
Download - Arqueologia Paraiba
Pr-Histria IIEstudos para a arqueologia da Paraba
Thomas Bruno Oliveira (Org.)
Pr-Histria IIEstudos para a arqueologia da Paraba
Grfica & Editora
Campina Grande 2011
Sociedade Paraibana de Arqueologia SPA
Presidente Thomas Bruno OliveiraDireo Juvandi de Souza SantosCarlos Alberto Azevedo Vandereley de Brito
Conselho EditorialAntnio Clarindo Barbosa de Souza PPGH/UFCG Carlos Alberto Azevedo IPHAEP Juvandi de Souza Santos UEPB Thomas Bruno Oliveira IHGC Vanderley de Brito DD/SPA Zlia Maria de Almeida - UFPBCopyright 2011, Sociedade Paraibana de Arqueologia A reproduo no autorizada desta publicao, no todo ou em parte, constitui violao de direitos autorais (Lei 9.610/98)
Capa e diagramaoThomas Bruno Oliveira
FotosAcervo da Sociedade Paraibana de Arqueologia
EditoraoFrancisca Arajo Cavalcante
RevisoProf Marilndia Bezerra de Souza
CapaBico de pena de Lus Barroso, acervo de Jos Edmilson Rodrigues.
Impresso e acabamentoJRC Grfica e EditoraFICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA JRC EDITORA
Oliveira, Thomas Bruno. PrHistria II: estudos para a arqueologia da Paraba / Thomas Bruno Oliveira (organizador) Joo Pessoa: JRC Editora, 2011. 131p. ISBN 978-85-99619-32-2 1.Arqueologia 2. Pr-Histria 3. Paraba I-Ttulo.22 ed CDD 99619
NDICEPrefcio: Ruth Trindade de Almeida ........................................................................................................................07 Cap. I Vida e morte nos grupos humanos: algumas informaes preliminares Juvandi de Souza Santos...........................................................................................................................09 Cap.II Pr-Histria & Ufologia ...........................................................................................................................27 Carlos Alberto Azevedo Cap. III As itaquatiaras e os meglitos...................................................................................................................39 Luiz Galdino Cap. IV Evoluo da arqueologia e a falta de compromisso governamental..........................................................47 Carlos Belarmino Cap. V Nossos estudos sobre a Itaquatiara de Ing Francisco Carlos Pessoa Faria............................................................................................................... 59 Cap. VI Paisagem mgica.....................................................................................................................................65 Pe. Joo Jorge Rietveld Cap. VII Sitios arqueolgicos na Paraba: uma reviso bibliogrfica......................................................................77 Vanderley de Brito Cap. VIII As pesquisas sobre os registros rupestres do Rio Grande do Norte..................................................95 Valdeci dos Santos Jnior Cap. IX A Importncia de estudar a apreender Pr-Histria na Escola............................................................101 Antonio Clarindo Barbosa de Souza Cap. X A indstria da pedra na Paraba: um modelo cognitivo de estudo .......................................................107 Dennis Mota Oliveira e Erik de Brito Cap. XI Incries marginais: o caso da Pedra do Ing..........................................................................................115 Thomas Bruno Oliveira Cap. XII Os Autores..............................................................................................................................................125 Sociedade Paraibana de Arqueologia
PREFCIOO esprito indagativo do homem sempre o levou a perguntar por que e como tudo comeou. Buscando entender a realidade que o cerca ele foi palmilhando os diferentes caminhos da cincia. arqueologia coube descobrir como as sociedades comearam. Trata-se, ento, de saber como viveram os primeiros grupos humanos (j extintos) sobre os quais no h registros escritos. Assim, atravs das escavaes e da Arte Rupestre, que os arquelogos buscam dados que possibilitem conhecer nosso passado. Naturalmente, na sua tarefa, eles contam com a colaborao de outras cincias para ajud-los. Uma das mais importantes a antropologia, por trabalhar com grupos atuais. Os que trabalham ou j trabalharam com os ndios brasileiros, podem fornecer informaes sugestivas para os arquelogos. Uma monografia tribal, na sua forma clssica, proporciona dados sobre: crenas, mitos, arte, famlia, liderana, saberes e sobre o cotidiano do grupo. A imerso plena, penso eu, numa cultura indgena, trar uma percepo mais exata do estilo de vida das populaes extintas e ser muito til ao arquelogo que aborda a cultura material e no material, de grupos que j desapareceram. A temtica dominante desta coletnea a Arte Rupestre, porm com abordagem variada. O artigo de Santos mostra as possibilidades informativas que os cemitrios indgenas podem proporcionar. E esta possibilidade continua nos tempos atuais, como mostra o livro de Clarival do Prado Valadares (1972), em dois volumes, Arte e Sociedade nos Cemitrios Brasileiros. Dois autores encaminharam-se para o campo educacional: Souza, pugnando pela presena da pr-histria nos currculos escolares universitrios; Alves, apresenta um quadro geral da arqueologia brasileira e reclama da falta de uma poltica governamental que venha apoiar a pesquisa arqueolgica. As outras contribuies: Brito, precedida estimulante, faz uma apresentao histricobibliogrfica da arte rupestre na Paraba. Faria, identifica algumas representaes celestes no conjunto de arte rupestre de Ing; aqui vale lembrar que os ndios brasileiros eram grandes observadores do cu. Em seu livro ndios do Brasil, J.C. Melatti (1972) afirma que os ndios conheciam muito bem o cu e muitas tribos do Brasil distribuam as estrelas em grupos (constelaes) embora essa distribuio no coincida com a nossa.. Falando dos Khra, relata o autor que eles reconheciam as Pliades ou Sete Estrelos (como conhecida popularmente) e a chamavam de Krod. Continuando, o artigo de Azevedo exorciza definitivamente os extraterrestres dos vestgios arqueolgicos. Galdino, com sua ampla experincia pelo Brasil, aponta a presena de megalticos em vrios estados
