entretanto essa afirmaccedilatildeo tem sido
colocada em duacutevida por alguns comentadores69
65 Para os efeitos psicoloacutegicos de Savonarola sobre Pico veja-se GARIN 2011 pp5-9 Para detalhes mais
completos sobre a relaccedilatildeo veja-se GARFAGNINI (org) Savonarola tra Giovanni e Gianfrancesco Pico In Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) 1997 pp 237-279 Ainda SEMPRINI opcit p4
66 GARIN 2011 p8 67 Idem 68 Idem As missotildees seja do mentor que do pupilo encontravam-se ligadas a certas formas de reaccedilatildeo a valores
religiosos e morais Suas atitudes contudo eram anacrocircnicas Pico buscava no passado a renovaccedilatildeo moral do presente Savonarola em suas preocupaccedilotildees doutrinais era um precursor das disputas religiosas que viriam no seacuteculo sucessivo (idem)
69 O tema da suposta conversatildeo de Pico e os comentaacuterios de vaacuterios inteacuterpretes podem ser conferidos na obra de William CRAVEN Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age Modern Interpretations of a Renaissance Philosopher 1981 pp 77-87 131-154 Para maiores detalhes acerca da mudanccedila de direccedilatildeo nas Disputationes
40
A hipoacutetese de conversatildeo seja espontacircnea ou relacionada com o eventual
influxo de Savonarola eacute enfraquecida diante de um interessante testemunho que
expotildee as verdadeiras convicccedilotildees e o entusiasmo conciliador de Pico ndash o mesmo de
seus anos anteriores Pietro Crinito membro fervoroso dos piagnoni ndash nome dado
aos seguidores de Savonarola ndash relata um encontro entre o Frei e o Conde na
biblioteca de San Marco Nessa ocasiatildeo os dois travam um intenso debate acerca do
valor da sabedoria dos Antigos no qual o Frei posiciona-se entre outros contra
Platatildeo e Aristoacuteteles70 Em resposta e referindo-se agraves doutrinas cristatildes acerca da
imortalidade da alma e do caraacuteter absoluto de Deus Pico efetua uma ampla e
eloquente defesa dos Prisci Theologi muito semelhante agraves posiccedilotildees sustentadas por
Ficino71 ldquoao longo de toda a vida dos mortais existiram alguns priacutencipes os maiores
em juiacutezo e em conhecimento das coisas como Moiseacutes Pitaacutegoras Mercuacuterio Zoroastro
e Soacutelon os quais com consenso unacircnime (qui omnes pari consensu) natildeo apenas
creram nessas coisas como tambeacutem as afirmaram maximamenterdquo72 Seu discurso
pretendia sinalizar que muitos saacutebios entre pagatildeos e cristatildeos compartilhavam dos
mesmos princiacutepios Quando o debate termina como prossegue Crinito Savonarola
mostra estar rendido perante a erudiccedilatildeo do jovem abraccedila-o e reconhece que ele eacute o
uacutenico em seu tempo a conjugar um conhecimento exaustivo tanto da Filosofia dos
Antigos como das doutrinas e leis cristatildes comparaacutevel apenas ao dos grandes Padres
da Igreja do Oriente e Ocidente73
As palavras de Pico trazem por um lado a constataccedilatildeo de uma natildeo irrestrita
anuecircncia agraves orientaccedilotildees do dominicano por outro a confirmaccedilatildeo da preservaccedilatildeo das
mesmas certezas de outrora em relaccedilatildeo ao tema da concordacircncia entre antigas
tradiccedilotildees Sob a luz de tal testemunho arrefece a suposiccedilatildeo de conversatildeo e mudanccedila
de direcionamento doutrinaacuterio E solidifica-se a hipoacutetese alccedilada por alguns de
adulteraccedilatildeo de alguns textos publicados postumamente por parte de seu religioso
sobrinho e editor sob a eacutegide de Savonarola74 Outro sinal que afasta a possibilidade
de conversatildeo pode ser verificado no discurso de post-mortem do Mirandolano no
qual o Frei demonstra com desilusatildeo que ldquoesperava mais do jovemrdquo ldquoEle demorou a
veja-se Anthony GRAFTON Giovanni Pico della Mirandola Trials and Triumphs of an Omnivore in Commerce with the classics Ancient Books and Renaissance Readers 1997 pp 93-134 Veja-se ainda Charles SCHMITT Gianfrancesco Picorsquos Attitude toward his Uncle in Llsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo pp 305-313 Stephen FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 pp 151-179 Eugenio GARIN Ricordando Giovanni e Gianfrancesco Pico della Mirandola in Giornale critico della filosofia italiana nr 74 1995 pp 5-19
70 Pietro CRINITO De honesta disciplina III 2 Roma Fratelli Bocca editori 1955 p 104 O debate eacute citado por Francisco BASTTITA HARRIET Recepcioacuten de los textos hermeacuteticos en el platonismo florentino del Quattrocento Marsilio Ficino y Giovanni Pico della Mirandola In Hermes Platonicus Hermetismo y Platonismo en el Medioevo y la Modernidad temprana 2016 p 218
71 Conforme expostas no Capiacutetulo I 72 CRINITO opcit pp 104-105 ldquoSed principes - inquit- in omni mortalium vita extiterunt aliquot et iudicio et
rerum cognitione maximi ut Moses Pythagoras Mercurius Zoroastres Solon qui omnes pari consensu non modo haec crediderunt sed maxime affirmaruntrdquo
73 CRINITO idem Na narrativa de Crinito dentre os Padres da Igreja aos quais Pico eacute igualado estatildeo Agostinho Gregoacuterio Dioniacutesio Jerocircnimo e Basiacutelio
74 BASTTITA HARRIET 2016 p 218 Para Alberto Cesare AMBESI a orientaccedilatildeo concordista de Pico contraacuteria agrave religiosidade de Savonarola que se manifestava de forma agressiva e intolerante elimina a hipoacutetese de conversatildeo que muitos quiseram crer (opcit p IV) Em razatildeo das incertezas de autoria que pairam sobre as Disputationes adversus astrologiam divinatricem preferimos nos abster de quaisquer comentaacuterios sobre a obra
41
abraccedilar a religiatildeo [] [mas] digo-vos que a alma dele em razatildeo das oraccedilotildees dos
frades e de algumas obras boas que realizou em vida estaacute no Purgatoacuteriordquo A ldquodemorardquo
em abraccedilar a religiatildeo deveu-se ao fato de o filoacutesofo natildeo se ter deixado convencer pelas
conversas com o padre que gostaria de tecirc-lo visto com o haacutebito dominicano75
Pico falece em 17 de novembro de 1494 em decorrecircncia de uma febre suacutebita e
violenta Logo surgem em Florenccedila suspeitas de assassinato76 Vestia na morte o
haacutebito dominicano aquele que em vida havia se recusado a usar No mesmo ano seu
sobrinho Gianfrancesco della Mirandola publica aquela que passaria agrave Histoacuteria da
Filosofia como a mais original contribuiccedilatildeo de Giovanni Pico a De Hominis
Dignitate
2 As bases filosoacuteficas entre a Academia e o Liceu
A recuperaccedilatildeo dos diaacutelogos platocircnicos transcorrida nos mesmos palcos em
que eram relidos os comentadores aristoteacutelicos levou ao nascimento de uma
polecircmica bastante aacutespera entre os sustentadores de cada uma daquelas linhagens
filosoacuteficas Apesar do florescente encantamento por Platatildeo sobretudo no nuacutecleo
florentino seria um equiacutevoco pensar que Aristoacuteteles tivesse sido esquecido na
segunda metade do seacuteculo XV Nas principais escolas por onde Pico passara ndash
Ferrara Bolonha Pavia e especialmente Paacutedua ndash os ensinamentos aristoteacutelicos
continuavam a fervilhar77 Mesmo entre os humanistas de vieacutes platocircnico mais
acentuado Aristoacuteteles era uma leitura obrigatoacuteria por representar a antiacutetese do
Platonismo servindo de fundamento aos mais amplos debates Tais debates
envolveriam alguns dos mais fundamentais filoacutesofos do periacuteodo de Nicolau de Cusa a
Pietro Pomponazzi passando por Ficino e deixando marcas em quase toda a
produccedilatildeo literaacuteria do seacuteculo78 A complexa temaacutetica da pressuposta antiacutetese entre o
pensamento de Platatildeo e o de Aristoacuteteles que dividia uma parcela dos acadecircmicos
ocupou uma relevante parte dos interesses de Giovanni Pico que trabalhou no
problema desde a De Hominis Dignitate ateacute o De Ente et Uno Aleacutem de todo seu
esforccedilo empregou na questatildeo a consistente bagagem que possuiacutea preenchida de
forma equacircnime pelo peso das duas vertentes que abasteciam sua biblioteca79
75 GARIN 2011 pp43 135 76 Leacuteon DOREZ apresenta a tese da morte por envenenamento por parte do secretaacuterio de Pico Cristoforo di
Casal Maggiore por razotildees financeiras ou poliacuteticas Pico havia feito empreacutestimos e destinado um lauto legado a Cristoforo (La mort de Pic de la Mirandole et lrsquoeacutedition aldine des oeuvres drsquoA Politien in Giornale St Letteratura italiana vol 32 1898 pp360-364)
77 Tambeacutem Florenccedila respirava um clima aristoteacutelico Desde o final do seacuteculo XIII e ateacute parte do lsquoXV o filoacutesofo mais estudado pelos grandes cidadatildeos de Florenccedila havia sido Aristoacuteteles Soacute no lsquo400 foram feitas trinta e duas novas traduccedilotildees de suas obras a maior parte em Veneza e em Florenccedila nesta uacuteltima durante o periacuteodo em que jaacute prevalecia em seu solo a filosofia platocircnica (cf BROCCHIERI 2011 p24)
78 Paul Oskar KRISTELLER Movimenti filosofici del Rinascimento in Giornale critico della Filosofia Italiana 1950 29
79 A biblioteca de Pico tornou-se famosa por ser uma das maiores de seu seacuteculo Ademais suas fontes eram todos os livros das bibliotecas de seu tempo segundo Giovanni DI NAPOLI (Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo 1955) tornando seu leque de referecircncias fora do alcance de seus
42
Seus primeiros anos de estudos foram ocupados com as problemaacuteticas em
torno ao Aristotelismo e as subsequentes questotildees alccediladas por seus comentadores
Em uma carta de 1485 em resposta ao humanista Ermolao Barbaro tem-se o
importante testemunho do enraizado conhecimento de suas doutrinas e da gratidatildeo
que Pico nutria por aquela Escola em aberto elogio aos ldquograndes mestres aacuterabes e
latinos da Idade Meacutediardquo relata que a eles dedicou ldquotodos os dias e noitesrdquo daqueles
que por seis anos consecutivos teriam sido seus ldquomelhores anos de estudordquo A carta
reproduz ademais a defesa dos grandes conteuacutedos em detrimento da filologia e da
retoacuterica humanista ndash defendida por Barbaro ndash tendo se tornado um documento de
elogio agrave Filosofia ldquonatildeo seremos ceacutelebres nas escolas dos gramaacuteticos []mas sim
onde se indagam as razotildees das realidades humanas e divinasrdquo80 Seus argumentos e
justificativas somam-se para defender o meacutetodo escolaacutestico tornando-se
emblemaacuteticos das discussotildees ensejadas no periacuteodo renascentista ndash em que os
defensores da elegacircncia linguiacutestica encontravam-se em oposiccedilatildeo aos defensores dos
conteuacutedos filosoacuteficos81
Fato certo eacute que nas linhas da escolaacutestica latina especialmente a mais tardia
Pico encontrara uma riqueza de pensamento que o ajudaria a solucionar muitas de
suas duacutevidas filosoacuteficas Eis a razatildeo para dedicar ao periacuteodo nada menos que 94 de
suas Conclusiones entre as quais se encontram proposiccedilotildees dos principais
representantes do Aristotelismo cristatildeo estudados em Paacutedua e Paris como Alberto
Magno o teoacutelogo Enrico de Gand e seu contemporacircneo Egidio Romano o
dominicano Tomaacutes de Aquino o franciscano Duns Escoto e seu disciacutepulo Francisco
de Meyronnes Sua trajetoacuteria de estudos inicia-se com Tomaacutes com o qual passaria
um longo periacuteodo de instruccedilatildeo que continuaria com o percurso das demais
interpretaccedilotildees latinas82 Impulsionado por seu crescente interesse em torno ao Liceu
em breve tempo Pico seria conduzido ao encontro com o pensamento aacuterabe a
Universidade de Paacutedua sobretudo agrave sua eacutepoca seguia uma linha majoritariamente
averroiacutesta83 O relevo dispensado a essa corrente de pensamento reflete-se em suas
contemporacircneos Apoacutes sua morte e conforme deixado em testamento a biblioteca foi herdada por seu irmatildeo Anton Maria que a vendeu ao cardeal Domenico Grimani amigo de Pico e de Elia del Medigo estudioso de filosofia oriental Outras informaccedilotildees sobre a biblioteca de Pico podem ser colhidas de GARIN Giovanni Pico della Mirandola 2011 pp 106 ss
80 A carta de Junho de 1485 eacute reproduzida dentre outros por Eugenio GARIN (org) Prosatori latini del Quattrocento Milano-Napoli 1952 pp804-823 Eugenio ANAGNINE examina com precisatildeo tal epiacutestola em seu Giovanni Pico della Mirandola 1937 pp 18 ss Veja-se ainda Francesco BAUSI E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza 1998 e alguns comentaacuterios de GARIN em sua traduccedilatildeo do De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 pp7 ss e em sua obra de 2011 p7
81 A carta para Barbaro tornou-se conhecida como De genere dicendi philosophorum ou ainda ldquoil manifesto del pensiero moderno allrsquouscire dalla sua infanzia drsquoun secolordquo (cf GARIN op cit pp22-23) O veneziano Ermolao Barbaro era disciacutepulo ferrenho de um novo Aristoacuteteles compreendido agrave luz do movimento humanista que rompia com a escolaacutestica medieval Em sua visatildeo aquela forma de interpretaccedilatildeo dogmatizava o Estagirita vinculando-o agrave loacutegica e a um padratildeo de pensamento teoloacutegico para ele ldquocoisa de conventordquo Acerca da polecircmica entre Ermolao Barbaro e Giovanni Pico veja-se Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos del Renacimiento Italiano p82 GARIN (org) Prosatori latini del Quattrocento Milano-Napoli 1952
82 Eugenio ANAGNINE (Giovanni Pico della Mirandola Sincretismo religioso-filosofico 1937 p32) de forma singular acentua a influecircncia tomista no pensamento de Pico
83 Em Paacutedua a pesquisa universitaacuteria em torno do aristotelismo-averroiacutesta ganhara uma notoacuteria dimensatildeo especialmente na deacutecada de 70 do seacuteculo XV Esse fato contribuiu para que acorressem ao burgo diversos jovens humanistas aacutevidos em aprofundar o conhecimento aristoteacutelico Paralelamente diversos tipoacutegrafos introduziram sua arte na cidade no uacuteltimo quartel daquele seacuteculo e por via da accedilatildeo tipograacutefica foram grandes divulgadores dos
43
82 teses dedicadas aos inteacuterpretes aacuterabes de Aristoacuteteles quase se igualando em
nuacutemero agraves dedicadas aos comentadores cristatildeos Dentre aqueles o estudioso
debruccedilou-se sobre o filoacutesofo persa Ibn Sina conhecido como Avicenna e seu mestre
de origem turca Al-Farabi e de forma singular sobre o andaluz conhecido como
Averroacuteis cujas obras ocupavam grande parte de sua biblioteca84
Em seus estudos de especulaccedilatildeo oriental a obra de Averroacuteis desempenharia
um papel fundamental muito graccedilas a seus mestres de Paacutedua Nicoletto Vernia e
sobretudo Elia del Medigo que efetivamente incitaram Pico a aprofundar-se no
pensamento do comentador de Aristoacuteteles Eacute bastante provaacutevel que Elia leitor atento
da concepccedilatildeo da ordem metafiacutesica averroiacutesta tenha sido o primeiro a lanccedilar na
mente de seu aluno a semente da ldquoverdade uacutenicardquo sobretudo exposta por Averroacuteis em
seu De animae beatudine determinante para as primeiras concepccedilotildees piquianas em
torno da concordacircncia final entre doutrinas que se desenvolveria nos anos
seguintes85 Outras duas concepccedilotildees averroiacutestas certamente tiveram efeito em seus
escritos quais sejam o encontro da unidade da verdade com a unidade do espiacuterito
que a busca ndash e que define a unidade uacuteltima do intelecto inteligente e inteligiacutevel ndash e a
cogniccedilatildeo racional que ocorre entre pensadores individuais que formam uma
continuidade de pensamento levando a um complemento do real que apenas assim
se atua de forma plena Pico estava disposto a debater essa uacuteltima concepccedilatildeo durante
a pretendida Disputa Romana pois dentre as teses atribuiacutedas a Averroacuteis lecirc-se que ldquoa
alma intelectiva eacute uacutenica em todos os homensrdquo86 Mas de forma particular foi a
doutrina que postula a possibilidade de uniatildeo do intelecto humano com a mente
divina que mais fortemente ecoaria e se repetiria na obra de Pico87 Na forma
pressuposta pelo filoacutesofo aacuterabe
Aquele intelecto entatildeo ascenderaacute pelo ato agrave assimilaccedilatildeo das
realidades abstratas e compreenderaacute ser seu o que eacute pelo ato o
intelecto88
comentaacuterios de Averroacuteis a Aristoacuteteles Sobre a accedilatildeo tipograacutefica em Paacutedua veja-se G ANTONELLI Sulle Opere di Aristotele col commento dellrsquoAverroe impresse in Padova dal Canozio negli anni 1472 73 e 74 (Ferrara 1842) A Escola de Paacutedua graccedilas aos sistemas cientificistas adotados em seus estudos foi a responsaacutevel por cunhar a expressatildeo ldquomeacutetodo cientiacuteficordquo para questotildees de acircmbito filosoacutefico
84 Em seu ldquoAppendicerdquo a Giovanni Pico della Mirandola (2011 pp 106 ss) no qual se encontra a relaccedilatildeo de obras que compunham a biblioteca de Pico escreve GARIN que o pensador do qual Pico ldquonatildeo sem significadordquo possuiacutea mais obras era justamente Averroacuteis (p118) Comentador de Aristoacuteteles por excelecircncia Abu al-Walid ibn Rushd mais frequentemente conhecido no Ocidente por Averroacuteis havia feito entre outras interpretaccedilotildees um comentaacuterio da Metafiacutesica agrave luz do Coratildeo A biblioteca de Pico continha vaacuterias de suas traduccedilotildees e comentaacuterios em aacuterabe hebraico e latim Para um maior enquadramento da problemaacutetica averroiacutesta veja-se a obra de Ernest RENAN Averroegraves et lrsquoAverroiumlsme 1852
85 Acerca do influxo de Averroacuteis sobre a concepccedilatildeo de concoacuterdia piquiana veja-se GARIN 2011 pp12 ss 84 ss 86 PICO Concl (I) II I 2 (p20) ldquoUna est anima intellectiua in omnibus hominibusrdquo Dentre as teses
atribuiacutedas por Giovanni Pico aos comentadores aacuterabes de Aristoacuteteles 41 foram dedicadas a Averroacuteis O tema da unidade de alma dos filoacutesofos eacute tratado na obra do filoacutesofo aacuterabe Destructio destructionum disp I fol 20 I-21 a ldquoSoacutecrates eacute diverso de Platatildeo em nuacutemero e contudo ele mesmo [Soacutecrates] e Platatildeo satildeo o mesmo na forma que eacute almardquo (ldquoSocrates est alius a Platone numero et tamen ipse et Plato sunt idem in forma quae est animardquo)
87 A uniatildeo da mente humana com o divino eacute concepccedilatildeo presente na inteira obra piquiana colocada por outras vias e atraveacutes de outras formas filosoacuteficas ou teoloacutegicas como seu objetivo final Sobre a especiacutefica reflexatildeo do tema averroiacutesta na obra de Pico veja-se Guido DE RUGGIERO La filosofia del Cristianesimo 1920 p56
88 AVERROacuteIS De animae beatudine Opera volIX 153 AB ldquoAscendet tunc ille intellectus is actu ad assimilationem rerum abstractarum et intelligit suum esse quod est actu intellectus []rdquo O tratado De animae beatudine foi uma compilaccedilatildeo posterior de dois curtos textos de Averroacuteis sobre o intelecto (Tractatus De animae
44
A ideia da conciliaccedilatildeo do indiviacuteduo com o intelecto universal e a ideia da
unidade de alma existente entre os filoacutesofos seriam colhidas e ajudariam a compor o
substrato do pensamento piquiano89 Tais concepccedilotildees muito provavelmente
fizeram-no abraccedilar com mais veemecircncia o Platonismo com o qual encontraria
similitudes conceituais ndash como na questatildeo da afinidade existente entre a parte da
alma capaz de entender as Ideias e a realidade inteligiacutevel permitindo sua uniatildeo Cabe
ressaltar que a inspiraccedilatildeo averroiacutesta de Pico foi de tal profundidade que o levou a
afastar-se dos tradicionais nuacutecleos de Paacutedua em razatildeo de divergecircncias em relaccedilatildeo a
especificidades daquela doutrina A cisatildeo com o academicismo padovano fez com que
Barbaro o chamasse de ldquotraidorrdquo na famosa carta de rsquo85 incomodado pela
aproximaccedilatildeo do amigo ao Platonismo o peripateacutetico atribuiu seu afastamento a uma
suposta adesatildeo incondicional agrave filosofia do ciacuterculo de Ficino Mas ao contraacuterio do
que tantos quiseram crer seu afastamento foi mais consequecircncia dos argumentos
retirados de seus intensos estudos sobre o pensamento aacuterabe aliados a uma forma
diferenciada de ler Averroacuteis90 Mais do que ter sido ldquoroubadordquo de Averroacuteis por Platatildeo
Pico foi impelido pelo Comentador ao Platonismo pois havia algo naquela filosofia
que dava espaccedilo para a transcendecircncia91
Embora seja redutivo outorgar agrave filosofia de Averroacuteis o creacutedito por uma
aproximaccedilatildeo ao nuacutecleo de pensamento da Academia cabe lembrar que o Pico que se
lanccedila com interesse sobre a ficiniana Theologia Platonica em 1482 tem a mente jaacute
moldada por uma robusta bagagem averroiacutesta que natildeo seria desprezada Seu
primeiro texto relevante o Commento sopra una Canzona drsquoamore composta da
Girolamo Benivieni92 apresenta um claro vieacutes platocircnico A inegaacutevel orientaccedilatildeo de seu
primeiro escrito mostra que embora o nuacutemero total de teses dedicadas ao
Platonismo na sucessiva obra de rsquo86 tenha sido menor a admiraccedilatildeo por suas
concepccedilotildees natildeo se mostra inferior do que a experimentada com as correntes
aristoteacutelicas Eacute bastante possiacutevel que ao aproximar-se de Platatildeo e dos neoplatocircnicos
Pico jaacute o faccedila trajando as vestes do conciliador que busca harmonizar os motivos
centrais do Liceu e da Academia Sob tal enfoque chama a atenccedilatildeo o fato de Proclo
beatudine - Aristotelis Opera cum Averrois Commentariis Venetiaa Junctas 1562 [reprinted Frankfurt 1962] Vol IX pp 148r-155r)
89 A concepccedilatildeo de que o intelecto eacute capaz de entender o agente primeiro e a si mesmo a partir da virtude racional eacute uma tese de Al-Farabi que Pico encontra tambeacutem em Avempace e em Maimocircnides (Doctor perplexorum I 68) neste uacuteltimo conforme elucida Salomon MUNK Le Guide des Egareacutes Paris 1856 volI n p 304-308 (GARIN 2011 p65)
90 Um detalhamento da interpretaccedilatildeo de Pico que o levou a divergir dos demais averroiacutestas nos afastaria do tema traccedilado Para o tema veja-se GARIN 2011 pp12 ss 84 ss
91 Conforme infere Moshe IDEL Averroacuteis ldquoo mais ortodoxo entre os aristoteacutelicos medievais e ao mesmo tempo conhecido por permitir a possibilidade da uniatildeo epistecircmica do humano com o Agente Intelectordquo eacute entendido por oferecer uma metafiacutesica e uma epistemologia que podem conter alguns elementos miacutesticos Trata-se pois de ldquoum racionalista que natildeo conseguindo justificar todas as coisas plenamente atraveacutes da razatildeo aceita a revelaccedilatildeordquo (IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 28-29)
92 Durante sua permanecircncia em Fratta apoacutes o fracasso amoroso com Margherita Pico concluiu seu comentaacuterio agrave canccedilatildeo de amor redigida pelo amigo Benivieni o chamado Commento obra que se tornou famosa e foi bastante comentada nas cartas do periacuteodo O texto foi editado uma primeira vez em 1519 no contexto das obras piquianas e em 1731 como texto autocircnomo com o tiacutetulo Dellrsquoamore celeste e divino - Canzone di GB fiorentino col comento di G Pico della Mirandola (Alberto Cesare AMBESI ldquoGiovanni Pico della Mirandola Cenni biografici e presentazione dellrsquooperardquo in Heptaplus 1996 pV)
45
ser homenageado com 55 teses dez a mais que seu estimado Aquinate Essa
quantidade revela natildeo apenas o apreccedilo de Pico pelo filoacutesofo grego como muito
provavelmente a vontade de dar continuidade ao projeto que aquele havia iniciado
jaacute entatildeo uma tentativa de levar a termo a conciliaccedilatildeo entre as duas escolas
filosoacuteficas93 Ademais assim como ele o uacuteltimo grande mestre neoplatocircnico
considerava como elemento preliminar agrave carreira filosoacutefica o entendimento das obras
loacutegicas de Aristoacuteteles Certo eacute que a ideia de encetar um estudo de verificaccedilatildeo da
concoacuterdia entre os dois grandes da Antiguidade iniciara pouco antes de seu
estabelecimento em Florenccedila ocorrido em rsquo84 encontrando-se expressa na epiacutestola a
Barbaro do mesmo ano na qual afirma ser apenas aparente tal discoacuterdia
Parece-me que em Platatildeo haacute dois aspectos a eloquecircncia
homeacuterica que se ergue ateacute os ceacuteus da poesia e um total acordo
com Aristoacuteteles se se vai a fundo Portanto se olharmos a
forma nada concorda entre os dois mas se natildeo olharmos a
forma nada se opotildee entre os dois94
O momento para retomar aquele projeto maior mantido vivo desde antes da
elaboraccedilatildeo das novecentas teses ocorre apoacutes o fracasso de seu intento com as
Conclusiones Para levaacute-lo a termo muniu-se de fundamentos encontrados tanto nas
similitudes descritas pelos comentadores que o influenciaram quanto em sentido
contraacuterio nas diferenccedilas entre os dois Filoacutesofos acentuadas sobretudo por George
Gemistos Plethon anos antes95 Assim durante os anos de rsquo90 e lsquo91 Pico se dedica
exaustivamente agrave ldquoconcordia Platonis et Aristotelisrdquo conseguindo concluir em 1492
o texto embrionaacuterio De Ente et Uno dedicado ao amigo Poliziano96 Nesse percurso
ocorre seu retorno agrave Escolaacutestica que pode ter sido decisivo assim como o
Averroiacutesmo anos antes o aproximara a Platatildeo Tomaacutes de Aquino seu mestre inicial
o reaproximava agora a Aristoacuteteles ndash natildeo sem a influecircncia da convivecircncia com
93 Em sua ldquoIntroduccedilatildeordquo agraves Conclusiones Pico esclarece que o acordo entre Platatildeo e Aristoacuteteles ldquopor muitos
considerado possiacutevelrdquo natildeo havia sido por ningueacutem ldquosuficientemente provadordquo Por ldquomuitosrdquo Pico referia-se a Boeacutecio Simpliacutecio Agostinho e Joatildeo Gramaacutetico ldquoBoeacutecio [] parece que nunca cumpriu o que sempre disse querer fazer Simpliacutecio entre os Gregos tinha sustentado a mesma coisa quem dera tivesse mantido quanto prometera Ateacute mesmo Agostinho no livro Contra os Acadecircmicos escreve que muitos foram os que tentaram provar que a filosofia de Platatildeo e de Aristoacuteteles satildeo uma mesma filosofia Assim Joatildeo Gramaacutetico que afirma que Platatildeo difere de Aristoacuteteles soacute para os que natildeo percebem o texto de Platatildeo deixou aos vindouros a demonstraccedilatildeordquo (Concl p145) Naomi GOLDFELD observa que o mestre Elia del Medigo foi outro dentre os que encontraram dificuldades para conciliar Platatildeo e Aristoacuteteles seguindo os passos de Averroacuteis que por sua vez havia encontrado dificuldades quase trecircs seacuteculos antes ao tentar essa conciliaccedilatildeo (Elia del Medigo e lrsquoaverroismo hebraico in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 43-44)
94 PICO Carta de 6 de Dezembro de 1484 in De Hominis Dignitate etc p9 (I 22) ldquo[] duo in Platone agnoscere et homerican illam eloquenti facultatem supra prosam orationem sese attollentem et sensum si quis eos altius introspiciat cum omnino communionem Ita ut si verba spectes nihil pugnantius si res nihil concordiusrdquo
95 Eacute bastante provaacutevel que a polecircmica de algumas deacutecadas gerada pelo opuacutesculo posteriormente intitulado De Differentiis que exerceu forte influxo nas concernentes discussotildees do seacuteculo XV ndash no qual o mestre de Mistra aborda as diferenccedilas entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash tenha afetado o jovem Pico Conforme foi visto no Capiacutetulo I a polecircmica sobre as divergecircncias ou similaridades entre os dois Filoacutesofos perpassou o seacuteculo de certa forma graccedilas agrave continuidade do debate mantida por George de Trebizonda e Basiacutelio Bessarion Para maiores detalhes acerca da questatildeo leia-se MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 James HANKINS Plato in the Italian Renaissance 1990 pp193 ss GARIN 2011 p128
96 A iacutentegra da obra pode ser encontrada na ediccedilatildeo de Vallecchi (org Eugenio Garin) da De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 Para dados adicionais sobre a discussatildeo do De Ente et Uno leia-se GARIN 2011 entre pp 79 e 98 sobretudo as pp80-81
46
Savonarola Como infere Di Napoli o retorno a Tomaacutes com sua ldquosiacutentese de superaccedilatildeo
da distinccedilatildeo entre Platatildeo e Aristoacutetelesrdquo seria ldquodeterminanterdquo para que Pico
embasasse sua concoacuterdia97 O esteio tomista traria a sustentaccedilatildeo necessaacuteria para
discorrer acerca da relaccedilatildeo entre o Uno e o Ser proscecircnio de uma das importantes
disputas entre acadecircmicos aristoteacutelicos e platocircnicos nas discussotildees teoloacutegicas do
seacuteculo Solucionar um dos grandes contrastes teoreacuteticos da eacutepoca cria o eixo de De
Ente et Uno para a fundamentaccedilatildeo do qual Pico apoia-se sobretudo na Metafiacutesica
de Aristoacuteteles e no Parmecircnides de Platatildeo98 Apesar de o intento natildeo ter sido
terminado e a concordacircncia portanto natildeo concluiacuteda nos moldes pretendidos a obra
aborda conceitos metafiacutesicos obrigatoacuterios para a questatildeo retratando de acordo com
Garin uma ldquonotaacutevel posiccedilatildeo especulativardquo99
A soacutelida estrutura preparada ao longo de anos para sustentar aquele que seria
um de seus mais importantes projetos filosoacuteficos o de dirimir as diferenccedilas entre os
dois Gregos permitiu-lhe especular sobre esferas metafiacutesicas elevadas Apesar de
uma exposiccedilatildeo mais ampla do De Ente et Uno mostrar-se secundaacuteria para a
composiccedilatildeo do tema aqui proposto tomar conhecimento de seu nuacutecleo e sobretudo
de para onde aponta seu fim eacute condiccedilatildeo devida para que se complete o cenaacuterio dos
alicerces que constituem o pensamento piquiano O nuacutecleo da obra concentra um
motivo de cunho ontoloacutegico visto que trata da discussatildeo acerca da unidade ou
multiplicidade do Ser tomando por base as visotildees aristoteacutelica e platocircnica referentes
ao Ser e ao Uno Partindo da passagem da Metafiacutesica ldquoo Ser eacute Unordquo100 que se opunha
agrave ldquoprioridade do Uno em relaccedilatildeo ao Enterdquo sustentada na Academia101 Pico pretende
averiguar se a Unidade eacute inerente ao Ser O fim de sua obra para o qual se orienta a
tentativa de dirimir o presumido conflito eleva-o para a esfera dos Princiacutepios ndash um
interesse relacionado agrave Origem protoloacutegico portanto Essa informaccedilatildeo deve ser
guardada Em torno a essa esfera e natildeo abaixo dela concentram-se muitas das
demais argumentaccedilotildees piquianas algumas de acircmbito supra filosoacutefico sobretudo as
que recorrem a argumentos retirados da dimensatildeo esoteacuterica como seraacute visto Seus
interesses de ordem religiosa ou miacutestica procuram justamente encontrar o ponto de
convergecircncia entre aquelas doutrinas e os Princiacutepios
97 Giovanni DI NAPOLI Pico e la problematica dottrinale del suo tempo 1965 p223 Para o influxo de Tomaacutes
de Aquino sobre o pensamento de Pico em seus uacuteltimos anos veja-se Andreacute-Jean FESTUGIEgraveRE Studia Mirandulana in Archives drsquohistoire doctrinale e litteraire du Moyen acircge 1933 pp151 e ss ANAGNINE (opcit p32)
98 A discussatildeo do Parmecircnides envolveu muitos eruditos no seacuteculo XV como Bessarion e Ficino que enxergavam no diaacutelogo o coraccedilatildeo da teologia platocircnica Alguns pontos da obra contrapuseram Pico ndash que considerava a obra apenas como um exerciacutecio dialeacutetico ndash a Ficino que diria ldquono Parmecircnides Platatildeo encerrou a inteira teologiardquo (Ficino Opera Henricpetrina Basilea 1576 p1137 apud MOLINARI opcit p81) Ainda GARIN LrsquoUmanesimo Italiano 2008 pXVII As interpretaccedilotildees dos dois autores renascentistas sobre o pensamento de Platatildeo exerceraacute uma influecircncia profunda nos seacuteculos seguintes alcanccedilando desde os Platocircnicos de Cambridge ateacute a literatura alematilde atingindo Winckelmann Herder Goethe Schelling e Hegel (cf CASSIRER ldquoFicinorsquos Place in Intelectual Historyrdquo in Journal of the History of Ideas nr 6 1945)
99 GARIN 2011 p42 Como reflete o comentador em outra obra Pico mergulhou na problemaacutetica da discoacuterdia natildeo para eliminar seu dissenso mas para integrar ndash e distribuir em niacuteveis distintos ndash seus conteuacutedos (GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo 1965 p17) Mesmo natildeo tendo concluiacutedo a obra de conciliaccedilatildeo entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash tema que continuaraacute em todo o seacuteculo XVI ndash soacute o fato de tecirc-la proposto em termos novos e tecirc-la iniciado mostram como era forte a necessidade de suplantar certas posiccedilotildees humanistas do lsquo400 e como jaacute despontavam em Pico questotildees que seriam a tocircnica do seacuteculo vindouro (GARIN 2008 p 98)
100 Metaphysica IV 2 1003b-23 ldquoens et unum idem et eadem natura suntrdquo 101 PICO De Ente et Uno p389
47
3 A aproximaccedilatildeo aos estudos miacutesticos
O contato com a consistente corrente d0 pensamento padovano natildeo trouxe
apenas a convicccedilatildeo de conciliar Platatildeo e Aristoacuteteles Jaacute agrave eacutepoca de seus estudos
iniciais havia-se encastelado na mente de Pico aquele que viria a ser seu desafio
maior encontrar os pontos de acordo entre sistemas filosoacuteficos e doutrinas religiosas
pertencentes a tradiccedilotildees distintas102 Natildeo por acaso observa-se em sua biografia uma
alternacircncia de temaacuteticas de pesquisa que transitam entre Filosofia e doutrinas ligadas
ao campo da Revelaccedilatildeo Essas uacuteltimas satildeo retomadas no periacuteodo imediato ao retorno
da Franccedila para Florenccedila quando ocorre a aproximaccedilatildeo ao misticismo hebraico
atraveacutes de uma renovaccedilatildeo nos estudos biacuteblicos Em fase de introspecccedilatildeo inicia-se a
redaccedilatildeo de uma seacuterie incompleta de comentaacuterios sobre os Salmos e embora natildeo
comprovado uma nova traduccedilatildeo e alguns comentaacuterios sobre partes do Livro de Joacute
Nessa fase tocado pelo estado de espiacuterito de seu amigo Lorenzo escreve para o
embaixador papal em Roma Giovanni Lanfredini contando que Pico ldquovive muito
piamente como um monge canta os Salmos e escreve conteuacutedos teoloacutegicosrdquo E
acresce que ldquopoucos satildeo os homensrdquo que lhe despertam ldquotanta estimardquo103 A carta ndash
uma tentativa para a reabilitaccedilatildeo do sentenciado ainda natildeo absolvido de sua
condenaccedilatildeo ndash termina sendo malsucedida pois Inocecircncio VIII considera intoleraacutevel o
interesse contiacutenuo de Pico em Teologia preferindo que ele ldquose dedique agrave poesiardquo104
Esse tipo de interesse pelas Escrituras natildeo era novo Quando ainda estudante
em Paacutedua lanccedilara-se com premecircncia ao estudo do idioma hebraico em um primeiro
momento buscava apenas compreender as traduccedilotildees e interpretaccedilotildees hebraicas dos
pensadores aacuterabes e seus comentaacuterios referentes a Aristoacuteteles contudo em fase
posterior os textos originais hebraicos foram objeto de profundo interesse para a
busca de confirmaccedilotildees da verdade de suas crenccedilas cristatildes ndash interesse despertado
sobretudo pelo contato com Elia del Medigo durante o periacuteodo florentino A
proficiecircncia do idioma seria incrementada por Flaacutevio Mitridate ndash mestre que natildeo
apenas o ajudaria nas traduccedilotildees de alguns textos como se tornaria seu principal
instrutor de liacutenguas orientais105 Aleacutem do hebraico iniciou-o no aramaico e no aacuterabe
este entre outras coisas para que pudesse ler Maomeacute no original Assim em dado
periacuteodo o aprendiz lia simultaneamente o Coratildeo os Oraacuteculos Caldeus atribuiacutedos a
102 GARIN 2011 p13 BROCCHIERI opcit p13 103 A carta foi escrita em 13 de junho de 1489 Os conteuacutedos teoloacutegicos referem-se tanto aos Salmos quanto
presumivelmente ao Heptaplus (BLACK opcit pg 9) As cartas entre Giovanni Lanfredini e Lorenzo dersquo Medici podem ser vistas em Domenico BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti 1859 pp51-52 Ainda para a questatildeo veja-se GARIN 2011 pp39-40
104 Em 2 de Outubro de 1489 o embaixador Giovanni Lanfredini assim responderia a Lorenzo ldquoEt dixe [il papa] lsquoQueste cose della fede sono troppo tenere et non posso tollerarle Se lui [Lorenzo] gli vuole molto bene [a Pico] che lo facci scrivere opere di poesia et non cose theologiche percheacute saranno piugrave de sua denti percheacute il conte non egrave bene fondato et non ha visto tanto quanto bisogna ad chi scrive theologiarsquordquo (MS Firenze Archivio di Stato MAP 58 96 apud Raffaella Maria ZACCARIA Critiche e difesa dellrsquoHeptaplus in Pico Poliziano e LrsquoUmanesimo di fine Quattrocento 1994 pp 76-77)
105 Para os estudos com Mitridate leia-se Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 88 Domenico BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti in Rivista contemporanea 1859 pp36-37
48
Zoroastro e o Livro da Criaccedilatildeo pilar do misticismo judaico ndash buscando extrair seus
pontos de conversatildeo106
O contato com os mestres hebreus que frequentavam o ciacuterculo florentino
ligado agrave Academia acentuou ademais seu interesse pelo Esoterismo Elia del
Medigo natildeo lhe apresentaria apenas Averroacuteis e as filosofias orientais em carta ao
aluno no provaacutevel ano de rsquo85 mencionava a principal doutrina miacutestica judaica
afirmando que ldquopoucos entre os Antigos entenderam a Cabalardquo107 Ademais
continuava a carta seus textos obscuros pediam uma hermenecircutica especial que
possibilitasse a decodificaccedilatildeo das doutrinas secretas laacute ocultas ele Elia seria o
mestre capaz de fornecer a Pico os preciosos elementos para a compreensatildeo da gnose
hebraica108 Assim embora natildeo se tendo limitado aos ensinamentos de Elia que
nesse sentido foram um tanto escassos as primeiras indicaccedilotildees para seus estudos da
Cabala foram-lhe transmitidas por aquele jovem mestre que insistia para que fossem
extraiacutedas as partes teoreticamente mais profundas da miacutestica hebraica Elia colocava
e ressaltava continuamente o problema da convergecircncia entre Filosofia e Teologia
(ldquoo outro caminho para acreditar-se na Lei aleacutem da feacute se daacute pela via filosoacuteficardquo)109 ndash
uma concepccedilatildeo essencial para a formaccedilatildeo do pensamento piquiano
Natildeo somente Elia lhe abriria as portas para esse gecircnero de interesse A forte
dicotomia entre a leitura literal e natildeo literal era uma caracteriacutestica constante e
enfaacutetica da tradiccedilatildeo judaica medieval ainda mantida viva no seacuteculo XV e
apresentava evidentes paralelos com os modelos de transmissatildeo esoteacuterica greco-
cristatildeos tais ideias tinham portanto uma ressonacircncia contemporacircnea sendo objeto
de discussotildees teoacutericas na Itaacutelia ainda agrave eacutepoca em que Pico escrevia o Heptaplus110 De
forma que a postura hermenecircutica ali desenvolvida natildeo se fundamenta apenas na
miacutestica judaica mas encontra raiacutezes entre os primeiros inteacuterpretes latinos e gregos
Dentre as vaacuterias fontes agraves quais Pico teve acesso e que foram certamente utilizadas
em suas pesquisas verificam-se desde representantes do Cristianismo primitivo
quanto do meacutedio e novo Platonismo como Plutarco Dioacutegenes Laeacutercio Clemente
106 A questatildeo do aprendizado de liacutenguas estaacute bem documentada em vaacuterias cartas Veja-se Gian Francesco PICO
Vita di Giovanni Pico (org Sorbelli) 1963 DUKAS opcit pp69-70 CASSUTO op cit pp 282 299-300 GARIN 2011 pp97-98 Em resposta a uma carta de Ficino de setembro de 1486 em que esse lhe pede de volta a versatildeo latina do Coratildeo Pico conta-lhe sobre seu mecircs de esforccedilos para aprender o hebraico aleacutem de levar adiante os estudos do aacuterabe e do aramaico A carta pode ser lida em Chaim WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1987 pp 3-4 Escreve Wirszubski que ldquoo quanto Pico aprendeu em hebraico em termos de proficiecircncia eacute difiacutecil dizer natildeo eacute de forma alguma insignificanterdquo E na p 6 ldquoPico aprendeu muito com as traduccedilotildees de Mitridate infinitamente mais do que ele poderia ter aprendido com os originais hebraicos uma vez que tentou lecirc-los sem traduccedilotildeesrdquo
107 HELIAE CRETENSIS De efficientia mundi in RAGNISCO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo 1891 Veja-se ainda Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 BROCCHIERI opcit p9
108 CASSUTO opcit pp284 e ss Ainda para o tema BROCCHIERI opcit pp10-11 GARIN 2011 p11 SIRGADO GANHO opcit p17
109 HELIAE CRETENSIS De efficientia mundi fol 255 in RAGNISCO opcit A carta de Elia del Medigo foi publicada pela primeira vez por Jules DUKAS em Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 ldquo[] si quid tamen dictum sit contrarium Legi non mirum est quia tantum intentiones Philosophorum secundum fundamenta eorum dicere volui scitur nam quod via Legis cui magis creditur alia est a via Philosophicardquo Complementando a colocaccedilatildeo acima cabe observar que na visatildeo de Elia segundo Naomi GOLDFELD a feacute estaacute fundada sobre a razatildeo (ldquoElia del Medigo e lrsquoaverroismo hebraicordquo in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze 1998 p 43-44)
110 BLACK opcit pp 131-132
49
Euseacutebio Plotino Porfiacuterio e Jacircmblico Tendo sido adotada por alguns dentre os
primeiros exegetas cristatildeos a abordagem esoteacuterica foi mantida em circulaccedilatildeo por
intermeacutedio da tradiccedilatildeo neoplatocircnica mais tardia ndash levada adiante por Macroacutebio
Pseudo-Dioniacutesio e Simpliacutecio ndash depois que a mesma havia deixado de ser utilizada111
Jaacute em relaccedilatildeo agraves interpretaccedilotildees relativas ao Gecircnesis cujos sinais se mostram
na De Hominis Dignitate e em caraacuteter preciacutepuo no Heptaplus eacute bastante certo que
um limitado nuacutemero de textos tenha sido extraiacutedo das exegeses gregas da escola
alexandrina particularmente referentes a escritos de Oriacutegenes e de Fiacutelon A obra De
opificio mundi de Fiacutelon foi bem recepcionada por Ambroacutesio cujo pensamento
influiria sobre Agostinho mas apoacutes essa recepccedilatildeo cristatilde no seacuteculo IV sua utilizaccedilatildeo
parece ter desaparecido em grande parte112 Eacute possiacutevel que Pico tenha tido acesso ao
conteuacutedo de Fiacutelon atraveacutes de Ambroacutesio ou Agostinho
Passar do esoterismo grego e cristatildeo ao oriental foi um passo Pico percebia
atraveacutes de suas leituras que havia outros sistemas que em comum com aqueles
partilhavam de certo pendor por questotildees de cunho teoloacutegico ndash quando natildeo
puramente miacutestico Ainda antes de chegar a Florenccedila o jovem de Mirandola fora
atraiacutedo pelo Platonismo de Ficino um Platonismo de vieacutes teoloacutegico que tentava a
conciliaccedilatildeo com o Cristianismo O entatildeo ordenado padre via na obra platocircnica uma
filosofia divinamente inspirada na qual estava sintetizada toda a tradiccedilatildeo
especulativa oriental e grega113 Na concepccedilatildeo ficiniana todos os campos do real
encontravam-se convergentes em virtude de uma uniatildeo vital do mundo tal reflexatildeo
contemplava a perspectiva de uma pia philosophia na qual estariam alinhados
Zoroastro e Moiseacutes Hermes Trismegisto e Platatildeo os pitagoacutericos e os neoplatocircnicos
O legado de Ficino natildeo deixaria de acrescer importantes elementos na construccedilatildeo do
pensamento piquiano embora natildeo sem ressalvas114
Sobretudo os textos hermeacuteticos de acordo com as traduccedilotildees ficinianas teriam
exercido influecircncia nas reflexotildees do Conde alguns de seus temas como a liberdade
da alma em relaccedilatildeo ao corpo e a natureza mediadora do homem seriam amplamente
desenvolvidos nas obras posteriores a lsquo86115 Para alguns comentadores a
111 BLACK ibid p 147 O tema seraacute retomado no Capiacutetulo VII 112 BLACK idem Natildeo estaacute claro se esta obra foi incluiacuteda entre os manuscritos de Fiacutelon pertencentes agrave biblioteca
de Lorenzo Por outro lado ela estaacute atestada em dois manuscritos do Vaticano que foram incluiacutedos nos inventaacuterios de 1475 1481 e 1484
113 Para Ficino existia uma uacutenica Filosofia que consistia na ldquoreflexatildeo sobre as verdades eternas as Ideias que como tais permanecem inalteradas no tempo e transcendem a Histoacuteriardquo (cf Sebastiano GENTILE Il ritorno di Platone dei platonici e del lsquocorpusrsquo ermetico Filosofia teologia e astrologia nellopera di Marsilio Ficino in Vasoli-Pissavino (org) Le filosofie del Rinascimento 2002 pp 193-228)
114 Nem tudo foi apenas uniatildeo de ideias entre Ficino e Pico No Commento sopra una canzona drsquoamore da Girolamo Benivieni Pico faz aacutesperas criacuteticas a uma das obras de maior sucesso de Ficino o Commentarium in Convivium criticando a concoacuterdia estabelecida por Ficino de forma muito faacutecil entre o pensamento de Platatildeo e a doutrina cristatilde especialmente em pontos essenciais como a figura do Cristo Como escrevia Pico ldquoeacute preciso estar atento em natildeo confundir o filho de Deus [o demiurgo no texto de Platatildeo] com o filho de Deus dos teoacutelogos cristatildeos jaacute que este eacute de mesma essecircncia que o Pai criador e natildeo criaturardquo (GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento Firenze 1965 p28)
115 O conceito do homem-mediador na obra de Hermes Trismegisto eacute bem desenvolvido por SCOTT - FERGUSON em Hermetica The Ancient Greek and Latin Writings which Contain Religious or Philosophic Teachings Ascribed to Hermes Trismegistus 1924-36 p 120 ss
50
ldquoantropologiardquo foi um dentre os principais interesses extraiacutedos daquele
conhecimento em razatildeo do paraacutegrafo inicial da De Hominis Dignitate em que eacute
citada a ceacutelebre sentenccedila do Asclepius ldquoMagnum o Asclepi miraculum est homordquo116
uma entre diversas passagens hermeacuteticas que exaltam a grandeza do homem Ficino
havia citado a mesma passagem mais de dez anos antes em sua Theologia
Platonica117 mas com Pico a teoria hermeacutetica seraacute aprofundada e decisiva para a
questatildeo da dignidade Os escritos atribuiacutedos a Trismegisto foram ademais a fonte
utilizada para desenvolver seus pontos de vista sobre a magia branca capaz de
ldquocomungarrdquo o homem com o divino ndash tema a ser retomado no proacuteximo Capiacutetulo ndash
embora seus muacuteltiplos interesses o fizessem se envolver tambeacutem com certas
alquimias de conotaccedilatildeo praacutetica extraiacutedas do manual Picatrix118
Na Academia Pico inicia portanto a construir uma estrada proacutepria a partir ndash
natildeo da fusatildeo mas do encontro ndash de componentes comuns extraiacutedos de domiacutenios
distintos da teologia cristatilde da filosofia neoplatocircnica de escolas iniciaacuteticas egiacutepcias e
persas da miacutestica judaica A siacutentese daqueles estudos se mostraraacute na fase de reclusatildeo
no mosteiro de San Marco apoacutes o retorno da Franccedila uma nova etapa na qual o
pesquisador voltar-se-aacute para pensadores que fizeram da experiecircncia religiosa seu
campo de reflexatildeo Mergulhando de iniacutecio nas reflexotildees teoloacutegicas de Maimocircnides
adentra definitivamente pela porta do pensamento hebraico E ao trilhar essa
estrada comeccedila a vislumbrar a ideia de ter encontrado uma soluccedilatildeo para seus
problemas referentes agrave dificuldade em aliar Filosofia e Cristianismo119 A alegria de
encontrar no pensamento hebraico a confirmaccedilatildeo da identidade profunda entre
aquelas reflexotildees e suas crenccedilas ndash e ainda com as de outras culturas ndash seria relatada
posteriormente no Heptaplus
No ambiente de isolamento a cultura hebraica de Pico comeccedila efetivamente a
desabrochar Isso ocorre mormente atraveacutes das reflexotildees conduzidas junto a
Yohanan Alemanno Elia o tinha guiado em seus primeiros passos atraveacutes do
pensamento aacuterabe-hebraico mas o vieacutes aristoteacutelico de Elia natildeo permitia um maior
aprofundamento na Cabala com Flavio Mitridate natildeo haacute duacutevidas as cogniccedilotildees sobre
o tema se estenderam mas agora com Alemanno Pico consegue de modo efetivo
avanccedilar em suas intuiccedilotildees acerca da aplicaccedilatildeo dos meacutetodos cabaliacutesticos na soluccedilatildeo
das antiacuteteses entre Religiatildeo e Filosofia120 Os interesses de Alemanno comprovados
em sua bibliografia apresentavam muitos pontos de contato com a interpretaccedilatildeo
biacuteblica em geral e particularmente com o conteuacutedo desenvolvido no Heptaplus
116 PICO Oratio p 102 O tema seraacute retomado no Capiacutetulo IV 117 Marsilio FICINO Theologia platonica XIV 3 2 (ed Bompiani p1299) ldquoQuod admiratus Mercurius
Trismegistus inquit lsquoMagnum miraculum esse hominem animal venerandum et adorandum qui genus daemonum noverit quasi natura cognatum quive in deum transeat quasi ipse sit deusrsquordquo
118 Para a relaccedilatildeo de Pico com a magia extraiacuteda do Hermetismo leia-se Frances YATES Giordano Bruno e a Tradiccedilatildeo Hermeacutetica 1995 pp 84-116 Algumas questotildees relacionadas agrave magia praacutetica e alquimia satildeo descritas por Pietro CRINITO conta por exemplo que Pico ficou dias a preparar uma foacutermula alquiacutemica agrave base de certos venenos para curar Ermolao Barbaro E em eacutepoca de peste experimentou algumas misturas de venenos para encontrar a cura ldquoex oleo scorpionum linguisque aspidum et aliis eiusmodi venenis confectumrdquo (De honesta Disciplina I 7 p12 apud GARIN 2011 p44)
119 GARIN 2011 p27 120 GARIN 2011 pp38-39 WIRSZUBSKI op cit pp256-257
51
Atraveacutes da interpretaccedilatildeo cabaliacutestica poderia ser promovida a possiacutevel conciliaccedilatildeo
entre as Escrituras e a Filosofia como seraacute visto no Capiacutetulo VI Da mesma forma
que a Teologia cristatilde havia identificado ecos de suas doutrinas nos manuscritos de
caldeus e egiacutepcios como mostravam as recentes descobertas do Platonismo
florentino121 Pico tentaria encontrar nas Escrituras conteuacutedos que teriam derivado
das doutrinas cabaliacutesticas ndash natildeo com o intuito de subordinar umas agraves outras mas
com a firme vontade de dar verdade aos textos sagrados dentro da Filosofia que
buscava122
Com a apresentaccedilatildeo das Conclusiones Nongentae Giovanni Pico teria a
chance natildeo apenas de expor como de debater finalmente o cabedal de conhecimento
aprendido naqueles anos de estudos filosoacuteficos teoloacutegicos orientais e em parte
esoteacutericos Tendo sido apresentadas as circunstacircncias ao seu redor e os caminhos
atraveacutes dos quais se estruturou seu pensamento seraacute possiacutevel prosseguir em direccedilatildeo
ao objetivo traccedilado qual seja mostrar de que forma Pico mesclou em suas
argumentaccedilotildees paracircmetros de teor natildeo-filosoacutefico
121 Essa era a ideia prevalente no ciacuterculo de Ficino A relaccedilatildeo entre essas doutrinas e sua aceitaccedilatildeo na Academia
podem ser confirmadas pela recepccedilatildeo dos textos atribuiacutedos a Hermes do Egito e ao persa Zoroastro conforme abordado no Capiacutetulo I A aceitaccedilatildeo de Hermes como ldquoum dos seusrdquo pela Igreja pode ser comprovada atraveacutes do grande trabalho de marchetaria feito no piso do Duomo de Siena nos anos rsquo80 do seacuteculo XV onde Hermes Trismegisto estaacute representado de forma extraordinaacuteria mostrando sua recepccedilatildeo em territoacuterio cristatildeo
122 Bohdan KIESZKOWSKI Averroismo e Platonismo in Italia in Studi sul Platonismo del Rinascimento in Italia 1936 capVII
52
CAPIacuteTULO III
AS CONCLUSIONES NONGENTAE E SUA OCCULTA CONCATENATIO
As Conclusiones Nongentae1 ou Novecentas Teses formam em seu conjunto
a primeira obra de Giovanni Pico a ser estampada ndash e seu trabalho mais
desafortunado Os acontecimentos em torno ao assunto ocorreram em um ritmo
muito veloz A redaccedilatildeo foi concluiacuteda em 12 de Novembro de 1486 em 7 Dezembro o
manuscrito foi levado para ediccedilatildeo em Roma pelas matildeos de Eucharius Silber2 sem
que fosse aguardado o usual parecer de catolicidade por parte da comissatildeo pontifiacutecia
Em breve tempo algumas daquelas primeiras coacutepias seriam vetadas e em Marccedilo de
lsquo87 a comissatildeo ligada ao prelado proibiria definitivamente sua difusatildeo Treze teses
foram inicialmente censuradas Pico julgado e finalmente a totalidade das teses
condenada A proacutexima publicaccedilatildeo das Conclusiones somente ocorreria na segunda
metade do seacuteculo XVI na Basileacuteia terra natildeo catoacutelica3
Voltando-se atraacutes alguns meses para o periacuteodo de sua elaboraccedilatildeo verifica-se
que o principal projeto de Pico seguiu uma bem estruturada sistematizaccedilatildeo na
preparaccedilatildeo dos fundamentos erigida ao molde das construccedilotildees teoreacuteticas medievais
Em posse do conhecimento dos formatos escolaacutesticos o autor daria iniacutecio a uma
ordenaccedilatildeo das vaacuterias vertentes e escolas com as quais tivera contato com o objetivo
de apresentar seus pontos de analogia Assim a organizaccedilatildeo do conteuacutedo obedece a
uma sequecircncia de proposiccedilotildees extraiacutedas de sua criacutetica-histoacuterica organizada por
grupos de pensamento Em termos de estilo e aproveitando-se do meacutetodo de
argumentaccedilatildeo atraveacutes de nuacutemeros (calculationes) apreendido nos cursos de loacutegica
seguidos em Pavia Pico se serve do modelo de escrita ldquoparisiensisrdquo tendo por base a
loacutegica aristoteacutelica4 Tal estilo utilizado tanto nas Conclusiones quanto na Apologia
1 O tiacutetulo original conforme a editio princeps eacute Conclusiones DCCCC dialecticae morales physicae
mathematicae publice dispuntandae Romae Anno ab incarnatione Domini MCCCCLXXXVI die septime Decembris Sobre a escolha do nuacutemero de teses Pico explicaria em carta escrita a Girolamo Benivieni que seu intento inicial era o de escrever 700 teses chegando depois a 900 embora tivesse material para um nuacutemero maior O 900 seria o nuacutemero certo por seu significado miacutestico acerca do qual Pico apenas sinalizaria ldquose efetivamente a nossa ciecircncia dos nuacutemeros eacute digna de feacute tal cifra simboliza a alma que retorna a si apoacutes ter sido revolvida pela inspiraccedilatildeo das Musasrdquo (cf Leacuteon DOREZ Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) in Giornale Storico della Letteratura italiana XXV 1895 p358)
2 Eucharius Silber alias Franck era considerado o melhor tipoacutegrafo de Roma (cf Giulio BUSI Pico fede ragione e Inquisizione in ldquoIl Sole-24 Orerdquo 28082018) O texto original das Conclusiones estaacute contido atualmente em quatro manuscritos conservados e distribuiacutedos entre as cidades de Viena Munique e Erlangen (respectivamente nas seguintes bibliotecas Osterreichische Nationalbibliothek lat 14708 Bayerische Staatsbibliothek lat 11807 Universitatsbibliothek lat 646) Cf Mauro ZONTA Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 185
3 Para maiores detalhes sobre as circunstacircncias da publicaccedilatildeo veja-se Albano BIONDI ldquoIntroduzionerdquo a Conclusiones Nongentae 1995 ppV-XIII Ainda Edoardo FORNACIARI ldquoIntroduzionerdquo agrave traduccedilatildeo de Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p9 Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p63 Por mais de cinco seacuteculos as Conclusiones permaneceram em olvido com acesso apenas a poucos especialistas suas poucas ediccedilotildees remetem quase todas ao seacuteculo XVI sendo que sua uacuteltima ediccedilatildeo completa eacute de 1619 Apoacutes essa data a obra passou por um longo periacuteodo de esquecimento ateacute ser finalmente editada por Kieszkowski em 1973
4 PICO Concl (I) p7 ldquo[] in quibus recitandis non Romanae linguae nitorem sed celebratissimorum Parisiensium disputatorum dicendi genus est imitatusrdquo O ldquostylus parisiensesrdquo foi especialmente desenvolvido
53
constituiacutea a base da vulgata scholastica e comeccedilava a ser objeto de criacuteticas por parte
dos humanistas em razatildeo de sua linguagem considerada obstinadamente teacutecnica No
que concerne agrave discussatildeo puacuteblica para a qual as Teses haviam sido preparadas o
meacutetodo escolhido ndash sempre escolaacutestico ndash teria sido o das quaestiones5
A obra compotildee-se de novecentos aforismos ndash ou breves proposiccedilotildees ndash que natildeo
contemplam sua anaacutelise ou fundamentaccedilatildeo filosoacutefica Com efeito ao folhear as
paacuteginas das novecentas Conclusiones verifica-se uma sucessatildeo de sinteacuteticos
conteuacutedos filosoacuteficos teoloacutegicos cientiacuteficos e misterioloacutegicos6 que encerram aquilo
que seria uma revisatildeo de posiccedilotildees parte delas de autores ou escolas comentadas por
Pico (as primeiras quatrocentas) e as demais de autoria do proacuteprio Pico (as
quinhentas seguintes) O planejamento do conjunto previa pois a apresentaccedilatildeo de
propostas de discussatildeo ndash ponto fundamental para a compreensatildeo das consequecircncias
desencadeadas ndash e natildeo a discussatildeo em si Certamente obtendo o bom resultado que
o Autor esperava no debate o intento seria levado adiante
Contrariando no entanto aquela que seria a vontade de seu Escritor o vasto
material parte de um projeto natildeo finito e natildeo devidamente esclarecido difundiu-se
rapidamente A ediccedilatildeo das novecentas proposiccedilotildees embora tendo transgredido as
formalidades eclesiaacutesticas tinha por honesto intento uma devida apresentaccedilatildeo e
discussatildeo com os eruditos ndash antes de qualquer apresentaccedilatildeo puacuteblica A indevida
publicaccedilatildeo da obra de certa forma serviu para aumentar a notoriedade do jovem
conde que jaacute desfrutava de grande fama fazendo-o passar a ser reconhecido como
ldquodoutor universal dono de um saber privilegiado acerca do homem e da natureza dos
anjos e de Deusrdquo7 Mas nem todos naqueles finais do Quattrocento enxergaram as
Teses com tamanho otimismo Algumas vozes consideraram a obra na melhor das
hipoacuteteses uma tentativa superficial de fusatildeo de doutrinas outras a julgaram ldquoaudazrdquo
ldquotemeraacuteriardquo e ldquovangloriosardquo especialmente em razatildeo de sua imoderada dimensatildeo e do
abarcamento de vaacuterias aacutereas de conteuacutedos diversos em uma uacutenica obra8 Eacute irocircnico
durante a permanecircncia de Pico em Paris entre 1485 e 1486 (cf GARIN 2011 p24) Os ldquocalculatoresrdquo do seacuteculo XIV aplicaram a matemaacutetica para problemas tratados qualitativamente na fiacutesica aristoteacutelica (Stephan FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) 1998 np467) Veja-se ainda BIONDI (1995 pXI)
5 Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 pp 7-8 Conforme observa o comentador as especulaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas dos trecircs seacuteculos anteriores foram fundamentadas sobre esse meacutetodo Para maiores detalhes sobre os meacutetodos mencionados veja-se BIONDI ldquoIntroduzionerdquo e ldquoPremessa ai testirdquo em Conclusiones Nongentae opcit ppXI 4
6 O nuacutemero de distinccedilotildees temaacuteticas mencionadas por Pico na abertura das Conclusiones eacute maior ldquosatildeo proposiccedilotildees dialeacuteticas morais fiacutesicas metafiacutesicas teoloacutegicas maacutegicas e cabaliacutesticasrdquo (ed BIONDI p7) As proposiccedilotildees do tipo que hoje aceitariacuteamos como cientiacuteficas ndash que contemplam campos da fiacutesica biologia e astronomia ndash apresentam-se em nuacutemero bastante limitado Veja-se como exemplo a Conclusio 7 segundo Alberto Magno ldquoO som eacute levado conforme seu ser real ateacute o ponto onde inicia o nervo oacuteticordquo (II 7) Ou ainda a Conclusio 9 segundo Egidio Romano ldquoO calor poderaacute gerar o fogo mesmo quando natildeo estiver em contato diretordquo (IIVI 9)
7 Albano Biondi extrai essa imagem outorgada a Pico de uma carta do famoso poeta carmelita Battista Spagnoli de Mantova mestre de Filosofia e Teologia em Bologna (BIONDI ldquoIntroduzionerdquo opcit p VI)
8 Na De Hominis Dignitate elaborada como introduccedilatildeo agraves Conclusiones Pico antecipara a defesa das provaacuteveis criacuteticas que receberia justificando que a ideia de realizar um debate no molde praticado por respeitados filoacutesofos como Platatildeo e Aristoacuteteles era uma forma favoraacutevel para a obtenccedilatildeo da verdade ldquodo mesmo modo que as forccedilas do corpo se robustecem com a ginaacutestica assim tambeacutem sem duacutevida nesta espeacutecie de palestra do espiacuterito a energia da alma se torna mais forte e firmerdquo (Oratio p135) Ademais seu debate natildeo tinha como intenccedilatildeo ldquomostrar engenho e erudiccedilatildeordquo (idem) mas ldquoapenas a formaccedilatildeo de sua alma e o conhecimento da verdaderdquo (ibid p133) Em relaccedilatildeo agrave elevada quantidade de teses escritas considerada por muitos ambiciosa e ldquoacima das forccedilasrdquo do autor (ibid pp 133 139 147) Pico escreveria ldquoProcurei reduzir a discussatildeo ao menor nuacutemero possiacutevel de pontos Se eu
54
observar que o Autor que tanta atenccedilatildeo dedicou agrave questatildeo doutrinaacuteria da natildeo-
divulgaccedilatildeo de certas concepccedilotildees sigilosas de ordem universal assistiu agrave indevida
publicaccedilatildeo das Teses e sua decorrente leitura por mentes despreparadas conjuntura
que o levou a sofrer consequecircncias nefastas e ateacute quase seu atestado de morte
A rejeiccedilatildeo agrave obra alcanccedilou a contemporaneidade porquanto as Conclusiones
foram pouco entendidas e muito criticadas Alguns criacuteticos talvez por natildeo terem
colhido a ideia seminal contida em seu projeto acreditaram tratar-se de uma
miscelacircnea de pensamentos que natildeo faziam sentido ou que se encontravam
inconclusos Outros viram nas Conclusiones uma combinaccedilatildeo excecircntrica de
problemas incompatiacuteveis uma curiosidade literaacuteria sem qualquer coerecircncia interna9
Eugenio Garin foi dos poucos a apontar que aquele conglomerado de sistemas deveria
ser apreciado a partir de suas referecircncias aos maiores problemas filosoacuteficos da
Histoacuteria do Pensamento O historiador completa que a tentativa de conciliaccedilatildeo de
diferentes doutrinas filosoacuteficas deve ser entendida como a consciente percepccedilatildeo da
existecircncia de uma pluralidade de pontos de vista que podem ser integrados10 Apesar
de aparentemente fragmentaacuteria a obra de Pico acolhe torna suas e finalmente
refaz sob outros prismas as perguntas filosoacuteficas mais difiacuteceis procurando em
sentido contraacuterio ao errocircneo julgamento de querer demonstrar uma magnitude de
conhecimentos ldquoreduzirrdquo todo o seu scibile a compactas 900 teses11
A quantidade de temas pertencentes a cada setor de pensamento natildeo estaacute
distribuiacuteda de forma uniforme dentro da recomposiccedilatildeo piquiana alguns eleitos pelo
escritor recebem mais atenccedilatildeo do que outros Eacute o caso do amplo espaccedilo dado a
questotildees de Teologia ndash concernentes a tradiccedilotildees distintas ndash a especiacuteficas aacutereas da
Filosofia ndash como a Metafiacutesica as questotildees acerca da Alma e o campo que chamamos
de Cosmologia ndash e a algumas doutrinas pertencentes ao campo da Misteriologia ndash
caso por exemplo do grupo de teses voltadas agrave Magia ao Orfismo e agrave Cabala Os
toacutepicos a seguir procuraratildeo mostrar que tais escolhas obedecem a um planejamento
Apoacutes a averiguaccedilatildeo da estrutura das Conclusiones necessaacuteria para o entendimento
do desenho geral da obra e de algumas teses relacionadas aos temas filosoacuteficos
mencionados seratildeo verificadas as questotildees teoloacutegicas condenadas e sua relaccedilatildeo com
as crenccedilas do autor por fim as disposiccedilotildees de acircmbito misterioloacutegico
tivesse querido dividir e desmembrar as suas partes mdash como eacute habitual outros fazerem mdash teria escrito certamente uma quantidade inumeraacutevel de tesesrdquo (ibid p163)
9 Um desses criacuteticos foi J BRUCKER (Historia critica Philosophiae Lipsia 1766 pp57 ss) que escreveria que a obra ldquomistura tudo inadequadamente e nos confunde uns aos outrosrdquo no que foi seguido por vaacuterios (apud GARIN 2011 n p 74)
10 GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo 1965 p17 Em outra obra Garin considera que o que pareceria um ldquofloreio filosoacuteficordquo eacute na verdade a ldquoexaltante procura da pequena mas lsquoimortal contribuiccedilatildeorsquo que cada homem grego romano cristatildeo aacuterabe judeu dava agrave eternidade do pensamentordquo (GARIN 2011 pp72-76)
11 Joseacute Vitorino PINA MARTINS julga ainda que a obra eacute fruto do amadurecimento do autor decorrente de suas profundas reflexotildees (Cultura Italiana Lisboa 1971)
55
1 A Secreta Conexatildeo
O conjunto de novecentas teses divide-se em dois grupos No primeiro
composto de quatrocentas proposiccedilotildees Pico apresenta as teorias de vaacuterios
pensadores que o marcaram ligados a diferentes Escolas12 Nessa seccedilatildeo eacute realizada
uma siacutentese histoacuterico-doutrinaacuteria que introduz ao leitor o nuacutecleo do pensamento
piquiano Pouco mais da metade das teses desse grupo satildeo dedicadas aos autores de
tradiccedilatildeo aristoteacutelica divididos entre os escolaacutesticos cristatildeos ndash entre eles Tomaacutes de
Aquino e Joatildeo Escoto ndash os peripateacuteticos orientais ndash como Avicena Averroacuteis e
Maimocircnides13 ndash e os gregos ndash Alexandre de Afrodiacutesia e Teofrasto entre outros14 A
outra metade da primeira parte eacute formada por filoacutesofos da Escola neoplatocircnica ndash com
Plotino e Proclo entre seus principais representantes ndash seguidos por quatro seacuteries de
doutrinas singulares Tais seacuteries finais destacam-se das precedentes por contemplar
temas ligados a teologias natildeo cristatildes De fato as uacuteltimas teses do primeiro grupo
tratam da matemaacutetica pitagoacuterica e das doutrinas caldaicas hermeacuteticas e cabaliacutesticas
Cabe observar que embora aos autores aristoteacutelicos seja dedicado enquanto
conjunto um nuacutemero relativamente maior de teses o autor isolado ao qual satildeo
destinadas mais proposiccedilotildees eacute Proclo seguido pelas doutrinas cabaliacutesticas que
fecham o grupo15
O segundo grupo com as quinhentas proposiccedilotildees seguintes constitui a
primeira delineaccedilatildeo precisa de uma doutrina da pax unifica marcando a especulaccedilatildeo
original de Pico16 Essa seacuterie de teses denominadas secundum opinionem propriam
detinha um caraacuteter de novidade ao lanccedilar em debate inusitados campos de reflexatildeo
Distribuiacutedos entre onze sessotildees os temas dividem-se entre os denominados
ldquoparadoxais voltados a conciliar os pronunciamentos de Aristoacuteteles e Platatildeo seguidos
de outros doutos que se encontram em maior discoacuterdiardquo os ldquoem dissenso com a
filosofia correnterdquo17 os ldquoparadoxais que introduzem novas posiccedilotildees na filosofiardquo e os
teoloacutegicos ldquobastante diversos da comum formulaccedilatildeo dos teoacutelogosrdquo completam o
12 Na primeira parte da obra Pico mostra seu reconhecimento agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica das Escolas porquanto a
sequecircncia de autores eacute ordenada por sua filiaccedilatildeo doutrinaacuteria Natildeo satildeo inseridas citaccedilotildees originais dos autores escolhidos mas interpretaccedilotildees pessoais de alguns passos ou doutrinas a eles atribuiacutedos (e que Pico poderia ter recebido atraveacutes de outras fontes) De qualquer forma os conteuacutedos correspondem com maior ou menor exatidatildeo a informaccedilotildees que podem ser encontradas nos escritos daqueles autores (cf ZONTA MAURO Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 195)
13 Apesar de Maimocircnides ndash o chamado Moyse ldquoegiacutepciordquo - ser um filoacutesofo sefardita Pico o inclui no grupo dos aacuterabes (ldquosecundum doctrinam Arabumrdquo) possivelmente em razatildeo de Maimocircnides ter vivido no Egito e no Marrocos
14 As teses referentes agrave tradiccedilatildeo peripateacutetica estatildeo assim distribuiacutedas 94 dedicadas a seis autores escolaacutesticos latinos 82 distribuiacutedas entre oito filoacutesofos orientais e 29 dedicadas a cinco filoacutesofos gregos que professam o Aristotelismo O total de 205 teses que agraciam os disciacutepulos do Liceu reflete o acolhimento dado agravequela Escola durante os seis anos a ela dedicados conforme testemunha a carta escrita a Ermolao Barbaro vista no Capiacutetulo II
15 Dentre o elevado nuacutemero de fontes mencionadas por Pico (gregas latinas hebraicas e aacuterabes) algumas permanecem natildeo identificadas ateacute esta data Uma grande parte delas inclusos os autores aacuterabes e hebreus encontra-se identificada na obra de Stephan FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies Temple 1998
16 Eacute praticamente consensual a qualificaccedilatildeo da segunda parte das Conclusiones como sendo a expressatildeo da originalidade de Pico Veja-se BIONDI 1995 p XVIII
17 Natildeo apenas nesse especiacutefico grupo de teses como em linhas gerais Pico reconhecia que suas proposiccedilotildees apresentavam-se em linha contraacuteria aos haacutebitos argumentativos tradicionais tanto em relaccedilatildeo ao estilo quanto ao conteuacutedo (BIONDI idem)
56
conjunto as teses platocircnicas matemaacuteticas oacuterficas maacutegicas e mais uma vez outras
tantas relacionadas agraves teologias dos caldeus e dos cabalistas18 Curiosamente
constam nesse grupo dez teses sobre as doutrinas de certo filoacutesofo aacuterabe de nome
Abucaten Avenan19 Nas teses ldquoparadoxais conciliantesrdquo estatildeo lanccediladas as bases de
seu projeto de conciliaccedilatildeo entre pensadores e escolas que professavam doutrinas
tantas vezes entendidas como divergentes como os escolaacutesticos Tomaacutes e Duns
Escoto ou os aacuterabes Averroacuteis e Avicena ndash e que Pico mostraria em debate serem
concordantes20
A distribuiccedilatildeo estrutural das proposiccedilotildees certamente natildeo eacute ocasional
Tomando-se a primeira seacuterie de quatrocentas teses observa-se a seguinte sequecircncia
os pensadores aristoteacutelicos os neoplatocircnicos a teologia pitagoacuterica a caldaica a
hermeacutetica a cabalista Natildeo seria errado sugerir que essa ordenaccedilatildeo segue a
cronologia dos estudos percorridos por Pico21 Entretanto tal hipoacutetese natildeo explicaria
a colocaccedilatildeo da Cabala ao final de tudo visto que os estudos cabaliacutesticos iniciaram
muito provavelmente em periacuteodo anterior a alguns dentre aqueles Uma segunda
hipoacutetese pode ser proposta a partir do reconhecimento da existecircncia de uma
aproximaccedilatildeo gradual a filosofias relacionadas agrave Revelaccedilatildeo Ou seja a divisatildeo temaacutetica
responde a uma ordem sucessoacuteria que partindo do niacutevel aristoteacutelico-teoreacutetico vai ao
encontro das escolas neoplatocircnicas ndash em que a presenccedila de abstraccedilotildees metafiacutesicas eacute
maior de que no grupo anterior ndash e alcanccedila finalmente as uacuteltimas escolas de
proeminente conteuacutedo teoloacutegico-soterioloacutegico A hipoacutetese de uma gradativa
aproximaccedilatildeo a tais temaacuteticas se adequa ademais agrave criaccedilatildeo de condiccedilotildees
preparatoacuterias para receber o segundo grupo de teses aquelas tecidas ldquosegundo a
opiniatildeo do autorrdquo Essas iniciando-se com resoluccedilotildees e conciliaccedilotildees de acircmbito geral
filosoacutefico passam por questotildees de ordem teoloacutegica platocircnica e matemaacutetica
concluindo-se com aquele que seria um corpo uacutenico formado pelas doutrinas
misterioloacutegicas quais sejam o Zoroastrismo o Orfismo a Magia e a Cabala que
mais uma vez da mesma forma significativa como na primeira parte fecha a segunda
parte da obra
Nesse sentido a sequecircncia das proposiccedilotildees aponta para a existecircncia de uma
intencional organizaccedilatildeo ndash natildeo informada por Pico tampouco esclarecida por seus
comentadores Malgrado a escassez de informaccedilotildees expressas tais indiacutecios satildeo
18 ldquoConclusiones numero quingentae secundum opinionem propriam quae denaria diuisione diuiduntur in
Conclusiones Physicas Theologicas Platonicas Mathematicas Paradoxas dogmatizantes Paradoxas conciliantes Caldaicas Orphicas Magicas et Cabalisticasrdquo
19 Pico presume que Abucaten Avenan seja o autor de uma das mais ceacutelebres obras de cunho neoplatocircnico da filosofia medieval o Liber de Causis obra que Pico teria facilmente lido na versatildeo latina realizada por Gerardo de Cremona em torno a 1175 A questatildeo da identificaccedilatildeo desse autor que se manteve por muito tempo obscura foi talvez resolvida em 1998 quando se encontrou na lista de tradutores aacuterabes-islacircmicos presentes no grupo de al-Kindi (Bagdaacute seacuteculo IX ) fornecida no Cataacutelogo (Fihrist) do biblioacutegrafo aacuterabe medieval al-Nadim (m 987) o possiacutevel nome do personagem em questatildeo tratar-se-ia de Zaruba al-Nagravelsquoimi al-Himsi autor aacuterabe cristatildeo vivido no Iraque por volta do ano 850 (cf Mauro ZONTA Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 188)
20 Oratio p147 ldquoAddidimus autem et plures locos in quibus Scoti et Thomae plures in quibus Averrois et Avicennae sententias quae discordes existimantur concordes esse nos asseveramusrdquo
21 Conforme foi visto no capiacutetulo anterior Pico iniciou seus estudos pelas portas das universidades de Paacutedua Pavia e Ferrara nuacutecleos aristoteacutelicos apenas mais tarde aproximou-se do Platonismo e ainda depois atraveacutes da influecircncia de Ficino aproximou-se ao estudo de Hermes no nuacutecleo de Florenccedila
57
confirmados pelo proacuteprio quando poucos meses apoacutes a publicaccedilatildeo das Conclusiones
para justificar-se da acusaccedilatildeo de que seu trabalho representava um amontoado
caoacutetico de enunciados o reacuteu faria menccedilatildeo em sua Apologia22 agrave existecircncia de uma
ldquoocculta concatenatiordquo que traria significado e unidade agraves Teses23 A revelaccedilatildeo de
existecircncia de uma concordacircncia oculta nunca esclarecida pede que o leitor olhe de
forma discernitiva para o conteuacutedo das teses bem como para a quantidade de
enunciados atribuiacutedos a cada campo de conhecimento Verifica-se que mesclados aos
assuntos que passam por conceituaccedilotildees de fiacutesica astronomia biologia ontologia e
matemaacutetica firma-se uma prevalecircncia de determinados temas que se interligam
mais do que uma terccedila parte da totalidade das teses encontra-se distribuiacuteda entre
questotildees pertinentes agrave alma humana e questotildees relacionadas ao processo hieraacuterquico
do cosmo ndash parte dessas dedicadas agrave astrologia de ordem esoteacuterica Ademais uma
fraccedilatildeo relevante das teses trata de questotildees teoloacutegicas Esses temas concorrem a
compor uma importante faceta do pensamento piquiano e como seraacute visto no uacuteltimo
toacutepico integram os nuacutecleos das doutrinas misterioloacutegicas abordadas por Pico sendo
a possiacutevel chave da secreta conexatildeo sinalizada
Embora natildeo caiba aqui a anaacutelise individual de cada Conclusio24 uma pequena
amostra de cada um dos dois primeiros temas acima mencionados eacute benvinda para
retratar o panorama geral das Conclusiones O terceiro tema referente agrave Teologia
seraacute abordado no toacutepico seguinte Dentre as 900 teses uma quantidade miacutenima25 de
167 satildeo dedicadas agraves questotildees relacionadas agrave Alma ndash universal humana e suas inter-
relaccedilotildees ndash nas especiacuteficas nomenclaturas e subdivisotildees que recebe como Intelecto
Agente Intelecto Possiacutevel ou Mente26 Eacute o caso das natildeo poucas proposiccedilotildees filosoacuteficas
pertinentes ao processo dialeacutetico que se realiza dentro de um cenaacuterio epistemoloacutegico
22 A Apologia foi o texto escrito imediatamente apoacutes a condenaccedilatildeo das Teses preparado por Pico para defender-
se das acusaccedilotildees perante a comissatildeo romana Nela satildeo apresentadas extensas confutaccedilotildees acerca de cada uma das 13 teses inicialmente condenadas que Pico reformula em um total de 45 Vejam-se detalhes na fundamental organizaccedilatildeo de Paolo Edoardo FORNACIARI (Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze 2010) A Apologia firma-se como ldquoum documento exemplar que anuncia a grande reviravolta intelectual da Idade Modernardquo de acordo com Giulio BUSI que assim narra ldquoFu dunque nel mese di aprile 1487 che il Conte della Mirandola scrisse di getto in latino un testo appassionato difficile a tratti insolente con cui voleva mettere fine una volta per tutte alle accuse e insinuazioni sul suo conto Nacque cosigrave lApologia una delle creazioni piugrave significative dellintero Rinascimentordquo (Pico fede ragione eInquisizione in ldquoIl Sole -24 Orerdquo 28082018)
23 PICO Apologia fol235 ldquoin omnibus meis conclusionibus semper occulta quaedam est concatenatiordquo 24 O esforccedilo hercuacuteleo foi realizado por Stephan Farmer que apresenta ateacute o momento presente a mais completa
ediccedilatildeo comentada das novecentas teses em seu Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) de 1998 Em termos de ediccedilotildees criacuteticas das Conclusiones existem outras duas obras entre as publicaccedilotildees modernas atuais a realizada por Bohdan Kieszkowski em 1973 baseada no manuscrito de Erlangen (que segundo Farmer parece conter vaacuterios erros) e a publicada por Albano Biondi em 1995 acompanhada de traduccedilatildeo italiana (a primeira em quinhentos anos) Essa se baseia no manuscrito de Erlangen e na editio princeps contraposto aos manuscritos de Viena e de Mocircnaco (cf BIONDI p3) tratando-se da ediccedilatildeo aqui majoritariamente empregada para as traduccedilotildees das citaccedilotildees A ediccedilatildeo de Farmer acima mencionada baseia-se na verificaccedilatildeo de duas coacutepias da editio princeps presentes na British Library de Londres e na Biblioteca Apostoacutelica Vaticana em Roma Os detalhes acerca das trecircs ediccedilotildees satildeo comentados na obra de FARMER (1998 pp186-188)
25 Trata-se de um valor miacutenimo possivelmente sendo de ordem maior A obscuridade de certas proposiccedilotildees natildeo permite sequer sua classificaccedilatildeo temaacutetica
26 Nas teses ldquosegundo opiniatildeo dos platocircnicosrdquo conclusio nr 19 (ed Biondi II p 97) o proacuteprio Pico esclarece que a parte racional da alma que ele chama de ldquoIntelecto Possiacutevel seguindo os peripateacuteticosrdquo eacute aquela capaz de operar ldquosem conjunccedilotildees com os produtos da fantasiardquo
58
como se vecirc em algumas das asserccedilotildees extraiacutedas do Aristotelismo ndash grego e aacuterabe ndash
do Neoplatonismo e da Matemaacutetica27
Quando Aristoacuteteles sustenta em Metafisica IX que as
realidades separadas e divinas satildeo por noacutes totalmente
conhecidas ou totalmente ignoradas deve ser entendido tratar-
se daquele conhecimento pertinente agravequeles que jaacute alcanccedilaram
a primeira atuaccedilatildeo do intelecto28
(Conclusio secundum Alexandrum 5)
Felicidade uacuteltima do homem eacute a contiguidade entre intelecto
agente e intelecto possiacutevel do qual esse se faz forma29
(Conclusio secundum Auenroen 3)
Felicidade uacuteltima do homem eacute quando o nosso intelecto
particular se conjuga completamente com o intelecto total e
primordial30 (Conclusio secundum Plotinum 7)
Como os objetos da matemaacutetica se assumidos absolutamente
natildeo completam em nada o intelecto se assumidos como
imagens das realidades superiores nos conduzem pela matildeo
imediatamente para a especulaccedilatildeo dos Inteligiacuteveis31
(Conclusio de mathematicis 4)
Ainda compondo as questotildees concernentes agrave Alma verifica-se que um nuacutemero
substancial de asserccedilotildees eacute reservado para tratar em linguagem teoloacutegica ou filosoacutefica
do tema da Queda ou distinccedilatildeo de um princiacutepio de unidade e de seu consequente
retorno agravequele estado de acordo com cada Escola Os exemplos abaixo satildeo tomados
de teses referentes ao Peripatetismo grego ao Neoplatonismo e ao misticismo
hebraico
27 A classificaccedilatildeo das teses segue a formataccedilatildeo estabelecida por Albano Biondi (Conclusiones Nongentae Le
novecento Tesi dellrsquoanno 1486 1995) que efetua uma divisatildeo conforme grupos doutrinaacuterios A traduccedilatildeo das teses para o portuguecircs eacute de nossa responsabilidade tendo sido utilizada como guia a ediccedilatildeo de Biondi
28 PICO Concl (I) III IV 5 (p34) ldquoCum dicit Aristoteles nono Metaphysicae separata et diuina aut totaliter scriri a nobis aut totaliter ignorari intelligendum est de ea cognitione quae his contigit qui iam ad summam intellectus actuationem perueneruntrdquo A ediccedilatildeo de FARMER apresenta diferente posiccedilatildeo das teses a quinta de Alexandre de Afrodiacutesia em BIONDI corresponde agrave sexta de FARMER
29 Concl (I) II I 3 (p20) ldquoFelicitas ultima hominis est cum continatur intellectus agens possibili ut forma quam continuationemrdquo Segundo Stephan FARMER o problema da ldquounidade do intelectordquo colocado por Averroacuteis nasce sobre o comentaacuterio do De Anima 35 provavelmente segundo o autor o texto aristoteacutelico mais debatido entre os escolaacutesticos medievais (1998 np 252)
30 Concl (I) IV I 7 (p36) ldquoFelicitas hominis ultima est cum particularis intellectus noster total primoque intellectui plene coniungiturrdquo Provavelmente a concepccedilatildeo eacute extraiacuteda de Eneacuteadas I4 embora colocada com palavras de Pico O Autor elaborou essas teses seis anos antes de Ficino publicar a sua traduccedilatildeo das Eneacuteadas ndash que o proacuteprio Pico o havia incitado a realizar em 1484 ndash fato que apoia a hipoacutetese de que Pico tenha sido o primeiro filoacutesofo em seacuteculos a debater publicamente aquelas opiniotildees (FARMER ibid np 296-298)
31 Concl (II) VII 4 (p106) ldquoSicut subiecta mathematicorum si absolute accipiantur intellectum nihil perficiunt ita si ut imagines accipiantur superiorum immediate nos ad intelligibilium speculationem manu ducuntrdquo
59
Creio que o intelecto agente que apenas ilumina seja em
Temiacutestio a mesma coisa que na Cabala eacute Metraton32
(Conclusio secundum Themistium 2)
Natildeo toda descende a alma quando descende33
(Conclusio secundum Plotinum 2)
O intelecto agente natildeo eacute outra coisa que a parte da alma que
permanece no alto e natildeo participa da Queda34
(Conclusio secundum Adelandum Arabem 1)35
Quando a alma teraacute compreendido tudo aquilo que poderaacute
compreender e se uniraacute agrave alma superior se despiraacute de suas
vestes terrenas se extirparaacute de seu lugar e se conjugaraacute com o
divino36 (Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum
hebraeorum 44)
Outro grupo temaacutetico pode ser delineado a partir das teses que abordam
questotildees relacionadas a teorias de organizaccedilatildeo do cosmo verificadas em quantidade
proeminente e de forma mais especiacutefica do processo de gradaccedilatildeo dentro do desenho
universal Tal tema encontra representaccedilatildeo entre outras doutrinas na escolaacutestica e
na neoplatocircnica bem como em todas as misterioloacutegicas mencionadas por Pico
(tratadas na parte final)
As processotildees nas realidades divinas se distinguem segundo
intelecto e vontade37
(Conclusio secundum Henricum Gandauensem 3)
O artiacutefice ou construtor do mundo sensiacutevel eacute o seacutetimo da
hierarquia intelectual38 (Conclusio secundum Jamblichum 2)
32 Concl (I) III V 2 (p34) ldquoIntellectus agens illuminans tantum credo sit allud apud Themistium quod est
Metraton in Cabalardquo FARMER (p294) comenta que Pico transforma o Metraton cabaliacutestico em princiacutepio filosoacutefico
33 Concl (I) IV I 2 (p36) ldquoNon tota descendit anima quum descenditrdquo Segundo FARMER os argumentos mais similares da proposiccedilatildeo encontram-se em Eneacuteadas IV81 ss (opcit np297)
34 Concl (I) IV II 1 (p36) ldquoIntellectus agens nicbil est aliud quam pars animae quae sursum manet et non caditrdquo
35 Adelando Aacuterabe eacute na verdade Adelardo di Bath (cf FORNACIARI 2010 p LXIV) 36 Concl (I) IX 44 (p60) ldquoCum anima comprehenderit quidquid poterit comprehendere et coniungetur
animae superiori expoliabit indumentum terrenum a se et exstirpabitur de loco suo et coniungetur cum diuinitaterdquo
37 Concl (I) IV 3 (p16) ldquoProcessiones distinguuntur in diuinis penes intellectum et voluntatemrdquo A biblioteca de Pico continha as principais obras de Henrique de Gand ndash Summa Theologica Quodlibeta e uma compilaccedilatildeo de seus escritos (Pearl KIBRE The library of Pico della Mirandola 1936)
38 Concl (I) IV IV 2 (p40) ldquoOpifex sensibilis mundi septimus est hierarchiae intellectualisrdquo Muitas das conclusiones atribuiacutedas a Jacircmblico foram extraiacutedas do comentaacuterio de Proclo ao Timeu que preserva fragmentos do comentaacuterio perdido de Jacircmblico para esse diaacutelogo Outras tantas foram extraiacutedas do primeiro livro do De Mysteriis parte do qual Ficino traduziu para o latim dois anos apoacutes Pico ter publicado as 900 teses (FARMER np 310)
60
A particular temaacutetica da continuidade hieraacuterquica do real encontra em Proclo
de Liacutecia seu principal emissaacuterio Agraves doutrinas daquele que representava o uacuteltimo anel
da cadeia dos platocircnicos Pico destina 55 teses que sintetizam alguns conteuacutedos que
abrangem natildeo somente as processotildees como complexas questotildees astroloacutegicas Apoacutes
ter realizado uma preliminar carreira filosoacutefica debruccedilado sobre as obras de
Aristoacuteteles o neoplatocircnico instalara-se sobre a filosofia hieraacutetica e teuacutergica39 passos
similares aos que Pico agora seguia Em relaccedilatildeo ao visiacutevel realce que lhe foi deferido
e como bem observa Albano Biondi esse ldquoeacute um caso em que a quantidade demonstra
adequadamente a relevacircncia atribuiacuteda a um estilo de pensamentordquo40
Os deuses intelectuais trazem os elementos unificantes do Uno
primevo as substacircncias das realidades inteligiacuteveis as vidas
(perfeitas compreensivas e generantes do divino) das
realidades inteligiacuteveis e intelectuais a propriedade intelectual
de si mesmos41 (Conclusio secundum Proclum 10)
Apoacutes a setemplicidade intelectual devem ser colocados
imediatamente os deuses supramundanos natildeo ligados a partes
do universo e natildeo coordenaacuteveis a este mundo que esses aliaacutes
abraccedilam por cada parte segundo causa42
(Conclusio secundum Proclum 20)
Juacutepiter Netuno e Plutatildeo dividindo-se o reino de Saturno natildeo
herdam o reino de Saturno se natildeo por mediaccedilatildeo do fundador
Juacutepiter43 (Conclusio secundum Proclum 26)
Olhando para a quaternidade do ser por si animado o demiurgo
fabrica as quatro partes principais do mundo44
(Conclusio secundum Proclum 39)
39 Proclo efetivamente comentou os versos atribuiacutedos a Orfeu ndash em cujos moldes compunha hinos ndash e os
Oraacuteculos caldeus nos quais via a essecircncia de toda a sabedoria (cf BIONDI 1995 pXXV) As teses referentes a Proclo agrave exceccedilatildeo de algumas foram extraiacutedas de sua obra-prima Theologia Platonica Pico aparentemente utilizou o texto grego (FARMER opcit npp314-315 318)
40 BIONDI opcit pXXV Proclo que havia sido esquecido apoacutes o fechamento da Academia em 529 dC ressurgindo uma primeira vez no ciacuterculo de Miguel Psello em Bizacircncio renascia agora em Florenccedila pelas matildeos de Giovanni Pico
41 Concl IVV 10 (p44) ldquoIntellectuales dii uniones habent ab uno primo substantiales ab intelligibilibus uitas perfectas et contentiuas generativas diuinorum ab intelligibilus et intellectualibus intellectuales proprietatem a se ipsisrdquo
42 Concl IVV 20 (p44) ldquoPost intellectualem hebodmadam ordinati sunt immediate supermundani Dei a partibus uniuersi exempti et incoordinabiles ad hunc mundum et secundum causam eum undique circumplectentesrdquo
43 Concl (I) IV V 26 (p46) ldquoIupiter Saturnus et Pluto Saturni regnum partientes a Saturno regnum non accipiunt nisi per medium conditoris Iouisrdquo Conforme Theologia Platonica 6 Trata-se dos trecircs liacutederes henads da ordem procliana de deuses supramundanos (FARMER np324)
44 Acerca da participaccedilatildeo do demiurgo no processo emanatoacuterio tratam ainda as teses referentes a Proclo nrs 40 41 e 42 Concl IVV 39 (p48) ldquoOpifex ad quatemitatem respiciens per se animalis quatuor fabricat partes principales mundirdquo
61
Dentro do quadro cosmoloacutegico Pico anuncia ainda em meio agraves teses e atraveacutes
daquele que se mostra um de seus autores mais estimados a existecircncia dos trecircs
Mundos cujas concepccedilotildees seriam esclarecidas devidamente no Heptaplus
Por lsquolugar supracelestersquo devemos entender aquilo que da
segunda triacuteade eacute mais inteligiacutevel que intelectual por
lsquoconcavidade sub-celestersquo aquilo que eacute mais intelectual que
inteligiacutevel por lsquoceacuteursquo aquilo que participa igualmente de uma e
de outra realidade45 (Conclusio secundum Proclum 52)
e que atraveacutes de outras Escolas encontram analogia com os corpos do homem
Atraveacutes do segredo do raio direto refletido e refratado na
ciecircncia da perspectiva somos informados acerca da triacuteplice
natureza intelectual animal e corporal46
(Conclusio secundum Mathematicam Pythagorae 7)
A temaacutetica astroloacutegica tema que merece atenccedilatildeo por encontrar-se distribuiacutedo
entre vaacuterias seacuteries ocupa um espaccedilo natildeo pouco significativo47 Sua presenccedila na
maior parte das vezes expressa em linguagem velada contribui a firmar a
conceituaccedilatildeo da ordenaccedilatildeo universal tecida por Pico Eacute verificaacutevel particularmente
entre os representantes neoplatocircnicos e em conteuacutedo mais enigmaacutetico nas doutrinas
que fecham o segundo grupo de teses
Cada alma que participa de intelecto vulcacircnico eacute semeada na
Lua48 (Conclusio secundum Porphyrium 4)
Assim como Apolo eacute intelecto solar Ascleacutepio eacute intelecto lunar49
(Conclusio secundum Porphyrium 7)
Nos oito corpos do ceacuteu os elementos se encontram duas vezes
em modo celeste os encontraraacute aquele que proceder em ordem
retroacutegrada agravequela dupla numeraccedilatildeo de Binaacute50
(Conclusio secundum Jamblichum 4)
45 Concl IVV 52 (p50) ldquoPer supercoelestem locum habemus intelligere quod de secunda trinitate plus est
intelligibile quam intellectuale per subcoelestem concauitatem quod magis intellectuale quam intelligibile per coelum id quod aeque utroque participetrdquo Segundo Theologia Platonica 4
46 Concl (I) V 7 (p52) ldquoPer secretum radii recti reflexi et refracti in scientia perspectiuae triplicis naturae admonemur intellectualis animalis et corporalisrdquo
47 Trata-se de 37 teses que abordam de forma expressa a Astrologia A quantidade que pode natildeo parecer relevante eacute maior do que por exemplo o nuacutemero de teses atribuiacutedas a Tomaacutes de Aquino agrave matemaacutetica pitagoacuterica ou ao Orfismo entre alguns exemplos
48 Concl (I) IVIII 4 (p38) ldquoOmnia anima participans vulcanio intellectu seminatur in lunardquo 49 Concl IVIII 7 (p38) ldquoSicut Apollo est intellectus solaris ita Aesculapius est intellectus lunarisrdquo 50 Concl (I) IVIV 4 (p40) ldquoElementa in octo coeli corporibus coelesti modo bis inueniuntur quae quis
inueniet si retrogrado ordine in illa bina numeratione processeritrdquo De acordo com FARMER (opcit np311) essa proposiccedilatildeo eacute aparentemente inspirada no De mysteriis I17 A referecircncia agrave Binaacute ndash terceira dentre as Sefirot cabaliacutesticas ou numerationes correspondente agrave ldquoInteligecircnciardquo - que tem origens no Medioevo tardio natildeo poderia ser de Jacircmblico Pico provavelmente como ainda infere Farmer pretende derivar os ldquodois modos celestiaisrdquo dos
62
Provavelmente natildeo por coincidecircncia logo em seguida a Proclo satildeo tratadas as
doutrinas que se perpetuaram atraveacutes do esoterismo representadas nas teses
ldquosegundo a matemaacutetica pitagoacutericardquo ldquosegundo a opiniatildeo dos teoacutelogos caldeusrdquo
ldquosegundo a doutrina de Mercuacuterio Trismegistordquo51 e ldquosegundo as doutrinas dos saacutebios
da Cabalardquo52 Pela ordenaccedilatildeo dada natildeo seria incorreto deduzir que Pico pretendesse
confirmar a afinidade entre o misticismo do uacuteltimo dos platocircnicos e as doutrinas que
se lhe seguem De fato nas teses hermeacuteticas e caldaicas Pico descreve pontual e
sinteticamente as diversas estruturas metafiacutesicas do real que embora natildeo expresso
se analogam com as neoplatocircnicas Por vezes as aacutereas do saber satildeo de duvidosa
classificaccedilatildeo dado seu caraacuteter de difiacutecil decifraccedilatildeo ou em razatildeo da presenccedila de dois
ou mais campos de conhecimento que se mesclam Eacute o caso da aacuterea teoloacutegica da qual
123 teses podem ser discernidas de forma inequiacutevoca mas cuja presenccedila se encontra
entrelaccedilada entre outros tantos conteuacutedos de forma obliacutequa ou obscura dificultando
sua classificaccedilatildeo como no exemplo abaixo
A ordenada seacuterie dos inteligiacuteveis natildeo reside na coordenada seacuterie
intelectual como sustenta Amasis o Egiacutepcio Essa eacute em
verdade acima de cada hierarquia intelectual no abismo da
unidade primaacuteria e abscocircndita aleacutem de qualquer possibilidade
de participaccedilatildeo sob a neacutevoa da escuridatildeo originaacuteria53
(Conclusio secundum Chaldeorum Theologorum 5)
A discussatildeo conceitual das teses apresentadas mesmo em seu nuacutemero
reduzido traria natildeo apenas prolixidade ao texto como um distanciamento
desnecessaacuterio da trajetoacuteria traccedilada A amostra dos poucos exemplos tem por
finalidade apontar para a prevalecircncia de determinados conteuacutedos e mostrar na
continuidade que os especiacuteficos temas indicados encontram-se natildeo por acaso
especialmente presentes nas mateacuterias esoteacutericas contidas na segunda parte da obra
Uma etapa pois necessaacuteria para alcanccedilarmos nosso intento final Entre as dispersas
teses que parecem natildeo se relacionar encontram-se elos que indicam a existecircncia de
um projeto de composiccedilatildeo que seleciona dentro de cada sistema doutrinal temas
caracteriacutesticos que confirmam a oculta concatenaccedilatildeo anunciada pelo autor Outros
fatores indicativos de tal concatenaccedilatildeo poderatildeo ser verificados de forma mais clara a
partir do segundo grupo de teses aquelas elaboradas ldquosegundo a opiniatildeo do autorrdquo a
serem verificados no toacutepico final deste Capiacutetulo Antes seratildeo vistas as teses teoloacutegicas
condenadas pela Igreja que abrem espaccedilo para a discussatildeo da relaccedilatildeo entre Filosofia
elementos de Binaacute utilizando-se do meacutetodo de revolutio alphabetariae ou de alguma forma de gematria (concepccedilotildees a serem vistas no Capiacutetulo V)
51 Pico utiliza a versatildeo latina do nome de Hermes Trismegisto 52 Conclusiones [] ldquosecundum Mathematicam Pythagoraerdquo ldquosecundum opinionem Chaldeorum
Theologorumrdquo ldquosecundum priscam doctrinam Mercurii Trismegisti Aegyptiirdquo ldquosecundum doctrinam sapientum hebraeorum Cabalistarumrdquo
53 Concl (I) VII 5 (p54) ldquoCoordinatio intelligibilis non est in intellectuali coordination ut dixit Amasis Aegyptius sed est super omnem intellectualem hierarchiam in abysso primo unitatis et sub caligine primarum tenebrarum imparticipaliter absconditardquo Farmer ajuiacuteza que as proposiccedilotildees caldaicas tenham sido extraiacutedas de fontes neoplatocircnicas embora Pico afirmasse ter em sua posse manuscritos originais caldeus (np338)
63
e Teologia na estruturaccedilatildeo do pensamento de Pico reflexatildeo que serviraacute de preacircmbulo
natildeo apenas para o uacuteltimo item como particularmente para os Capiacutetulos VI e VII
2 Religiatildeo ou Filosofia
Em Veneza a ediccedilatildeo das Conclusiones foi publicamente queimada por 14 dias
consecutivos54 esse foi apenas o iniacutecio dos graves conflitos que Pico viria a ter com a
Igreja e que culminariam em sua ordem de julgamento pela Inquisiccedilatildeo ndash seguidos da
fuga prisatildeo parcial clemecircncia papal (sem absolviccedilatildeo) e finalmente a voluntaacuteria (e
vigiada) reclusatildeo ateacute quase o uacuteltimo ano de sua vida55 Afinal o que havia de ldquomalrdquo
nas Conclusiones Aos olhos da Cuacuteria Pontifiacutecia natildeo eram poucas as razotildees para
ensejar a proibiccedilatildeo daquela composiccedilatildeo que recolhia suficientes fatores para levar os
juiacutezes eclesiaacutesticos a se colocarem de sobreaviso
a) tanto a quantidade de inteacuterpretes aristoteacutelicos presentes entre as teses
quanto o estilo parisiense evocavam o racionalismo hereacutetico averroiacutesta e mais grave
alessandrino que se opunha agraves ideias humanist0-platocircnicas partilhadas pela
Igreja56
b) a menccedilatildeo a tradiccedilotildees pagatildes que traziam certos temas natildeo aceitos pelo
Cristianismo gerava uma situaccedilatildeo incocircmoda
Todos os saacutebios entre Indianos Persas Egiacutepcios e Caldeus
acreditaram na transmigraccedilatildeo das almas isto eacute na sua
passagem de um corpo a outro57
(Conclusio secundum Adelandum Arabem 8)
c) a menccedilatildeo a teologias natildeo comprovadamente divergentes como a pitagoacuterica
a oacuterfica e a hermeacutetica mas tambeacutem natildeo exatamente alinhadas com a doutrina cristatilde
54 Paolo Edoardo FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p10 55 Graccedilas agraves descobertas feitas por Leacuteon Dorez em torno aos verbais das audiecircncias tidas pela Comissatildeo
Pontifiacutecia referentes agraves Teses de Pico eacute possiacutevel conhecer as condiccedilotildees que levaram agrave sua suspensatildeo e agrave supressatildeo do planejado debate (DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole em France 1485-88 18971976) Veja-se tambeacutem para uma reconstruccedilatildeo pontual dos acontecimentos em torno ao julgamento eclesiaacutestico Giovanni DI NAPOLI (Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo Roma 1965) ainda o item ldquoLe tappe del processo a Picordquo de FORNACIARI em sua ldquoIntroduccedilatildeordquo agrave Apologia lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione 2010 pp XIV-XXII
56 Pico apresentava a mesma necessidade de ldquoentenderrdquo o divino ultrapassando o veacuteu da Revelaccedilatildeo que outrora havia acometido Averroacuteis cujas doutrinas jaacute haviam sido condenadas ndash como a concepccedilatildeo de que apenas o Intelecto uacutenico poderia ser considerado imortal Os seguidores de Alessandro de Afrodiacutesia postulavam a mortalidade do corpo juntamente com a mortalidade do intelecto considerando a alma como uma funccedilatildeo do organismo portanto ligada a ele e agrave sua extinccedilatildeo Os alessandrinos chegaram a reconhecer posteriormente a presenccedila de certa imortalidade da alma mas tratar-se-ia de um tipo de imortalidade impessoal natildeo condizente com o Cristianismo Para outras informaccedilotildees veja-se GARIN 2011 pp 32 ss 140 ss
57 Concl (I) IV II 8 (p38) ldquoTranscorporationem animarum crediderunt omnes sapientes Indorum Persarum Aegyptiorum et Chaldaeorumrdquo
64
constituiacutea uma questatildeo delicada A complexidade de certos temas mesclados a
questotildees teoloacutegicas deveria ser devidamente avaliada e autorizada pela Igreja
Quem conheceraacute a sucessatildeo 1 2 3 4 5 12 teraacute nas matildeos com
precisatildeo a distribuiccedilatildeo da Providecircncia58
(Conclusio secundum Mathematicam Pythagorae 4)
d) a presenccedila de vinte e nove Conclusiones theologicae intituladas ldquodiversas
do modo comum dos teoacutelogosrdquo59 era por si soacute ousada e soava arrogante aos olhos da
Cuacuteria Romana Ademais o conteuacutedo das asserccedilotildees teoloacutegicas ndash que compotildeem a
maior parte das teses inicialmente condenadas ndash era ofensivo e de alto teor hereacutetico
e) a presenccedila de Conclusiones Magicae e de um grande nuacutemero de
Conclusiones Cabalisticae cujo conteuacutedo entre outras coisas tentava demonstrar a
existecircncia de um sentido oculto nas Escrituras natildeo poderia ser tolerada
A Comissatildeo romana inicialmente condenou treze teses quase todas extraiacutedas
das Conclusiones in Theologia secundum opinionem propriam em sua maior parte
foram julgadas como falsas errocircneas hereacuteticas ou escandalosas sendo uma ou mais
dessas qualificaccedilotildees conjuntas60 A leitura de algumas entre as teses condenadas pode
dar uma amostra da complexidade do debate em que Pico pretendia se envolver
Se se segue a doutrina comum acerca da possiacutevel encarnaccedilatildeo
[de Deus] em qualquer criatura o corpo de Cristo pode estar
presente sobre o altar segundo a verdade do sacramento da
Eucaristia sem a conversatildeo do patildeo no corpo de Cristo ou sem a
anulaccedilatildeo da substacircncia do patildeo E isso seja dito em termos de
possibilidade natildeo de realidade61 (Conclusio in Theologia 2)
58 Concl (I) VI 4 (p52) ldquoQui I II III IV V XII ordines cognouerit prouidentiae distributionem exacte
tenebitrdquo 59 Conclusiones in Theologia numero XXIX secundum opinionem propriam a communi modo dicendi
Theologorum satis diuersam 60 No breve de Inocecircncio VIII de 20 de fevereiro de 1487 se lecirc ldquo[] segundo o juiacutezo de homens doutiacutessimos
algumas entre aquelas [teses] por efeito de sua formulaccedilatildeo desviam do reto caminho da ortodoxia algumas de tal forma obscuras confusas e intrincadas natildeo poderiam absolutamente ser apresentadas em puacuteblica discussatildeo sem preacutevios esclarecimentos outras satildeo tatildeo paradoxais que poderiam ser proibidas pela Igreja pelo sabor de heresia que emanam assim que se fossem apresentadas em debate puacuteblico poderiam engendrar escacircndalo entre as pessoas incultas e inexperientesrdquo (DOREZ-THUASNE opcit 1976 pp114-115)
61 Concl (II) IV 2 (p88) ldquoSi teneatur communis via de possibilitate suppositationis in respectu ad quamcumque creaturam dico quod sine conuersione panis in corpus Christi uel paneitatis annichilatione potest fieri ut in altari sit corpus Christi secundum veritatem sacramenti Eucharistiae quod sit dictum loquendo de possibili non de sic esserdquo De acordo com FARMER (opcit np 422) muitas das questotildees implicadas nas teses condenadas satildeo derivadas da vasta tradiccedilatildeo de comentaacuterios medievais encontrados nas Sentenccedilas de Petrus Lombardus nas quais Pico se fundamentou As principais oposiccedilotildees das teses teoloacutegicas satildeo endereccediladas a escritos de Tomaacutes de Aquino (FARMER idem) Outros comentaacuterios acerca das teses teoloacutegicas podem ser encontrados em Jader JACOBELLI Pico della Mirandola Longanesi 1986 pp 96-98
65
As palavras ldquoeste eacute o meu corpordquo e as demais pronunciadas
durante a Consagraccedilatildeo devem ser interpretadas materialmente
e natildeo indicativamente62 (Conclusio in Theologia 10)
Natildeo se deve adorar nem a cruz de Cristo nem outra imagem
alguma segundo adoraccedilatildeo de latria tampouco na forma como
a entende Tomaacutes63 (Conclusio in Theologia 14)
Um pecado mortal finito no tempo natildeo pode ser punido com
uma pena infinita segundo o tempo mas apenas com uma pena
temporalmente finita64 (Conclusio in Theologia 20)
Eacute mais racional acreditar que Oriacutegenes esteja salvo de que o
considerar condenado65 (Conclusio in Theologia 29)
Natildeo haacute ciecircncia que nos assegure mais sobre a divindade de
Cristo do que a Magia e a Cabala66 (Conclusio magica 9)
Como se vecirc satildeo todas proposiccedilotildees que discutem a Teologia cristatilde mas natildeo
apenas quase todas apresentam um conteuacutedo dificilmente compreensiacutevel ao crente
de pouca erudiccedilatildeo pois natildeo se referem a temas da ldquofeacute comumrdquo Pico sabia e tentara
advertir que suas afirmaccedilotildees deveriam ser examinadas e debatidas apenas entre os
sapientes da religiatildeo Contudo a partir da divulgaccedilatildeo das teses as prelazias
eclesiaacutesticas natildeo tardaram a se preocupar com as interpretaccedilotildees equivocadas que
aquelas declaraccedilotildees poderiam suscitar dentre ldquoos simplesrdquo podendo levar os fieacuteis a
uma confusatildeo em suas crenccedilas Natildeo se tratava apenas de discutir assuntos que a
Igreja considerava natildeo ser de alccedilada de um filoacutesofo Pico proclamava que ningueacutem
deve ser obrigado a crer se natildeo for persuadido defendia a salvaccedilatildeo de Oriacutegenes
62 Concl (II) IV 10 (p90) ldquoIlia verba Hoc est corpus etc quae in consecracione dicuntur materialiter
tenentur non significatiuerdquo Segundo FARMER (np427) Pico faz uso da ldquoteoria da suposiccedilatildeordquo medieval tardia postular algo ldquomaterialmenterdquo seria equivalente ao uso moderno de ldquocolocar aspasrdquo em torno agravequilo enquanto que postular algo em ldquosentido indicativordquo seria propocirc-lo absolutamente A tese de Pico nesse sentido significaria que se a foacutermula da Eucaristia natildeo fosse colocada ldquomaterialmenterdquo entatildeo a sentenccedila ldquoeste eacute o meu corpordquo referir-se-ia ao corpo do sacerdote e natildeo ao de Cristo Ou na forma sintetizada por JACOBELLI (opcit pp 96-98) tomar as palavras ldquomaterialmenterdquo significa ldquocomo se as dissesse Cristordquo A hostilidade da comissatildeo para com Pico reflete-se no julgamento de que tal tese aparentemente inoacutecua fosse ldquoescandalosa e contraacuteria agrave opiniatildeo comum dos sagrados doutoresrdquo
63 Concl (II) IV 14 (p90) ldquoNec crux Christi nec ulla imago adoranda est adoratione latriae etiam eo modo quo ponit Thomasrdquo A ldquoadoraccedilatildeo de latriardquo significa a idolatria conforme JACOBELLI opcit p97
64 Concl (II) IV 20 (p92) ldquoPeccato mortali finite temporis non debetur poena infinita secundum tempus sed finita tantumrdquo Aqui segundo GARIN (2011 p142) Pico se baseia em Oriacutegenes e Agostinho para os quais seria ldquoimpossiacutevel e absurdordquo um mal que fosse todo mal
65 Concl (II) IV 29 (p92) ldquoRationabilius est credere Origenem esse saluum quam credere ipsum esse damnatumrdquo Em sua resposta oral agrave comissatildeo papal Pico alegou que desde que Oriacutegenes natildeo errou por ldquopertinecircncia de vontaderdquo seria mais provaacutevel e piedoso acreditar que ele estaria salvo (DOREZ-THUASNE opcit pp 124-25) A comissatildeo declarou que a tese de Pico ldquotinha sabor de heresiardquo uma vez que se opunha agrave determinaccedilatildeo da Igreja universal (ibid p130) A resposta de Pico relatada em sua Apologia ganhou consideraacutevel popularidade no seacuteculo XVI admirada pelos reformadores da Igreja em razatildeo dos limites que impunha agrave autoridade eclesiaacutestica Para Farmer (np435) havia um sentido pessoal na afirmaccedilatildeo de Pico de que Oriacutegenes natildeo fora condenado por suas heresias mas sim pela ldquogloacuteria da sua eloquecircncia e conhecimentordquo
66 Concl (II) IX 9 (p118) ldquoNulla est scientia quae nos magis certificet de diuinitate Christi quam magia et cabalardquo
66
negava a eternidade das penas do Inferno colocava-se contra a adoraccedilatildeo da cruz e de
qualquer imagem A busca por uma coerecircncia dentro dos dogmas o levava aleacutem de
limites tacitamente estabelecidos pela ortodoxia catoacutelica natildeo lhe permitindo parar
nem diante dos Sacramentos ingressando em sutilezas teoloacutegicas pretendia
submeter agrave discussatildeo a proacutepria questatildeo da transubstanciaccedilatildeo67 Aleacutem da condenaccedilatildeo
das teses seu artiacutefice foi declarado ldquoiacutempiordquo ldquoheregerdquo ldquomagordquo ldquoismaelitardquo e ldquojudeurdquo
Natildeo sou mago natildeo sou judeu nem ismaelita nem herege
Venero Jesus e trago sobre o meu corpo a cruz de Jesus atraveacutes
do qual o mundo eacute para mim crucifixo e eu sou crucifixo ao
mundo68
As razotildees que nos levam a abordar teses de especiacutefico teor teoloacutegico-cristatildeo em
uma investigaccedilatildeo que trata do uso de paradigmas esoteacutericos satildeo duas
Primeiramente para evidenciar que o Pico que se aproxima a teologias natildeo-cristatildes
natildeo o faz como um investigador desprovido de fundamentos pertinentes agrave teologia de
sua feacute mas sim como algueacutem em posse de efetivo conhecimento daquele campo em
segundo lugar a abordagem do material teoloacutegico permite a discussatildeo da relaccedilatildeo feacute-
razatildeo no pensamento piquiano necessaacuteria para o fechamento do uacuteltimo capiacutetulo Sob
tal prisma a citaccedilatildeo acima deve ser entendida como uma efetiva prova de feacute do autor
longe de uma tentativa de contemporizar com seus arguidores Por outro lado as
comprovaccedilotildees de certas atitudes poderiam lanccedilar duacutevidas sobre o fato a saber a
maior parte das posiccedilotildees contestadas nas Conclusiones foi mantida na Apologia em
clara confirmaccedilatildeo de suas opiniotildees salvo poucas modificaccedilotildees69 algumas passagens
da defesa tanto oral quanto escrita mostram a incontida irritaccedilatildeo do autor e por
vezes certo escaacuternio que tomaria ares de provocaccedilatildeo agrave Igreja70 o reiterado interesse
por conteuacutedos pertencentes a outras tradiccedilotildees teoloacutegicas e sobretudo o fato de
fechar as duas partes de sua obra com um conteuacutedo relacionado a uma doutrina
religiosa ldquoestrangeirardquo poderia sugerir que Pico natildeo mais encontrasse conforto nas
crenccedilas cristatildes
67 Observe-se que toda a discussatildeo contraacuteria agrave adoraccedilatildeo da cruz e de outros siacutembolos bem como a criacutetica
piquiana ao sacramento da Eucaristia ndash a disputa De Eucharistiae Sacramento ndash seriam dois dos grandes debates travados pelos Reformadores do seacuteculo XVI (cf GARIN 2011 pp 32-33)
68 PICO Apologia (p 8) ldquoNon magus non iudaeus sum non ismaelita non haereticus sed Iesum solo et Iesu crucem in corpore meo porto per quem mihi mundus crucifixus est et ego mundordquo
69 Os detalhes completos da defesa de cada tese condenada podem ser vistos em Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione (FORNACIARI 2010)
70 Pico escreve na Apologia (p 33) ldquoExaminando as questotildees condenadas como hereacuteticas pelos mestres de Roma faz-se necessaacuterio que eu mude minha linguagem devo falar o idioma dos baacuterbaros pois como diz jocosamente o proveacuterbio os balbuciantes apenas entendem outros balbuciantesrdquo Na argumentaccedilatildeo referente agrave terceira Quaestio concernente agrave conclusio in Theologia 14 que trata da adoraccedilatildeo da cruz e de imagens Pico chama de hereacuteticos seus examinadores utilizando um artifiacutecio retoacuterico bastante simples sendo a sua tese catoacutelica quem a condena postulando o contraacuterio eacute propriamente hereacutetico (ibid p 132) Em outra passagem replicando as suspeitas sobre a Cabala lecirc-se ldquosuspeitam [os interrogadores] que os cabalistas natildeo sejam seres humanos mas hircocervos [animal miacutetico da Antiguidade claacutessica metade bode metade veado] ou centauros ou qualquer coisa de todo monstruosardquo (ibid pp176-77) Na sua quinta quaestio que trata da defesa da tese maacutegica nr 9 Pico diz ter ouvido algueacutem dizer que ldquoCabalardquo fosse o nome de um inimigo de Cristo e natildeo de uma doutrina (ibid pp176-77) esse fato seria mais tarde relatado por Johannes Reuchlin que em 1516 em seu tratado Arte della Cabala refere que algueacutem teria perguntado durante o interrogatoacuterio de Pico o que era a ldquocabalardquo recebendo como resposta tratar-se de um lsquohomem peacuterfido e diaboacutelico que havia escrito contra Cristorsquo sendo seus disciacutepulos chamados cabalistasrdquo (apud Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)
67
No entanto e como assegura Eugenio Garin Pico era um ldquogrande espiacuterito
religiosordquo e toda sua obra filosoacutefica esteve voltada ao conhecimento de Deus e agrave sua
relaccedilatildeo com o homem e com a realidade71 O proacuteprio subtiacutetulo que abre as
Conclusiones secundum opinionem propriam eacute forte indicador da intenccedilatildeo
respeitosa do autor e de sua vontade de submeter as teses agrave discussatildeo natildeo de impocirc-
las ldquo[] em nenhuma delas afirmo qualquer posiccedilatildeo como assertiva ou provaacutevel
senatildeo na medida em que as retenha verdadeiras ou provaacuteveis a Sagrada Igreja
Romanardquo72 O fato desconfortaacutevel para o magisteacuterio eclesiaacutestico eacute que apesar de sua
autecircntica ldquopietasrdquo que se manifestava em ldquoatitudes de sacerdote em haacutebitos laicosrdquo
Pico permanecia alheio agraves formas exteriores e cerimoniais da experiecircncia religiosa o
repuacutedio pela adoraccedilatildeo de imagens natildeo era apenas escrito (conclusio IV 14) mas
factual Tratava-se de um fiel que praticava o Cristianismo ldquosem ritos e sem
exterioridadesrdquo de um cristatildeo que ldquointroduzia a criacutetica inclusive nos Evangelhosrdquo73
Eis a razatildeo para Pico salvar Oriacutegenes com evidente inocecircncia e aproveitando de
breve momento de liberdade juvenil74 porque o erro do teoacutelogo fora feito em boa feacute
ele se arrependera e sofrera o martiacuterio porque se a condenaccedilatildeo de Oriacutegenes fosse
aceita deveriam ser condenados os Evangelhos os Apoacutestolos e os Santos jaacute que
tantas de suas doutrinas a Igreja natildeo admitia porque natildeo eacute a Igreja mas apenas
Deus que condena Na inflamada defesa de Oriacutegenes Pico mostrava tanto seu caraacuteter
pio quanto a iacutentima rebeliatildeo que vivia em relaccedilatildeo agraves doutrinas eclesiaacutesticas75
O que Pico buscava de fato era uma via de saiacuteda que permitisse a conciliaccedilatildeo
entre as exigecircncias do pensamento loacutegico e os conteuacutedos da ldquorevelaccedilatildeordquo sempre
como parte de seu projeto maior de concoacuterdia Sua viacutevida feacute cristatilde poderia tecirc-lo
levado a se acomodar diante do fasciacutenio oferecido pelas liturgias da Ecclesia ou da
coerecircncia dialeacutetica de seus teoacutelogos mas sua inteligecircncia havia sido nutrida em
demasia com textos hermeacuteticos e cabaliacutesticos ndash que intimamente o haviam
convencido da existecircncia de outros significados na literatura sagrada76 Natildeo se
tratava portanto de uma negaccedilatildeo da experiecircncia cristatilde mas da necessidade de
71 Uma ampla discussatildeo acerca da religiosidade de Pico pode ser encontrada na obra de GARIN Giovanni Pico
della Mirandola 2011 especialmente entre as pp37-48 A relaccedilatildeo entre feacute e razatildeo religiosidade e filosofia tem recebido destaque entre vaacuterios comentadores
72 Abertura agraves Conclusiones secundum opinionem propriam [] in quibus omnibus nihil assertiue uel probabiliter pono nisi quatenus id uerum uel probabile iudicat sacrosancta Romana ecclesia et caput eius benemeritus Summus Pontifex Innocentius octauus cuius iuditio qui mentis suae iuducium non summittit mentem non habet
73 GARIN 2011 p48 A tendecircncia a dar uma nova interpretaccedilatildeo agrave experiecircncia religiosa e ao conhecimento das culturas orientais seria o preluacutedio agrave profunda renovaccedilatildeo religiosa que o mundo moderno assistiria Os orientalistas de rsquo500 a rsquo700 viram em Pico seu grande percursor Atraveacutes de Reuchlin o exemplo de Pico repercutiu nas novas correntes da criacutetica religiosa que confluiacuteram ou foram conexas ao tema reformador Natildeo apenas pelo fato de ser precursor dos estudos orientais mas tambeacutem por seu acento independente e sua livre pesquisa das Escrituras dos ritos dos cultos dos siacutembolos da Igreja e das teorias jaacute aceitas atitudes e estudos que refletiriam na Reforma (Cf GARIN 2011 pp 100 105 135)
74 A atribuiccedilatildeo eacute emprestada do tradutor Albano Biondi que considera as Conclusiones uma obra ldquotanto ingecircnua quanto sofisticadardquo como um diaacuterio de viagem de um intelectual que aproveita de uma ldquobreve liberdade sem condicionamentosrdquo (BIONDI opcit pXXXVIII)
75 A tese condenada referente ao cristatildeo Oriacutegenes (Concl II 4 29) eacute a uacutenica em que Pico pretende defender um autor e natildeo sua doutrina Sua defesa ocupa na Apologia um espaccedilo muito mais extenso que as restantes com exceccedilatildeo da defesa da Magia e da Cabala (cf Apologia ldquoDe salute Origenisrdquo) Oriacutegenes foi um dos poucos pensadores entre filoacutesofos e teoacutelogos cristatildeos a se interessar pelo conhecimento do pensamento e idioma hebreus Essa talvez tenha sido uma das causas do interesse de Pico por sua filosofia (GARIN 2011 pp141 ss)
76 Alberto AMBESI ldquoGiovanni Pico della Mirandola ndash Cenni biografici e presentazione dellrsquooperardquo Introduccedilatildeo ao Heptaplus Carmagnola 1996 p IV
68
ampliaacute-la Era um jovem entusiasmado com as recentes descobertas que
comprovavam as verdades de sua religiatildeo como havia escrito em sua introduccedilatildeo agraves
Teses procurando esclarecer aos Padres seu interesse pelas doutrinas cabaliacutesticas
ldquoas coisas tiradas dos antigos misteacuterios hebreus aleguei como confirmaccedilatildeo da
sacrossanta e catoacutelica feacuterdquo77 De fato atraveacutes de vaacuterios dos enunciados presentes na
seacuterie das Conclusiones Cabalisticae Pico propunha para debate comprovaccedilotildees ldquonatildeo
tanto da religiatildeo mosaica quanto da cristatilderdquo que dizia ter encontrado nos livros
sagrados78
Aqui os misteacuterios da Trindade aqui a encarnaccedilatildeo do Verbo
aqui a divindade do Messias aqui quanto diz respeito ao
pecado original agrave expiaccedilatildeo deste por meio de Cristo quanto
concerne agrave Jerusaleacutem Celeste agrave queda dos democircnios aos coros
angeacutelicos agraves penas do purgatoacuterio e do inferno li as mesmas
coisas que todos os dias lemos em Paulo e Dionisio em
Jerocircnimo e em Agostinho79
O entendimento da relaccedilatildeo religiatildeo-filosofia na obra de Pico natildeo estaacute isento de
dificuldades podendo denotar certa ambivalecircncia A inflamada defesa de sua proacutepria
filiaccedilatildeo religiosa como emerge na citaccedilatildeo acima deu margem a leituras puramente
cristoloacutegicas de sua obra80 No entanto haacute que se observar que na construccedilatildeo do
pensamento piquiano a religiatildeo representava a manifestaccedilatildeo final de conceitos
alcanccedilados plenamente apenas atraveacutes da Filosofia A feacute constituiacutea nesse sentido ldquoo
aacutepice de um processo racional que nela se manifesta e se potencializardquo Seu mais puro
sentimento a esse respeito emerge da carta escrita a Aldo Manuzio em 1491
ldquoPhilosophia veritatem quaerit Theologia invenit Religio Possidetrdquo81 A primazia da
Religiatildeo colocada acima da Teologia e da Filosofia conforme expressa na carta deve
ser entendida em sua correta dimensatildeo pois em outras passagens da obra piquiana a
dicotomia razatildeo-feacute apresenta-se em ordem invertida com a submissatildeo da religiatildeo agrave
77 Oratio pp 155-157 Para detalhes referentes ao confronto entre Cristianismo e Cabala veja-se Chaim
WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Cambridge 1989 78 Oratio pp159-161 79 Algumas das assertivas contidas na citaccedilatildeo encontram-se espalhadas entre as teses cabaliacutesticas (II) nrs 5 6
7 8 14 15 16 24 30 34 e 38 Aleacutem de presente na Oratio (idem) a citaccedilatildeo em questatildeo pode ser lida na Apologia (p30) ldquoHos ego libros non mediocri impensa mihi cum comparassem summa diligentia indefessis laboribus cum perlegissem vidi in illis - testis est Deus - religionem non tam Mosaicam quam Christianam Ibi Trinitatis mysterium ibi Verbi incarnatio ibi Messiae divinitas ibi de peccato originali de illius per Christum expiatione de caelesti Hierusalem de casu daemonum de ordinibus angelorum de purgatoriis de inferorum poenis eadem legi quae apud Paulum et Dionysium apud Hieronymum et Augustinum quotidie legimusrdquo
80 Para alguns que partilham do mesmo entendimento de William CRAVEN (Giovanni Pico della Mirandola symbol of his age modern interpretations of a Renaissance philosopher 1981 p107) o uacutenico interesse de Pico pela Cabala estava em demonstrar a verdade cristatilde ndash embora haja muitas divergecircncias quanto a esse ponto Outros como Michael SUDDUT vatildeo aleacutem defendendo uma ldquoCristologiardquo na obra de Pico (Pico della Mirandolarsquos Philosophy of Religion in Pico della Mirandola-New Essays 2008) Por outro vieacutes Pier Cesare BORI que natildeo coloca duacutevidas sobre a religiosidade cristatilde de Pico estaacute convencido de que a utilizaccedilatildeo da Cabala e outras teologias orientais satildeo ldquobem mais do que um expediente apologeacutetico a serviccedilo de um universalismo cristocecircntricordquo (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996)
81 ldquoA Filosofia procura a verdade a Teologia a encontra e a Religiatildeo a possuirdquo Assim escrevia Pico (Epiacutestola I 6) em 11 de fevereiro de 1491 ao humanista e editor de textos raros Aldo Manuzio ldquoAccinge ad philosophiam sed hac lege ut memineris nullam esse philosophiam quae a mysteriorum veritate nos avocet Philosophia veritatem quaerit theologia invenit religio possidetrdquo (Oratio np37)
69
filosofia eacute o caso da passagem ldquoseria necessaacuterio que a Filosofia iluminasse as mentesrdquo
e que a Igreja soubesse reconhecer a sua forma capaz de ldquopersuadir e convencer
racionalmenterdquo82 A argumentaccedilatildeo alude que apenas quem conhece e sabe discutir
criticamente as fontes pode julgar seu conteuacutedo e sua eventual pretensatildeo de verdade
Segundo Pico de fato o ato de crer natildeo depende apenas da vontade mas tambeacutem do
intelecto83 Nesse caso contraacuterio ao conteuacutedo anterior expresso na carta a Manuzio a
necessidade de submeter a religiatildeo agrave razatildeo deve ser entendida em relaccedilatildeo a uma
dimensatildeo religiosa que se mostra em caraacuteter dogmaacutetico horizontal em oposiccedilatildeo agrave
dimensatildeo religiosa enquanto experiecircncia real Os indiacutecios de tal dimensatildeo da
experiecircncia de uma efetiva religiatildeo84 Pico teria encontrado em seus estudos
relacionados a teologias e teurgias tomadas da literatura neoplatocircnica
posteriormente complementadas com os Hinos Oacuterficos os Oraacuteculos Caldeus e a
praacutetica da Cabala Tratava-se pois de uma real vivecircncia religiosa que extrapolava os
dogmas de qualquer religiatildeo particular Sob tal entendimento quaisquer
correspondecircncias encontradas nas teses que se relacionem com as doutrinas da Igreja
natildeo devem ser interpretadas como uma defesa ortodoxa do Cristianismo mas como
um passo a mais em direccedilatildeo agrave conjunccedilatildeo dos ldquofinsrdquo que tendem ao Absoluto
Seguindo essa acepccedilatildeo Pico teria encontrado em Proclo sua definiccedilatildeo de ldquoverdadeira
religiatildeordquo
Assim como a feacute que eacute simples disposiccedilatildeo a crer eacute inferior agrave
ciecircncia assim a feacute que eacute feacute verdadeira eacute supra
substancialmente superior agrave ciecircncia e ao intelecto conjugando-
nos imediatamente a Deus85
(Conclusio secundum Proclum 44)
3 Maritare Mundum
Nas 144 teses que distribuiacutedas em quatro seacuteries concluem as 500
Conclusiones secundum opinionem propriam eacute possiacutevel descobrir alguns elos que
datildeo sentido ao conjunto de forma que as secretas analogias apontadas na Apologia
possam ser delineadas A segunda metade da obra contempla os principais e mais
82 O tema eacute amplamente discutido em GARIN 2011 pp137-142 Ainda BUSI Pico fede ragione e
Inquisizione in Il Sole 24 Ore 28082018 83 Conclusiones in Theologia (II) IV 18 (p91) Como aponta GARIN (2011 pp137-142) natildeo por acaso o Padre
da Igreja que Pico mais amou e meditou sobre foi justamente Oriacutegenes Parecia-lhe absurda a ideia de impor uma feacute sem demonstraacute-la assim como castigar um herege e condenaacute-lo por erro teoacuterico (cf Apologia ldquoDe libertate credendirdquo)
84 A ideia contemporacircnea que se tem do termo ldquoreligiatildeordquo estaacute bastante esvaziada de seu sentido original a ponto de poder causar estranheza a dignidade que Pico lhe atribui colocando-a acima da Filosofia e da Teologia Nunca eacute tarde para recordar a origem etimoloacutegica do termo ldquoreligiatildeordquo proveniente do verbo ldquoreligarerdquo que aponta para a real uniatildeo com o divino um estado de plena vivecircncia espiritual que ultrapassa as questotildees teoreacuteticas relacionadas agrave Filosofia ou agrave Teologia
85 Concl (I) IVV 44 (p48) ldquoSicut fides quae est credulitas est infra scientiam ita fides quae est vere fides est supersubstantialiter supra scientiam et intellectum nos Deo inmediate coniungensrdquo
70
originais argumentos que seriam utilizados para debater uma teoria global da
representaccedilatildeo do mundo realizando a consonacircncia com os temas verificados no
primeiro toacutepico deste Capiacutetulo Observa-se que o realizador da obra estava seguro por
ter encontrado ocultas correspondecircncias que se mostram particularmente claras no
exame das seacuteries finais das Conclusiones intituladas ldquosegundo opiniatildeo dos
enunciados de Zoroastrordquo ldquomaacutegicasrdquo ldquosegundo os hinos de Orfeu [] e aquele saber
relativo agraves coisas divinas e agraves coisas naturaisrdquo e ldquoconsolidantes da religiatildeo cristatilde a
partir dos fundamentos colocados pelos saacutebios hebreusrdquo86 O complexo dessas quatro
seacuteries representa um corpo uacutenico no pensamento de Pico apresentando uma
substancial unidade entre os saberes da Magia da Teurgia e da Teologia
Vaacuterias correspondecircncias satildeo estabelecidas ainda entre as teses caldaicas
maacutegicas oacuterficas e cabaliacutesticas com os demais temas da inteira obra seguindo um
planejamento em que se destacam especiacuteficos teores o aceno aos trecircs mundos que
Pico havia mencionado atraveacutes de Proclo dentro de um cenaacuterio de organizaccedilatildeo do
cosmo87 a confirmaccedilatildeo de certa escolha temaacutetica que prestigia as questotildees
relacionadas ao conhecimento da alma a tonalidade teoloacutegica que se mostra
mesclada a vaacuterias teses e sobretudo o entrelaccedilamento entre distintos campos do
saber que afirmam a presenccedila da concoacuterdia buscada Os modelos temaacuteticos citados a
seguir todos extraiacutedos das ldquoteses segundo o significado das sentenccedilas de Zoroastro e
de seus exegetas caldeusrdquo apresentam natildeo somente aforismos que retratam os temas
mencionados como ainda um exemplo da multidisciplinariedade piquiana
verificaacutevel no uacuteltimo dos enunciados no qual se confirma a correspondecircncia entre as
teologias caldaica cristatilde e hebraica
No aforismo 17 [do enunciado de Zoroastro] com o triacuteplice
indumento de linho pano e pele os Magos natildeo entendem outra
coisa aleacutem da triacuteplice morada da alma celeste espiritual e
terrena88 (Conclusio secundum propriam opinionem de
intelligentia dictorum Zoroastris 8)
86 Conforme a sequecircncia e tiacutetulos completos dados por Pico temos Conclusiones secundum propriam
opinionem de intelligentia dictorum Zoroastris et expositorum eius Chaldaeorum Conclusiones Magicae Conclusiones secundum propriam opinionem de modo intelligendi hymnos Orphei secundum Magiam id est secretam diuinarum rerum naturaliumque sapientiam a me primum in eis repertam Conclusiones Cabalisticae secundum opinionem propriam ex ipsis Hebraeorum sapientum fundamentis Cristianam Religionem maxime confirmantes
87 Conclusio secundum Proclum 52 88 Concl (II) VIII 8 (p116) ldquoMagi in XVII aphorismo nichil aliud intelligunt per triplex indumentum ex lino
panno et pellibus quam triplex animae habitaculum coeleste spirituale et terrenumrdquo O trecho de acordo com FARMER (opcit np489) eacute extraiacutedo dos Oraacuteculos Caldeus A sessatildeo caldaica das Conclusiones conteacutem material natildeo encontrado no recolhimento de Miguel Psello ou George Plethon nem mesmo a numeraccedilatildeo dos Oraacuteculos de Pico coincide com a ordem encontrada naquelas coleccedilotildees anteriores A questatildeo das fontes que Pico consultou na sessatildeo caldaica eacute tatildeo misteriosa quanto a versatildeo dos Oraacuteculos que ele tinha em matildeos Em carta a Ficino de 1486 Pico fala de libellus de dogmatis Chaldaicae theologiae tum Persarum Graecorum et Chaldaeorum in illa divina et locupletissima enarratione [ldquoum pequeno livro sobre os ensinamentos da teologia caldaica naquela exposiccedilatildeo divina e opulenta dos persas gregos e caldeusrdquo] que lhe tinha chegado recentemente agraves matildeos (FARMER opcit pp486-487)
71
Aquilo que dizem os exegetas caldeus acerca do primeiro
enunciado de Zoroastro sobre a ldquoescala do taacutertaro ao primeiro
fogordquo natildeo significa outra coisa que a seacuterie das naturezas do
universo do natildeo grau da mateacuteria ao grau que gradualmente se
sobrepotildee acima de cada grau89 (idem 1)
Graccedilas ao enunciado de Zoroastro lsquosacrificareis ainda por trecircs
dias e natildeo maisrsquo me resultou evidente atraveacutes da aritmeacutetica do
caacutelculo dos dias da Mercavaacute superior que naquele enunciado
estava prevista expressamente a vinda de Cristo90
(idem 14)
A menccedilatildeo agrave aritmeacutetica da Mercavaacute superior alude agrave existecircncia de um campo
conceitual que requer um preparo especial tantas vezes guardado pelo segredo O
autor desse material mostra ter consciecircncia da necessidade de proteger certas aacutereas
conceituais que natildeo devem ser divulgadas ndash e dos riscos envolvidos em sua eventual
divulgaccedilatildeo Esse cuidado eacute referido de forma velada algumas vezes e de forma
expressa em outras Na abertura do penuacuteltimo grupo de suas teses intituladas
ldquoconforme o modo de interpretar os hinos de Orfeu segundo magiardquo Pico sugere ter
colhido nos Hinos Oacuterficos certas verdades cuja divulgaccedilatildeo seria arriscada por
necessidade em razatildeo da restriccedilatildeo pedida pelo segredo teria que expressar-se em
modo eliacuteptico utilizando-se de aforismos para conseguir despertar ldquoa mente dos
contemplativosrdquo91 Assim se lecirc em sua Conclusio oacuterfica nr 1
Expor em puacuteblico a magia secreta por mim extraiacuteda por
primeiro dos Hinos de Orfeu natildeo eacute liacutecito mas seraacute uacutetil delineaacute-
la para estimular as mentes dos contemplativos mesmo que por
meio de aforismos92
(Conclusio de modo intelligendi hymnos Orphei 1)
89 Concl (II) VIII 1 (p114) ldquoQuod dicunt interpretes chaldaei super primum dictum Zoroastris de scala a
tartaro ad primum ignem nichil aliud significat quam seriem naturarum universi a non gradu materiae ad eum qui est super omnem gradum graduate protensumrdquo
90 Concl (II) VIII 14 (p116) ldquoPer dictum illud Zoroastris ad huc tres dies sacrificabitis et non ultra apparuit michi per arithmeticam superioris merchaveacute illos computandi dies esse in eo dicto expresse praedictum aduentum Christirdquo A Mercavaacute superior (carruagem) representa a parte especulativa da Cabala concernente agraves coisas divinas como esclarece o escritor cabalista Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1989 pp 193-94)
91 Pico tinha consciecircncia dos riscos de uma interpretaccedilatildeo errocircnea ou da utilizaccedilatildeo delituosa da teurgia oacuterfica Marsiacutelio Ficino que jaacute havia traduzido para o latim os Hinos Oacuterficos havia decidido evitar sua publicaccedilatildeo por julgaacute-los perigosos (cf Paolo Edoardo FORNACIARI Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Milano 2009 pp 73-74) ainda do mesmo autor veja-se Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola p 630) O acesso de Pico aos Hinos oacuterficos eacute comprovado pela existecircncia em sua biblioteca de pelo menos um manuscrito contendo natildeo apenas aqueles hinos como tambeacutem os Hinos homeacutericos e os de Proclo (Pearl KIBRE opcit 1936 pp148 205)
92 Concl (II) X 1 (p120) ldquoSicut secretam magiam a nobis primum ex Orphei hymnis elicitam fas non est in publicum explicare ita nutu quodam ut in infrascriptis fiet conclusionibus eam per aphorismorum capita demonstrasse utile erit ad excitandas contemplatiuorum mentesrdquo
72
Depreende-se da asserccedilatildeo acima uma forte conotaccedilatildeo iniciaacutetica tocircnica que
conflui no complexo orgacircnico das uacuteltimas seacuteries revelando a existecircncia de uma
dimensatildeo ndash conhecida por Pico ndash que admite o adepto atraveacutes de graus que elevam
ao conhecimento ndash desde que ele seja capaz de ingressar por suas portas de iniciaccedilatildeo
A conclusio oacuterfica 7 conta que existe uma ldquoestrada de analogia secretardquo que soacute poderaacute
ser trilhada por aquele que souber ldquointelectualizar perfeitamente as propriedades
sensiacuteveisrdquo a serem extraiacutedas dos Hinos de Orfeu93 Vecirc-se que eacute dada ecircnfase seja na
primeira que na seacutetima tese acima ao uso intelectual ou contemplativo das
informaccedilotildees recebidas agrave guisa de precauccedilatildeo para natildeo ser aprisionado por elementos
negativos ndash advertecircncia que embora natildeo expressa nas teses acima encontra-se na
tese 10 segundo Hermes Trismegisto e na tese cabaliacutestica 1394 A conclusio maacutegica 17
sugere que para ultrapassar os limites estabelecidos pela natureza existem ldquodevidas
modalidades conhecidas pelos saacutebiosrdquo95 Nesse percurso a Magia representa o
primeiro grau96 por se tratar conforme a conclusio maacutegica 4 da parte ldquomais nobre
da ciecircncia naturalrdquo sendo o conhecimento do mundo fiacutesico em primeira etapa o
alimento da alma racional97
Se se verifica em noacutes uma natureza imediata que seja
simplesmente ou pelo menos prevalentemente racional essa
tem seu aacutepice na arte maacutegica E graccedilas agrave participaccedilatildeo maacutegica
tal natureza pode ascender nos homens a uma maior
perfeiccedilatildeo98 (Conclusio Magica 14)
A Magia conforme se depreende da explanaccedilatildeo realizada na De Hominis
Dignitate99 ocupa-se das relaccedilotildees da vida humana com a toda a criaccedilatildeo daiacute a
outorga de nobreza que Pico lhe concede em caraacuteter privilegiado tem por objeto a
93 Concl (II) X 7 (p122) 94 A tese cabaliacutestica 13 adverte que ldquoquem opera na Cabala se cometer erros durante o trabalho ou se aproximar
deste sem a devida purificaccedilatildeo preacutevia seraacute devorado por Azazel de acordo com suas proacuteprias regras de justiccedilardquo A tese 10 segundo as doutrinas de Trismegisto informa sobre a existecircncia de uma maligna sequecircncia denaacuteria correspondente agrave existente na Cabala a respeito da qual Pico declara que natildeo poderaacute escrever nada ldquopor tratar-se de um segredordquo
95 Concl (II) IX 17 (p118) A inteira sentenccedila postula que ldquoa magia eacute proacutepria daquela natureza que eacute horizonte de tempo e eternidade e de laacute deve ser extraiacuteda segundo as devidas modalidades notas aos saacutebiosrdquo O significado da primeira oraccedilatildeo segundo FORNACIARI eacute que a natureza eacute o limite do tempo no sentido que o tempo intriacutenseco agrave natureza eacute limitado e natildeo eterno (Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche 2009 p64)
96 Na De Hominis Dignitate Pico dedica muitas linhas a esclarecer o que entende por ldquomagiardquo defendendo-a contra entendimentos equivocados eou preacute-concebidos
97 Cf FORNACIARI Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche 2009 pp 58 63 98 Concl (II) IX 14 (p118) ldquoSi qua est natura immediata nobis quae sit uel simpliciter uel saltem ut multum
rationaliter rationalis magicam habet in summo et eius participatione potest in hominibus esse perfectiorrdquo FARMER (np498) comenta que a questatildeo concerne agrave alma purificada do mago capaz de reunir todas as forccedilas racionais distribuiacutedas entre o mundo celestial e terrestre e elevaacute-las Nesta tese lecirc-se que a magia envolve naturezas ldquoracionaisrdquo na correlata tese cabaliacutestica 12 encontra-se que a ldquoCabala purardquo (haacute tambeacutem variedades inferiores como seraacute visto no Capiacutetulo V) envolve a ldquoparte intelectualrdquo da alma racional
99 Aleacutem da ampla defesa da Magia realizada na Apologia (Quaestio V de magia naturali et cabala hebraeorum pp 154-193) Pico dedica natildeo poucas linhas para a questatildeo na De Hominis Dignitate ldquoRepleta de profundiacutessimos misteacuterios [a ldquoboa magiardquo] abraccedila a contemplaccedilatildeo mais alta das coisas mais secretas e por fim o conhecimento total da natureza Esta como que trazendo das profundidades agrave luz as virtudes dispersas e disseminadas no mundo pela bondade de Deus mais do que realizar milagres coloca-se ao serviccedilo da milagrosa natureza Esta perscrutando intimamente o secreto acordo do universo a que os Gregos chamam de uma maneira muito significativa sympateacuteia [ldquoharmonia do universordquo] explorando a muacutetua ligaccedilatildeo das naturezas traz agrave luz como se ela proacutepria fosse o artiacutefice as maravilhas escondidas nas profundezas do mundo no seio da natureza e dos misteacuterios de Deusrdquo (p153)
73
relaccedilatildeo entre o mundo fiacutesico e a alma imortal pois que o mago opera para realizar a
conexatildeo do mundo sublunar com os mundos superiores100 como seraacute visto adiante
Alguns dos meacutetodos agrave disposiccedilatildeo do sapiente praacutetico para alccedilar-se atraveacutes dos niacuteveis
intelectuais relacionam-se diretamente com o uso de sons e mantras ndash como se
extrai de algumas teses oacuterficas maacutegicas e cabaliacutesticas A tese oacuterfica 2 por exemplo
sinaliza que ldquonas operaccedilotildees de magia natural nada eacute mais eficaz que os Hinos de
Orfeurdquo acrescendo em tom de precauccedilatildeo ldquodesde que sejam aplicadas a correta
muacutesica a correta intenccedilatildeo de acircnimo e todas as demais circunstacircncias que os
sapientes conhecemrdquo101 A quarta tese oacuterfica confirma a analogia de praacuteticas e
resultados entre teologias distintas
Assim como os Hinos de Davi se prestam de forma admiraacutevel agraves
operaccedilotildees da Cabala assim os Hinos de Orfeu se prestam agraves
operaccedilotildees da magia autecircntica liacutecita e natural102
(Conclusio de modo intelligendi hymnos Orphei 4)
Observa-se uma relaccedilatildeo entre os resultados obtidos atraveacutes das praacuteticas oacuterficas
e as cabaliacutesticas pois que nos Salmos de Davi encontra-se uma aplicaccedilatildeo maacutegica
pertencente ao esoterismo hebraico que Pico certamente conhecia103 Embora se
situem em patamares distintos104 as duas dimensotildees operativas apresentam
analogias como revela a tese oacuterfica 6 ldquoa propriedade analoacutegica de qualquer virtuderdquo
(no sentido de qualidade poder ou potecircncia)105 seja natural ou divina eacute a mesma
ldquoguardadas as devidas proporccedilotildeesrdquo assim como satildeo os mesmos os nomes (utilizados
na magia natural) os hinos (na teurgia oacuterfica) e o operar (em sentido cabaliacutestico)
ldquoquem tentaraacute interpretaacute-los encontraraacute as correspondecircnciasrdquo completa o texto106
Pico alerta outrossim que para a aplicaccedilatildeo operativa de determinados hinos
oacuterficos107 seraacute necessaacuteria a participaccedilatildeo da operaccedilatildeo cabaliacutestica como postula a tese
oacuterfica 21 ldquoNatildeo haacute aplicaccedilatildeo operativa daqueles [especiacuteficos] hinos sem a operaccedilatildeo da
Cabalardquo108
100 Cf FORNACIARI 2009 p 58 101 Concl (II) X 2 (p120) Proclo em seu proecircmio ao Comentaacuterio ao Timeu atesta que os textos sagrados do
Orfismo continham indicaccedilotildees taumatuacutergicas Ademais ao proacuteprio Proclo foram atribuiacutedos o poder de auto-cura e de curar o proacuteximo atraveacutes do recurso a hinos inclusive os oacuterficos conforme se lecirc em Vita Procli de Marino Neapolis (apud FORNACIARI 2009 p74) Complementa Fornaciari (p75) que eacute a concentraccedilatildeo do pensamento no mago ou teurgo que propicia o movimento interior desde que acompanhado do cumprimento dos preceitos e das palavras certas pronunciadas nas oraccedilotildees
102 Concl (II) X 4 (p122) ldquoSicut hymni Dauid operi Cabalae mirabiliter deseruiunt ita hymni Orphei operae vere licitae et naturalis Magiaerdquo Os Hinos de Davi referem-se aos Salmos
103 A hinografia atribuiacuteda ao rei Davi exerce uma funccedilatildeo sagrada no Judaiacutesmo e houve uma sua aplicaccedilatildeo maacutegica chamada simmusy tehillim (ldquouso dos Salmosrdquo) Vejam-se esclarecimentos sobre a questatildeo e as implicaccedilotildees em acircmbito cabaliacutestico em FORNACIARI (2009 p76)
104 No capiacutetulo VI seratildeo esclarecidas as distinccedilotildees entre os procedimentos teuacutergicos e os procedimentos de tipo superior realizados em certo tipo de praacutetica cabaliacutestica
105 A complementaccedilatildeo ao termo ldquovirtuterdquo eacute de FORNACIARI (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p630)
106 Concl (II) X 6 (p122) ldquoQuarumcunque virtutum naturalium vel diuinarum eadem est proprietas analogica idem etiam nomen idem hymnus idem opus seruata proportione et qui temptauerit exponere uidebit correspondentiamrdquo
107 Trata-se dos Hinos aos quais Pico se refere na tese oacuterfica 20 (p125) endereccedilados agrave mente Paterna ldquoProtogeni Palladis Saturni Veneri Rheae Legis Bacchirdquo
108 Concl (II) X 21 (p124) A Cabala possui as propriedades para ldquocolocar em ato cada quantidade formal contiacutenua e discretardquo como estaacute complementado na mesma tese 21 Essa tese um tanto complexa recebeu de WIRSZUBSKI (opcit pp141-145) e de Brian COPENHAVER (Lrsquoocculto in Pico in Giovanni Pico della
74
Da mesma forma que efetua em relaccedilatildeo ao Orfismo Pico tece muacuteltiplas
analogias entre a Cabala e a Magia109 dois peculiares temas que exorbitam os limites
de seus proacuteprios grupos e que satildeo encontrados de forma esparsa correspondendo-se
natildeo apenas entre si como com outros dos demais elementos presentes nas Teses
Aleacutem da tese maacutegica 8 condenada pelos teoacutelogos de Inocecircncio VIII que conjuga
Magia e Cabala (no caso para afirmar a divindade de Cristo) as duas precedentes 6 e
7 tambeacutem comportam a assunccedilatildeo da Cabala ao lado da Magia ambas convergindo
para ingressar em um plano superior teoloacutegico Na conclusio maacutegica 6 Pico assume
que todas as operaccedilotildees maacutegicas eou cabaliacutesticas encontram sua referecircncia direta em
Deus
Qualquer obra que suscite estupor seja de tipo maacutegico
cabaliacutestico ou de qualquer outro gecircnero deve ser em
primeiriacutessima instacircncia referida a Deus glorioso e bendito
cuja graccedila espalha as superabundantes aacuteguas de milagrosas
virtudes sobre os homens contemplativos de boa vontade110
(Conclusio Magica 6)
A tese seguinte de nuacutemero 7 provavelmente surpreendente aos ouvidos
cristatildeos afirma que ldquoas obras de Cristo natildeo poderiam ter sido realizadas nem por via
de Magia nem por via de Cabalardquo111 A afirmaccedilatildeo parece significar que Cristo possuiria
virtudes superiores em respeito agrave Magia e agrave Cabala rendendo ambas inuacuteteis
Entretanto segundo a interpretaccedilatildeo de Paolo Fornaciari Pico estaria em verdade
sustentando que Cristo teria operado milagres graccedilas agrave forccedila da Magia e da Cabala
conjuntas112 Fato que parece sugerido na condenada tese de nuacutemero 9 amplamente
discutida na Apologia ldquonatildeo existe ciecircncia que nos afirme a divindade de Cristo mais
do que a Magia e a Cabalardquo113 A intriacutenseca relaccedilatildeo entre Magia e Cabala estaacute ainda
presente na tese maacutegica 15 que atribui agrave Cabala a propriedade tida como
imprescindiacutevel de consentir ao mago de operar com sucesso no mundo fiacutesico
Mirandola 1997 p98) interpretaccedilotildees acuradas e distintas o primeiro em acircmbito cabaliacutestico e o segundo em acircmbito matemaacutetico-geomeacutetrico Jaacute a interpretaccedilatildeo de FORNACIARI (2009 pp91-92) mais alinhada com o desenho geral da Conclusiones faz corresponder as trecircs quantidades formal contiacutenua e discreta aos trecircs mundos inteligiacutevel intermeacutedio e sublunar cujas formas podem ser operacionalizadas e quantificadas pela Cabala atraveacutes da gematria (tipologia a ser verificada no Capiacutetulo VI)
109 Uma maior aproximaccedilatildeo agrave Cabala seraacute feita nos capiacutetulos V e VI Em relaccedilatildeo agrave Magia as 26 teses maacutegicas foram objeto de anaacutelise em artigo de Frances YATES (Giovanni Pico della Mirandola and Magic in LrsquoOpera e il pensiero di G Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze 1965 pp159-196) Para definiccedilotildees e esclarecimentos feitos pelo proacuteprio Pico remeter-se agrave parte da De Hominis Dignitate que trata de Magia e ainda agrave seccedilatildeo dedicada agrave quaestio ldquoDe magia naturalis et Cabala disputatiordquo na Apologia
110 Concl (II) IX 6 (p118) ldquoQuodcumque fiat opus mirabile siue sit magicum siue cabalisticum siue cuiuscunque alterius generis principalissime referendum est in Deum gloriosum et benedictum cuius gratia supercoelestes mirabilium uirtutum aquas super contemplatiuos homines bonae voluntatis quotidie pluit liberaliterrdquo Para Pico as operaccedilotildees maacutegicas natildeo funcionam de forma mecacircnica mas dependem da mediaccedilatildeo de uma alma purificada (FARMER p497)
111 Concl (II) IX 7 (p118) ldquoNon potuerunt opera Christi uel per uiam magiae uel per uiam Cabalae fierirdquo 112 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p630 113 Concl (II) IX 9 (p118) ldquoNulla est scientia quae nos magis certificet de diuinitate Christi quam magia et
cabalardquo Veja-se ampla discussatildeo dessa tese em FARMER (opcit pp126-128) que se remete agrave obra de Frances Yates Giovanni Pico della Mirandola and Magic 1965
75
Nenhuma operaccedilatildeo de Magia pode ser de eficaacutecia se natildeo tiver
conexa a obra cabaliacutestica expliacutecita ou impliacutecita114
(Conclusio Magica 15)
Finalmente nas trecircs teses maacutegicas finais a relaccedilatildeo entre a Cabala e a Magia eacute
precisada Na conclusio 24 a partir de quanto ensina a Cabala Pico posiciona
conforme ldquoprinciacutepios secretos da Filosofiardquo as qualidades formais inscritas nos
siacutembolos (caracteres et figuras) acima das qualidades materiais no que concerne agrave
operatividade maacutegica115 na sucessiva tese 25 afirma a correspondecircncia entre os
siacutembolos (caracteres) usados nas operaccedilotildees maacutegicas e os nuacutemeros (numeri) usados
nas operaccedilotildees cabaliacutesticas Na tese 26 Pico sustenta que agrave diferenccedila de quanto
ocorre no campo maacutegico-natural onde o nexo causa-efeito eacute respeitado em modo
rigoroso na atuaccedilatildeo cabaliacutestica pode ocorrer que um acontecimento natildeo dependa da
mediaccedilatildeo das causas Nesse sentido a uacuteltima tese maacutegica pontua assim a distinccedilatildeo
de gradaccedilatildeo entre os dois saberes atraveacutes da obra cabaliacutestica pode ocorrer algo que
nenhuma magia pode alcanccedilar desde que o operar cabaliacutestico seja ldquopuro e
imediatordquo116
Para aleacutem das inter-relaccedilotildees temaacuteticas uma especial atenccedilatildeo deve ser
dispensada agraves Teses Cabaliacutesticas117 agraves quais alguns privileacutegios foram concedidos118
satildeo elas que encerram as duas seccedilotildees da obra piquiana como a ocupar um espaccedilo
nobre a quantidade de teses cabaliacutesticas em seu total de 118 supera a quantidade de
teses de cada um dos outros grupos119 e quatro-quintos das correspondecircncias
efetuadas entre os vaacuterios conteuacutedos envolvem a Cabala120 Efetivamente o nuacutemero de
conexotildees da Cabala com outros temas ultrapassa aquelas efetuadas com as duas
seacuteries acima mencionadas Aleacutem das 47 teses cabaliacutesticas ad mentem cabalistarum e
das 71 secundum opinionem propriam121 ao menos outras cinquenta fazem
114 Concl (II) IX 15 (p118) ldquoNulla potest esse operatio magica alicuius efficaciae nisi annexum habeat opus
cabalae explicitum uel implicitumrdquo Acerca desta tese FARMER (np499) interpreta que o sentido primaacuterio que Pico quer esclarecer eacute que a parte racional da alma (pertinente agrave ldquomagia naturalrdquo) deriva da parte intelectual da alma (pertinente agrave ldquocabala purardquo) sob tal prisma a Cabala estaria impliacutecita em qualquer ato maacutegico
115 Concl(II) IX 24 (p121) ldquoEx secretioris philosophiae principiis necesse est confiteri plus posse caracteres et figuras in opere Magico quam possit quaecunque qualitas materialisrdquo