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brasileiros, alertando-nos sobre a possvel presena deles na Paraba, com algumas referncias. Mostra tambm que o termo megaltico que literalmente significa pedra grande, atualmente empregado para designar qualquer tipo de monumento construdo com pedras, ainda que em pequenas dimenses. O artigo de Santos Jnior trata das gravuras do Rio Grande do Norte,definindo as tcnicas utilizadas para faz-las e os temas ou tipos de grafismo executados. Rietveld destaca a profunda relao do homem com a natureza e se encaminha com muita propriedade para a pr-histria da mente humana. Devo acrescentar que as tribos brasileiras, de um modo geral, e cada uma sua maneira, acreditavam que cada homem possua um esprito. Em seu artigo, Oliveira trata das inscries rupestres nas proximidades da Pedra do Ing, ampliando os horizontes para compreenso e interpretao daquele magnfico stio. Lendo esta coletnea de artigos os leitores tero a oportunidade de penetrar no universo fascinante da arqueologia. Sem dvida cada leitor ou estudante sair enriquecido e motivado para a busca de novos textos. V-se que a Paraba conta agora com um ncleo de pesquisa e de estudos arqueolgicos bem estruturados, fruto da persistncia, dedicao e dinamismo desses novos profissionais. Para finalizar, gostaria de dizer que o trabalho que aqui apresento intitulado Pr-Histria II: estudos para a arqueologia da Paraba foi organizado com competncia, pelo historiador e atual presidente da Sociedade Paraibana de Arqueologia, Thomas Bruno de Oliveira. Ele foi o resultado da integrao de esforos coletivos produo de conhecimento realizado por uma equipe de pesquisadores, e se destaca pelas questes delineadas e contribuies relevantes rea de estudo. A estes pesquisadores apresento minha palavra de incentivo e uma sugesto: essencial que a equipe mantenha a parceria que torna o trabalho mais agradvel e produtivo. Trabalhei durante 25 anos na qualidade de professora de antropologia da UFPB, hoje UFCG; entre as lembranas mais gratificantes que guardo esto as da companhia e trocas com os meus colegas, porque formvamos, na verdade, um grupo coeso e amigo. Recife, 26 de novembro de 2010.
Ruth Trindade de AlmeidaProfessora aposentada de Antropologia da UFCG, Mestre em Antropologia Cultural pela UFPE, Cursou Arqueologia na Universidade de Toulouse, Frana Scia efetiva da Sociedade Paraibana de Arqueologia - SPA
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Cap.I
Vida e morte nos grupos humanos: algumas informaes preliminaresJuvandi de Souza Santos
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VIDA E MORTE NOS GRUPOS HUMANOS: ALGUMAS INFORMAES PRELIMINARESJuvandi de Souza SantosArquelogo e Historiador, Ps-doutor PUC-RS / Museu de Histria Natural de Paris, VicePresidente da Sociedade Paraibana de Arqueologia, Coordenador do LABAP/UEPB e Professor efetivo da UEPB Campus III. E-mail: [email protected]
Prticas espirituais e rituais fnebres no Continente Americano Gabriela Martin (2005: 307) mostra-nos que possvel atravs da anlise dos comportamentos sociais e com restos sseos das necrpoles identificamos as caractersticas fsicas e patolgicas de grupos humanos. O estudo de uma necrpole e o que nela se encontra capaz de fornecer ao arquelogo informaes precisas sobre costumes, crenas, tecnologias e a complexidade da teia social de um grupo. Os rituais fnebres refletem a preocupao do ser humano, desde tempos imemoriais, com os seus e o que teriam ou no numa ps-morte. Em todo o planeta se verifica essa preocupao: no Egito Antigo, construam-se tumbas monumentais para sepultar aqueles que faziam parte da elite, como os faras, enquanto que, o povo (entenda-se como os trabalhadores e operrios que, por exemplo, construam as monumentais pirmides), eram sepultados em locais comuns (cavernas, pequenos abrigos, etc.) sem receber os cuidados necessrios que os faras e os mais afortunados recebiam. Percebe-se que at na morte existia hierarquia, reflectncia de uma diviso de classes que reinava na sociedade. Os rituais fnebres diferem entre povos de culturas diferentes: os cristos, ao contrrio dos indo-europeus que incineravam seus mortos, geralmente no praticavam tais aes, os sepultam, constroem edificaes nos cemitrios, tambm como forma de distino social. Entre os ndios da Flrida, os restos de seus parentes antepassados mortos eram adornados com grandes quantidades de prolas, as melhores e as maiores, como forma de demonstrar o respeito e apreo pelos seus. Os invasores espanhis que tentaram conquistar a regio saquearam esses tmulos, destruindo as riquezas materiais e os testemunhos dos rituais fnebres desses grupos humanos. J entre os Tunja, povo que vivia na regio da Guatemala, intensamente atacado pelos espanhis, era costume colocar os corpos com todo o ouro que possuam em seus santurios ou casas de orao, em certas camas que l os espanhis chamam de barbacoas, que so leitos erguidos da 11