116 Respectivamente Concl (II) IX 25 e 26 (p121) Basicamente nessas trecircs uacuteltimas teses Pico postula que as palavras maacutegicas podem ser traduzidas em nuacutemeros e os nuacutemeros em palavras maacutegicas aparentemente conforme inferecircncia de FARMER (np503) atraveacutes de equaccedilotildees de gematria A menccedilatildeo agrave Cabala pura e imediata ldquosi sit pura cabala et imediatardquo envolve a parte intelectual da alma como ainda completa Farmer (idem)
117 Paolo FORNACIARI realizou a interpretaccedilatildeo da totalidade das Conclusiones Cabalisticae (2009) utilizando-se da obra de Chaim WIRSZUBSKY (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 19871989) como paracircmetro hermenecircutico para o misticismo hebraico
118 De todas as obras de Pico as Conclusiones cabalisticae parecem ter conhecido melhor destino visto que foram publicadas mais vezes geralmente em latim (veja-se por exemplo FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche Milano 2009 p13) Para Albano BIONDI as Teses cabaliacutesticas ldquosecundum opinionem propriamrdquo representam o coroamento do inteiro edifiacutecio piquiano (2013 p XXVI)
119 Dentro do primeiro grupo eacute atribuiacutedo a Proclo o maior nuacutemero de teses um total de 55 seguido do grupo dos ldquoSaacutebios da Cabalardquo com 47 teses No segundo grupo as ldquoTeses sobre a Matemaacuteticardquo e as ldquoTeses pessoais acerca da doutrina de Platatildeordquo satildeo as que apresentam maior nuacutemero respectivamente 85 e 80 teses cada Contudo na somatoacuteria dos dois grupos o conjunto das doutrinas cabaliacutesticas eacute detentor da maior quantidade de teses 118 no total
120 Cf William CRAVEN Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age modern Interpretations of a Renaissance philosopher 1981 p107
121 O tiacutetulo do uacuteltimo grupo menciona 71 teses (Conclusiones Cabalisticae numero LXXI) embora sejam apresentadas de fato 72 Conforme Fornaciari (2009 p15) natildeo se trata de erro banal de Pico de seus editores de Roma e de Ingolstadt (com o qual esteve em relaccedilatildeo direta) dos inuacutemeros copistas e dos editores dos seacuteculos
76
referecircncia direta ao tema122 Embora a uacuteltima seacuterie cabaliacutestica ldquosegundo a opiniatildeo de
Picordquo apresente um grande nuacutemero de proposiccedilotildees teoloacutegicas que pretendem
confirmar as verdades do Cristianismo ndash originalidade da qual Pico se orgulhava em
razatildeo do triunfo da aplicaccedilatildeo de seu meacutetodo cabaliacutestico ndash123 o conjunto formado
pelas duas seacuteries referentes aos misteacuterios hebraicos contempla a maior incidecircncia de
aforismos de conteuacutedo obscuro ou esoteacuterico alguns apenas acessiacuteveis ao ciacuterculo dos
cabalistas
O Grande Aquilo eacute de maneira geral a fonte de todas as almas
Outros dias satildeo de algumas mas natildeo de todas124
(Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum
hebraeorum 6)
Na Cabala quem penetrar o misteacuterio das Portas da Inteligecircncia
conheceraacute o misteacuterio do Grande Jubileu125 (idem 13)
Aquele que na sequecircncia coordenada da direita compreender a
propriedade do meridional tambeacutem saberaacute a razatildeo de cada
partida de Abraatildeo ir sempre em direccedilatildeo ao Austro126 (idem 14)
Quem penetrar o caraacuteter proacuteprio de hosec e laila que eacute o
segredo da escuridatildeo saberaacute o porquecirc de os maus democircnios
serem mais perigosos agrave noite do que durante o dia127 (idem 21)
As trecircs uacuteltimas seacuteries de teses contemplam a existecircncia ndash e sugerem a
transcendecircncia por parte do homem ndash do mundo fenomecircnico natural do
sucessivos A hipoacutetese do comentador eacute que Pico tenha evitado propositalmente de escrever o nuacutemero 72 por se tratar de cifra sagrada pertencente agrave versatildeo mais ampla do ldquonome expandidordquo de Deus de 72 letras (conforme Ecircxodo 346-7) habitualmente impronunciaacutevel e que apenas o Gran Sacerdote teria o direito de proferir uma vez ao ano
122 Sheila RABIN apresenta uma completa especificaccedilatildeo das teses que mesclam conteuacutedos cabaliacutesticos caso da conclusio 2 segundo Temistio da nr 10 segundo Hermes e das referecircncias presentes nas teses matemaacuteticas entre outras (Pico on Magic and Astrology in Pico della Mirandola New Essays 2008 p 157)
123 Efetivamente atraveacutes de alguns meacutetodos como a gematria Pico consegue comprovar intrigantes relaccedilotildees entre os misteacuterios hebreus e a Teologia cristatilde Essas questotildees seratildeo verificadas nos capiacutetulos V e VI
124 Concl (I) VIII 6 (p56) ldquoMagnus Aquilo fons est animarum omnium simpliciter sicut alii Dies quarundam et non omniumrdquo Para explicar tal tese algumas interpretaccedilotildees foram tentadas Os ldquodiasrdquo da criaccedilatildeo satildeo concernentes a diferentes Sefirot (concepccedilatildeo a ser verificada adiante) O ldquoGrande Aquilordquo segundo FARMER representa um siacutembolo cabaliacutestico da quinta sefiraacute para FORNACIARI da quarta para WIRSZUBSKI (apud Farmer) o sentido eacute outro natildeo elucidado por Farmer
125 Concl (I) VIII 13 (p56) ldquoQui nouerit in Cabala mysterium portarum intelligentiae cognoscet mysterium Magni Iobelei rdquo
126 Concl (I) VIII 14 (p56) ldquoQui nouerit proprietatem meridionalem in dextrali coordinatione sciet cur omnis processio Abraam semper fit versus austrumrdquo Farmer procura esclarecer parte da tese informando que a ldquosequecircncia da direitardquo eacute uma distinccedilatildeo da emanaccedilatildeo das verdadeiras Sefirot da maleacutefica ldquosequecircncia da esquerdardquo que a reflete (np351) Wirszubski (1989 pp 32-33) cita uma longa passagem da traduccedilatildeo de Mitridate da Portae lustitiae de Gicatilla para tentar mostrar que ldquosequecircncia da direitardquo eacute simplesmente um siacutembolo para a quarta sefiraacute Farmer parece natildeo concordar com tal versatildeo pois afirma que a linguagem de Pico difere radicalmente da encontrada na traduccedilatildeo de Mitridate (que usa a palavra dextra mas nada diz sobre a coordenaccedilatildeo da ldquosequecircncia da direitardquo)
127 Concl (I) VIII 21 (p58) ldquoQui sciet proprietatem hosec et laila quae est secretum tenebrarum scit cur mali daemones plus in nocte quem in die nocentrdquo A ediccedilatildeo de Stephan Farmer (1998) suprime a expressatildeo ldquohosec et lailardquo
77
supramundano intermeacutedio e dos planos inteligiacuteveis bem como de uma dimensatildeo
epistemoloacutegica que permeia todos os planos A velada iniciaccedilatildeo sugerida por Pico tem
por principal intento alccedilar o homem ao entendimento do iacutentimo sistema de
correspondecircncias que se distribui entre os diversos niacuteveis O conhecimento do mundo
sublunar pode ser alcanccedilado pela Magia do celeste pela Teurgia oacuterfica e o acesso ao
Inteligiacutevel pela intermediaccedilatildeo da Cabala Sob esse prisma compreende-se que a
unificaccedilatildeo dos mundos eacute o objetivo final de toda a operaccedilatildeo seja maacutegica teuacutergica ou
cabaliacutestica
Natildeo existe nem no ceacuteu nem na terra virtude em estado
potencial e separada que o mago natildeo possa levar ao estado atual
e unificar128 (Conclusio Magica 5)
Entendendo o mundo como um complexo uacutenico articulado desde o mundano
aos sobremundanos o operador (ou iniciado) torna seu uacutenico escopo o aprendizado e
atuaccedilatildeo sobre os reinos que conjuga com seu proacuteprio intelecto elevando-se do saber
natural ao teoloacutegico atraveacutes de vaacuterios graus e meacutetodos O saacutebio eacute pois um
alquimista para quem ldquoa arte maacutegica natildeo adveacutem que por uniatildeo e atuaccedilatildeo de coisas
que na natureza existem em estado de potecircncia e separaccedilatildeordquo129 o ato de conjugar o
mundo ldquomaritare mundumrdquo torna-se assim sua meta preciacutepua e terminal130
Operar magia eacute simplesmente casar o mundo131
(Conclusio Magica 13)
Entender a natureza e ultrapassaacute-la elevando-se ateacute a mente divina esse eacute o
tema principal daquele texto escrito para servir de ldquointroduccedilatildeordquo agraves Teses Qualquer
das ferramentas operadas pelo homem para obter conhecimento soacute eacute digna se tiver
como finalidade sua elevaccedilatildeo Pois como lembra Pico ldquoa forma de todo o poder
maacutegico tem sua raiz na alma humanardquo mas somente ldquonaquela alma que se mostra
permanente e natildeo cadenterdquo132
A mensagem piquiana concernente ao conteuacutedo das Conclusiones de forma
particular no que se refere agraves uacuteltimas seacuteries natildeo pode ser adequadamente
elucidada133 Todavia o caminho para desvendar a occulta concatenatio mencionada
na Apologia pode ser trilhado a partir da constataccedilatildeo e subsequente averiguaccedilatildeo de
duas veementes marcas presentes dentre as novecentas teses ndash e que aqui foram
indicadas a primeira encontra-se na repeticcedilatildeo de temas relacionados agrave Cosmologia agrave
128 Concl (II) IX 5 (p118) ldquoNulla est virtus in coelo et in terra seminaliter et separata quam et actuare et
unire magus non possitrdquo 129 Concl (II) IX 11 (p118) ldquoMirabilia artis magicae non sunt nisi per unionem et actuacionem eorum quae
seminaliter et separate sunt in naturardquo 130 PICO Apologia pp 171-172 Veja-se discussatildeo aprofundada sobre o tema de ldquomaritarerdquo o mundo em Franco
BACCHELLI (2001 pp 72-73) 131 Concl (II) IX 13 (p118) ldquoMagicam operari non est aliud quam maritare mundumrdquo FARMER bem observa
que ldquoo homo-magus eacute um sacerdote coacutesmicordquo (p498) 132 Concl (II) IX 12 (p118) ldquoForma totius magicae uirtutis est ab anima hominis stante et non cadenterdquo 133 Segundo admite Paolo FORNACIARI tradutor e comentador das Conclusiones cabalisticae ldquonatildeo estamos
ainda em grau de esclarecer plenamente no estado atual dos estudos o significado da mensagem piquianardquo (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p16)
78
Alma e agrave Teologia difusos entre as seacuteries da inteira obra a segunda pode ser
depreendida das correspondecircncias encontradas entre as seacuteries finais das
Conclusiones que se relacionam agravequeles trecircs temas Veremos no proacuteximo Capiacutetulo
que tais temas estatildeo expostos de forma mais evidenciada na Oratio De Hominis
Dignitate concorrendo para a construccedilatildeo do homem piquiano Ademais as
constataccedilotildees levantadas acrescem algumas peccedilas ao tema principal a ser sintetizado
nas paacuteginas finais Resta pontuar que o debate no qual Pico discutiria suas Teses
esclarecendo quem sabe muitos de seus obscuros temas natildeo aconteceu Muitas
dentre aquelas doutrinas que natildeo poderiam ter seus conteuacutedos divulgados
continuaram com seu segredo resguardado
79
CAPIacuteTULO IV
A ORATIO E SEUS ELEMENTOS ASCENSIONAIS
A Oratio Ioannis Pici Mirandulani Concordiae Comitis134 foi considerada por
muitos a obra mais importante da literatura filosoacutefica do primeiro Renascimento135
Escrita para ser o discurso introdutoacuterio agraves Conclusiones a Oratio nunca foi
pronunciada e tampouco nominada foram seus editores e leitores a intitulaacute-la
ldquo(Oratio) De Hominis Dignitaterdquo (Discurso) Sobre a Dignidade do Homem nome
que apareceraacute apenas em sua ediccedilatildeo de 1557 Escrita em etapas que se alternaram
com a redaccedilatildeo das proacuteprias Conclusiones a Oratio foi definitivamente concluiacuteda
somente apoacutes a finalizaccedilatildeo das novecentas teses e quando algumas dentre elas jaacute
haviam sido submetidas a criacuteticas
Ultrapassando os limites do que seria uma simples introduccedilatildeo a obra natildeo
apenas esclarece a intenccedilatildeo pretendida com as Conclusiones como apresenta o
esboccedilo sinteacutetico daquele que seria o inteiro projeto de vida de seu autor razatildeo que
levou Burckhardt a chamaacute-la de ldquosuacutemulardquo do pensamento piquiano136 Com efeito o
breve texto guarda os principais motivos do pensamento de Pico a saber a
pluralidade das fontes a insistecircncia na conciliaccedilatildeo entre elementos considerados
usualmente diacutespares a presenccedila de elementos entatildeo considerados conservadores
tomados da tradiccedilatildeo medieval postos lado-a-lado com as frescas concepccedilotildees
humanistas da temaacutetica da dignidade a inovadora apresentaccedilatildeo da Cabala judaica A
Oratio natildeo apenas se ergue acima da ocasiatildeo para a qual foi criada como se apresenta
qual verdadeira declaraccedilatildeo filosoacutefica por si soacute razatildeo que a levou a ganhar fama
134 ldquoDiscurso de Giovanni Pico Mirandolano Conde de Concoacuterdiardquo Para o texto integral da Oratio veja-se o De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari trad Eugenio GARIN Vallecchi 1942 pp101-
165 O texto encontra-se tambeacutem disponiacutevel no site ldquoPico Projectrdquo convecircnio da Universidade de Bologna com a Brown University Haacute duas principais redaccedilotildees da Oratio a chamada Palatina copiada pelo humanista contemporacircneo de Pico Giovanni Nesi descoberta por Eugenio Garin e contida no codex Palatino 885 (ex 777) na Biblioteca Nazionale de Firenze (cf Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p56) e aquela entregue para ediccedilatildeo quase dois anos apoacutes a morte de Pico pelo sobrinho Gianfrancesco Haacute algumas (poucas) diferenccedilas entre as duas redaccedilotildees como o elogio de reconhecimento a Flavio Mitridate presente na primeira e que natildeo aparece em outras ediccedilotildees (cf Paolo Edoardo FORNACIARI Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione 2010 p LXXIX) NOTA As traduccedilotildees aqui apresentadas das citaccedilotildees foram feitas a partir do texto latino traduzido para o italiano na ediccedilatildeo acima mencionada de Eugenio Garin considerada pelos especialistas como bastante fiel ao pensamento de Pico Garin utilizou-se especialmente da ediccedilatildeo da De Hominis Dignitate editada em Basileacuteia em 1537 Foram tambeacutem utilizadas como paracircmetros as traduccedilotildees para o portuguecircs de Maria de Lurdes Sirgado Ganho e de Luiz Feracine ndash sendo que a autora portuguesa faz algumas omissotildees pouco relevantes em sua traduccedilatildeo Para os dados completos das vaacuterias ediccedilotildees veja-se ldquoPremessa ai Testirdquo na traduccedilatildeo das Conclusiones Nongentae de Albano Biondi 1995 pp3-5
135 Veja-se Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano Meacutexico 1970 p 91 Tambeacutem Eugenio Garin e Ernst Cassirer consideram o Discurso como a obra mais famosa do lsquo400 Em outra obra Concetti Rinascimentali dellrsquouomo ed altri saggi (1978 p132) reflete KRISTELLER que o Discurso conteacutem os fermentos mais patentes que caracterizam a eacutepoca do Renascimento Pier Cesare BORI considera que essas satildeo as paacuteginas ldquomais ceacutelebres do Humanismo italianordquo (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564) Para Mariateresa BROCCHIERI trata-se do ldquocoroamento do trabalho de Picordquo em razatildeo de sua singular qualidade (Pico della Mirandola 2011 p78)
136 Jacob BURCKHARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1927 vol II p95
80
proacutepria e a se firmar de forma independente das Teses ndash a ponto de Eugenio Garin
intitulaacute-la ldquoManifesto do Renascimentordquo137 expressatildeo muito bem aceita A Oratio eacute
essencialmente uma reflexatildeo sobre o homem construiacuteda a partir de uma enredada
estrutura que se apoia sobre um conjunto de doutrinas pertencentes a diferentes
periacuteodos da Histoacuteria do Pensamento
As duas principais linhas interpretativas concernentes ao todo da obra
piquiana podem ser tomadas como modelos de interpretaccedilatildeo de sua parte menor a
Oratio visto que nesta se encontram presentes vaacuterios elementos que se repetiratildeo nas
obras posteriores Uma tendecircncia dominante seguiu o influxo iniciado por Ernst
Cassirer e Giovanni Gentile confirmado anos depois por Eugenio Garin e Paul Oskar
Kristeller que sustenta as conexotildees entre Pico e a cultura maacutegica astroloacutegica
hermeacutetica e cabaliacutestica Outra tendecircncia protagonizada por Henri De Lubac em
seu Pic de la Mirandole138 afirmou sua continuidade com a tradiccedilatildeo teoloacutegica
fundamentada em uma heranccedila biacuteblica-judaica que perpassa os primeiros Padres e
alcanccedila a teologia escolaacutestica No entanto quaisquer diferenccedilas de perspectiva que
sigam tais orientaccedilotildees podem ser prontamente dirimidas quando unificadas sob a
aboacutebada da Concoacuterdia as linhas da obra mostram de forma bastante clara a
intenccedilatildeo de harmonizar entre si natildeo apenas doutrinas teoloacutegicas e filosoacuteficas
ocidentais como tambeacutem de harmonizaacute-las com o pensamento de outras culturas nos
moldes que o autor gostaria que houvesse em sua almejada pax filosoacutefica139
Entre os campos filosoacuteficos e teoloacutegicos associados a legados ocidentais e
orientais dois significativos temas podem ser observados no ldquomanifestordquo e tecircm sido
ressaltados pelos comentadores de forma quase unacircnime (a) a questatildeo da Dignidade
ndash que contempla o sub-tema da liberdade ndash e (b) a questatildeo da Concoacuterdia ambos
verificados a seguir com a finalidade de natildeo ocultar do leitor as interpretaccedilotildees mais
consensuais Seraacute proposto um terceiro tema parte preciacutepua deste Capiacutetulo presente
em vaacuterios momentos da obra e que natildeo tem recebido o devido destaque dos
comentadores (c) o percurso ascensional A aproximaccedilatildeo direta ao texto piquiano
mostra-se a melhor forma para constatar a presenccedila do elemento asceacutetico qual fio
condutor a unir as diferentes doutrinas trazidas no percurso histoacuterico percorrido por
Pico
137 GARIN ldquoIntroduzionerdquo a De Hominis Dignitate Heptaplus etc 1942 p23 138 Em nossa bibliografia utilizou-se a traduccedilatildeo italiana de Henri De LUBAC realizada por GColombo Pico
della Mirandola lrsquoalba incompiuta del Rinascimento 2016 139 Pier Cesare BORI apresenta uma anaacutelise pormenorizada das duas formas interpretativas citadas
segmentando de um lado as passagens biacuteblicas-teoloacutegicas da De Hominis Dignitate e de outro as maacutegicas etc (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996) Observa o autor que dentre as tendecircncias interpretativas dominantes destaca-se a originalidade de H Reinhardt em seu Freiheit zu Gott Der Grundgedanke des Systematikers Giovanni Pico della Mirandola que aponta para o caraacuteter preacute-moderno do pensamento sistemaacutetico de Pico
81
1 O tema da Dignidade do homem
Embora a Oratio tenha passado agrave Histoacuteria da Filosofia como o manifesto
acerca da dignidade do homem muito em razatildeo do nome dado agrave sua publicaccedilatildeo
realizada no seacuteculo XVI o tema da dignidade natildeo foi originalidade de Pico e algumas
variaccedilotildees de seu significado pedem uma reflexatildeo
Durante o Humanismo renascentista o tema da dignidade tornou-se bastante
precioso e levou alguns pensadores a buscarem fundamentos a partir dos primeiros
Padres para rebater a supressatildeo da questatildeo ocorrida em certos periacuteodos da Idade
Meacutedia Pode-se dizer que a ideia da Queda de Adatildeo encerra como consequecircncia a
perda de posiccedilatildeo hieraacuterquica do homem que em alguns momentos literaacuterios foram
registrados como uma perda de valoraccedilatildeo da qualidade do proacuteprio homem140
Sobretudo no baixo Medievo natildeo poucos teoacutelogos foram tomados de certo
pessimismo metafiacutesico perante tal condiccedilatildeo Um exemplo emblemaacutetico da questatildeo foi
postulado por Lotharii Cardinalis o influente papa Inocecircncio III que no seacuteculo XIII
em De miseria humane conditionis afirmava que o homem eacute ldquoindigno produtor de
lecircndeas piolhos vermes urina e fezesrdquo Tal afirmaccedilatildeo apenas confirmava a de Pedro
Damiatildeo que no seacuteculo XI proclamava ser o homem ldquouma criatura vil massa de
podridatildeo poacute e cinzardquo141 Diante de tal desencanto poucos seacuteculos mais tarde alguns
humanistas sentiram-se levados a responder a Inocecircncio III buscando
fundamentaccedilatildeo especialmente em Lactacircncio e Agostinho que haviam promovido o
reconhecimento do valor do homem apoiados no princiacutepio de sua criaccedilatildeo agrave imagem
de Deus142
O tratado inaugural acerca da dignidade humana primeira resposta textual a
Inocecircncio III surge com Bartolomeo Fazio que o escreve em contexto religioso e sob
inspiraccedilatildeo monaacutestica143 Seu contemporacircneo Lorenzo Valla em De Libero Arbitrio
de 1436 acresce elementos agrave reflexatildeo ao promover a valorizaccedilatildeo do livre arbiacutetrio
voltado sobretudo para o domiacutenio que o homem pode ter das forccedilas da natureza
introduzindo assim a discussatildeo teoreacutetica renascentista acerca da liberdade e
140 A ideia de miserabilidade humana remonta ateacute onde se sabe a Moiseacutes o homem embora criado agrave imagem
de Deus traz em si ldquoo jumento o reacuteptil e a bestardquo (Henri de LUBAC Pico della Mirandola LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento 2016) O tema relacionado agrave concepccedilatildeo da Queda e as consequentes formas de ldquolerrdquo o homem em uma estrutura hieraacuterquica teoloacutegica permite a elaboraccedilatildeo de uma tese por si soacute O caraacuteter ldquogeneacutericordquo de nossa abordagem visa salientar algumas interpretaccedilotildees mais significativas e pontuais da questatildeo
141 Petrus Damianus ou mais tarde San Pier Damiani foi uma autoridade bastante considerada no preacute-Humanismo Dante situou o cardeal reformador que seria alccedilado a Doutor da Igreja em 1823 num dos mais altos ciacuterculos do Paraiacuteso como precursor de Satildeo Francisco de Assis A citaccedilatildeo encontra-se em NUNES 1978 p 64 apud Antonio VALVERDE ldquoAportes a Oratio de Hominis Dignitate de Pico della Mirandolardquo in Revista de Filosofia Aurora v21 n29 2009 p464
142 Em relaccedilatildeo agrave valoraccedilatildeo do homem o influxo de Lactacircncio e Agostinho se manteve ateacute boa parte da Primeira Idade Meacutedia Algumas obras de Agostinho que abordam o tema satildeo De Doctrina Christiana e as Confissotildees Com relaccedilatildeo a tal influxo haacute que se observar que o valor do homem estava relacionado com sua criaccedilatildeo agrave imagem de Deus sendo sua salvaccedilatildeo advinda da redenccedilatildeo em Cristo O movimento humanista comeccedila de forma embrionaacuteria a vislumbrar ndash e postular ndash a valoraccedilatildeo do homem em razatildeo de sua liberdade ligada agrave proacutepria responsabilidade ndash o que levaria a uma concepccedilatildeo de salvaccedilatildeo relacionada agraves suas escolhas
143 O historiador Bartolomeo Fazio foi levado a escrever por certo monge beneditino que precisava de uma complementaccedilatildeo para o De miseria humane conditionis de Inocecircncio III Para maiores detalhes acerca de Fazio consultar Jacob BURCKHARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1902
82
necessidade ndash e dando o passo inicial para um longo processo de ruptura entre Feacute e
Filosofia144 Quase duas deacutecadas mais tarde Giannozzo Manetti amplia a questatildeo
com seu tratado De Dignitate et Excellentia Hominis escrito em 1452 no qual refuta
ponto a ponto o profundo pessimismo expresso por Inocecircncio III sobre a miseacuteria
humana estabelecendo o mundo intelectual do vir-a-ser oposto ao mundo natural
do que meramente eacute145 Manetti retoma ainda na mesma obra a questatildeo da
soberania do homem que havia sido lanccedilada por Valla ideia de cunho biacuteblico
expressa no Gecircnesis 2 (representada pela faculdade dada ao homem de atribuir
nomes) que seraacute mais tarde reafirmada por Marsilio Ficino e Pietro Pomponazzi146
Assim que embora o Discurso de Pico tenha sido quase unanimemente
celebrado em funccedilatildeo de certo entendimento ao redor da questatildeo da dignidade
humana fato eacute que o tema foi amplamente explorado bem antes do advento do
Mirandolano tendo continuado em discussatildeo nos seacuteculos XVI e XVII147 Contudo e
apesar de preservar pouca conexatildeo orgacircnica com o humanismo de sua eacutepoca o tema
da dignidade apresenta relevacircncia na obra de Pico natildeo obstante se faccedilam uacuteteis uma
ressalva e algumas distinccedilotildees entre seu desenvolvimento e o de seus antecessores
A ressalva situa-se no emprego e entendimento do termo ldquodignidaderdquo que
devido agraves variaccedilotildees sofridas ao longo da histoacuteria pode ter suscitado interpretaccedilotildees
tantas vezes equivocadas O tiacutetulo De Hominis Dignitate como foi visto natildeo foi obra
de Pico mas escolha poacutestuma O Autor ademais utiliza a palavra ldquodignidaderdquo apenas
uma vez em todo o seu Discurso ndash e natildeo para qualificar o homem148 No decorrer dos
seacuteculos o termo tem sido utilizado em grande parte das vezes como sinocircnimo de
virtude ou hombridade tendo sido essa sua principal acepccedilatildeo desde alguns escritos
da Antiguidade Entretanto no seacuteculo VI Boeacutecio deu novo rumo ao conceito de
dignitas ajudando a dirimir a ideia tradicional romana que dava agrave palavra a
envergadura de honradez e respeitabilidade que pressupunha a virtude modificando
a concepccedilatildeo trazida pelas leituras de Ciacutecero de considerar a honra como
144 Ernst CASSIRER Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1977 pp 131-132 145 Sobre o historiador Giannozzo Manetti veja-se BURCKHARDT 1991 p 170-179 LUBAC Pico della
Mirandola-LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento 2016 pp 247-259 Acerca do conteuacutedo de Manetti comenta CASSIRER que ldquosomente no interior do vir-a-ser o espiacuterito do homem encontraria sua morada e daria provas de sua dignidade e liberdaderdquo (Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1977 p 135 Para maiores detalhes sobre a questatildeo veja-se ainda Giovanni GENTILE Giordano Bruno e il pensiero del Rinascimento 1991 p66
146 Na ideia de soberania expressa por Ficino GENTILE aponta para a origem do ldquoregnum hominisrdquo (opcit p 66) Pomponazzi trata do tema em sua obra De incantationibus de 1520 Para outros detalhes veja-se GARIN Lo Zodiaco della Vita 2007 p116
147 Para toda a questatildeo veja-se em Antocircnio VALVERDE o toacutepico ldquoConcepccedilotildees distintas de dignidade humana da Antiguidade ao Renascimentordquo (Aportes a Oratio de Hominis Dignitate 2009) Ainda GARIN Lrsquoumanesimo Italiano 2008 Note-se que outros importantes autores aleacutem dos citados escreveram sobre o tema da dignidade como Petrarca (Scipio Africanus) Coluccio Salutati (De Herculegrave eiusque laboribus) Poggio Bracciolini (De Nobilitate) e Landino (De nobilitate animae) entre outros No seacuteculo XVI o tema da dignidade humana passa por forte criacutetica nas obras dos reformadores Lutero e Calvino e jaacute no XVII eacute retomado pelos platocircnicos de Cambridge
148 PICO Oratio p123 ldquo[]natildeo soacute os misteacuterios mosaicos ou os cristatildeos mas tambeacutem a teologia dos antigos nos mostra o valor e a dignidade das artes liberais que estou a discutirrdquo (ldquoVerum enimvero nec Mosaica tantum aut Christiana mysteria sed priscorum quoque teologia harum de quibus disputaturus accessi liberalium artium et emolumenta nobis et dignitatem ostenditrdquo)
83
manifestaccedilatildeo da dignidade149 Em seu De consolatione Philosophiae o termo
dignitas assume uma caracteriacutestica neutra perdendo a valecircncia positiva que lhe era
atribuiacuteda ateacute entatildeo (honor et dignitates non sunt summum bonum)150 Mais tarde jaacute
durante a Idade Meacutedia e a partir dos rastros de Boeacutecio a dignitas passa a ser
utilizada na terminologia teoloacutegico-filosoacutefica sob o significado de princiacutepio filosoacutefico
geral ou axioma postulado151 Por fim aquela que seria uma quarta acepccedilatildeo situa a
dignitas na especiacutefica categoria das hierarquias marcando assim uma posiccedilatildeo
dentro de um sistema hieraacuterquico Esse eacute o sentido que parece ser melhor extraiacutedo do
texto piquiano dentro de um contexto cosmoloacutegico que contempla uma seacuterie
ordenada de graus e dignidades ndash portanto de valoraccedilatildeo neutra ndash onde o homem eacute
colocado graccedilas a suas intriacutensecas caracteriacutesticas152
Quanto agraves principais dessemelhanccedilas observadas na reflexatildeo sobre o homem
realizada na Oratio em comparaccedilatildeo aos conteuacutedos verificados em obras de
humanistas anteriores chamam a atenccedilatildeo alguns pontos
a) As contribuiccedilotildees que os filoacutesofos humanistas deram agrave questatildeo da dignidade
ndash em se assumindo o entendimento que daacute ao termo a valecircncia positiva de virtude ndash
embora sem duacutevida dotadas de caracteriacutesticas que as distinguem entre si estiveram
voltadas em linhas gerais para a capacidade de utilizaccedilatildeo da razatildeo em acircmbito da
esfera civil ou do uso de uma potencial soberania sobre os reinos inferiores Sob tal
foco o homem era dignificado atraveacutes de valores como o respeito ao proacuteximo o
princiacutepio do dever e a busca pela felicidade Esse foi o caso da consistente reflexatildeo de
Giannozzo Manetti voltada sobretudo agrave questatildeo da atividade humana em termos
morais153 Tambeacutem para Coluccio Salutati e seu disciacutepulo Leonardo Bruni a perfeiccedilatildeo
moral do homem se traduzia de forma perfeita no ideal da vida ciacutevica Lorenzo Valla
por sua vez natildeo apenas se empenhou para afirmar a noccedilatildeo de soberania do homem
sobre a natureza anteriormente mencionada como valorizou a vida mundana em
todos os seus aspectos contra qualquer negaccedilatildeo asceacutetica Em uma famosa polecircmica
antiestoacuteica defendia que mesmo na natureza e na carne pode ser reconhecida a obra
de Deus154 A anaacutelise de Pico embora atuando no cenaacuterio antropoloacutegico que ocupava
espaccedilo cada vez maior dentro dos studia humanitatis acrescenta ao problema da
149 A fundamentaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo estaacute desenvolvida na obra de Mette LEBECH On the Problem of Human
Dignity A Hermeneutical and Phenomenological Investigation Wurzburg 2009 sobretudo p 62 150 BOEacuteCIO A Consolaccedilatildeo da Filosofia III 151 Veja-se Tomaacutes de AQUINO In Met III 5 390 VICO em Scienza Nuova manteacutem o uso de dignitas em seu
significado de ldquoaxiomardquo na parte em que trata ldquodos Elementosrdquo Essa utilizaccedilatildeo continuou ainda na Idade Moderna veja-se Galilei na passagem ldquoa terra natildeo pode separar-se de sua natureza de trecircs movimentos diversos ou seria necessaacuterio rejeitar muitas das dignidades manifestasrdquo (Cf Lettera a Francesco Ingoli in Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei (org) FAVARO 1933 pp 509-61)
152 Enquanto na Oratio Pico utiliza apenas uma vez o termo ldquodignidaderdquo (e natildeo no contexto de qualificaccedilatildeo do homem) no Heptaplus Pico falaraacute diretamente de dignidade do homem como posiccedilatildeo especial central dentro de uma escala ldquoNoacutes procuramos no homem uma nota que lhe seja peculiar com a qual se explique a dignidade que lhe eacute proacutepriardquo (Heptaplus V 6 ed 1942 p303) E ainda ldquoDevemos nos guardar em natildeo apreciar o grau de dignidade em que fomos colocadosrdquo (V 7 p307)
153 Cf De Dignitate et Excellentia Hominis Ver o toacutepico concernente a Manetti em GARIN Lrsquoumanesimo Italiano
154 GARIN LUmanesimo italiano 2008 respectivamente pp 69 e 62
84
filosofia moral uma dimensatildeo quase que estritamente metafiacutesica155 Essa distinccedilatildeo eacute
evidenciada logo na primeira paacutegina da Oratio em que o autor demonstra
insatisfaccedilatildeo com os enaltecimentos ateacute entatildeo proferidos aos atributos da natureza
humana certamente referindo-se agraves natildeo poucas obras anteriores escritas em seu
seacuteculo Entre os argumentos ldquoutilizados por muitosrdquo acerca da grandeza humana
Pico destaca o quase unacircnime elogio feito ao papel do homem qual ldquoviacutenculo das
criaturas superiores e inferioresrdquo ou ldquointeacuterprete da natureza em virtude da agudeza de
seus sentidos do poder indagador da razatildeo e da luz de seu intelectordquo Essas
qualidades no entanto natildeo o satisfazem e levam-no a um questionamento que natildeo
apenas sinaliza a criacutetica a seus antecessores como lhe permite ingressar em seu
argumento metafiacutesico
Grandes coisas estas sem duacutevida mas natildeo as mais importantes
isto eacute natildeo tais que consintam a reivindicaccedilatildeo do privileacutegio de
uma admiraccedilatildeo ilimitada Porque de fato natildeo deveremos noacutes
admirar mais os anjos e os beatiacutessimos coros celestes156
b) A pergunta introduz a reflexatildeo de Pico acerca da natureza indefinida do
homem nosso segundo ponto distintivo Em elaborado discurso o autor postula
atraveacutes de sua resposta a natureza ontologicamente indeterminada do homem que o
distingue tanto do mundo natural quanto do mundo angeacutelico abrind0-lhe a
possibilidade de se automodelar pelo uso que faz de sua faculdade de escolha Tal
natureza indeterminada natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo no homem mas ao contraacuterio um
privileacutegio que lhe permite natildeo ser constrangido por nenhuma limitaccedilatildeo e que lhe daacute o
atributo de em conformidade com sua vontade degenerar ou se regenerar A
concepccedilatildeo se erige atraveacutes das palavras proferidas ao primeiro homem pelo ldquodeus-
artiacuteficerdquo ndash personagem do Mito da Criaccedilatildeo piquiano
lsquoNatildeo te fizemos nem celeste nem terreno nem mortal nem
imortal a fim de que tu aacuterbitro e soberano artiacutefice de ti mesmo
te plasmasses e te moldasses na forma que tivesses
155 A filosofia moral natildeo eacute irrelevante para Pico ao contraacuterio eacute um estaacutegio importante de evoluccedilatildeo da posiccedilatildeo
humana como seraacute visto Mas natildeo desfruta da mesma importacircncia que para seus colegas Coluccio Salutati por exemplo em discurso contra a filosofia teoacuterica-metafiacutesica e a favor da moral escreveria em seu De nobilitate legum et medicinae ldquoMuito me admira afirmares que a sabedoria consiste na contemplaccedilatildeo cuja serva seria a prudecircncia havendo entre elas a mesma relaccedilatildeo que haacute entre o administrador e o senhor e dizeres que a sapiecircncia eacute a maior das virtudes pertencente agrave melhor parte da alma que eacute do intelecto e que a felicidade consiste em agir conforme a sapiecircncia E acrescentas que sendo a metafiacutesica a uacutenica ciecircncia livre o filoacutesofo quer que a especulaccedilatildeo preceda em tudo a accedilatildeo Mas a verdadeira sapiecircncia natildeo consiste como crecircs na especulaccedilatildeo pura Se tirares a prudecircncia natildeo acharaacutes nem sapiente nem sapiecircncia Chamarias porventura de sapiente a quem houvesse co-nhecido coisas celestes e divinas sem que houvesse provido a si mesmo sem que houvesse sido uacutetil aos amigos agrave famiacutelia aos parentes e agrave paacutetriardquo No mesmo espiacuterito Leonardo Bruni em Isagogicon moralis disciplinae (1424) afirmava a superioridade da filosofia moral sobre a filosofia teoacuterica Esse mostrou-se um vieacutes caracteriacutestico de muitos humanistas o de que soacute a filosofia moral seria ativa Veja-se ampla discussatildeo em GARIN LUmanesimo italiano 2008
156 PICO Oratio p102 ldquo(Horum dictorum rationem cogitanti mihi non satis illa faciebant quae multa de humanae naturae praestantia afferuntur a multis esse hominem creaturarum internuntium superis familiarem regem inferiorum sensuum perspicacia rationis indagine intellegentiae lumine naturae interpretem stabilis aevi et fluxi temporis interstitium er ndash quod Persae dicunt ndash mundi copulam immo hymenaeum ab angelis teste Davide paulo deminutum) Magna haec quidem sed non principalia id est quae summae admirationis privilegium sibi iure vindicent Cur enim non ipsos angelos er beatissimos caeli choros magis admiremurrdquo
85
seguramente escolhido Poderaacutes degenerar nas coisas inferiores
que satildeo os brutos poderaacutes regenerar-te ateacute agraves realidades
superiores que satildeo divinas por decisatildeo da tua vontadersquo157
A passagem que se estabelece como a mais celebrada da inteira obra piquiana
ndash e sobre a qual recai a parte majoritaacuteria das leituras que afirmaram a dignificaccedilatildeo do
homem ndash apresenta um problema de ordem protoloacutegica que concerne agrave origem
teoloacutegica do homem Pico natildeo reafirma a dignidade do homem com base em sua
semelhanccedila em Deus sem prejuiacutezo de sua feacute a originalidade158 de seu homem
consiste conforme suas palavras em natildeo ter uma natureza predefinida mas em ser
ldquoopus indiscretae imaginisrdquo159 A natildeo-determinaccedilatildeo do homem mais do que uma
ausecircncia se daacute em razatildeo de uma demasia jaacute que nele encontram-se todas as
sementes situaccedilatildeo que natildeo ocorre com as bestas (que ldquotrazem consigo tudo [e
apenas] aquilo que depois teratildeordquo) e tampouco com os espiacuteritos superiores (que
ldquodesde o princiacutepio ou pouco depois foram o que seratildeo eternamenterdquo)160
c) O terceiro ponto de sutil diferenccedila em relaccedilatildeo ao anterior apresenta uma
distinccedilatildeo na posiccedilatildeo hieraacuterquica do homem dentro do universo que ocupa ndash um
problema que chamariacuteamos de ordem cosmoloacutegica Embora sem negar a posiccedilatildeo
central do homem aceita na teologia medieval (ldquoo artiacutefice tomou o homem de
natureza indefinida e colocou-o no meio do mundordquo)161 Pico distancia-se
conscientemente da concepccedilatildeo hieraacuterquica mais usual conferindo ao homem um
novo status no universo Ele havia aprendido com seus principais mestres
escolaacutesticos que o lugar do homem estava determinado dentro da ordenaccedilatildeo
universal encontrando-se entre os reinos elementar celestial e angeacutelico Em sua
cosmovisatildeo o homem eacute retirado da fixidez escalar dos mundos ao ser-lhe
apresentada a possibilidade de ser e participar em todos os reinos No ponto (b)
acima trata-se de uma questatildeo de ldquosubstacircnciardquo jaacute que o homem carrega sementes
que os seres dos demais graus natildeo possuem Agora se trata de uma questatildeo de
mobilidade em razatildeo de seu proacuteprio arbiacutetrio Partindo de sua posiccedilatildeo central o
homem pode descer aos niacuteveis subumanos ou se elevar a niacuteveis supra-humanos
157 Oratio p 106 ldquoNec te caelestem neque terrenum neque mortalem neque immortalem fecimus ut tui ipsius
quasi arbitrarius honorariusque plastes er fictor in quam malueris tu te formam effingas Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerarirdquo
158 A concepccedilatildeo da natureza indeterminada do homem foi considerada e aceita como originalidade de Pico della Mirandola Fato certo eacute que tal originalidade se houver deve ser admitida no que concerne agrave tradiccedilatildeo teoloacutegica ocidental ndash entenda-se na Era Cristatilde Antes desse periacuteodo haacute registros de concepccedilotildees similares em outras tradiccedilotildees que natildeo apenas eram conhecidas por Pico como foram utilizadas de forma aberta na De Hominis Dignitate Veja-se mais no toacutepico ldquoO tema da Concoacuterdiardquo
159 ldquoObra de imagem indeterminadardquo Conforme a Oratio ldquoIgitur hominem accepit indiscretae opus imaginis atque in mundi positum meditulliordquo Provavelmente ao escrever que o homem eacute ldquoobra de imagem indeterminadardquo Pico natildeo pretendia contradizer qualquer noccedilatildeo teoloacutegica referente agrave complexa problemaacutetica da ldquoimagem-semelhanccedilardquo de Deus fazendo apenas um uso retoacuterico das palavras Essa talvez tenha sido a razatildeo de Garin ter optado por traduzir o trecho ldquoindiscretae imaginisrdquo por ldquonatureza indeterminadardquo ao inveacutes de ldquoimagem indeterminadardquo ldquoPerciograve [lrsquoottimo artefice] accolse lrsquo uomo come opera di natura indefinitardquo (ed 1942 pp104-105)
160 Oratio p106 ldquoBruta simulatque nascuntur id secum afferunt (ut ait Lucilius) e bulga matris quod possessura sunt Supremi spiritus aut ab initio aut paulo mox id fuerunt quod sunt futuri in perpetuas aeternitates Nascenti homini omnifaria semina et omnigenae vitae germina indidit paterrdquo
161 Oratio p106 ldquoMedium te mundi possuirdquo
86
condiccedilotildees que os elementos dos demais niacuteveis inclusos os anjos natildeo podem
experimentar
O tema da dignidade contempla ainda imbuiacutedo entre suas linhas um
importante desdobramento que concerne ao problema da liberdade do homem162 A
liberdade postulada por Pico natildeo se encontra pronta e soacute poderaacute ser adquirida
atraveacutes de constante exerciacutecio para sua efetivaccedilatildeo jaacute que a natureza humana abriga
vaacuterias formas de resistecircncia a tal efetivaccedilatildeo Uma mudanccedila de tocircnica que passa do
teor elogioso inicial para uma chamada de atenccedilatildeo em direccedilatildeo agraves fraquezas da
constituiccedilatildeo humana ndash com a subsequente prescriccedilatildeo do uso da liberdade como
soluccedilatildeo ndash pode ser observada nesse sentido quando se seguem as paacuteginas do
Discurso Ora pouco apoacutes afirmar que o homem pode ser tudo inclusive partiacutecipe da
vida angeacutelica Pico reflete que natildeo podemos atingir o modelo de vida dos Querubins
ldquonoacutes que somos carne e que temos o gosto das coisas terrenasrdquo Seraacute antes necessaacuterio
ldquodominar com a ciecircncia moral o iacutempeto das paixotildees dissipar a treva da razatildeo com a
dialeacutetica limpar a alma da ignoracircncia e do viacutecio para que as afecccedilotildees natildeo se
desencadeiem cegamente e tampouco a razatildeo imprudente algumas vezes delirerdquo163
Assim embora as primeiras paacuteginas do Discurso possam levar a qualificaacute-lo
como um tratado de otimismo em relaccedilatildeo ao homem o tom inicial de exaltaccedilatildeo (ldquooacute
suma e admiraacutevel felicidade do homem ao qual eacute concedido obter o que deseja ser
aquilo que querrdquo)164 eacute prontamente substituiacutedo pela constataccedilatildeo das dificuldades
ocasionadas por sua experiecircncia na mateacuteria seguida pela exortaccedilatildeo a assumir uma
responsabilidade eacutetica em relaccedilatildeo ao seu papel A argumentaccedilatildeo do tema se conclui
com a indicaccedilatildeo da utilizaccedilatildeo do livre-arbiacutetrio como meio de encetar sua necessaacuteria
transformaccedilatildeo Haacute pois nessa trajetoacuteria um pronunciado aspecto dialeacutetico165 na
medida em que Pico expotildee a necessidade do contiacutenuo exerciacutecio da razatildeo e de seu
poder indagador que o capacita a fazer escolhas Sob esse enfoque o problema
ontoloacutegico da natureza humana eacute colocado a posteriori nunca a priori diversamente
dos animais e anjos cuja natureza fixa natildeo pode ser modificada o homem pode de
acordo com suas escolhas transformar a proacutepria natureza
Finalmente haacute que se observar que tal possibilidade implica dois preceitos
por um lado essa ideia carrega uma exigecircncia aparentemente contraditoacuteria
162 A temaacutetica da liberdade presente no Discurso tem sido celebrada por comentadores ao longo dos uacuteltimos
seacuteculos Dentre os contemporacircneos por todos aqueles que seguiram os passos de Cassirer e Garin embora se verifiquem algumas poucas discordacircncias William Craven natildeo concorda com essa celebraccedilatildeo e Brian Copenhaver afirma que natildeo haacute na Oratio nada das noccedilotildees de liberdade criatividade e individualidade que lhe foram atribuiacutedas (acerca de Craven e Copenhaver veja-se Jonathan MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 n p 78)
163 PICO Oratio p113 A reflexatildeo acerca da condiccedilatildeo instaacutevel do homem se manteraacute em obras posteriores em sua uacuteltima obra Disputationes adversus Astrologiam Divinatricem Pico fala de ldquonoacutes homuacutenculosrdquo (ed Vallecchi 1952 p444) No Heptaplus aquilo que rendia o homem um ldquodivino camaleatildeordquo era tambeacutem aquilo que o caracterizava como uma ldquotoupeira cegardquo o seu ser perenemente colocado no veacutertice da incerteza suspenso entre a ldquosuma miseacuteriardquo e a ldquosuma felicidaderdquo capaz mais de amar a verdade do que de possuiacute-la (De Hominis Dignitate etc 1942 p339)
164 Oratio p106 ldquoO summam dei patris liberalitatem summam et admirandam hominis felicitatem cui datum id habere quod optat id esse quod velitrdquo
165 Veja-se a propoacutesito a reflexatildeo de SIRGADO GANHO (ldquoComentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitaterdquo 2001 pp26-28) acerca da dimensatildeo dialeacutetica eacutetica e metafiacutesica que podem ser reconhecidas na obra de Pico
87
porquanto o livre-arbiacutetrio deveraacute ser ativado para que ocorra a autotransformaccedilatildeo
condiccedilatildeo que instaurando uma conjuntura ciacuteclica aumentaraacute o grau de sua liberdade
e consequentemente o poder de se transformar Por outro lado percebe-se nessa
situaccedilatildeo uma condenaccedilatildeo do homem agrave liberdade jaacute que ele teraacute de escolher por si a
proacutepria condiccedilatildeo ndash tese notaacutevel para a eacutepoca Como explica o deus-artiacutefice
lsquoA natureza bem definida dos outros seres eacute refreada por leis por
noacutes prescritas Tu pelo contraacuterio natildeo constrangido por
nenhuma limitaccedilatildeo determina-la-aacutes para ti segundo o teu
arbiacutetriorsquo166
2 O tema da Concoacuterdia
As palavras iniciais que abrem o Discurso evidenciam a intenccedilatildeo de propor
uma filosofia conciliatoacuteria Dirigindo-se aos ldquopadri venerandirdquo (teoacutelogos e cardeais
para os quais satildeo apresentadas as justificativas) Pico dispotildee logo nas primeiras
linhas um autor da tradiccedilatildeo islacircmica acostado a outro da tradiccedilatildeo egiacutepcia O elogio
ao homem feito por Abdallah Sarraceno (ldquonada haacute de mais admiraacutevel do que o
homemrdquo) eacute comparado com a famosa sentenccedila de Hermes Trismegisto dirigida a
Ascleacutepio (ldquogrande milagre eacute o homemrdquo)167 Atraveacutes dessa escolha eacute dada autoridade a
um personagem proveniente do mundo islacircmico o maior dos antagonistas colocado
ao lado da entatildeo celebrada autoridade egiacutepcia dentro daquela Disputa que teria por
objetivo a paz filosoacutefica168
Li nos escritos dos Aacuterabes venerandos Padres que interrogado
Abdallah Sarraceno sobre qual fosse a seus olhos o espetaacuteculo
mais maravilhoso neste cenaacuterio do mundo tinha respondido
que nada via de mais admiraacutevel do que o homem Com esta
166 Oratio p106 ldquoTu nullis angustiis coercitus pro tuo arbitrio in cuius manu te posui tibi illam praefiniesrdquo 167 Eis a sentenccedila de Hermes na qual Pico se baseia ldquoPropter haec o Asclepi magnum miraculum est homo
animal adorandum et honorandum Hoc enim in naturam dei transit quasi ipse sit deus []rdquo (cf Corpus Hermeticum ed NOCK-FESTUGIEgraveRE Milano 2005 II)
168 Sobre Abdallah Sarraceno alguns comentadores acreditam tratar-se de Abd-Allah Ibn Al-Muquaffagrave escritor persa do seacuteculo VIII (cf FERACINE notas agrave Oratio 1999) Entretanto Pier Cesare Bori atraveacutes de uma pesquisa bastante aprofundada leva-nos a crer que se trate de Abdallah al-Tarjumacircn ou Anselmo Turmeda frade franciscano nascido em Palma de Maiorca no seacuteculo XIV estabelecido em Bolonha por razotildees de estudo Segundo sua autobiografia a Tuhfa ele teria recebido de um pio religioso a sugestatildeo de aproximar-se ao Islam e acabaria por converter-se na cidade de Tunis Em outra obra Disputa dellAsino de 1417 pode ser encontrada uma das fontes acerca da dignidade do homem na qual Turmeda apresenta um fundamento teoloacutegico muito similar agrave metaacutefora utilizada por Pico em seu Mito adacircmico Embora a Disputa dellAsino natildeo faccedila parte dos livros de Pico certamente a notiacutecia da disputa de Abdallah-Turmeda natildeo lhe era desconhecida Para maiores detalhes acerca de toda a questatildeo veja-se BORI I tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564 Do mesmo autor Pluralitagrave delle vie Milano 2000 pp43 ss Ainda ZAMBELLI Lapprendista stregone Astrologia cabala e arte lullina in Pico della Mirandola e seguaci 1995 p29
88
sentenccedila concorda aquela famosa de Hermes lsquoGrande milagre
oacute Ascleacutepio eacute o homemrsquo169
A passagem inaugura o elogio feito agrave filosofia de heterogecircneas escolas e
eacutepocas que perpassa todas as paacuteginas da Oratio como pode ser verificado atraveacutes de
variegadas tentativas de estabelecimento de acordo entre sistemas filosoacuteficos
considerados distintos170 Na passagem em que justifica a escolha dos temas das
Conclusiones Pico ressalta algumas dentre tais concordacircncias que natildeo se limitando
agrave Filosofia alcanccedilam a Teologia
[] insatisfeito por ter trazido aleacutem das doutrinas comuns
muitos assuntos da antiga teologia de Mercuacuterio Trismegisto
muitas das teorias dos Caldeus e de Pitaacutegoras muitos dos
escondidos misteacuterios dos Hebreus tambeacutem propus agrave discussatildeo
muitiacutessimos assuntos concernentes ao mundo natural e divino
encontrados e meditados por mim []Propus o acordo entre
Platatildeo e Aristoacuteteles [e] as sentenccedilas consideradas
contrastantes de Escoto e de Tomaacutes de Averroacuteis e de Avicena
que pelo contraacuterio satildeo concordantes171
Outras vaacuterias correspondecircncias satildeo efetuadas de forma fluiacuteda integrando
registros extraiacutedos do campo filosoacutefico teoloacutegico e misterioloacutegico em um estilo
literaacuterio proacuteprio Em meio agrave narrativa que trata da distribuiccedilatildeo de talentos feita por
Deus (ldquosummus pater architectus Deusrdquo) em seu Mito adacircmico Pico busca concordar
a tradiccedilatildeo biacuteblica com a pagatilde-filosoacutefica atraveacutes da menccedilatildeo agrave passagem inicial do
Gecircnesis (II 1) sobre a origem do mundo harmonizada com a passagem platocircnica
descrita no Timeu 41 (b-d) ldquouma vez tudo realizado como Moiseacutes e Timeu
atestam172 pensou por uacuteltimo criar o homemrdquo173 A concepccedilatildeo de distribuiccedilatildeo de
arqueacutetipos na mesma narrativa eacute emprestada de outro diaacutelogo platocircnico o
Protaacutegoras em que eacute narrado o ldquoMito da Criaccedilatildeo do Homemrdquo174 A analogia eacute clara
169 Oratio p 102 ldquoLegi Patres colendissimi in Arabum monumentis interrogatum Abdalam Sarracenum
quid in hac quasi mundana scena admirandum maxime spectaretur nihil spectari homine mirabilius respondisse Cui sententiae illud Mercuri adstipulatur lsquoMagnum o Asclepi miraculum est homorsquordquo
170 Para a questatildeo da Concoacuterdia filosoacutefica como sendo a principal intenccedilatildeo de Pico ao redigir a Oratio veja-se Cesare VASOLI Imagini Umanistiche 1983 p5
171 Oratio pp144-46 ldquoPropterea non contentus ego praeter communes doctrinas multa de Mercurii Trismegisti prisca theologia multa de Chaldaeorum de Pythagorae disciplinis multa de secretioribus Hebraeorum addidisse mysteriis plurima quoque per nos inventa et meditata de naturalibus et divinis rebus disputanda proposuimus Proposuimus primo Platonis Aristotelisque [] Addidimus autem et plures locos in quibus Scoti et Thomae plures in quibus Averrois et Avicennae sententias quae discordes existimantur concordes esse nos asseveramusrdquo
172 Na passagem em questatildeo Pico refere-se a Moiseacutes como autor do Gecircnesis Ademais refere-se diretamente a Timeo di Locri filoacutesofo pitagoacuterico vivido no IV seacuteculo aC contemporacircneo de Platatildeo e autor da obra De Anima Mundi muito provavelmente o personagem que interage com Soacutecrates no diaacutelogo Timeu (Cf Enrico PEGONE tradutor de Timeu em Platone Tutte le Opere Roma Newton Compton Editori 2010) O trecho de Platatildeo que trata do assunto estaacute em Timeu 41-b ss
173 Oratio p 104 ldquoIdcirco iam rebus omnibus (ut Moses Timaeusque testantur) absolutis de producendo homine postremo cogitavitrdquo
174 PLATAtildeO Protaacutegoras 320d-321e Conta o mito que apoacutes terem os deuses modelado dentro da terra os gecircneros mortais Epimeteu torna-se o responsaacutevel pela distribuiccedilatildeo de suas capacidades Ao terminar a tarefa seu irmatildeo Prometeu descobre que todos os animais receberam qualidades harmoniosamente enquanto o homem estaacute nu descalccedilo sem cobertas e sem armas
89
ldquodos arqueacutetipos natildeo restava nenhum sobre o qual moldar a nova criatura [o homem]
e nem dos lugares em todo o mundo restava algum em que pudesse sentar-se o
contemplador do universordquo175 Algumas paacuteginas adiante recorre mais uma vez agrave
concordacircncia entre a tradiccedilatildeo biacuteblica-cristatilde (agora representada por Moiseacutes e os
Padres da Igreja) e a platocircnica quando ao discorrer acerca do caminho eacutetico de
aperfeiccediloamento aponta para o amor como possibilidade regeneradora
Moiseacutes amou o Deus que viu e promulgou ao povo como juiz
aquilo que antes tinha visto na montanha como contemplador
Eis porque no meio o Querubim com a sua luz nos prepara
para a chama seraacutefica [] Esse eacute o noacute das primeiras mentes a
ordem sapiencial que preside agrave filosofia contemplativa isso
devemos antes de tudo emular investigar e compreender 176
A menccedilatildeo agrave ordem angeacutelica eacute utilizada para acostar um teoacutelogo cristatildeo de
tradiccedilatildeo neoplatocircnica Dioniacutesio ao principal emissaacuterio da tradiccedilatildeo hebraica a
sublimidade dos Serafins seraacute alcanccedilada atraveacutes da luz querubiacutenica da mesma forma
que Moiseacutes atraveacutes do amor despertado pela visatildeo de Deus pocircde transmitir ao povo
o que havia visto quando se encontrava em estado de contemplaccedilatildeo A qualidade da
luz ndash atribuiacuteda aos querubins conforme se lecirc em Dioniacutesio177 ndash eacute diretamente
relacionada ao conhecimento advindo da contemplaccedilatildeo como seraacute verificado no
proacuteximo item Essa eacute uma funccedilatildeo intermediaacuteria entre as ordens angeacutelicas anterior e
posterior que busca alcanccedilar a dimensatildeo do amor absoluto tornando-a anaacuteloga agrave
funccedilatildeo intermeacutedia da alma humana Na continuidade da sentenccedila Pico efetua uma
analogia com o domiacutenio platocircnico ao prescrever que apoacutes se entregar agrave filosofia
contemplativa o homem poderaacute ser alccedilado ldquoaos fastiacutegios do amorrdquo retornando em
seguida devidamente preparado para as tarefas da accedilatildeo178
Uma concordacircncia de outra categoria eacute apontada na obra quando ao tratar do
problema da natureza do homem e de sua possibilidade de tudo ser Pico encontra
conformidades em tradiccedilotildees iacutempares como a hebraica a islacircmica a caldaica e a
grega esta uacuteltima representada pela filosofia pitagoacuterica e empedocliana e pela
religiosidade dos Misteacuterios helecircnicos Vejamos Pico se remete a alguns tipos de
transformaccedilotildees promovidas durante os cultos misteacutericos de antigas tradiccedilotildees Eacute o
caso da transformaccedilatildeo narrada por certo Ascleacutepio ateniense179 que durante os ritos
ldquodevido ao aspecto mutaacutevel e a uma natureza capaz de se transformarrdquo dizia-se
175 Oratio p104 ldquoVerum nec erat in archetypis unde novam subolem effingeret nec in thesauris quod novo
filio hereditarium largiretur nec in subselliis totius orbis ubi universi contemplator iste sederetrdquo 176 Oratio p112 ldquoAmavit Moses Deum quem vidit et administravit iudex in populo quae vidit prius
contemplator in monte Ergo medius Cherub sua luce et saraphico igni nos praeparat et ad Thronorum iudicium pariter Illuminat hic est nodus Primarum mentium ordo palladicus philosophiae contemplativae praeses hic nobis et aemulandus primo et ambiendus atque adeo comprehendendus estrdquo
177 PSDIONISIO AREOPAGITA De Coelesti Hierarchia VI-VII 178 O tema seraacute visto de forma aproximada no proacuteximo toacutepico 179 O Ascleacutepio ateniense citado por Pico natildeo eacute identificaacutevel conforme informa Luiz Feracine em sua traduccedilatildeo
da obra (1999) Certo eacute que Pico quer distingui-lo do conhecido Ascleacutepio de Trales na Liacutedia filoacutesofo neoplatocircnico e disciacutepulo de Amocircnio vivido no seacuteculo VI dC e que deixou um comentaacuterio sobre os primeiros sete livros da Metafiacutesica de Aristoacuteteles Pela referecircncia aos Misteacuterios que envolvem Proteu ndash no Hino oacuterfico 25 eacute feita menccedilatildeo a Proteu ndash eacute provaacutevel tratar-se de personagem de periacuteodo anterior agrave Era Cristatilde
90
simbolizado por Proteu180 Ou ainda das metamorfoses que ocorrem em cerimocircnias
secretas da misteriologia aramaica que ldquotransformam ora Enoch santo no anjo da
divindade e o chama malakh haacute-chekli-natildeh ora outros noutros espiacuteritos divinosrdquo181
Embora natildeo se tenha maiores esclarecimentos acerca dessas duas passagens eacute
possiacutevel afirmar que ambas corroboram como fundamentos acessoacuterios a concepccedilatildeo
piquiana da capacidade seja degenerativa que regenerativa do homem Tal ideia eacute
ilustrada na continuidade do texto pela referecircncia a Maomeacute (ldquoquem se afasta da lei
divina torna-se uma bestardquo) e em acircmbito grego pela referecircncia ao Pitagorismo e a
Empeacutedocles (ldquoe os Pitagoacutericos transformam os celerados em bestas e a acreditar em
Empeacutedocles ateacute mesmo em plantasrdquo)182 O trecho introduz um novo elemento entre
os temas lanccedilados na obra atraveacutes da alusatildeo agrave metempsicosis183 Em relaccedilatildeo ao
Pitagorismo Pico certamente se refere de forma direta ou indireta ao fragmento 21
de Xenoacutefanes quando alude agrave transformaccedilatildeo ldquodos celerados em bestasrdquo uacutenico
fragmento a trazer um conteuacutedo similar agrave passagem em questatildeo184 Jaacute Empeacutedocles
trata do tema em seu Purificaccedilotildees onde afirma que agrave semelhanccedila dos outros
daacuteimones fora tambeacutem ele condenado agrave mortalidade (mas que apoacutes um correto ciclo
de encarnaccedilotildees a divindade poderia ser novamente atingiacutevel)185 Embora Pico natildeo
aborde o tema da transmigraccedilatildeo diretamente em nenhuma de suas obras ndash nas
Conclusiones por exemplo a menccedilatildeo eacute feita por via obliacutequa ndash186 eacute bastante relevante
o aceno agrave possibilidade de que o processo de regeneraccedilatildeo e degeneraccedilatildeo do homem
pode se dar natildeo apenas no decurso de uma vida mas na decorrecircncia de vaacuterias ndash um
conteuacutedo que encontra correspondecircncias em algumas das principais doutrinas de
cunho esoteacuterico recepcionadas por Pico A passagem se conclui com uma fonte
extraiacuteda dos caldeus atraveacutes da qual o autor aproxima-se de sua principal concepccedilatildeo
a de que o homem carrega todas as sementes
180 Oratio p106 ldquoQuem non immerito Asclepius Atheniensis versipellis huius ei se ipsam transformantis
naturae argumento per Proteum in mysteriis significari dixitrdquo 181 Oratio p108 ldquoNam et Hebraeorum theologia secretior nunc Enoch sanctum in angelum divinitatis quem
vocant lsquomalakh haacute-chekli-natildehrsquo nunc in alia alios numina reformatrdquo Acerca da expressatildeo Malakh haacute-chekli-natildeh ndash escrita por Pico em ideogramas hebraicos e suprimida de vaacuterias traduccedilotildees inclusive da tradicional de Garin de 1942 ndash seu significado eacute ldquoo anjo de sheklinatildehrdquo De acordo com a Biacuteblia o patriarca Enoque natildeo teve a morte comum dos mortais (Gecircnesis V 21-24) o que o torna segundo a crenccedila um ldquoanjo da divindaderdquo Por isso a misteriologia aramaica conservada nos livros apoacutecrifos atribui a Enoque o nome de Metraton e assim eacute designado no Talmud e no Midrash De acordo com tal tradiccedilatildeo Metraton equivale a ldquoanjo em que subsiste o nome de Deusrdquo Por extensatildeo semacircntica chegou-se a identificar o nome Metraton com os atributos da divindade e com o proacuteprio ser divino resultando daiacute a figura do Mithra de Zaratustra Pico mais ortodoxo no assunto usa o termo sheklinatildeh no sentido figurado de esplendor ou manifestaccedilatildeo de Deus (cf nota agrave traduccedilatildeo de Luiz FERACINE 1999)
182 Oratio p108 ldquoEt Pythagorici scelestos homines in bruta deformant ei si Empedocli creditur etiam in plantasrdquo
183 A metempsicose doutrina de transmigraccedilatildeo da alma em corpos sucessivos manifesta-se no mundo grego por volta do final do seacuteculo VI aC de acordo com o mais antigo testemunho o de Piacutendaro em sua segunda Ode Oliacutempica de 476 aC (cf Walter BURKERT Antigos Cultos de Misteacuterio 1987 p97 e Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica 1993 p568) Conferir para maiores detalhes a obra de Gabriele CORNELLI (O Pitagorismo como Categoria Historiograacutefica 2011 p145 ss)
184 No famoso fragmento (21 B7 DK Dioacutegenes Laeacutercio VIII 36) um dos mais antigos testemunhos sobre o assunto Xenoacutefanes estaria zombando de Pitaacutegoras ao insinuar que ele teria visto em um catildeo a alma de um amigo A crenccedila pitagoacuterica na metempsicose eacute ainda mencionada por Iacuteon de Chios Heroacutedoto Filolau Aristoacuteteles (que a descreve como faacutebula pitagoacuterica) e Platatildeo
185 O mote transmigracionista estaacute ainda presente no Poema lustral de Empeacutedocles que narra a aventura da alma-daacuteimon banida do Olimpo dos bem-aventurados jogada num corpo e ligada ao ciclo dos nascimentos durante tal jornada passa pela condiccedilatildeo de ldquomenino e menina arbusto passarinho e mudo peixe do marrdquo Vejam-se os fragmentos em KIRK RAVEN SCHOFIELD Os Filoacutesofos Preacute-Socraacuteticos Lisboa 2007 pp296 329-330
186 Vejam-se as Conclusiones nrs (I) IV II 8 (Adelando Aacuterabe) (I) VIII 4 (Zoroastro)
91
O persa Evantes onde expotildee a teoria caldaica escreve que o
homem natildeo possui uma sua especiacutefica e nativa imagem mas
muitas estranhas e adventiacutecias Daiacute o dito caldaico de que o
homem eacute animal de natureza vaacuteria multiforme e mutaacutevel187
Quase ao encerramento de seu Discurso e assim como o fez nas Conclusiones
Pico aborda a questatildeo da Cabala procurando mostrar atraveacutes de alguns de seus
maiores representantes a concoacuterdia com o Cristianismo (ldquoli as mesmas coisas que
todos os dias lemos em Paulo e Dioniacutesio em Jerocircnimo e em Agostinhordquo) e com a
Filosofia (ldquoparece-nos ouvir Pitaacutegoras e Platatildeordquo)188 A busca da paz final eacute segundo
Pico o ponto em que todas as filosofias se unem em concoacuterdia para regozijar-se na
ldquosantiacutessima pazrdquo apregoada pelos cristatildeos ldquodesfrutar da amizade concorderdquo
pitagoacuterica e alcanccedilar a ldquoindissoluacutevel uniatildeordquo apregoada por Averroacuteis Essa eacute a maneira
escrita em formas diferentes por meio da qual ldquotodas as almas natildeo soacute se acordam
numa uacutenica Mente que estaacute acima de cada mente mas tambeacutem de uma maneira
inefaacutevel se fundem em uma soacuterdquo189
O tema da Concoacuterdia ocupa espaccedilo proeminente no pensamento de Giovanni
Pico cuja proposta eacute reclamar a verdade atraveacutes do constante exerciacutecio dialeacutetico dos
pontos de vista Tendo sido alcanccedilado o objetivo referente a cada saber individual
cujas especiacuteficas concepccedilotildees foram escritas para a discussatildeo no debate romano o
proacuteximo passo do autor seria o de comprovar o acordo entre as vaacuterias tradiccedilotildees
abordadas prerrogativa para estabelecer a unidade da verdade O tema aqui iniciado
necessaacuterio para a siacutentese final seraacute retomado no Capiacutetulo VII pois que cada forma de
filosofar apresentada pelo autor mostra-se como um caminho de aproximaccedilatildeo agrave
verdade que uma vez alcanccedilada prescinde das particularidades de cada forma
Veremos a seguir que para estabelecer o caraacuteter universal da verdade Pico percorre
doutrinas que confluem em relaccedilatildeo a um paradigma que se estabelece pela
consecuccedilatildeo de estaacutegios relacionados a uma evoluccedilatildeo asceacutetica
3 O tema da Ascese
A liberdade preconizada sob o tema da dignidade encontra-se sujeita agrave
efetivaccedilatildeo e suplantaccedilatildeo de certos estaacutegios Meacutetodos para percorrer caminhos
187 Oratio p108 ldquoIdcirco scribit Euantes Persa ubi Chaldaicam theologiam enarrat non esse homini suam
ullam et nativam imaginem extrarias multas er adventicias Hinc illud Chaldaeorum lsquoEnosh hu shinnuim vekammah tebhaoth baal hajrsquo idest homo variae ac multiformis et desultoriae naturae animalrdquo No texto original Pico apresenta em ideogramas aparentemente hebraicos a passagem referente ao dito caldaico Acerca de Evantes e de acordo com nota do tradutor FERACINE (1999) sua identidade eacute desconhecida
188 Oratio p160 ldquo[]eadem legi quae apud Paulum et Dionysium apud Hieronymum et Augustinum quotidie legimus In his vero quae spectant ad philosophiam Pythagoram prorsus audias et Platonem [hellip]rdquo
189 Oratio p118 ldquo[hellip]optata pace perfruemur pace sanctissima individua copula unanimi amicitia qua omnes animi in una mente quae est super omnem mentem non concordent adeo sed ineffabili quodam modo unum penitus evadantrdquo
92
asceacuteticos fazem parte das praacuteticas esoteacutericas apregoadas e utilizadas em natildeo poucas
tradiccedilotildees em sua maioria com o objetivo de alcanccedilar um estado de uniatildeo com o
Absoluto Pico utiliza-se de alguns exemplos ascensionais dentro do procedimento
escolhido para demonstrar a unidade da verdade exemplos cuja convergecircncia
doutrinaacuteria eacute esperada em esferas mais elevadas Na metade inicial da Oratio
evidenciam-se treze passagens distintas referentes a condutas asceacuteticas de
competecircncia teoloacutegica ou filosoacutefica as quais em se eliminando aquelas pertencentes
a uma mesma tradiccedilatildeo perfazem um total de sete tradiccedilotildees especiacuteficas Como
fundamentaccedilatildeo para o seu modelo de itineraacuterio asceacutetico Pico percorre as seguintes
doutrinas crenccedilas ou sistemas
1) A dialeacutetica segundo a filosofia platocircnica
2) O modelo angeacutelico postulado por Dioniacutesio Areopagita
3) As iniciaccedilotildees misteacutericas da tradiccedilatildeo grega
4) Os Mitos de Dioniso e de Osiacuteris
5) A simbologia do tabernaacuteculo de Moiseacutes pertencente agrave tradiccedilatildeo hebraica
6) As praacuteticas asceacuteticas pitagoacutericas
7) A misteriologia caldaica
Antes da verificaccedilatildeo de cada um desses itens cabe observar que ainda em
meio agrave narrativa de seu Mito adacircmico Pico introduz a primeira problemaacutetica de
percurso asceacutetico perfeitamente presente no coraccedilatildeo de sua reflexatildeo acerca da
dignidade humana Partindo da premissa de existecircncia de quatro niacuteveis hieraacuterquicos
existentes no homem entendidos como corpos efetivos ou como possibilidades eacute
efetuada uma analogia com os reinos que representam graus da hierarquia coacutesmica
postulada pelo autor ndash que seria mais tarde tratada no Heptaplus190 O mito chama
a atenccedilatildeo para a presenccedila de tais naturezas ou potencialidades que integram o
homem bem como de sua possibilidade de superaccedilatildeo ou regressatildeo atraveacutes da
passagem entre um e outro niacutevel Assim ao se comportar como vegetal utilizando
sua natureza entorpecida e insensiacutevel ldquoo homem seraacute como plantardquo se for sensiacutevel
ldquose tornaraacute bestardquo em razatildeo de sua alma bruta e sensual se racional ldquoelevar-se-aacute a
animal celesterdquo pois ldquonatildeo eacute a forma circular que faz o ceacuteu mas a reta razatildeordquo se
intelectual puro contemplante seraacute anjo e filho de Deus ldquopois natildeo eacute a separaccedilatildeo do
corpo que faz o anjo mas sua inteligecircncia espiritualrdquo191
190 Cf PICO Heptaplus Quinta Exposiccedilatildeo p305 191 Oratio pp106 108 Alguns anos mais tarde em 1516 talvez sob a influecircncia da obra de Pico Pietro
Pomponazzi apresentaraacute sua proacutepria concepccedilatildeo da ordem natural no De immortalitate animae ldquoA natureza procede por graus Os vegetais tecircm um pouco de alma seguem os animais dotados apenas de tato gosto e imaginaccedilatildeo indefinida depois os animais tatildeo perfeitos que parecem dotados de inteligecircncia que constroem asas
93
Entre as referecircncias percorridas Pico insere ademais um siacutembolo de ascensatildeo
iniciaacutetica representado pela imagem biacuteblica da escada de Jacoacute ldquoo sapientiacutessimo
patriarca ensinar-nos-aacute mediante um siacutembolo [] que existem escadas que sobem do
fundo da terra ateacute ao cume dos ceacuteus distintas numa longa seacuterie de degrausrdquo192 A
passagem eacute narrada no Gecircnesis referindo-se agrave revelaccedilatildeo recebida em sonho por Jacoacute
atraveacutes da visatildeo de uma escada ligando ceacuteu e terra193 Essa representaccedilatildeo permite que
se efetuem analogias com diversas tradiccedilotildees como a tradiccedilatildeo angeacutelica referida por
Pseudo Dioniacutesio os Misteacuterios gregos e a Cabala194 Ao ser retirada do campo da feacute
traz a exigecircncia de que todos os degraus sejam percorridos passando pelos graus
irredutiacuteveis da filosofia natural da filosofia moral e dos procedimentos dialeacuteticos Os
traccedilos de tal percurso estatildeo bem definidos na dialeacutetica platocircnica primeiro dos sete
modelos asceacuteticos verificados a seguir
1) A primeira referecircncia agrave dialeacutetica filosoacutefica no Discurso eacute colhida de fontes
platocircnicas e disposta em linguagem miacutetica atraveacutes do convite para que o homem
abandone o que eacute terreno e ldquovoerdquo para as regiotildees supramundanas em direccedilatildeo agrave
divindade A menccedilatildeo ao voo reafirmada na passagem em que alude ao ldquoceacutelere voo
para a Jerusaleacutem Celeste atraveacutes de um bater de asasrdquo embora natildeo mencionada
diretamente remete agraves asas da alma que proporcionam a sua libertaccedilatildeo como fora
exaltado por Platatildeo no Fedro195
Desdenhemos das coisas da terra desprezemos as astrais e
abandonando tudo o que eacute terreno voemos para a sede
supramundana proacuteximo da sumidade da divindade196
Observe-se que conforme as palavras acima a Esfera Astral eacute um reino
inserido em territoacuterio ligado ao mundano197 acima do sublunar que remete agrave
imagem de um eixo vertical cujas etapas devem ser superadas A passagem encerra a
ideia de um movimento dinacircmico que pode ser realizado pela alma humana graccedilas agrave
e se organizam em sociedades civis como as abelhas (tanto que muitos homens parecem inferiores aos brutos por inteligecircncia)rdquo Em continuidade o autor apresenta seu conceito de ldquomedianidaderdquo ou planos ldquosintetizantesrdquo entre os reinos ldquoHaacute animais meacutedios entre as plantas e os animais como as esponjas marinhas fixas como as plantas mas sensiacuteveis como os animais haacute o macaco que natildeo se sabe se eacute animal ou homem e haacute a alma intelectiva mediana entre o temporal e o eternordquo Para maiores detalhes veja-se GARIN LrsquoUmanesimo italiano 2008 pp156-160
192 Oratio p 114 193 Cf Gecircnesis 28 12-13 ldquoE sonhou e eis uma escada posta na terra cujo topo tocava nos ceacuteus e eis que os
anjos de Deus subiam e desciam por elardquo 194 Algumas distintas interpretaccedilotildees dessa passagem foram realizadas Para Luiz FERACINE (1999) a escada de
Jacoacute significa a necessidade de ascender do muacuteltiplo ao uno simbolizado pelo desmembramento titacircnico do deus Dioniso Giulio BUSI identifica a escada com a deacutecima sefiraacute da tradiccedilatildeo cabaliacutestica correspondente a malkut vista em seu duplo aspecto de oraccedilatildeo e presenccedila divina conforme o autor depreende do Sefer ha-Zohar (La Qabbalah 2011 p11) Para Albano BIONDI (1995 ldquoIntroduccedilatildeordquo) a escada apresenta um significado estritamente dialeacutetico relacionado agrave Filosofia e seus graus de conhecimento
195 Cf PLATAtildeO Fedro 246 ss A passagem da Oratio que cita o Fedro encontra-se na p122 ldquoQuis non Socraticis illis furoribus a Platone in Phaedro decantatis sic afflari non velit ut alarum pedumque remigio hinc idest ex mundo qui est positus in maligno propere aufugiens ad caelestem Hierusalem concitatissimo cursu feraturrdquo
196 Oratio p110 ldquoDedignemur terrestria caelestia contemnamus et quicquid mundi est denique posthabentes ultramundanam curiam eminentissimae divinitati proximam advolemusrdquo
197 A mateacuteria referente agrave Esfera Astral eacute desenvolvida por Pico em suas Disputationes Adversus Astrologiam
94
sua posiccedilatildeo intermeacutedia dentro do desenho universal Agrave medida que se avanccedila no
texto torna-se patente que tal posiccedilatildeo consiste em uma tensatildeo vertical dialeacutetica
permanente que reporta ao Banquete Em seu Commento de lsquo86 Pico jaacute havia
explorado o diaacutelogo platocircnico e o tema da natureza carente de Eros intermediaacuteria
entre a ignoracircncia e a sabedoria sempre agrave procura desta uacuteltima198 O influxo daquela
obra pode ser agora percebido a partir da retomada do mesmo dinamismo que se
repete e percorre todo o Discurso Oriacutegenes havia feito menccedilatildeo ao mito contido no
Banquete e agrave sua analogia com a busca do homem por sabedoria e sabe-se que Pico
teve acesso agrave sua obra199 O Eros platocircnico assim como a alma piquiana ocupa uma
posiccedilatildeo intermeacutedia200 pois natildeo eacute divino nem terreno201 A potecircncia para atingir as
realidades supremas atraveacutes do amor pela sabedoria encontra-se nas representaccedilotildees
das duas obras Aleacutem da dinacircmica de atraccedilatildeo pelo saber o Discurso eacute perpassado
pela teoria platocircnica que distingue graus de conhecimento entre o sensiacutevel e o
inteligiacutevel e que postula a partir de tais pontos o meacutetodo dialeacutetico que permite a
passagem do grau inicial da pluralidade das opiniotildees ao grau final da unidade da
Ideia
A filosofia natural acalmaraacute os conflitos da opiniatildeo e os dissiacute-
dios que atormentam dividem e dilaceram de modos diversos