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terra sobre pontas, onde deixam o morto com todas suas riquezas (OVIEDO Apud COLL; 1974: 150). Os europeus arrancavam as jias das mmias, jogando-os no cho, com desprezo cultura ritualstica desse grupo humano. O interessante que o mesmo cronista citado acima, acaba por mostrar que os prprios religiosos da Espanha, quando tomaram conhecimento das rapinagens nas necrpoles indgenas, os recriminaram, afirmando que tais locais, assim como aconteceu com Salomo, sepultado com seus tesouros, era um local sagrado e que tudo que fosse ali encontrado deveria permanecer com os seus donos. Claro que os soldados espanhis no cumpriram as determinaes da Igreja, ao menos nesse sentido. Entre as sociedades indgenas das Amricas, as formas de sepultamentos e os rituais no Brasil, por exemplo, graas aos registros arqueolgicos e alguns rituais que se perpetuaram no tempo, sendo adotados por comunidades mais recentes, aquelas que tiveram contato direto com colonizadores, escrevendo inclusive, sobre todo o processo ritualstico bem como suas prticas espirituais e os locais escolhidos para sepultarem seus mortos, so relativamente conhecidas. No Brasil, Gabriela Martin (2005: 308) informa o patamar de conhecimentos que temos hoje, especialmente no Nordeste do Brasil, sobre rituais fnebres. Segundo a pesquisadora, quatro importantes necrpoles escavadas por Arquelogos da regio tm nos fornecido importantes dados sobre as prticas ritualsticas e de enterramentos na pr-histria alm do ambiente. So elas: Gruta do Padre, Furna do Estrago, Pedra do Alexandre e Stio Justino. interessante notar que outras necrpoles j foram escavadas nesta rea, mas a importncia dessas quatro necrpoles justamente pelas formas diversificadas de rituais fnebres identificados, pela quantidade de sepultura, pelos enxovais e pela localizao geogrfica em que essas necrpoles esto inseridas, fornecendo dados do modus vivendi desses grupos humanos. O cemitrio indgena Pedra do Alexandre forneceu as dataes mais antigas de um cemitrio indgena do Nordeste: 9.400 anos AP. tratando-se de um sepultamento secundrio de criana. Outras dataes de cerca de 8.000 anos AP. foram constatados dois esqueletos femininos adultos. Talvez a grande importncia desse sepultamento advenha do ritual em acender uma fogueira sobre a sepultura, prtica j identificada em outros cemitrios da regio, bem como em toda a Amrica. Caso digno de nota ainda foi percebido na Pedra do Alexandre. A sepultura de no10 foi encontrado esqueleto em decbito lateral. Em duas sepulturas no foi encontrado mobilirio (enxoval) e, s em sepulturas datadas 12
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entre 4.000 e 2.700 anos AP. que foram identificadas peas acompanhando o esqueleto, pertencente ao sexo masculino. Duas interpretaes podem-se obter do exposto: primeiro que por volta de 9.000 anos AP. os enterramentos no eram acompanhados de enxoval; segundo, que por se tratar de esqueletos femininos, seria uma prtica o no acompanhamento do enxoval, o que demonstraria existir uma diviso de classes por sexo. Nas sepulturas de cerca de 4.000 anos AP., sepultamento secundrio, os ossos foram arrumados e pintados com tinta vermelha e os esqueletos foram colocados numa cova forrada com uma laje plana horizontal e outras verticais rodeando-a (MARTIN, 2005: 308). Em outro sepultamento, junto ao descrito anteriormente e denominado de no 1, era primrio, do sexo masculino, com idade de aproximadamente 18 anos. Este encontrava-se em posio fletida e decbito lateral. Um fator interessante que sobre o trax deste esqueleto foi colocada uma laje oval de pedra micaxisto retirada do prprio abrigo; em torno do pescoo levava um colar com pingente de ossos de cervdeo e um apito tambm de osso. Uma leso no crnio faz pensar que teria sido atingido por uma flecha (op. cit : 310). Gabriela Martin tambm identificou nesta necrpole uma caracterstica interessante, principalmente com relao ao enterramento de crianas, como o de cobrir os ossos com pigmento vermelho, isso num segundo processo de sepultamento. Foi, verificado ainda no enterramento no15, sem datao e secundrio, dois esqueletos masculinos entre 20 e 22 anos, apresentando os ossos longos arrumados e os crnios colocados por cima, protegidos por Lages de pedra arentica procedente de uma canteira prxima. Como mobilirio fnebre, colares de pingente e contas de osso e um apito tambm de osso (MARTIN, 2005: 310). A explicao para uma diversidade imensa de formas de sepultamento justificado pelo longo processo cronolgico (temporal) de ocupao do abrigo, como necrpole. Outra necrpole tratada por Gabriela Martin e que serve de demonstrativo da heterogeneidade das formas de sepultamento e de rituais fnebres, so os resultados obtidos na Gruta do Padre. Enquanto no abrigo Pedra do Alexandre verificaram-se sepultamentos primrios e secundrios, na Gruta do Padre o ritual funerrio foi sempre secundrio, durante o perodo em que o local foi utilizado como cemitrio indgena, que segundo Martin (2005:310), pode ter atingido mil anos a partir de 2.000 anos BP. aproximadamente. O local pode ter servido para a cremao. Gabriela Martin observa em alguns lugares da gruta mais de 13