a alma inquieta [] A dialeacutetica acalmaraacute a razatildeo
tumultuosamente mortificada entre os contrastes das palavras e
dos silogismos capciosos202
Pico atribui ora agrave filosofia ldquonaturalrdquo ora agrave ldquomoralrdquo a competecircncia para tratar
das questotildees relacionadas agrave conduta humana203 Na primeira parte da passagem
acima ao tratar dos ldquoconflitos e opiniotildeesrdquo estabelece-se uma relaccedilatildeo com o segundo
grau de conhecimento apresentado na Repuacuteblica204 dimensatildeo da piacutestis e doxa cuja
superaccedilatildeo viraacute atraveacutes da filosofia moral Na segunda parte Pico coloca-se em grau
acima ao abordar a forma como a razatildeo poderaacute ser acalmada atraveacutes da dialeacutetica
Embora o meacutetodo dialeacutetico possa ser entendido como o sistema integral que abarca
todos os graus no sentido de movimento da consciecircncia que se move entre os graus
mais baixos e os mais altos ndash graccedilas agrave descoberta das contradiccedilotildees encontradas em
cada grau inferior de conhecimento ndash o mesmo pode tambeacutem ser dividido em duas
etapas a primeira dialeacutetica inferior opera com as contradiccedilotildees das opiniotildees e
crenccedilas isto eacute com a multiplicidade sensiacutevel moacutevel e dispersa a segunda superior
198 PLATAtildeO Banquete 203d-204c 199 A obra Contra Celsum do teoacutelogo Oriacutegenes havia sido publicada em latim em 1481 poucos anos antes da De
Hominis Dignitate A passagem em questatildeo encontra-se em IV 39 Ademais eacute conhecida a admiraccedilatildeo que Pico tinha por Oriacutegenes Para uma aprofundada reflexatildeo sobre a analogia entre o Banquete e a visatildeo dialeacutetica de Pico veja-se BORI I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996 pp 551-564
200 PLATAtildeO Banquete 202d 201 PLATAtildeO ibid 203e 202 Oratio p119 A inversatildeo dos periacuteodos na citaccedilatildeo acima foi feita por uma questatildeo de ordenamento necessaacuterio
ao que estaacute sendo tratado ldquoSedabit dialectica rationis turbas inter orationum pugnantias et syllogismorum captiones anxie tumultuantis Sedabit naturalis philosophia opinionis lites et dissidia quae inquietam hinc inde animam vexant distrahunt et laceranterdquo
203 De fato na paacutegina 122 da Oratio que conteacutem a passagem citada encontra-se tanto o uso de ldquomoralisrdquo quanto ldquonaturalis philosophiardquo
204 Veja-se PLATAtildeO (Rep 509d-511e) e seu ldquoSiacutemile das duas linhasrdquo
95
ou verdadeira dialeacutetica opera ultrapassando demonstraccedilotildees baseadas em hipoacuteteses
na medida em que a multiplicidade vai sendo ordenada e sistematizada ateacute alcanccedilar o
incondicionado a unidade inteligiacutevel Essa a dialeacutetica superior capaz de elevar-se de
hipoacutetese em hipoacutetese ateacute alcanccedilar o natildeo hipoteacutetico205 eacute aquela agrave qual Pico se refere
como o aliacutevio para ldquoacalmar a razatildeordquo
Seremos arrebatados se primeiro tivermos realizado tudo
quanto estaacute em noacutes se de fato com a moral forem refreados
dentro dos justos limites os iacutempetos das paixotildees de tal modo
que se harmonizem reciprocamente com estaacutevel acordo e se a
razatildeo proceder ordenadamente mediante a dialeacutetica206
Finalmente no pinaacuteculo da ascensatildeo ocorre o ldquoarrebatamentordquo momento em
que como ainda mencionado no Banquete (210a) a alma filosoacutefica encontra-se com
a Ideia Suprema O contato direto e imediato da inteligecircncia com o inteligiacutevel se daacute
no plano noeacutetico em que ocorre a visatildeo intelectual de uma ideia em decorrecircncia do
conhecimento adquirido por meio dos atos de intuiccedilatildeo intelectual a episteacuteme Segue-
se assim o quinto grau de conhecimento postulado na Carta Seacutetima e proclamado
por Pico como final de uma trajetoacuteria de conhecimento207
Rejeitadas as impurezas com a moral e a dialeacutetica se adorne da
mais vasta Filosofia como se fosse um ornamento real208
2) A ideia de desenvolvimento vertical humano eacute encontrada outrossim na
narrativa feita por Pseudo-Dioniacutesio acerca do mundo angeacutelico Pico se fundamenta
em seu modelo de ascese miacutestica em trecircs estaacutegios (purgatio illuminatio e perfectio)
ndash conforme a visatildeo recebida em revelaccedilatildeo por Paulo relatada em Coriacutentios acerca do
triacuteplice coro angeacutelico209 Iniciando sua argumentaccedilatildeo eacute lanccedilada a questatildeo de como
proceder para chegar aos Serafins Querubins e Tronos seres pertencentes ao
primeiro ciacuterculo dentro da hierarquia cosmoloacutegica descrita por Dioniacutesio210 a melhor
205 PLATAtildeO na Carta VII (343e) descreve que a passagem contiacutenua entre os vaacuterios niacuteveis hipoteacuteticos com o
deslocamento para o alto e para baixo em cada niacutevel mesmo sob dificuldades leva ao conhecimento da coisa buscada
206 Oratio p122 ldquoAgemur ab illis utique si quid est in nobis ipsi prius egerimus nam si et per moralem affectuum vires ita per debitas competentias ad modulos fuerint intentae ut immota invicem consonent concinentia et per dialecticam ratio ad numerum se progrediendo moverit []rdquo
207 PLATAtildeO Carta VII 342b-343c Na Carta Seacutetima Platatildeo amplia o que havia estabelecido na Repuacuteblica sobre os quatro modos de conhecimento ensinando que o quinto modo de conhecimento eacute a coisa-em-si mesma ou a percepccedilatildeo intelectual direta da coisa cognosciacutevel A funccedilatildeo do quarto modo que eacute o conhecimento (342b) eacute preparar-nos para alcanccedilar o objeto real e soacute atraveacutes de uma fricccedilatildeo chegamos a ele Essa fricccedilatildeo produz uma faiacutesca como uma luz que surge na alma (341d) e nos faz ver a pura ideia da coisa Pico coloca no teacutermino de sua explanaccedilatildeo dialeacutetica o alcance da Filosofia (nesse sentido indicando o momento supremo do conhecimento) qual ldquoornamento realrdquo
208 Oratio p120 ldquo[] postquam per uroralem et dialecticam suas Bordes excusserit multiplici philosophia quasi aulico apparatu se exornarit []
209 Cf Oratio p113 A passagem de Paulo que trata de seu ldquoarrebatamentordquo ao terceiro ceacuteu estaacute em 2 Coriacutentios 12 2-4 ldquoConheccedilo um homem em Cristo que haacute catorze anos[] foi arrebatado ao terceiro ceacuteu E sei que o tal homem[] foi arrebatado ao paraiacuteso e ouviu palavras inefaacuteveis que ao homem natildeo eacute liacutecito falarrdquo
210 Pico passa diretamente para o escalatildeo mais alto na hierarquia dos seres angeacutelicos a chamada Primeira Ordem Abaixo destes haacute a Segunda e Terceira Ordem composta cada qual por trecircs gecircneros de seres Dioniacutesio Areopagita esclarece em sua obra que as alegorias das formas angeacutelicas utilizadas pelos teoacutelogos satildeo apenas pontos de partida para permitir a contemplaccedilatildeo dos seres inteligiacuteveis Eacute tambeacutem uma forma de ocultar atraveacutes de
96
forma para alcanccedilaacute-los seraacute atraveacutes da observaccedilatildeo de seu protoacutetipo de vida pois ldquose
tambeacutem noacutes a vivermos jaacute estaremos partilhando de igual ventura e de fato
podemosrdquo211 Assim a destinaccedilatildeo humana consiste precisamente em imitar aquelas
vidas Primeiramente os Tronos mais proacuteximos de noacutes representantes da vida ativa
disciplinada em seguida os Querubins modelo de vida contemplativa finalmente
os Serafins mais proacuteximos de Deus representantes da uniatildeo miacutestica no amor Os
Querubins encontrando-se no ponto intermeacutedio entre os dois outros graus da ordem
agrave qual pertencem representam por analogia a funccedilatildeo intermeacutedia do homem e sua
capacidade contemplativa torna-se exemplo do ponto mais alto que pode ser
alcanccedilado atraveacutes da capacidade intelectiva humana
Se a nossa vida deve ser modelada sobre a vida dos Querubins
devemos ter claro frente aos nossos olhos em que consiste tal
vida quais as accedilotildees e obras que devemos imitar212
Cada Ordem apreende da que lhe estaacute imediatamente superior tudo o que
concerne agraves suas operaccedilotildees retransmitindo agrave inferior aquilo que lhe eacute possiacutevel
transmitir (ldquoa ordem mediana eacute para a inferior inteacuterprete dos preceitos da ordem
superiorrdquo)213 Os Tronos tem seu nome originado a partir do conceito de sustentaacuteculo
Esse gecircnero de anjo eacute identificado pela total ausecircncia de qualquer concessatildeo aos
planos inferiores e a capacidade de se manter constante e firmemente tendendo para
os cumes Analogamente esse seria o estaacutegio da purgatio Os Querubins ldquoaqueles
que difundem sabedoriardquo satildeo tidos como a inteligecircncia mediadora entre o amor
divino e a reta razatildeo jaacute que sua inteligecircncia prepara o homem para o ardor seraacutefico e
ao mesmo tempo o ilumina pelo modelo da justiccedila dos Tronos (ldquoeis porque no meio o
Querubim com a sua luz nos prepara para a chama seraacutefica e nos ilumina
juntamente com o juiacutezo dos Tronosrdquo)214 Os Querubins designam aptidotildees ao
conhecimento e agrave contemplaccedilatildeo do Absoluto e acolhem em si a plenitude dos dons
que transmitem sabedoria comunicando-os agraves essecircncias inferiores graccedilas agrave
capacidade de emanaccedilatildeo da proacutepria sabedoria que lhes foi transmitida Sua posiccedilatildeo eacute
anaacuteloga ao grau asceacutetico da illuminatio O Serafim eacute o que ocupa a mais alta posiccedilatildeo
aquele que ldquoqueimardquo na luz divina Os Serafins tecircm por qualidades o movimento
perpeacutetuo em torno dos segredos divinos o calor a profundidade e a qualidade de
comunicar aos niacuteveis que lhe sucedem a luz e o calor Detecircm o poder de auto-
purificaccedilatildeo e a aptidatildeo para conservarem a sua proacutepria luz daiacute sua relaccedilatildeo com o
uacuteltimo grau asceacutetico a perfectio215
enigmas a misteriosa unidade dessas Inteligecircncias Os nomes atribuiacutedos agraves Inteligecircncias designam suas capacidades (De Coelesti Hierarchia II-VII) Pico possuiacutea vaacuterias coacutepias em grego e latim das obras principais de Ps Dioniacutesio (cf Garin 2011 p110)
211 Oratio p111 O trecho em questatildeo encontra-se na traduccedilatildeo de Feracine tendo sido omitido na traduccedilatildeo de Sirgado Ganho ldquoSed qua ratione aut quid tandem agentes Videamus quid illi agant quam vivant vitam Eam si et nos vixerimus (possumus enim) illorum sortem iam aequaverimusrdquo
212 Oratio p112 ldquoAt vero operae precium si ad exemplar vitae cherubicae vita nostra formanda est quae illa et qualis sit quae actiones quae illorum Opera []rdquo
213 Oratio p116 ldquoEt quoniam supremi ordinis monita medius ordo inferioribus interpretaturrdquo 214 Cf Oratio p113 215 PS DIONISIO De Coelesti Hierarchia VII Para detalhes adicionais veja-se nota da passagem em questatildeo
na traduccedilatildeo da Oratio de Luiz Feracine Informa o tradutor que Trono vem da raiz dar que passou para o sacircnscrito na palavra dhacircrana sustentaacuteculo O termo Querubim do hebraico kerub eacute considerado originaacuterio de
97
Pico pretende indicar a analogia existente entre as funccedilotildees angeacutelicas e o
caminho triaacutedico relacionado aos campos moral dialeacutetico e teoloacutegico que pode ser
verificado nas atribuiccedilotildees de cada Ordem Os Tronos se definem pelo reto
discernimento e a firmeza de juiacutezo qualidade que pode ser atingida atraveacutes do uso da
razatildeo e que em seu primeiro estaacutegio eacute capaz de encetar a filosofia moral No
Querubim estaacutegio intermediaacuterio apresenta-se a capacidade intelectual da
contemplaccedilatildeo ou o momento de ldquoesplendor da inteligecircnciardquo Finalmente no Serafim
tem-se o amor ao artiacutefice ao qual Pico em outras passagens ou obras refere-se
atraveacutes do termo ldquofeacuterdquo que o autor considera o uacuteltimo estaacutegio da ascese miacutestica
teoloacutegica216
Ainda que dedicados agrave vida ativa se assumirmos tratar as coisas
inferiores com reto discernimento afirmar-nos-emos com a
firmeza dos Tronos Se liberarmo-nos das accedilotildees meditando na
criaccedilatildeo o artiacutefice e no artiacutefice a criaccedilatildeo estaremos imersos na
paz da contemplaccedilatildeo e resplandeceremos rodeados de
querubiacutenica luz Se ardermos apenas por amor do artiacutefice
daquele fogo que consome todas as coisas inflamar-nos-emos
repentinamente com aspecto seraacutefico217
Ao ponto intermeacutedio querubiacutenico eleva-se a possibilidade humana alcanccedilaacutevel
pela dialeacutetica ldquoisso devemos emular investigar e compreender de modo a sermos
arrebatados ateacute aos fastiacutegios do amor descendo em seguida instruiacutedos e preparados
para as tarefas da accedilatildeordquo218 Assim para a pergunta ldquocomo se tornavam iluminados os
querubins como se elevavam ao estaacutegio seraacuteficordquo o autor indica o caminho da
contemplaccedilatildeo ldquoeste eacute o centro das primeiras mentes a ordem sapiencial que preside
agrave filosofia contemplativardquo219 Finalmente colocando palavras na boca do apoacutestolo
Paulo ndash se tivesse sido perguntado sobre o que faziam os exeacutercitos dos Querubins
enquanto esteve ele arrebatado no terceiro ceacuteu ndash responde Pico ldquopurificavam-se
eram iluminados e tornavam-se por fim perfeitosrdquo220 Repete-se o processo triaacutedico
intuiacutedo no modelo de ascetismo piquiano
Karibu que significa bendizente Em geral os Querubins satildeo associados aos gecircnios alados das mitologias egiacutepcias babilocircnicas e siro-feniacutecias O termo Serafim vem do hebraico sharaf serpente [ligado ao verbo saacuterof queimar] siacutembolo relacionado aos gecircnios e agrave divindade pelos cananeus Em geral nas representaccedilotildees lhes satildeo dadas as formas de serpente No livro Nuacutemeros (XXI 6-9) os Serafins indicam as serpentes venenosas enquanto em Isaiacuteas (VI) representam seres antropomorfos providos de seis asas Assim tanto os Serafins como os Querubins satildeo idealizaccedilotildees de seres superiores em que se fundem formas humanas com asas Essa heranccedila cultural influenciou a percepccedilatildeo dos autores biacuteblicos (FERACINE A Dignidade do Homem 1999)
216 Oratio pp111-113 217 Oratio p110 ldquoIgitur si actuosae addicti vitae inferiorum curam recto examine susceperimus Thronorum
stata soliditate firmabimur Si ab actionibus feriati in opificio opificem in opifice opificium meditantes in contemplandi otio negotiabimur luce Cherubica undique corruscabimus Si caritate ipsum opificem solum ardebimus illius igne qui edax est in Seraphicam effigiem repente flammabimurrdquo
218 Oratio p112 219 Oratio p113 Pier Cesare BORI relaciona a vida contemplativa dos Querubins com a vida intelectual que se
difunde nas vaacuterias disciplinas filosoacuteficas que seratildeo depois unificadas dialeticamente (I tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564)
220 Oratio p113
98
3) A pureza dos graus angeacutelicos pede uma correta preparaccedilatildeo que Pico
vislumbra nos graus de iniciaccedilatildeo previstos nos Misteacuterios gregos ndash ldquoin Graecorum
arcanis observati initiatorum gradusrdquo
Se eacute nosso dever [] imitar a vida dos anjos pergunto quem
ousaraacute tocar as escadas do Senhor ou com peacute impuro ou com
matildeos por lavar Ao impuro segundo os Misteacuterios eacute-lhe vedado
tocar aquilo que eacute puro221
As matildeos e os peacutes conforme o proacuteprio Pico explica representam ldquotoda a parte
sensiacutevel onde estatildeo sediadas as seduccedilotildees corpoacutereasrdquo que subjugam a alma ldquoPara natildeo
sermos expulsos daquelas escadasrdquo ndash as de Jacoacute ndash ldquocomo profanos e imundosrdquo222 faz-
se necessaacuteria uma devida purificaccedilatildeo ideia que integra grande parte das religiotildees
gregas misteacutericas conhecidas ndash sobre as quais Pico certamente tinha
conhecimento223
Que outra coisa de fato querem significar nos misteacuterios gregos
os graus habituais dos iniciados admitidos no misteacuterio atraveacutes
de uma purificaccedilatildeo obtida com a moral e com a dialeacutetica artes
que jaacute dissemos serem quase purificatoacuterias [] Quando
estavam preparados sobrevinha aquela epopteia isto eacute a
visatildeo das coisas divinas atraveacutes da luz da teologia224
A epopteia corresponde a um estado de arrebatamento atribuiacutedo ao nuacutecleo dos
Misteacuterios de Elecircusis Apoacutes cerca de um ano ultrapassando os devidos estaacutegios o
adepto estaria pronto para atingir o estado supremo no qual ocorria a visatildeo
transcendente e transformadora correspondente ao rito final da iniciaccedilatildeo225 Embora
apenas se tenha conhecimento das manifestaccedilotildees exteriores dos misteacuterios eleusinos
e mesmo assim de forma imprecisa226 uma descriccedilatildeo aproximada da visatildeo eleusina
pode ser extraiacuteda das palavras de Platatildeo No Fedro eacute narrada a experiecircncia iniciaacutetica
de contemplaccedilatildeo que ilustra um estado bastante proacuteximo ao que provavelmente
ocorria na epopteia
221 Oratio p114 ldquoQuod si hoc idem nobis angelicam affectantibus vitam factitandum est quaeso quis Domini
scalas vel sordidato pede vel male mundis manibus attinget Impuro ut habent mysteria purum attingere nefasrdquo
222 Oratio p115 223 O tema da purificaccedilatildeo eacute central nos Misteacuterios de Elecircusis de Dioniso e nos Oacuterficos para citar os mais
conhecidos A Lacircmina de Turi por exemplo achado arqueoloacutegico pertencente ao seacuteculo IV ou III aC traz as inscriccedilotildees ldquoEu venho puro dentre os purosrdquo indicando a terminaccedilatildeo de um processo purificatoacuterio condiccedilatildeo obrigatoacuteria para a recepccedilatildeo do iniciado em dimensotildees superiores (cf KERN Orphicorum Fragmenta fr 32d)
224 Oratio p122 ldquoQuid enim aluid sibi volunt in Graecorum arcanis observati initiatorum gradus quibus primum per illas quas diximus quasi februales artes moralem et dialecticam purificatis contingebat mysteriorum susceptio Quae quid aluid esse potest quam secretioris per philosophiam naturae interpretatio Tum demum ita dispositis illa adveniebat lsquoἐ π ο π τ ε ί αrsquo idest rerum divinarum per theologiae lumen inspectiordquo
225 Giorgio COLLI A Sabedoria Grega 2012 p33 226 De acordo com Erwin RHODE (Psyche 2006 p239) apenas o lado exterior das cerimocircnias eleusinas
possuem registros Nas festividades conhecidas como ldquoPequenos Misteacuteriosrdquo de Elecircusis o adepto tambeacutem poderia vivenciar uma breve visatildeo reveladora Contudo era no interno dos ldquoGrandes Misteacuteriosrdquo ndash apreendidos pelos epoptas e mantidos em segredo ndash que se dava a visatildeo transformadora (COLLI opcit p31)
99
Eacuteramos iniciados naquela que justamente eacute chamada a mais
feliz das iniciaccedilotildees aquele rito secreto que celebraacutevamos []
Inteiramente perfeitas simples sem tremor e felizes eram as
apariccedilotildees ndash em um esplendor puro ndash em que eacuteramos iniciados e
atingiacuteamos o cume da contemplaccedilatildeo Noacutes mesmos puros natildeo
encerrados na tumba que agora levamos conosco e chamamos
corpo ligados estreitamente a ele como a ostra agrave sua concha227
Como forma complementar ou para dar relevo agrave questatildeo logo apoacutes a menccedilatildeo
agraves visotildees eleusinas Pico se remete ao conceito platocircnico da ldquoinspiraccedilatildeordquo socraacutetica
aproximando aqueles rituais do domiacutenio filosoacutefico (ldquoaquela iniciaccedilatildeo que outra coisa
pode ser senatildeo a interpretaccedilatildeo da mais oculta natureza mediante a Filosofiardquo)228
Quem natildeo quereraacute ser inspirado pelo furor socraacutetico exaltado
por Platatildeo no Fedro arrebatado em ceacutelere voo para a Jerusaleacutem
Celeste fugindo rapidamente com um bater de asas daqui isto
eacute do mundo reino do democircnio Arrebatar-nos-atildeo oacute Padres
arrebatar-nos-atildeo os furores socraacuteticos trazendo-nos para fora
da mente a tal ponto que nos coloquemos a noacutes e agrave nossa mente
em Deus229
A mencionada passagem do Fedro narra que atraveacutes de purificaccedilotildees e
iniciaccedilotildees seria possiacutevel encontrar uma libertaccedilatildeo dos males mas apenas para quem
estivesse ldquosob maniardquo ou ldquopossuiacutedordquo pelos deuses ldquona forma certardquo230 O ldquotrazer para
fora da menterdquo eacute outra forma de aludir ao veacutertice da experiecircncia miacutestica quando
ocorre o estado de ldquoecircxtaserdquo sem a mediaccedilatildeo da razatildeo O extasis literalmente lsquosair-de-
sirsquo era o instrumento para a liberaccedilatildeo cognoscitiva rompida a individualidade do
iniciado esse passava a ver aquilo que os natildeo iniciados natildeo viam231 ldquoLibertar-se da
existecircncia corporal conhecer o ecircxtase e elevar-se aos ceacuteusrdquo satildeo temas recorrentes nos
discursos socraacuteticos232 dizia Soacutecrates que ldquoos bacantes das iniciaccedilotildees natildeo satildeo senatildeo
aqueles que se entregam agrave filosofia no sentido exatordquo233 tecendo uma
correspondecircncia entre o campo filosoacutefico e os Misteacuterios que natildeo seria ignorada na
Oratio piquiana Os bacantes adeptos partiacutecipes dos misteacuterios dionisiacuteacos podiam
atingir um estado de maniacutea no qual se dava uma visatildeo do tipo relatado nas epopteias
de Elecircusis Tratar-se-ia assim como naqueles cultos de uma visatildeo de caraacuteter
227 PLATAtildeO Fedro 250 b-c 228 Cf Oratio p123 229 Oratio p123 ldquoQuis non Socraticis illis furoribus a Platone in Phaedro decantatis sic afflari non velit ut
alarum pedumque remigio hinc idest ex mundo qui est positus in maligno propere aufugiens ad caelestem Hierusalem concitatissimo cursu feratur Agemur Patres agemur Socraticis furoribus qui extra mentem ita nos ponant ut mentem nostram et nos ponant in Deordquo
230 PLATAtildeO Fedro 244c-245a 231 A questatildeo da saiacuteda de si promovida pelo ecircxtase encontra unanimidade entre vaacuterios inteacuterpretes Para maiores
detalhes veja-se recolhimento de Giorgio COLLI (2012 p18) tanto fontes antigas quanto mais recentes reconhecem a relaccedilatildeo entre ecircxtase e saiacuteda-de-si Niezsche foi um deles bem como Rodhe com seu Psiche
232 As palavras citadas estatildeo em Nicolas GRIMALDI Soacutecrates o Feiticeiro 2006 p10 O autor complementa que a preparaccedilatildeo por meio de vaacuterios tipos de exerciacutecios asceacuteticos utilizados para ldquodesatar os noacutesrdquo que prendem a alma ao corpo estatildeo na base do ensinamento socraacutetico Veja-se nesse sentido Feacutedon 64c-68b e Repuacuteblica VI 509b-c VII 517b-c
233 PLATAtildeO Feacutedon 69c-d
100
macircntico podendo assumir um aspecto de conhecimento da verdade234 Atraveacutes das
etapas iniciaacuteticas e entatildeo ldquotornados filoacutesofosrdquo conclui Pico que os iniciados seriam
ldquoinebriados na harmonia celesterdquo e por fim Baco senhor das Musas revelaria ldquoos
seus misteacuteriosrdquo ou ldquoos invisiacuteveis segredos de Deusrdquo235
4) Os mitos de Osiacuteris e de Dioniso respectivamente egiacutepcio e grego
representam partes das concepccedilotildees cosmogocircnicas presentes em algumas teogonias
que contemplam o conflito entre a Ordem e o Caos Pico certamente tinha em mente
elaborar uma siacutentese entre os dois mitos para ilustrar suas concepccedilotildees filosoacuteficas A
queda descrita no chamado ldquoMito dos Titatildesrdquo que narra o nascimento morte e
ressurreiccedilatildeo do deus Dioniso eacute parte da Teogonia das Rapsoacutedias que integra o
corpus da doutrina oacuterfica236 As Conclusiones oacuterficas mostram que Pico teve acesso
aos Hinos de Orfeu uma de suas provaacuteveis fontes de acesso ao mito Ambos os mitos
abordam a questatildeo da fragmentaccedilatildeo da unidade universal e a criaccedilatildeo da
multiplicidade levando agrave necessidade assim como nas primeiras cosmogonias
filosoacuteficas de se suplantar a dualidade e retornar agrave unidade perdida Repetem nesse
sentido a ideia de usurpaccedilatildeo do trono que representa a unidade e a fragmentaccedilatildeo
daquele que o ocupava No caso de Osiacuteris seu irmatildeo Set o assassina apoacutes lhe tirar o
trono e posteriormente o esquarteja espalhando seus pedaccedilos por todo o Egito237
Jaacute Dioniso por encontrar-se no final da linhagem genealoacutegica dos deuses recebera
de seu pai Zeus o comando do mundo deixando enciumados os Titatildes ndash divindades
dos primeiros tempos ndash que terminam por atacaacute-lo e despedaccedilaacute-lo Dos resiacuteduos
finais de Dioniso e dos Titatildes ndash jaacute que estes tambeacutem acabam exterminados ndash nascem
natildeo apenas os homens como o novo Dioniso238
Na passagem ldquodesceremos dilacerando com forccedila titacircnica o um nos muitosrdquo239
Pico deixa evidente que estaacute a relatar a particcedilatildeo e a redistribuiccedilatildeo do Uno em seu
movimento de descese conteuacutedo que se encontra na raiz da ideia de ldquoquedardquo da
unidade ndash embora natildeo se trate da Queda original240 A concepccedilatildeo do distanciamento
da unidade encontra-se na origem do vetor que impulsiona os vaacuterios modelos de
movimento asceacutetico especialmente aqueles do paganismo Haacute que se observar que
grande parte dos mitos cosmogocircnicos lida com a reconstituiccedilatildeo da multiplicidade e o
necessaacuterio esforccedilo para que se refaccedila a unidade e para sua preservaccedilatildeo Assim em
paralelo ao nascimento de um novo Dioniso em acircmbito grego tem-se no mito
egiacutepcio a reconstituiccedilatildeo do corpo de Osiacuteris por sua esposa Iacutesis permitindo desse
234 COLLI opcit pp17-19 235 Cf Oratio p 123 236 Alberto BERNABEacute Hieros Logos - Poesia oacuterfica sobre os deuses a alma e o aleacutem Satildeo Paulo 2012 p24 237 O mito de Osiacuteris tem seu principal relato em Plutarco De Iside e Osiride Set eacute identificado com o Tifeu dos
gregos e seu parentesco com os Titatildes ndash que eliminam Dioniso ndash eacute revelado no livro LXIX Para o tema veja-se J Gwyn GRIFFITHS (org) Plutarchs De Iside et Osiride University of Wales Press 1970
238 Em passagem de Olympiodoro lecirc-se ldquoIrritado contra eles [os Titatildes] Zeus os fulminou com um raio e do resiacuteduo dos vapores emitidos por eles produziu-se a mateacuteria da qual nasceram os homensrdquo (KERN Orphicorum Fragmenta fr 140 trad Alberto Bernabeacute) Para maiores detalhes veja-se BERNABEacute opcit p80 ss
239 PICO opcit p 116 ldquonunc unum in multitudinem vi titanica discerpentes descendemusrdquo 240 Alberto Bernabeacute provavelmente natildeo de forma isolada denomina a transgressatildeo cometida pelos Titatildes de
ldquopecado antecedenterdquo pelo fato de natildeo ter sido cometido pelo primeiro homem ndash caso em que seria ldquooriginalrdquo (Textos Oacuterficos y Filosofia Presocratica Edit Trotta Madrid 2004)
101
modo a concepccedilatildeo poacutestuma de seu filho Horus que representa a continuidade241
Nascimento Morte (desmembramento) e Ressurreiccedilatildeo (reconstituiccedilatildeo) constituem
em acircmbito miacutetico o triacuteplice movimento filosoacutefico que parte da Unidade fragmenta-
se na Multiplicidade e completa-se com o retorno agrave Unidade
5) A passagem biacuteblica do ldquoTabernaacuteculo de Moiseacutesrdquo narra a construccedilatildeo de um
santuaacuterio moacutevel ordenada por Deus que deveria ser realizada pelo povo hebreu
durante sua permanecircncia de quarenta anos no deserto242 A partir da estrutura
triacuteplice que se forma no templo da tradiccedilatildeo hebraica Pico concebe um percurso
asceacutetico que encontra correspondecircncia em seu modelo triaacutedico de dialeacutetica filosoacutefica
Assim como o Heptaplus apresenta a analogia do tabernaacuteculo com os trecircs mundos do
cosmo piquiano243 a Oratio faz corresponder em escala reduzida as trecircs partes do
santuaacuterio a trecircs elementos do corpo humano reafirmando a analogia mosaica entre o
homem-microcosmo e o universo-macrocosmo244 Nesse sentido a parte do
tabernaacuteculo que se encontra sob ceacuteu aberto sem proteccedilatildeo alguma corresponde aos
oacutergatildeos genitais representando o corpo material ligado aos sentidos a aacuterea
intermeacutedia do santuaacuterio jaacute protegida dos fenocircmenos da natureza encontra
correspondecircncia no coraccedilatildeo consonante agraves emoccedilotildees mas tambeacutem ao uso
instrumental da razatildeo finalmente a parte sagrada do tabernaacuteculo chamada ldquoSanto
dos Santosrdquo representa a cabeccedila sede do conhecimento superior245
Os que ainda impuros tecircm necessidade moral fiquem com o
vulgo fora do tabernaacuteculo sob o ceacuteu descoberto como os
sacerdotes da Tessaacutelia ateacute estarem purificados246
Na parte externa do tabernaacuteculo exposta a toda sorte de intempeacuteries
encontra-se o vulgo a ldquocorte inferiorrdquo247 povoada por espeacutecies animais e tambeacutem
por homens bons e maus Esse primeiro estaacutegio eacute correspondente ao grau de
conhecimento daqueles que precisam despertar atraveacutes da filosofia moral Jaacute no
interior do tabernaacuteculo niacutevel equivalente ao saber intermeacutedio inicia-se a utilizaccedilatildeo
do corpo racional embora ainda natildeo filosoacutefico
241 Osiacuteris passa a ser considerado deus dos mortos e revivendo a partir de seu filho Horus ndash associado ao Sol e
identificado por Heroacutedoto com Apolo (2 144) ndash tambeacutem o deus da renovaccedilatildeo Cabe ressaltar que a presenccedila de duas naturezas no homem que o fazem viver sob constante escolha eacute um tema eacutetico abordado por Pico em outras passagens e obras cuja derivaccedilatildeo eacute colhida de suas fontes platocircnicas Parte da natureza do homem eacute trazida dos restos de Dioniso ingeridos pelos Titatildes ndash o que lhe proporciona um componente positivo e celeste ansioso por reintegrar-se agrave sua natureza originaacuteria a outra parte eacute proveniente dos Titatildes o que inflige ao homem um elemento negativo e imbuiacutedo da marca da infraccedilatildeo por aqueles cometida
242 Cf Ecircxodo 25-27 243 Os detalhes acerca da relaccedilatildeo do tabernaacuteculo com os trecircs mundos ndash sublunar celeste e angeacutelico ndash seratildeo
abordados no Capiacutetulo VI Para um entendimento do tabernaacuteculo conforme a visatildeo miacutestica hebraica veja-se Moshe IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista 2008-b pp481-484
244 ldquoO mundo eacute chamado por Moiseacutes de homem grande de fato se o homem eacute um pequeno mundo necessariamente o mundo eacute um homem granderdquo escreveraacute Pico no Heptaplus (p 381)
245 BUSI-EBGI Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 pp 348-349 246 Oratio p120 ldquoQui polluti adhuc morali indigent cum plebe habitent extra tabernaculum sub divo quasi
Thessali sacerdotes interim se expiantesrdquo 247 Expressatildeo utilizada por BUSI-EBGI opcit p 348
102
Os que jaacute atingiram uma vida reta acolhidos no santuaacuterio natildeo
se aproximem ainda das coisas sacras mas prestem-lhes pri-
meiro serviccedilo com um noviciado dialeacutetico como zelosos levitas
da filosofia248
Ao uacuteltimo grau de eminente caraacuteter teoloacutegico Pico outorga caracteriacutesticas
filosoacuteficas confirmando sua visatildeo de perfeita concoacuterdia entre a Teologia e a Filosofia
em seu grau superior As palavras ndash atribuiacutedas a Moiseacutes ndash que finalizam sua reflexatildeo
exortam para uma preparaccedilatildeo que permita o ingresso ldquona via para a futura gloacuteria dos
ceacuteus por meio da Filosofiardquo249 Estaacutegio alcanccedilado apoacutes o ingresso no uacuteltimo grau do
tabernaacuteculo o Santo dos Santos
Por fim admitidos tambeacutem eles contemplem agora no
sacerdoacutecio da Filosofia ora o multicolor quer dizer o sideacutereo
ornamento do palaacutecio de Deus ora o candelabro das sete
chamas ora os elementos de pele ateacute que acolhidos finalmente
no tabernaacuteculo do templo por meacuterito da sublimidade teoloacutegica
usufruam retirado totalmente o veacuteu da imagem da gloacuteria de
Deus250
6) A Escola pitagoacuterica se caracterizava por um longo processo percorrido
atraveacutes da passagem por graus parte integrante da ldquobios theoretikoacutesrdquo (vida
contemplativa) agrave qual os membros se dedicavam para alcanccedilar a purificaccedilatildeo da
alma251 Embora tenha tido acesso agraves informaccedilotildees acerca das praacuteticas pitagoacutericas252
tendo conhecimento portanto dos estaacutegios de iniciaccedilatildeo pertinentes ao aprendizado
da doutrina Pico se limita na Oratio a abordar algumas normas contidas nos
akouacutesmata pitagoacutericos Os akouacutesmata eram preceitos ouvidos e retransmitidos
atraveacutes dos quais a organizaccedilatildeo pitagoacuterica se perpetuava juntamente com os sinais
de reconhecimento entre os membros os symbola253 Vaacuterias das doutrinas relatadas
por autores tardios foram transmitidas verbalmente geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo graccedilas agrave
248 Oratio p120 ldquoQui mores iam composuerunt in sanctuarium recepti nondum quidem sacra attractent
sed prius dialectico famulatu seduli levitae philosophiae sacris ministrentrdquo 249 No texto biacuteblico Moiseacutes natildeo faz referecircncia agrave filosofia trata-se de interpretaccedilatildeo de Pico Cf Oratio p120
ldquoHaec nobis profecto Moses et imperat et imperando admonet excitat inhortatur ut per philosophiam ad futuram caelestem gloriam dum possums iter paremus nobisrdquo
250 Oratio p120 ldquoTum ad ea et ipsi admissi nunc superioris Dei regiae multicolorem idest sidereum aulicum ornatum nunc caelestem candelabrum septem luminibus distinctum nunc pellicea elementa in philosophiae sacerdotio contemplentur ut postremo per theologicae sublimitatis merita in templi adita recepti nullo imaginis intercedente velo divinitatis gloria perfruanturrdquo
251 Como relata Jacircmblico (Vita Pythagorica 71-72) os estaacutegios se dividiam em periacuteodo probatoacuterio dokimasiacutea periacuteodo preparatoacuterio paraskeiecirc e periacuteodo purificatoacuterio cathartisis no uacuteltimo grau o teleiocirctes correspondente ao fim telos eram reveladas as primeiras e uacuteltimas causas das coisas Esse testemunho eacute tambeacutem confirmado em Dioacutegenes Laeacutercio (VIII 10) que o atribui a Timeu
252 Pico teve acesso agraves ldquoVidasrdquo pitagoacutericas atraveacutes da leitura de Porfiacuterio e Dioacutegenes Laeacutercio nas traduccedilotildees de Ficino e atraveacutes da leitura direta de Jacircmblico do qual possuiacutea a Vida de Pitaacutegoras (cf ldquoBiblioteca di Picordquo in GARIN 2011 p109)
253 Aristoacuteteles em sua obra Sobre os Pitagoacutericos (fr195) relatada por Dioacutegenes Laeacutercio (VIII 34-5) expotildee e analisa vaacuterios akouacutesmata como a abstenccedilatildeo de favas e o impedimento de se tocar em galo branco ou em peixes sagrados O Estagirita contudo natildeo pocircde decifrar o que havia por baixo de seu simbolismo Alguns akouacutesmata foram recolhidos em uma lista conservada por Porfiacuterio em seu Vida de Pitaacutegoras com comentaacuterios de Aristoacuteteles referentes ao assunto Veja-se tambeacutem Jacircmblico Vita Pythagorica 82
103
manutenccedilatildeo de tal oralidade254 Como as doutrinas da escola eram consideradas um
segredo e sua propagaccedilatildeo estritamente reservada aos adeptos os iniciados
pitagoacutericos apreendiam seus conteuacutedos e os memorizavam A transmissatildeo dos
akouacutesmata se dava atraveacutes de enunciados enigmaacuteticos de indecifraacutevel entendimento
e Pico parece ter extraiacutedo suas interpretaccedilotildees de fontes neoplatocircnicas255
Exortar-nos-aacute [Pitaacutegoras] em primeiro lugar a natildeo nos
sentarmos em cima do alqueire isto eacute natildeo deixarmos inativa a
parte racional com a qual a alma tudo mede julga e examina
mas antes dirigi-la e mantecirc-la desperta com o exerciacutecio e as
regras da dialeacutetica256
Na passagem acima Pico leitor de Jacircmblico alude de forma indireta aos
especiacuteficos exerciacutecios (aacuteskesis) para o desenvolvimento da parte racional da alma
integrantes da biacuteos pitagoacuterica Dentre eles embora natildeo mencionados havia a
preocupaccedilatildeo com a dieteacutetica a utilizaccedilatildeo da muacutesica para fins terapecircuticos os
exerciacutecios voltados agrave contemplaccedilatildeo257 e os exerciacutecios para a memoacuteria258 Aleacutem desses
uma praacutetica necessaacuteria consistia apoacutes os graus iniciais do discipulado em
permanecer em silecircncio por cinco anos atraveacutes do qual as experiecircncias iniciaacuteticas se
mantinham como prerrogativas exclusivas de seus iniciados259 Voltando aos
preceitos da transmissatildeo oral Pico prossegue com a interpretaccedilatildeo de outro
akouacutesmata que se coaduna com sua proacutepria filosofia
Indicar-nos-aacute entatildeo duas coisas que acima de tudo devemos
evitar urinarmos voltados para o sol e cortarmos as unhas
durante o sacrifiacutecio Soacute quando tivermos expulso de noacutes
mediante a moral os turvos apetites da voluptuosidade e
tivermos cortado as garras aduncas da ira removidos os
aguilhotildees da alma soacute entatildeo comeccedilaremos a tomar parte nos
sacros misteacuterios de Baco260
254 Apoacutes o esfacelamento das comunidades pitagoacutericas os membros dispersos mais antigos continuavam a fazer
dos akouacutesmata seu guia (cf JAcircMBLICO Comm Mat) 255 Cf notas de Eugenio Garin agrave ediccedilatildeo do De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 256 Oratio p126 ldquoPraecipiet primo ne super modium sedeamus idest rationalem partem qua anima omnia
metitur iudicat et examinat ociosa desidia ne remittentes amittamus sed dialectica exercitatione ac regula et dirigamus assidue et excitemosrdquo
257 O vegetarianismo era praticado pelos pitagoacutericos numa eacutepoca em que o sacrifiacutecio animal era um dos pilares da cultura grega Os exerciacutecios de contemplaccedilatildeo estavam diretamente relacionados agraves especulaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas pitagoacutericas em clara sintonia com a concepccedilatildeo grega do vocaacutebulo θεωρία (theoriacutea) que carrega o significado de ldquoespeculaccedilatildeo ou vida contemplativardquo Nesse sentido a tradiccedilatildeo reconhece as especulaccedilotildees engendradas na escola pitagoacuterica tendo aiacute se originado o ideal grego de philosophia e theoriacutea (cf JAcircMBLICO Vita Pythagorica respectivamente 85 163-164)
258 O membro da koinoniacutea pitagoacuterica era instruiacutedo a dedicar um periacuteodo especiacutefico do dia para a praacutetica da anamneacutesis ldquoAcreditavam que se deveria reter e conservar na memoacuteria tudo aquilo que era ensinado e escutado[hellip] de forma que o pitagoacuterico natildeo se levantava da cama antes de ter chamado agrave memoacuteria aquilo que havia acontecido no dia anteriorrdquo (Aristoacutexeno 58 D1 DK Jacircmblico VP 164-166)
259 A propoacutesito dessa passagem lecirc-se em Jacircmblico que ldquode todas as provas de autocontrole aquela de frear a liacutengua eacute certamente a mais dura como bem demonstram aqueles que instituiacuteram os Misteacuteriosrdquo (VP 71-72)
260 Oratio p126 ldquoTum cavenda in primis duo nobis significabit ne auf adversus Solem emingamus auf inter sacrificandum unguem resecemus Sed postquam per moralem et superfluentium voluptatum eminxerimus appetentias et unguium praesegmina quasi acutas irae prominentias et animorum aculeos resecuerimus tum demum sacris idest de quibus mentionem fecimus Bacchi mysteriis []rdquo
104
Apesar de o iniacutecio do trecho acima natildeo poder ser elucidado a analogia com os
misteacuterios baacutequicos colocada como final do processo enfatiza o formato triaacutedico
repetido por Pico mais uma vez o adepto apoacutes ter passado pelos graus de purificaccedilatildeo
moral e intelectual-dialeacutetica eacute tomado por uma visatildeo final transformadora (os
sagrados misteacuterios de Baco) ou em termos filosoacuteficos consegue a unidade com o
Inteligiacutevel Apoacutes atingido tal estaacutegio seraacute necessaacuterio conservaacute-lo com a devida
alimentaccedilatildeo da alma
Aconselhar-nos-aacute por fim a alimentar o galo isto eacute a saciar
com soacutelida alimentaccedilatildeo e com a celeste ambrosia das coisas
divinas a parte divina da nossa alma261 []Eacute este o galo que
Soacutecrates na hora da morte no momento em que esperava
reunir o divino da sua alma agrave divindade de tudo e jaacute afastado do
perigo de qualquer doenccedila corpoacuterea considerava que devia a
Esculaacutepio isto eacute ao meacutedico da alma262
7) Em seus registros extraiacutedos dos Oraacuteculos Caldeus263 Pico encontra outro
modelo para comprovar sua concepccedilatildeo da triacuteplice via para a verdade em que se
repete o processo iniciado com a filosofia moral continuado com a dialeacutetica e
concluiacutedo nesse caso com a Teologia Observe-se a semelhanccedila do mito da alma
alada cuja narraccedilatildeo eacute atribuiacuteda a Zoroastro com o Mito do Cocheiro narrado no
Fedro264
Escrevem os inteacuterpretes caldaicos que Zoroastro havia dito ser a
alma alada e que quando lhe caem as asas se precipita no
corpo e volta a voar para o ceacuteu quando lhe tornam a crescer
Tendo-lhe os disciacutepulos perguntado de que modo poderiam
261 PORFIacuteRIO Vita Pythagorica 42 JAcircMBLICO Protrepticus 21 Vejam-se ainda os comentaacuterios de FICINO
acerca do simbolismo pitagoacuterico (Commentariolus in symbola Pyth in Supplementum Ficinianum II) Referecircncias conforme notas de GARIN agrave ediccedilatildeo de De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942
262 A passagem referida a Soacutecrates encontra-se em PLATAtildeO Feacutedon 118a Cf Oratio p126 ldquoPostremo ut gallum nutriamus nos admonebit idest ut divinam animae nostrae partem divinarum rerum cognitione quasi solido cibo et caelesti ambrosia pascamus []Hunc gallum moriens Socrates cum divinitatem animi sui divinitati maioris mundi copulaturum se speraret Aesculapio idest animarum medicordquo []
263 A atribuiccedilatildeo feita a Zoroastro das sentenccedilas presentes nos Oraacuteculos Caldeus eacute uma provaacutevel inferecircncia de George Plethon no que foi seguido por Marsiacutelio Ficino em sua Theologia platocircnica (Cf BIDEZ - CUMONT Les Mages helleacuteniseacutes Paris 1938) Pico cita na Oratio os oraacuteculos dos Magos Ezra Zoroastro e Melchiar menciona tambeacutem ldquoEvantes o persa que explica a teologia caldeiardquo e entre essas fontes indica certos textos que ldquoentre os gregos circularam de forma incompletardquo Os textos que circularam entre os gregos de forma incompleta provavelmente satildeo os recolhidos inicialmente por Miguel Psello (que os denomina ldquoditos caldeusrdquo) e depois por George Plethon (que os atribuiacutea aos Magos descendentes de Zoroastro) Cf Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquoOratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin 2013 pp9-61 Em carta a Ficino de 1486 Pico menciona ainda ldquoum livreto sobre os dogmas da teologia caldaica com uma divina e rica elucidaccedilatildeo dos Persas Gregos e Caldeus a propoacutesito de tais dogmasrdquo (apud KRISTELLER Supplementum Ficinianum 1937 pp 272-273) Uma nota na ediccedilatildeo do De Hominis Dignitate etc (1942 p128) confirma Plethon juntamente com Miguel Psello como fontes de acesso de Pico aos Oraacuteculos
264 Cf PLATAtildeO Fedro 246 ss
105
tornar a alma apta para o voo com asas bem plumadas disse
lsquoregai as asas com a aacutegua da vidarsquo265
Na sequecircncia da narrativa piquiana os disciacutepulos de Zoroastro teriam lhe
perguntado como poderiam obter tais aacuteguas A resposta introduz por meio de uma
paraacutebola (ldquoparabolamrdquo) extraiacuteda da boca do profeta um nuacutecleo epistemoloacutegico que
Pico faraacute corresponder ao sistema que estaacute a defender
lsquoO paraiacuteso de Deus eacute banhado e irrigado por quatro rios a partir
daiacute podereis atingir as aacuteguas salutares O nome daquele que
corre de setentriatildeo eacute Pischon que significa justiccedila o que vem
do ocaso chama-se Dichon isto eacute expiaccedilatildeo o que vem do
oriente eacute Chiddekel e significa luz por fim aquele que corre do
sul chama-se Perath que podemos interpretar como feacutersquo266
O modelo de quatro rios encontra-se no Gecircnesis267 e natildeo se sabe de quais
fontes Pico colheu a passagem considerada caldaica268 Aos quatro paradigmas
relacionados agrave justiccedila expiaccedilatildeo luz e feacute o autor faz corresponder um processo
relacionaacutevel agrave tripartita philosophia
Devemos purificar a viscosidade dos olhos com a ciecircncia moral
como com ondas ocidentais devemos dirigir atentamente o
olhar com a dialeacutetica como com um niacutevel boreal devemos nos
habituar a suportar na contemplaccedilatildeo da natureza a ainda fraca
luz da verdade primeiro indiacutecio do sol nascente ateacute que
finalmente com a meditaccedilatildeo teoloacutegica e o santiacutessimo culto de
Deus possamos aguentar vigorosamente como aacuteguias do ceacuteu o
fulgurante esplendor do sol do meio-dia269
265 Oratio p128 ldquoScribunt interpretes Chaldaei verbum fuisse Zoroastris alatam esse animam cumque alae
exciderent ferre illam praeceps in Corpus tum illis subcrescentibus ad superos revolare Percunctantibus eum discipulis alis quo pacto bene plumantibus volucres animos sortirentur lsquoirrigetis dixit alas aquis vitaersquordquo
266 Conforme as palavras atribuiacutedas a Zoroastro (Oratio p 128) ldquoQuattuor amnibus paradisus Dei abluitur et irrigatur indidem vobis salutares aquas hauriatis Nomen ei qui ab aquilone Pischon quod rectum denotat ei qui ab occasu Dichon quod expiationem significat ei qui ab ortu Chiddekel quod lumen sonat ei qui a meridie Perath quod pietatem interpretari possumusrdquo
267 Gecircnesis 2 10-14 ldquoNo Eacuteden nascia um rio que irrigava o jardim e depois se dividia em quatro O nome do primeiro eacute Pisom Ele percorre toda a terra de Havilaacute onde existe ouro [] O segundo que percorre toda a terra de Cuxe eacute o Giom O terceiro que corre pelo lado leste da Assiacuteria eacute o Tigre E o quarto rio eacute o Eufratesrdquo
268 No periacuteodo de redaccedilatildeo da Oratio Pico encontrava-se sob orientaccedilatildeo de Flavio Mitridate e cita em carta endereccedilada a Ficino n0 outono de 1486 seus estudos caldaicos (Supplementum Ficinianum pp 272-3) ldquoChaldaici hi libri sunt si libri sunt et non thesaurirdquo Pico tinha agrave disposiccedilatildeo alguns textos escritos em uma mescla de aramaico e hebraico conforme se extrai de alguns fragmentos Por exemplo os nomes dos rios paradisiacuteacos conforme constam no manuscrito Palatino parecem estar em caracteres etioacutepicos ou em liacutengua aramaico-hebraica conforme notou Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1987) Veja-se para toda a questatildeo Stephen FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) 1998 pp 13 486-87
269 Oratio p128 ldquo[] profecto nihil aliud nisi ut morali scientia quasi undis hibericis oculorum sordes expiemus dialectica quasi boreali amussi illorum aciem liniemus ad rectum Tum in naturali contemplatione debile adhuc veritatis lumen quasi nascentis solis incunabula pati assuescamus ut tandem per theologicam pietatem et sacratissimum Dei cultum quasi caelestes aquilae meridiantis solis fulgidissimum iubar fortiter perferamusrdquo
106
Nesta uacuteltima passagem para conseguir estabelecer uma simetria entre seu
pressuposto processo triaacutedico e as quatro qualidades postuladas pelos caldeus Pico
insere um intervalo no lugar de um dos quatro elementos do modelo caldaico como
se fosse um niacutevel preparatoacuterio colocado antes da etapa final teoloacutegica ldquodevemos nos
habituar a suportar na contemplaccedilatildeo da natureza a ainda fraca luz da verdaderdquo270 Tal
inserccedilatildeo que representa o primeiro contato com as ldquofaiacutescasrdquo iniciais da verdade
permite que seja mantida a analogia entre os trecircs ldquomomentosrdquo do processo filosoacutefico
e a misteriologia caldaica A despeito da impossibilidade de elucidaccedilatildeo do significado
dos rios no mito acima descrito torna-se relevante o esforccedilo realizado pelo escritor
para alcanccedilar uma simetria conceitual entre os conteuacutedos Sob tal prisma a resposta
para a questatildeo de como renovar as asas e tornaacute-las aptas para novos voos encontra-se
no caminho que se inicia com a filosofia moral se desenvolve por meio dos exerciacutecios
dialeacuteticos e se conclui na meditaccedilatildeo teoloacutegica O trecho faz menccedilatildeo ainda a ciclos
relacionados agrave luz solar o que leva Pico ao teacutermino de sua argumentaccedilatildeo a declarar
ter encontrado semelhanccedila com a concepccedilatildeo triaacutedica dos periacuteodos do dia ldquomatutinos
vespertinos e meridianosrdquo cantados primeiramente por Davi e em seguida
explicados por Agostinho271 Os trecircs periacuteodos se referem a fases do conhecimento do
homem sendo que o uacuteltimo referente agrave ofuscante luz do meio-dia encontra eco na
regiatildeo alcanccedilada atraveacutes da contemplaccedilatildeo conforme se conclui no final da exposiccedilatildeo
Esta eacute a luz meridional que inflama os Serafins e do mesmo
modo ilumina os Querubins272
Os sete modelos acima expostos cada qual pertencente a uma distinta
tradiccedilatildeo seja filosoacutefica teoloacutegica ou misterioloacutegica embora natildeo sistematizados pelo
Autor na forma aqui apresentada e aparentemente lanccedilados no texto qual uma
profusatildeo de referecircncias sem qualquer viacutenculo conceitual representam paradigmas
empregados para sustentar a ideia postulada na obra da existecircncia de formatos
270 Observe-se que nessa sentenccedila natildeo eacute feita correspondecircncia alguma com os niacuteveis da filosofia postulados pelo
autor enquanto agraves outras trecircs sentenccedilas Pico faz corresponder os graus da filosofia moral relacionada ao ocaso-ocidente-expiaccedilatildeo da passagem caldaica da dialeacutetica relacionada ao norte-boreal-justiccedila e por uacuteltimo da teologia que Pico relaciona ao sol do meio-dia e agrave feacute
271 Cf Oratio p128 ldquoHae illae forsan et a Davide decantatae primum et ab Augustino explicatae latius matutinae meridianae et vespertinae cognitionesrdquo As passagens mencionadas se encontram em Salmos 55 17 (Vulgata 54) Agostinho De Genesi ad Litteram IV 47 Conforme Agostinho em seu Comentaacuterio ao Gecircnesis ldquoo universo pode apresentar ao mesmo tempo o dia onde estaacute o sol a noite onde natildeo estaacute a tarde de onde o sol se afasta a manhatilde aonde se aproxima [] E noacutes natildeo podemos contemplar tudo isso ao mesmo tempo e natildeo devemos equiparar esta situaccedilatildeo terrena e o circuito temporal e local da luz corpoacuterea agravequela paacutetria celestial onde eacute sempre dia na contemplaccedilatildeo da Verdade incomutaacutevel sempre tarde no conhecimento da criatura em si mesma sempre manhatilde a partir deste conhecimento ao louvor do Criador Pois ali natildeo se fez tarde pela ausecircncia da luz superior mas pela diversidade de conhecimento inferior nem se faz manhatilde como o conhecimento matutino sucede agrave noite da ignoracircncia mas porque eleva para a gloacuteria do Criador o conhecimento vespertino Finalmente tambeacutem o salmista [Davi] natildeo mencionando a noite diz lsquode tarde pela manhatilde e ao meio dia cantarei e anunciarei e ouviraacutes a minha vozrsquordquo
272 Oratio p128 ldquoHaec est illa lux meridialis quae Seraphinos ad lineam inflammat et Cherubinos pariter illuminatrdquo
107
triaacutedicos asceacuteticos que se repetem sob registros diacutespares A partir de tal enfoque a
concepccedilatildeo de domiacutenio da natureza sugerida por alguns dos autores humanistas que
trataram da dignidade do homem antes de Pico eacute suplantada pela ideia de
transcendecircncia de cada um de seus princiacutepios (vegetal animal racional intelectual)
que encontra eco em um percurso de dignificaccedilatildeo (ou posicionamento espacial) em
acircmbito cosmoloacutegico Essa experiecircncia eacute entendida pelo escritor como um caminho a
ser percorrido com o auxiacutelio das corretas ferramentas ndash a teurgia dos Misteacuterios os
exerciacutecios dialeacuteticos filosoacuteficos a contemplaccedilatildeo do ldquosol do meio-diardquo agostiniano
Os sete paradigmas confirmam que a uacuteltima etapa em qualquer dos caminhos
percorridos eacute preenchida pela experiecircncia de encontro com um centro de unidade
final da trajetoacuteria em que o movimento asceacutetico atinge o Absoluto Para Pico esse eacute
um momento de cunho teoloacutegico ndash descartado de qualquer dogma como visto na
discussatildeo do Capiacutetulo III Esse eacute o significado de apoacutes a ldquofilosofia ter acalmado os
conflitos da opiniatildeordquo apoacutes ldquoa dialeacutetica ter acalmado a razatildeordquo entatildeo sim ldquoa teologia
mostraraacute o caminhordquo273 Destarte ao termo de qualquer dos modelos encetados
conhece-se uma dissoluccedilatildeo ndash mesmo no percurso filosoacutefico caso da ldquofaiacutescardquo platocircnica
ndash em prol daquela uniatildeo A esse gecircnero de ocorrecircncia Pico remete a experiecircncia de
Moiseacutes no monte Sinai ao tratar da questatildeo filosoacutefica do amor-Eros ldquoMoiseacutes amou o
Deus que viu e promulgou ao povo aquilo que antes tinha visto na montanha como
contempladorrdquo274
A epopteia de Elecircusis a illuminatio angeacutelica a pertenccedila ao Santo dos Santos
do tabernaacuteculo Giovanni Pico natildeo estava a lanccedilar dados de forma aleatoacuteria em seu
texto Cada referecircncia eacute um tijolo colocado para erigir seu projeto e afirmar sua
mensagem dentro de um planejamento No caso dos paradigmas acima sua intenccedilatildeo
eacute mostrar que o percurso de etapas ascensionais se faz necessaacuterio para a descoberta
de ensinamentos que levam agrave Unidade e que em razatildeo de sua preciosidade
encontram-se custodiados pelo segredo De forma mais patente esse tema seraacute
estabelecido no Heptaplus como seraacute visto a partir do proacuteximo Capiacutetulo
273 Oratio p119 (ldquoA dialeacutetica acalmaraacute a razatildeo a filosofia natural acalmaraacute os conflitos da opiniatildeo a teologia
mostraraacute o caminhordquo) ldquoSedabit dialectica rationis turbas inter orationum pugnantias et syllogismorum captiones anxie tumultuantis Sedabit naturalis philosophia opinionis lites et dissidia quae inquietam hinc inde animam vexant distrahunt et lacerant []Ad illam [theologia] ipsa et viam monstrabit et comes ducet quae procul nos videns properantesrdquo
274 Oratio p112 Para esse modelo de experiecircncia de religaccedilatildeo com o Espiacuterito de Deus Pico se fundamenta em teoacutelogos como Fiacutelon Gregoacuterio de Nissa (La vita di Mosegrave II 182) e sobretudo Dioniacutesio Areopagita (Cf Pier Cesare BORI ldquoI tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandolardquo in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996)
108
CAPIacuteTULO V
RESSONAcircNCIAS CABALIacuteSTICAS E SEU INFLUXO SOBRE PICO
Ao redor de 1480 o papa Sisto IV promove a traduccedilatildeo para o latim de alguns
textos de conteuacutedo cabaliacutestico com o objetivo de apresentaacute-los ao mundo cristatildeo275
Giovanni Pico agrave eacutepoca muito jovem narraria em seu Discurso anos depois como
teria encontrado e adquirido tais livros ldquocom natildeo pequeno dispecircndio de dinheirordquo
lendo-os ldquocom suma diligecircncia e incansaacutevel estudordquo276 Embora essas traduccedilotildees natildeo
tenham sido utilizadas diretamente nas obras piquianas o intento do papa eacute
sugestivo de um tipo de interesse que tomava forma naquele seacuteculo mesmo que de
forma muito tiacutemida277 Cerca de duzentos anos antes de Pico Ramon Llull na
Espanha havia tentado apresentar a Cabala judaica ao mundo latino mas sua
tentativa fora em breve esquecida278 no lsquo400 os estudos cabaliacutesticos ganharam certa
repercussatildeo entre alguns autores italianos especialmente em Florenccedila279 contudo e
de forma bastante consensual Pico foi o primeiro a introduzir com eficaacutecia a Cabala
no pensamento cristatildeo280 razatildeo suficiente para que o estudioso do Autor aproxime
seu olhar aos principais conceitos da doutrina
O Mirandolano define na Oratio o significado de ldquocabalardquo ldquoverdadeira
interpretaccedilatildeo da lei dada a Moiseacutes por Deus que para os Hebreus tem o mesmo
275 Cf PICO Oratio p159 Quais fossem esses textos e quem teria sido o tradutor natildeo eacute informado na obra
piquiana Entretanto sobre o mesmo argumento voltou-se o teoacutelogo alematildeo Konrad Summenhart em 1494 em sua obra Liber bipartitus informando que os textos cabaliacutesticos que interessaram ao papa teriam sido o Seder lsquoolam e o Neophastis A data de tais traduccedilotildees natildeo eacute informada mas deve ser estabelecida entre 1471 e 1484 periacuteodo do papado de Sisto IV Acerca da obra e comentaacuterios de Summenhart leia-se Guido BARTOLUCCI Marsilio Ficino e le Origini della Cabala Cristiana in Giovanni Pico e la Cabbalagrave (org F Lelli) 2014 p54
276 Cf PICO ibid p161 277 Eram poucos os que haviam ouvido falar das doutrinas cabaliacutesticas Tanto na corte pontifiacutecia quanto nas
universidades da Itaacutelia e da Europa nenhum cristatildeo fazia ideia do que fosse a Cabala ndash e nem estava interessado em saber (cf BUSI-EBGI Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 p296) O proacuteprio Pico conta na Apologia (ed Fornaciari 2010 p176-77) que um dos Padres ndash durante o interrogatoacuterio que se seguiu agrave publicaccedilatildeo das Conclusiones ndash perguntara quem era esse tal sujeito chamado ldquoCabalardquo Por outro lado nos casos em que a Cabala natildeo era completamente desconhecida seu estudo era visto como uma ldquobizarrice anedoacuteticardquo e natildeo como uma discussatildeo seacuteria conforme observou Cesare VASOLI em seu ldquoPrefaacuteciordquo (p XXV) a Giovanni Pico della Mirandola (GARIN 2011)
278 O teoacutelogo e filoacutesofo catalatildeo Ramon Llull florescido no seacuteculo XIII e conhecido em espanhol como Raimundo Lulio escreveu em aacuterabe latim e em occitano (langue doc) tendo recebido a alcunha de Arabicus Christianus (aacuterabe cristatildeo)
279 Interessaram-se pelo estudo da Cabala de forma a deixar registros Pier Leone da Spoleto Egidio da Viterbo e Domenico Grimani (Cf Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p 56)
280 Efetivamente Pico mostra ter descoberto confirmaccedilotildees para a revelaccedilatildeo cristatilde no coraccedilatildeo da miacutestica hebraica como antecipado nas Conclusiones e confirmado no Heptaplus A teologia cabaliacutestico-cristatilde de Pico interessaria no Quinhentos a filoacutesofos e miacutesticos sobretudo do ambiente franciscano tendo sido aperfeiccediloada por Johann Reuchlin e Cornelius Agrippa e reutilizada mais tarde pelos ldquoplatocircnicos de Cambridgerdquo Esses autores se serviram de muitas traduccedilotildees latinas realizadas por judeus convertidos ao Cristianismo Na Cabala cristatilde foram mantidos elementos hermenecircuticos maacutegicos e de natureza teosoacutefica sendo retirados os elementos ritualiacutesticos da religiatildeo judaica Sua originalidade em apresentar a Cabala ao mundo cristatildeo eacute confirmada por FORNACIARI (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 pp 14 23) BACCHELLI (Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 np56) CASSUTO (Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p319) GARIN (Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina 2011 p101) SECRET (Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Cap) entre outros
109
significado que receptiordquo uma doutrina recebida ldquopor meio de sucessivas revelaccedilotildees
que um recebia do outro como por direito hereditaacuteriordquo281 De fato a palavra hebraica
qabbalah significa ldquorecepccedilatildeordquo ldquotradiccedilatildeordquo ou ldquoaceitaccedilatildeordquo indicando a transmissatildeo de
doutrinas secretas do misticismo judaico e particularmente caracterizando um
movimento de pensamento de conotaccedilatildeo esoteacuterica282 Em seu valor de ldquorecepccedilatildeordquo
enuncia o conceito de continuidade com o passado e tambeacutem o sentido de
responsabilidade que essa heranccedila espiritual comporta Cada geraccedilatildeo eacute chamada a
receber da precedente o conjunto de valores e ensinamentos secretos sobre os quais
se funda o Judaiacutesmo devendo transmiti-la agrave sucessiva283 O termo que pode ser
encontrado com diferentes grafias ndash entre as quais ldquocabalardquo forma latina empregada
por Giovanni Pico e aqui utilizada ndash284 teria aparecido na literatura apenas no seacuteculo
XI em um escrito do poeta e filoacutesofo Salomon Ibn Gabirol285 enquanto que sua plena
conotaccedilatildeo de conhecimento secreto ganharia corpo por volta do tardio seacuteculo XIII
partindo do ciacuterculo de Isaac o Cego no sul da Franccedila286
A Cabala italiana que desde sua origem ateacute o iniacutecio do seacuteculo XVI exerceu
influxos mais efetivos sobre os pensadores cristatildeos renascentistas que se
interessaram pelo assunto tem sua ldquoespinha dorsalrdquo formada por trecircs cabalistas
como informa Moshe Idel Abraham Abulafia que compocircs a maior parte de suas
obras na Itaacutelia Menahem Recanati e o autor do livro Maarekhet haElohut (A Ordem
da Divindade)287 De acordo com o comentarista os trecircs tinham em comum a
caracteriacutestica conceitual da incompatibilidade com a tradicional visatildeo miacutetica da
divindade apresentando concepccedilotildees mais filosoacuteficas Tal forma diferenciada fez com
que por um lado os cabalistas espanhoacuteis que chegavam agrave Itaacutelia estranhassem as
interpretaccedilotildees da escola italiana por outro que os ciacuterculos neoplatocircnicos de Florenccedila
tivessem um encontro sem atritos com a teologia ldquoquaserdquo filosoacutefica dos rabinos
Abulafia e Recanati288 A forma de Cabala protagonizada na Itaacutelia de qualquer forma
manteve os temas fundamentais do movimento relacionados com a emanaccedilatildeo do
princiacutepio divino e com a concepccedilatildeo de que cada parte da criaccedilatildeo responde a uma
secreta harmonia de desenho transcendente Para melhor entender o emprego da
281 Cf PICO Oratio pp 157 159 Veja-se tambeacutem Apologia (ed Fornaciari 2010) p 29 282 De acordo com IDEL (2008-a p17) desde o seacuteculo X haacute testemunhos da existecircncia de uma forma especiacutefica
de tradiccedilatildeo judaica esoteacuterica mas somente a partir do seacuteculo XII comeccedilam a se organizar registros a esse respeito 283 Giulio BUSI La Qabbalah 2011 p3 284 As grafias mais utilizadas para o termo proveniente do verbo hebraico LeCaBeL (ldquoreceberrdquo) satildeo qabbalah
kabbalah ou CaBaLaacute Eacute de se notar que esta palavra eacute oxiacutetona em Hebraico mas frequentemente falada em outros idiomas tanto como paroxiacutetona (inglecircs) como agraves vezes proparoxiacutetona (espanhol)
285 Salomon Ibn-Gebirol ou Schlomo ben Judah tornou-se conhecido no mundo cristatildeo como Avicebron A atribuiccedilatildeo de ter sido o primeiro a mencionar o termo ldquocabalardquo consta na ldquoIntroduccedilatildeordquo da ediccedilatildeo em espanhol do Zohar do comentarista Leoacuten DUJOVNE (El Zohar Versioacuten Castellana Buenos Aires 1992 p XVII)
286 IDEL 2008a pp17-18 Para compor o quadro histoacuterico de desenvolvimento do misticismo hebraico satildeo relevantes tanto a obra de Gershom SCHOLEM As Grandes correntes da Miacutestica Judaica (opcit) quanto a de Giulio BUSI Introduzione a Mistica ebraica Testi della tradizione segreta del giudaismo dal III al XVIII secolo 1995
287 IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e Cabalistas 2008-b p460 O autor do Sefer Maarekhet haElohut do qual Idel menciona a ediccedilatildeo de Mantova de 1558 natildeo eacute conhecido Sabe-se da existecircncia de uma traduccedilatildeo da obra realizada por Abulafia (ibid np461)
288 IDEL ibid p460 Efetivamente a Cabala italiana era mais ldquoextaacuteticardquo (especificaccedilatildeo que seraacute vista adiante) Para Abulafia por exemplo a crenccedila nas dez Sefirot (a ser verificada adiante) era pior do que a crenccedila cristatilde na Trindade Esse uacuteltimo toacutepico eacute tratado por IDEL em sua tese de doutoramento (As obras e a Doutrina de Abraatildeo Abulaacutefia Universidade Hebraica de Jerusaleacutem 1976 pp436 ss)
110
Cabala nos estudos realizados por Pico e as fontes por ele utilizadas se faz necessaacuterio
inicialmente entender como se deu sua transmissatildeo atraveacutes da histoacuteria e na
sequecircncia quais as principais concepccedilotildees e terminologias utilizadas pelos cabalistas
1 As fontes hebraicas da tradiccedilatildeo esoteacuterica
A transmissatildeo oral
A primazia da transmissatildeo de concepccedilotildees cabalistas natildeo deve ser creditada aos
escritos que lhe foram dedicados ao contraacuterio foi a tradiccedilatildeo oral a ajudar a perpetuar
tais concepccedilotildees sendo que a ocorrecircncia de manuscritos deve ser entendida como
uma seacuterie de episoacutedios excepcionais ocorridos dentro de uma longa histoacuteria de
transmissotildees orais Pressotildees externas como perseguiccedilotildees religiosas sociais e
poliacuteticas determinavam as variaccedilotildees entre as diferentes fases do misticismo judaico e
as consequentes disposiccedilotildees entre o que seria resguardado como esoteacuterico e o que se
tornaria puacuteblico289 A diaacutespora europeia responsaacutevel por fragmentar o judaiacutesmo em
pequenas comunidades criou circunstacircncias que exigiram que a experiecircncia miacutestica
fosse confiada agrave paacutegina escrita uma forma mais concreta de ampliar sua difusatildeo natildeo
sem que se mantivesse o cuidado em preservar uma linguagem simboacutelica que
protegesse os verdadeiros significados Eis a razatildeo como observa Giulio Busi de
serem frequentes nos textos cabaliacutesticos passagens como ldquoquem eacute dotado de intelecto
entenderaacuterdquo indicando a existecircncia de uma aacuterea conceitual reservada apenas agrave
transmissatildeo oral e deixando claro que o texto escrito natildeo apresenta todas as
respostas290 A necessidade histoacuterica de se registrar de forma escrita a tradiccedilatildeo oral
remete ao periacuteodo de exiacutelio babilocircnico e estaacute bem narrada por Giovanni Pico na
Oratio
Esdras291 ao ver claramente que natildeo se podia manter a tradiccedilatildeo
fixada pelos antepassados de transmitir oralmente a doutrina
nos exiacutelios nos massacres nas fugas nos cativeiros do povo de
Israel dado que deste modo pereceriam os misteacuterios da celeste
doutrina concedidos por Deus e natildeo podendo se manter por
muito tempo a memoacuteria desta sem a interposiccedilatildeo de textos
escritos estabeleceu que reunidos os saacutebios entatildeo
sobreviventes cada um manifestasse quanto conservava
guardado na memoacuteria acerca dos misteacuterios da Lei Estes em
289 Tova SENDER Iniciaccedilatildeo agrave Cabala 1992 p9 290 BUSI La Qabbalah 2011 pp5-6 291 Pico refere-se aos livros biacuteblicos de Esdras Os dois primeiros o de Esdras e o de Neemias pertencem ao
elenco dos livros autecircnticos assumidos pela Igreja o terceiro eacute o Esdras grego o quarto eacute outro apoacutecrifo do gecircnero apocaliacuteptico Pico trabalha com o Esdras IV (cf Luiz FERACINE 1999 notas)
111
seguida chamados os escribas foram escritos em setenta
volumes292
Os primeiros sinais de uma reflexatildeo efetivamente miacutestica colocada em forma
escrita remetem ao iniacutecio do segundo seacuteculo de nossa Era periacuteodo em que se insere a
redaccedilatildeo da Mishnaacute ndash essencialmente um corpus juriacutedico Trata-se da ediccedilatildeo escrita
de grande parte da tradiccedilatildeo oral com o conteuacutedo das leis e dos costumes que foram
se enriquecendo atraveacutes de anos de convivecircncia293 Esse conjunto de tratados eacute
amplamente comentado por outro importante texto intitulado Guemaraacute Ao conjunto
Mishnaacute e Guemaraacute deu-se o nome de Talmud em suas duas versotildees uma de
Jerusaleacutem e outra da Babilocircnia294 Esses dois Talmudim (plural de Talmud)
constituem uma espeacutecie de enciclopeacutedia natildeo apenas das tradiccedilotildees legais como das
praacuteticas religiosas da exegese e das lendas difundidas em idade tardo-antiga
contendo consistentes elementos de reflexatildeo acerca de temas miacutesticos295 Ademais
era comum efetuar-se no Talmud referecircncias a partes da literatura que se
encontravam fora do Pentateuco ou seja aos conteuacutedos transmitidos oralmente Por
essa razatildeo as fontes talmuacutedicas embora escritas compotildeem o que seria a Toraacute oral
dentro da tradicional distinccedilatildeo entre lsquoToraacute escritarsquo e lsquoToraacute oralrsquo Conforme explica
Scholem296 a Toraacute escrita eacute o proacuteprio texto do Pentateuco297 jaacute a Toraacute oral eacute a soma
de tudo o que foi comentado por eruditos ou saacutebios acerca daquele corpus escrito
natildeo apenas pelos comentadores talmuacutedicos da Lei mas por todos os demais que
interpretaram o texto Retrocedendo aos tempos mosaicos e de acordo com a
tradiccedilatildeo rabiacutenica Moiseacutes teria recebido ao mesmo tempo ambas as Toraacutes no Monte
Sinai sendo que a parte referente aos ensinamentos natildeo escritos deveria ser
transmitida oralmente de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo ndash de acordo com a antiga proibiccedilatildeo ldquoo
que eacute transmitido oralmente natildeo pode ser escritordquo298 Para o Judaiacutesmo rabiacutenico tudo
quanto um erudito de qualquer eacutepoca viesse a deduzir da Toraacute estaria incluso
naquela tradiccedilatildeo oral fornecida a Moiseacutes validando-se assim a concepccedilatildeo de que as
duas Toraacutes satildeo uma soacute tradiccedilatildeo oral e palavra escrita completam-se mutuamente
292 PICO Oratio p159 ldquoEsdras tunc ecclesiae praefectus post emendatum Moseos librum cum plane
cognosceret per exilia caedes fugas captivitatem gentis Israeliticae institutum a maioribus morem tradendae per manus doctrinae servari non posse futurumque ut sibi divinitus indulta caelestis doctrinae arcana perirent quorum commentariis non intercedentibus durare diu memoria non poterat constituit ut convocatis qui tunc supererant sapientibus afferret unusquisque in medium quae de mysteriis legis memoriter tenebat adhibitisque notariis in septuaginta volumina redigerenturrdquo
293 A Mishnaacute eacute composta por 63 tratados compilados pelo Rabino Yehudaacuteh Hanassiacute no seacuteculo II dC 294 A ediccedilatildeo do Talmud da Babilocircnia eacute considerada a mais completa pois sua composiccedilatildeo iniciou durante o
exiacutelio babilocircnico em 586 aC e chegou ateacute por volta do seacuteculo V dC (cf Marcelo MAGHIDMAN Secircfer Yetsiraacute - A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico 2014 p71)
295 Maiores detalhes acerca da discussatildeo histoacuterica em torno da Mishnaacute podem ser colhidos na obra La Qabbalah de Giulio BUSI (opcit pp38-40) aleacutem de o autor apresentar uma especiacutefica bibliografia para o tema Acerca do Talmud veja-se ainda SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo 1978
296 SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo 1978 p61 297 A Toraacute eacute composta pelos 5 Livros de Moiseacutes (entre 1100 e 1300 aC) Bereshit Shemot Vaikraacute Bamidbar e
Devarim conhecidos respectivamente como Gecircnesis Ecircxodo Leviacutetico Nuacutemeros e Deuteronocircmio chamados anos depois de Antigo Testamento juntamente com os Livros de Profetas (Josueacute Juiacutezes Isaiacuteas Jeremias Ezequieletc) e Escritos (Salmos Proveacuterbios JoacuteDaniel Esdras etc) Todo esse conjunto de livros eacute chamado TaNaKh
298 MAGHIDMAN opcit p71
112
Dentre os pensadores cristatildeos Pico foi dos poucos a evidenciar o esoterismo
presente nas Escrituras como se infere a partir do destaque dado ao tema das duas
Leis recebidas por Moiseacutes A questatildeo da separaccedilatildeo entre a literalidade e oralidade
recebeu foco na Apologia depois de o tema ter se repetido em algumas passagens da
Oratio como a que narra o pedido do ldquoAltiacutessimordquo de tornar puacuteblico o primeiro
daqueles livros para ser lido pelos ldquodignos e indignosrdquo e de confiar os demais
[secretos e correspondentes agrave lei oral] ldquoapenas aos saacutebiosrdquo Em outra passagem Pico
afirma que aquele livro poderia se tornar puacuteblico ndash mantendo sua dimensatildeo secreta
preservada ndash desde que fossem observadas certas condiccedilotildees ldquoa Moiseacutes Deus ordenou
que divulgasse a lei mas que natildeo escrevesse a interpretaccedilatildeo da lei nem a divulgasse
mas a revelasse soacute a Jesus Nave [Josueacute] e este por sua vez aos sumos sacerdotes sob
o sagrado sigilo do absoluto silecircnciordquo299 Outros dois cristatildeos vaacuterios seacuteculos antes de
Pico haviam sido afetados pela temaacutetica da tradiccedilatildeo oral biacuteblica Hilaacuterio e Oriacutegenes
ambos mencionados na Oratio300
Com o passar do tempo os ensinamentos orais em geral passaram a ser
considerados como pertencentes agrave Cabala e o emprego do termo foi sendo cada vez
mais relacionado agrave transmissatildeo oral Exemplo de tal uso eacute verificado no comentaacuterio
feito por Judah Ben Barzilai no seacuteculo XII ao Secircfer Yetsiraacute ndash importante obra
cabaliacutestica a ser abordada adiante ndash ao narrar a criaccedilatildeo do Espiacuterito Santo conta o
talmudista que os saacutebios costumavam transmitir ldquoreservadamente num sussurro
atraveacutes da Cabala declaraccedilotildees dessa espeacutecierdquo301 O esoterismo deveria portanto ser
mantido por cada geraccedilatildeo em virtude da restriccedilatildeo em se confiar noccedilotildees mais
profundas aos textos escritos evitando-se que os segredos da Revelaccedilatildeo fossem
deturpados por leitores despreparados Por essa razatildeo a presenccedila de um mestre se
fazia necessaacuteria na transmissatildeo oral pois atraveacutes da relaccedilatildeo direta entre mestre e
disciacutepulo seria possiacutevel avaliar as intenccedilotildees e garantir as atitudes intelectuais e eacuteticas
do aprendiz preservava-se assim a verdade intacta
Em relaccedilatildeo aos graus que levam ao conhecimento miacutestico haacute informaccedilotildees de
que em eacutepocas mais remotas seguiam-se exigecircncias muito riacutegidas a respeito de
certos atributos morais e mesmo de traccedilos fisiognomocircnicos dos seus participantes302
Em tempos mais recentes ainda foram mantidas algumas limitaccedilotildees ao aprendizado
da Cabala como o limite miacutenimo de idade que dependendo da escola pode variar
dos trinta aos cinquenta anos Pico conhecia a restriccedilatildeo da idade mencionando-a na
Apologia ldquoEsses livros satildeo venerados com tanta devoccedilatildeo que ningueacutem pode tocaacute-los
antes de ter completado quarenta anosrdquo303 Quanto agrave trajetoacuteria iniciaacutetica natildeo haacute
evidecircncias da existecircncia de etapas preacute-definidas que o adepto devesse ou deva
299 PICO Oratio respectivamente pp159 e 155 Grifo nosso 300 Ibid p155 301 SCHOLEM Cabala-Enciclopeacutedia judaica opcit p 6 Grifo nosso 302 SENDER opcit p9 A menccedilatildeo agrave fisiognomia remete ao discipulado pitagoacuterico que talvez tenha exercido
alguma influecircncia em algum nuacutecleo cabaliacutestico posterior Natildeo encontramos em outras fontes quaisquer esclarecimentos nesse sentido
303 Apologia p31 ldquoHi libri apud hebraeos hac tempestate tanta religione coluntur ut neminem liceat nisi anos XL natum illos attingererdquo Paolo FORNACIARI informa que de acordo com a tradiccedilatildeo o estudo soacute pode ser enfrentado por indiviacuteduos do sexo masculino que tenham acima de quarenta anos (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p18)
113
cumprir para ingressar em niacuteveis distintos de conhecimento304 O que se depreende
dos comentaacuterios acerca do misticismo judaico em paralelismo com a forma de outros
percursos miacutesticos eacute que os segredos da transmissatildeo oral conduzem o proseacutelito a
atingir certo estado extaacutetico que lhe permite receber solitariamente uma Revelaccedilatildeo
Haacute portanto uma relaccedilatildeo estreita entre a transmissatildeo oral o segredo mantido
atraveacutes de tal oralidade e o estado de ecircxtase que antecede a recepccedilatildeo da Revelaccedilatildeo
O misticismo judaico e parte relevante dos exerciacutecios asceacuteticos organizam-se
de forma preciacutepua em torno agrave interpretaccedilatildeo das Escrituras Nelas se encerram os
segredos protegidos pela tradiccedilatildeo oral Em claro consenso todos os miacutesticos judeus
desde os Terapeutas descritos por Filon ateacute ao mais recente hassid concordam que a
Toraacute seja um organismo vivente animado por uma vida secreta que aguarda uma
interpretaccedilatildeo miacutestica305 Como explica Scholem a hermenecircutica dos textos sagrados
eacute uma das formas de alcanccedilar seu conteuacutedo ldquovivordquo possibilitando a ocorrecircncia de
dado momento em que a substacircncia de tal conteuacutedo eacute remodelada ao passar pela
ldquocorrente de fogo do sentimento miacutesticordquo Natildeo se contentando com um uacutenico ato
isolado de ecircxtase o miacutestico continuaraacute a buscar a revelaccedilatildeo de algo oculto que o
aproxime cada vez mais do divino306 A relaccedilatildeo entre as palavras sagradas e o segredo
que guardam estaacute tambeacutem descrita na obra cabaliacutestica Zohar ldquocada palavra da
Escritura encerra um misteacuterio supremordquo o sentido literal eacute ldquoapenas um invoacutelucrordquo e
tomaacute-lo por verdade pode ldquotrazer adversidadesrdquo agravequele que o recebe por essa forma
exterior307 Outra passagem do Zohar anuncia que nas mesmas palavras das
Escrituras com as quais se enxerga apenas o sentido literal em outro momento pode
ser enxergado um novo sentido miacutestico sendo cada palavra insubstituiacutevel para os
dois sentidos
ldquo[]assim como para o sentido literal cada palavra eacute
indispensaacutevel sem que se possa acrescer ou eliminar qualquer
uma delas assim tambeacutem para o sentido miacutestico cada palavra eacute
indispensaacutevel sem que se possa acrescer ou eliminar qualquer
palavrardquo308
O miacutestico portanto natildeo rejeita a autoridade do texto escrito ele apenas
invalida uma aparente verdade que possa se mostrar no significado literal
substituindo-a por uma interpretaccedilatildeo que decorre de intuiccedilatildeo a ser alcanccedilada
durante a reflexatildeo miacutestica309 Conforme complementa Scholem as exegeses miacutesticas
sempre partem de palavras exatas para em seguida ldquode forma genialrdquo transformar
304 BUSI opcit pp5-6 305 SCHOLEM As grandes correntes da miacutestica judaica opcit pp 15-16 Em De Vita Contemplativa obra em
que Fiacutelon aborda as seitas judaicas dos Terapeutas a Toraacute eacute relatada como algo afim a um ser vivo o sentido literal eacute o corpo enquanto a alma eacute o significado secreto debaixo da palavra escrita
306 SCHOLEM ibid p 11 Na concepccedilatildeo da ldquocorrente de fogordquo que une o adepto ao divino natildeo haacute como deixar de estabelecer uma analogia com a questatildeo filosoacutefica do ldquolampejordquo descrito por Platatildeo na Carta VII O processo filosoacutefico de conhecimento produz em dado momento uma faiacutesca e subitamente como num lampejo a alma tem uma visatildeo intelectual que pode ser comparada a uma intuiccedilatildeo
307 Zohar III 152a in VULLIAUD I p135 308 Zohar II 99a in VULLIAUD I pp137-38 309 SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo opcit pp 21-22
114
as Escrituras em um corpus simboacutelico permitindo que se abra um portatildeo atraveacutes do
qual o miacutestico passa ldquoum portatildeo que se lhe abre sempre de novordquo Assim ldquoa exegese
miacutestica esta nova revelaccedilatildeo concedida ao miacutestico tem o caraacuteter de uma chaverdquo310
Como havia escrito Oriacutegenes em contexto concernente ao esoterismo ldquoachar as
chaves certas que abriratildeo as portas eacute a grande e aacuterdua tarefardquo311 As formas para se
encontrar ldquoa chave certardquo fazem parte dos segredos protegidos pela tradiccedilatildeo oral
A literatura miacutestica
O conjunto da tradiccedilatildeo escrita cabaliacutestica eacute sustentado por dois importantes
pilares ndash o Zohar e o Secircfer Yetsiraacute ndash aos quais se acrescentam como terceiro pilar
vaacuterios textos de eacutepocas diferenciadas O Secircfer Yetsiraacute (Livro da Formaccedilatildeo) eacute um
pequeno e antigo livro metafiacutesico com apenas seis capiacutetulos Escrito provavelmente
em Terra de Israel estima-se que sua data de composiccedilatildeo se situe entre os seacuteculos II
e III (podendo chegar ateacute o VI dC)312 estabelecendo-se assim como o texto judaico
mais antigo de caraacuteter propriamente miacutestico mesmo em se levando em conta a
possibilidade de ter sofrido alteraccedilotildees ao longo dos seacuteculos313 Sua primeira versatildeo
impressa realizada em Mantova e datada de 1562 tem sido a mais aceita embora
muitas coacutepias circulassem antes no universo judaico e principalmente nos ciacuterculos
fechados dos cabalistas sob formas natildeo impressas314
Os comentaacuterios ao Secircfer Yetsiraacute fazem parte integrante da literatura miacutestica
hebraica e foram amplamente utilizados por seus estudiosos Entre esses sabe-se da
existecircncia de um relevante comentaacuterio perdido realizado por Abulafia que se
fundamentou em sua admiraccedilatildeo por Maimocircnides ndash autor que mesmo natildeo tendo
produzido literatura miacutestica chegou a escrever um comentaacuterio ao primeiro capiacutetulo
do Secircfer Yetsiraacute315 Malgrado a significativa quantidade de comentaacuterios que ensejou
310 SCHOLEM ibid pp 20-23 311 A passagem referida a Oriacutegenes encontra-se em Selecta in Psalmos ref Salmo I in MIGNE Patrologia
Graeca XII 1080 apud SCHOLEM 1978 p 20 312 SCHOLEM As grandes correntes da miacutestica judaica opcit p83 Nome de Deus e Teoria da linguagem
opcit p21 Para BUSI a data de compilaccedilatildeo do Secircfer Yetsiraacute situa-se entre os seacuteculos VI e VII (2011 p9 e 46 ss) 313 O Secircfer Yetsiraacute pode ser classificado naquilo que os hebreus chamam de Maassecirc Bereshit (Atos de Criaccedilatildeo)
conjunto representado por textos cosmoloacutegicos ou cosmogocircnicos relacionados agrave Criaccedilatildeo do Universo ndash o todo ou os seres em particular ndash em distinccedilatildeo aos escritos de Maassecirc Mercavaacute relacionados agrave natureza divina ao trono celestial e agrave hierarquia dos Anjos O nome ldquomercavaacuterdquo relaciona-se agrave visatildeo da carruagem de fogo subindo aos ceacuteus que estaacute descrita em Ezequiel 101 e Isaiacuteas 61-2 (cf MAGHIDMAN opcit p107)
314 A ediccedilatildeo de Mantova apresenta tanto uma versatildeo curta do Secircfer Yetsiraacute acrescida de comentaacuterios quanto uma versatildeo longa inclusa em seu apecircndice embora existam bem mais do que duas versotildees do Secircfer Yetsiraacute como pode ser verificado em estudo comparativo efetuado por Hayman no qual satildeo apresentadas dezenove versotildees seis variaccedilotildees do texto longo dez da versatildeo curta e outras trecircs frutos do comentaacuterio de Saadia Gaon (892-943) A uacuteltima versatildeo comentada por Gaon tem a data precisa do ano 931 e eacute interessante observar que o proacuteprio Gaon aponta para algumas alteraccedilotildees que realizou no texto original (mudando por exemplo o nuacutemero de Portotildees da Sabedoria Divina de 221 para 231 no paraacutegrafo 19) assim alimentando duacutevidas se teria feito outras alteraccedilotildees Os manuscritos tomados como base para cada uma das versotildees satildeo o existente na Biblioteca do Vaticano (versatildeo longa) o de Parma (versatildeo curta) e a versatildeo comentada de Saadia Gaon proveniente da Guenizaacute do Cairo e atualmente na Biblioteca de Cambridge (Peter HAYMAN Sefer Yetsira Texts and Studies in Ancient Judaism 2004 pp2 12-14 31) Sobre as versotildees do Secircfer Yetsiraacute veja-se ainda SCHOLEM (1989 pp21 27) O Apecircndice II da obra de MAGHIDMAN (opcit) apresenta em portuguecircs a versatildeo curta do Secircfer Yetsiraacute
315 Para Abulafia no Guia dos Perplexos de Maimocircnides encontra-se a verdadeira teoria do Cabalismo (SCHOLEM 1995 pp 141-142) Para a averiguaccedilatildeo de outros comentaacuterios acerca do Secircfer Yetsiraacute veja-se HAYMAN opcit p31 BUSI opcit p48 SCHOLEM 1989 pp26 46
115
o autor do Secircfer Yetsiraacute permanece desconhecido Por muito tempo considerou-se
que tivesse sido Abraatildeo a concebecirc-lo ndash a obra de Pico mostra a aceitaccedilatildeo dessa
autoria ainda no lsquo400 ndash muito provavelmente em razatildeo da menccedilatildeo feita ao patriarca
no uacuteltimo paraacutegrafo do livro onde se lecirc ldquoe quando Abraham nosso pai olhou viu
entendeu perscrutou gravou e entalhou teve ecircxitordquo316 Por esse motivo o Livro da
Formaccedilatildeo eacute tambeacutem conhecido pelo nome Otiot Deavraham Avinu (O alfabeto do
patriarca Abraatildeo)317 De toda forma e embora sua autoria mantenha-se
desconhecida ainda hoje o Secircfer Yetsiraacute eacute considerado o primeiro texto especulativo
escrito no idioma hebraico318 Sua peculiaridade encontra-se em estar voltado para a
alma individual humana ndash e natildeo para os judeus de modo particular ndash razatildeo de o
nuacutemero doze ser indicativo dos signos do zodiacuteaco por exemplo e natildeo das
tradicionais doze tribos de Israel Tambeacutem natildeo menciona Moiseacutes a Toraacute ou o
Messias Assim de forma incomum na literatura hebraica a obra traccedila o ldquodesenho
das forccedilas ocultas do cosmordquo sem fazer quase nenhuma referecircncia direta ao texto das
Escrituras ou agrave tradiccedilatildeo poacutes-biacuteblica como complementa Giulio Busi319
Em termos de conteuacutedo o Secircfer Yetsiraacute pode ser descrito em linhas bastante
sucintas320 como um apanhado de conhecimentos de cunho miacutestico com notas
filosoacuteficas astroloacutegicas e cosmoloacutegicas da Antiguidade em que predominam
princiacutepios de simetria reciprocidade e correspondecircncia Em linguagem enigmaacutetica
encontra-se delineado o paralelismo entre as letras do alfabeto hebraico com
categorias da criaccedilatildeo dos mundos (angeacutelico celeste e material) e com funccedilotildees de
natureza fiacutesica bioloacutegica e psiacutequica de forma a estabelecer uma relaccedilatildeo entre a
infinitude de Deus e a finitude de sua obra ou em outras palavras uma relaccedilatildeo entre
a dimensatildeo material e a espiritual O Secircfer Yetsiraacute introduz ainda a noccedilatildeo de Sefirot
ndash a ser verificada adiante ndash um dos nuacutecleos fundamentais do pensamento
cabaliacutestico capaz de presentear os miacutesticos com uma doutrina orgacircnica do aspecto
secreto da Criaccedilatildeo321
O Secircfer ha-Zohar (Livro do Esplendor) ndash ou apenas Zohar ndash embora
redigido vaacuterios seacuteculos apoacutes o Secircfer Yetsiraacute eacute considerado por muitos como o
trabalho mais importante acerca da Cabala322 A despeito de ter tido sua autoria
estabelecida durante muito tempo no segundo seacuteculo e atribuiacuteda ao rabino Shimon
Bar Yohai ndash fato que tradicionalmente ainda prevalece mesmo em ediccedilotildees mais
recentes ndash alguns estudos acadecircmicos do seacuteculo passado especialmente de Gershom
316 Secircfer Yetsiraacute trad MAGHIDMAN Apecircndice II 2014 p174 317 SENDER 1992 p27 Dentre as hipoacuteteses de autoria do Secircfer Yetsiraacute Sender aponta para Rabi Akiva que
teria vivido em Israel no seacuteculo II de nossa Era (ibid pp27-28) 318 MAGHIDMAN opcit p19 319 BUSI opcit p9 320 Natildeo cabe nestas paacuteginas a anaacutelise do Secircfer Yetsiraacute ao qual literatura especializada tem se dedicado Na
sequecircncia seratildeo verificadas as principais concepccedilotildees do Secircfer Yetsiraacute que exerceram influecircncia sobre Pico della Mirandola Para comentaacuterios referentes ao Secircfer Yetsiraacute em portuguecircs veja-se a obra de MAGHIDMAN (2014)
321 BUSI opcit pp9 e 46 ss SCHOLEM 1995 p83 322 SCHOLEM 1989 p 52 A importacircncia do Zohar pode ser medida pela relevacircncia que lhe foi dada por um
dos maiores cabalistas do seacuteculo XVI Isaac Luria (1534-1572) que o utilizou como principal base de seus estudos Luria foi o responsaacutevel por uma das mais importantes escolas de Cabala revolucionando o misticismo hebraico (inclusive com suas doutrinas de transmigraccedilatildeo) e todo o Cabalismo posterior
116
Scholem apontam para o judeu espanhol Moshe de Leoacuten como seu mais provaacutevel
autor aleacutem de responsaacutevel por sua publicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo no seacuteculo XIII323
Escrito em aramaico e hebraico medieval o Zohar natildeo eacute exatamente um livro
com um texto sistemaacutetico mas um conjunto de livros que reuacutene vaacuterios contos em que
os personagens utilizando-se da Biacuteblia como pretexto discutem e efetuam inserccedilotildees
narrativas O conjunto de textos aborda vaacuterios temas da vida judaica desde preceitos
e oraccedilotildees ateacute situaccedilotildees do cotidiano passando por anotaccedilotildees alquiacutemicas
astronocircmicas e astroloacutegicas As discussotildees progridem em direccedilatildeo a comentaacuterios
miacutesticos sobre a Toraacute revelando concepccedilotildees teosoacuteficas abrangentes acerca da
natureza de Deus da origem e da estrutura do universo da hierarquia dos mundos e
da transmigraccedilatildeo e destino das almas entre outros temas de natureza filosoacutefico-
metafiacutesica Seu fundo conceitual apoia-se na relaccedilatildeo entre as Sefirot e a regecircncia do
mundo desenvolvido a partir da ideia de que cada universo inferior reflete o seu
superior Cabe referir que em sua completude o Zohar natildeo trata apenas do bem
acolhe ainda uma intrincada representaccedilatildeo do domiacutenio das forccedilas negativas
designadas com a locuccedilatildeo sitra ahara que significa ldquoa outra parterdquo324
Aleacutem do Zohar e do Secircfer Yetsiraacute outras obras satildeo emblemaacuteticas e
obrigatoacuterias ao estudo do misticismo hebraico por apresentarem estreita relaccedilatildeo com
o Secircfer Yetsiraacute Quase todas se encontram entre as fontes de Giovanni Pico razatildeo de
nosso interesse Uma delas eacute o Secircfer ha-Bahir (Livro da Iluminaccedilatildeo) tambeacutem
conhecido como ldquoO Midrash do Rabino Nehuniah Ben Hakanahrdquo atribuiacutedo ao
rabino midraacuteshico que lhe daacute o nome325 O Bahir integra uma corrente estritamente
metafiacutesica da Cabala diretamente relacionada ao nuacutecleo de pensadores espanhoacuteis de
onde se originou Azriel de Gerona ndash que realizou um relevante escrito sobre as Sefirot
ndash mestre do notabilizado filoacutesofo e cabalista Nachmacircnides tambeacutem pertencente ao
mesmo grupo326 Aleacutem de tratar de questotildees acerca das emanaccedilotildees divinas o texto
aborda questotildees relacionadas agrave alma agrave transmigraccedilatildeo aos anjos e ao alfabeto
hebraico327
Compotildee ainda a construccedilatildeo do pensamento cabalista um rico repertoacuterio de
visotildees celestes guardado na chamada literatura dos ldquoaacutetrios celestiaisrdquo ou dos
Heikhalot (literalmente ldquopalaacuteciosrdquo) constituiacutedo por escritos enigmaacuteticos datados do
primeiro seacuteculo da era cristatilde ndash embora redigidos provavelmente em eacutepoca mais
323 Moshe de Leoacuten alegava ter descoberto (e natildeo escrito) o Zohar em Guadalajara cidade espanhola onde vivia SCHOLEM afirma que De Leoacuten ocultou-se atraacutes do nome de Shimon Bar Yohai para escrever aquela que seria sua obra maior (1989 p 52) Tambeacutem Pico atribuiacutea a autoria do Zohar a ldquoSimeon Antiquusrdquo
324 BUSI opcit pp 72-74 SENDER opcit p34 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p 630
325 Sheila RABIN Pico on Magic and Astrology in Pico della Mirandola New Essays (org Dougherty MV) 2008 p 156 SCHOLEM considera o texto como pertencente provavelmente ao seacuteculo XI (1989 p 39)
326 GARIN 2011 p115 Azriel ben Menahem de Gerona foi mestre de Mosheh ben Nahman de Gerona conhecido por Nachmacircnides Este uacuteltimo notabilizou-se por seus comentaacuterios miacutesticos do Pentateuco e por seus comentaacuterios ao Talmud
327 O conceito de transmigraccedilatildeo das almas penetrou na Cabala dos seacuteculos sucessivos graccedilas ao Bahir Veja-se maiores detalhes em BUSI opcit pp 55 63 MAGHIDMAN opcit p91 Existe uma traduccedilatildeo em portuguecircs do Bahir originalmente traduzido e comentado por Arieh KAPLAN (Bahir o Livro da Iluminaccedilatildeo-atribuiacutedo ao Rabino Nehuniaacute ben haKana) realizada por Maria Regina Nogueira contendo o texto original hebraico (Ed Imago Rio de Janeiro 1992)
117
tardia O material conteacutem relatos de experiecircncias pessoais de ascensatildeo aos planos
superiores representados por uma estrutura arquitetocircnica de luzes A partir do
misticismo dos Heikhalot os cabalistas herdaram um complexo sistema angeoloacutegico
e a representaccedilatildeo de uma ascese da alma articulada em etapas cognitivas sempre
mais elevadas Efetivamente a ampla tratativa aborda as vaacuterias etapas de um
percurso asceacutetico sob um gradual processo de conhecimento328 Os tratados
apresentam algumas narrativas obscuras em que tantas vezes soberbos anjos estatildeo
colocados como guardiotildees dos palaacutecios das regiotildees celestes Por exemplo no
Heikhalot rabbati o mais ceacutelebre o miacutestico pode alcanccedilar os peacutes do trono superno
somente se ultrapassar uma sucessatildeo de sete edifiacutecios cujos portotildees representam
tantas outras etapas de seu percurso iniciaacutetico ldquopenetrar nos palaacutecios divinos
significa portanto apoderar-se de uma geografia transcendente que retrata o
invisiacutevel com a precisatildeo de um mapardquo329 Dado que os guardiotildees angeacutelicos ndash
obstaacuteculos na ldquoviagem em direccedilatildeo agrave gloacuteria excelsardquo ndash podem ser dominados agrave medida
que se conheccedilam seus nomes e atributos os tratados dos Heikhalot servem como um
guia que ensina seus nomes e as respostas necessaacuterias para superar as provas
colocadas por esses seres ldquofeitos de granizo e fogordquo330 Pico mostrava ter
familiaridade com os Heikhalot pois na De Hominis Dignitate faz menccedilatildeo agraves
transformaccedilotildees de Enoch conforme episoacutedio narrado em outro desses tratados331
Assim como o Zohar que aborda as forccedilas negativas uma natildeo irrelevante integraccedilatildeo
eacute apresentada dentro da arquitetura supramundana dos Heikhalot o Midrash Konen
informa a existecircncia sempre nas moradas superiores de uma seacuterie simeacutetrica de
palaacutecios infernais guardados por anjos do mal332
Finalmente natildeo poderia deixar de ser citada a literatura midraacuteshica O termo
ldquomidrashrdquo significa em hebraico ldquointerpretaccedilatildeordquo e indica um amplo nuacutemero de
histoacuterias e comentaacuterios biacuteblicos que se mesclam entre documentos e lendas redigidos
entre o iniacutecio do seacuteculo V e a metade da Idade Meacutedia Nos vaacuterios Midrashim o texto
das Escrituras eacute submetido a uma anaacutelise minuciosa mostrando as implicaccedilotildees
escondidas sob suas linhas Assim em contraste com a interpretaccedilatildeo
literal o Midrash designa uma exegese profunda que tenta revelar o espiacuterito velado
das Escrituras examinando possibilidades que natildeo se mostram em uma leitura
literal do texto Seu principal objetivo nesse sentido eacute o de propor o maior nuacutemero
de significados possiacuteveis de acordo com o ensinamento rabiacutenico que prescreve ldquogirar
e regirar a Toraacute pois que nessa estaacute absolutamente tudordquo333 Assim como nos demais
328 A imagem da carruagem celeste eacute bastante presente simbolizando como em outras tradiccedilotildees ndash inclusive a
platocircnica ndash o deslocamento do adepto atraveacutes do espaccedilo supramundano graccedilas ao qual ele alcanccedila a contemplaccedilatildeo de uma complexa arquitetura coacutesmica Cf BUSI opcit pp9-10 43 SENDER op cit p34
329 BUSI opcit p43 330 BUSI idem 331 Cf Oratio p107 O tratado Alfabeta derabbirsquoAqiva descreve o episoacutedio de Enoch patriarca biacuteblico
antediluviano alccedilado aos ceacuteus pelo Senhor e transformado no anjo Metraton dominante sobre as hierarquias angeacutelicas e ao qual satildeo atribuiacutedos setenta e dois nomes
332 BUSI opcit p45 np145 Comentaacuterios e textos acerca dos Heikhalot podem ser encontrados nas seguintes obras indicadas na bibliografia de Giulio Busi GSCHOLEM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York 1960 PSCHAFER Hekhalot Studien Tubingen 1988 Para traduccedilotildees italianas veja-se RAVENNA-PIATELLI (org) Cabbala ebraica I sete santuari Milano 1990
333 BUSI opcit pp41-42
118
manuscritos de caraacuteter miacutestico utilizados pelos mekubalim334 os Midrashim incluem
natildeo poucas passagens de argumentaccedilotildees cosmogocircnicas que permitem especulaccedilotildees
acerca das origens da Criaccedilatildeo e da estrutura das moradas celestes A exposiccedilatildeo
midraacuteshica eacute comparada no Talmud a um ldquomartelo que desperta as faiacutescas
adormecidas na rochardquo335
As fontes cabaliacutesticas de Pico
Em carta endereccedilada ao sobrinho Gian Francesco Giovanni Pico informa
sobre alguns livros hebraicos que teria tomado emprestado de certo judeu siciliano
por um periacuteodo de vinte dias quando jaacute exercitava com relativa facilidade o
idioma336 O testemunho desse empreacutestimo junta-se a uma vasta documentaccedilatildeo que
comprova o fato de que o jovem aprendiz da Cabala teria lido todos os textos
hebraicos talmuacutedicos e midraacuteshicos que podia comprar encontrar ou pedir337 Parte
consideraacutevel desse material se lhe tornou disponiacutevel ou inteligiacutevel atraveacutes do auxiacutelio
de trecircs de seus principais mestres Elia Del Medigo Yohanan Alemanno e Flavio
Mitridate que desempenharam importante papel nas traduccedilotildees de muitos textos
seja do aacuterabe para o hebraico ou do hebraico para o latim338 A aquisiccedilatildeo da vasta
doutrina referente ao Hebraiacutesmo deve ser creditada ademais agraves conversaccedilotildees tidas
com tantos outros judeus eruditos e agraves leituras diretas de manuscritos hebraicos dos
quais comprovadamente possuiacutea um nuacutemero consideraacutevel339 Os manuscritos
foram sem duacutevidas o meio de acesso mais importante atraveacutes do qual o pensamento
judaico ndash especificamente o cabaliacutestico ndash se tornou disponiacutevel para Pico340
Nas duas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XV seria possiacutevel encontrar em Florenccedila
um nuacutemero consideraacutevel de manuscritos de conteuacutedo especulativo judaico Havia os
volumosos escritos de Alemanno com abundantes citaccedilotildees de fontes medievais
hebraicas341 os textos de Abraham Farisol que passou um tempo em Florenccedila com
menccedilotildees a um grande nuacutemero de livros judaicos as epiacutestolas do cabalista espanhol
334 Mekubalim ou ainda Maskilim (iniciados) satildeo denominaccedilotildees que muitos autores cabalistas recebem (cf
IDEL 2008a p17) 335 BUSI opcit pp41-42 336 GARIN 2011 p 99 337 Giovanni SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola - La Fenice degli Ingegni 1921 p143 338 Crofton BLACK Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics 2006 p 12 BUSI opcit p 84 339 Tatildeo ampla era a coleccedilatildeo de livros hebraicos de Pico que ensejou a criaccedilatildeo de obras especiacuteficas voltadas ao seu
estudo Veja-se por exemplo Pearl KIBRE The Library of Pico della Mirandola New York 1936 Giuliano TAMANI I libri ebraici di Pico della Mirandola in Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di studi del cinquecentesimo anniversario della morte (1494-1994) org G C Garfagnini Firenze 1997 pp 491-530 Giulio BUSI Chi non ammireragrave il nostro camaleonte La biblioteca cabbalistica di Giovanni Pico della Mirandola in Lenigma dellebraico nel Rinascimento Nino Aragno Editore Torino 2007 pp 25ndash45 Moshe IDEL The Throne and the Seven-Branched Candlestick Pico della Mirandolas Hebrew Source in Journal of the Warburg and Courtauld Institutes XL 1977 pp 290-292 R SIMON Bibliotheca selecta I Um bom recolhimento do conteuacutedo da biblioteca de Pico pode ser encontrado ainda no ldquoAppendice La Biblioteca di Picordquo na obra Giovanni Pico della Mirandola de GARIN (2011 pp106 ss) Acerca dos hebreus com os quais Pico teve contato veja-se Umberto CASSUTO (opcit pp316-318)
340 Chaim WIRSZUBSKI com o auxiacutelio de seus alunos Moshe Idel e Carmia Schneider deteacutem o meacuterito de ter seguido o percurso intelectual de Pico identificando os textos e os autores atraveacutes dos quais estudou a Cabala daiacute resultando seu fundamental volume Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Veja-se ali em especial entre as paacuteginas 60 a 64 toda a questatildeo das fontes cabaliacutesticas de Pico
341 Para uma lista das fontes mais importantes do pensamento de Alemanno veja-se IDEL The Study Program of R Yohanan Alemanno in Tarbiz XLVIII 1979 pp 303-330
119
Isaac Mar Hayyim os escritos de Moshe ben Yoav342 E de suma relevacircncia o vasto
volume de material cabaliacutestico traduzido por Flavio Mitridate para o latim343 A
maioria dos manuscritos que chegou agraves matildeos de Pico foi-lhe elucidada justamente
por Mitridate A principal missatildeo do mestre convertido exercida com paixatildeo era
comprovar ao pupilo o argumento de que a Cabala provava a verdade do
Cristianismo para tanto procurou realizar traduccedilotildees que fossem literais mas ao
mesmo tempo capazes de lidar com as sutilezas do vocabulaacuterio cabaliacutestico344 Os
manuscritos apresentam vaacuterias anotaccedilotildees feitas pelo mestre agraves margens das
traduccedilotildees para servir de guia ao pupilo em suas possiacuteveis analogias Um desses
comentaacuterios anotado agraves margens da traduccedilatildeo do De Secretis Legis de Abulafia
relata que os dois ele e o conde se encontravam em ldquouma missatildeo comum de
profunda seriedaderdquo sendo bastante significativo do grau de comprometimento que
pretendiam dar agravequeles estudos345
De maneira mais abrangente que Mitridate como parece ser consensual o
mestre cabalista Alemanno estava bem familiarizado com a maioria dos escritos
miacutesticos judaicos provenientes tanto de autores contemporacircneos e medievais ndash da
Itaacutelia Espanha e Alemanha ndash como de fontes anteriores pertencentes agrave literatura dos
Heikhalot Agrave exceccedilatildeo do livro do Zohar do qual Alemanno natildeo tinha estreito
conhecimento haacute registros de seu acesso a uma numerosa quantidade de textos
relacionados agrave literatura biacuteblica talmuacutedica e midraacuteshica Notadamente versado nas
mais variadas correntes filosoacuteficas fossem hebraicas gregas ou aacuterabes observa-se
nas citaccedilotildees de seus trabalhos uma quantidade surpreendente de livros raros ou
pouco difusos o que constitui prova de uma erudiccedilatildeo pouco comum346
Dentre os trecircs professores mencionados no entanto o primeiro a abrir para
Pico as portas de fato ao universo da Cabala embora o tema natildeo lhe despertasse
maior interesse347 foi Elia Del Medigo Em longa carta enviada a Giovanni o rabino
antecipava ldquoVendo que Vsa Senhoria se empenha muitiacutessimo nessa bendita Cabala
342 IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in BemporadndashZatelli (org) La
Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 21 343 Entre tantos outros Mitridate traduziu o livro do conhecido rabino Eleazar de Worms o Hokhmat ha-
Nefesh sob o tiacutetulo Liber De Anima em 1486 traduziu um grupo de comentaacuterios sobre o Secircfer Yetsiraacute presentes no cod Vat hebr 191 tambeacutem o De Secretis Legis (Sitre Torah) de Abulafia presente no cod Vat hebr 190 (cf Franco BACCHELLI opcit pp 35 57) Uma lista completa das traduccedilotildees de Mitridate pode ser encontrada no livro de WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism (1987 pp 10-65)
344 Alguns desses textos natildeo existem mais Os que ainda restam encontram-se em cinco manuscritos mantidos na biblioteca do Vaticano que juntos contabilizam mais de 3500 paacuteginas Os manuscritos sobreviventes satildeo Vat Ebr 189 Vat Ebr 190 Vat Ebr 191 Chigi A VI 190 e Vat Lat 4273 (BLACK opcit p 16) Em relevante desenvolvimento nos estudos de Pico um trabalho tem sido realizado para editar esse corpus em uma seacuterie entitulada The Kabbalistic Library of Giovanni Pico della Mirandola sob direccedilatildeo de Giulio Busi O primeiro volume da seacuterie foi publicado em 2004 intitulado The Great Parchment Flavius Mithridatess Latin Translation the Hebrew Text and an English Version (org) G Busi S M Bondoni e S Campanini (Ed Nino Aragno Torino 2004)
345 WIRSZUBSKI opcit p 69 BACCHELLI opcit 2001 p 57 346 CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p315 IDEL 1998 p 34 347 Elia de Medigo presidia a escola talmuacutedica italiana de vieacutes decididamente aristoteacutelico e hostil ao
pensamento cabaliacutestico mais em razatildeo da orientaccedilatildeo filosoacutefica de cunho neoplatocircnico que apresentava do que por um antagonismo aos seus procedimentos Tal aspecto incomodava muitos outros intelectuais aristoteacutelicos como assinala BROCCHIERI (Pico della Mirandola 2011 p12) Entretanto e apesar de natildeo mostrar especial interesse pelo tema os escritos de Del Medigo tanto em hebraico quanto em latim constituem uma fonte muito confiaacutevel para uma descriccedilatildeo abrangente da Cabala como pontua IDEL (1998 p 20)
120
quero vos indicar algo que ateacute hoje natildeo quis vos mostrarrdquo A carta ajuda a lanccedilar luz
sobre as pesquisas literaacuterias de seu aluno uma vez que inclui trecircs listas colunadas
com sugestotildees de bibliografias sendo uma essencialmente cabaliacutestica a primeira
coluna apresenta obras que serviriam aos estudos aristoteacutelicos de Pico a segunda
mostra uma seacuterie de autores aacuterabes na terceira haacute uma lista entitulada ldquoqabalahrdquo
Nesta leem-se os nomes (sic) ldquoSefer Hazzocirchar MeirahrsquoEnayim Scharsquoarei Orah
Reqanati Marsquoarekheth ha Elohouth Pegraverousch Sefer Uetsirahrdquo e ao final deles a
admissatildeo ldquoe muitos outros cujos nomes natildeo me ocorrem porque estou com muitas
ocupaccedilotildeesrdquo348
Mantendo-se a ordem apresentada Del Medigo refere-se primeiramente ao
Zohar Em seguida ao texto Meirah Einayim um provaacutevel comentaacuterio sobre
Nachmacircnides feito por Isaac de Acre que pode ser estabelecido entre o final do
seacuteculo XIII e a metade do seacuteculo XIV O Scharsquoarei Orah eacute um texto do comentador
cabalista espanhol Joseph Gikatilla aluno de Abulafia compreendido em periacuteodo
aproximativo ao anterior A indicaccedilatildeo segue com a menccedilatildeo impliacutecita a algum ou a
alguns comentaacuterios atribuiacutedos ao rabino Menahem Recanati do seacuteculo XIII e o
tratado anocircnimo Maarekhet ha-Elohut do final do seacuteculo XIII e iniacutecio do XIV
contendo algumas interpretaccedilotildees cabaliacutesticas A lista se encerra com a sugestatildeo de
um comentaacuterio referente ao Secircfer Yetsiraacute As inuacutemeras recorrecircncias de marcas em
algumas seccedilotildees desses manuscritos evidenciam que Pico leu tais textos marcou as
passagens de interesse e as reutilizou em seus proacuteprios trabalhos tanto como fontes
para suas Conclusiones Cabalisticae quanto como bases para a elaboraccedilatildeo do
Heptaplus349
Quanto ao fundamental Secircfer Yetsiraacute o proacuteprio Pico conta tecirc-lo lido em lsquo86
juntamente ao comentaacuterio com o qual estava unido embora o mesmo natildeo conste da
lista de Elia Em relaccedilatildeo ao Zohar indicado na bibliografia de Elia natildeo se sabe
exatamente se o conheceu de forma direta ou indireta embora o tenha mencionado
tanto nas Conclusiones cabalisticae quanto no Heptaplus350 Tambeacutem a Oratio
apresenta certa analogia com o Zohar no que diz respeito agrave celebraccedilatildeo da liberdade e
potecircncia do espiacuterito humano o que poderia comprovar a leitura daquela obra351
348 ldquo[] et multa alia quorum nomina non occurunt mihi quia multas habeo ocupacionesrdquo O manuscrito estaacute
em Paris Bibliothegraveque Nationale Lat 6508 ff 71r -77v Fragmentos dessa carta foram transcritos e discutidos por Jules DUKAS Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 pp 48-65 O trecho com a citaccedilatildeo das bibliografias em questatildeo encontra-se em f75r e estaacute transcrito nas pp 56-57 de DUKAS (opcit) e em seu Bulletin du Bibliophile vol XLII 1875 p340 Sobre as relaccedilotildees entre Pico e Del Medigo e outros detalhes sobre a carta em questatildeo veja-se Bohdan KIESZKOWSKI Les Rapports entre Elie del Medigo e Pic de la Mirandola 1964 pp 41-81
349 Efetivamente eacute consensual que Pico tenha utilizado Recanati como fonte principal para as Conclusiones Cabalisticae dois dos trabalhos do rabino foram traduzidos para Pico por Flavio Mitridate ndash os comentaacuterios ldquosobre o Pentateucordquo e ldquosobre as oraccedilotildeesrdquo Especialmente as 47 teses cabaliacutesticas do primeiro grupo satildeo quase todas inspiradas pelo Commento al Pentateuco (cf WIRSZUBSKI Picos Encounter with Jewish Mysticism 1989 pp53-56 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633 BLACK Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics 2006 p 17)
350 Respectivamente em Conclusiones II 24 p131 e em Heptaplus p180 No Heptaplus Pico faz alusatildeo ao presumiacutevel autor do Zohar Shimon Bar Yohai ldquoSimeon antiquusrdquo GARIN informa que ldquonatildeo se sabe ao certo se Pico conheceu o Zoharrdquo ou se o conheceu atraveacutes da leitura de Menahem Reca atribuindo a VULLIAUD (vol II p 19) a certeza de Pico ter lido o Zohar diretamente (2011 p102)
351 A celebraccedilatildeo da potecircncia humana no Zohar concentra-se na figura do Adam Kadmon o homem cuja natureza eacute determinada e estaacute acima de todos os anjos Em Pico diferentemente a natureza do homem natildeo eacute
121
Certeza eacute o fato que Pico possuiacutea o Secircfer ha-Bahir pertencente agrave corrente metafiacutesica
de cujo nuacutecleo saiacuteram os escritos de Nachmacircnides352 A obra consta do inventaacuterio de
seus livros integrado ainda por obras da corrente dos profetas miacutesticos como
Abraham ibn Ezra Moshe de Narbona Eleazar de Worms e Gikatilla este uacuteltimo
certamente estudado com atenccedilatildeo visto que fazia parte da lista de Del Medigo todas
essas obras jaacute estavam em sua posse no periacuteodo de redaccedilatildeo das Conclusiones Sua
biblioteca dispunha ainda de escritos dos comentaristas medievais Abulafia Azriel
de Gerona e do acima mencionado Menahem Recanati assim como de inuacutemeros
trabalhos anocircnimos353 Outrossim e antes de se dedicar aos estudos cabalistas Pico
havia meditado longamente sobre o pensamento de Maimocircnides e Avicebron judeus
ceacutelebres no mundo cristatildeo tendo encontrado neles algumas das raiacutezes da gnose
hebraica que reencontraria mais tarde Tambeacutem natildeo lhe passaram despercebidas as
ressonacircncias que certos procedimentos cabaliacutesticos exerceram sobre Ramon Llull na
Espanha a ponto de interessar-se pelos aspectos praacuteticos da Cabala como seraacute
visto354
2 O Cosmo Cabalista
Na mencionada carta de Elia Del Medigo na qual constam as indicaccedilotildees
bibliograacuteficas transmitidas ao pupilo Giovanni lecirc-se ldquoTrata-se de algo tatildeo secreto
que ningueacutem dentre os contemporacircneos tem se ocupado e poucos antigos
conheceram Eacute coisa pequena em quantidade mas grandiacutessima em qualidaderdquo
Antecipando seu conteuacutedo Elia complementaria ldquoOs devotos a estes textos obscuros
sustentam que o nome de Deus eacute infinito e que a um grau abaixo de Deus estatildeo as dez
Sefirot agentes da potecircncia que emana de Deus eacute atraveacutes dessas que o mundo
conserva a sua ordemrdquo355 Por meio dessas palavras o mestre descrevia in nuce os
elementos centrais da doutrina cabaliacutestica quais sejam a concepccedilatildeo do Infinito (Ein
Sof) e suas emanaccedilotildees as Sefirot
determinada e tanto ele pode continuar na indeterminaccedilatildeo quanto pode passar a ser tudo Apesar de preconizar que Pico tenha sido o primeiro divulgador do Zohar na cultura corrente da eacutepoca Garin sugere que a ideia de liberdade do homem defendida na Oratio tenha sido formada atraveacutes de leituras precedentes de obras ateacute mais significativas atribuiacutedas tanto a pensadores hebraicos tais quais Maimocircnides e Avicebron quanto a natildeo hebraicos como Fiacutelon Hermes e Honoacuterio de Autun A reflexatildeo estaacute em GARIN (2011 pp 90-91 93-105)
352 GARIN 2011 p115 RABIN opcit p 156 353 Cf Inventario delli libridel Conte Joanne de la Mirandola (pp 30 46 60 62 73 etc) elaborado por
Antonio Pizamano em 1498 em Florenccedila e editado em Memorie Storiche della cittagrave e dellantico ducato della Mirandola Harvard University vol XI 1897 p46 (apud GARIN 2011 p103) Chaim WIRSZUBSKI comprovou que Pico fizera uso no iniacutecio de sua carreira das obras de Abulafia (Um cabalista Cristatildeo lecirc a Lei Jerusaleacutem 1977 pp11 17 e ss apud IDEL 2008-b p 461)
354 Em sua Apologia (p192) Pico comenta sobre a ldquoars Raymundirdquo segundo KIBRE (1936 p318) possuiria do filoacutesofo catalatildeo o Ars Brevis Em relaccedilatildeo aos estudos sobre Maimocircnides Avicebron e o influxo de Llull veja-se menccedilatildeo em GARIN 2011 pp 100-101 Para a relaccedilatildeo percebida por Pico entre Avicebron e as doutrinas cabalistas veja-se Salomon MUNK Meacutelanges de philosophie juive et aacuterabe Paris 1857 pp275 ss que comporta ldquoDes Extraits Meacutethodiques de la Source de vie de Salomon Ibn-Gebirol (dit Avicebron) traduits de lrsquoarabe en heacutebreu par Ibn-Falaqueacuterardquo
355 DUKAS opcit pp 48-65 (Paris Bibliothegraveque Nationale Lat 6508 ff 71r -77v)
122
A emanaccedilatildeo sefiroacutetica
A estrutura metafiacutesica das Sefirot eacute uma das caracteriacutesticas medulares da
Cabala surgida por volta do seacuteculo III O termo ldquosefirotrdquo (ldquosefiraacuterdquo no singular)
ingressa de fato na miacutestica hebraica atraveacutes do Secircfer Yetsiraacute onde eacute mencionado
pela primeira vez356 Os cabalistas concordam em conceber as Sefirot como graus
ciclos ou niacuteveis atraveacutes dos quais o aspecto mais profundo do poder divino atua sobre
o universo criado ou em outras palavras como formas inteligiacuteveis atraveacutes das quais
o ldquoImanifestordquo passa a se manifestar357 Explica Paolo Fornaciari que a raiz de Sefirot
proveacutem do vocaacutebulo SFR que reconduz a uma aacuterea semacircntica que pode abranger trecircs
significados ldquoesferasrdquo ldquocifrasrdquo ou ldquosafirasrdquo Cada um desses termos remete agrave ideia
respectivamente de perfeiccedilatildeo geomeacutetrica-espacial de completude numeacuterica e de
beleza ou preciosidade ndash conceitos que se aplicam agraves qualificaccedilotildees atribuiacutedas agraves
Sefirot nas vaacuterias escolas358 Para Giulio Busi o termo hebraico pode ser traduzido
sucinta e literalmente por ldquonumeraccedilotildeesrdquo enquanto Tova Sender o traduz por
ldquocontagemrdquo em qualquer caso o nuacutemero eacute uma conotaccedilatildeo fundamental de seu
dinamismo359
O conceito de numeraccedilotildees estaacute diretamente relacionado ao nuacutemero dez
de acordo com o simbolismo numeacuterico que precede ao Secircfer Yetsiraacute e que
provavelmente recebeu influxos das doutrinas pitagoacutericas em razatildeo de sua relaccedilatildeo
com a estrutura profunda do ser e do cosmo360 Conforme sintetiza Scholem as
Sefirot satildeo os dez niacuteveis com que a natureza atuante de Deus se revela as dez forccedilas
elementares da Criaccedilatildeo os diversos aspectos da vida divina os estaacutegios pelos quais
essa vida passa ao se revelar na Criaccedilatildeo361 Na linguagem lacocircnica do Livro da
Formaccedilatildeo
ldquoDez Sefirot sem determinaccedilatildeo dez e natildeo nove dez e natildeo onze
[] a sua medida eacute dez que natildeo tecircm fimrdquo362
356 O texto integral do Secircfer Yetsiraacute pode ser visto nas seguintes obras Aryeh KAPLAN Secircfer Yetsiraacute- O Livro
da Criaccedilatildeo 2005 GRUENWALD A preliminary critical edition of the Sefer Yezirah in Israel oriental Studies 1 1971 pp132-177 A versatildeo curta do texto original em portuguecircs pode ser vista no apecircndice da obra de MAGHIDMAN Secircfer Yetsiraacute A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico 2014
357 SENDER 1992 p45 BUSI La Qabbalah 2011 p14 Observa Crofton BLACK que tal concepccedilatildeo das Sefirot foi frequentemente considerada hereacutetica entre alguns meios rabiacutenicos por parecer contradizer o estrito monoteiacutesmo do Judaiacutesmo (2006 p 140)
358 FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 np35 359 BUSI opcit p 47 SENDER opcit p28 KAPLAN contudo infere que natildeo eacute certo traduzir sefirot por
ldquonuacutemerosrdquo termo para o qual o hebraico tem uma palavra proacutepria (mispaacuter) seu significado aproxima-se mais de ldquocontardquo que remete ao conceito de nuacutemeros mas natildeo apenas (2005 p54) Flavio Mitridate em suas traduccedilotildees para o latim usava o termo numerationes
360 Gershom Scholem menciona a relaccedilatildeo com o Pitagorismo sem elucidar no entanto ndash ao menos nessa obra ndash se tal informaccedilatildeo eacute uma inferecircncia proacutepria ou se procede de fontes hebraicas (SCHOLEM Nome de Deus e Teoria da Linguagem 1999 p79) A pesquisa cabaliacutestica recolheu atraveacutes dos seacuteculos vasto material literaacuterio tanto para demonstrar o caraacuteter sagrado do dez quanto para encontrar nos antigos textos religiosos e na simbologia dos ritos a confirmaccedilatildeo de que esse nuacutemero fosse por si uma chave para o conhecimento Tudo aquilo que eacute numeraacutevel em dez representa na Cabala uma metaacutefora do mundo sefiroacutetico ndash os dedos das matildeos as enunciaccedilotildees de Deus no iniacutecio do Gecircnesis as dez esferas celestes da filosofia antiga (BUSI opcit pp 14-15)
361 SCHOLEM opcit p79 362 Secircfer Yetsiraacute I 4 5 (trad KAPLAN 2005 p283)
123
As dez Sefirot surgem ou satildeo criadas (o verbo natildeo estaacute estabelecido) a partir do
nada concepccedilatildeo repetida vaacuterias vezes no Capiacutetulo 1 do Secircfer Yetsiraacute ldquodez Sefirot do
nadardquo363 O texto trata outrossim ndash e conforme prometido em seu tiacutetulo ldquoyetsiraacuterdquo ndash
da formaccedilatildeo do universo (e natildeo criaccedilatildeo pois que o material para formar era
preexistente) por meio das vinte e duas letras do alfabeto hebraico que associadas agrave
deacutecada cabaliacutestica totalizam trinta e dois caminhos364 A combinaccedilatildeo das 22
consoantes hebraicas entre si por sua vez perfaz a totalidade de 231 resultados
possiacuteveis que representam 231 portotildees de saiacuteda do poder criador atraveacutes dos quais
ldquoo inexistente foi transformado em existenterdquo365 Agraves letras enquanto ldquofundaccedilatildeordquo do
universo satildeo dedicados quatro dos seis capiacutetulos da obra nos quais com linguagem
enigmaacutetica satildeo tratados seus significados e suas relaccedilotildees com os trecircs reinos da
criaccedilatildeo366
ldquoVinte e duas letras grava entalha pesa permuta transforma
e com elas descreve a alma de tudo o que foi formado e seraacute
formado no futurordquo367
Na maior parte das interpretaccedilotildees do Secircfer Yetsiraacute como informa Moshe Idel
o surgimento do sistema das Sefirot eacute descrito em termos de emanaccedilatildeo Atzilut ou de
expansatildeo Hitpaschetut ambos os processos cumprindo certa forma de cadeia
Schalschelet que relaciona o reino mais alto divino aos mundos mais baixos
produzidos pelas Sefirot368 Observe-se que Idel usa a palavra ldquoproduzirrdquo mundos em
concordacircncia com a passagem ldquotudo o que foi formado e que seraacute formadordquo do Secircfer
Yetsiraacute (II1) Eacute possiacutevel inferir que a ideia de emanaccedilatildeo decorra da percepccedilatildeo do
incessante dinamismo contido na conotaccedilatildeo numeacuterica atraveacutes desse movimento o
fluxo divino percorre o cosmo Dentro desse sistema cada sefiraacute corresponde a um
grau provisoacuterio (porque o fluxo natildeo eacute extaacutetico) de agregaccedilatildeo da energia divina
inserido em um contiacutenuo dinamismo de descese e ascese369 Sua mais
importante designaccedilatildeo eacute assumida no Zohar no qual cada grau de emanaccedilatildeo passa a
ser relacionado a um atributo divino recebendo nomes especiacuteficos em parte
retirados do primeiro livro das Crocircnicas370 Assim embora haja variaccedilotildees semacircnticas
363 Secircfer Yetsiraacute I 2 3 4 5 6 7 8 9 (ibid pp 283-284) 364 Secircfer Yetsiraacute I1 ldquoCom 32 maravilhosos caminhos de Sabedoria grava Yah o Senhor dos Exeacutercitosrdquo (opcit
p 283) A menccedilatildeo ao termo ldquocaminhordquo natildeo eacute aleatoacuteria mas real indicaccedilatildeo de 32 sendas miacutesticas dentro de um processo iniciaacutetico A deacutecima esfera a mais nobre e primeira em posiccedilatildeo eacute onde circulam as 22 letras (MAGHIDMAN 2014 p124)
365 Secircfer Yetsiraacute II 1 (trad KAPLAN 2005 p283) 366 Cada uma das vinte e duas letras tem seu proacuteprio significado co-essencial com atribuiccedilotildees que satildeo
transmitidas agraves coisas por meio delas formadas (SENDER opcit p30) 367 Secircfer Yetsiraacute II 1 (opcit p285) 368 IDEL 2008-a p21 No iniacutecio do seacuteculo XIV na literatura de inspiraccedilatildeo zohaacuterica ndash em modo particular no
Tiqqune ha-zohar (Os Ornamentos do Esplendor) e no Masseket atzilut (Tratado sobre a Emanaccedilatildeo) ndash o processo de emanaccedilatildeo comeccedila a ser distinguido em suas sucessivas fases denotando a distacircncia que separa o mundo superno da inferior realidade material (BUSI 2011 p 19)
369 BUSI opcit pp14 47 IDEL afirma que o caraacuteter dinacircmico das Sefirot constitui uma das principais caracteriacutesticas da Cabala (2008b p515) SCHOLEM trata do caraacuteter gnoacutestico das Sefirot em sua obra Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York 1960
370 O trecho no qual Davi bendiz Deus elencando seus atributos diz ldquotua eacute Senhor a magnificecircncia e o poder e a gloacuteria e o esplendor e a majestaderdquo (Crocircnicas 1 2911) Esses cinco atributos datildeo nomes a cinco das dez Sefirot Cf FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 np35 SENDER opcit pp 28 45
124
e de traduccedilatildeo os termos e significados mais utilizados para distinguir cada sefiraacute satildeo
Keter (Coroa) Hokhmaacute (Sabedoria) Binaacute (Inteligecircncia ou Compreensatildeo) Hesed
(Amor ou Grandeza) Guevuraacute (Bravura ou Potecircncia) Tiferet (Beleza) Netsah
(Eternidade ou Vitoacuteria) Hod (Magnificecircncia) Yesod (Fundamento) Malkut
(Reino)371 Assim cada uma das esferas corresponde a uma forma especiacutefica de
manifestaccedilatildeo de Deus uma middah ou atribuiccedilatildeo divina que pode ser ainda
identificada com um de Seus dez nomes sagrados Sob tal luz compreende-se a
conclusio cabaliacutestica 36 ldquoDeus endossou dez vestimentas quando criou o mundordquo372
Apesar de diferenciadas em suas caracteriacutesticas as dez Sefirot constituem uma
unidade como dez matizes da mesma luz
Em termos de ordenaccedilatildeo a estrutura sefiroacutetica tem sido contemplada com
diversos tipos de representaccedilotildees como por exemplo em forma de esferas dispostas
sobre a circunferecircncia de um ciacuterculo ou de letras hebraicas encerradas uma dentro da
outra mas a imagem que se tornou mais conhecida ndash divulgada na ediccedilatildeo do Pardes
Rimmonim (O jardim das romatildes) de Cordovero no lsquo500 ndash eacute a chamada aacutervore
sefiroacutetica na qual ao longo de trecircs eixos principais e paralelos estatildeo dispostos os
ciacuterculos que simbolizam as Sefirot ligados por canais transversais que sinalizam os
reciacuteprocos influxos373 Segundo a tradiccedilatildeo cabaliacutestica a descida das forccedilas celestes
adveacutem ao longo do lado da direita atraveacutes de hokhmaacute hesed e netsah enquanto a
ascensatildeo percorre o lado esquerdo atraveacutes de binaacute guevuraacute e hod O eixo central
sobre o qual se alinham keter tiferet yesod e malkut eacute conotado pela ideia de
presenccedila e completude do divino374 Os traccedilos de ligaccedilatildeo entre as Sefirot em nuacutemero
de vinte e dois ndash e em perfeita simetria geomeacutetrica com o total de letras do alfabeto
hebraico ndash constituem as vias atraveacutes das quais a luz infinita e a forccedila criadora se
propagam A metaacutefora da propagaccedilatildeo da luz eacute tatildeo utilizada quanto a do
derramamento de aacuteguas em uma de suas representaccedilotildees tem-se a imagem de
recipientes que recebem os fluiacutedos e que depois de cheios derramam o excesso para
os recipientes inferiores sucessivamente Outro ponto importante para a
compreensatildeo do conceito de emanaccedilotildees eacute que em qualquer representaccedilatildeo cada
sefiraacute eacute considerada passiva em relaccedilatildeo agravequela que a precede e ativa em relaccedilatildeo agraveque-
la que a sucede375 Para melhor compreensatildeo desta ideia as Sefirot podem ser
representadas por trecircs triacircngulos sendo um superior ascendente e dois inferiores
descendentes O triacircngulo ascendente tambeacutem chamado espiritual recebe luz e forccedila
do Alto e corresponde ao Mundo da Emanaccedilatildeo Os triacircngulos descendentes
371 Veja-se BUSI 2011 p16 FORNACIARI 2009 p 19 np35 CROFTON pp140-141 A sequecircncia das Sefirot
mais aceita eacute aquela que foi estabelecida na escola de Isaac o Cego em Narbonne no seacuteculo XIII Acresce FORNACIARI (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633) que cada sefiraacute a uma forma de manifestaccedilatildeo ou a uma inteligecircncia angeacutelica Os cabalistas encontram uma seacuterie de correspondecircncias entre as Sefirot e cada niacutevel da realidade como os astros os oacutergatildeos vitais os personagens biacuteblicos (Abraatildeo seria Hesed ou Guedulaacute) as manifestaccedilotildees da natureza etc Como explica BUSI (opcit p16) a referecircncia ao sol a Jacoacute ou agrave noccedilatildeo abstrata de beleza correspondentes a uma mesma sefiraacute natildeo significa que esses elementos tenham equivalecircncia mas sim que estatildeo ligados por uma harmonia que institui um nexo iacutentimo e um grau comum entre eles
372 PICO Concl (II) XI 36 p134 ldquo[] deus induit se decem uestimentis quando creauit saeculumrdquo 373 Veja-se representaccedilatildeo da aacutervore sefiroacutetica em IDEL 2008a p21 MAGHIDMAN 2014 p175 374 BUSI opcit pp15-17 375 SENDER opcit pp 46 ss
125
respectivamente o intelectual e o formativo absorvem as influecircncias superiores as
transfazem e conduzem em direccedilatildeo aos mundos fiacutesicos376
O Ein Sof
Acima da concepccedilatildeo das Sefirot a doutrina cabaliacutestica concebe a enigmaacutetica
existecircncia de outros trecircs niacuteveis supra espaccedilo-temporais O mais distante e
incompreensiacutevel dentre os trecircs encerra-se na ideia de Ain que se traduz como ldquonadardquo
O Ain natildeo representa a negaccedilatildeo da existecircncia mas a afirmaccedilatildeo de que ldquonenhum
termo do vocabulaacuterio humano poderaacute definir tal abstraccedilatildeordquo como define Tova
Sender Essa ideia exclui qualquer relaccedilatildeo com os mundos pertencentes ao tempo e
ao espaccedilo O Ain natildeo existe e natildeo estaacute eacute o ldquoImanifestordquo ou a ldquoExistecircncia Negativardquo377
Em seguida haacute o Ein Sof literalmente ldquosem fimrdquo ou ldquoinfinitordquo uma concepccedilatildeo
levemente mais definida que o Ain Difere do primeiro na medida em que pressupotildee
uma participaccedilatildeo no tempo e espaccedilo em razatildeo da inclusatildeo do termo ldquosofrdquo (ldquofimrdquo)
Permanece como no princiacutepio anterior a ideia de existecircncia negativa O Ein Sof Or
(ldquoluz infinitardquo) terceiro conceito aproxima-se da apreensatildeo humana em razatildeo da
presenccedila do termo ldquoorrdquo (ldquoluzrdquo) Contudo o Ein Sof Or manteacutem-se incompreensiacutevel e
constitui o terceiro veacuteu de existecircncia negativa378 Diferentemente das Sefirot que
podem ser conhecidas atraveacutes do estudo e da contemplaccedilatildeo a teologia hebraica
negativa postula que a verdadeira essecircncia de Deus nunca seraacute conhecida Assim na
maior parte das obras cabaliacutesticas a manifestaccedilatildeo de Deus no cosmo eacute concebida
somente a partir da emanaccedilatildeo que parte do Ein Sof Or fazendo com que Aquele se
revele ldquono emanado estaacute a forccedila do Emanador mas Este natildeo sofre diminuiccedilatildeo
algumardquo379 O sistema cabaliacutestico contempla ainda uma quarta concepccedilatildeo que seria
a unidade absoluta sintetizada no Tetragrama YHWH ndash ou ldquonome sagrado de Deus
de quatro letrasrdquo380
Na emanaccedilatildeo ocorre um processo de distinccedilatildeo atraveacutes do qual os seres satildeo
formados por separaccedilatildeo da unidade absoluta De acordo com Giulio Busi o problema
da passagem do Ein Sof ao domiacutenio da emanaccedilatildeo representou um dos pontos mais
tormentosos da especulaccedilatildeo cabalista381 Especialmente na Cabala do lsquo500 difundiu-
se a reflexatildeo sobre o aspecto secreto do desencadeamento da emanaccedilatildeo passando a
376 SENDER ibid p50 377 No sentido descendente a Aacutervore da Vida constitui o trajeto atraveacutes do qual o poder criador atuou no ato da
Criaccedilatildeo eacute a transformaccedilatildeo do AIN (ldquoNadardquo) em ANI (ldquoEurdquo) quando o Imanifesto torna-se Manifesto Note-se que AIN e ANI contecircm as mesmas letras e a permutaccedilatildeo entre elas segundo o meacutetodo cabalistico temuraacute ocorreu simultaneamente ao processo de involuccedilatildeo do poder criador (SENDER opcit p50)
378 SENDER opcit p46 Haacute registros de que o recurso agrave teologia negativa que opera com a impossibilidade de qualificar a iacutentima natureza do divino estava presente no iniacutecio do seacuteculo XIII nos ciacuterculos de Isaac o Cego (BUSI opcit p18)
379 A passagem eacute dos Sifre ha-lsquoiyyun (Livros da Contemplaccedilatildeo) redigidos na metade do seacuteculo XIII lecirc-se ainda ldquoEle eacute unido agraves suas forccedilas como a chama eacute unida agraves suas coresrdquo (cf Verman The Books of Contemplation Medieval Jewish Mystical Sources Albany 1992 apud BUSI opcit p18)
380 Paolo FORNACIARI (2009 p19) como outros autores pesquisados trata de forma bastante restrita o conceito de Tetragrama que tambeacutem eacute transliterado como IHVH Em outra qualificaccedilatildeo obscura informa SCHOLEM que o conjunto do universo estaacute selado em todos os seus seis lados com as seis permutaccedilotildees do nome IHVH e que todas as coisas existem por combinaccedilotildees dessas letras como assinaturas (1988 p201)
381 BUSI opcit p 20
126
ser bem aceita a concepccedilatildeo de que o impulso agrave manifestaccedilatildeo se deu como um
movimento espontacircneo da vontade divina expresso na ideia de expansatildeo Para que
tal manifestaccedilatildeo no cosmo fosse possiacutevel os cabalistas anuiacuteram que o Ein Sof tivesse
tido que se auto-limitar restringindo-se dentro do domiacutenio da compreensibilidade382
Tal ideia de contraccedilatildeo da Presenccedila Divina denominada Sekinah jaacute se encontrava
presente na literatura midraacuteshica e foi retomada no decorrer do seacuteculo XIII383 Mais
adiante no seacuteculo XVI Moshe Cordovero exprimiria o conceito de contraccedilatildeo divina
com um esclarecedor aforisma segundo o qual ldquoa emanaccedilatildeo eacute o espaccedilo de Sua
presenccedila no qual Ele se contraiurdquo de forma que ldquoSua grandeza mesmo que parcial
pudesse ser intuiacutedardquo Continuando dizia o cabalista que ldquoa razatildeo da emanaccedilatildeo eacute
dupla de uma parte Deus quis ocultar-se ateacute que as criaturas tivessem um limite de
outra parte Ele quis revelar-se para que as criaturas pudessem aferrar a Sua
grandezardquo384 As sentenccedilas confirmam conceitualmente o duplo movimento
presente na origem da Criaccedilatildeo o de ocultaccedilatildeo e o de manifestaccedilatildeo Ademais as
palavras de Cordovero que refletem uma posiccedilatildeo doutrinaacuteria aceita no Cabalismo
sustentam que o movimento em direccedilatildeo agrave cognoscibilidade comporta
necessariamente a ocultaccedilatildeo de tudo aquilo que natildeo pode ser compreendido pelos
seres finitos Sob esse prisma na concepccedilatildeo basilar de emanaccedilatildeo divina estaria
imbuiacuteda a ideia de uma paulatina revelaccedilatildeo de sua verdade ou de sua parcial
ocultaccedilatildeo Acerca do tema e especificamente de sua atuaccedilatildeo sobre o universo fiacutesico
escreveu de forma elucidativa o mestre de Pico Alemanno
O poder [divino] se estende e emana sobre todas as criaturas em
geral ainda que elas difiram no tocante agraves suas capacidades
receptivas assim os vegetais e os animais satildeo mais receptivos
ao efluxo divino do que os minerais O ser humano tem a maior
receptividade de todos [Mas] tambeacutem na espeacutecie humana os
homens possuem distintos graus de receptividade385
A passagem conquanto se refira agraves diversas formas de recepccedilatildeo das
emanaccedilotildees no universo fiacutesico confirma a atuaccedilatildeo da divindade sobre os mundos
inferiores atraveacutes de seus canais as Sefirot Outra caracteriacutestica integrante do
movimento emanente estaacute em seu retorno A presenccedila de um fluxo descendente e
outro ascendente estaacute clara nesta outra passagem de Alemanno ldquoEle recebe todos os
canais e as emanaccedilotildees dos mundos supernos e intermediaacuterios pois ningueacutem recebe
aquele bem na sua inteireza a natildeo ser Ele Quando Ele o recebe todas as emanaccedilotildees
382 Perceba-se que ao limitar-se em contraccedilatildeo ocorre uma queda de potecircncia Em cada subsequente estaacutegio ou
desniacutevel daacute-se uma consequente diminuiccedilatildeo da magnitude de poder da emanaccedilatildeo Essa concepccedilatildeo por si soacute pode propiciar algumas especulaccedilotildees teoloacutegicas
383 A contraccedilatildeo eacute definida em hebraico como simsum procedente da raiz simsem (BUSI 2011 p 20) A concepccedilatildeo da contraccedilatildeo divina sofre algumas variaccedilotildees ao longo do tempo Nachmacircnides trata do tema que tambeacutem consta do Midrash haacute-nersquoelam (O midrash escondido)
384 CORDOVERO Pardes Rimmonim A obra de Cordovero surgida pela primeira vez em Cracoacutevia em 1591 natildeo dispotildee atualmente de ediccedilatildeo comentada BUSI informa em sua bibliografia algumas traduccedilotildees da obra (2011 pp20-21 138)
385 ALEMANNO Collectanaea Manuscrito de Oxford 2234 f 105v Quanto aos graus de receptividade do homem a recepccedilatildeo de cada sefiraacute depende da estrutura do intelecto humano que pode participar do conhecimento apenas de forma gradual Sobre o tema veja-se BUSI 2011 p14
127
que descendem agrave terra estatildeo em equiliacutebrio e operam na perfeiccedilatildeordquo386 Haacute pois um
retorno ldquoa Elerdquo um movimento contraacuterio e necessaacuterio para o equiliacutebrio universal O
fluxo de ascese e descese passando atraveacutes da aacutervore sefiroacutetica permite que os
estamentos universais se estabeleccedilam
As conceituaccedilotildees referentes ao processo de emanaccedilatildeo a partir do Ein Sof
especialmente as escritas por Alemanno certamente natildeo deixariam de ser notadas
por Pico Em pelo menos duas conclusiones o tema eacute abordado diretamente Na tese
oacuterfica 15 eacute estabelecida uma correspondecircncia ldquosatildeo a mesma coisa a Noite em Orfeu e
o Ein Sof na Cabalardquo387 Para estabelecer tal analogia Pico estaria acolhendo em
ambas as designaccedilotildees a representaccedilatildeo da existecircncia informe ou da ausecircncia de
forma e distinccedilatildeo O tema eacute retomado na tese cabaliacutestica 31 secundum opinionem
propriam ldquoQuando os cabalistas colocam com o termo Tesuvah a ausecircncia de
forma esta deve ser entendida como estado antecedente agrave formardquo388 A concepccedilatildeo de
uma contraccedilatildeo divina tambeacutem natildeo deixaria de ser mencionada
Se concebermos Deus como infinito e uno e segundo si mesmo
de modo a compreender que drsquoEle nada procede sendo apenas
distanciamento das coisas total fechamento de si em si mesmo
e extremo profundo e solitaacuterio contrair-se no recesso mais
remoto da proacutepria divindade ndash entatildeo teremos uma intuiccedilatildeo
drsquoEle que se cobre no abismo de sua profundidade389
3 As divisotildees da Cabala e suas formas de aproximaccedilatildeo agrave divindade390
O vasto conjunto de materiais que foi sendo formado ao longo de seacuteculos
abrigando doutrinas que ora se complementavam ora natildeo dificilmente poderia
formar uma teoria unificada Assim que os milhares391 de textos e manuscritos
encontrados sob o leque do Cabalismo foram adquirindo tonalidades diferenciadas
que levaram agrave disposiccedilatildeo de alguns corpora com denominaccedilotildees distintas Embora
para Gershom Scholem toda a miacutestica judaica seja fundamentalmente uma teosofia ndash
386 ALEMANNO Einei haEdaacute (Os Olhos da Congregaccedilatildeo) Manuscrito de Jerusaleacutem 598 f 51r-v 387 Concl (II) X 15 p122 ldquoIdem est Nox apud Orpheum et Ensoph in Cabalardquo 388 Concl (II) XI 31 p132 ldquoCum audis cabalistas ponere in lsquoThesuarsquo informitatem intellige informitatem per
antecedentiam ad formalitatem non per priuationemrdquo 389 PICO Concl (II) XI 35 p132 ldquoSi deus in se ut infinitum ut unum et secundum se intelligatur ut sic nihil
intelligimus ab eo procedere sed separationem a rebus et omnimodam sui in seipso clausionem et extremam in remotissimo suae diuinitatis recessu profundam ac solitariam retractionem de eo intelligimus ipso penitissime in abysso suarum tenebrarum se contegente et nullo modo in dilatatione ac profusione suarum bonitatum ac fontani splendoris se manifestanterdquo Pontua FARMER (op cit p535) que Pico distingue nessa tese a natureza transcendente de Deus (Ein-Sof) de sua natureza manifesta (as Sefirot)
390 O termo ldquodivindaderdquo pode ser atribuiacutedo a uma miriacuteade de possibilidades dentro de uma estrutura hieraacuterquica de acordo com o modelo de Cabala e com a intenccedilatildeo do operador O conceito pode ser empregado para caracterizar desde entidades mais terrenas dentro de uma visatildeo que se aproxima ao paganismo como para designar o grau maacuteximo da Unidade Absoluta
391 Embora a quantidade possa parecer exagerada o nuacutemero de manuscritos espalhados atualmente entre vaacuterias bibliotecas do mundo eacute efetivamente avultoso como confirmam as obras dos especialistas Scholem e Idel
128
jaacute que trata da imersatildeo nos misteacuterios do mundo divino e de suas relaccedilotildees com o
mundo da Criaccedilatildeo ndash392 o proacuteprio reconhece algumas divisotildees temaacuteticas existentes na
Cabala dentre as quais duas principais a chamada Cabala Praacutetica Qabalaacute Maassit
e a chamada Cabala Especulativa Qabalaacute Iiunit393 Em suas Conclusiones
Cabalisticae Giovanni Pico mostrava ter conhecimento dessas duas divisotildees
testemunhando que a distinccedilatildeo jaacute era bem aceita pelos cabalistas da eacutepoca394 A
Cabala Especulativa tomou outra subdivisatildeo a saber o modelo teuacutergico-teosoacutefico
mais difundido e considerado mais importante e o modelo extaacutetico-meditativo
tambeacutem chamado profeacutetico Essas se tornaram as trecircs principais distinccedilotildees aceitas
pelos atuais comentaristas cabaliacutesticos representando sucintamente trecircs formas de
se relacionar com a Cabala a praacutetica em alguns casos chamada ldquomaacutegicardquo a teuacutergica e
a extaacutetica395 A elucidaccedilatildeo de tais modelos seraacute uacutetil para a compreensatildeo de seus
propoacutesitos e consequentemente de seu uso na obra piquiana
A Cabala Praacutetica
Difundida especialmente a partir da escola askenazita florescida no seacuteculo XII
e responsaacutevel por levar o misticismo judaico a uma fase de transiccedilatildeo396 a Cabala
Praacutetica lida com formas ritualiacutesticas que poderiam ser organizadas ao longo de uma
reacutegua de graduaccedilotildees Tambeacutem chamada ldquomaacutegico-talismacircnicardquo contempla um
conjunto de procedimentos voltados agrave obtenccedilatildeo de determinados benefiacutecios que se
distribuem em graus variaacuteveis de densidade material relacionados agrave utilizaccedilatildeo de
praacuteticas maacutegicas Nesse sentido a magia deve ser entendida como elemento que faz
parte do saber miacutestico judaico apresentando-se sob uma profusatildeo de formas
presentes desde o final da Antiguidade397 Com o passar do tempo ocorreu a
despotencializaccedilatildeo da Cabala maacutegica em virtude da crescente manipulaccedilatildeo de
elementos externos para a obtenccedilatildeo de benefiacutecios materiais eou pessoais levando a
Cabala Praacutetica a aproximar-se do paganismo398 Efetivamente vaacuterias narrativas
recolhidas nos Talmudim e Midrashim de eacutepoca tardo-antiga descrevem foacutermulas
392 SCHOLEM 1999 pp 64-65 Malgrado qualquer definiccedilatildeo que o termo ldquoteosofiardquo possa ter tomado apoacutes o
seacuteculo XVIII cabe ressaltar que o uso empregado pelos comentadores ao tratar das concepccedilotildees presentes na Cabala relaciona-se agrave forma como o mesmo era utilizado pelos neoplatocircnicos para indicar o conhecimento das coisas divinas proveniente da inspiraccedilatildeo direta de Deus Nesse sentido veja-se por exemplo Proclo (Theologia Platonica V 35) e Porfiacuterio (De abstinentia ab esu animalium IV 17)
393 SCHOLEM 1989 p5 Foi a escola espanhola a produzir a primeira literatura apontando para uma dicotomia entre Cabala praacutetica e especulativa Essa distinccedilatildeo pode ter relaccedilatildeo com a divisatildeo formulada por Maimocircnides entre filosofia especulativa e filosofia praacutetica em seu tratado sobre loacutegica Milot ha-Higaion (IDEL 2008-a p32)
394 PICO Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum hebraeorum 1 ldquoIndependentemente do que digam todos os outros cabalistas eu distinguirei o conhecimento da Cabala na Ciecircncia da Numeraccedilatildeo ou Sephirot e na Ciecircncia de Semot ou Nomes em relaccedilatildeo agrave ciecircncia praacutetica e especulativardquo Pico toma emprestada tal distinccedilatildeo do cabalista Abraham Abulafia (cf IDEL Lrsquoesperienza mistica di Abraham Abulafia Milano 1992 p46 apud FORNACIARI 2009 np35)
395 IDEL 2008a p19 veja-se o inteiro artigo para detalhes acerca dos modelos de Cabala 396 Leia-se mais em BUSI opcit p49 397 Algumas partes desse tipo de conhecimento sobreviveram e encontram-se em textos hebraicos e aramaicos
como informa IDEL (2008-a pp32-33) 398 IDEL 2008a p38 Na paacutegina 37 da mesma obra Idel cita um trecho do Pardes Rimonim obra claacutessica da
literatura de Safed de Cordovero em que se encontra descrita a forma de utilizaccedilatildeo das cores para atrair as forccedilas sefiroacuteticas
129
maacutegicas e extraordinaacuterios poderes de antigos mestres confirmados por achados
arqueoloacutegicos que provam sua difusatildeo durante a diaacutespora do Oriente Proacuteximo399
Na Idade Meacutedia sob o impacto de concepccedilotildees filosoacuteficas reinantes entre os
aacuterabes surgiram elaboraccedilotildees que se sustentavam sobre a ideia que canalizando a
fonte espiritual que governa o mundo o operador poderia manipular os
acontecimentos do mundo sublunar Por conseguinte desenvolveu-se na magia
medieval aacuterabe e judaica o conceito de atraccedilatildeo das forccedilas dos corpos celestiais Tais
forccedilas denominadas Pneumata Ruhaniyyat ou Ruhaniot ndash respectivamente em
grego aacuterabe e hebraico ndash poderiam ser atraiacutedas e capturadas por meio de tipos
especiais de objetos e rituais cujas naturezas deveriam estar em concordacircncia com as
feiccedilotildees dos correspondentes corpos celestiais400 Entre as maneiras de atrair os vaacuterios
gecircneros de forccedilas existentes a linguagem mostrava-se a principal forma utilizada
sendo um procedimento que de acordo com o modelo de Cabala poderia ser
empregado em oitavas diferenciadas401
Os resultados dos chamados ldquoencantamentosrdquo passam a se difundir nos
ciacuterculos cabaliacutesticos sobretudo a partir do seacuteculo XII eacutepoca de difusatildeo da obra de
magia Secircfer Raziel (O Livro de Raziel) inclusive entre os cristatildeos402 Para muitos
sua autoria deveria ser atribuiacuteda a Eleazar de Worms que teria escrito tambeacutem um
comentaacuterio ao Secircfer Yetsiraacute onde se leem algumas instruccedilotildees para a feitura de um
ser vivo intitulado Golem403 Ainda antes de difundir-se nos ciacuterculos renanos essa
intrigante concepccedilatildeo era conhecida entre os judeus da Itaacutelia meridional mesmo em
ambientes culturalmente elevados na obra Megillat Ahimarsquoas redigida na Puglia do
seacuteculo XI narra-se a criaccedilatildeo de um golem a partir da potecircncia do Tetragrama404
Contudo a maior absorccedilatildeo da literatura referente ao golem se daacute no Quattrocento
italiano certamente natildeo passaria despercebida aos ilustrados do Renascimento a
399 BUSI 2011 p27 Muitos dos achados arqueoloacutegicos traziam amuletos com nomes angeacutelicos frequentemente
agrupados em longas sequecircncias para reforccedilar seu valor apotropaico Maiores detalhes sobre a Cabala Praacutetica podem ser encontrados nas seguintes obras indicadas por BUSI PATAI R Alchimisti ebrei-Storia e fonti trad S Bondoni Genova 1997 SEacuteD N Lrsquoalchimie e la Science sacreeacute des lettres Notes sur lrsquoalchimie juive agrave propos de lrsquo ldquoEgravesh mesarephrdquo in Alchimie Art Histoire et mythes Paris-Milan 1995 pp547-649
400 Maimocircnides embora natildeo simpatizante dessa espeacutecie de atividade foi quem melhor descreveu as formas de atraccedilatildeo de forccedilas para objetivos praacuteticos nas passagens em que trata sobre idolatria (IDEL 2008-a p34)
401 O uso da Cabala Praacutetica natildeo se restringe agrave obtenccedilatildeo de benefiacutecios materiais ou egoiacutesticos como poderia ser entendido Como conta Tova SENDER (opcit p82) o poder da linguagem relacionado agrave leitura dos Salmos para citar um exemplo constitui um recurso utilizado por comunidades judaicas em tempos de perigo natildeo apenas na Antiguidade como nos dias atuais
402 SENDER opcit p79 O Secircfer Raziel eacute um manual contendo instruccedilotildees para a confecccedilatildeo de amuletos Veja-se o amplo material coletado por Franccedilois SECRET Sur quelques traductions du Sefer Raziel in Revue des Eacutetudes Juives 128 1969 pp223-245
403 Considera-se que a recitaccedilatildeo correta dos versos do Secircfer Yetsiraacute tem a forccedila para produzir uma criatura e dotaacute-la de vitalidade hiut e alma neschamaacute Como no idioma hebraico eacute possiacutevel natildeo definir o tempo verbal em razatildeo de sua ausecircncia de vogais as sentenccedilas presentes naquela obra podem ser lidas como ldquoEle combinou Ele formourdquo ou de forma imperativa ldquoCombine Formerdquo (cf MAGHIDMAN 2014 p109) Acerca da criaccedilatildeo real de um ser animado conta-se que no seacuteculo XVI em Praga notabilizou-se o rabino Loumlew por criar um golem partindo do barro e utilizando o Livro da Criaccedilatildeo Sobre o tema a composiccedilatildeo intitulada Sod Peulat haYetsiraacute (O Segredo da Operaccedilatildeo da Criaccedilatildeo) eacute um dos textos que descreve a criaccedilatildeo de um golem (cf IDEL As obras e a doutrina de Abratildeo Abulafia opcit 1976 p131) Tambeacutem de IDEL Golem Jewish Magical and Mystical Traditions on the artificial Anthropoid 1990 pp 54-80 96-118 127-163 Veja-se ainda SCHOLEM e seu capiacutetulo ldquoA ideia do Golemrdquo (A Cabala e seu Simbolismo 1978) BUSI e suas sugestotildees bibliograacuteficas acerca do tema (2011) SENDER (1992 p80)
404 BUSI idem
130
possibilidade de confeccionar um ser animado De fato como conta Franco Bacchelli
ldquonaqueles anos entre aqueles homens [do final do lsquo400] encontrava-se vivo natildeo
apenas o velho problema da possibilidade da geraccedilatildeo espontacircnea de animais
superiores mas tambeacutem a questatildeo da possibilidade de conferir vida para vaacuterios fins
operativos e sapienciais a mateacuterias inanimadasrdquo405 Satildeo justamente desse periacuteodo
as discussotildees ficinianas sobre as estaacutetuas que poderiam capturar daimons ou sobre a
geraccedilatildeo de ldquointelectosrdquo profeacuteticos estabelecidos por Lazzarelli a partir das receitas
para se confeccionar um golem406
O interesse pela magia eacute um elemento que compotildee a cena do seacuteculo XV como
visto no Capiacutetulo I e que mereceu destaque em obras piquianas como as
Conclusiones a Oratio e a Apologia O conhecimento de formas da magia hebraica
abriria espaccedilo para discussotildees mais profundas de teor eacutetico que envolveriam Pico
Alemanno e pronunciadas distinccedilotildees entre formas da Cabala consideradas puras e