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um metro de cinzas, como ver, trata-se de mais um local especial pelas caractersticas que lhes so peculiares. A pesquisadora acredita que os corpos eram incinerados fora da gruta e suas cinzas e restos de ossos eram depositados no seu interior, sem obedecer uma ordem no processo de enterramento, sendo, inclusive, detectado a abertura de covas e o remeximento do terreno para a deposio de novas cinzas e restos carbonizados de novos mortos. A Furna do Estrago apresentou mais de oitenta esqueletos de adultos e crianas. A Furna foi ocupada por cerca de mil anos como cemitrio (entre 2.000 e 1.000 anos AP.), servindo como excelente fonte de conhecimentos sobre os processos de enterramentos funerrios e referencial para diversos estudos. Os enterramentos mais antigos so do tipo primrio com os corpos acondicionados em posio fletida. Uma caracterstica marcante neste cemitrio foi o uso da tcnica de sepultamento de fardo, quando o corpo envolvido em esteiras e sepultados. Gabriela Martin assegura que este tipo de enterramento era comum na regio dos Andes e que foi perfeitamente identificado na Furna do Estrago em bom estado de conservao. Tambm a tcnica em que a fossa funerria estava forrada com fibras vegetais dispostas no fundo da vala. Na Furna do Estrago, foram identificadas inmeras sepulturas acompanhadas de enxovais fnebres: colares e pingentes de pedra, de osso, conchas, sementes, dentes de animais e esptulas de animais diversos. Verificou-se tambm a existncia de fragmentos de ocre junto nuca e ao ventre de alguns esqueletos. Os recm-nascidos eram sepultados em pequenas cestas de fibras de palmeiras e embrulhados em esteiras de uricuri. Mas talvez a sepultura mais interessante seja a do FLAUTISTA. adulto do sexo masculino em posio fetal com as mos perto da face e que levava entre os braos uma flauta feita de uma tbia humana com um nico orifcio alm de um delicado cinto de fibras vegetais como adorno. O esqueleto levava tambm um colar de 31 contas de ossos de ave. A fossa funerria onde foi depositado estava forrada de fibras vegetais que envolviam tambm o seu corpo (LIMA, 1984). Identificou-se tambm atravs das sepulturas da Furna do Estrago que os indivduos ali inumados no eram ceramistas, pois no foi identificada cermica nos enxovais funerrios. Os fragmentos encontrados em algumas fossas foram considerados como intrusivos. Verificou-se tambm que na fase final de ocupao do abrigo houve uma mudana ritualstica no processo de sepultamento: deixou-se de praticar a inumao (enterramento), para se praticar a cremao, significando, talvez, a 14
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ocupao da regio por outros grupos que faziam uso de outras prticas ritualsticas. A partir dessas observaes verifica-se o perfil cultural dos vrios grupos humanos que ocupam a regio e fizeram uso do mesmo local para sepultarem seus mortos. O Stio do Justino teve um longo perodo de ocupao entre 2.000 e 8.000 anos AP. L, exumou-se esqueletos completos e incompletos, o que permitiu uma estimativa dos rituais funerrios empregados pelos habitantes prhistrico do baixo vale do So Francisco. O stio foi ocupado por grupos ceramistas, caadores e coletores, pois identificou na maioria dos enterramentos que vasilhas cermicas faziam parte do ritual e do enxoval fnebre. Um ponto que chamou ateno foi com relao a um enterramento em que aparece o esqueleto deitado em decbito dorsal completo, os braos esticados ao longo do corpo e que foram colocadas duas urnas sobre a cabea e o abdmen do indivduo. Esqueletos com essa mesma caracterstica foram encontrados por Valentin Calderon, em Curaa (BA), e na Toca do Gongo, em So Raimundo Nonato (PI). Outro sepultamento chamou a ateno no Stio Justino: trata-se de um esqueleto que teve o crnio depositado sobre uma laje de pedra recortada em forma circular, e outra laje semelhante foi colocada tambm sobre o abdmen (MARTIN, 2005: 313). Em outro, o crnio foi serrado no sentido longitudinal, as bordas polidas e as partes enterradas juntas com o restante do corpo. O que chama a ateno dos pesquisadores sobre esse importante jazigo a quantidade e a diversidade dos sepultamentos, demonstrando a heterogeneidade dos grupos humanos pr-histricos que habitam a regio. Fato importante analisado no Sitio Justino o uso do local como aldeamento, pois, encontraram-se vestgios arqueolgicos que comprovam tal hiptese, comum, inclusive entre grupos ceramistas pr-histricos da regio. Outros importantes enterramentos j foram identificados em quase todo o Nordeste, com caractersticas particulares. Um exemplo o caso de dois enterramentos da Toca do Paraguaio; abrigo que tambm contm pinturas rupestres e foram exumados dois esqueletos de adultos masculinos. Em suas covas, notaram-se formas ritualistas pouco comuns: estavam em posio estendida e decbito dorsal, com a cabea apoiada sobre uma pedra, depositada numa fossa de forma ablonga. Mas o notvel que a fossa estava recoberta de folhas e sementes de manioba e, apresentou um nico mobilirio fnebre: um seixo que possivelmente era utilizado como percutor, talvez 15
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mostrando ou indicando a atividade principal que aqueles indivduos praticavam. J na outra fossa, circular e rasa, delimitada por seixos, um sepultamento feminino, depositado em posio fletida, de idade estimada entre 35 e 40 anos. Segurando os ps, foi colocada uma pedra grande de arenito, com sinais de ter sido queimada. Conservava, ainda, restos do couro cabeludo e sobre o crnio foram colocados na fossa alguns seixos. Foi datada de 8.670 anos BP., a partir de carves coletados na fossa funerria (MARTIN, 2005: 313). Nesta sepultura, o fundo estava coberto por cinzas e seixos com sinais de uso, utilizados como moedores. Acredita-se que foram acesas fogueiras cerimoniais nas duas sepulturas expostas anteriormente, sem que houvesse interesse de queimar os corpos. Buque, estado