impuras relacionadas aos lados ldquodireito e esquerdordquo407 A conceituaccedilatildeo do ldquolado
esquerdordquo tem suas origens ligadas muito provavelmente agrave ideia de sitra ahara
(ldquooutro ladordquo) expressa no Zohar Um manuscrito do seacuteculo XVI de autor anocircnimo
adverte para a necessidade de se preservar tais ensinamentos informando que ldquoa
Cabala praacutetica consiste em conjuraccedilotildees de anjos um saber que deve ser escondido
por causa daquelas pessoas que satildeo mestres da praacutexis [anschei baalei maaseacute]rdquo408
Alemanno demonstrara interesse pelo aspecto operativo da Cabala ainda antes
de conhecer seu disciacutepulo embora reconhecendo sua posiccedilatildeo inferior em relaccedilatildeo agraves
formas mais elevadas de especulaccedilatildeo cabaliacutestica Pico por sua vez sabia que eram
proibidas as praacuteticas que empregavam nomes divinos para encantar democircnios
deixando claro em sua Tese maacutegica nr 26 que apenas a Cabala ldquopura e imediatardquo
poderia mover algo ldquoque nenhuma magia alcanccedilardquo409 Alemanno ndash e mais tarde
Cordovero que acolheria o influxo de seus procedimentos em Safed ndash tinha ciecircncia
da similaridade entre o tipo de Cabala que estava propondo e as praacuteticas maacutegicas
pagatildes ndash e natildeo pretendia quebrar a ordem natural recorrendo a forccedilas demoniacuteacas que
poderiam destruir tal ordem Ao contraacuterio propunha um tipo de atividade que
complementasse o curso natural das coisas adicionando uma dimensatildeo da praacutexis
baseada em leis jaacute existentes Para um cabalista como Alemanno que utilizava a
405 Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione
cabaliacutestica 2001 p 62 406 BACCHELLI ibid p76 Na mesma obra em nota agrave p 82 o autor aborda a maneira como Lazzarelli em sua
obra Crater Hermetis absorveu a doutrina da criaccedilatildeo do Golem e a forma de utilizaccedilatildeo dos nomes divinos 407 Assim escreveria o Rabi Elias Menakhem Halfan mais tarde em uma epiacutestola do seacuteculo XVI ldquoa ciecircncia da
Cabala dividiu-se no iniacutecio em duas partes chamadas de lado direito e lado esquerdo O lado direito eacute todo pureza e santidade nomes divinos e angelicais e questotildees sagradas O lado esquerdo eacute todo [] democircnios e cascas do lado impurordquo (Manuscrito JTS 1822 f 153v)
408 IDEL 2008-a p32-33 O manuscrito em questatildeo originou-se na escola cabalista espanhola cuja tendecircncia agrave magia foi visiacutevel no seacuteculo XV Ao contraacuterio da magia naturalis aceita por Ficino Pico e Alemanno seus contemporacircneos espanhoacuteis cultivavam um tipo de magia diversa que lidava com conjuraccedilotildees de anjos e democircnios para uma variedade de desiacutegnios inclusive o escatoloacutegico Haacute relatos de que alguns cabalistas da Espanha cultivaram uma forma demoniacuteaca e violenta de Cabala maacutegica destinada a destruir a ordem histoacuterica e religiosa predominante que significava entre outras coisas tambeacutem o Cristianismo (IDEL Jewish Magic from the Renaissance to Early Hasidism in Neusner-Frerichs-McCracken (eds) New York-Oxford Oxford University Press 1989 pp 86-99)
409 PICO Concl (II) IX 26 p120 ldquo[] ita per opus Cabalae si sit pura Cabala et immediata fit aliquid ad quod nulla Magia attingitrdquo
131
magia em sua forma mais pura tal atividade era considerada sobrenatural apenas na
medida em que sua ordenaccedilatildeo se mostrava pertencente a uma ordem superior410 A
clara percepccedilatildeo da existecircncia de dimensotildees supracelestes puras e impuras bem como
de operadores cabalistas eticamente diferenciados em qualquer das formas
atribuiacuteveis agrave Cabala foi registrada pelo mestre de Pico
Qualquer homem bom ou mau que conheccedila a obra dos anjos
puros e impuros que satildeo superiores agraves estrelas pode atrair sua
fragracircncia sobre nossas cabeccedilas pois deu uma interpretaccedilatildeo
cabaliacutestica agrave Toraacute inteira Nisso estatildeo inclusos os mestres das
ciecircncias especulativas e praacuteticas das Sefirot411
A Cabala Teuacutergica
O modelo teuacutergico-teosoacutefico bastante amplo em relaccedilatildeo agrave quantidade de
material que lhe foi designado abrange de um lado o domiacutenio de especulaccedilatildeo que os
estudiosos descrevem como ldquoteosoacuteficordquo ndash pois lida com os diferentes e complexos
mapas do reino divino procurando revelar os misteacuterios da vida oculta de Deus suas
relaccedilotildees com a vida humana e as desta com a Criaccedilatildeo de outro a chamada ldquoteurgiardquo
ou a maneira atraveacutes da qual certos feitos religiosos humanos exercem impacto sobre
o referido reino412 Os teurgos entendem que o homem seja capaz de ativar o influxo
divino atraveacutes de cerimocircnias religiosas e invocaccedilotildees Um paradigma de pensamento
teuacutergico foi aquele desenvolvido por Jacircmblico baseado na eficaacutecia do rito como
ativador das forccedilas celestes Segundo o neoplatocircnico ldquograccedilas agraves forccedilas dos segredos
singulares que possui o teurgo natildeo comanda as potecircncias coacutesmicas como um
homemrdquo mas ldquocomo um ser que jaacute alcanccedilou o niacutevel dos deusesrdquo413 Esse eacute o
entendimento que se extrai das formas teuacutergicas mencionadas por Pico sobretudo
nas Conclusiones que tratam dos Hinos de Orfeu414 Sob o Cabalismo o conceito de
410 IDEL 2008-a pp 37-38 Em seu Collectanaea Alemanno elucida que o processo para a aquisiccedilatildeo de
poderes maacutegicos atraveacutes da emanaccedilatildeo das forccedilas superiores compreende dois estaacutegios em uma abordagem que parte do inferior ao superior inicialmente a pessoa receberia uma vibraccedilatildeo menos elevada do efluxo divino somente apoacutes habituar-se a ele poderia receber o efluxo adicional ldquoo espiacuterito do Deus vivordquo que caracterizaria o ldquodescenso da espiritualidaderdquo (horadat haRukhaniut) Para o autor se os atos para o descenso das forccedilas fossem feitos sob a utilizaccedilatildeo dos corretos mandamentos e ritos judaicos qualquer conduta ndash que em outra situaccedilatildeo seria irregular ndash tornar-se-ia atenuada Assim as consecuccedilotildees materiais e espirituais poderiam ser realizadas sem uma tentativa de ldquocurto-circuitarrdquo a ordem da natureza ou ldquosem forccedilar a vontade divinardquo (cf IDEL ibid p35) Note-se que em Florenccedila a ideia de descenso das forccedilas espirituais recebeu criacuteticas de Moiseacutes ben Yoav que considerava essa praacutetica idolatria em todos os aspectos Elia Del Medigo descartava completamente qualquer de suas formas Em sua obra Bekhinat haDat (O Exame da Religiatildeo) Del Medigo se opotildee agravequeles (como Alemanno provavelmente) que viam na Toraacute e nos preceitos meios para causar o descenso das forccedilas espirituais (ldquoeacute impossiacutevel que as forccedilas espirituais descendam para o mundo do modo que dizem os magos Ao examinarmos os dizeres da Toraacute vemos que ela se opotildee energicamente a tais praacuteticas idoacutelatrasrdquo) Cf IDEL 2008-b p 477 np 493
411 ALEMANNO Collectanaea in Manuscrito de Paris 849 f 7v 412 IDEL 2008a p 20 Essa forma de Cabala fez parte das discussotildees dos cabalistas espanhoacuteis encontrando no
Zohar uma forte expressatildeo florescendo posteriormente de forma mais vigorosa no ciacuterculo luriacircnico de Safed no seacuteculo XVI Para maiores detalhes acerca da notoacuteria escola desenvolvida por Isaac Luria veja-se IDEL 1998 pp 22-23
413 Apud BUSI (opcit p34) que natildeo cita a fonte de Jacircmblico 414 Veja-se por exemplo a Conclusio oacuterfica nr2 cf Cap III
132
Teurgia refere-se agrave crenccedila do cabalista em sua habilidade especiacutefica de influenciar no
processo e na condiccedilatildeo das Sefirot atribuindo ao rito uma especial forccedila operativa415
Tanto o fenocircmeno de recebimento do efluxo sefiroacutetico como a leitura dos
nomes divinos eram elementos familiares a Pico e integravam respectivamente a
ldquoCiecircncia das Sefirotrdquo e a ldquoCiecircncia Semotrdquo mencionadas nas Conclusiones416 A
conexatildeo entre esses dois aspectos eacute abordada no Takhlit heHakham obra conhecida
tanto por Pico como por Alemanno onde se lecirc ldquoAristoacuteteles disse que [] nos tempos
antigos os nomes divinos tinham uma certa capacidade para trazer a forccedila espiritual
agrave terra Agraves vezes essas forccedilas descendiam Outras vezes matavam o homem que as
utilizasserdquo417 A menccedilatildeo aos tempos de Aristoacuteteles eacute utilizada pelo autor do
manuscrito para prevenir contra o perigo envolvido nas praacuteticas de rituais teuacutergicos
quando natildeo eacute dada a devida atenccedilatildeo aos detalhes ndash advertecircncia referida em muitos
livros cabaliacutesticos O Sefer haAtzamin (f13) por exemplo determina ldquose a pessoa
natildeo for especialista e versada em causar o descenso das forccedilas e a execuccedilatildeo dos
rituais eles o mataratildeordquo418 Tambeacutem Pico era ciente dos riscos envolvidos nas
operaccedilotildees cabaliacutesticas tanto que assim escreveria em suas Teses ldquoQuem opera em
Cabala[] se cometer erros ao operar ou iniciar-se sem preacutevia purificaccedilatildeo seraacute
devorado por Azazel segundo as regras da justiccedilardquo419
Sob o prisma teuacutergico o estudo das estruturas das Sefirot natildeo denota apenas
uma ocupaccedilatildeo teoacuterica mas uma possibilidade de colocar o adepto em grau de intervir
diretamente sobre o mundo superno a ponto de influenciar a dinacircmica das forccedilas
divinas Enquanto a magia exercida na Cabala Praacutetica utiliza os efeitos da propagaccedilatildeo
de forccedilas superiores sobre o mundo material atraindo-as para baixo a Teurgia de
forma contraacuteria empurra o miacutestico em direccedilatildeo ao alto caracterizando-se assim
como uma forma de caminho iniciaacutetico420 O miacutestico-teurgo tem por objetivo elevar-
se ndash no caso dos cabalistas agrave dimensatildeo sefiroacutetica ndash usando como instrumentos os
especiacuteficos rituais destinados para influir sobre aquelas forccedilas Um importante
desdobramento da relaccedilatildeo causa-efeito entre as accedilotildees materiais e suas repercussotildees
celestes encerra-se na concepccedilatildeo cabaliacutestica de que as accedilotildees ritualiacutesticas natildeo satildeo as
415 IDEL 2008-b n p 461 416 Referentes agrave Cabala Especulativa e agrave Cabala Praacutetica cf Conclusio Cabalistica (II) XI 1 417 Cf Manuscrito de Munique 214 f51r apud IDEL 2008-b p474 Em outro artigo IDEL observa que a
magia heleniacutestica antiga lidava com o recebimento de forccedilas espirituais chamadas naquele contexto pneumata (2008-a p34)
418 IDEL 2008-b np 485 419 PICO Concl (II) XI 13 ldquoQui operatur in Cabalaet si errabit in opere aut non purificatus accesserit
deuorabitur ab Azazele per proprietatem iudicii A primeira parte da conclusio 13 postula que aquele que operar em Cabala da forma correta encontraraacute a conjunccedilatildeo com Deus (ou com o Absoluto conforme a concepccedilatildeo da ldquoMorte do Beijordquo) Elucida FORNACIARI que assim como o ecircxito positivo traz um resultado de dimensotildees absolutas o eventual ecircxito negativo natildeo se limitaraacute a um simples fracasso mas ao completo extermiacutenio do operador inexperiente atraveacutes da ldquofagocitoserdquo por parte do democircnio (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001)
420 BUSI opcit p34 ss A magia da Cabala Praacutetica transformou-se em Teurgia tatildeo logo o objeto do efluxo espiritual passou a ser a sefiraacute de Malkhut ndash a esfera mais proacutexima ao reino material ndash e natildeo a pessoa do cabalista ou o do mago Contudo as duas formas apresentam-se como um caminho de matildeo dupla o atrair as forccedilas para baixo pode se dar em dois estaacutegios o ato teuacutergico inicial opera levando a emanaccedilatildeo da sefiraacute mais elevada ateacute a uacuteltima Malkut onde eacute possiacutevel ndash usando uma linguagem neoplatocircnica ndash a uniatildeo do intelecto com o inteligiacutevel em seguida o influxo da uacuteltima sefiraacute eacute atraiacutedo para o reino sublunar ocasionando o que se chama ldquotransbordordquo das Sefirot um ato ligado ao territoacuterio da praacutetica ou magia (cf IDEL 2008-a pp 38-43 2008-b p 471)
133
uacutenicas a reverberarem no ceacuteu como explica Giulio Busi cada ato humano mesmo o
mais simples obteacutem um resultado velado na outra dimensatildeo ldquopropagando-se como
uma onda ateacute o mais iacutentimo do misteacuterio transcendenterdquo421 Pode-se entender assim
porque a Cabala tem um papel especial no processo de dignificaccedilatildeo do homem
proposto por Pico em quase todas as suas obras a especulaccedilatildeo cabaliacutestica atribui ao
homem uma extraordinaacuteria responsabilidade na medida em que o torna partiacutecipe do
equiliacutebrio divino
A interpretaccedilatildeo das Escrituras eacute uma das ferramentas utilizadas para alcanccedilar
a comunhatildeo objetivada como abordado no item referente agrave tradiccedilatildeo oral Outras
formas ritualiacutesticas assim como na Cabala Praacutetica se datildeo pelo uso da linguagem em
virtude de sua qualidade de refletir seja pelas letras ou por seu som a estrutura
interna do reino divino ndash isto eacute do sistema sefiroacutetico ndash visto que dele participam
Essa qualidade criadora presente nas letras hebraicas permite sua atuaccedilatildeo na
mateacuteria como melhor explica Lipiner ldquoas letras do alfabeto hebraico seriam espiacuterito
derivado de espiacuterito que deslizam progressivamente da sutil sabedoria e pensamento
divinos ateacute converterem-se em substacircncias das coisas materiais jaacute presentes
integralmente nelas em potecircnciardquo422 Por conseguinte os corretos vocaacutebulos
juntamente com a correta forma de pronuacutencia natildeo apenas permitem ao teurgo influir
sobre aquela estrutura como restauram a harmonia no interior do reino divino423
A Cabala Extaacutetica
Embora a Cabala Teuacutergica tivesse adotado visotildees neoplatocircnicas importantes
os elementos aristoteacutelicos presentes na Cabala Extaacutetica foram essenciais para que
essa forma predominasse na Itaacutelia onde exerceu maiores repercussotildees sobre
pensadores do lsquo400 em razatildeo das nuances que a aproximava agrave Filosofia
Manifestando-se entre o final do seacuteculo XIII e o iniacutecio do XIV sobretudo atraveacutes dos
manuscritos dos cabalistas espanhoacuteis Abraham Abulafia Natan Saadia e Isaac de
Acre ndash os trecircs em linhagem sucessoacuteria mestre-disciacutepulo ndash a Cabala Extaacutetica
estabeleceu-se cuidando da questatildeo que envolve a comunhatildeo do homem com o
Espiacuterito divino424 Tanto Alemanno quanto Pico estavam bem familiarizados com
esse modelo de Cabala graccedilas aos estudos sobre os escritos de Abulafia que agregou
421 Como exemplifica Busi a uniatildeo sexual entre um homem e uma mulher sob a oacutetica cabalista provoca a
conjunccedilatildeo sefiroacutetica entre Malkut a sefiraacute que representa o princiacutepio feminino ligado ao Reino e Tiferet a sefiraacute da Beleza que conota o princiacutepio masculino (2011 p35)
422 Elias LIPINER As letras do Alfabeto na criaccedilatildeo do mundo - Contribuiccedilatildeo agrave pesquisa da natureza da linguagem 1992 p107 A essecircncia dinacircmica contida nas letras defendida e chamada de ldquoalma das letrasrdquo por Isaac o Cego relembra caracteriacutesticas platocircnicas de potecircncia criadora oriunda do mundo das Formas e das Ideias como justamente infere SCHOLEM (1999 p33)
423 A ideia de restauraccedilatildeo de harmonia no interior do reino divino concepccedilatildeo que pode soar incocircmoda eacute melhor entendida atraveacutes da explicaccedilatildeo de Yohanan Alemanno ldquoEle [o divino] recebe todos os canais e as emanaccedilotildees dos mundos supernos e intermediaacuterios pois ningueacutem recebe aquele bem na sua inteireza a natildeo ser Ele Quando Ele o recebe todas as emanaccedilotildees que descendem agrave terra estatildeo em equiliacutebrio e operam na perfeiccedilatildeordquo Depreende-se dessas palavras que o fluxo espiritual ocorre em duas vias o reino divino natildeo apenas emite como ldquoreceberdquo as emanaccedilotildees conferindo assim perfeiccedilatildeo ao mundo inferior e perpetuando a proacutepria harmonia (ALEMANNO Einei haEdaacute ndash Os Olhos da Congregaccedilatildeondash in Manuscrito de Jerusaleacutem 598 f 51 r-v
424 IDEL 2008-a p29 No seacuteculo XVI a Cabala extaacutetica teraacute forte repercussatildeo atraveacutes dos escritos de Cordovero Iehudaacute Albotini e Haim Vital entre outros
134
elementos aristoteacutelicos significativos em suas concepccedilotildees fiacutesicas metafiacutesicas e
relacionadas agrave alma425 Diferentemente da Cabala Teuacutergica que atua na atraccedilatildeo de
forccedilas exteriores aqui o foco principal se concentra nos processos interiores que
ocorrem entre o intelecto humano e o coacutesmico por alguns denominado Intelecto
Ativo426
Assim como nas outras formas de Cabala a Extaacutetica utiliza algumas teacutecnicas
para atingir seus objetivos nesse caso voltados a alcanccedilar determinado estado de
ecircxtase ndash o chamado devekut ou uniatildeo com a Divindade ndash e excepcionalmente de
profecia427 Segundo Abulafia a profecia decorre do contato entre a inteligecircncia
pessoal e a inteligecircncia universal que envolve a Criaccedilatildeo A alma humana natildeo pode
suportar o influxo direto da inteligecircncia superior graccedilas a certos ldquonoacutesrdquo que a mantecircm
atada agrave mateacuteria O estado contemplativo permite que tais noacutes sejam desatados
atraveacutes da observaccedilatildeo extaacutetica de algum objeto sem sentido proacuteprio como por
exemplo a contemplaccedilatildeo das letras hebraicas ndash sem os riscos de outros
procedimentos Atraveacutes da escrita aleatoacuteria das letras sem a preocupaccedilatildeo de
formaccedilatildeo de algum sentido e da meditaccedilatildeo sobre cada uma de forma isolada evita-
se que a mente entre em processo de associaccedilotildees em cadeia A abstraccedilatildeo da mente
possibilita a rarefaccedilatildeo das faculdades sensoriais e a ocorrecircncia do estado de ecircxtase
com consequente abertura para o influxo da inteligecircncia superior Igualando-se na
forccedila espiritual de cada letra o miacutestico torna-se uno com ela vivenciando uma
experiecircncia de caraacuteter singular ndash conforme contam os relatos descritos em muitos
textos cabaliacutesticos428
Partes fundamentais desse processo satildeo os dispositivos e teacutecnicas para
assegurar sua consecuccedilatildeo Atraveacutes do relato de Isaac de Acre tem-se a informaccedilatildeo
das teacutecnicas conhecidas como ldquohitbodedutrdquo que se caracteriza pelo exerciacutecio da
solidatildeo e concentraccedilatildeo e ldquohischtavutrdquo a equanimidade ldquoAquele que merecer o
segredo da comunhatildeo [com o divino] mereceraacute o segredo da equanimidade se ele
425 Para elucidaccedilotildees sobre a forma que Abulafia e outros cabalistas italianos utilizaram o Aristotelismo em suas
filosofias veja-se IDEL The Study Program (opcit) pp 310-311 nota 68 para as leituras de Pico acerca de Abulafia veja-se em Wirszubski vaacuterias menccedilotildees (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism opcit) Ademais foge ao escopo traccedilado a abordagem das vaacuterias siacutenteses efetuadas entre as doutrinas cabaliacutesticas e as filosofias neoplatocircnica e aristoteacutelica no periacuteodo do Renascimento limitamo-nos portanto a apenas mencionar a existecircncia de tais inter-relaccedilotildees cujos estudos podem ser verificados nas obras de SCHOLEM Origins of the Kabbalah (Princeton University Press 1987 pp 316-320 327-330 363-364 389-390) e de IDEL Jewish Kabbalah and Neoplatonism in the Middle Ages and Renaissance (in Neoplatonism and Jewish Thought Albany Suny 1992 pp 319-351)
426 IDEL 1998 p 27 2008-a p28 427 IDEL 2008-a p29 Quando o fundador do hassidismo polonecircs Israel Baal-Schem expocircs no seacuteculo XVIII a
tese miacutestica de que a comunhatildeo com Deus (devekut) eacute mais importante do que o estudo de livros houve muita oposiccedilatildeo e sua ideia foi citada nas polecircmicas anti-hassiacutedicas como prova de tendecircncias subversivas e anti-rabiacutenicas do movimento A mesma teoria exposta duzentos anos antes por Isaac Luacuteria a grande autoridade miacutestica de Safed natildeo suscitara nenhum antagonismo Segundo SCHOLEM (1978) uma evidecircncia de mudanccedila no clima histoacuterico
428 Abraham Abursquol-Afiyah de Saragoza ndash ou Abulafia ndash que teve na ideia de profecia o propoacutesito fundamental de seu inteiro projeto cabaliacutestico realizou pesquisas acerca de tal fenocircmeno que resultaram em sua obra Chochmat Hatzeruf (A ciecircncia da combinaccedilatildeo das letras) Maiores detalhes acerca dessa forma de praacutetica cabalista podem ser encontrados em SCHOLEM A Cabala e seu Simbolismo 1988 Ainda em SCHOLEM o capiacutetulo sobre Abraham Abulafia na obra A Miacutestica Judaica conteacutem alguns registros antigos dessa experiecircncia com riqueza de detalhes Veja-se tambeacutem BUSI 2011 p 26 IDEL 2008-a pp28-30 IDEL The Mystical Experience in Abraham Abulafia 1987 IDEL Studies in Ecstatic Kabbalah 1988
135
receber esse segredo entatildeo conheceraacute tambeacutem o segredo de hitbodedut recebendo o
Espiacuterito Divino e daiacute a profeciardquo429 Essas teacutecnicas estatildeo relacionadas com a triacuteplice
purificaccedilatildeo ndash a limpeza do corpo a limpeza interior e a purificaccedilatildeo da imaginaccedilatildeo ndash
descrita por Alemanno em seu Collectanaea como meacutetodo para operar a realizaccedilatildeo
de milagres Uma vez despido de todas as sensaccedilotildees e pensamentos materiais deveraacute
o operador ler apenas a Toraacute e os nomes divinos nela escritos para que entatildeo lhe
sejam revelados ldquosegredos impressionantes e visotildees divinas tais como as que podem
ser emanadas sobre as almas puras preparadas para recebecirc-losrdquo430 A alusatildeo de
Alemanno refere-se pois ao estado extaacutetico atingiacutevel atraveacutes da contemplaccedilatildeo dos
nomes divinos Se na Cabala Teuacutergica a interpretaccedilatildeo da Toraacute eacute utilizada como
elemento de aproximaccedilatildeo agrave divindade na Extaacutetica seraacute a contemplaccedilatildeo de cada letra
a propiciar a abstraccedilatildeo necessaacuteria para atingir o ecircxtase
A praacutetica da contemplaccedilatildeo esteve presente desde a primeira fase do misticismo
judaico embora inicialmente relacionada agrave contemplaccedilatildeo dos mundos superiores
conforme os mencionados tratados dos Heikhalot os miacutesticos dedicavam-se entatildeo a
exerciacutecios meditativos que os permitissem visualizar os mundos celestiais a
ldquoCarruagemrdquo (Mercavaacute) o ldquoTrono da Gloacuteriardquo e os seres muitas vezes hostis que
correspondem agraves diversas ordens angelicais Apesar de essa jornada sugerir uma
ascensatildeo os visionaacuterios e exploradores dos planos celestiais eram chamados Iordei
Mercavaacute (ldquoos que descem agrave Carruagemrdquo) provavelmente aludindo natildeo a uma saiacuteda
de si mas a um aprofundamento dentro do proacuteprio ser431 A importacircncia da
contemplaccedilatildeo encontra-se ademais no centro do pensamento de Isaac o Cego
ldquotodos os atributos satildeo transmitidos para serem contempladosrdquo A descese do
princiacutepio divino eacute descrita como uma seacuterie de contemplaccedilotildees sucessivas que durante
suas ocorrecircncias plasmam as coisas e lhes fornecem o aspecto com o qual se
apresentam ao mundo O chamado ao silecircncio interior eacute frequente em sua obra ldquoo
caminho da contemplaccedilatildeo eacute de fato um absorver e natildeo um conhecer
discursivamenterdquo432 Eacute ainda atraveacutes da contemplaccedilatildeo que o homem pode percorrer
o caminho inverso da emanaccedilatildeo divina Esse eacute o ponto em que o Cabalismo mais se
aproxima do pensamento neoplatocircnico do qual se disse que ldquoa progressatildeo e a
inversatildeo constituem um processo uacutenicordquo a diaacutestole-siacutestole que movimenta o
universo433
Os trecircs modelos verificados costumam se apresentar mesclados nas praacuteticas
cabaliacutesticas e em raros casos foram tratados em abordagens completamente
429 Esse e outros relatos de experiecircncias extaacuteticas podem ser lidos em IDEL 2008-a 430 ALEMANNO Collectanaea in Manuscrito de Oxford 2234 f 164r 431 SENDER opcit pp 41-42 432 A principal obra teoacuterica de Isaac o Cego da qual se tem notiacutecia eacute o Comentaacuterio ao Secircfer Yetsiraacute abordado
por BUSI (opcit p 53) 433 SCHOLEM 1995 p22
136
estanques Natildeo satildeo poucos os relatos de operadores que partindo da contemplaccedilatildeo e
seu subsequente alcance do reino divino ndash em claro emprego da forma Extaacutetica ndash
atraem em seguida o poder superno para realizar operaccedilotildees teuacutergicas Da mesma
forma a Cabala Teuacutergica foi combinada amiuacutede com operaccedilotildees maacutegicas de maneira
a permitir que as emanaccedilotildees das Sefirot mais altas prosseguissem sua descida sobre o
mundo extradivino Em comum tais operaccedilotildees utilizam-se da potecircncia desencadeada
pela correta escolha ou pronuacutencia de certos vocaacutebulos ou atraveacutes da meditaccedilatildeo sobre
suas formas434 Giovanni Pico utilizou-se dos trecircs modelos em suas argumentaccedilotildees A
eficaacutecia dos sons e palavras na obra maacutegica eacute defendida seja na Oratio que na
Apologia seu uso teuacutergico eacute apontado em vaacuterias conclusiones a dimensatildeo extaacutetica
encontra eco nas reflexotildees mais profundas do Mirandolano a serem retomadas no
uacuteltimo Capiacutetulo Contudo a evidecircncia do uso de fontes e conceitos extraiacutedos dos
modelos descritos entre as paacuteginas piquianas embora uma razatildeo suficiente natildeo eacute a
uacutenica para a apresentaccedilatildeo deste capiacutetulo digressivo Enquanto a outras tradiccedilotildees de
cunho esoteacuterico Pico natildeo destinou nenhuma obra em caraacuteter exclusivo ao
conhecimento cabaliacutestico mesmo que natildeo de forma expressa foi dedicado o
Heptaplus assim o esclarecimento de alguns conceitos natildeo usuais na linguagem
filosoacutefica se coloca como uma necessidade para uma aproximaccedilatildeo mais fluiacuteda e
aprofundada ao texto
434 Para uma reflexatildeo bastante aprofundada acerca do uso maacutegico-operacional da linguagem veja-se Franco
BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 pp 43-48 Veja-se tambeacutem para reflexotildees sobre a natureza da linguagem desenvolvidas por cabalistas e alguns comentadores do Secircfer Yetsiraacute VAJDA Un chapitre de lrsquohistoire du conflit entre la kabbale et la philosophie in ldquoArchives drsquohistoire doctrinale et littegraveraire du Moyen Agerdquo XXXI 1956 pp49-56 e 127-133 IDEL Language Torah and Hermeneutics in Abraham Abulafia Albany 1989 pp1-28 (apud BACCHELLI ibid n p 51)
137
CAPIacuteTULO VI
O HEPTAPLUS Agrave LUZ DA CABALA
O Heptaplus435 vocaacutebulo que significa ldquosete vezes seterdquo nasce como um
comentaacuterio em sete partes ndash subdivididas em sete capiacutetulos cada ndash acerca dos seis
dias da criaccedilatildeo expostos no Gecircnesis 1 Antes de Giovanni Pico outros nomes entre
latinos gregos hebreus e caldeus se haviam lanccedilado a interpretar a mesma
passagem biacuteblica como o proacuteprio indicava no Primeiro Proecircmio que antecede sua
obra436 tinha portanto plena ciecircncia do fato de natildeo se tratar de originalidade sua
preocupando-se em avisar agora no Segundo Proecircmio que ldquonatildeo eacute o propoacutesito dessa
obra que quem natildeo tenha aprendido essas coisas em outro lugar as aprenda aqui
pela primeira vezrdquo437 A escolha do Gecircnesis como fundamento para ensejar uma obra
deveu-se agrave percepccedilatildeo de que sob aquela narrativa estariam guardados ldquosegredos de
todas as naturezasrdquo em mais uma evidecircncia de seu interesse em ter acesso a
realidades protegidas pela dimensatildeo esoteacuterica438 A opccedilatildeo por aquele especiacutefico livro
da Biacuteblia eacute esclarecida de forma a natildeo deixar duacutevidas se Moiseacutes tivesse sepultado
em alguma parte das Escrituras ldquoos tesouros de toda a filosofia verdadeirardquo teria
sido naquela parte que trata ldquoda emanaccedilatildeo de todas as coisas de Deus do grau do
nuacutemero da ordem das partes do mundo com elevadiacutessima capacidade filosoacuteficardquo439
Ou seja no Gecircnesis
A obra trata portanto de sete ldquoExposiccedilotildeesrdquo ou ldquoLivrosrdquo440 sucessivos que se
dedicam agrave narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo cada qual focado em uma das dimensotildees ndash ou
relaccedilotildees entre as dimensotildees ndash vislumbradas pelo autor As trecircs primeiras exposiccedilotildees
estabelecem respectivamente uma analogia entre os trecircs graus do real ndash o
elementar o celeste e o angeacutelico ndash com cada um dos trecircs mundos sub-divinos
admitidos pela Cabala descrevendo as devidas formas constitutivas de cada reino A
quarta exposiccedilatildeo trata do reino humano a quinta aponta para a sucessatildeo dos quatro
435 O Heptaplus ndash De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione ndash foi finalizado em 1489 e dedicado a
Lorenzo dersquoMedici A editio princeps consta de 1490 Quando Gianfrancesco Pico editou a primeira Opera Omnia referente agraves obras do tio optou por colocar o Heptaplus em seu iniacutecio uma posiccedilatildeo mantida nas ediccedilotildees subsequentes Em 1555 a obra foi traduzida para o italiano e em 1578 para o francecircs (cf Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 pp 8-10) As traduccedilotildees para o portuguecircs presentes neste Capiacutetulo satildeo de nossa responsabilidade utilizando-se como guia a traduccedilatildeo de Eugenio Garin para o italiano (que em muitos trechos natildeo eacute estritamente literal mas adequada a um melhor entendimento do leitor)
436 Escreve Pico que diante de tantos inteacuterpretes quase natildeo ousaria ldquopensar em escrever algo de novo ou acrescer qualquer comentaacuterio original sobre o argumentordquo (Heptaplus p 177) Entre os inteacuterpretes do Gecircnesis citados em seu preacircmbulo encontram-se Ambroacutesio Agostinho Estrobeu Egiacutedio Fiacutelon Oriacutegenes e vaacuterios outros alguns menos conhecidos inclusive do ciacuterculo caldeu e hebraico (ibid pp179-181)
437 Heptaplus P2 p198 Para dar relecircvo a suas palavras Pico cita Agostinho que em sua exposiccedilatildeo sobre o Gecircnesis escrevera ldquoSe podes aprendes essas coisas se natildeo podes deixa-as a quem vale mais do que tirdquo (ldquoHaec tu si potes apprehendas si nondum potes relinquas valentioribusrdquo) A referecircncia de Agostinho encontra-se na nota agrave traduccedilatildeo de GARIN (Augustini De Gen ad litt V 3 (6) P L XXXIV 323)
438 Heptaplus P1 p170 439 Heptaplus P1 p177 A mesma alusatildeo jaacute havia sido feita por Pico em sua Apologia quando justificando suas
Conclusiones perante aos padres afirmara que ldquoos tesouros da lei espiritual estariam sepultados na obra de Moiseacutesrdquo
440 De fato Pico nomeia cada parte de sua obra de ldquoExpositiordquo ou ldquoLiberrdquo
138
mundos presentes na narrativa biacuteblica a sexta expotildee as relaccedilotildees entre esses mundos
e a seacutetima aponta para o destino que lhes cabe dentro do desenho universal O
objetivo nuclear do autor eacute demonstrar que os vaacuterios mundos natildeo satildeo membra
disiecta (membros dispersos) mas que estatildeo relacionados entre si e tecircm no homem
seu ponto de uniatildeo441 Cada uma das exposiccedilotildees por sua vez encontra-se dividida em
outras sete partes ndash correspondentes a cada um dos seis dias da Criaccedilatildeo narrados na
Biacuteblia acrescidas cada qual com o seacutetimo capiacutetulo ldquoem Cristordquo Explica o autor no
Segundo Proecircmio que o seacutetimo capiacutetulo de cada Livro representa ldquoo fim da Lei o
nosso saacutebado a nossa paz a nossa felicidaderdquo ndash assim como narrado no Gecircnesis em
que o saacutebado eacute o dia do repouso442
Segundo Eugenio Garin a redaccedilatildeo fluente e contiacutenua proposta por Pico no
Heptaplus faz parte de um meacutetodo em que a forma escrita remete agrave difusatildeo e agrave
interpenetraccedilatildeo entre os vaacuterios planos de existecircncia Os mundos com seus
variegados planos apresentam-se natildeo apenas correspondentes mas entrelaccedilados uns
aos outros quase como perspectivas muacuteltiplas (e intriacutensecas no homem) de uma
mesma realidade443 Ademais a obra apresenta um constante movimento dialeacutetico
que a faz transitar de forma harmoniosa entre a feacute e a razatildeo refletindo a perfeita
seguranccedila de Pico sobre a relaccedilatildeo entre as obras da Criaccedilatildeo e a racionalidade de suas
leis (ldquotoda obra da natureza eacute obra da inteligecircnciardquo)444 Retorna-se mais uma vez
para a relaccedilatildeo entre religiatildeo e filosofia ndash abordada no Capiacutetulo 3 ndash cuja centralidade
no pensamento piquiano seraacute retomada no Capiacutetulo final
Assim como em outras obras a dialeacutetica razatildeo-feacute eacute permeada por uma terceira
perspectiva relacionada agrave presenccedila do elemento esoteacuterico a ser verificada no decorrer
do Capiacutetulo Sob o prisma de uma hermenecircutica esoteacuterica o Heptaplus pode ser
dividido em trecircs leituras a) a primeira concentra-se no Primeiro Proecircmio escrito por
Pico agrave guisa de introduccedilatildeo em que satildeo apresentadas vaacuterias referecircncias utilizadas pelo
autor como instrumentos para a afirmaccedilatildeo da existecircncia de verdades que devem ser
preservadas da escrita b) a segunda concerne agrave alegoria do ldquoTabernaacuteculordquo de Moiseacutes
nuacutecleo do Segundo Proecircmio utilizada como fundamento metafoacuterico sobre o qual
ergue-se o projeto do Heptaplus porquanto conteacutem a representaccedilatildeo de trecircs dos
mundos tratados no conjunto da obra c) a terceira perspectiva eacute colhida da uacuteltima
parte da obra uma espeacutecie de ldquoapecircndicerdquo em que o autor apresenta de forma
detalhada a aplicaccedilatildeo de seu meacutetodo cabaliacutestico Agraves trecircs partes mais nobres de sua
obra ndash os dois proecircmios em que a intenccedilatildeo do autor eacute expressa e o apecircndice que
finaliza o todo ndash junta-se a concepccedilatildeo do projeto como um todo (em seus sete Livros)
que embora natildeo tratado aqui eacute erigido sobre uma leitura que enxerga sob a letra das
Escrituras significados ocultos
441 Heptaplus V 7 p305 442 Heptaplus P2 p203 443 GARIN LUmanesimo italiano 2008 p 125 444 Heptaplus I 1 p207 ldquoomne opus naturae opus esse intelligentiaerdquo
139
1 As referecircncias esoteacutericas do Primeiro Proecircmio
Cocircnscio da dificuldade que teria em despertar qualquer interesse filosoacutefico por
seu trabalho de hermenecircutica biacuteblica Pico preocupou-se logo agrave abertura do
Heptaplus em dar credibilidade ao autor do Gecircnesis ndash que ele como os demais agrave
eacutepoca acreditava ser Moiseacutes Assim uma parte do Primeiro Proecircmio escrito como
preacircmbulo agrave obra eacute utilizada para justificar a autoridade de Moiseacutes perante um
grupo de oponentes (natildeo identificados) que teriam estabelecido uma distinccedilatildeo entre a
forma literaacuteria do texto mosaico (o Pentateuco) e a dos tradicionais escritos
filosoacuteficos ndash esses sob tal enfoque tidos como superiores
Sua defesa se divide em dois momentos Primeiramente eacute feita uma
argumentaccedilatildeo fundamentada sobre algumas autoridades da Antiguidade que de
alguma forma teriam contribuiacutedo para propagar o nome de Moiseacutes como mestre ldquode
conhecimento humano e de suma sabedoria em todas as doutrinas e literaturasrdquo445
Os indiacutecios utilizados para sustentar a reputaccedilatildeo do mencionado Profeta satildeo
provenientes a) de Lucas e Fiacutelon respeitaacuteveis testemunhos de que Moiseacutes fora
instruiacutedo em todas as doutrinas dos egiacutepcios446 b) dos egiacutepcios que teriam instruiacutedo
alguns dentre os mais celebrados filoacutesofos gregos ndash como Pitaacutegoras Platatildeo
Empeacutedocles e Demoacutecrito (menccedilatildeo que permite ao Autor inserir Moiseacutes no centro da
Filosofia grega)447 c) do neopitagoacuterico Numecircnio que chamara Platatildeo de ldquoo Moiseacutes
Aacuteticordquo (registro que chama a atenccedilatildeo para a similaridade entre as doutrinas dos dois
saacutebios)448 d) do pitagoacuterico Hermipo que teria afirmado que Pitaacutegoras transferira
muitas coisas da lei mosaica para sua proacutepria filosofia449
Em segundo lugar para explicar a disparidade existente entre a aparente rudez
do texto mosaico considerado comum e trivial (ldquomedio et trivialerdquo) e a complexidade
proacutepria de uma grande obra de Filosofia Pico recorre a referecircncias colhidas em
tradiccedilotildees erigidas sobre a oralidade e a misteriologia introduzindo no centro do
Primeiro Proecircmio uma argumentaccedilatildeo filosoacutefica de dimensatildeo esoteacuterica Nesse
sentido para se estabelecer em uma linha contraacuteria agrave consolidada entre os
acadecircmicos ndash a de que Moiseacutes seria inculto e pouco similar a um filoacutesofo ou
teoacutelogo450 ndash Pico se abastece de alguns fatos e personagens histoacutericos de forma a
justificar aquele tipo rude de escrita uma tentativa de demonstrar que tal estilo seria
445 Heptaplus P1 p171 446 Heptaplus idem O testemunho de Lucas estaacute em Atos 722 ldquoMoiseacutes foi instruiacutedo em toda a sabedoria dos
egiacutepciosrdquo o de Fiacutelon em De Vita Mosis 121-24 447 Heptaplus idem Na obra De mysteriis Aegyptiorum Chaldeorum Atque Assyriorum de Jacircmblico haacute uma
lista similar ldquoPythagoras Plato Democritus Eudoxus et multi ad sacerdotes Aegyptios accesseruntrdquo (traduccedilatildeo de Ficino Opera omnia repr Turin Bottega drsquoErasmo 1962)
448 Heptaplus P1 pp171-173 A referecircncia a Numecircnio encontra-se na obra de Euseacutebio Preparatio evangelica IX 6 e XI 10
449 Heptaplus P1 p173 Hermipo escreveu um Vida de Pitaacutegoras que serviu de fonte para Dioacutegenes Laerte Essa ideia contudo natildeo consta nos fragmentos atualmente existentes de Hermipo (cf Crofton BLACK 2006 p 96 e 145)
450 ldquoAut philosophus aut theologusrdquo (Hept P1 p172)
140
necessaacuterio para resguardar a preciosidade de determinado conteuacutedo451 Seu
argumento esoteacuterico se compotildee por uma sequecircncia de vaacuterias passagens452
a) ldquoExiste entre os hebreus sob o nome do sapientiacutessimo Salomatildeo um livro intitulado Sapientia natildeo esse que temos hoje obra de Fiacutelon mas outro escrito naquela linguagem secreta que chamamos lsquohierosolymarsquo cujo autor e inteacuterprete da natureza das coisas como se acredita declara ter recebido toda a sua sabedoria da profundidade da lei mosaicardquo453
b) ldquo[] devemos lembrar um famoso costume dos antigos saacutebios o de se abster de escrever acerca das coisas divinas ou sobre elas escrever veladamente e por isso satildeo chamados Misteacuterios Natildeo eacute misteacuterio o que natildeo eacute ocultordquo454
c) ldquo[Os segredos] foram observados por Indianos Etiacuteopes [] e Egiacutepcios Esse eacute o significado das Esfinges defronte aos templosrdquo455
d) ldquoInstruiacutedo por eles [os Egiacutepcios] Pitaacutegoras tornou-se mestre do silecircncio natildeo entregou suas doutrinas agrave escrita com exceccedilatildeo de muito pouco que ao morrer confiou agrave sua filha Damo De fato ele natildeo foi o verdadeiro autor de Aurea carmina mas sim Filolaurdquo [] ldquoA lei do silecircncio foi uma tradiccedilatildeo mantida ininterrupta ateacute que Hiparco a teria violado conforme deplorou Lysisrdquo456
e) ldquoSobre essa [a preservaccedilatildeo do silecircncio] juraram os disciacutepulos de Amocircnio Oriacutegenes Plotino e Herecircnio como testemunha Porfiacuteriordquo457
451 Heptaplus P1 pp 172 176 452 Para a discussatildeo das fontes utilizadas por Pico veja-se Chaim WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos
Encounter with Jewish Mysticism 1987 pp 123-132 453 Heptaplus P1 p170 ldquoExtat apud Hebraeos Salomonis illius cognomento sapientissimi liber cui Sapientia
titulus non qui nunc in manibus est Philonis opus sed alter hierosolyma quam vocant secretiore lingua compositus in quo vir naturae rerum sicuti putatur interpres omnem se illiusmodi disciplinam fatetur de Mosaicae legis penetralibus accepisserdquo Natildeo haacute fontes precisas sobre esse livro que Pico esclarece natildeo se tratar da obra homocircnima de Fiacutelon Referecircncia a tal trabalho pode ser encontrada no comentaacuterio de Nahmacircnides ao Pentateuco do qual uma coacutepia hebraica consta no inventaacuterio da biblioteca de Pico (Commentary of Nahmanides on Genesis ed Newman pp 25-27) Sobre o fato de Pico ter lido o comentaacuterio de Nahmacircnides veja-se BLACK opcit capiacutetulo 7 Veja-se ainda WIRSZUBSKI opcit p 219 Nahmacircnides na obra em questatildeo diz que o Livro da Sabedoria atribuiacutedo a Salomatildeo estaacute escrito em aramaico enquanto Pico escreve que estaacute na linguagem hierosolyma
454 Heptaplus P1 p172 ldquo[] revocemus eo mentem fuisse veterum sapientum celebre institutum res divinas ut aut plane non scriberent aut scriberent dissimulanter Hinc appellata mysteria (nec mysteria quae non occulta)rdquo
455 Heptaplus P1 p172 ldquohoc ab Indis hoc ab Aethiopibus [] hoc ab Aegyptiis observatum quod et Sphinges illae pro templis insinuabantrdquo A fonte utilizada por Pico para a informaccedilatildeo sobre os Indianos eacute provavelmente Euseacutebio (Preparatio evangelica IX 6 e 7) Sobre as Esfinges Pico dissera na Oratio (p157) que ldquoesculpidas nas frentes dos templos egiacutepcios advertiam que os ensinamentos miacutesticos deviam ser guardados com os noacutes dos enigmas inviolaacuteveis para a multidatildeo profanardquo A fonte de Pico para as Esfinges poderia ser Plutarco De Iside et Osiride 9
456 Idem ldquoab eis edoctus Pythagoras silentii factus est magister nec ipse quicquam litteris mandavit praeter omnino paucula quae Damae filiae moriens commendavit Non enim quae circumferuntur aurea carmina Pythagorae sunt ut vulgo etiam doctioribus persuasum est sed Philolairdquo [] ldquoLegem deinceps eam Pythagorici religiosissime tutati sunt Eam Lysis ab Hypparco violatam quaeriturrdquo A carta de Lysis para Hiparco mencionada por Pico diz ldquoMuitas pessoas dizem que vocecirc filosofa em puacuteblico o que Pitaacutegoras negou como indigno ele confiando suas notas escritas para sua filha Damo notificou que ela natildeo deveria entregaacute-los a ningueacutem fora da comunidaderdquo (Epistolographi Graeci org HERCHER Paris Ambrosio Firmin Didot 1873 p 603 apud BLACK 2006 n p146) Os pitagoacutericos efetivamente tornaram a postura da transmissatildeo unicamente oral uma exigecircncia de ordem praacutetica
457 Heptaplus P1 p172 ldquoIn eam denique iuratos Ammonii discipulos Origenem Plotinum et Herennium Porphyrius est auctorrdquo A fonte de Pico eacute Porfiacuterio que descreve tal pacto em seu Vida de Plotino 3 ldquoUm pacto foi feito por Herecircnio Oriacutegenes e Plotino para natildeo revelarem as doutrinas de Amocircnio que ele havia ensinado em palestras (PORPHYRE La vie de Plotin II ed Brisson Paris Vrin 1982) De acordo com Porfiacuterio Oriacutegenes foi
141
f) ldquoO nosso Platatildeo escondeu as proacuteprias crenccedilas sob veacuteus enigmaacuteticos siacutembolos
de mitos imagens matemaacuteticas e argumentos de sentido obscuro a ponto de contar nas epiacutestolas que apoiando-se em seus escritos ningueacutem teria compreendido claramente seu pensamento sobre as coisas divinasrdquo458
g) ldquoJesus Cristo natildeo escreveu o Evangelho mas o pregou Pregou para as massas atraveacutes de paraacutebolas e separadamente para poucos disciacutepulos aos quais era concedido compreender os misteacuterios do reino dos ceacuteus abertamente e sem imagens mesmo assim natildeo desvelou tudo agravequeles poucos uma vez que havia coisas que eles poderiam natildeo suportarrdquo459
h) ldquoJoatildeo [o apoacutestolo] revelou bem mais do que os outros sobre os segredos da divindade [] mas falou brevemente e de forma obscurardquo460
i) ldquoPaulo [] apenas aos perfeitos falaria a linguagem da sabedoriardquo461
j) ldquoDioniacutesio o Areopagita escreveu que nas Igrejas houve o sagrado e respeitado costume de natildeo transmitir doutrinas secretas por escrito mas apenas agrave voz e para os devidamente iniciadosrdquo462
pupilo de Amocircnio no mesmo tempo que Plotino e Herecircnio se eacute verdade que os trecircs fizeram um pacto de natildeo revelar em escritos as doutrinas de seu professor tanto Herecircnio quanto Oriacutegenes quebraram suas promessas
458 Idem ldquoPlato noster ita involucris aenigmatum fabularum velamine mathematicis imaginibus et subobscuris recedentium sensuum indiciis sua dogmata occultavit ut et ipse dixerit in Epistulis neminem ex his quae scripserit suam sententiam de divinis aperte intellecturum et re minus credentibus comprobaveritrdquo A passagem refere-se agrave Carta II (312 d-e) tambeacutem mencionada por Pico na Oratio (p157) na qual Platatildeo escrevendo a Dioniacutesio sobre os modos das substacircncias supremas afirma ldquoEacute necessaacuterio exprimir-nos mediante enigmas de modo que se alguma vez por acaso a carta cair na matildeo de um outro natildeo seja percebido pelos outros aquilo que escrevordquo Os segredos conceituais que Platatildeo natildeo teria submetido agrave escrita referem-se a questotildees tratadas em suas aulas ldquoSobre o Bemrdquo nas quais eram discutidos os Princiacutepios Parte de tais concepccedilotildees foram transmitidas atraveacutes da filosofia neoplatocircnica chegando a Pico atraveacutes das traduccedilotildees de Ficino Para toda a problemaacutetica em torno agraves ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo de Platatildeo veja-se o fundamental Para uma nova Interpretaccedilatildeo de Platatildeo de Giovanni Reale trad Marcelo Perine (Satildeo Paulo Loyola 1997)
459 Heptaplus P1 p174 ldquoIesus Christus imago substantiae Dei Evangelium non scripsit sed praedicavit praedicavit autem turbis quidem in parabolis seorsum autem paucis discipulis quibus datum erat nosse mysteria regni caelorum palam citraque figuras neque omnia paucis illis quia non omnium capaces et multa erant quae portare non poterant donec adveniens Spiritus docuit omnem veritatemrdquo A ideia de que Jesus teria revelado muitos misteacuterios apenas aos seus disciacutepulos eacute atribuiacuteda por Pico a Oriacutegenes no Commento na Apologia e na Oratio (p157) ldquoOriacutegenes afirma que Jesus Cristo mestre de vida revelou aos disciacutepulos muitas coisas que eles natildeo quiseram escrever para natildeo se tornarem vulgarizados Tal fato confirma-o sobretudo Dioniacutesio Areopagita o qual diz que os misteacuterios mais secretos foram transmitidos pelos fundadores da nossa religiatildeo ek nou eis noun dia meson logon isto eacute de mente a mente sem escritos mediante o Verbordquo
460 Pico complementa que Joatildeo revelou o misteacuterio do logos apenas com a finalidade de combater os Ebionitas que afirmavam o Cristo homem mas negavam sua divindade ldquoIoannes qui prae omnibus maxime divinitatis secreta revelavit tribus pridem vulgatis Evangeliis et a Domini cruce multis exactis annis coactus loqui quae diu tacuerat ad abolendam haeriesim Ebionitarum quae Christum hominem non etiam Deum asseverabat de aeterna Filii generatione sed paucis sed obscure pronunciavit inde exorsus in principio erat Verbumrdquo (ibid pp 174-176)
461 Heptaplus P1 p176 ldquoPaulus Corinthiis negat solidum cibum propterea quod adhuc carnis legibus vivant non autem spiritus et sapientiam loquitur ante perfectosrdquo A referecircncia (Cor I 511) encontra-se na proacutepria ediccedilatildeo Em outra passagem referida na Oratio (p157) Pico escreve ldquomanter portanto tudo isto oculto do vulgo a fim de o comunicar apenas aos perfeitos entre os quais unicamente Paulo (Cor I 2-6) afirma pronunciar palavras de sapiecircncia natildeo foi obra de humana prudecircncia mas de divina sabedoriardquo
462 Heptaplus P1 p176 ldquoDionysius Areopagita sanctum et ratum institutum fuisse scribit ecclesiis ne dogmata secretiora per litteras sed voce tantum iis qui rite essent initiati communicarenturrdquo A passagem de Pseudo Dioniacutesio encontra-se em De Coelesti Hierarchia II (cf ref na ediccedilatildeo do Heptaplus)
142
A presenccedila de vaacuterios registros relacionados agrave tradiccedilatildeo oral utilizados como
principal ferramenta de sustentaccedilatildeo para afirmar a autoridade de Moiseacutes mostra-se
um recurso introdutoacuterio necessaacuterio para dar credibilidade ao conjunto da obra
estruturada sobre uma linguagem alegoacuterica que pede uma maior acuidade daquele
que a lecirc Poreacutem longe de ser um artifiacutecio retoacuterico suas referecircncias refletem uma
categoria proacutepria e fluiacuteda do pensamento piquiano O denominador comum entre os
exemplos histoacutericos eacute a ideia de demarcaccedilatildeo entre os natildeo-iniciados e os iniciados
concepccedilatildeo que por sua vez conduz o leitor agrave aceitaccedilatildeo de uma divisatildeo da
interpretaccedilatildeo biacuteblica entre literal e natildeo-literal A leitura literal corresponde agrave
ldquomultidatildeordquo enquanto a natildeo-literal na terminologia que toma emprestado de Paulo e
dos primeiros cristatildeos ldquoaos perfeitosrdquo Seguindo as pistas de leituras relacionadas agrave
miacutestica hebraica Pico pretende evidenciar que essa dicotomia eacute fundamental para a
recepccedilatildeo das revelaccedilotildees contidas na Biacuteblia abrindo caminho para sua interpretaccedilatildeo
do Gecircnesis Esse tipo de procedimento hermenecircutico em que o fator esoteacuterico eacute
empregado como ponto de analogia entre representantes da Feacute de um lado e da
Filosofia de outro jaacute havia sido adotado em outras obras anteriores ao Heptaplus
postura filosoacutefica que se mostrara desenvolvida em torno a lsquo86 Por exemplo em sua
Conclusio cabalistica 63 Pico dizia
Assim como Aristoacuteteles dissimulou sob a superfiacutecie da
especulaccedilatildeo filosoacutefica aquela mais divina filosofia que os
filoacutesofos antigos haviam escondido com mitos e faacutebulas
mantendo-a obscura com a concisatildeo de suas palavras assim o
Rabbi Moiseacutes egiacutepcio no livro que os latinos intitulam O Guia
dos Perplexos atraveacutes da casca superficial das palavras daacute a
impressatildeo de caminhar com os filoacutesofos enquanto pelos
intentos velados de seu profundo sentir abraccedila os misteacuterios da
Cabala463
Apresentam-se ainda profusas indicaccedilotildees da utilizaccedilatildeo de fontes esoteacutericas
no Commento na De Hominis Dignitate ndash como verificado no Capiacutetulo IV ndash e na
Apologia Efetivamente repetem-se nas trecircs obras algumas das mesmas referecircncias
usadas por Pico no Heptaplus464 Entretanto haacute nessa obra uma diferenccedila
fundamental diversamente das obras anteriores a tradiccedilatildeo cabalista natildeo eacute citada
junto ao elenco esoteacuterico embora a mesma mantenha-se tatildeo central quanto nos
relatos anaacutelogos daquelas obras A ausecircncia de qualquer menccedilatildeo ao termo ldquocabalardquo
na inteira obra pode ter sido responsaacutevel pelo surgimento de certas interpretaccedilotildees
conflituosas embora a maior parte dos inteacuterpretes considere o conteuacutedo do
Heptaplus como exclusivamente cabalista465 Eugenio Garin em sua obra Giovanni
463 Concl (II) XI 63 Rabbi Moiseacutes egiacutepcio refere-se ao filoacutesofo medieval Maimocircnides ao qual Pico atribui trecircs
opiniotildees nas Conclusiones ldquoSicut Aristoteles diuiniorem philosophiam quam philosophi antiqui sub fabulis et apologis uelarunt ipse sub philosophicae speculationis facie dissimulauit et uerborum breuitate obscurauit ita Rabi Moyses aegyptius in libro qui a latinis dicitur dux neutrorum dum per superficialem uerborum corticem uidetur cum Philosophis ambulare per latentes profundi sensus intelligentias mysteria complectitur Cabalaerdquo
464 Veja-se por exemplo algumas das mesmas referecircncias esoteacutericas na Apologia (p27) e na Oratio (p 157) 465 Alguns dentre os relevantes inteacuterpretes que consideram o Heptaplus fundamentalmente cabalista satildeo
Matter Dorez Liebert e Vulliaud Guido MASSETANI (La Filosofia Cabalistica di Giovanni Pico della
143
Pico della Mirandola constata (a) que Pico coroou seus conhecimentos cabaliacutesticos
atraveacutes do Heptaplus (b) que as origens dessa obra estatildeo em seus profundos estudos
sobre a gnose hebraica e (c) que existe afinidade formal entre o Heptaplus e as obras
da Cabala466
De qualquer forma ao retomar em lsquo89 as concepccedilotildees de ordem esoteacuterica
propostas em seus trabalhos anteriores Pico decide remover deliberadamente a
utilizaccedilatildeo daquela palavra que poderia desencadear suspeitas de heresia e que
segundo ele teria sido a causa da condenaccedilatildeo papal que sofrera Cabe lembrar que
enquanto escrevia o Heptaplus ainda estava em vigor a bula emitida por Inocecircncio
VIII condenando as Conclusiones467 Assim eacute bastante provaacutevel que ao voltar a
redigir seus paracircmetros de fontes Pico tenha conscientemente eliminado as
referecircncias agrave Cabala por razotildees de prudecircncia Tal remoccedilatildeo parece ter sido mais
aparente do que substancial porquanto o nuacutecleo do conteuacutedo doutrinal cabaliacutestico foi
preservado (em alguns casos com as mesmas palavras das obras anteriores) como
seraacute visto a seguir Seu modelo hieraacuterquico de mundos encontra vaacuterios pontos de
convergecircncia com os mundos da doutrina cabaliacutestica utilizados para sustentar o
projeto pretendido Mais adiante atraveacutes da verificaccedilatildeo do apecircndice da obra
inteiramente consagrado a demonstrar a aplicabilidade do meacutetodo cabaliacutestico tem-se
a comprovaccedilatildeo definitiva de que a ausecircncia de qualquer menccedilatildeo ao termo Cabala
tenha sido apenas um expediente utilizado para natildeo acirrar os acircnimos ao seu redor
2 Os Mundos na Cabala no Heptaplus
ldquoA Antiguidade imaginou trecircs mundosrdquo468 Com essas palavras Pico abre seu
Segundo Proecircmio em cuja narrativa confirma a posiccedilatildeo superna do mundo
suprassensiacutevel ldquoque os teoacutelogos chamam lsquoangeacutelicorsquo e os filoacutesofos lsquointeligiacutevelrsquo nunca
cantado por ningueacutem de forma adequadardquo segundo ldquoo que diz Platatildeo no Fedrordquo469
Abaixo desse haacute o mundo celeste e por uacuteltimo o nosso mundo sublunar ldquoEste ndash
continua Pico ndash eacute o mundo das trevas aquele da luz o celeste eacute composto de luz e
trevasrdquo O mundo sensiacutevel eacute representado pela aacutegua substacircncia mutaacutevel aquele pelo
fogo em razatildeo do esplendor da luz o ceacuteu natureza intermeacutedia eacute composto de aacutegua e
fogo e por tal razatildeo eacute chamado pelos hebreus de lsquoasciamaimrsquo termo composto de
Mirandola Empoli 1897) por sua vez natildeo se mostrou convencido com as correspondecircncias entre os mundos da Cabala e os propostos por Pico
466 As passagens encontram-se respectivamente (a) e (b) na paacutegina 39 (c) na paacutegina 158 (GARIN 2011) 467 A bula de Inocecircncio VIII foi emitida em 15 de dezembro de 1487 e permaneceu em vigor ateacute 18 de junho de
1493 A decisatildeo de omitir a palavra ldquocabalardquo do Heptaplus obteve um certo resultado positivo pois embora natildeo tenha ficado satisfeito com o surgimento da obra ndash considerando-a uma continuidade dos erros precedentes ndash o papa natildeo lhe conferiu o mesmo desprezo que agraves Conclusiones
468 Heptaplus P2 p185 ldquoTres mundos figurat antiquitasrdquo 469 Idem ldquoSupremum omnium ultramundanum quem theologi angelicum philosophi autem intellectualem
vocant quem a nemine satis pro dignitate decantatum Plato inquit in Phaedrordquo A passagem de Platatildeo encontra-se em Fedro 247c Na continuidade do trecho Pico complementa que as consideraccedilotildees acerca dos trecircs mundos natildeo possuem novidade alguma aos olhos dos estudiosos do mundo antigo
144
fogo (es) e aacutegua (maim)470 O caraacuteter intermeacutedio do mundo celeste eacute especialmente
acentuado por Pico que traz analogias extraiacutedas de suas fontes cabaliacutesticas Tal
caraacuteter eacute marcado pela mistura de propriedades presentes em cada um dos outros
dois mundos Assim tem-se no mundo terreno vida e morte no inteligiacutevel eterna
vida e contiacutenua atividade no celeste estabilidade de vida poreacutem com vicissitudes de
atividades e posiccedilotildees O mundo terrestre eacute constituiacutedo pela natureza caduca dos
corpos o mundo inteligiacutevel pela natureza divina da mente o ceacuteu pelo corpo embora
incorruptiacutevel e pela mente apesar de sujeita ao corpo O terceiro ldquoeacute movido pelo
segundo enquanto o segundo eacute governado pelo primeirordquo471 Continuando
os trecircs mundos satildeo apenas um natildeo apenas porque todos se
reportam de um uacutenico princiacutepio a um uacutenico fim ou em razatildeo
de sendo regulados por leis determinadas estarem coligados
por um certo liame harmonioso da natureza e por um
ordenamento em graus mas porque tudo aquilo que estaacute na
totalidade dos mundos estaacute tambeacutem em cada um e natildeo haacute algo
em qualquer um desses que natildeo esteja em cada um dos
outros472
No uacuteltimo trecho o autor fundamenta-se na concepccedilatildeo miacutestica judaica que
atribui agrave Unidade criadora a qualidade de se manifestar fora de si mesma em trecircs
planos de existecircncia que se encontram perfeitamente integrados ldquoo que se encontra
no mundo inferior estaacute incluso nos superiores mas em forma mais elevada por
analogia o que se encontra nos superiores estaacute no mundo inferior mas em condiccedilatildeo
degenerada e com uma natureza adulteradardquo473 Em linguagem que o aproxima ao
Platonismo o filoacutesofo complementa sua argumentaccedilatildeo por meio de exemplos
extraiacutedos da esfera dos fenocircmenos
470 Heptaplus P2 p187 Pico jaacute havia abordado a questatildeo do ceacuteu feito de fogo e aacutegua em sua Conclusio
cabalistica secundum opinionem propriam 67 ldquoHic tenebrarum mundus ille autem lucis caelum ex luce et tenebris temperatur Hic per aquas notatur fluxa instabilique substantia ille per ignem lucis candore et loci sublimitate caelum natura media idcirco ab Hebraeis asciamaim quasi ex es et maim idest ex igne et aqua quam diximus compositum nuncupaturrdquo
471 Heptaplus P2 pp185-187 ldquomovetur tertius a secundo secundus a primo regiturrdquo A analogia com a posiccedilatildeo mediana da alma humana entre corpo e espiacuterito natildeo eacute mencionada mas estaacute subentendida Em qualquer criatura (ou ente ou niacutevel de existecircncia) a trindade se manifesta No homem o aspecto superior eacute o Espiacuterito o aspecto mediano eacute a Alma ou princiacutepio animador o aspecto inferior eacute o corpo No corpo fiacutesico o aspecto superior eacute representado pelo ceacuterebro e sistema nervoso consciente o mediano pelo sistema nervoso simpaacutetico e os vasos sanguiacuteneos o inferior pelos demais oacutergatildeos e suas funccedilotildees vitais Veja-se em LORENZ outros detalhes das relaccedilotildees fiacutesicashumanas com os trecircs mundos (Cabala - A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente 1997 pp 57-65)
472 Heptaplus P2 p189 ldquoHaec satis de tribus mundis in quibus illud in primis magnopere observandum unde et mostra fere tota pendet intentio esse hos tres mundos mundum unum non solum propterea quod ab uno principio et ad eumdem finem omnes referantur aut quoniam debitis numeris temperati et armonica quadam naturae cognatione atque ordinaria graduum serie colligentur sed quoniam quicquid in omnibus simul est mundis id et in singulis continetur neque est aliquis unus ex eis in quo non omnia sint quae sunt in singulis Quam Anaxagorae credo fuisse opinionem si recte eum sensisse putamus explicatam deinde a Pythagoricis et Platonicisrdquo Pico conclui essa passagem sugerindo que esse seria ldquoo pensamento de Anaxaacutegoras exposto pelos Pitagoacutericos e Platocircnicosrdquo Tal menccedilatildeo encontra-se em Simpliacutecio Phys 27 2 (cf ref na proacutepria ediccedilatildeo) A ideia de que ldquotudo estaacute em tudordquo encontra paralelos ademais em Proclo Elementos de Teologia proposiccedilotildees 170173 e 176
473 Heptaplus P2 p189 ldquoVerum quae in mundo sunt inferiori in superioribus sunt sed meliore nota quae itidem sunt in superioribus in postremis etiam visuntur sed degeneri conditione et adulterata ut sic dixerim naturardquo
145
O calor eacute em nosso mundo qualidade elementar nos ceacuteus
virtude caloriacutefica nas mentes angeacutelicas Ideia de calor Ou com
mais precisatildeo no mundo inferior o fogo eacute elemento o sol eacute o
fogo do ceacuteu na regiatildeo ultramundana o fogo seraacutefico eacute Intelecto
[] O fogo elementar queima o fogo celeste vivifica o fogo
supraceleste ama474
A escolha das palavras acima natildeo eacute feita ao acaso A anaacutelise do Gecircnesis feita
por Pico releva que a escolha das palavras ali empregadas para descrever a Criaccedilatildeo
natildeo eacute tampouco aleatoacuteria mas fruto da intenccedilatildeo em revelar verdades que natildeo
poderiam ser explicitadas de outra forma A eleiccedilatildeo do redator biacuteblico por palavras
simples ligadas aos elementos permitiria sua adequaccedilatildeo a outras interpretaccedilotildees em
virtude de seus significados metafoacutericos Assim conforme explica no Segundo
Proecircmio ldquoteria tratado Moiseacutes de cada um dos mundos de forma que nas mesmas
palavras e no mesmo contexto pudesse tratar de todosrdquo475 Eis a razatildeo da utilizaccedilatildeo de
certas palavras (no Gecircnesis) como ceacuteu terra aacutegua e luz A utilizaccedilatildeo de uma
linguagem filosoacutefica para tratar da Criaccedilatildeo com termos anaacutelogos a ldquocausa agenterdquo
ldquomateacuteriardquo ldquoqualidaderdquo e ldquoformardquo apenas serviriam para descrever o mundo
corruptiacutevel mas natildeo os demais Infere Pico que esse eacute um ldquosinal da admiraacutevel
habilidaderdquo de Moiseacutes na medida em que ele se serviu de determinados termos e os
dispocircs em uma ordem conveniente para representar todos os mundos ldquoassim no
Gecircnesis palavras contexto e ordem conveacutem plenamente a ilustrar os segredos de
todos os mundos e de toda a naturezardquo476
No percurso de suas expositiones o tema dos elementos eacute explorado por Pico
que descreve sua manifestaccedilatildeo em cada um dos mundos em oitavas diferenciadas Eacute
provaacutevel que uma de suas fontes principais para a reflexatildeo tenha sido Proclo e o Liber
de Causis que levara seu mestre Alemanno a escrever uma obra com o mesmo
conteuacutedo477 Abraatildeo Yaguel tempos depois retomaria o assunto reafirmando de
forma mais clara que os quatro elementos natildeo satildeo encontrados apenas no mundo
inferior mas existem igualmente nos corpos celestes e nas inteligecircncias separadas e
ainda ldquono que estaacute acima deles no arqueacutetipo do mundo a Causa de todas as Causas e
o Princiacutepio de todos os Princiacutepiosrdquo Contudo elucida o rabino no mundo sublunar
satildeo encontrados ldquocomo dejetos e mateacuteriardquo no ceacuteu satildeo potecircncias ou virtudes nos
mundos superiores satildeo formas arquetiacutepicas ldquomais perfeitas que no ceacuteurdquo478
474 Heptaplus P2 pp188-190 ldquo[] est apud nos calor qualitas elementaris est in caelestibus virtus
excalfactoria est in angelicis mentibus idea caloris Dicam aliquid expressius est apud nos ignis quod est elementum Sol ignis in caelo est est in regione ultramundana ignis saraphicus intellectus Sed vide quid differant Elementaris urit caelestis vivificat supercaelestis amatrdquo
475 Heptaplus P2 p195 476 Heptaplus Livro II ldquoSobre o Mundo Celesterdquo 477 A traduccedilatildeo aacuterabe de alguns trechos do Elementos de Teologia de Proclo conhecida como Liber de Causis
foi atribuiacuteda por muito tempo de forma errocircnea a Aristoacuteteles Sobre a relaccedilatildeo da obra de Alemanno Minkhat Yehudaacute e de outros textos anteriores que tratam do tema com o Liber de Causis veja-se IDEL 2008b p 509
478 Abraatildeo YAGUEL Beit Yaar haLevanon in Manuscrito de Oxford 1304 f 6r-6v (apud IDEL 2008b pp 512-513) Infere Idel que o texto de Yaguel em sua abordagem dos distintos estados dos quatro elementos primaacuterios apresenta noccedilotildees neoplatocircnicas que condizem com sua visatildeo sobre a essecircncia dos mundos noccedilotildees fortemente utilizadas por Alemanno
146
Para um melhor entendimento da mensagem do Heptaplus faz-se necessaacuterio
adentrar nas conceituaccedilotildees dos mundos manifestos segundo a miacutestica hebraica Em
uma passagem do Gecircnesis (Secircfer Bereshit) tem-se a revelaccedilatildeo da existecircncia de trecircs
mundos sob o prisma cabaliacutestico ldquoEntatildeo formou Deus o homem do poacute da terra e
soprou-lhe (ruach) nas narinas o focirclego de vida (neshamaacute) e o homem tornou-se
uma alma vivente (nefesh)rdquo479 O enunciado encerra trecircs princiacutepios que podem ser
relacionados tanto a partes concernentes agrave triacuteplice integridade do homem quanto agrave
existecircncia de trecircs mundos em sentido cosmoloacutegico Os trecircs princiacutepios satildeo Neshamaacute
o princiacutepio superior atinente ao Espiacuterito e agrave esfera das Inteligecircncias mais elevadas
Ruach o princiacutepio mediano relativo agrave Alma e agrave hierarquia dos seres astrais e
Nefesh o princiacutepio inferior relativo ao corpo vital e ao plano fiacutesico480 Entretanto no
seacuteculo XII o Zohar mencionaria quatro mundos acrescentando aos trecircs do Gecircnesis o
elemento relacionado diretamente agrave divindade Assim estabelecem-se sob registro
cabaliacutestico quatro concepccedilotildees a saber (a) o mundo da Emanaccedilatildeo do princiacutepio divino
(Olam HaAtzilut) (b) o mundo da Criaccedilatildeo (Olam HaBriaacute) no qual o homem
contemplativo colhe revelaccedilotildees atraveacutes do princiacutepio neshamaacute (c) o mundo da
Formaccedilatildeo (Olam HaYetsiraacute) relacionado a ruach e (d) o mundo da Produccedilatildeo (Olam
HaAssiaacute) correspondente a nefesh481
A quaacutedrupla concepccedilatildeo de existecircncia eacute extraiacuteda outrossim a partir de outra
passagem em Isaiacuteas ldquoa todos os que satildeo chamados pelo meu nome e os que criei
para a minha gloacuteria eu os formei e tambeacutem eu os fizrdquo482 Os cabalistas colhem nesse
versiacuteculo indicaccedilotildees das quatro dimensotildees ou reinos ndash partindo do divino emanente
e prosseguindo com os outros trecircs em ordem hieraacuterquica decrescente com suas
denominaccedilotildees inspiradas naquela sentenccedila os respectivos mundos da Criaccedilatildeo da
Formaccedilatildeo e da Realizaccedilatildeo conforme paraacutegrafo anterior Esses nomes indicam a
transformaccedilatildeo do tipo de influxo com as quais as Sefirot governam o mundo A
tradiccedilatildeo miacutestica associa a esses mundos as trecircs reparticcedilotildees da antiga cosmogonia
rabiacutenica Assim na Criaccedilatildeo Briaacute coloca-se o Trono da Gloacuteria ou a Ideia original da
Criaccedilatildeo onde se encontram as formas arquetiacutepicas e a dimensatildeo angeacutelica mais
elevada483 Na Formaccedilatildeo Yetsiraacute tambeacutem habitada por hostes angelicais a Ideia
adquire forma a mateacuteria astral se compotildee e a separaccedilatildeo se distingue em elementos
479 Gecircnesis 27 Encontram-se traduccedilotildees similares para dois dos termos hebraicos presentes na passagem
mencionada A palavra ruach significa espiacuterito e sopro de Deus neshamaacute eacute traduzido por ldquofocirclego de vidardquo e tambeacutem ldquosopro de Deusrdquo O paralelismo entre o ldquoespiacuterito de Deusrdquo e ldquoo sopro do Todo-poderosordquo eacute frequente na Biacuteblia
480 LORENZ Cabala - A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente 1997 p60 481 LORENZ opcit p60 SENDER opcit pp 71-72 482 Isaiacuteas 437 483 LORENZ (opcit p61 ss) coloca na dimensatildeo da Criaccedilatildeo o movimento pelo qual o Espiacuterito saindo de seu
isolamento se manifesta como Espiacuterito em geral preceito da origem da multiplicidade A utilizaccedilatildeo do termo ldquoIdeiardquo que remete ao Platonismo eacute de Lorenz provavelmente fundamentado em escritos do rabino Abraatildeo Yaguel que no seacuteculo XVI se dirigia agraves emanaccedilotildees com o termo ldquoIdeiirdquo ldquoa forccedila que se encontra nos entes inferiores pode [igualmente] ser encontrada em maior pureza e limpidez nas Sefirot sagradas e puras que satildeo na verdade as Ideii (sic) para todas as coisasrdquo [] ldquoas Ideii satildeo uma forma simples superior aos corpos agraves almas e agraves inteligecircncias [] na terminologia dos platocircnicos aquela primeira configuraccedilatildeo eacute denominada Ideiirdquo Cf Manuscrito de Oxford 1304 f10v apud IDEL 2008-b pp 513-514
147
relativamente individuais484 Finalmente na Realizaccedilatildeo Assiaacute estabelecem-se os
mundos fiacutesico e sensiacutevel atraveacutes dos reinos mineral vegetal e animal485
Para ilustrar a concepccedilatildeo dos Trecircs Mundos no Heptaplus ndash e em
concomitacircncia confirmar a existecircncia de uma dimensatildeo esoteacuterica dentro da Biacuteblia ndash
Pico expotildee no Segundo Proecircmio uma amostra de como sob as palavras mosaicas
escritas em forma simples encontram-se revelaccedilotildees acerca da triacuteplice realidade
Referindo-se a alguns versiacuteculos biacuteblicos que tratam do ldquotabernaacuteculordquo construiacutedo por
Moiseacutes eacute efetuada uma analogia com os mundos subdivinos ali representados ldquoem
modo muito evidenterdquo como diria o autor486 Segundo a narrativa biacuteblica e como
visto no Capiacutetulo IV Moiseacutes dividira o tabernaacuteculo em trecircs partes cada uma delas
concernentes a um dos mundos A primeira parte sem teto ou proteccedilatildeo alguma
encontrava-se exposta aos vaacuterios fenocircmenos da natureza sendo frequentada por
homens tanto puros quanto impuros aleacutem de animais de toda espeacutecie assim como
no mundo sublunar as contiacutenuas vicissitudes de vida e morte se intercalavam As
outras duas partes do tabernaacuteculo estavam protegidas e imunes agraves questotildees
exteriores assim como ocorre com o mundo celeste e supraceleste As duas partes
eram chamadas ldquosantasrdquo poreacutem a mais protegida era chamada ldquoSanto dos Santosrdquo
Pico esclarece que embora os dois mundos celeste e angeacutelico sejam santos (ldquopois
apoacutes a queda de Luacutecifer natildeo restou pecado acima da luardquo) o mundo angeacutelico eacute
considerado de maior santidade e divindade487 Enquanto na Oratio o tema fora
tratado sob uma perspectiva relacionada ao homem dentro de um cenaacuterio que
contempla processos iniciaacuteticos individuais o enfoque dado no Heptaplus encontra-
se inteiramente voltado agrave confirmaccedilatildeo religiosa dos trecircs mundos em um acircmbito que
chamariacuteamos cosmoloacutegico488
484 Eacute nesse plano que ocorre a separaccedilatildeo dos aspectos masculino e feminino que no mundo antecedente
constituiacuteam uma unidade Isso explica o duplo relato biacuteblico da criaccedilatildeo do homem o primeiro em Gecircnesis 1-27 e o segundo em Gecircnesis 2-7 No primeiro relato ldquoe criou Deus o homem agrave sua imagem criou-o agrave imagem de Deus e criou-os masculino e femininordquo o verbo utilizado eacute ldquocriarrdquo referindo-se agrave Briaacute o mundo da Criaccedilatildeo No segundo relato onde se lecirc ldquoo Senhor Deus formou pois o homem do barro da terra e inspirou no seu rosto um sopro de vidardquo o verbo utilizado eacute ldquoformarrdquo o que o situa em Yetsiraacute o mundo da Formaccedilatildeo no qual o ser adquire forma e deixa de ser androacutegino (cf SENDER opcit pp 36-37)
485 As denominaccedilotildees e atribuiccedilotildees de cada Mundo sofrem pequenas variaccedilotildees semacircnticas dependendo do comentarista Uma das principais divergecircncias que podem ser encontradas refere-se agrave colocaccedilatildeo do sistema planetaacuterio que para alguns faz parte do Mundo da Formaccedilatildeo e para outros do mundo da Realizaccedilatildeo em razatildeo de sua materialidade ndash o que natildeo deixa de fazer sentido Veja-se IDEL 2008b pp 512-513 SCHOLEM 1978 p90 SENDER opcit pp 34-39 BUSI opcit p 19
486 Heptaplus P2 ldquoHoc non praetermiserim figuratos hos mundos trecircs a Mose evidentissime in admirabilis illius tabernaculi sui constructionerdquo Algumas passagens da Biacuteblia tratam do tema da construccedilatildeo do Tabernaacuteculo Em Ecircxodo 25 8-9 o Senhor daacute ordens a Moiseacutes para construir o Templo ou Tabernaacuteculo O Tabernaacuteculo (em hebraico mishkan ldquomoradiardquo ldquotenda da congregaccedilatildeordquo ou ldquosantuaacuterio conforme Ecircxodo 25 8) era a tenda usada pelos israelitas como lugar de adoraccedilatildeo enquanto viajavam pelo deserto Em Ecircxodo (29 42-46) o Senhor disse a Moiseacutes que seria no Tabernaacuteculo que Ele desceria para falar com ele e com Seu povo A tenda onde Moiseacutes se encontrava inicialmente com o Senhor foi armada fora do arraial (Ecircxodo 33 7) pois o povo tinha pecado e o Senhor lhe disse que natildeo mais seguiria no meio deles O Tabernaacuteculo era tambeacutem chamado de ldquotenda do Testemunhordquo porque nele estava guardado o Testemunho ou as taacutebuas da Lei (Ecircxodo 38 21 Nuacutemeros 1 50) Mais tarde o Tabernaacuteculo passou a ser conhecido como ldquoa Casa do Senhorrdquo (Deuteronocircmio 23 18) No lugar mais interior ficava o recinto conhecido como o ldquoSanto dos Santosrdquo pois aiacute era o local em que era colocada a arca e onde apenas o sumo sacerdote poderia entrar
487 Heptaplus P2 ldquoAmbae item sanctitatis nomine honestatae ita tamen ut quae erat secretior sancti sanctorum reliqua sancti tantum titulo decoraretur sicuti quamvis et caelestis et angelicus mundus uterque sanctus quoniam supra lunam post Luciferi casum nec macula nec peccatum aut est aut esse potest angelicus tamen caelesti longe sanctior et divinior habeturrdquo
488 A abordagem do tabernaacuteculo feita por Pico estaacute muito proacutexima daquela de alguns cabalistas que o italiano conheceu direta ou indiretamente como observou Chaim WIRSZUBSKI (Pic de la Mirandole et la Cabale 2007
148
Outra interpretaccedilatildeo do tema havia sido realizada pelo mestre de Pico Yohanan