de Pernambuco, foi escavado por Marcos Albuquerque, na dcada de 1970, apresentando dataes entre 2.780 at 6.640 anos AP. Neste cemitrio foram encontrados enterramentos. Primrios depositados em covas forradas com fibras tranadas. Alguns crnios estavam cobertos com uma espcie de cesta ou coifa, tambm de fibras tranada o que significaria, em nmeros redondos, uma data de 6.000 anos BP para uso do tranado e da cestaria pr-histrica em Pernambuco (MARTIN, 2005:315). Este cemitrio torna-se extremamente importante no pelos esqueletos ali exumados, mas pelas dataes conseguidas da cestaria, o que vem comprovar a antiguidade das prticas artesanais de cestaria no Nordeste prhistrico do Brasil. No Stio Alcobaa, Buique, tambm foi verificado enterramentos arrumados em covas com ferramentas de fibras, alm de sinais de cremao, comum em outros enterramentos e cemitrios de todo o Brasil. No cemitrio Caboclo, em Venturosa, Pernambuco, verificou-se uma outra prtica funerria: ossos humanos foram quebrados propositalmente, depois queimados e enterrados em fossas. Temos, portanto, outra prtica de rituais funerrios identificados no interior de Pernambuco. Gabriela Martin (2005: 315) apresenta o caso da Ilha de Zorobabel, Itacuruba, estado de Pernambuco, no mdio So Francisco. L, foi evidenciado: Isolados na rea ocupada por uma aldeia indgena ceramista. Em fossas com cinzas foram coletados ossos humanos e de animais quebrados e queimados. O mesmo ritual foi observado na Gruta do Gentio, tambm no Mdio So Francisco, em Minas Gerais, onde Ondemar Dias, que escavou a gruta, observou enterramentos de ossos humanos calcinados e misturados com ossos de animais, fato que se repete na Gruta da Foice. Ainda em Zorobabel, desta feita nas dunas, em Rodelas (BA), C. A. Etchevarne trabalhou com enterramentos primrios de dez indivduos, conside-
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-rando, supostamente, tratar-se de um cemitrio coletivo. No entanto, essa necrpole inspirou dvidas porque s um esqueleto foi encontrado completo, os demais apenas fragmentos. Tem sido comum o achamento de fragmentos de restos humanos em necrpoles do Nordeste o que, possivelmente esteja ligado ao elevado grau de Ph do solo na regio, bem como os altos nveis de salinidade. O solo salino no contribui para a preservao dos esqueletos.
A simbologia dos tmulos Desde a antiguidade que tem-se observado serem os tmulos dos ancestrais de um povo, locais de oferendas, cultos e devoes, principalmente os tmulos que Ribeiro (2007: 28) chama de hericos, ou seja, de indivduos que se destacaram naquelas sociedades. Os faras egpcios, por exemplo, tinham o costume de frequentar os tmulos de seus antigos reis, como forma de se buscar uma justificativa no passado que consolidasse o poder real naquele momento. Entre os gregos e romanos, relata Trigger (1989: 30) era comum a preservao de relquias valiosas do passado, para tanto, era at certo ponto comum abrir tmulos de antigos guerreiros e recuperar relquias de seus heris, preservando-as nos templos para contemplao, adorao e possivelmente um exemplo a ser seguido, numa espcie de nao, culto e continuidade de representao simblica do passado. Em cada perodo, didaticamente falando, da histria das sociedades do planeta, teremos um fator que ir prevalecer sobre outros, servindo como motivador de adorao e culto aos restos mortais do passado. J vimos que na antiguidade buscava-se uma representao do heri, a busca de algum ou algo que justificasse o vigor daquela polis. Na Idade Mdia, graas ao poder do catolicismo, passou a servir de tnica a orientao da adorao aos mortos. O perodo ser marcado pela busca das relquias dos santos, seus sepulcros e os possveis objetos neles contidos para contemplao e adorao. Marly Simes Ribeiro alerta para um ponto importante: a existncia de uma ruptura de ver o passado do homem medieval em relao ao homem na antiguidade (RIBEIRO, 2007: 28). Para os homens da antiguidade, o tempo era cclico, podendo ser representado; para os da Idade Mdia da Europa, no, o tempo era linear, caminhando para a frente sem que o passado possa retornar atravs de artefatos e rituais. Na Idade Mdia, h uma substituio do heri grego e romano pelo santo, o que direciona as escavaes para este sentido. Foi ainda a Idade Mdia, mediante as observaes e anlises feitas a partir da Bblia, que se criou uma primeira idia de antiguidade do homem: o dilvio durante muito tempo serviu de linha mediadora entre o antigo corrompido e o novo que 17
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nascera entre 5 e 7 mil anos com a grande inundao Bblica, o Dilvio. A partir da, a recorrncia no fim desse segundo mundo torna-se corriqueira, acreditando-se que o homem havia se corrompido novamente, esperando-se a qualquer momento a vingana de Deus, assim como acontecera na poca de No. O Renascimento faz surgir uma nova concepo sobre os mortos. O perodo ser marcado pela volta da razo para entender a relao homem/meio, em substituio ao sagrado que perdurou durante a Idade Mdia na Europa. Foi a partir dessa revoluo que permitiu ao homem elaborar formas perceptveis de visualizar melhor o seu passado, criando smbolos capazes de ajerir patamares de status. Desse perodo so os relatos de novas terras e gente diferente, que durante muito tempo servir de interpretao para entender a gnese do homem antigo, pr-diluviana, num primeiro ensaio etnogrfico da vida do homem. Segundo ainda Ribeiro (2007) no Renascimento que descobrem-se as diferenas entre passado e o presente, criando a idia de nacionalismo, permitindo que se conhea melhor o passado via estudos e observaes dos fatos e materiais do uso cotidiano dos que viveram h milhares de anos. Durante esse perodo, abrangia desde a numismtica at a histria das artes, da seu vnculo com a arte, o belo, que perdurou at meados do sculo XIX, quando Arqueologia toma rumos prprios, distanciando-se de uma proto-cincia e tornando o sentido de uma cincia. As escavaes que ocorreram durante esse longo perodo que vai do sculo XV ao XIX, sem dvida tinha o objetivo de recuperar bens preciosos para suprir as necessidades dos ricos da poca, colecionadores de objetos valiosos do mundo antigo. Entre alguns dos lugares preferidos para se escavar estavam os tmulos, especialmente os da Escandinvia e do Novo Mundo, dada a facilidade em se obter objetos valiosos e capazes de serem comercializados a alto preo. Data do sculo XVII as primeiras tentativas em sistematizar o processo de escavaes arqueolgicas, quando, Tremer no ano de 1688, fornece informaes de como exumar urnas funerrias. Nesse perodo, os antiqurios deram grande valor as atividades de desenterramentos de cemitrios, especialmente o que convencionou-se chamar na Europa de Campo de Urnas, em contrapartida, os assentamentos e outros achados arqueolgicos eram, at certo ponto, desprezados por no oferecer as riquezas de artefatos que os sepultamentos ofereciam. Com o Romantismo, fins do sculo XVIII incio do XIX, h uma tendncia natural a observao romntica pelo passado, especialmente pelos tmulos que representavam o homem, visto naqueles sculos como degenerado. O estudo desse homem do passado era visto como uma espcie de tornar a vida uma gerao de homens puros, distantes no tempo da gerao corrompida do sculo XIX.
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Com a retomada das relaes ocidente/oriente em meados dos sculos XVIII, os objetivos dos europeus continuava os mesmos: a rapinagem com o objetivo de suprir a sede dos antiquaristas da Europa. Os tmulos da sia, da forma que aconteceu, por exemplo, nos BARROWS da Inglaterra, tiveram os mesmos fins: destrudos sem muitas preocupaes cientficas com o objetivo nico de fornecer riquezas. Assim, para os antiquaristas, os tmulos eram vistos como meros locais de obteno de riquezas, preocupando-se muito pouco com o contexto do material arqueolgico encontrado. A partir do sculo XIX, as tcnicas de escavao, datao relativa, estratigrafia e seriao, passam a se constituir em mtodos da Arqueologia. Tais caractersticas eram utilizadas desde muito pelos antiquaristas, mas sua sistematizao s ocorre aps 1850, com o processo de sua sistematizao, organizao e processo de divulgao dos mtodos tcnicos e resultados de pesquisas (RIBEIRO, 2007). Mas, talvez, o fato mais importante que norteou a Arqueologia no sculo XIX, tenha sido o aperfeioamento do Sistema de Trs Dataes, por Thomsen, que dividiu a evoluo dos artefatos humanos em cinco perodos, relacionando-os s prticas funerrias. Assim temos: Na Idade da Pedra inicial predomina o uso de apenas artefatos de pedra; na Idade da Pedra tardia, h o incio do uso dos metais e os objetos comeam a ser enterrados juntos com os mortos, sendo estes cremados ou enterrados em tumbas megalticas. J na Idade do Bronze, as armas e instrumentos cortantes eram feitos em bronze ou cobre e os mortos so enterrados ou cremados em pequenos tmulos, sendo os artefatos decorados em forma de anel. Por fim, h duas fases da Idade do Ferro (Urnenfelder e Hallstatt), em que os artefatos cortantes so feitos em ferro temperado e o bronze usado em objetos decorativos. A distino destas fases se d pelos padres de decorao dos objetos: na primeira fase, desenhos de serpentes curvilneas; na segunda fase, drages e outros seres fantsticos, padro que se estende at o incio dos tempos histricos (RIBEIRO, 2007: 40). Thomsen cria a idia de padres culturais a partir da anlise de restos funerrios. Outro grande terico que contribui para interligar os estudos dos artefatos/ambiente, foi Worsoal que elaborou a tese de que os artefatos encontrados juntos, num mesmo ambiente, provavelmente foram, tambm, utilizados juntos. a partir desse norte que os tmulos passam a ser vistos como excelentes fontes documentais, pois comum encontrar-se artefatos diversos que pertenciam ao morto, uma verdadeira cpsula do tempo, no dizer de Marily Simes Ribeiro. Realizando-se o contraste pode-se chegar a identificao de uma cultura de ampla abrangncia territorial. A partir dessa 19
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observao pode-se tambm, por exemplo, perceber o status do indivduo dentro de um dado grupo, mediante o contraste de sepultamentos e os materiais encontrados num sepultamento junto ao cadver. No sculo XIX, mas precisamente em 1886, foi apresentado um novo enfoque com o objetivo de compreender e interpretar a simbologia fnebre (abordagem antropolgica) de um grupo que, inclusive ainda aceita nos meios cientficos: a de que os rituais morturios eram fruto do medo do esprito do morto e eram usados como meio de controle dos vivos sobre estes mortos. Assim, entende-se que ... as oferendas, as pedras sobre os tmulos e as vestimentas do morto so ilustraes deste temor e tentativas de controle (RIBEIRO, 2007: 45). O medo da morte e do morto, partindo do modelo exposto anteriormente, j fora percebido em sepultamentos, como aqueles ocorridos durante a Peste Negra em fins da Idade Mdia na Europa. Nas primeiras dcadas do sculo XX a Arqueologia Evolucionista continuava, com suas variantes Difusionista e Migracionista, enquanto tendncias explicativas, mostrar que o contato