Alemanno Ele encontrara paralelos entre a mesma narrativa biacuteblica e a questatildeo das
emanaccedilotildees sefiroacuteticas Em seu Collectanaea o tabernaacuteculo eacute descrito como
necessaacuterio para proteger os vasos que receberiam as emanaccedilotildees pois ldquoo povo havia
sido educado para crer na possibilidade de causar o descenso das forccedilas espirituais e
das emanaccedilotildees provenientes das alturas por meio de preparativos feitos pelo homem
para tal propoacutesito exatamente como quando Moiseacutes preparou o bezerro de ourordquo489
Embora Pico natildeo fale diretamente desse tipo de ritual a influecircncia de Alemanno
sobre ele eacute sabida O tabernaacuteculo eacute descrito portanto como um talismatilde complexo
que guarda e causa o descenso das forccedilas espirituais sendo uma das formas maacutegicas
descritas no Capiacutetulo anterior Ao descrever tal evento o mestre rabino se remete a
Moiseacutes como a um operador da Cabala Teuacutergica relacionando as emanaccedilotildees
sefiroacuteticas a ldquocanaisrdquo de transmissatildeo ldquoOs cabalistas acreditam que Moiseacutes tinha
conhecimento do mundo espiritual e das Sefirot [] e sabia como direcionar seus
pensamentos e aperfeiccediloar o efluxo divino que os cabalistas chamam de canaisrdquo490
Alemanno afirma ainda que o Profeta teria dito ldquolsquoascenderei ao Senhor para receber
instruccedilatildeo detalhada acerca dos preceitos pertinentes a duas instituiccedilotildeesrsquo ndash uma delas
salvaguarda o poder receptivo e diz respeito ao Tabernaacuteculo e aos seus vasosrdquo491 As
especulaccedilotildees de Alemanno conjugam o nuacutecleo conceitual cabaliacutestico ndash as emanaccedilotildees
sefiroacuteticas ndash com a geografia dos trecircs mundos depreendendo da figura de Moiseacutes o
arqueacutetipo do mago possuidor do domiacutenio das Sefirot ldquoa accedilatildeo de Moiseacutes fazia com
que os canais dirigissem a emanaccedilatildeo sobre o mundo inferior de acordo com a sua
vontaderdquo492 A ampla defesa de Moiseacutes realizada no Heptaplus por sua vez eacute
emblemaacutetica de uma percepccedilatildeo que somente se torna possiacutevel agrave luz da Cabala
Extaacutetica Pico leitor do cabalista Natan Saadia certamente via naquele personagem o
protoacutetipo do ser que realizou a uacuteltima etapa do processo extaacutetico algueacutem que ldquofoi
transformado em um ser universal depois de ser um ponto central particularrdquo
estabelecendo-se assim como o objetivo do homem inferior ldquoque ascende pela
virtude do poder do Nomerdquo493
As duas interpretaccedilotildees da passagem biacuteblica do tabernaacuteculo podem ser
inseridas em algum ou alguns dos niacuteveis hermenecircuticos atribuiacutedos pelos cabalistas agraves
Escrituras A necessidade de se manter oculta a Revelaccedilatildeo deu vazatildeo agrave ocorrecircncia de
graus de significaccedilatildeo dentro do texto biacuteblico que podem ser entendidos como veacuteus a
serem retirados de acordo com o desenvolvimento da percepccedilatildeo do leitor Haacute um
sentido literal chamado Peschat que se refere agrave compreensatildeo superficial e externa
do relato biacuteblico em que a atenccedilatildeo recai sobre o enredo e os personagens No niacutevel
p 401) Ainda sobre o tema da representaccedilatildeo do tabernaacuteculo em Pico veja-se Newton BIGNOTTO Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola 2010 pp146-47
489 ALEMANNO Manuscrito de Oxford 2234 f 22v Sobre a concepccedilatildeo do bezerro de ouro utilizado para causar o descenso das forccedilas veja-se IDEL (2008-b np 481)
490 ALEMANNO ibid f 8v IDEL atenta para a utilizaccedilatildeo do termo ldquocanaisrdquo Moiseacutes natildeo restaura a divindade mas sim os canais que transmitem as emanaccedilotildees divinas (2008-b np 480)
491 ALEMANNO ibid f 201b 492 ALEMANNO ibid f 8v apud BUSI Qabbalah 2011 p29 493 A passagem estaacute no livro Schaarei Tzedek do disciacutepulo direto do cabalista italiano Abulafia Natan Saadia e
fundamenta-se em Ezequiel I 26 (cf IDEL 2008-a p28)
149
chamado Remez embora preservada a interpretaccedilatildeo literal eacute maior a capacidade
abstrativa o enredo deixa de ser o objetivo principal da leitura e extrai-se um sentido
alegoacuterico A interpretaccedilatildeo talmuacutedica e midraacuteshica se refere a Derashaacute niacutevel que
indica um procedimento eacutetico ou religioso do qual deve ser extraiacutedo um
ldquoensinamentordquo Atraveacutes do relato biacuteblico o homem deduz o que eacute desejaacutevel ou
indesejaacutevel para o Divino o que eacute correto ou incorreto nas relaccedilotildees humanas
Finalmente no niacutevel chamado Sod que significa ldquosegredordquo eacute revelado o sentido
miacutestico que traz a revelaccedilatildeo dos mundos emanados e de seus habitantes O acesso do
miacutestico ao uacuteltimo niacutevel a partir da compreensatildeo de cada uma de suas dimensotildees
anteriores nunca eacute faacutecil ou raacutepido por tratar-se de um caminho cuja chave eacute
cifrada494
Retomando a concepccedilatildeo cabaliacutestica dos Quatro Mundos outra classificaccedilatildeo
bastante usual estabelece o mundo da Emanaccedilatildeo Atzilut em uma unidade distinta
dos demais enquanto os outros trecircs formam ndash como mundos em separaccedilatildeo ndash um
sistema triacuteplice tal conjunto conceitual alude ao aspecto duplo da Divindade ao
mesmo tempo imanente e transcendente495 A trindade derivando-se da unidade e
tendendo a reintegrar-se nela forma um ciclo quaternaacuterio que em tudo se manifesta
Ou em outras palavras os trecircs mundos manifestos somados agrave dimensatildeo primordial
do Absoluto integram os quatro mundos previstos no Zohar A divisatildeo apresentada
no Heptaplus encontra-se em analogia com a concepccedilatildeo inaugural de trecircs mundos
previstos na literatura cabaliacutestica contudo se for levada em conta a divisatildeo
quaternaacuteria do Zohar perceber-se-aacute que o meacutetodo piquiano natildeo espelha tal forma de
particcedilatildeo ndash natildeo por divergecircncia doutrinaacuteria mas em razatildeo de uma omissatildeo e de um
acreacutescimo Conforme as palavras do autor seu meacutetodo parte de ldquouma quaacutedrupla
exposiccedilatildeo de todo o texto mosaicordquo de maneira que em primeiro lugar eacute
interpretado ldquoo que escrito sobre o mundo angeacutelico e invisiacutevel em segundo lugar
como no primeiro cas0 sobre o mundo celeste depois sobre o sublunar e
corruptiacutevel em quarto sobre a natureza do homemrdquo496 Observe-se que o quarto
mundo de Pico sua principal originalidade em relaccedilatildeo a outras interpretaccedilotildees do
Gecircnesis refere-se ao homem ndash esse eacute seu acreacutescimo Embora a literatura cabaliacutestica
apresente vaacuterias analogias dos trecircs mundos com o aspecto triacuteplice do homem essas
satildeo um tanto distintas do tipo de interpretaccedilatildeo feita por Pico497 Por sua vez a divisatildeo
494 SCHOLEM A Cabala e seu Simbolismo 1978 p72 BUSI La Qabbalah 2011 pp10-11 SENDER pp15-16
A ideia da quaacutedrupla interpretaccedilatildeo do texto biacuteblico remete pelo menos ao seacuteculo XIII quando Moshe de Leacuteon o empregou em alguns matizes de seu significado De Leacuteon em um de seus textos mais tardios compara a Toraacute a uma noz composta de casca e cerne cujo acesso aos niacuteveis interiores se daacute atraveacutes do conhecimento das diferentes formas interpretativas Vejam-se maiores detalhes em SCHOLEM que discute amplamente a questatildeo do chamado Pardes com os vaacuterios significados histoacutericos do termo na seccedilatildeo II de seu livro Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition (New York 1960)
495 SENDER opcit p37 Essa eacute uma visatildeo que se aproxima das concepccedilotildees neoplatocircnicas 496 Heptaplus P2 p194 ldquoUnde quadruplex statim totius mosaicae lectionis expositio nascitur ut primo loco
quicquid ibi est scriptum de angelico mundo et invisibili nullam omnino de aliis mentionem habentes enarremus Secundo loco itidem omnia de caelesti mundo tum de sublunari hoc et corruptibili quarto de natura hominisrdquo
497 O Judaiacutesmo admite trecircs princiacutepios para a alma humana Nefesh forccedila de vida inata presente em homens e animais permite a atividade coordenada do corpo fisico ao qual estaacute intimamente ligada o corpo sem nefesh significa a morte corresponde no homem ao mundo manifesto de Assiaacute Ruach niacutevel de alma acima de nefesh relaciona-se tambeacutem agraves emoccedilotildees tendo certa independecircncia do corpo fiacutesico ruach pode abandonaacute-lo nos estados oniacutericos ou contemplativos trazendo impressotildees de Yetsiraacute ao qual corresponde Neshamaacute niacutevel mais
150
dos quatro mundos na Cabala inicia-se com o Atzilut mundo da Emanaccedilatildeo omitido
por Pico no Heptaplus A omissatildeo natildeo se refere a qualquer tipo de contraste
doutrinaacuterio mas apenas agrave utilizaccedilatildeo de um estilo hermenecircutico que se desenrola a
partir dos mundos manifestos de forma a concordaacute-lo com o modelo do Gecircnesis
Vejamos de forma mais aproximada
O muacuteltiplo dispotildee-se em trecircs reinos elementar celeste e
angeacutelico que se desvelam como realidade mundana
inteligecircncias que governam e animam esferas e mundos498
Na passagem acima extraiacuteda dos Comentaacuterios aos Salmos verifica-se que
Pico aborda os trecircs mundos manifestos inserindo-os na dimensatildeo do muacuteltiplo Tal
informaccedilatildeo por simetria loacutegica remete agrave existecircncia de uma dimensatildeo de unidade A
Unidade ou Absoluto existente acima do reino angeacutelico perpassa toda a obra
piquiana e para Ela toda sua filosofia converge Admitindo-se essa afirmaccedilatildeo natildeo
haveria portanto a necessidade de Pico atribuir uma particular ldquoexpositiordquo agravequela
dimensatildeo de existecircncia Considerando-se que o reino angeacutelico eacute parte do muacuteltiplo lecirc-
se no Livro III que trata do ldquoMundo Angeacutelico e Invisiacutevelrdquo
Tudo aquilo que no anjo eacute imperfeito seraacute atribuiacutedo agrave sua
natureza muacuteltipla A imperfeiccedilatildeo [que existe no anjo] existe na
qualidade de multiplicidade enquanto a capacidade de elevaccedilatildeo
cumprida eacute devida agrave unidade que se lhe acosta do Alto Deus eacute a
Unidade de onde o anjo deriva seu ser sua vida e toda
perfeiccedilatildeo499
Assim a presenccedila da Unidade emanatoacuteria acima dos trecircs mundos embora natildeo
expressa diretamente eacute extraiacuteda das passagens que apontam para os aspectos de
gradaccedilatildeo no interior da dimensatildeo da multiplicidade A verificaccedilatildeo do terceiro Livro
do Heptaplus certifica que Pico natildeo suprimiu o mundo emanatoacuterio de Atzilut em sua
interpretaccedilatildeo dos momentos sucessivos da expansatildeo divina A sequecircncia entrevecirc a
analogia existente entre os nuacutemeros depreendidos de leituras cabaliacutesticas e
pitagoacutericas500 e o reino angeacutelico conforme estabelecido por Pseudo Dioniso ndash ambos
os grupos colocados como elementos intermediaacuterios entre o Uno e os mundos
inferiores
sutil e superior da alma eacute o princiacutepio que a liga ao plano da divindade e responsaacutevel pelo grau mais elevado de discernimento no homem tanto intelectual quanto espiritual circulando em Briaacute o mundo da Criaccedilatildeo (cf SENDER 1992 p69 ss) Para Pico no homem ocorre o misto dos elementos ldquoonde reside o espiacuterito celeste a alma vegetal os sentidos dos brutos a razatildeo a mente angeacutelica e a imagem de Deusrdquo (Heptaplus P2 p193) A exposiccedilatildeo sobre a natureza ou ldquoreinordquo do homem eacute feita no Livro IV do Heptaplus
498 PICO Expositiones in Psalmos (trad Antonino Raspanti-Giacomo Raspanti Firenze 1997) Sobre os trecircs mundos elementaris coelestis et intellectuali veja-se Livro XLVII pp14-16
499 Heptaplus Livro III ldquoDe Mundo Angelico et Invisibilirdquo 1 p250 ldquoQuare quicquid in angelo imperfectum est angelicae multitudini quam inde habet unde est numerus idest creatura [] Utrumque igitur horum evenit angelo qua multitudo est Reliquum ut absolutio illi et consummatio ab accedente desuper fiat unitate Deus autem unitas unde ad angelum et esse et vita et omnis perfectio derivaturrdquo
500 Cf Heptaplus III 1 p249 ldquoRefiramos isso agraves coisas divinas segundo o costume pitagoacutericordquo
151
Tudo aquilo que depois da unidade eacute nuacutemero eacute perfeito e
completo por via da unidade A unidade de tudo simples por si
perfeita natildeo sai de si na sua indivisibilidade simples e solitaacuteria
adere a si mesma pois que basta a si [] O nuacutemero sendo por
sua proacutepria natureza muacuteltiplo eacute simples porquanto eacute capaz em
graccedila da unidade E embora cada nuacutemero que se afaste da
unidade caia em uma multiplicidade sempre mais extensa e em
uma sempre maior variedade e composiccedilatildeo de partes natildeo haacute
nada todavia tatildeo proacuteximo agrave unidade quanto tal multiplicidade
provida de unidade apenas acidentalmente natildeo por sua
natureza mas por composiccedilatildeo501
O desenvolvimento do tema conteacutem o modelo de emanaccedilatildeo proveniente de
Atzilut O anjo natildeo eacute unidade por si soacute do contraacuterio seria o Uno Resta que o anjo seja
nuacutemero (ldquoreliquum ut angelus numerus sitrdquo) E sendo nuacutemero ldquopor um aspecto eacute
muacuteltiplo e por outro eacute multiplicidade unificadardquo A descriccedilatildeo prossegue elucidando
que no anjo encontra-se uma dupla imperfeiccedilatildeo uma consiste no fato de natildeo ser o
proacuteprio Ser mas apenas uma essecircncia que pertence ao Ser por participaccedilatildeo a outra
se encontra no fato de natildeo ser a proacutepria Inteligecircncia mas sim participar agrave
Inteligecircncia porquanto sua natureza eacute intelecto capaz de entender Ambas as
imperfeiccedilotildees satildeo no anjo segundo sua multiplicidade enquanto a capacidade de
elevaccedilatildeo eacute devida agrave unidade que se lhe aproxima do alto Pico parece no entanto
atribuir ao nuacutemero uma possibilidade de perfeiccedilatildeo natildeo atribuiacuteda ao anjo ldquocada
nuacutemero eacute imperfeito enquanto multiplicidade embora perfeito enquanto
unidaderdquo502 A dimensatildeo angeacutelica mostra-se um dos momentos de difusatildeo do divino
um dos instrumentos atraveacutes dos quais a unidade se revela Sob tal perspectiva os
anjos as Sefirot as numeraccedilotildees se encontram em perene circularidade interligando
o Uno e o muacuteltiplo Em sua exposiccedilatildeo sobre os Anjos Pico cita fontes concordantes
como Averroacuteis (ldquoentre intelecto e inteligiacutevel cria-se uma unidade maior que entre
mateacuteria e formardquo) e Maimocircnides (ldquoa verdade se colhe de forma mais perfeita nos
anjos que no homemrdquo) para concluir que as espeacutecies inteligiacuteveis satildeo unidas na mente
angeacutelica por meio de uma ligaccedilatildeo eterna natildeo temporacircnea como ocorre no intelecto
humano503
A descriccedilatildeo acima natildeo apenas confirma a natildeo-supressatildeo do mundo da
emanaccedilatildeo primordial na obra piquiana como daacute-nos um modelo do meacutetodo
hermenecircutico utilizado para cada um dos mundos interpretados no Heptaplus Assim
como no Livro III eacute descrita a natureza angeacutelica e sua relaccedilatildeo com os outros planos ndash
501 Heptaplus III 1 p248 ldquoQuicquid est post unitatem numerus unitate perfectus et consummatus est Sola
unitas omnino simplex a se perfecta non egreditur se sed individua simplicitate et solitaria sibi cohaeret quia superest sibi nullius indiga plena suis divitiis Numerus sua natura cum sit multitudo unitatis beneficio sit simplex quantum ipse simplicitatis capax quamquam autem numerus quisque quo magis ab unitate sit procul in maiorem semper incidat multitudinem plusque in eo dissimilitudinis plus partium plus compositurae sit nullus est tamen ita unitati proximus qui multitudo non sit adventitiam habens unitatem unaque non natura sed compositionerdquo
502 Heptaplus III 1 p251 ldquoEst autem omnis numerus eatenus imperfectus quatenus multitudo perfectus autem quatenus unusrdquo
503 Heptaplus III 2 p255 A passagem de Averroacuteis estaacute em De an Beat IX 152 ab
152
em acircmbito de uma geografia universal ndash os demais Livros da obra descrevem a
natureza de cada particular mundo tratado em perfeita harmonia com os mundos
previstos na Cabala
3 A Occlusa Sapientia
Verificou-se no Capiacutetulo anterior a existecircncia de uma relaccedilatildeo entre as letras
hebraicas e significados ocultos vislumbrada por Pico ainda em rsquo86 As
caracteriacutesticas inerentes ao idioma hebraico satildeo afirmadas no fechamento de suas
Conclusiones Philosophicae ldquose existe uma liacutengua originaacuteria e natildeo casual resulta
evidente sobre a base das muacuteltiplas conjecturas que essa eacute a liacutengua hebraicardquo504
Segundo essa proposiccedilatildeo o hebraico apresentaria uma relaccedilatildeo privilegiada com a
verdade instituindo com as coisas uma relaccedilatildeo imediata e necessaacuteria e natildeo mediata
como ocorre com as outras liacutenguas505 Pico percebera que as combinaccedilotildees numeacutericas
e as expressotildees linguiacutesticas apresentam iacutentimas articulaccedilotildees loacutegicas atestando natildeo
apenas a existecircncia de uma racionalidade escondida sob as formas como um processo
de manifestaccedilatildeo divina ldquoos nuacutemeros nos abrem uma estrada para a investigaccedilatildeo e
compreensatildeo de cada coisardquo506 As letras do alfabeto hebraico seriam nesse sentido
apenas ldquoveacuteusrdquo que selam o pensamento divino pedindo que seja efetuada uma
elevaccedilatildeo da letra ao espiacuterito Essa a razatildeo como ainda relembra Pico de Oriacutegenes
evitar traduzir certos vocaacutebulos hebraicos porquanto cada traduccedilatildeo representa uma
despotencializaccedilatildeo da palavra sagrada507
Na inteira Lei natildeo existem letras que em suas formas
conjunccedilotildees separaccedilotildees flexotildees direccedilotildees defeitos e excessos
grandezas maiores ou menores e em seu coroamento
fechamento abertura e ordem natildeo remetam aos segredos das
Dez Numeraccedilotildees [as Sefirot]508
A valorizaccedilatildeo da letra hebraica como fonte criadora focircra registrada pela
primeira vez no Secircfer Yetsiraacute como foi visto Cada uma das 22 letras representa um
princiacutepio gerador de energia que encerra uma chave cognitiva encontrando cor-
respondecircncia com os elementos formados por seu intermeacutedio de forma que toda a
criaccedilatildeo encontra-se relacionada a um fenocircmeno de linguagem Assim como cada
504 Concl (II) II 80 (p77) ldquoSi qua est lingua prima et non casualis illam esse hebraicam multis patet
coniecturisrdquo 505 A deduccedilatildeo eacute de Albano BIONDI tradutor das Conclusiones em seus comentaacuterios introdutoacuterios
(Conclusiones Nongentae ndash Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pXXIX) 506 PICO Conclusiones de mathematicis (II) VII 11 ldquoPer numeros habetur via ad omnis scibilis
investigationem et intellectionemrdquo 507 Para um aprofundamento da temaacutetica das letras hebraicas e sua recepccedilatildeo por Pico leia-se Eugenio GARIN
(2011 pp 145-49) 508 PICO Concl (I) IX 33 (p60) ldquoNullae sunt litterae in tota lege quae in formis coniunctionibus
separationibus tortuositate directione defectu superabundantis minoritate maioritate coronatione clausura apertura et ordine decem numerationum secreta non manifestentrdquo
153
sefiraacute cada letra encerra um poder criador proacuteprio recebido a partir da divindade e
emanado em direccedilatildeo agrave mateacuteria e em sentido contraacuterio permitindo o acesso e a
compreensatildeo do operador apoacutes o justo processo aos elementos inteligiacuteveis que
participam da divindade atraveacutes de sua chave cognitiva Esse eacute o significado
expresso no Secircfer Yetsiraacute de ldquocom as letras descreva a alma de tudo o que foi
formado e tudo o que seraacute formado no futurordquo509
A narrativa do Gecircnesis ndash em que Deus com uma seacuterie de ordenamentos daacute
vida agrave criaccedilatildeo ndash eacute considerada para os cabalistas testemunho fiel de como a
realidade foi desencadeada pela liacutengua divina Com a mesma ordem de letras que se
sucedem no texto biacuteblico realiza-se o desenho constitutivo da realidade que exprime
o plano divino no domiacutenio fiacutesico da criaccedilatildeo510 Conforme ainda o Secircfer Yetsiraacute
ldquotudo o que eacute formado emana de um nomerdquo511
De fato fundamentada sobre a relaccedilatildeo existente entre as letras hebraicas e a
criaccedilatildeo desenvolveu-se ao longo dos seacuteculos uma longa tradiccedilatildeo exegeacutetica voltada a
aprimorar uma habilidade que permitisse aos iniciados penetrar aleacutem da superfiacutecie
das palavras e descobrir dentro das Escrituras os segredos de toda a criaccedilatildeo512 Para
alcanccedilar os significados ocultos os cabalistas empregam algumas teacutecnicas
relacionadas a operaccedilotildees com as letras513 Os meacutetodos mais utilizados para descobrir
significaccedilotildees hermenecircuticas fundamentam-se no modelo de Abulafia que
compreendia trecircs teacutecnicas baacutesicas o notarico a gematria e a temuraacute A primeira
cujo nome proveacutem da palavra latina ldquonotariusrdquo baseia-se na teacutecnica que analisa
como formar novas palavras partindo das letras iniciais meacutedias ou finais de outras
palavras Na segunda cada letra hebraica eacute substituiacuteda por seu correspondente valor
numeacuterico interpretando-se as palavras atraveacutes dos nuacutemeros resultantes das somas
de cada letra Conhecendo-se o valor numeacuterico de uma palavra ou frase poderatildeo ser
criadas conexotildees com palavras ou frases que tenham o mesmo valor estabelecendo
com elas algumas analogias A temuraacute por sua vez eacute a arte do anagrama ou seja de
permutar a posiccedilatildeo das letras em uma mesma palavra Isso significa que uma palavra
pode ser decomposta e recomposta para formar novas palavras que revelem o
significado completo da primeira514
509 Secircfer Yetsiraacute II 1 (trad KAPLAN 2005 p283) 510 BUSI 2011 p 23-24 511 Secircfer Yetsiraacute II 512 BUSI ibid p 23-24 GARIN 2011 p146 513 Como explica BUSI (ibid p 23) a mesma palavra hebraica seraf indica tanto a transmutaccedilatildeo alquiacutemica dos
metais quanto a permutaccedilatildeo das letras do alfabeto ldquoAssim como o alquimista escolhe os liames da mateacuteria para procurar nos metais menos nobres o segredo do ouro assim o exegeta hebreu transforma a ordem das letras para descobrir por traacutes do sentido aparente o verdadeiro significado do textordquo
514 Cf Guido MASSETANI La Filosofia cabbalistica di Giovanni Pico Della Mirandola 1897 pp 64-65 Um modelo de teacutecnica cabaliacutestica pode ser encontrado no Salmo 34 no qual cada verso inicia com uma das letras do alfabeto hebraico em sucessatildeo A sua funccedilatildeo cabaliacutestica estaacute esclarecida na obra Corona del buon nome de Avraham de Colonia que afirma seu valor cognitivo em relaccedilatildeo ao nome impronunciaacutevel de Deus o Tetragramma e agraves 10 Sefirot Esse aspecto impressiona Pico que utiliza o texto traduzido por Flavio Mitridate (FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633) Outros exemplos de uso da gematria satildeo apresentados por Tova SENDER em seu capiacutetulo ldquoGuematriardquo (1992 p21)
154
Pico debruccedilou-se sobre algumas dentre aquelas teacutecnicas ndash como se lecirc na
Apologia e em algumas de suas Teses ndash515 e tentou permutar nomes inicialmente
atraveacutes do procedimento da ars combinatoria praticado por Ramon Llull no seacuteculo
XII que apresentava certa diferenccedila com os outros meacutetodos aprendidos Estava certo
que aquele que possuiacutesse o conhecimento da ordenaccedilatildeo da liacutengua hebraica
aprendendo a mantecirc-la ldquoem maneira analoacutegicardquo nos vaacuterios campos do saber
possuiria ldquonorma e regra para a perfeita descoberta de qualquer objeto possiacutevel do
saberrdquo conforme havia deixado claro em sua conclusio paradoxal 55516 A teacutecnica com
a qual melhor se adaptou e conseguiu obter resultados foi a temuraacute que lhe permitiu
confirmar alguns dogmas e colher descobertas originais como informam algumas
teses cabaliacutesticas
Se no nome de Abraatildeo natildeo tivesse sido inserida a letra He
Abraatildeo natildeo teria proliferado517
As letras do nome de Cacodaemon que eacute o Priacutencipe deste
Mundo e as letras do nome do Deus Triagramaacutetico satildeo as
mesmas quem souber fazer a transposiccedilatildeo ordenada inferiraacute
um do outro518
Os sinais da existecircncia de certas chaves secretas apenas esboccedilados nas obras
anteriores eram agora confirmados por Pico na uacuteltima parte do Heptaplus intitulada
ldquoExposiccedilatildeo das primeiras palavras isto eacute lsquoNo Princiacutepiorsquordquo A comprovaccedilatildeo do
meacutetodo cabaliacutestico surpreenderia o proacuteprio autor ldquopara aleacutem de minhas esperanccedilas e
de qualquer convicccedilatildeo encontrei aquilo que nem eu mesmo poderia acreditar ter
encontrado nem outros acreditariam facilmente digo uma coisa maravilhosa
inaudita e inacreditaacutevelrdquo519 Atraveacutes da permutaccedilatildeo de letras reafirmava que nos
cinco livros da lei mosaica estava encerrada a cogniccedilatildeo de todas as artes e da
sabedoria divina e humana ldquoembora dissimulada e oculta entre as mesmas letras
entre as quais a formulaccedilatildeo da lei se compotildeerdquo Agrave diferenccedila de outras obras anteriores
nas quais Pico havia mencionado tais segredos sem revelaacute-los o autor concluiacutea o
periacuteodo com a promessa ldquocomo agora seraacute demonstradordquo520
515 Cf Apologia (I p175) Conclusiones magicae secundum opinionem propriam 10 19 20 21 e 22
Conclusiones Cabalisticae Secundum secretam doctrinam 33 35 Conclusiones Cabalisticae Secundum opinionem propriam 60 70
516 Cf Conclusiones Paradoxae (II) III 55 517 Concl (I) IX 15 (p56) ldquoNisi nomini Abraam litera ה id est ha addita fuisset Abraam non generassetrdquo De
fato conta o Gecircnesis (175) que Abraatildeo e Sara soacute puderam ter filhos apoacutes mudarem os proacuteprios nomes AVRaM ficou AVRaHam e SaRaI ficou SaRaacuteH recebendo os dois a letra Hecirc que representa um dos nomes de Deus assim tornando-se feacuterteis Acerca de tal passagem do Gecircnesis conta Satildeo Jerocircnimo que o nome anterior Abram significa ldquoPai elevadordquo enquanto Abraham significa ldquoPai de muitas naccedilotildeesrdquo (apud Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)
518 Concl (I) IX 19 (p58) ldquoEaedem sunt literae nominis cacodaemonis qui est princeps mundi huius et nominis Dei Triagrammaton et qui sciuerit ordinare transpositionem deduceret unum ex aliordquo Veja-se em FORNACIARI detalhes metodoloacutegicos das contas efetuadas para analogar um nome ao outro (2009 p79)
519 Heptaplus Expositio Primae Dictionis idest lsquoIn Principiorsquo p376 Igitur praeter spem meam praeter opinionem inveni quod neque inveniens ipse credebam neque credere alii facile potuerunt [] Rem dico mirabilem inauditam et incredibilemrdquo
520 Ibid p374 ldquo[hellip] dissimulatam autem et occultatam in litteris ipsis quibus dictiones legis contextae sunt quo modo nunc declarabimusrdquo
155
Propondo-se dar ao leitor uma ideia do funcionamento do sistema de
interpretaccedilatildeo cabaliacutestico Pico parte do primeiro periacuteodo do Gecircnesis que vai desde
ldquoNo princiacutepiordquo (11) ateacute ldquoe viu Deus a luz que era um bem (14)rdquo ndash constituiacutedo de
cento e trecircs letras hebraicas como observa ndash para efetuar sua anaacutelise Em sua
ldquoaparecircncia comum e vulgarrdquo como informa o Autor ldquotal disposiccedilatildeo de letras forma
apenas a casca de uma essecircncia de misteacuterios conservados dentro do textordquo Contudo
se for realizada a decomposiccedilatildeo daquelas palavras tomadas as mesmas letras em
separado e recompostas em novas palavras que se possam formar ldquosegundo regras
apreendidas dos hebreusrdquo ldquoveremos em plena luz maravilhosas verdades
secretiacutessimas de uma sabedoria conservada a respeito de muitas coisasrdquo Mas
conforme complementa apenas ldquose formos capazes de uma selada sabedoriardquo521 Para
comprovar sua descoberta aos leitores o autor elege apenas uma das palavras que
compotildeem o periacuteodo mencionado suficiente para demonstrar seu intento
Tomando assim a primeira palavra hebraica do Gecircnesis ldquoberesitrdquo que Pico
transcreve em caracteres hebraicos segue-se uma detalhada explicaccedilatildeo de todas as
separaccedilotildees permutaccedilotildees e uniotildees efetuadas entre as letras daquela palavra surgem
novos vocaacutebulos compostos com as letras da palavra inicial dos quais satildeo dados os
significados em latim finalmente as novas palavras satildeo reordenadas em uma nova
expressatildeo da qual emerge ldquoo Pai no Filho e pelo Filho princiacutepio e fim ou seja
quietude criou a cabeccedila o fogo e o fundamento do homem grande com o pacto
bomrdquo522 Note-se que essa inteira oraccedilatildeo eacute o resultado extraiacutedo da resoluccedilatildeo e
recomposiccedilatildeo daquela uacutenica palavra mostrada passo a passo pelo autor523
Embora como infere Pico qualquer cristatildeo seja capaz de compreender o
significado de ldquoo Pai criou no Filho e atraveacutes do Filhordquo natildeo seraacute faacutecil para ldquoos ignaros
em filosofiardquo compreender o significado de ldquocabeccedila fogo e fundamento do homem
521 Ibid p374 ldquoSumamus gratia exempli primam particulam libri Geneseos videlicet ab exordio usque ad
locum ubi est scriptum lsquoEt vidit Deus lucem quod esset bonumrsquo Est tota illa scriptura tribus et centum elementis coagmentata quae eo modo disposita quo ibi sunt dictiones constituunt quas legimus nihil nisi commune et triviale prae se ferentes Corticem scilicet conflat hic litterarum ordo hoc textum medullae interius abditae latentium mysteriorum At vocabulis resolutis elementa eadem divulsa si capiamus et iuxta regulas quas ipsi tradunt quae de eis conflaridictiones possunt rite coagmentemus futurum dicunt ut elucescant nobis si simus capaces occlusae sapientiae mira de rebus multis sapientissima dogmata et si in tota hoc fiat lege tum demum ex elementorum hac quae rite statuatur et positione et nexu erui in lucem omnem doctrinam secretaque omnium liberalium disciplinarumrdquo
522 Heptaplus ibid p 378 ldquoPater in Filio et per Filium principium et finem sive quietem creavit caput ignem et fundamentum magni hominis foedere bonordquo
523 Veja-se a inteira ordenaccedilatildeo de palavras cf Heptaplus p378 (levando-se em conta que os termos hebraicos estatildeo aqui escritos em ordem inversa agrave original apresentando-se no sentido latino) ldquoDictio illa apud Hebraeos hoc modo scribitur תישארב Ex hac igitur si tertiam litteram primae coniumgamus fit dictio בא idest ab Si geminatae primae secundam addamus fit רבב idest bebar Si praeter primam omnes legamus fit תישאר idest resith Si quartam primae et ultimate connectamus fit שתב idest sciabat Si tres primas quo iacent ordine statuamus fit ארב idest bara Si prima omissa tres sequentes fit שאר idest rosc Si omissis prima et secunda duas sequentes fit שא idest es Si tribus primus omissis quartam ultimae copulemos fit תש idest seth Rursus si secundam primae fit בר idest rab Si post tertiam quintam tum quartam statuamus fit שיא idest hisc Si primas duas duabus ultimas coagmentemus fit תירב idest berith Si ultimam primae fit ultima dictio et duodecima quae est בת idest thob verso quod frequentissimum apud Hebraeos thau in thet elementum Videamus autem quid primo haec latine significent tum quae per ea non ignaris philosophiae de tota natura mysteria revelentur Ab patrem significat bebar in filio et per filium (utrumque enim significat beth praepositio) resit principium sabath quietem et finem bara creavit rosc caput es ignem seth fundamentum rab magni hisc hominis berith foedere tob bono Et totam si ordine consequenti orationem texamus erit huiusmodi Pater in Filio et per Filium principium et finem sive quietem creavit caput ignem et fundamentum magni hominis foedere bonordquo
156
granderdquo e tampouco de ldquopactordquo ndash termos que encerram cada uma das leis dos
quatro mundos tratados no Heptaplus524 A concepccedilatildeo de ldquohomem granderdquo remete a
Moiseacutes que assim chama o mundo em contraposiccedilatildeo ao homem ldquopequeno mundordquo
Aos outros elementos da oraccedilatildeo Pico faz corresponder os trecircs mundos postulados na
Cabala e na Antiga Filosofia inteligiacutevel celeste e corruptiacutevel Assim em analogia com
o corpo humano ldquopor meio de uma precisa leirdquo a cabeccedila fonte do conhecimento
representa a parte mais alta do mundo correspondente ao mundo angeacutelico ou
inteligiacutevel o fogo princiacutepio de vida e calor ligado ao coraccedilatildeo representa a parte
meacutedia qual o sol no mundo celeste o fundamento ou princiacutepio de geraccedilatildeo e
corrupccedilatildeo representa o mundo sublunar Essas partes no mundo e no homem se
correspondem reciprocamente Ao final da passagem Pico explica
Esse pacto eacute bom porque eacute dirigido e orientado para Deus que eacute
o Bem de forma que assim como o mundo eacute uno na totalidade
de suas partes assim tambeacutem no final possa se tornar uno com
o seu Autor525
A descoberta obtida sob o veacuteu de uma uacutenica palavra satisfaz o autor que natildeo
pretendendo ultrapassar essa conquista admite natildeo ter a experiecircncia necessaacuteria para
se aprofundar em investigaccedilotildees ldquopenso ter feito uma coisa apraziacutevel aos homens de
meu tempo tornando manifesta aquela riqueza de gemas que se me oferece sem
penetrar em seus abismos costeio as margens desse marrdquo526 Se a mesma teacutecnica for
aplicada para toda a Lei induz Pico surgiraacute toda a doutrina e os segredos de todas as
disciplinas liberais Poreacutem adverte ndash mais uma vez ndash ldquose formos capazes de
sabedoria ocultardquo (ldquosi simus capaces occlusae sapientiaerdquo) Pois pode acontecer que
ldquoaproximando-nos de dissolver e compor algumas palavras nasccedilam de nossa
atividade muitos vocaacutebulos e uma variedade de discursos rica de grandes
ensinamentos e profundos significados mas inuacutetil fortuita e despreziacutevel para quem
natildeo tendo apreendido o valor por outra via natildeo possa colher seu sentidordquo527
O caminho de descoberta das verdades veladas nas Escrituras atraveacutes de
qualquer dos meacutetodos indicados eacute o caminho miacutestico sugerido nos chamados Atos
da Criaccedilatildeo Maassecirc Bereshit isto significa que se a Criaccedilatildeo se deu por meio da
linguagem seraacute por meio da linguagem que se deveraacute retornar ao Criador528 Para os
cabalistas a arte combinatoacuteria natildeo eacute mais que uma reconfiguraccedilatildeo da palavra e da
obra de Deus A apreensatildeo da alma presente nas letras passa a ser sob esse prisma
uma das ferramentas que possibilita o regresso do homem agrave Unidade uma concepccedilatildeo
depreendida da especulaccedilatildeo alfabeacutetica de Abulafia529 que certamente se apoiara no
Zohar ldquoOs mandamentos formam o corpo das Escrituras suas vestes satildeo as
524 Cf Heptaplus ibid pp379 381 525 Heptaplus p382 ldquoQuod foedus ideo est bonum quia ad Deum qui est ipsum bonum ita dirigitur et
ordinatur ut quem admodum inter se totus mundus unus ita et cum suo auctore postremo sit unumrdquo 526 Heptaplus p376 527 PICO Heptaplus p377 528 MAGHIDMAN 2014 p108 529 BUSI 2011 p 26
157
narraccedilotildees e finalmente haacute uma almardquo530 O inteiro Heptaplus atraveacutes de seu
comentaacuterio sobre o Gecircnesis pretende provar o ponto de vista de Pico de que a
linguagem cabaliacutestica ou natildeo transcende suas proacuteprias terminologias configurando
um processo cognitivo O seacutetuplo meacutetodo de interpretaccedilatildeo proposto por Pico encerra
um princiacutepio metafiacutesico de reciacuteproca contenccedilatildeo de todos os niacuteveis de realidade entre
si culminando na unificaccedilatildeo com o Absoluto
Imitemos tambeacutem noacutes a santiacutessima alianccedila do mundo de
forma a estarmos unidos entre noacutes por reciacuteproco amor e a
alcanccedilarmos atraveacutes do verdadeiro amor de Deus a feliz
unificaccedilatildeo Nele531
530 Zohar III 152a in VULLIAUD I p135 531 Heptaplus p382 p 382 ldquoImitemur et nos sanctissimum foedus mundi ut et mutua caritate invicem simus
unum et simul omnes per veram Dei dilectionem cum illo unum feliciter evadamosrdquo
158
CAPIacuteTULO VII
FILOSOFIA ESOTERISMO CONCOacuteRDIA
O seacutetimo e uacuteltimo Capiacutetulo tem por intento alinhavar as partes apresentadas
nos capiacutetulos anteriores buscando uma siacutentese interpretativa do que foi analisado
Para tanto alguns pontos aparentemente desconexos deveratildeo ser interligados e as
eventuais lacunas preenchidas Seraacute realizada inicialmente a elucidaccedilatildeo do
paradigma esoteacuterico verificando sua utilizaccedilatildeo em periacuteodos e escolas distintas em
seguida seratildeo vistos os tipos de conteuacutedos protegidos pelo sigilo apontando para sua
relaccedilatildeo com as tradiccedilotildees convergentes do projeto piquiano finalmente
fundamentando-nos em uma especiacutefica concepccedilatildeo utilizada por Pico della Mirandola
ndash a ldquoMorte do Beijordquo ndash seraacute proposta uma interpretaccedilatildeo capaz de lanccedilar uma
pequena luz na questatildeo da confluecircncia daquelas tradiccedilotildees para o mesmo fim
1 O Paradigma Esoteacuterico
A leitura das obras piquianas natildeo deixa duacutevidas acerca da utilizaccedilatildeo de uma
seacuterie de referecircncias de cunho esoteacuterico colhidas da leitura histoacuterica realizada pelo
Autor Como foi esboccedilado no Capiacutetulo II a praacutetica de uma atitude de proteccedilatildeo de
certos conteuacutedos encontra-se em registros relativos tanto a perspectivas teoloacutegicas
quanto filosoacuteficas denotando um modelo vaacutelido desde tempos antigos ndash seja do
periacuteodo pagatildeo quanto do cristatildeo Uma aproximaccedilatildeo a alguns modelos de
manifestaccedilotildees desse gecircnero de ocorrecircncia seraacute uacutetil para que se amplie a definiccedilatildeo de
ldquoesoterismordquo delineada na ldquoIntroduccedilatildeordquo desta tese
O adjetivo ldquoesoteacutericordquo (do grego esoterikoacutes) tem sido frequentemente atribuiacutedo
a Aristoacuteteles em verdade apenas a palavra ldquoexoteacutericordquo (exoterikoacutes) eacute encontrada nos
escritos que nos chegaram uma forma empregada para designar as obras destinadas
ao puacuteblico em contraposiccedilatildeo aos escritos acroamaacuteticos (ldquoakroacuteamardquo ldquoinstruccedilatildeo oralrdquo)
referidos agraves liccedilotildees apenas ouvidas ndash e tantas vezes anotadas532 Foi apenas no seacuteculo
II dC que o termo ldquoesoteacutericordquo e sua relaccedilatildeo com Aristoacuteteles fizeram sua primeira
apariccedilatildeo devidamente registrada atraveacutes de uma saacutetira de Luciano de Samoacutesata
Zeus e Hermes vendiam filoacutesofos como escravos no mercado anunciando que aquele
que comprasse um disciacutepulo de Aristoacuteteles receberia dois pelo preccedilo de um ldquoum visto
532 Veja-se por exemplo Politica 1278b 31 Metaphisica 1076a 28 Etica a Nicomaco 1102a 26 A
interpretaccedilatildeo heleniacutestica do termo exoterikoi logoi tomada como uma referecircncia aos escritos aristoteacutelicos eacute atribuiacuteda por Simpliacutecio mais tarde no seacuteculo VI a Eudemo de Rhodes em seu comentaacuterio agrave Fiacutesica de Aristoacuteteles referindo-se a uma passagem em que Aristoacuteteles teria lidado com um problema lsquoexoteacutericorsquo referente a uma questatildeo pertencente ao campo dialeacutetico (SIMPLICIUS In Ph 8327 8526 e 861 apud Wouter HANEGRAAFF Dictionary of Gnosis amp Western Esotericism 2006 p 336)
159
de fora outro visto de dentrordquo [] ldquoportanto se vocecirc o comprar lembre-se de dar ao
primeiro o nome de exoteacuterico e ao segundo o de esoteacutericordquo533 Confirmando a
anedota Clemente de Alexandria escrevia pouco tempo depois ldquoos disciacutepulos de
Aristoacuteteles dizem que alguns de seus tratados satildeo esoteacutericos outros comuns e
exoteacutericosrdquo E consolidando o significado de ldquosegredordquo acrescia que ldquoaqueles que
instituiacuteram os misteacuterios sendo filoacutesofos enterraram suas doutrinas em mitos para
natildeo serem oacutebvias para todosrdquo534 Observe-se que Clemente mescla na uacuteltima
passagem o acircmbito misterioloacutegico com o filosoacutefico ndash como faraacute Pico seacuteculos depois
ndash introduzindo uma conotaccedilatildeo de misticismo ao termo Na mesma linha escreveram
Oriacutegenes o Cristatildeo e Gregoacuterio de Nissa utilizando o termo ldquoesoteacutericordquo para referir-se
a ensinamentos secretos reservados a uma ldquoelite miacutesticardquo535
Esses breves relatos fazem notar a existecircncia de duas significaccedilotildees para a
mesma palavra sendo uma concernente ao sentido de ldquosigilordquo e a outra agrave qualidade
do que eacute ldquomiacutesticordquo Embora o sinocircnimo que mais se adeque a ldquoesoteacutericordquo seja
ldquosecretordquo na maior parte das vezes as duas caracteriacutesticas encontram-se mescladas
Etimologicamente o campo semacircntico do misticismo eacute proacuteximo ao do esoterismo a
palavra ldquomisteacuteriordquo conforme sua raiz grega mus significa ldquosilecircnciordquo ou ldquofechar a
bocardquo o ldquomyacutestesrdquo ou ldquoiniciadordquo eacute pois aquele que manteacutem os laacutebios selados
enquanto mysteacuterion refere-se ao culto de iniciaccedilatildeo em que eacute mantido um caraacuteter
secreto536 Assim em seu sentido mais imediato eacute aquilo que natildeo deve ser falado que
deve ser recebido e guardado em silecircncio em sentido mais profundo aquilo que deve
ser contemplado no silecircncio537 Verifica-se ainda um aspecto de transformaccedilatildeo
aniacutemica encerrado na qualidade do que eacute miacutestico que se relaciona com uma
aproximaccedilatildeo da divindade Resta observar que embora nem toda a miacutestica seja
ensinamento secreto e nem todo ensinamento secreto seja miacutestico538 os dois gecircneros
de manifestaccedilatildeo a miacutestica e a secreta tecircm caminhado juntos e se completam na
definiccedilatildeo de esoterismo Prosseguindo seratildeo mostrados trecircs modelos de esoterismo
relacionados a doutrinas bastante distintas ndash que muito provavelmente
influenciaram diretamente Giovanni Pico
Um exemplo expressivo relacionado aos misteacuterios egiacutepcios e tracejado no
Capiacutetulo I pode ser encontrado no Hermetismo que embora supostamente
533 LUCIANO DE SAMOacuteSATA Vitarum Rustio 26 apud HANEGRAAFF opcit p 336 534 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromata V 58 3-4 Jacircmblico mais tarde em Vida de Pitaacutegoras e em De
Comm Math (18) utilizaria a dicotomia para referir-se aos alunos de Pitaacutegoras divididos em duas classes ldquouma exoteacuterica e outra esoteacutericardquo
535 Vejam-se os detalhes e referecircncias em HANEGRAAFF opcit p 336 536 De acordo com Walter BURKERT encontra-se na traduccedilatildeo latina de mysteria myeis myesis a melhor
definiccedilatildeo para o termo que resulta em initia initiare initiatio introduzindo o conceito de ldquoiniciaccedilatildeordquo na linguagem ocidental Esse conceito ldquoeacute via de regra acompanhado pelo segredordquo (Antigos Cultos de Misteacuterio 1987 pp19-20)
537 A uacuteltima definiccedilatildeo eacute atribuiacuteda a Reneacute Gueacutenon Aperccedilus sur lrsquoinitiation 2004 Paris Editions Traditionnelles p125 apud Pierre RIFFARD Dicionaacuterio do Esoterismo 1993 p241
538 Gershom SCHOLEM Nome de Deus a Teoria da Linguagem e Outros estudos de Cabala e Miacutestica Judaica 1999 pp64-65 Em contexto diverso do tratado por Scholem tambeacutem o especialista em religiotildees misteacutericas Walter BURKERT afirma que nem todos os cultos secretos detecircm um caraacuteter miacutestico Como exemplo cita o caso da magia privada que apesar de secreta natildeo deve receber a alcunha de miacutestica assim tambeacutem o acesso de certas hierarquias sacerdotais a objetos ou locais sagrados natildeo constitui uma miacutestica apesar de seu caraacuteter secreto Haacute por outro lado estados de misticismo que podem ser alcanccedilados durante cultos religiosos abertos que natildeo caracterizam necessariamente um segredo (op cit pp19-21)
160
pertencente a periacuteodo anterior ao cenaacuterio de significaccedilotildees acima mencionadas
encerra ao mesmo tempo o sentido secreto e o caraacuteter miacutestico sendo-nos uacutetil para
ilustrar um modelo de esoterismo natildeo-ocidental preacute-cristatildeo bem aceito no seacuteculo XV
Os escritos hermeacuteticos ocultam por detraacutes de uma manifesta clareza ndash referente agrave
forma e ao conteuacutedo ldquoexternordquo ndash uma obscuridade quanto ao sentido mais profundo
que se encontra ldquoseladordquo O material hermeacutetico contempla trecircs planos diversos em
estreita relaccedilatildeo entre eles uma forma externa clara e linear que pode se tornar mais
complexa conforme a dificuldade do argumento um conteuacutedo ldquoexternordquo e
correspondente agrave simplicidade ou complexidade do enunciado um conteuacutedo
absolutamente ldquointernordquo e oculto que natildeo possui uma possibilidade expressiva ou
leacutexica adequada reenviando a um saber recebido em revelaccedilatildeo539 Esse uacuteltimo
aspecto relaciona-se ao caraacuteter miacutestico que contempla uma regeneraccedilatildeo do ser No
Tratado XVI do Corpus Hermeticum Ascleacutepio relata ao Rei Amon
ldquoHermes meu mestre dialogando frequentemente comigo seja
em particular que na presenccedila de Tat costuma dizer-me que
aqueles que leratildeo os meus livros encontraratildeo uma composiccedilatildeo
muito simples e clara enquanto ao contraacuterio essa eacute obscura e
esconde o sentido das palavras Ademais tornar-se-aacute
totalmente obscura quando sucessivamente os Gregos tentaratildeo
traduzir nossa liacutenguardquo540
Um segundo exemplo de natildeo-divulgaccedilatildeo de ensinamentos sagrados eacute
detectaacutevel em alguns registros da miacutestica cristatilde oficial541 embora o ensinamento
secreto natildeo tenha sido utilizado nesse caso como instrumento para propagar uma
tradiccedilatildeo como ocorreu no Judaiacutesmo542 Clemente de Alexandria pode ser tomado
como modelo de transmissatildeo esoteacuterica dentro da tradiccedilatildeo cristatilde tendo absorvido
ecos provenientes dos gregos perceptiacuteveis no uso que fez de termos como gnosis e
mysteria em suas discussotildees acerca dos sentidos literal e natildeo-literal da Biacuteblia543
539 Valeria SCHIAVONE trad e notas ao Corpus Hermeticum ed BUR-Rizzoli 2018 npp262-263 A
comentadora infere que a clareza da forma externa nos textos hermeacuteticos representa um sinal da luz da verdade profunda que vela mesmo que o conteuacutedo tenda a afastar o leitor do entendimento real da experiecircncia miacutestica que esconde Natildeo haacute como deixar de estabelecer uma analogia com os niacuteveis de leitura miacutestica hebraica explicados sob a conceituaccedilatildeo do chamado Pardes como verificado no Capiacutetulo V
540 CORPUS HERMETICUM Tratado XVI 1 ed Nock-Festugiegravere Bompiani 2005 p 429 Traduccedilatildeo do grego por Andregrave-Jean Festugiegravere traduccedilatildeo para o portuguecircs de nossa responsabilidade ldquoΕρμής μεν γάρ ό διδάσκαλός μου πολλάκις μοι διαλεγόμενος καί ιδία καί τού Τάτ ένίοτε παρόντος έλεγεν ότι δόξει τοΐς έντυγχάνουσί μου τοΐς βιβλίοις άπλουστάτη είναι ή σύνταξις καί σαφής έκ δέ των έναντίων άσαφής ούσα καί κεκρυμμένον τόν νοΰν των λόγων έχουσα καί έτι άσαφεστάτη των Ελλήνων ύστερον βουληθέντων τήν ήμετέραν διάλεκτον εις τήν ιδίαν μεθερμηνεύσαι οπερ έσται των γεγραμμένων μεγίστη διαστροφή τε καί άσάφειαrdquo A obra hermeacutetica eacute bastante ampla e abrangente em termos de conteuacutedo Uma visatildeo geral de seu teor foi apresentada no primeiro capiacutetulo embora apenas em sua parte estrutural e ldquoexteriorrdquo Um maior aprofundamento do conteuacutedo hermeacutetico fugiria ao escopo aqui traccedilado Para uma anaacutelise bastante aprofundada do tema leia-se CORPUS HERMETICUM (Nock-Festugiegravere opcit) e HERMETICA (Scott-Ferguson Clarendon Press Oxford 1924-36) duas das mais abrangentes obras sobre o tema
541 A miacutestica cristatilde natildeo-oficial abarca o inteiro movimento gnoacutestico Sua tradiccedilatildeo se perpetuou atraveacutes de maior ou menor grau de sigilo conforme a eacutepoca e a especiacutefica subdivisatildeo
542 SCHOLEM opcit pp64-65 543 Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo de termos gregos como gnosis e mysteria Jean PEacutePIN argumenta que nesse
sentido percebe-se ldquouma inconsciente comunhatildeo de culturas mais do que marcas deliberadasrdquo (Mythe et alleacutegorie les origines grecques et les contestations judeacuteo-chreacutetiennes Paris Eacutetudes Augustiniennes 1976 p 251 apud Crofton BLACK 2006 p 103) Antes de Clemente Fiacutelon de Alexandria (De vita contemplativa) escrevera sobre o tema a ideia de que um grupo intelectualmente superior de crentes poderia extrair um niacutevel mais alto de
161
Como antecipado no Capiacutetulo II a postura hermenecircutica desenvolvida por Pico em
algumas obras tem certa afinidade com os primeiros inteacuterpretes cristatildeos gregos e
muito provavelmente alguns dos elementos esoteacutericos que utilizou receberam o
influxo da obra Stromata544 ndash na qual Clemente distingue duas classes de puacuteblico
um digno de receber ensinamentos secretos e outro natildeo
Stromateis englobaraacute a verdade misturada com opiniotildees sobre
Filosofia embora velada e oculta exatamente como a parte
comestiacutevel da noz na casca desta forma eacute mais aceitaacutevel eu
creio que as sementes da verdade sejam mantidas apenas para
os cultivadores da crenccedila545
Clemente reuacutene uma lista de exemplos histoacutericos para comprovar que escolas
filosoacuteficas diferentes estavam unidas em ocultar a verdade dos ldquoindignosrdquo546
utilizando-se de um quadro geral de referecircncias muito similar ao que seria utilizado
por Pico seacuteculos mais tarde (como a carta de Liacutesis para Hiparco e a Segunda Carta de
Platatildeo)547 Menciona entre aquelas os epicuristas os estoicos os aristoteacutelicos e os
ldquofundadores dos misteacuteriosrdquo Afastando-se dos pagatildeos volta-se para Cristo e alguns de
seus disciacutepulos como Paulo destacando o uso feito por alguns apoacutestolos de palavras
como μυστήριoν e σoφία548 O destaque a tais termos faz parte de sua sustentaccedilatildeo da
transmissatildeo natildeo-escrita aplicada essencialmente para a interpretaccedilatildeo das
Escrituras acerca da qual Clemente distingue duas formas de entendimento a
ldquocrenccedilardquo (πίστις) e o ldquoconhecimentordquo (γνωσις)549 Haacute pois uma dicotomia entre
ldquoaqueles que apenas apreciam as Escrituras os lsquocrentesrsquo (πιστοί) e aqueles que
foram aleacutem tornando-se examinadores precisos da verdade e portadores portanto
da gnose (γνωστιχοί)550 O termo ldquognoserdquo eacute definido em Stromata I na discussatildeo do
sentido de sigilo pedido por Cristo A gnose segundo Clemente ldquosabedoriardquo eacute o
ldquoconhecimento e compreensatildeo das coisas que satildeo que seratildeo e que foramrdquo
conhecimento das Escrituras jaacute estava presente em seu trabalho exegeacutetico Tambeacutem Oriacutegenes de Alexandria depois de Clemente distinguiu nitidamente os sentidos literal e natildeo-literal argumentando que a confianccedila no primeiro causaria erro teoloacutegico (vejam-se referecircncias e discussatildeo em BLACK np105 pp108-110)
544 Natildeo se tem certeza se Pico teve acesso direto agrave principal obra de Clemente Stromata na qual eacute elaborada uma linha argumentativa com recursos loacutegicos que se fundamentam tanto nas Escrituras quanto na Filosofia ndash um caminho traccedilado no Heptaplus piquiano Haacute uma sua citaccedilatildeo especiacutefica de Stromata nas Disputationes (44) e a referecircncia a um manuscrito denominado stromata graeca no elenco do inventaacuterio de sua biblioteca entretanto natildeo eacute certo se tal manuscrito se refere ao trabalho de Clemente Um uacutenico exemplar sobrevivente daquela obra foi encontrado na biblioteca de Lorenzo dersquo Medici podendo ter sido utilizado pelo Conde
545 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromata IndashVI 708a-b (Les Stromates ed Le Boulluec 1981) Stromata ou Stromateis significa ldquoMiscelacircneasrdquo ldquoπεριέξουσι δέ οί Στρωματείς άναμεμιγμένην την αλήθειαν τοΐς φιλοσοφίας δόγμασι μάλλον δέ εγκεκαλυμμένην καί επικεκρυμμένην καθάπερ τω λεπύρω το εδώδιμον του καρύουmiddot αρμόζει γάρ οίμαι τής αληθείας τά σπέρματα μόνοις φυλάσσεσθαι τοΐς τής πίστεως γεωργοΐςrdquo
546 Cf CLEMENTE Stromata V 88b-101a 547 Ibid V 100a-b As referecircncias e conteuacutedos da carta de Liacutesis e da Segunda Carta de Platatildeo encontram-se
respectivamente em notas de rodapeacute dos Capiacutetulos IV e VI 548 Mysteacuterion e Sophia correspondem respectivamente a ldquoMisteacuteriordquo e ldquoSabedoriardquo Para a discussatildeo do tema
veja-se Salvatore LILLA Clement of Alexandria A Study in Christian Platonism and Gnosticism Oxford 1971 pp146-148
549 A distinccedilatildeo entre piacutestis e gnosis tem algumas ramificaccedilotildees Clemente usa piacutestis em diferentes sentidos dois dos quais concernentes agraves demonstraccedilotildees loacutegica e cientiacutefica e um dos quais referente agrave leitura das Escrituras Em geral ele usa os dois primeiros significados em suas polecircmicas contra os filoacutesofos e o uacuteltimo em suas polecircmicas contra os gnoacutesticos A ideia em cada caso eacute demonstrar que o Cristianismo natildeo eacute inferior nem agrave Filosofia nem ao Gnosticismo O tema eacute discutido por LILLA opcit pp 118-226
550 Cf CLEMENTE opcit VII 533a
162
apresentando-se sob veacuteus Dessa forma se ldquoa contemplaccedilatildeo eacute o objetivo do saacutebiordquo
entatildeo ldquoa contemplaccedilatildeo daqueles que ainda satildeo filoacutesofos [e natildeo ainda saacutebios]
procura com certeza a sabedoria divinardquo que poderaacute ser alcanccedilada por meio de um
aprendizado que permita a recepccedilatildeo da voz profeacutetica que se lhe revela atraveacutes da
qual ldquose compreende o que eacute seraacute e foirdquo Prosseguindo na mesma passagem o teoacutelogo
define que
ldquoa gnose em si eacute o que desceu por transmissatildeo a poucos
transmitida pelos apoacutestolos sem registro escritordquo551
O tipo de linguagem utilizado por Clemente caracteriza uma esfera que se
tornou reconhecida como esoteacuterica embora o uso de termos como Sophia Piacutestis e
Gnosis seja um convite para se adentrar em territoacuterio gnoacutestico Pico natildeo se utilizou
desse tipo de registro em seus procedimentos hermenecircuticos pelo menos natildeo de
forma direta552 De outras fontes fato certo colheu suas referecircncias pois que a
dicotomia iniciadonatildeo-iniciado se manteve preservada em outros ciacuterculos da
Antiguidade posterior a Clemente e no Medievo sobretudo nas tradiccedilotildees
neoplatocircnica e cabaliacutestica Em ambiente neoplatocircnico destacaram-se dois autores
em particular Macroacutebio e Pseudo-Dioniacutesio ambos presentes na biblioteca piquiana
O Commentarii in Somnium Scipionis de Macroacutebio e sobretudo o De Coelesti
Hierarchia de Dioniacutesio foram textos que ajudaram amplamente a disseminar a
postura esoteacuterica dos primeiros cristatildeos durante a Idade Meacutedia latina apoacutes alguns
escritos originais se terem tornado inacessiacuteveis553 Embora Dioniacutesio seja um bom
modelo de emprego do paradigma esoteacuterico em ambiente neoplatocircnico554 sua forma
de linguagem apesar de natildeo restrita agrave leitura das Escrituras apresenta semelhanccedilas
551 CLEMENTE Stromata VI 281c-284a Oriacutegenes (o Cristatildeo) tambeacutem se utilizou do termo ldquognoserdquo para
designar o entendimento do sentido natildeo-literal talvez porque tenha sido ensinado pelo proacuteprio Clemente (segundo Euseacutebio de Cesareia) Porfiacuterio por sua vez diz que Oriacutegenes foi ensinado por Amocircnio tendo sido seu pupilo ao mesmo tempo que Plotino (cf BLACK opcit p 110)
552 Um paralelismo foi tecido na obra de Jacques Matter Histoire critique du gnosticisme et de son influence publicada em 1828 entre o esoterismo e o gnosticismo do seacuteculo II ao efetuar consideraccedilotildees que partem de um sincretismo entre os ensinamentos de Cristo por um lado e as tradiccedilotildees religiosas orientais judaicas e gregas filosoacuteficas por outro Algumas das primeiras polecircmicas cristatildes contra os gnoacutesticos colocaram-se contra sua crenccedila de terem atingido uma esfera independente e mais alta de conhecimento ou revelaccedilatildeo inacessiacutevel ldquoa outrosrdquo (como os cristatildeos) A obra de Irineu de Lyon do seacuteculo II Contra as Heresias (I162) identifica e transcreve diversas escolas do gnosticismo efetuando uma exposiccedilatildeo em que contrasta suas crenccedilas com as que ele chama do cristianismo ortodoxo [ie o cristianismo ldquonatildeo hereacuteticordquo] assim refutando os ensinamentos de vaacuterios grupos gnoacutesticos (Adversus Haereses W FOERSTER Gnosis A Selection of Gnostic Texts Oxford Clarendon Press 1972 vol I pp138-139)
553 Em seu Comentaacuterio sobre o sonho de Cipiatildeo Macroacutebio postula que desde que a natureza se esconde do olhar da multidatildeo a discussatildeo de seus segredos deve ser velada da visatildeo comum (Commentarii in Somnium Scipionis I 24-18 Padova ed L Scarpa 1981 pp 76-80) Pico possuiacutea uma ediccedilatildeo impressa de tal obra (KIBRE The Library of Pico della Mirandola 1936 p 244) Uma exposiccedilatildeo de cunho esoteacuterico pode ser encontrada ainda em Simpliacutecio Euseacutebio Dioacutegenes Laeacutercio Plutarco Porfiacuterio e Jacircmblico Plotino tratara sobre a proibiccedilatildeo de tornar puacuteblico o conteuacutedo dos Misteacuterios (Eneacuteadas VI 9 11) mas suas referecircncias nesse sentido satildeo de menor expressatildeo
554 O corpus pseudo-dionisiacuteaco um grupo de obras de teor teoloacutegico escritas em grego por um autor desconhecido do final do quinto ou iniacutecio do seacuteculo VI de claro vieacutes neoplatocircnico foi atribuiacutedo (em sua primeira apariccedilatildeo registrada em 532) a outro autor Dioniacutesio o Areopagita Pico o considerava um convertido de Paulo vivido no seacuteculo I dC (ldquoDiscipulus Pauli Dionysius Areopagitardquo como mencionado em Heptaplus p176) A admiraccedilatildeo de Pico pelo Areopagita estaacute evidente no Commento onde o chama ldquopriacutencipe dos teoacutelogos cristatildeosrdquo (p462) e no qual muito provavelmente foram utilizadas as traduccedilotildees de parte do corpus dionisiacuteaco realizadas por Marsilio Ficino (cf BLACK opcit p 123) A recepccedilatildeo do corpus pseudo-dionisiacuteaco durante toda a Idade Meacutedia e Renascenccedila foi extremamente ampla pelo menos seis traduccedilotildees latinas diferentes do corpus (ou partes dele) foram feitas entre os seacuteculos IX e XV
163
com as colocaccedilotildees de Clemente555 Por essa razatildeo tomaremos como terceiro exemplo
outra tradiccedilatildeo a do misticismo hebraico
Os Capiacutetulos VI e VII apresentaram suficientes indicaccedilotildees da utilizaccedilatildeo do
esoterismo hebraico como forma de transmissatildeo de conhecimento entretanto a
forma de linguagem adotada por Yohanan Alemanno e Elia del Medigo para se referir
a um campo de conhecimento sigiloso ndash dimensatildeo que ambos defendiam ndash se
diferencia das abordagens hebraicas anteriores por expor um modelo que utiliza
paracircmetros retirados da linguagem filosoacutefica Diferentes em estilos e doutrinas os
dois mestres de Pico colocaram tal motivo em posiccedilatildeo de destaque nas introduccedilotildees de
suas principais obras Alemanno em seu Hay ha-olamim distingue trecircs tipos de
pessoas ldquoas que derivam seu conhecimento da demonstraccedilatildeo as que o apreendem
atraveacutes da dialeacutetica e as que ouvem a retoacutericardquo556 A mesma ideia eacute encontrada na
introduccedilatildeo do Behinat ha-dat de Elia del Medigo em que o escritor informa que haacute
ldquoprinciacutepios fundamentais que podem ser aceitos retoacuterica e dialeticamente ambos os
meacutetodos de estudo satildeo requeridos jaacute que o terceiro meacutetodo o demonstrativo eacute
impossiacutevel para as massas mas possiacutevel para os poucosrdquo Elia complementa que o
emprego do meacutetodo demonstrativo eacute beneacutefico para a comprovaccedilatildeo de alguns
princiacutepios fundamentais jaacute que leva ao conhecimento das coisas causadas e a partir
do conhecimento dessas ao conhecimento do Criador Em clara distinccedilatildeo entre um
padratildeo exoteacuterico e outro esoteacuterico conclui ser ldquoevidente que o meacutetodo demonstrativo
eacute obrigatoacuterio para o homem saacutebio mas natildeo para o judeu comumrdquo557
Nas especulaccedilotildees aacuterabe-judaicas medievais a retoacuterica era considerada com
base nos comentadores gregos tardios parte integrante das artes loacutegicas no entanto
sua aplicaccedilatildeo praacutetica na instruccedilatildeo de homens ldquolimitados intelectualmenterdquo diminuiacutea
o interesse dos filoacutesofos por essa disciplina558 A dialeacutetica por sua vez pode ser
entendida no caso dos exemplos acima citados como o procedimento racional
empregado em discussotildees com perguntas e respostas atraveacutes das quais se obteacutem
uma regra com a qual se julga o que eacute falso e verdadeiro O uacuteltimo tipo de
conhecimento derivado da demonstraccedilatildeo ldquoutiliza coisas compreensiacuteveis para
explicar as menos compreensiacuteveisrdquo559 Atraveacutes dela eacute possiacutevel demonstrar a essecircncia
das coisas por meio do conhecimento das suas causas remetendo como objetivo
555 Ao mencionar os Misteacuterios Pseudo-Dioniacutesio adverte que ldquonatildeo eacute correto interpretar por escrito as invocaccedilotildees
que pertencem aos misteacuterios nem trazer do sigilo para o conhecimento puacuteblico seu significado misteriosordquo (De ecclesiastica Hierarquia 565c) Ainda ldquoeacute necessaacuterio que as coisas sagradas natildeo sejam ditas comumente nem divulgadas aos natildeo-iniciadosrdquo (De divinis nominibus 597 c) e que ldquosejam envolvidas [as coisas sagradas] na parte mais secreta da mente protegendo-as como uma unidade da multidatildeo profanardquo (De caelesti hierarchia 145 c) Veja-se tambeacutem De ecclesiastica Hierarquia 372a onde trata da preservaccedilatildeo do Santo dos Santos mais tarde retomada por Pico (aqui abordado nos capiacutetulos IV e VI)
556 Hay ha-olamim ed Lelli p94 Fabrizio LELLI editor da obra para o italiano daacute-lhe o tiacutetulo ldquoLrsquoImmortalerdquo (Firenze Leo Olschki) O Hay ha-olamim compreende uma narrativa enciclopeacutedica de ascensatildeo individual atraveacutes das vaacuterias ciecircncias ateacute alcanccedilar o mais alto niacutevel atingiacutevel de perfeiccedilatildeo humana (IDEL The Study Program of R Jochanan Alemanno Tarbiz 48 (1979-1980) pp 303-331)
557 Sefer Behinat ha-Dat of Elijah Del-Medigo (Livro do Exame da Religiatildeo) Jacob Ross (org) Chaim Rosenberg School of Jewish Studies 1984
558 Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p64
559 A definiccedilatildeo encontra-se em Dioacutegenes Laeacutercio VII 1 45 bem como a anterior referente ao meacutetodo dialeacutetico ndash uma definiccedilatildeo bastante difundida na Idade Meacutedia que DL refere em seus estudos acerca das doutrinas estoacuteicas
164
final ao conhecimento das Causas Primeiras Os termos das discussotildees de Alemanno
e Del Medigo provecircm possivelmente da mesma fonte o Kitab fasl al-maqal (Livro
do Discurso Decisivo) em que Averroacuteis distingue os trecircs tipos de inteacuterpretes
apontados pelos mestres hebreus Para o aristoteacutelico a aquisiccedilatildeo do conhecimento
dos entes soacute poderia ser feita pela intervenccedilatildeo do silogismo racional ou seja atraveacutes
de um percurso demonstrativo560 O uso dessas formas nos modelos hebraicos
mencionados tem por propoacutesito distinguir campos de atuaccedilatildeo secretos de outros natildeo
secretos
Poderia se prosseguir com outros exemplos dada sua profusatildeo mas os trecircs
modelos apresentados satildeo suficientes para que se chegue logo adiante a algumas
conclusotildees Resta esclarecer que o substantivo ldquoesoterismordquo natildeo foi originalmente
uma autodenominaccedilatildeo atraveacutes da qual determinados autores ou ciacuterculos definiram
suas perspectivas O primeiro emprego do termo no sentido de um gecircnero de
procedimento vinculado a uma escolha de comportamento foi feito a posteriori em
1828 no trabalho de Jacques Matter sob contexto do Cristianismo inicial561
Contudo somente em 1990 por meio de Antoine Faivre o Esoterismo eacute introduzido
em acircmbito acadecircmico como ldquoforma de pensamentordquo sendo ampliada sua aceitaccedilatildeo
como um campo de estudos Em sua obra Accegraves de leacutesoteacuterisme occidental o autor
defende um paradigma que pode ser reconhecido pela presenccedila de quatro
caracteriacutesticas intriacutensecas agrave proacutepria definiccedilatildeo de esoterismo agraves quais duas natildeo
intriacutensecas podem ser eventualmente acrescentadas As caracteriacutesticas intriacutensecas
propostas por Faivre tomadas aqui em empreacutestimo pela pertinecircncia agrave temaacutetica
traccedilada satildeo (a) a crenccedila em ldquocorrespondecircnciasrdquo invisiacuteveis e natildeo causais entre todas
as dimensotildees visiacuteveis e invisiacuteveis do cosmo (b) a percepccedilatildeo da natureza como
permeada e animada por uma presenccedila divina ou forccedila vital (c) a concentraccedilatildeo na
imaginaccedilatildeo religiosa como um poder que daacute acesso a niacuteveis de realidades
intermediaacuterios entre o mundo material e Deus e (d) a crenccedila em um processo de
transmutaccedilatildeo espiritual atraveacutes do qual o homem interior eacute regenerado e reconectado
com o divino As duas caracteriacutesticas natildeo intriacutensecas ndash frequentemente mas nem
sempre presentes ndash satildeo (e) a crenccedila em uma concordacircncia fundamental entre vaacuterias
ou todas as tradiccedilotildees espirituais e (f) a ideia de uma transmissatildeo mais ou menos
secreta do conhecimento espiritual562
Conforme sugerido por alguns o paradigma de Faivre melhor se adequa agrave
filosofia hermeacutetica da Renascenccedila e ao contexto romacircntico-iluminista do final do
seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX563 De fato no que concerne ao ambiente renascentista a
560 AVERROacuteIS Discurso Decisivo IV No Artigo XVI Averroacuteis introduz os trecircs meacutetodos esclarecendo que cada
um eacute apropriado para determinada categoria da humanidade sendo o meacutetodo demonstrativo aplicado a um nuacutemero reduzido de pessoas (Artigo LII)
561 Jacques MATTER Histoire critique du gnosticisme et de son influence 1828 Menos de trecircs deacutecadas apoacutes ter sido empregado de forma ldquooficialrdquo na obra de Matter o substantivo ldquoesoterismordquo eacute reconhecido como uma nova palavra com direito a pertencer a um dicionaacuterio em 1852 atraveacutes do Novo Dicionaacuterio Universal de Maurice Lachacirctre onde eacute definido como ldquoa totalidade dos princiacutepios de uma doutrina secretardquo
562 Antoine FAIVRE Access to Western Esotericism 1994 pp10-15 Como aponta Hanegraaff (opcit p340) o valor heuriacutestico da definiccedilatildeo de Faivre eacute inegaacutevel e tem sido adotado por muitos estudiosos como ldquoo paradigma de Faivrerdquo
563 HANEGRAAFF opcit p 340
165
definiccedilatildeo acima condiz precisamente com a forma-pensamento de Pico della
Mirandola de acordo com os pontos destacados no decorrer desta tese Vejamos O
ponto lsquoarsquo referente agraves correspondecircncias invisiacuteveis entre as dimensotildees do cosmo
perpassa as vaacuterias obras de Pico encontrando-se seus sinais sobretudo no Heptaplus
no qual faz corresponder os vaacuterios reinos (ldquotudo que estaacute no mundo inferior estaacute nos
superiores de forma mais elevadardquo)564 A mesma profusatildeo de menccedilotildees se aplica ao
ponto lsquobrsquo sobre a percepccedilatildeo de uma natureza permeada pela presenccedila divina (ldquoo
mundo eacute uno na totalidade das suas partes por ser uno com o seu Autorrdquo)565 O ponto
lsquocrsquo que indica a utilizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeo religiosa para o acesso agraves realidades
intermediaacuterias eacute verificaacutevel nos exemplos de praacuteticas teuacutergicas oacuterficas e cabaliacutesticas
postuladas ndash sobretudo mas natildeo exclusivamente ndash nas Conclusiones O ponto lsquodrsquo
referente a um processo de transmutaccedilatildeo espiritual que reconecta o homem ao
divino eacute o tema fundamental da De Hominis Dignitate Quanto aos dois pontos natildeo
intriacutensecos tem-se no ponto lsquoersquo concernente agrave concordacircncia entre as tradiccedilotildees
espirituais a descriccedilatildeo do projeto de concoacuterdia que justamente se consagrou como o
principal interesse da vida de Pico por fim o ponto lsquofrsquo acerca da transmissatildeo secreta
do conhecimento espiritual eacute o tema desenvolvido neste trabalho Assim se
devecircssemos classificar a obra de Pico de acordo com os paracircmetros de Faivre os seis
itens acima a fariam constar perfeitamente entre os conteuacutedos esoteacutericos
Natildeo se encontra indicado no paradigma de Faivre contudo nem tampouco em
definiccedilotildees usuais acerca do esoterismo quais conteuacutedos devem ser preservados O
tipo de linguagem que demarca o motivo da transmissatildeo secreta apesar das
diferenccedilas de eacutepoca e estilo apresenta claras similaridades em seus usos muitas
vezes repetitivas conforme as palavras de Ascleacutepio ldquoaqueles que leratildeo meus livros
encontraratildeo uma composiccedilatildeo muito simples e clara enquanto ao contraacuterio essa eacute
obscura e esconde o sentido das palavrasrdquo em Clemente ldquoa verdade velada e oculta
estaraacute misturada com opiniotildees sobre Filosofiardquo em Del Medigo ldquoo meacutetodo
demonstrativo eacute impossiacutevel para as massasrdquo Pico absorvendo tais conteuacutedos os
utiliza de forma ampliada na Oratio tratando de Paulo escreve que o apoacutestolo
mantinha [tudo aquilo] ldquooculto do vulgordquo ldquoDioniacutesio Areopagita disse que os
misteacuterios mais secretos foram transmitidos de mente a mente sem escritosrdquo ldquoOrfeu
revestiu os misteacuterios dos seus dogmas com a veste das faacutebulasrdquo566 E acerca das
proacuteprias informaccedilotildees que iria transmitir o Mirandolano advertia que se fosse liacutecito
trazer a puacuteblico alguma coisa dos secretos misteacuterios o faria ldquosob o veacuteu do enigmardquo567
Observa-se que natildeo haacute menccedilatildeo aos conteuacutedos Em alguns casos esses nunca satildeo
revelados em outros apenas sugeridos Haacute no entanto alguns indiacutecios que apontam
para trecircs possiacuteveis conteuacutedos temaacuteticos a serem verificados a seguir
564 PICO Heptaplus p189 565 Ibid p383 566 As passagens da Oratio encontram-se respectivamente nas pgs 157 157 163 567 PICO Oratio p129
166
2 A Concordacircncia teleoloacutegica
Haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o Esoterismo e as tradiccedilotildees agraves quais Pico atribui
pontos de convergecircncia Colocado de outra forma os pontos de confluecircncia relativos
agraves tradiccedilotildees mencionadas na obra piquiana gravitam em torno a especiacuteficos nuacutecleos
de teor esoteacuterico Essa eacute a revitalizada intuiccedilatildeo do Autor que precede seu projeto de
Concoacuterdia Antes dele segundo sua proacutepria confirmaccedilatildeo outros jaacute haviam ingressado
em tal caminho Numecircnio tentara acordar bracircmanes magos egiacutepcios e hebreus
Moiseacutes Pitaacutegoras e Platatildeo Proclo apoacutes tentar a comunhatildeo entre Platatildeo e Aristoacuteteles
abordara a filosofia hieraacutetica atraveacutes de seus comentaacuterios a Orfeu tentando
comprovar a convergecircncia entre as doutrinas caldaicas oacuterficas hermeacuteticas e
platocircnicas568 As tentativas desses autores em concordar doutrinas aparentemente
dessemelhantes seguem um criteacuterio de escolha a partir do qual as escolas ou
doutrinas eleitas participam de meacutetodos de transmissatildeo sigilosa do conhecimento
provavelmente natildeo por coincidecircncia Dentre os diversos registros verificados seja
nas referecircncias esoteacutericas empregadas por seus antecessores seja naquelas
retomadas por Pico consegue-se identificar trecircs niacuteveis ou campos temaacuteticos de
utilizaccedilatildeo do segredo na transmissatildeo (1) o primeiro niacutevel caracteriza-se pela
necessidade de se proteger poderes empregados em atos de trocas entre os reinos (2)
o segundo niacutevel trata de informaccedilotildees referentes aos mundos intermediaacuterios
distribuiacutedos entre o sublunar e a Unidade (3) o terceiro niacutevel protege conteuacutedos
relacionados aos Princiacutepios ou ao Absoluto
1 No primeiro niacutevel o segredo protege os atos que envolvem as trocas
efetuadas entre o mundo sublunar e os supralunares por intermeacutedio de accedilotildees
humanas caracteriza-se portanto como um niacutevel ldquopraacuteticordquo Eacute o caso dos usos de
magia ou teurgia que envolvem ritos para atrair o descenso de forccedilas pertencentes a
esferas superiores dos sons utilizados nos Hinos oacuterficos para certas funccedilotildees dos usos
da Cabala Praacutetica da teurgia de Jacircmblico e Proclo dos rituais realizados nos
Misteacuterios menores para uma regeneraccedilatildeo psiacutequica transitoacuteria todos temas
abordados nos capiacutetulos anteriores Em ambiente hermeacutetico o Asclepius traz
referecircncias claras de praacuteticas para o descenso das forccedilas ndash como o apelo agraves almas dos
daimons e dos anjos para fazecirc-las morar em imagens sagradas de forma que tais
imagens pudessem ter a forccedila de fazer o bem e o mal569 ndash embora os meacutetodos em si
568 Pico teria lido sobre Numecircnio de Apameia em Euseacutebio (Prep Ev IX 7 XI 10 XII 5) conforme indicaccedilatildeo
do proacuteprio em seu prefaacutecio ao Heptaplus (a identificaccedilatildeo da obra de Euseacutebio encontra-se em GARIN 2001 n p 75 que a extraiu de ZELLER a Filosofia dos Gregos (1881) e de MATTER Histoire de lrsquoEacutecole drsquoAlexandrie (Paris 1848 vol III pp234-37) Acerca de Proclo suas reflexotildees encontram-se em Elementos de Teologia conforme Albano BIONDI Conclusiones Nongentae-Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pXXV