cultural entre grupos culturais distintos, causava alteraes na difuso e/ou migrao de traos culturais de um para outro grupo, numa reciprocidade nem sempre perceptvel para os indivduos dos grupos. Os estudos de prticas morturias do perodo visavam mostrar apenas as tipologias, buscando identificar contatos culturais, semelhanas ou no no processo de enterramento dos mortos. As duas correntes aqui tratadas partem do princpio que grupos tnicos distintos apresentam caractersticas culturais (materiais ou imateriais) semelhantes, devido a transferncia, amigvel ou no, entre os grupos. Para o Migracionismo a difuso dar-se atravs do deslocamento migratrio, enquanto que o Difusionismo admite a hiptese de um contato direto entre grupos, levando a uma suposta imitao ou compilao de certos traos culturais que antes era particular do primeiro grupo. Para os seguidores dessas correntes os tmulos so excelentes indicadores de difuso ou migrao de costumes dos processos de sepultamento. Esta vertente pode possibilitar entender e identificar fronteiras culturais, baseado na idia de que certo grupo cultural dominou uma regio e difundiu seu traos culturais na rea de ocupao. A grande questo destas correntes talvez esteja em no acreditar na criatividade humana, de inovar de acordo com suas novas necessidades motivadas por fatores diversos: hostilidade do ambiente, aumento demogrfico, etc. Trigger (1989: 151) assegura que esta linha pode ser contestada na medida em que no se leva em considerao a capacidade inventiva do homem, e que, de forma simultnea, venha a desenvolver objetos semelhantes em espaos geogrficos e perodos temporais diferentes. 20
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Partindo de uma viso Funcionalista, as relaes sociais de indivduos de um dado grupo tnico aparecem durante sua existncia, como tambm se manifestam no momento de sua morte: a morte desequilibra a organizao social, mas no aniquila a personalidade social do morto, apenas a transforma (RIBEIRO, 2007: 62); assim, atravs da observao e interpretao do cadver depositado no jazigo, bem como o material (enxoval) fnebre que acompanha o indivduo pode-se, na viso funcionalista, servir de compreenso do status social do indivduo dentro do grupo. Essa teoria levantada inicialmente por Radcliffe-Brown, em 1922, ser adotada e difundida amplamente por Binford na dcada de 1970. Dessa forma, tem sido nosso objetivo o de demonstrar atravs dos mortos e da morte como viviam os grupos humanos em dada regio da Paraba. No geral, a morte desde tempos imemoriais at hoje causa desconforto e, os rituais fnebres pode ser visto como uma quebra do medo, ou o medo pelo medo, um processo de reintegrao dos que ficaram, ou seja, dos que permanecem vivos, frente ao golpe da perda. O evento em si gera emoo, pois uma manifestao social em homenagem quele que partiu, sem que o grupo tenha uma explicao lgica. Para o fato o certo que a solidariedade social foi quebrada, houve um rompimento do elo natural que unia a todo do grupo. Dar conforto ao morto pode ser visto, percebido e apreendido como uma forma de gratido, tristeza, dor pela partida, mas medo pelo retorno. O ritual pode ser encarado como sendo, tambm, uma forma de agradar a prpria morte, fazendo-a permanecer no suposto lugar que est distante dos vivos. A partir de 1960, entre em cena uma nova verso da arqueologia com cunho mais interpretativo que ir vigorar no final do sculo XX e incio do XXI. A necessidade em tornar a Arqueologia uma cincia interpretativa e no somente descritiva, partiu de Bennet e Taylor nos anos de 1943 e 1948, respectivamente; foi s a partir de 1962 que Binford consegue a to essencial reestruturao da Arqueologia, tornando-a uma cincia aberta, realmente interdisciplinar, principalmente por se buscar a unio entre a Arqueologia e a Antropologia. Sendo assim, Binford (1962) consegue o inusitado ao sugerir que haja uma compreenso da cultura dos grupos humanos atravs de sua cultura material, reconstruindo o comportamento humano de tais grupos. A base terica da Nova Arqueologia baseou-se na Teoria Geral dos Sistemas (TGS), que passou a ver a cultura no apenas como uma estrutura esttica, mas sim como processos que auto se complementam. As alteraes no sistema social de um grupo so respostas aos fatores externos e internos ao qual o grupo est intrinsecamente ligado. A Nova Arqueologia possibilita, entre outras coisas, a reconstruo do meio ambiente e a compreenso dos vestgios 21
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dentro de um contexto cultural. O estudo de necrpoles pode fornecer tais dados na medida em que os materiais arqueolgicos possibilitam a reconstituio dos subsistemas da organizao de um grupo, economicamente, socialmente, politicamente, culturalmente e ambientalmente falando, sendo esta ltima varivel de suma importncia no processo dos ambientes passados (paleoambiente) e, portanto, o modus de vida das populaes. Fundamental nesse perodo a lei denominada de o princpio do Menor Esforo, de Leslie White que parte do princpio que um stio no est isolado, mas sim faz parte de um contexto macro, pois os grupos humanos necessitam realizar o menos de esforo possvel para conseguir o mximo para a sua sobrevivncia, da que, tal lei, serve como referencial para a compreenso do macro, a partir do estudo do micro, que pode ser um simples cemitrio indgena, como estamos a abordar a partir do estudo de uma necrpole no Cariri Paraibano. A partir do estudo de uma necrpole, dentro de uma abordagem dos estudos das prticas funerrias de um grupo tnico, as contribuies