569 CORPUS HERMETICUM VIII 24 ed Nock-Festugiegravere 2005 pp557-559 ldquoNossos primeiros antepassados [] inventaram a arte de fazer deuses logo assim que os fizeram vincularam a eles uma virtude adequada inferida da natureza material misturando essa virtude com a substacircncia das estaacutetuas dado que natildeo podiam criar almas propriamente ditas e depois de invocarem as almas de daimons as introduziam em seus iacutedolos por meio de rituais santos e divinos de modo que esses iacutedolos tivessem o poder de fazer o bem e o malrdquo Ainda do ldquoLivro sagrado dedicado a Asclepiusrdquo (opcit 37 p583) ldquoTrata-se de estaacutetuas dotadas de uma alma conscientes cheias de sopro vital e que realizam um nuacutemero incalculaacutevel de prodiacutegios estaacutetuas que conhecem o futuro e o predizem atraveacutes das sortes da inspiraccedilatildeo profeacutetica dos sonhos e de muitos outros meacutetodos que enviam aos homens as enfermidades e as curam que concedem segundo nossos meacuteritos a dor ou a fortunardquo
167
sejam mantidos em segredo Plotino retomaria esse interesse como se lecirc em Eneacuteadas
IV ldquoos antigos saacutebios que quiseram os deuses presentes entre eles construindo-lhes
templos e estaacutetuas entenderam que eacute sempre faacutecil atrair a alma universal mas que eacute
particularmente trabalhoso mantecirc-la a menos que se construa algo afim e capaz de
receber-lhe a participaccedilatildeordquo pois ldquoa imagem figurada de uma coisa estaacute sempre
predisposta a sofrer a influecircncia da coisa copiada como um espelho capaz de
aprisionar a imagem que refleterdquo570 Os modelos hermeacutetico e plotiniano encontram
eco na concepccedilatildeo do bezerro de ouro da versatildeo de Alemanno vista na abordagem do
Heptaplus571
Amostras de correspondecircncias dentro desse campo de atuaccedilatildeo satildeo
apresentadas na obra piquiana na qual satildeo apontadas especiacuteficas similaridades entre
praacuteticas pertencentes a nuacutecleos distintos sobretudo nas teses que compotildeem os
uacuteltimos grupos de suas Conclusiones572 Em muitos casos as formas de magia ou
teurgia protegidas pelo segredo servem para ldquocasar o mundordquo e a partir de entatildeo
ldquoorganizar o caosrdquo como intuiu Pico em 1486573 Esse niacutevel de atuaccedilatildeo eacute via de regra
protegido por elevado grau de sigilo necessaacuterio para uma seguranccedila social ou legal
conforme a eacutepoca e a cultura ou para proteger certos tipos de conhecimento dos
perigos que podem desencadear em matildeos incautas Embora haja certas similaridades
entre algumas praacuteticas nesse niacutevel encontram-se maiores divergecircncias entre os
meacutetodos pelo fato de haver um distanciamento maior da Unidade
2 O segundo domiacutenio de registros esoteacutericos contempla o vasto campo
especulativo que trata da sistematizaccedilatildeo do mundo emanado ou da criaccedilatildeo do reino
da multiplicidade a partir da Unidade Embora distintos sistemas apresentem
diferenccedilas conceituais e lexicais verificam-se iacutentimas correspondecircncias no que
concerne aos niacuteveis de graduaccedilotildees entre os diferentes mundos que foram destacadas
e confirmadas ampla e repetidamente por Pico ndash que caracterizou esse estudo como
ldquometafiacutesica das formas inteligiacuteveis e angeacutelicasrdquo574 A obra piquiana mostra seu esforccedilo
para comprovar que concepccedilotildees teoreacuteticas distintas se conciliam em harmonia
Aquele que entre os cabalistas se chama Metatron eacute sem
duacutevida o que eacute denominado por Orfeo lsquoPallasrsquo por Zoroastro
lsquomente paternarsquo por Mercuacuterio lsquofilho de Deusrsquo por Pitaacutegoras
lsquosabedoriarsquo por Parmecircnides lsquoesfera inteligiacutevelrsquo575
570 PLOTINO Enneadi ed Giuseppe Faggin Bompiani Milano 2010 571 ALEMANNO Collectanaea Manuscrito de Oxford 2234 f 22v apud Moshe IDEL 2008b np 481 Na
concepccedilatildeo de Alemanno o preparo do bezerro de ouro por Moiseacutes eacute tido como necessaacuterio para o recebimento das emanaccedilotildees provenientes do descenso das forccedilas espirituais
572 Vejam-se algumas dessas correspondecircncias na uacuteltima parte do Capiacutetulo III 573 PICO Concl (II) IX 13 (p118) ldquoMagicam operari non est aliud quam maritare mundumrdquo 574 Cf Apologia p 29 ldquointeligibilibus angelicisque formis exactam methaphysicamrdquo 575 Concl (II) XI 10 (p128) ldquoIllud quod apud Cabalistas dicitur Hochmah illud est sine dubio quod ab
Orpheo Pallas a Zoroastre paterna mens a Mercurio dei filius a Pythagora sapientia a Parmenide sphera intelligibilis nominaturrdquo O termo Hochmah assim traduzido por Biondi e escrito no original em caracteres de provaacutevel hebraico foi traduzido por Farmer como Metraton seguindo a interpretaccedilatildeo de Wirszubski que afirma utilizar outras evidecircncias para tal conclusatildeo (cf FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses (1486) - The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 np 524) Optamos pela utilizaccedilatildeo de ldquoMetratonrdquo em nossa traduccedilatildeo ao portuguecircs em razatildeo de sua presenccedila em outras passagens de Pico Com
168
Em sua prospecccedilatildeo da metafiacutesica do Inteligiacutevel Pico identifica as Sefirot
cabaliacutesticas com os nuacutemeros pitagoacutericos e com as dez esferas da ordenaccedilatildeo hermeacutetica
ndash ldquomomentos sucessivos da expansatildeo da divindaderdquo ou ldquoatosrdquo com os quais Deus se
faz presente nas coisas576ndash concepccedilotildees que encontram sustentaccedilatildeo em sua tese
cabaliacutestica 36 ldquoDeus cobriu-se com dez vestimentas quando criou o mundordquo577 Tece
ainda paralelos entre os ldquodez vingadoresrdquo da teoria hermeacutetica e a maligna sequecircncia
denaacuteria da cabala (situada ldquodo lado esquerdordquo) sobre os quais Pico nada escreveu
ldquopor se tratar de um segredordquo578 Outra simetria eacute verificaacutevel entre certos graus
ldquofuncionaisrdquo contemplados no Hermetismo e na Cabala na teoria hermeacutetica da
ascensatildeo da alma pelas esferas a regeneraccedilatildeo da alma se daacute na oitava esfera
chamada ogdoaacutedica ndash relacionada ao nuacutemero oito ndash conforme se depreende do
Corpus Hermeticum XIII tambeacutem na Cabala existe essa concepccedilatildeo relacionada a
uma determinada Sefiraacute conforme estudo de Scholem579 Outra fonte utilizada por
Pico para compor suas correspondecircncias de estratos metafiacutesicos encontra-se nos
textos caldaicos que apresentam passagens com elaboraccedilotildees que unificam os vaacuterios
planos conforme pode ser lido na ordenaccedilatildeo dos Oraacuteculos Caldeus realizada por
Miguel Psello
Sustentam que haacute sete mundos reais um iacutegneo e primeiro trecircs
eteacutereos e trecircs materiais o uacuteltimo dos quais denominado
terrestre e inimigo da luz trata-se da regiatildeo sublunar que aleacutem
do mais encerra em si mesma a mateacuteria a que denominam
abismo [] Homenageiam certo Abismo paterno composto
pela triacuteade Pai Potecircncia e Intelecto Segue-se a Iynga inteligiacutevel
depois os Conectores (compostos de elementos iacutegneos eteacutereos e
materiais) depois os Teletarcas Em seguida os Pais Fontes
referecircncia agrave passagem em questatildeo observa-se que embora com nomenclaturas diferenciadas e pertinentes a cada respectiva tradiccedilatildeo Pico as faz corresponder em termos de posiccedilatildeo ou graduaccedilatildeo dentro do plano do Inteligiacutevel Sobre o mesmo tema Pico escrevera no Commento descrevendo como a mente criada procede do bem primeiro ldquoEssa primeira criatura eacute chamada seja pelos platocircnicos que pelos antigos filoacutesofos Mercuacuterio Trismegisto e Zoroastro ora filho de Deus ora sabedoria mente ou razatildeo divina o qual alguns interpretaram inclusive como Verbordquo (Commento sopra una canzona drsquoamore I 5 1942 p 466) Pico se preocupa em diferenciar a emanaccedilatildeo do primeiro princiacutepio com ldquoaquele que foi chamado por nossos teoacutelogos como lsquofilho de Deusrsquordquo ldquoEd abbi ciascuno diligente avvertenzia di non intendere che questo sia quello che darsquo nostri Teologi egrave detto figliuolo di Dio perchegrave noi intendiamo per il figliuolo una medesima essenzia col padre a lui in ogni cosa equale creatore finalmente e non creatura ma debbesi comparare quello che ersquo Platonici chiamano figliuolo di Dio al primo e piugrave nobile angelo da Dio creatordquo (idem)
576 Cf Cesare VASOLI in ldquoIntroduzionerdquo a Giovanni Pico della Mirandola (Garin 2011) Pico estabelece niacuteveis de correspondecircncias outrossim entre determinados niacuteveis angeacutelicos e certas potecircncias integrantes do Orfismo como pode ser verificado em anaacutelise de Paolo FORNACIARI (2001) ldquoSatildeo inteligecircncias angeacutelicas e divindades homoacutelogas em funccedilatildeo e poder pois entre outras coisas as Potestades satildeo uma lsquodisposiccedilatildeo angeacutelica de tipo intermediaacuterio que eacute purificada iluminada e aperfeiccediloada pelos esplendores da divindadersquo bem como os lsquoCuretirsquo indicados nos Hinos oacuterficos 31 e 38 Em ambos os casos satildeo entidades mediadoras entre o uno e o mundo sensiacutevel geralmente benignos embora com enorme poder sobre o qual o homem deve manter-se consciente e com temor reverencialrdquo
577 PICO Concl (II) XI 36 (p135) ldquo[] cur dicatur apud Cabalistas quod Deus induit se decem vestimentis quando creauit saeculumrdquo
578 PICO Concl (I) VIII 10 (p55) ldquo[] de quibus ego in cabalisticis conclusionibus nichil possui quia est secretumrdquo Na deacutecima tese hermeacutetica Pico denomina os dez vingadores de lsquomala coordinatiorsquo verdadeiras e proacuteprias entidades negativas que se apresentam como o espelho perverso das Sefirot como deduz FORNACIARI (2001)
579 Gershom SCHOLEM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition 1960
169
tambeacutem chamados de lsquoGuias do Mundorsquo sendo o primeiro deles
aquele que se costuma dizer lsquounitariamente mais distantersquo
Finalmente vecircm os trecircs Implacaacuteveis e por uacuteltimo lsquoaquele que
estaacute cercado por baixorsquo580
Embora possa ser tentador investigar os significados das concepccedilotildees
mencionadas buscando seu aprofundamento esse se mostraria um caminho longo e
desnecessaacuterio para o tema tratado O que se pretende relevar ndash aleacutem de expor alguns
exemplos que ilustram o domiacutenio tratado ndash eacute que muitos dos conteuacutedos pertinentes
agraves estratificaccedilotildees dos planos metafiacutesicos ndash niacutevel onde Pico encontra elaboraccedilotildees
espaciais em elevada conformidade ndash envolvem tradiccedilotildees que lidam com a
transmissatildeo esoteacuterica e que compotildeem um segundo tipo de caracterizaccedilatildeo temaacutetica
Esse gecircnero de conteuacutedo encontra mais transposiccedilotildees para a linguagem escrita do
que o modelo anterior e o seguinte apesar de suas abstraccedilotildees constituiacuterem em
muitos casos um veacuteu indecifraacutevel De fato natildeo obstante as temaacuteticas atinentes ao
movimento de criaccedilatildeo e estabelecimento dos graus do muacuteltiplo serem mais
facilmente encontradas em material escrito ndash e portanto menos protegidas pelo
segredo ndash a ocultaccedilatildeo de suas particularidades se daacute por meio do recurso a uma
linguagem miacutetica alegoacuterica ou obscura (fundada sobre semacircnticas e formas
linguiacutesticas diferenciadas conforme a tradiccedilatildeo)
3 O terceiro domiacutenio contemplado pelo Esoterismo inclui em caraacuteter
acessoacuterio as formas de proteccedilatildeo a praacuteticas iniciaacuteticas que visam suplantar estaacutegios do
mundo sensiacutevel e intelectual O tema da ascese em direccedilatildeo agrave Unidade integra as
doutrinas mencionadas na De Hominis Dignitate visitadas no Capiacutetulo IV eacute um dos
conteuacutedos principais tratados no Pimandro hermeacutetico (a ascese a partir ldquodo reino da
natureza e da morterdquo) eacute o objetivo dos atos de contemplaccedilatildeo almejados na Cabala
Extaacutetica As crenccedilas oacuterficas de retorno agrave Unidade apresentam claras analogias com a
soteriologia encontrada no Segundo Tratado hermeacutetico Trismegisto que passara
pela experiecircncia iniciaacutetica da regeneraccedilatildeo diz a seu filho Tat que o ldquohomem
renascido seraacute deusrdquo581 em evidente paralelismo com os dizeres encontrados na
lacircmina oacuterfica de Turi do seacuteculo IV aC ldquoAlegra-te por teres sofrido o que nunca antes
sofreste de homem nasceraacutes um deusrdquo582
Tais processos iniciaacuteticos que objetivam alcanccedilar o mais alto grau da divindade
devem ser vistos como caracteriacutesticas secundaacuterias ou acessoacuterias como acima
disposto A caracteriacutestica efetivamente preciacutepua do terceiro domiacutenio esoteacuterico
encontra-se na proteccedilatildeo ao nuacutecleo concernente agraves Causas Primeiras Em torno a essa
dimensatildeo verifica-se uma confluecircncia doutrinaacuteria observada e relatada por Pico o
580 Francisco Garcia BAZAacuteN ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus 1991 p18 Trecho extraiacutedo da Exposiccedilatildeo
Caldaica de Miguel Psello [42 (54)] que tivera contato com os Oraacuteculos atraveacutes dos textos de Proclo Psello e Plethon realizaram comentaacuterios extensos sobre os Oraacuteculos Caldeus e suas coleccedilotildees foram aumentadas por Franciscus Patricuis que em 1593 publicou em latim aquele conteuacutedo sistematizado em 324 oraacuteculos (Zoroaster et eius 320 Oracula Chaldaica) acrescentando-lhes conceitos de Proclo Heacutermias Simpliacutecio Damaacutescio entre outros Essa obra foi a base da classificaccedilatildeo feita por Thomas Taylor (The Chaldean Oracles London 1806)
581 Corpus Hermeticum XIII opcit p 379 582 Otto KERN Orphicorum Fragmenta fr32 c-f
170
uacuteltimo grau de ordenaccedilatildeo do sistema caldeu coincide com o que se verifica em textos
hermeacuteticos oacuterficos pitagoacutericos e neoplatocircnicos pode-se dizer que seus fins
convergem em direccedilatildeo agravequele nuacutecleo ndash identificado como ldquoiniacuteciordquo e ldquofimrdquo583 Assim
tambeacutem se averigua em outros nuacutecleos investigativos para a possibilidade de tal
ldquoencontrordquo se volta Clemente ao buscar sentidos natildeo literais nas Escrituras de forma
paralela em relaccedilatildeo ao mesmo material voltam-se os cabalistas em suas buscas
interpretativas e contemplativas ndash almejando alcanccedilar o estado de devekut (uniatildeo
com a Divindade)584 e em acircmbito misterioloacutegico esse eacute o propoacutesito para o qual se
dirigem as orientaccedilotildees relacionadas ao alcance da epopteia eleusina Sob registro
filosoacutefico Elia Del Medigo escrevera que o emprego do meacutetodo demonstrativo seria
capaz de comprovar princiacutepios fundamentais ndash por conduzir ao conhecimento das
coisas causadas ldquoe finalmente do Criadorrdquo585
Em torno aos Princiacutepios tem-se pois o norte de chegada das doutrinas
teoloacutegicas filosoacuteficas e algumas ritualiacutesticas partiacutecipes do projeto vislumbrado por
Pico conforme os vaacuterios exemplos apontados na Oratio Para esse fim Pico
direcionou suas principais reflexotildees de teor filosoacutefico que denominou ldquocausas das
coisasrdquo586 como verificaacutevel no De Ente et Uno no qual procurou dirimir o conflito
entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash conforme delineado na abordagem das fundamentaccedilotildees
filosoacuteficas do Autor no Capiacutetulo II Para fazer confluir as doutrinas dos dois
Filoacutesofos foi encetada uma discussatildeo em torno agravequela esfera Da mesma forma para
fazer convergir doutrinas como as caldaicas as pitagoacutericas e as neoplatocircnicas foram
observadas as relaccedilotildees das mesmas com as Causas Primeiras atraveacutes de seus
registros comprovou que os saacutebios caldeus acreditavam ldquoem um Princiacutepio uacutenico de
todas as coisasrdquo celebrando-o ldquocomo Uno e Bemrdquondash587 claro exemplo de uma
protologia natildeo desconhecida As linhas doutrinais percorridas na obra piquiana
partilham pois por vias singulares de concepccedilotildees similares em torno aos ldquofinsrdquo de
formas convergentes de comunhatildeo com a Unidade Nesse grau o sigilo estaacute sempre
presente e seus conteuacutedos quando transmitidos ocorrem apoacutes aacuterdua trajetoacuteria Ora
Pitaacutegoras quando ensinava a seus disciacutepulos natildeo lhes dava o poder de interpretar as
causas das coisas nos primeiros estaacutegios de suas especulaccedilotildees ele lhes ensinava
primeiramente a ldquociecircnciardquo somente no uacuteltimo grau de discipulado ndash o grau de
teleiotecircs correspondente ao telos ndash lhes eram reveladas as Causas os Princiacutepios588
Nesse niacutevel de especulaccedilatildeo por sua proximidade com a proacutepria Unidade muitas das
divergecircncias satildeo diluiacutedas podendo-se falar de uma concordacircncia teleoloacutegica
583 Eugenio Garin (2011 p149) amplia a rede de afinidades acrescendo aos acima mencionados elementos do
pensamento cristatildeo do gnosticismo do platonismo da miacutestica de Satildeo Joatildeo de Paulo e Nicolau de Cusa (apesar como enfatiza das iacutentimas divergecircncias entre cada uma dessas correntes)
584 Veja-se o Capiacutetulo V 585 Veja-se o Item 1 586 Cf Oratio p131 587 Francisco Garcia BAZAacuteN ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus opcit 1991 p18 Os Oraacuteculos Caldeus talvez
por terem tido entre um de seus primeiros comentadores o neopitagoacuterico Numecircnio apresentam muitos elementos pitagoacutericos como a colocaccedilatildeo de uma Mocircnada ndash ou princiacutepio de Unidade ndash no veacutertice das coisas e de uma Diacuteade como princiacutepio do muacuteltiplo
588 Veja-se nota sobre o tema no Item 3 Capiacutetulo IV Cf Jacircmblico Vita Pythagorica 71-72 Dioacutegenes Laeacutercio VIII 10
171
Qual a razatildeo para a natildeo divulgaccedilatildeo de questotildees conceituais referentes aos
uacuteltimos niacuteveis metafiacutesicos Para Oriacutegenes os misteacuterios das Escrituras estatildeo ocultos
sob um veacuteu de coisas ldquovisiacuteveisrdquo para proteger aqueles ldquoincapazes de suportaacute-losrdquo589
Segundo Abulafia ldquoa alma humana natildeo pode suportar o influxo direto da inteligecircncia
superior graccedilas a certos ldquonoacutesrdquo que a mantecircm atada agrave mateacuteriardquo Maimocircnides de
forma mais extrema dizia que a nocividade da sabedoria metafiacutesica requer sua
transmissatildeo em alegorias pois ldquoaqueles que tentam compreender seus segredos sem
a devida preparaccedilatildeo seratildeo destruiacutedosrdquo590 O que se depreende de vaacuterias passagens
desse gecircnero eacute que o movimento em direccedilatildeo agrave cognoscibilidade comporta
necessariamente a ocultaccedilatildeo de tudo aquilo que natildeo pode ser compreendido pelo
intelecto finito Em termos teoloacutegicos a divindade soacute pode ser apreendida atraveacutes de
uma paulatina revelaccedilatildeo de sua verdade Pico utiliza uma linguagem mais requintada
para referir-se agrave mesma condiccedilatildeo ldquoAs doutrinas sagradas estatildeo escondidas sob
termos populares como dentro de uma concha para que os olhos menos agudos natildeo
sejam ofuscados Trazem pois a luz para beneficiar aos satildeos mas a trazem escondida
e velada para natildeo ofender aos homens de vista fraacutegilrdquo591
O ldquoponto de chegadardquo sugerido na argumentaccedilatildeo proposta constitui uma
justificativa para a utilizaccedilatildeo de categorias esoteacutericas Tal dimensatildeo natildeo se configura
como um patamar atingiacutevel por especulaccedilotildees filosoacuteficas As aporias encontradas ao
final de um percurso dialeacutetico natildeo se resolvem por aproximaccedilotildees da razatildeo mas pela
ocupaccedilatildeo de um espaccedilo proacuteprio caracterizado por todas as tradiccedilotildees que tratam com
fenocircmenos iniciaacuteticos Vislumbra-se pois a existecircncia de um ldquoabismordquo ndash um
ldquoespaccedilordquo entre o muacuteltiplo e o Uno natildeo ultrapassaacutevel por procedimentos intelectuais
ndash sugerido ou subentendido pelas formas linguiacutesticas utilizadas nas tradiccedilotildees
esoteacutericas Pico tentara elucidar a concepccedilatildeo ldquoo abismo eacute a capacidade inteligiacutevel no
profundo pois penetrante e perscrutadora acima dessa encontra-se a escuridatildeo ateacute
que seja iluminada pelos raios das cogniccedilotildees espirituaisrdquo592 Quando o intelecto se
apaga quando a escada utilizada para elevar-se eacute abandonada a funccedilatildeo da miacutestica eacute
entatildeo exercida aquele espaccedilo eacute alcanccedilaacutevel atraveacutes das transformaccedilotildees do miacutestico
que decorrem de seu contato com a divindade ndash as denominadas proteccedilotildees
ldquoacessoacuteriasrdquo dentro dos modelos apresentados de Esoterismo A forma de alcanccedilar tal
fim havia sido ademais sinalizada na Oratio dos trecircs niacuteveis supra-humanos aos
quais o homem pode elevar-se o niacutevel celeste eacute acessiacutevel pela razatildeo o niacutevel angeacutelico
pela dialeacutetica que permite o alcance do Inteligiacutevel o uacuteltimo niacutevel de conhecimento
do Absoluto ou da ldquounidade do espiacuterito com Deusrdquo poderaacute ser alcanccedilado atraveacutes do
589 Apud BLACK op cit pp103-104 590 MAIMOcircNIDES Dux neutrorum (Guia dos Perplexos) III 54 apud Naomi GOLDFELD Elia del Medigo e
lrsquoaverroismo hebraico in BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 45 Maimocircnides nessa passagem refere-se ao relato da entrada de quatro rabinos no Pardes nem todos preparados para receber ldquoa verdaderdquo conforme sua leitura do Talmud Babilocircnico Hagigah 15a
591 PICO Heptaplus P1 p180 ldquoNos credere possumus satisfactum rudibus auditoribus si lumen scientiae quod introspicerent sapientes crassioribus verbis quasi cornea texta circumdatum obduxerit ne hebetiores inde Oculi perstringerentur Attulerit ergo lumen ut sanis oculis proforet inclusum tamen et velatum attulerit ne lippientibus officeretrdquo
592 Heptaplus III p253 ldquoAbyssus intellectualis proprietas est profunda quaeque penetrans et perscrutans Super hanc tenebrae sunt donec spiritalium notionum quibus omnia videt et intuetur radiis non illustraturrdquo
172
processo asceacutetico que reconduz ao ldquocentro da proacutepria unidaderdquo593 Haacute pois uma
dimensatildeo natildeo ultrapassaacutevel para a qual a Theoriacutea594 conduz por intermeacutedio de suas
filhas a Filosofia e a Teologia a uacutenica forma de ir aleacutem eacute atraveacutes do ecircxtase miacutestico
situaccedilatildeo extrema apontada em vaacuterias das tradiccedilotildees pelas quais Giovanni Pico
transitou e para a qual encetou sua proacutepria reflexatildeo
3 A Morte do Beijo
Um dos pontos mais elevados da reflexatildeo piquiana encontra-se no recurso de
conceituaccedilatildeo biacuteblico-cabaliacutestica referente agrave ldquomors osculirdquo ldquomorte do beijordquo uma das
possiacuteveis definiccedilotildees do ecircxtase miacutestico O tema trata de uma relaccedilatildeo extaacutetica em que
dois amantes um terreno e outro celeste alcanccedilam a comunhatildeo A concepccedilatildeo
(poeacutetica miacutestica e filosoacutefica)595 descreve a morte figurada que ocorre por ocasiatildeo da
separaccedilatildeo da alma dos acidentes do mundo sensiacutevel quando essa se vecirc colhida em
um transporte transcendente simbolizado pela troca do beijo miacutestico O tema eacute
sintetizado por Pico nas teses cabaliacutesticas 11 e 13 ldquosecundum opinionem propriamrdquo e
ampliado no Commento sopra una canzona drsquoamore composta da Girolamo
Benivieni Conforme a conclusio cabalistica 11
O modo atraveacutes do qual as almas racionais satildeo sacrificadas a
Deus por intermeacutedio do Arcanjo natildeo especificado pelos
Cabalistas somente ocorre por via da separaccedilatildeo da alma do
corpo natildeo do corpo da alma exceto por acidente como
acontece na Morte do Beijo sobre a qual estaacute escrito lsquoPreciosa
na presenccedila do Senhor a morte de seus santosrsquo596
O fenocircmeno da separaccedilatildeo da alma do corpo conforme acima mencionado eacute
melhor descrito no Commento ldquoAgraves vezes se diz que a alma estaacute separada do corpo
mas natildeo o corpo dela e isto eacute quando cada uma das forccedilas da alma exceto a que o
corpo nutre chamada vegetativa estaacute ligada mas natildeo opera em nada como se natildeo
593 PICO Oratio p107 ldquo[] in unitatis centrum suae se receperit unus cum Deo spiritus factus in solitaria
Patris caliginerdquo 594 O termo se adequa agrave concepccedilatildeo grega do vocaacutebulo θεωρία ldquoespeculaccedilatildeo ou vida contemplativardquo conforme a
tradiccedilatildeo pitagoacuterica 595 A colocaccedilatildeo eacute de Paolo Fornaciari que adiciona a qualificaccedilatildeo ldquoplatocircnicardquo ao conteuacutedo O comentador
considera a recuperaccedilatildeo dessa ldquoverdadeira hierogamiardquo um dos aportes mais originais que Pico empresta da Cabala ao Cristianismo um dos instrumentos mais eficazes de sua tatildeo almejada ascensatildeo agrave pax unificardquo (FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 pp24-25)
596 Concl II XI 11 p128 ldquoModus quo rationabiles animae per archangelum Deo sacrificantur qui a Cabalistis non exprimitur non est nisi per separationem animae a corpore non corporis ab anima nisi per accidens ut contigit in morte osculi de quo scribitur lsquopraeciosa in conspectu domini mors sanctorum eiusrsquordquo Pico extrai o uacuteltimo trecho de Salmos 116 15-16 Como ajuiacuteza Paolo FORNACIARI (ibid np41) a ldquomorte do beijordquo em latim ldquomors osculirdquo em hebraico ldquomytat benesiqahrdquo eacute um tiacutepico exemplo de cruzamento entre temas platocircnicos [que podem ser melhor depreendidos da leitura do Commento] e cabaliacutesticos A relaccedilatildeo extaacutetica eacute tambeacutem retratada no Cacircntico dos Cacircnticos entre Salomatildeo e sua amada que a leitura anagoacutegica identifica como Deus e sua relaccedilatildeo com Israel inteiramente de acordo com o tema cabaliacutestico do matrimocircnio miacutestico entre a sefiraacute Yesod (o fundamento mas tambeacutem a virilidade) e Knesset Israrsquoel (a comunidade dos fieacuteis) (ibid p24)
173
estivesse em nadardquo Tal situaccedilatildeo ocorre continua o texto quando a parte intelectual ndash
chamada por Pico ldquorainha da almardquo ndash estaacute em ato e operante natildeo sofrendo em si o
ato de qualquer outra potecircncia597 Essa condiccedilatildeo entre a alma e o corpo eacute chamada
ldquoprimeira morterdquo598
Atraveacutes da primeira morte que eacute a separaccedilatildeo apenas da alma do
corpo e natildeo o contraacuterio a amada Vecircnus celestial poderaacute
portanto ver o amante e esse estar face a face com ela
contemplando sua imagem divina e com seus olhos purificados
assim se alimentar599
O amante representa a mente600 ou a parte intelectual da alma que se une
ldquoem amorrdquo com algum niacutevel natildeo esclarecido do Inteligiacutevel Pico chama ainda a
atenccedilatildeo para o fato de o eventual ecircxtase alcanccedilado envolver o risco de uma segunda
morte a final A excessiva prolongaccedilatildeo do estado de ecircxtase marca um dos eventos
capazes de ocasionar a segunda morte ldquose muito se fortalecer e prolongar a operaccedilatildeo
intelectual eacute necessaacuterio que desta uacuteltima parte vegetativa a alma tambeacutem se separe
de forma que ela do corpo e o corpo dela sejam separadosrdquo Haacute outra forma de
deflagrar a segunda morte indicada no Commento atraveacutes de uma obscura
advertecircncia em relaccedilatildeo a outro tipo de relaccedilatildeo que o praticante possa pretender ldquoE
note-se que a uniatildeo mais perfeita e iacutentima que o amante possa ter com a amada
celestial eacute denotada pela uniatildeo do beijo porque qualquer outro congresso ou coacutepula
usado no amor corporal natildeo eacute liacutecito usar em qualquer forma de transfiguraccedilatildeo601
neste santo e sagradiacutessimo amorrdquo602 Em caso de tal pretensatildeo o Autor daacute a entender
que a segunda morte pode ser almejada
Quem ainda mais intrinsecamente quiser possuiacute-la e natildeo
contente em vecirc-la e ouvi-la quiser ser digno dos seus abraccedilos
iacutentimos e beijos anelantes deve separar-se de si mesmo
totalmente atraveacutes da segunda morte do corpo e entatildeo natildeo soacute
ver e ouvir a Vecircnus celestial mas com um noacute indissoluacutevel
abraccedilaacute-la e com beijos de um ao outro sua proacutepria alma
597 A uacutenica potecircncia que ainda pode operar na alma nesse estado acresce Pico ldquoeacute a potecircncia nutritiva cujas
operaccedilotildees por seu grande distanciamento da alma natildeo satildeo de todo anuladas por seus atos embora muito debilitadasrdquo (Commento pp557-558)
598 Como informa Giulio BUSI (Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 p66) a ldquoprimeira morterdquo do corpo no leacutexico neoplatocircnico eacute o resultado do encaminhar-se em um percurso contemplativo que leva agrave morte figurada ou filosoacutefica
599 Commento p557 O texto original natildeo foi escrito em latim mas em italiano ldquoPuograve dunque per la prima morte che egrave separazione solo dellrsquoanima dal corpo e non per lrsquoopposito vedere lo amante lrsquoamata venere celeste e a faccia a faccia con lei ragionando della divina immagine sua ersquo suoi purificati occhi felicemente pascererdquo
600 Cf nota de Eugenio Garin agrave sua traduccedilatildeo do Commento (1942 np 557) 601 No texto original a palavra utilizada eacute lsquotraslazionersquo que Garin corrige em nota agrave traduccedilatildeo como
lsquotransunzionersquo (ed Vallecchi 1942 p 558) 602 Commento pp557-558 ldquoE nota che la piugrave perfetta e intima unione che possa lrsquoamante avere della celeste
amata si denota per lrsquounione del bacio perchegrave ogni altro congresso o copula piugrave in lagrave usata nello amore corporale non egrave licito per alcuno modo per traslazione alcuna usare in questo santo e sacratissimo amorerdquo
174
transfigurar estando tatildeo perfeitamente unidas que ambas
podem ser chamadas de uma soacute alma603
Nas Conclusiones Pico retoma a questatildeo da segunda morte do corpo dessa
vez em razatildeo de algum tipo de imperiacutecia praticado durante o ldquointercursordquo O preccedilo a
pagar estaacute bem expresso na conclusio cabalistica 13
Quem operar em Cabala sem a presenccedila de algum estranho se
exporaacute agrave binsica [Morte do Beijo] caso se prolongue muito no
trabalho E se cometer erros durante o trabalho ou se
aproximar deste sem a devida purificaccedilatildeo seraacute devorado por
Azazel de acordo com suas proacuteprias regras de justiccedila604
O Commento natildeo ultrapassa essas poucas indicaccedilotildees e seu autor deixa claro
que ldquonatildeo lereis nada a mais em seus livros [dos cabalistas] a natildeo ser que binsica isto
eacute a morte do beijo ocorre quando a alma no rapto intelectual se une agraves coisas
separadas e do corpo elevada em tudo o abandonardquo605 Provavelmente Pico obteve as
referecircncias sobre a Morte do Beijo atraveacutes de suas leituras de Maimocircnides que no
final do seacuteculo XI havia retomado do Talmud o tema do beijo divino oferecendo no
Guia dos Perplexos uma profunda exegese do assunto relacionando o uacuteltimo
intercurso ao desvanecimento do corpo na velhice condiccedilatildeo necessaacuteria para que o
impulso vital se transformasse em ldquopuro pensamentordquo606 Ou pode ter lido sobre o
assunto em Menachem Recanati outra de suas fontes que acerca do binsica elaborou
uma ldquoviagem extrema e alienanterdquo607 tendo legado um passo importante por
descrever de forma bastante detalhada o percurso miacutestico que pode conduzir ao
beijo beatificante e letal
Os padres morriam de um beijo Quando os pios e os homens de
accedilatildeo se encontravam em solidatildeo e imersos nos segredos
supernos a faculdade imaginativa de seus pensamentos fazia
que as coisas se mostrassem como gravadas perante eles E
603 Commento p557 ldquoma chi piugrave intrinsicamente ancora la vuole possedere e non contento del vederla e
udirla essere degnato dersquo suoi intimi amplessi e anelanti baci bisogna che per la seconda morte dal corpo per totale separazione si separi e allora non solo vede e ode la celeste Venere ma con nodo indissolubile a lei srsquoabbraccia e con baci lrsquouno in lrsquoaltro la propia anima trasfudendo non tanto cambiano quelle quanto che sigrave perfettamente insieme si uniscono che ciascheduna di loro dua anime e ambedue una sola anima chiamare si possonordquo
604 Concl II XI 13 p128 ldquoQui operatur in Cabala sine admixtione extranei si diu erit in opera morietur ex binsica et si errabit in opere aut non purificatus accesserit deuorabitur ab Azazele per proprietatem iudiciirdquo Conforme FORNACIARI (2009 np42) para atingir o estado de ldquobinsicardquo ou a ldquomorte do beijordquo a alma racional que aspira agrave separaccedilatildeo da alma do corpo deve encontrar-se soacute Azazel na demonologia cristatilde eacute uma das sete epifanias do lado maligno Provavelmente Pico tomou o conceito de Azazel de Abulafia e de seu comentaacuterio ao Guia dos Perplexos de Maimocircnides que lhe foi traduzido por Mitridate
605 Commento p558 ldquonegrave piugrave nersquo loro libri leggerai se non che binsica cioegrave morte di bacio egrave quando lrsquoanima nel ratto intellettuale tanto alle cose separate si unisce che dal corpo elevata in tutto lrsquoabbandonardquo O Binsica que fecha o Commento eacute na opiniatildeo de BUSI (2014 p68) o mais afortunado entre os hiacutebridos piquianos retomado posteriormente por renomados como Baldassare Castiglione e Giordano Bruno Na continuidade da passagem Pico narra que os cabalistas mencionam que alguns de seus padres ldquomorreram de binsica como eacute o caso de Abraatildeo Jacoacute Moiseacutes Aaron Maria e alguns outrosrdquo Pico provavelmente extrai isso do Talmud da Babilocircnia que apresenta passos com essas menccedilotildees
606 BUSI opcit 2014 p69 607 Cf traduccedilatildeo de Giulio Busi 2014 p70
175
enquanto uniam suas almas agrave alma superior as coisas se
multiplicavam e se revelavam da fonte do pensamento como
quem abre uma cisterna drsquoaacutegua que comeccedila a fluir O
pensamento unido eacute de fato como fonte e cisterna que natildeo se
exaure [] Graccedilas agrave uniatildeo do pensamento com a emanaccedilatildeo as
palavras se multiplicam e crescem e surgem na alegria Por isso
foi ensinado que lsquoa Sekinah natildeo se manifesta na indolecircncia mas
na alegriarsquo608
As vaacuterias faces do misticismo de Giovanni Pico devem ser unificadas a partir
de evidecircncias amplamente dispersas nas Teses e confirmadas por discussotildees
retomadas em outras obras O tema da ascensatildeo miacutestica que ocorre antes da uniatildeo
extaacutetica sugerida pela imagem da Morte do Beijo eacute tambeacutem desenvolvido no
Commento Em uma interpretaccedilatildeo pessoal da tradicional escada platocircnica do
amor609 Pico relata a ascensatildeo em sete passos que envolvem uma progressatildeo ao
conhecimento ndash ldquoconhecimento reflexivordquo em seus termos ndash com a gradual
transformaccedilatildeo aniacutemica do sensual para o racional e sucessivamente para as
faculdades inteligiacuteveis Nos uacuteltimos graus de ascese o quinto e o sexto a alma
alcanccedila a ldquoVecircnus celestialrdquo (o inteligiacutevel ou a mente angeacutelica) que se lhe revela em sua
proacutepria imagem ndash embora ainda natildeo com a ldquoplenitude total de sua belezardquo pois que
esta natildeo pode ser apreendida pelo intelecto particular ou ldquoparcialrdquo da alma Assim
atraveacutes do amor a alma une seu intelecto parcial ao inteligiacutevel universal a ldquoprimeira
das criaturas a uacuteltima e universal hospedagem da beleza idealrdquo610
O seacutetimo passo da exposiccedilatildeo piquiana contempla o termo da trajetoacuteria um
estado de quietismo sugerido pela suacutebita mudanccedila de paradigma de linguagem ndash de
ativa durante o processo intelectual para passiva ao descrever o estaacutegio mais
elevado da ascensatildeo miacutestica ndash como bem observou Stephan Farmer611 ao final de seu
percurso quando o homem nada mais pode alcanccedilar por meio de seus proacuteprios
recursos a alma eacute ldquoatraiacutedardquo ldquopossuiacutedardquo ldquointoxicadardquo ldquoconsumidardquo ldquoinspiradardquo
ldquoiluminadardquo ldquoaperfeiccediloadardquo e finalmente ldquofelicitadardquo por Deus Em tal ponto
608 Menachem RECANATI Bersquour lsquoal ha-Torah Lemberg Wa-yehi 1880-81 c37d apud BUSI 2014 p70 A
fonte agrave qual Recanati recorre para dar um conteuacutedo teoacuterico agrave passagem eacute Azriel de Gerona atraveacutes de seu Comentario agraves aggadot talmuacutedicas A concepccedilatildeo de Sekinah estaacute relacionada com a ideia de contraccedilatildeo da Presenccedila Divina presente na literatura midraacuteshica conforme verificado no Capiacutetulo V Aqui quer significar o espaccedilo da emanaccedilatildeo divina Maiores detalhes podem ser vistos em BUSI 2011 p21
609 Cf FARMER opcit p110 610 Commento pp 567-569 Pico remete-se ao Banquete e ao Fedro para efetuar sua exposiccedilatildeo conforme sua
proacutepria indicaccedilatildeo (ibid p567) No primeiro dos sete passos de sua progressatildeo ao conhecimento a beleza particular de um objeto eacute percebida pelos sentidos e eacute desejada por si mesma No segundo passo a beleza sensual eacute abstraiacuteda pela capacidade inerente agrave alma embora ainda permanecendo distante de sua origem No terceiro passo a alma ldquoconsidera a proacutepria natureza da beleza corporal em si mesmardquo contemplando a ldquobeleza universal de todos os corpos compreendidos em conjuntordquo A beleza corpoacuterea desempenha um papel apenas nesses trecircs primeiros passos No quarto passo a alma conclui que a visatildeo da beleza corpoacuterea universal natildeo procede de um objeto exterior sensiacutevel mas de sua proacutepria luz e poder intriacutensecos e assim transformando-se em si mesma vecirc a imagem de beleza ideal que participa do intelecto No quinto passo fundamentando-se no conhecimento ldquoreflexivordquo a alma se eleva de sua parte racional para sua parte intelectual permitindo-se acolher a ldquoVecircnus celestialrdquo em sua proacutepria imagem Por fim a alma se une ao intelecto universal atraveacutes do amor A realizaccedilatildeo dessa uniatildeo na sexta etapa conclui sua jornada pois natildeo lhe eacute permitido ir mais longe no seacutetimo grau ndash no qual deve descansar com alegria ao lado do primeiro Pai a fonte da beleza
611 FARMER pp39 ss 112
176
terminal Pico faz convergir o percurso filosoacutefico com a experiecircncia religiosa ao
sugerir que no cume do processo gnosioloacutegico do homem ndash que atribui aos
platocircnicos chamar de ldquounidade da almardquo ndash a alma ldquose une imediatamente a Deusrdquo612
De suas leituras socraacuteticas apreendera que o ecircxtase miacutestico era comparaacutevel ao
reencontro com a eternidade inteligiacutevel em um estado de contemplaccedilatildeo que sacia a
alma e a coloca frente a frente com a plenitude de cada realidade613 Concepccedilatildeo
similar fora descrita em termos religiosos na De Hominis Dignitate na qual se lecirc
que em seu estado miacutestico mais elevado o homem eacute ldquofeito um soacute espiacuterito com Deusrdquo
deixando de ser ele mesmo e passando a ser ldquoAquele mesmo que o fezrdquo614
A concepccedilatildeo da Morte do Beijo pode ser tomada como um bom modelo do
ldquofimrdquo ndash temporaacuterio na ldquoprimeira morterdquo ou definitivo na ldquosegundardquo ndash para o qual
convergem muitas das argumentaccedilotildees piquianas de teor esoteacuterico Tal concepccedilatildeo de
caraacuteter precipuamente teoloacutegico coaduna-se com o seacutetimo grau do percurso
filosoacutefico dialeacutetico postulado no Commento estaacutegio que fora sinteticamente exposto
na Conclusio 58 in doctrina Platonis
A caccedilada de Soacutecrates[] pode ser adequadamente dividida em
seis graus o primeiro eacute a existecircncia de mateacuteria externa o
segundo a existecircncia particular imaterial o terceiro a existecircncia
universal o quarto a existecircncia racional o quinto a existecircncia
inteligiacutevel particular o sexto a existecircncia inteligiacutevel total No
seacutetimo grau eacute preciso desistir da caccedilada615
612 Commento p479 ldquoel sommo di questa parte intellectiva chiamano ersquo Platonici unitagrave della anima [hellip]rdquo 613 Nicolas GRIMALDI Soacutecrates o Feiticeiro pp57-58 60-61 Haacute vaacuterias passagens nas quais Soacutecrates tece
analogias entre o ecircxtase miacutestico e o reencontro da alma com o Inteligiacutevel As analogias se relacionam ao deliacuterio amoroso (Fedro 265 a-b) ao deliacuterio poeacutetico (Iacuteon 534 b-d) e tambeacutem ao deliacuterio loacutegico mesmo que ldquoem estado de deliacuteriordquo deve haver juacutebilo ldquoem sentir-se arrebatado pela eternidaderdquo (Feacutedon 69 c-d)
614 Oratio pp123-125 615 PICO Conclvsiones II V 58 (grifo nosso) ldquoVenatio illa Socratis de qua in Protagora conuenienter per sex
gradus potest sic distribui ut primus sit esse materiae extrinsecae secundus esse particulare immateriale tertius esse uniuersale quartus esse rationale quintus esse particulare intellectuale sextus esse totale intellectuale in septimo tanquam in sabbato cessandum est a uenationerdquo Eugenio Garin ao rodapeacute da passagem corrige ldquointelectualrdquo utilizado por Pico por ldquointeligiacutevelrdquo O tema eacute extraiacutedo do Protaacutegoras (321 b ss) conforme informado pelo proacuteprio Pico na mencionada passagem
177
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
As obras de Pico della Mirandola analisadas ndash Conclusiones Nongentae De
Hominis Dignitate e Heptaplus ndash embora bastante distintas em termos de forma
conteuacutedo e propoacutesito apresentam em comum um amplo emprego de referecircncias
retiradas de doutrinas que se perpetuaram atraveacutes do Esoterismo Os elementos
pertinentes a esse campo coletados nas trecircs obras evidenciam que as reflexotildees do
Autor se apropriam daqueles conteuacutedos reutilizando-os em formas hermenecircuticas
proacuteprias Conforme o intento proposto para esta tese foram identificadas tais
referecircncias cuja inserccedilatildeo em meio agraves argumentaccedilotildees se faz de forma fluiacuteda sem
instituir contrastes com categorias do universo filosoacutefico A verificaccedilatildeo de constantes
repeticcedilotildees desses modelos permite que seu conjunto seja estabelecido como uma
categoria proacutepria do pensamento piquiano Um objetivo secundaacuterio foi mostrar que o
recrutamento de tais elementos mostra-se no decorrer da leitura das obras uma
condiccedilatildeo essencial para o alcance de suas siacutenteses
A anaacutelise das Conclusiones realizada no Terceiro Capiacutetulo permitiu que
algumas constataccedilotildees fossem dispostas Entre o conglomerado de sistemas presentes
na obra foi visto que alguns temas despertam maior interesse do Autor vindo a se
condensar nas teses que integram os uacuteltimos grupos da obra Embora natildeo
apresentadas em formato argumentativo as teses dos quatro uacuteltimos grupos (que
tratam de doutrinas maacutegicas oacuterficas caldaicas e cabaliacutesticas) apresentam em seu
conjunto um postulado doutrinaacuterio de acentuado tom esoteacuterico cujos indiacutecios
conceituais satildeo verificaacuteveis no percurso das demais obras piquianas O mesmo
Capiacutetulo expotildee especiacuteficas teses de cunho teoloacutegico-cristatildeo que poderiam soar
estranhas dentro de uma investigaccedilatildeo que tem por objetivo tratar da utilizaccedilatildeo de
paradigmas esoteacutericos Essa abordagem mostrou-se uacutetil por permitir evidenciar
primeiramente que o Pico que se aproxima de teologias natildeo-cristatildes o faz como
algueacutem em posse de efetivo conhecimento daquele campo em segundo lugar a
verificaccedilatildeo do material teoloacutegico permitiu a discussatildeo da relaccedilatildeo feacute-razatildeo no
pensamento piquiano necessaacuteria para a compreensatildeo da teleologia envolvida em sua
busca por convergecircncias doutrinaacuterias A partir dessa abordagem foi possiacutevel
constatar que a visatildeo piquiana de religiatildeo estaacute relacionada em um primeiro
momento a uma busca racional (pois ldquoa feacute que eacute simples disposiccedilatildeo a crer eacute inferior
agrave razatildeordquo) busca essa que no entanto deve ser abandonada em seu uacuteltimo estaacutegio
(pois ldquoa feacute verdadeira eacute superior ao intelecto conjugando-nos imediatamente a
Deusrdquo)
Na De Hominis Dignitate tratada no Quarto Capiacutetulo verificou-se que a
concepccedilatildeo de dignidade do homem em Pico eacute diretamente relacionada agrave ideia de
transcendecircncia de cada um de seus princiacutepios ndash vegetal animal racional intelectual
ndash apontando em direccedilatildeo agrave necessidade de exerciacutecios para a efetivaccedilatildeo de sua
liberdade ndash condiccedilatildeo que capacita o homem a encetar um percurso de auto
178
transformaccedilatildeo Assim o apregoado processo de transmutaccedilatildeo atraveacutes do qual o
homem inferior eacute regenerado e reconectado com o divino eacute entendido pelo Escritor
como um caminho a ser percorrido com o auxiacutelio de corretas ferramentas Os sete
modelos de processos triaacutedicos examinados extraiacutedos de registros histoacutericos
defendidos na obra ndash a dialeacutetica platocircnica o modelo angeacutelico pseudo-dionisiacuteaco a
misteriologia grega os paradigmas miacuteticos de Dioniso e Osiacuteris a representaccedilatildeo do
tabernaacuteculo da tradiccedilatildeo hebraica as praacuteticas asceacuteticas pitagoacutericas e a misteriologia
caldaica ndash fundamentam-se na tradiccedilatildeo oral ou na utilizaccedilatildeo de formas de linguagem
enigmaacuteticas que encobrem seus verdadeiros significados Os sete paradigmas de
trajetoacuterias asceacuteticas apontam na uacuteltima etapa para a experiecircncia de encontro com
um centro de unidade termo da trajetoacuteria em que o movimento asceacutetico atinge o
Absoluto
O mesmo fim eacute postulado atraveacutes do seacutetuplo meacutetodo de interpretaccedilatildeo proposto
por Pico no Heptaplus que representa uma clara indicaccedilatildeo de preparaccedilatildeo do homem
ndash no qual se encerra um princiacutepio metafiacutesico de contenccedilatildeo de todos os niacuteveis de
realidade ou dos Mundos analogados na obra ndash que culmina em sua unificaccedilatildeo com
o divino O Sexto Capiacutetulo testifica que para erigir seu projeto de teoria global de
representaccedilatildeo do mundo o Autor recruta registros que se fundamentam sobre
transmissotildees orais a comprovaccedilatildeo de idoneidade de Moiseacutes principal alicerce
referencial sobre o qual se edifica o projeto do Heptaplus eacute concebida a partir de
testemunhos retirados em sua totalidade de fontes esoteacutericas ndash ou tidas como
esoteacutericas ndash como os Misteacuterios gregos e egiacutepcios o pitagoacuterico Hermipo Pseudo-
Dioniacutesio os disciacutepulos de Amocircnio e ainda Platatildeo Jesus e seus disciacutepulos Paulo e
Joatildeo Satildeo assim utilizados mais uma vez paracircmetros utilizados em obras
anteriores ndash nesse caso para defender a autoridade de Moiseacutes paradigma essencial
em sua representaccedilatildeo do ser que alcanccedilou o uacuteltimo estaacutegio de uniatildeo com o divino
No uacuteltimo Capiacutetulo argumentou-se que o apelo a uma dimensatildeo alcanccedilada por
intermeacutedio de uma experiecircncia miacutestica pessoal eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para que se
alcance o ldquofimrdquo apregoado nas obras piquianas Em De Ente et Uno Pico havia
refletido que soacute a razatildeo natildeo seria garantia de obtenccedilatildeo de qualquer resposta
postulando a impossibilidade de se colher Deus com o simples recurso do intelecto
ldquoo homem enquanto criatura racional se debate em vatildeo entre a necessidade de
afirmar a unidade que sente em sua proacutepria raiz e a impossibilidade derivada de sua
mesma subsistecircncia como natureza racional de alcanccedilaacute-la mantendo-se ele mesmordquo
Deparar-se com o abismo que o separa da Divindade mostra-se inevitaacutevel O ecircxtase
miacutestico eacute um caminho que possibilita realizar tal travessia A linguagem miacutetica ou
alegoacuterica por sua vez natildeo apenas protege tal dimensatildeo iniciaacutetica como permite a
apreensatildeo intelectual de tal fenocircmeno A Morte do Beijo a epopteia eleusina a visatildeo
de Moiseacutes no Sinai a illuminatio angeacutelica a contemplaccedilatildeo do ldquosol do meio-diardquo
agostiniano o devekut cabaliacutestico representam momentos de unidade temporaacuteria ndash
a ldquoprimeira morterdquo descrita por Pico ndash que espelham a dissoluccedilatildeo na Unidade final
179
Apesar de aparentemente fragmentaacuteria a obra de Giovanni Pico acolhe torna
suas e finalmente refaz sob outros prismas as perguntas filosoacuteficas mais difiacuteceis A
sua tentativa de obter respostas eacute ampliada pelo acreacutescimo de um novo paradigma
categorial Mais do que isso a utilizaccedilatildeo da categoria esoteacuterica torna-se condiccedilatildeo
absolutamente necessaacuteria para o alcance do fim apontado em suas obras Resta
pontuar que o conjunto da obra piquiana natildeo se mostra algo distante pois de fato ali
estaacute relatada natildeo uma meta atingida mas uma perene busca Esse caminho encontra-
se descrito no De Ente et Uno qual uma previsatildeo pessoal natildeo intencional na qual o
Autor intui que ldquoo processo de colher Deus natildeo resulta em uma unidade que se
determina e resolve para sempre mas sim de um processo de unificaccedilatildeo que
procede ao infinitordquo
180
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
1 Fontes Primaacuterias
Traduccedilotildees de obras de Giovanni Pico della Mirandola
De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Eugenio Garin (org) Firenze Vallecchi 1942
Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Albano Biondi (org) Firenze Leo S Olschki 19952013
Conclusiones Cabalisticae Paolo Edoardo Fornaciari (org) Milano Mimesis 2009
Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Paolo Edoardo Fornaciari (org) Milano Mimesis 2009
Disputationes adversus Astrologiam Divinatricem Eugenio Garin (org) Vol I e II Firenze Vallecchi 1946-1952
Discorso sulla Dignitagrave dellrsquouomo Francesco Bausi (org) Parma Guanda 2003
Oratio de Hominis Dignitate Trad Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Ediccedilotildees 70 2001
A Dignidade do Homem Trad Luiz Feracine Campo Grande Solivros 1999
Heptaplus La Settemplice Interpretazione dei sei giorni della Genesi Trad Eugenio Garin Carmagnola Arktos 1996
Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Paolo Edoardo Fornaciari (org) Firenze Sismel Edizioni 2010
Expositiones in Psalmos Trad Antonino Raspanti - Giacomo Raspanti Firenze Leo Olschki 1997
Outras Fontes Primaacuterias
AGOSTINHO DE HIPONA Comentaacuterio ao Gecircnesis Trad Agustinho Belmonte Satildeo Paulo Paulus 2014
____ A Cidade de Deus Trad J Dias Pereira VolI Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1996
CLEacuteMENT DrsquoALEXANDRIE Les Stromates Alain Le Boulluec (org) Trad Pierre Voulet Paris Eacuteditions du Cerf 1981
181
DIONIacuteSIO AREOPAGITA PSEUDO A Hierarquia Celeste Carin Zwilling (org) Satildeo Paulo Polar 2015
FICINO MARSILIO Theologia Platonica Milano Bompiani 2011
____ Opera Omnia Mario Sancipriano - Paul Oskar Kristeller (org) Torino Botega drsquoErasmo 1962 vol II
PICO DELLA MIRANDOLA GIANFRANCESCO Johannis Pici Mirandulae viri omni disciplinarum genere consummatissimi vita per Ioannem Franciscum illustris principis Galeotti Pici filium conscripta Bruno Andreolli (org) Modena Aedes Muratoriana 1994
PLATONE Tutte le opere Roma Newton Compton Editori 2010
PLOTINO Enneadi ed Giuseppe Faggin Milano Bompiani 2010
POLIZIANO Letters Shane Butler (org) Cambridge Harvard University Press 2006
CORPUS HERMETICUM Edizione e comento di Arthur Darby Nock Trad Andreacute-Jean Festugiegravere A cura di Ilaria Ramelli Milano Bompiani 2006
DE ORACULIS CHALDAICIS Trad Wilhelm Kroll Reprints from the collection of the University of Michigan Library [1894] Hildesheim G Olms 1962
SEcircFER YETSIRAacute O Livro da Criaccedilatildeo Aryeh Kaplan (org) Trad Erwin Von-Rommel Vianna Pamplona Satildeo Paulo Secircfer 2005
SEPHER HA-ZOHAR Trad Paul Vulliaud In Eacutetudes et Correspondance de Jean de Pauly Relatives au Sepher Ha-Zohar Paris Bibliothegraveque Chacornac 1933
ZOcircHAR RABI SHIMON BAR IOCHAI (atribuiacutedo a) Trad Diego Raigorodsky Satildeo Paulo Annablume Editora 2013 (Tomo I) 2014 (Tomo II)
2 Fontes Secundaacuterias
AMBESI ALBERTO CESARE Giovanni Pico della Mirandola Cenni biografici e presentazione dellrsquoopera In Heptaplus La Settemplice Interpretazione dei sei giorni della Genesi Carmagnola Arktos 1996
ANAGNINE EUGENIO Giovanni Pico della Mirandola Sincretismo religioso-filosofico Bari Laterza 1937
BACON ROGER Opus maius IV Oxford JH Bridges 1897
BACCHELLI FRANCO Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica Cittagrave di Castello Leo S Olschki 2001
182
BARON HANS The Crisis of Early Italian Renaissance Civic Humanism and Republican Liberty in an Age of Classicism and Tyranny New Jersey Princeton University PressNewberry Library 1966
____ En Busca del Humanismo Ciacutevico Florentino ndash Ensayos sobre el Cambio del Pensamiento Medieval al Moderno Trad Miguel Abelardo Camacho Ocampo Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Economica 1993
BARONE GIUSEPPE Antologia Giovanni Pico della Mirandola Milano Virgilio Editore 1973
BARTOLUCCI GUIDO Marsilio Ficino e le Origini della Cabala Cristiana In Fabrizio Lelli (org) Giovanni Pico e la Cabbalagrave Firenze Leo Olschki 2014
BASTITTA HARRIET FRANCISCO Recepcioacuten de los textos hermeacuteticos en el platonismo florentino del Quattrocento Marsilio Ficino y Giovanni Pico della Mirandola In Buffon-Drsquoamico (org) Hermes Platonicus Hermetismo y Platonismo en el Medioevo y la Modernidad temprana Santa Feacute Ediciones UNL 2016
BATKIN LEONID M LrsquoIdea di Individualitagrave nel Rinascimento Italiano Trad Valentina Rossi Roma-Bari Laterza 1992
BAUSI FRANCESCO (org) Giovanni Pico della Mirandola Opere complete Torino Lexis Progetti Editoriali 2000
____ Nec rethor neque philosophus Fonti lingua e stile nelle prime opere latine di Giovanni Pico della Mirandola (1484-87) Firenze Leo Olschki 1996
____ E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza Napoli Liguori 1998
BAZAacuteN FRANCISCO GARCIA ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus Madrid Biblioteca Claacutesica Gredos 1991
BEMPORAD DL ndash ZATELLI IDA (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Celebrazioni del V centenario della morte di Lorenzo il Magnifico Firenze Olschki 1998
BERTI DOMENICO Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti In Rivista Contemporanea VII vol XVI Torino 1859
BERTOZZI MARCO (org) Nello specchio del cielo Giovanni Pico della Mirandola e le ldquoDisputationes contro lrsquoastrologia divinatoriardquo Firenze Leo Olschki 2008
BIDEZ JOSEPH ndash CUMONT FRANZ Les mages helleniseacutes Paris Belles Lettres 1938
BIGNOTTO NEWTON Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola In O que nos faz pensar nr 27 2010
BIONDI ALBANO ldquoIntroduzionerdquo alle Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 2013
183
BLACK CROFTON Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics Boston Brill 2006
BORI PIER CESARE I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola In Annali di storia dellrsquoesegesi 132 1996 pp 551-564
____ Pluralitagrave delle vie Alle origine del Discordo sulla Dignitagrave umana di Pico della Mirandola Milano Feltrinelli 2000
BROCCHIERI MARIATERESA F B Pico della Mirandola Bari Laterza 2011
BURCHIELLARO GIANFRANCO ldquoIntroduzionerdquo a Mantova e la Qabbalah Milano Skira 2001
BURCKARDT JACOB La civiltagrave del Rinascimento in Italia Trad Valbusa Vol II Firenze Sansoni 1902
BURKERT WALTER Antigos Cultos de Misteacuterio Satildeo Paulo Edusp 1987
BUSI GIULIO La Qabbalah Roma-Bari Laterza 2011
____ Mantova e la Qabbalah Milano Skira 2001
____ Introduzione a Mistica ebraica Testi della tradizione segreta del giudaismo dal III al XVIII secolo Torino Busi e Loewenthal (eds) 1995
____ Pico fede ragione e Inquisizione In Il Sole-24 Ore 28082018
BUSI GIULIO - EBGI RAPHAEL Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah Torino Giulio Einaudi Editore 2014
CASSIRER ERNST Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento Trad F Federici Firenze La Nuova Italia 19351977
CASSUTO UMBERTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento Firenze Leo Olschki 1918 (ristampa 1965)
CATAgrave CESARE ldquoLidea di lsquoanima stellatarsquo nel Quattrocento fiorentino Andrea da Barberino e la teoria psico-astrologica in Marsilio Ficinordquo In Bruniana amp Campanelliana XVI 2 2010 pp 629-639
CERETTI FELICE Biografie pichensi II Mirandola 1909
____ Giulia Boiardo In Atti e Memorie della Deput di Storia Patria dellEmilia Modena 1881
CHASTEL ANDREacute LrsquoArtista In Eugenio Garin (org) LrsquoUomo del Rinascimento Bari Laterza 2016
COLLI GIORGIO A Sabedoria Grega ndash I (Fragmentos) Traduccedilatildeo Renato Ambroacutesio Satildeo Paulo Paulus 2012
COPENHAVER BRIAN Lrsquoocculto in Pico In Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola Firenze Leo Olschki 1997
184
____ The Secret of Picorsquos Oratio Cabala and Renaissance Philosophy In Midwest Studies in Philosophy 26 2002
____ Hermes Trismegistus Proclus and the Question of a Philosophy of Magic in the
Renaissance In Merkel-Debus (org) Hermeticism and the Renaissance Intellectual History and the Occult in Early Modern Europe Washington Associated University Presses 1988
COPENHAVER BRIAN ndash SCHMITT CHARLES Renaissance philosophy A History of Western Philosophy Oxford University Press 1992
CORAZZOL GIACOMO Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquo Oratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo In Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 pp9-61
CORBIN HENRY Lrsquohomme de lumiegravere dans le soufisme iranien Paris Eacuteditions Preacutesence 1971
CRAVEN WILLIAM G Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age Modern Interpretations of a Renaissance Philosopher Geacutenegraveve Librairie Droz 1981
CRINITO PIETRO De honesta disciplina Carlo Angeleri (org) Roma Fratelli Bocca 1955
CROCIANI LAMBERTO Chiesa fiorentina e comunitagrave ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico In Bemporad-Zatelli (orgs) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Olschki 1998 pp85-99
CROUZEL HENRY Pic de la Mirandole et Origegravene In Bulletin de litteacuterature eccleacutesiastique 66 1965 pp174-194 e pp272-288
DEacuteCARREAUX JEAN Les Grecs au Concile de lrsquo Union Ferrare-Florence 1438-1439 Paris A et J Picard 1970
DELLA TORRE ARNALDO Storia dellrsquoAccademia Platonica di Firenze Firenze G Carnesecchi e Figli 1902
DE RUGGIERO GUIDO La filosofia del Cristianesimo Vol III Bari Laterza 1920
DES PLACES EDOUARD Oracles chaldaiumlques Paris Les Belles Lettres 1971
DI NAPOLI GIOVANNI Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo Roma Desclee amp C Editori Pontifici 1965
____ LrsquoEssere e lrsquoUno in Pico della Mirandola In Rivista di Filosofia neoscolastica 46 1954 pp 356-389
DI NOLA ALFONSO MARIA Cabbala e mistica giudaica Roma Carucci 1984
DOREZ LEacuteON - THUASNE LOUIS Pic de la Mirandole em France (1485-88) Paris Ernest Leroux 1897 (Slatkine Reprints Genegraveve 1976)
185
DOREZ LEacuteON Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) In Giornale Storico della Letteratura italiana 25 1895
____ La mort de Pic de la Mirandole et lrsquoeacutedition aldine des oeuvres drsquoA Politien In Giornale Storico della Letteratura italiana 32 1898
DOUGHERTY MICHAEL V (org) Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008
DUJOVNE LEOacuteN Kabbala Sefer Yetsiraacute El libro de la Creacion Buenos Aires Sigal 1992
____ El Zohar Versioacuten Castellana Buenos Aires Sigal 1992
DUKAS JULES Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle Paris L Techener 1876
EDELHEIT AMOS Ficino Pico and Savonarola The evolution of Humanist Theology Leiden Brill 2008
FAIVRE ANTOINE Access to Western Esotericism Albany Suny Press 1994
FARMER STEPHAN ALAN Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems Temple Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies 1998
FAVARO A Lettera a Francesco Ingoli (org) In Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei v 6 Firenze Barbera Editore 1933
FERACINE LUIZ Prefaacutecio e Comentaacuterios a A Dignidade do Homem de Pico della Mirandola Campo Grande Solivros 1999
FESTUGIEgraveRE ANDREacute-JEAN Studia Mirandulana In Archives drsquohistoire doctrinale e litteraire du Moyen acircge Paris Librairie Vrin 1933
____ La reacuteveacutelation drsquoHermegraves Trismeacutegiste 4 volumes Paris Les Belles Lettres 1950-1954
FIELD ARTHUR The Platonic Academy of Florence In Marsilio Ficino his Theology his Philosophy his Legacy (Allen-Rees org) Leiden Brill 2002
FORNACIARI PAOLO EDOARDO Introduzione e Note a Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche Milano Mimesis 2009
____ Introduzione e Note a Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Milano Mimesis 2009
____ Introduzione e Note a Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze Sismel 2010
____ Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola In Bruniana e Campanelliana 7 2001 pp627-633
186
GARFAGNINI GIAN CARLO (org) Savonarola tra Giovanni e Gianfrancesco Pico In Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) Firenze Leo Olschki 1997
GARIN EUGENIO Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina Roma Edizioni di Storia e Letteratura 2011
____ Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico In Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento 1965
____ La cultura del Rinascimento Bari Laterza 1967
____ Rinascite e Rivoluzioni Bari Laterza 1975
____ Ermetismo del Rinascimento Pisa Della Normale 1986 (copia anastatica 2006)
____ Ritrati di Umanisti ndash Sette Protagonisti del Rinascimento Milano Bompiani 1996
____ Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento Bari Laterza 2007
____ LUmanesimo italiano Bari Laterza 2008
____ (org) LrsquoUomo del Rinascimento Bari Laterza 2016
GENTILE GIOVANNI Giordano Bruno e il pensiero del Rinascimento Firenze Codignola 1991
GENTILE SEBASTIANO Il ritorno di Platone dei platonici e del corpus ermetico Filosofia teologia e astrologia nellopera di Marsilio Ficino In Vasoli-Pissavino (org) Le filosofie del Rinascimento Milano Mondadori 2002
GILL JOSEPH Il Concilio di Firenze Firenze Sansoni 1967
GILSON ETIENNE Les Meacutetamorphoses de la Citeacute de Dieu Publications Universitaires de Louvain Librairie Philosophique Louvain-Paris J Vrin 1952
GOLDFELD NAOMI VOGELMANN Elia del Medigo e lrsquoAverroismo hebraico In BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998
GRAFTON ANTHONY Giovanni Pico della Mirandola Trials and Triumphs of an Omnivore In Commerce with the classics Ancient Books and Renaissance Readers Ann Arbor University of Michigan Press 1997
GRIFFITHS J GWYN (org) Plutarchs De Iside et Osiride University of Wales Press 1970
187
GRIMALDI NICOLAS Soacutecrates o Feiticeiro Trad Nicolaacutes Nyimi Campanaacuterio Satildeo Paulo Loyola 2006
GUICCIARDINI FRANCESCO Storie Fiorentine dal 1378 al 1509 Bari Laterza 1931
HANEGRAAFF WOUTER J (org) Dictionary of Gnosis amp Western Esotericism Leiden Brill 2006
HANKINS JAMES Plato in the Italian Renaissance Leiden Brill 1990
HAYMAN A PETER Sefer Yetsira Texts and Studies in Ancient Judaism Tubingen Mohr Siebeck 2004
IDEL MOSHE Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico In Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998
____ Kabbalah New Perspectives New Haven Yale University Press 1988
____ Golem Jewish Magical and Mystical Traditions on the artificial Anthropoid Albany Suny 1990
____ Kabballah and Hermeticism in Dame Frances A Yatesrsquos Renaissance In Eacutesoterism gnoses et imaginaire symbolique Leuven 2001 pp71-90
____ Uma Introduccedilatildeo In Cabala Cabalismo e Cabalistas (Idel et al org) Trad Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 2008-a
____ As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista In Cabala Cabalismo e Cabalistas (Idel et al org) Trad Eliana Langer e Margarida Goldsztajn Satildeo Paulo Perspectiva 2008-b
JACOBELLI JADER Pico della Mirandola Prefaacutecio de Eugenio Garin Milano Longabesi amp C 1986
KAPLAN ARIEH Secircfer Ietsiraacute O Livro da Criaccedilatildeo Teoria e Praacutetica Trad Vianna Pamplona Satildeo Paulo Secircfer 2005
KEPLER JOHANNES De Stella Nova Harmonice Mundi In Gesammelte Werke Beck Muumlnchen Max Caspar 1938
KERN OTTO Orfici ndash Testimonianze e Frammenti nellrsquoedizione di Otto Kern A cura di Elena Verzura Milano Bompiani 2011
KIBRE PEARL The library of Pico della Mirandola New York Columbia University Press 1936
KIESZKOWSKI BOHDAN Averroismo e Platonismo in Italia negli ultimi decenni del sec XV In Giornale critico della Filosofia Italiana 1933 4
____ Averroismo e Platonismo in Italia In Studi sul Platonismo del Rinascimento in Italia Firenze 1936 capVII
188
____ Studi sul platonismo del Rinascimento in Italia Firenze Sansoni 1936
____ Les Rapports entre Elie del Medigo e Pic de la Mirandola In Rinascimento XV 1964 pp 41-81
KRISTELLER PAUL OSKAR Supplementum ficinianum (org) Firenze Leo Olschki 1937
____ The scholastic background of Marsilio Ficino (1944) In Studies in Renaissance Thought and Letters Vol I Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1956
____ Movimenti filosofici del Rinascimento In Giornale critico della Filosofia Italiana 1950 29
____ La tradizione classica nel pensiero del Rinascimento Firenze La Nuova Italia 1975
____ Concetti Rinascimentali dellrsquouomo ed altri saggi Firenze La Nuova Italia 1978
____ Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano Trad M Pentildealoza Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1970
____ El pensamiento renacentista y sus fuentes Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1982
____ Studies in Renaissance Thought and Letters Vol IV Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1996
KRISTELLER PAUL OSKAR - SANCIPRIANO MARIO (org) Marsilio Ficino Opera Omnia Torino Botega drsquoErasmo 1962 vol II
LEBECH METTE On the Problem of Human Dignity A Hermeneutical and Phenomenological Investigation Wurzburg Konigshausen amp Neumann 2009
LELLI FABRIZIO Alemanno Giovanni Pico della Mirandola e la cultura ebraica italiana del XV secolo In Gian Carlo Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola VolI Firenze Leo Olschki 1997
____ Giovanni Pico e la Cabbalagrave (org) Firenze Leo Olschki 2014
____ Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno In BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998
____ Pico della Mirandola Giovanni In Wouter Hanegraaf (org) Dictionary of Gnosis and Western Esotericism Leiden 2005 pp949-954
LILLA SALVATORE Clement of Alexandria A Study in Christian Platonism and Gnosticism Oxford Oxford University Press 1971
LIPINER ELIAS As Letras do Alfabeto na criaccedilatildeo do mundo ndash Contribuiccedilatildeo agrave pesquisa da natureza da linguagem Rio de Janeiro Imago 1992
LORENZ FV Cabala A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente Satildeo Paulo Pensamento 1997
189
LUBAC HENRI DE Pico della Mirandola LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento Trad G Colombo - A dellrsquoAsta Vol 29 Milano Jaca Book 1977
____ Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions Paris Aubier Montaigne 1974
MAGHIDMAN MARCELO Secircfer Yetsiraacute A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico Satildeo Paulo Annablume 2014
MAQUIAVEL NICOLAU Histoacuteria de Florenccedila Satildeo Paulo Martins Fontes 2007
MASAI FRANCcedilOIS Pleacutethon et le Platonisme de Mistra Paris Les Belles Lettres 1956
MASSETANI GUIDO La Filosofia cabbalistica di Giovanni Pico Della Mirandola Empoli Tipografia di Edisso Traversari 1897
MATTER JACQUES Histoire critique du gnosticisme et de son influence Paris FG Levrault 1828 (reprint 2011)
MONFASANI JOHN Bessarione La Natura delibera la Natura e lrsquoArte ldquoPrefassionerdquo In Accendere-Privitera (org) Milano Bompiani 2014
MOLINARI JONATHAN Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola Bologna Il Mulino 2015
MUNK SALOMON Meacutelanges de philosophie juive et aacuterabe Paris A Franck 1857
PEGONE ENRICO Timeo Note e Trad In Platone Tutte le Opere Roma Newton Compton Editori 2010
PINA MARTINS JOSEacute VITORINO Jean Pic de la Mirandole Un portrait inconnu de lrsquohumanisme une eacutedition trecircs rare de ses Conclusiones Paris Presses Universitaires de France 1976
____ Pico della Mirandola e o Humanismo Italiano nas origens do Humanismo Portuguecircs Lisboa Sep de Estudos Italianos em Portugal 1964
____ Cultura Italiana Lisboa Editorial Verbo 1971
RABI SHIMON BAR IOCHAI Zocirchar Trad Diego Raigorodsky Satildeo Paulo Annablume 2013
RABIN SHEILA Pico on Magic and Astrology In Dougherty MV (org) Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008
____ Keplerrsquos Attitude toward Pico and the Anti-Astrology Polemic In Renaissance Quarterly 50 1997 pp 750ndash70
RAGNISCO PIETRO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo In Atti e Memorie della Reale Accademia di Scienze Lettere ed Arti in Padova Padova 1891
190
RASPANTI ANTONINO Filosofia teologia religione lrsquounitagrave della visione in Giovanni Pico Palermo Edi Oftes 1991
REALE GIOVANNI Para uma nova Interpretaccedilatildeo de Platatildeo Trad Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 1997
RENAN ERNEST Averroegraves et lrsquoAverroiumlsme Paris A Durand 1852
RHODE ERWIN Psyche Roma-Bari Laterza 2006
RIFFARD PIERRE Dicionaacuterio de Esoterismo Trad Maria Joatildeo Freire Lisboa Editorial Teorema 1993
ROTONDI SECCHI TARUGI LUISA LErmetismo nellrsquo Antichitagrave e nel Rinascimento Milano Nuovi Orizzonti 1998
RUGGIERO GUIDO DE La filosofia del Cristianesimo Vol III Bari Laterza 1920
RUTKIN H DARREL Giovanni Pico della Mirandolarsquos Early reform of Astrology an Interpretation of vera astrologia in the Cabalistic Conclusions In Bruniana e Campanelliana 10 2004 pp495-498
SARTORI ALBERTO Giovanni Pico della Mirandola Filosofia teologia concordia Padova Facoltagrave Teologica del Triveneto 2017
SCOTT WALTER - FERGUSON ALEXANDER STEWART Hermetica The Ancient Greek and Latin Writings which contain religious or philosophic teachings ascribed to Hermes Trismegistus Oxford Clarendon Press 1924-36
SCHIAVONE VALERIA Corpus Hermeticum Trad e Notas Milano BUR Rizzoli 2018
SCHMITT CHARLES Gianfrancesco Picorsquos Attitude toward his Uncle In (AAVV org) Llsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze 1965
SCHNITZER JOSEPH Savonarola Vol1 Trad E Rutili Milano Fratelli Treves 1931
SCHOLEM GERSHOM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York Theological Seminary of America 1960
____ A Miacutestica Judaica Trad Jacob Guinsburg et al Satildeo Paulo Perspectiva 1972
____ A Cabala e seu simbolismo Trad Hans Borger e Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 1988
____ Cabala Enciclopeacutedia judaica Vol 9 Trad H Burlamaqui JC Guimaratildees e ML Braga Rio de Janeiro A Koogan 1989
____ As Grandes correntes da Miacutestica Judaica Trad Jacob Guinsburg e outros Satildeo Paulo Perspectiva 1995
191
____ Nome de Deus a Teoria da Linguagem e Outros estudos de Cabala e Miacutestica Judaica Trad Ruth Solon e Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 1999
SECRET FRANCcedilOIS Lrsquointerpretazione della Kabbala nel Rinascimento In ldquoConviviumrdquo 25 1956 pp541-552
____ Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance Milano Archegrave Arma artis 1985
SENDER TOVA Iniciaccedilatildeo agrave Cabala Rio de Janeiro Record 1991
SEMPRINI GIOVANNI Giovanni Pico della Mirandola La Fenice degli Ingegni Todi Casa Editrice Atanograver 1921
SIRGADO GANHO MARIA LURDES Comentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitate Lisboa Ediccedilotildees 70 2001
SUDDUT MICHAEL Pico della Mirandolarsquos Philosophy of Religion In Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008
TENENTI A Florence agrave lrsquoEacutepoque des Medicis Paris Flammarion 1968
THORNDIKE LYNN A History of Experimental Science Vol 4 Fourteenth and Fifteenth Centuries New York Columbia University Press 1934
VALCKE LOUIS Pic de la Mirandole un itineacuteraire philosophique Paris Les Belles Lettres 2005
VALVERDE A J R Aportes a Oratio de Hominis Dignitate de Pico della Mirandola In Revista de Filosofia Aurora Vol 21 29 pp 457-480 Curitiba Champagnat 2009
VASOLI CESARE Introduccedilatildeo agrave Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina (EGarin) Roma Edizioni Storia e Letteratura 2011
____ Imagini Umanistiche Napoli Morano 1983
____ Conclusioni In Gian Carlo Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) VolII Firenze Leo Olschki 1997 pp641-695
____ The Renaissance Concept of Philosophy In Charles Schmitt (org) The Cambridge History of Renaissance Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1998
VILLARI PASQUALE Girolamo Savonarola Vol I Firenze Le Monnier 1910
WALKER DP Spiritual and demonic magic from Ficino to Campanella London The Warburg Institute 1958
WARBURG ABY La rinascita del paganesimo antico Contributi alla storia della cultura raccolti da G Bing Trad E Cantimori Firenze La Nuova Italia 1966
192
WEIL ERIC La Philosophie de Pietro Pomponazzi Pic de la Mirandole et la Critique de lrsquoAstrologie Paris Editions Vrin 1986
WIRSZUBSKI CHAIM Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Cambridge Harvard University Press 19871989
____ Pic de la Mirandole et la Cabale Paris Eacuteditions de lrsquoeacuteclat 2007
WOODHOUSE CHRISTOPHER M George Gemistos Plethon The last of the Hellenes Oxford Clarendon Press 1986
YATES FRANCES A Giordano Bruno e a Tradiccedilatildeo Hermeacutetica Satildeo Paulo Cultrix 1995
____ Giovanni Pico della Mirandola and Magic In Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo VolI Convegno Internazionale di Mirandola (1963) Firenze 1965 pp159-204
ZACCARIA RAFFAELLA MARIA Critiche e difesa dellrsquoHeptaplus In Paolo Viti (org) Pico Poliziano e lrsquoUmanesimo di fine Quattrocento Nr 16 Firenze Leo Olschki 1994
ZAMBELLI PAOLA Lapprendista stregone Astrologia cabala e arte lulliana in Pico della Mirandola e seguaci Venezia Saggi Marsilio 1995
ZONTA MAURO Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola In Rinascimento ndash Rivista dellrsquoIstituto Nazionale di Studi sul Rinascimento nr48 Firenze Leo Olschki 2009