para a reconstruo do passado so imensas: afora as explicitadas anteriormente, a reconstruo do paleoambiental mediante a anlise de plen e restos ou vestgios alimentares nas sepulturas, associados aos objetos (enxoval) pode fornecer dados precisos acerca das condies ecolgicas do passado. Da mesma forma que a Nova Arqueologia v nos sepultamentos uma excelente fonte de dados para compreender o mundo pr-histrico, a busca por assentamentos e o estudo do seu contexto torna-se imprescindvel nos estudos arqueolgicos contemporneos. Ponto fundamental que advm com a Nova Arqueologia o cruzamento de culturas, mediante, por exemplo, o contraste, seja de materiais arqueolgicos de supostos grupos tnicos diferentes, ou no contraste das prprias hipteses levantadas. Portanto, o uso da analogia tornou-se ferramenta indispensvel na Arqueologia Processual e Ps-Processual. Podese entender a situao scio/cultural/ambiental de um grupo pouco conhecido mediante comparaes com grupos similares j estudados pela cincia. A questo da anlise comparativa em prticas morturias foi inaugurado por Ucko a partir de 1969, sistematizando a prtica de analogias para entender o comportamento humano. Binford (1971: 9-10) sinaliza com uma questo de suma importncia que vem sendo discutida desde o incio do sculo XX: a vida social. Atravs do tratamento dado ao corpo ps-morte, bem como, o maior grau de ruptura nas atividades do grupo para inumar o indivduo, com o objetivo de dar um melhor 22
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tratamento morturio, pode ser um forte indicador capaz de reconstituir desde a posio do morto no grupo, como o grupo em si e o ambiente em que viveram e morreram. A morte como fonte de informaoA grande contribuio da Arqueologia das prticas morturias talvez esteja em fazer com que os mortos falem pelos vivos, mediante a anlise de variveis como idade, sexo e status social via anlise do enxoval fnebre que por ventura contenha na cova associado ao cadver. A complexidade de certo grupo tnico pode refletir na representao da morte, via processo de inumao de um indivduo. O achamento de prticas ritualsticas diferentes numa mesma necrpole pode muito bem mostrar caminhos distintos: primeiro que o grau de complexidade da sociedade evoluiu a tal ponto que se diversificou o sistema de sepultamento da populao; segundo, pode indicar que um grupo sobrepujou o outro, impondo seus costumes, enfim sua cultura, mediante a anlise de elementos da cultura material que prevaleceu no grupo invadido, o que foge completamente ao que pregava o Difusionismo e o Migracionismo. A Nova Arqueologia possibilitou atravs da Arqueologia Comportamental, a possibilidade de reconstruir o comportamento dos grupos humanos que deram origem aos restos arqueolgicos. Desde Binford, a partir de 1962, que esta linha vem conseguindo novos adeptos, pois a possibilidade de compreenso do contexto da vida do grupo, oferecendo condies bsicas de ler o passado e, a partir da, traar o perfil cultural de um grupo. Assim, Marily Simes Ribeiro aponta os cinco princpios bsicos capazes de explicar, via material arqueolgico, o funcionamento social do grupo, sendo o estudo de necrpoles locais ideais para aplicar tal mtodo: procura, manufatura, uso, manuteno e descarte. Outros processos so vistos como secundrios: estocagem, transporte e reciclagem dos objetos manufaturados encontrados em contexto com os esqueletos. Parte-se do princpio de que os vestgios arqueolgicos produzidos pela mo do homem podem nos oferecer as condies bsicas para conhecer as atividades do grupo que os produziram. A Arqueologia Comportamental considera o material encontrado numa necrpole como sendo ou no de descarte social, em outras palavras, o descarte pode ser visto, tambm, como materiais que no mais eram teis para o indivduo, pois que estava morto, nem mais para o grupo, pois aqueles materiais pertenciam ao que havia morrido, portanto, deveria acompanhar seu dono. Por outro lado, o material encontrado no tmulo pode ser visto, ainda, como uma re-significao do objeto, que perdera sua significao originria e passa a ter uma nova funo simblica, de, por exemplo, acompanhar seu dono numa vida alm tmulo.
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Foi com Lvi-Strauss, nos anos de 1960, que se cria o processo de ordenamento, possibilitando a classificao das semelhanas e diferenas, essencial para traar perfis culturais de grupos humanos que habitaram uma mesma regio. A Arqueologia Ps-Processual, uma das tendncias a qual tentaremos enquadrar nosso trabalho, surge nos idos da dcada de 1980, como uma contra-proposta a Arqueologia Processual. A Arqueologia Ps-Processual visa o reencontro com a Histria, entendendo as sociedades arqueologicamente estudadas via os materiais arqueolgicos por estas produzidas, atravs de uma perspectiva diacrnica, rompendo com a busca por leis universais capazes de explicar universalmente o comportamento humano. Nessa nova perspectiva, cada sociedade tem suas especificidades, com caractersticas prprias, geradora de sua prpria histria. Na Arqueologia Ps-Processual a Arqueologia postulada como sntese histrica, aproximando-se da Antropologia para melhor compreenso do comportamento do homem em relao ao meio e ao seu prprio grupo. O Ps-Processualismo visa a compreenso mais geral do homem dentro do grupo. Existe a possibilidade no s em descrever os vestgios arqueolgicos de um stio, mas compreender as alteraes sociais, polticas, econmicas e ambientais deste e do grupo, numa constante inter-relao de dinamismo social. A Arqueologia PsProcessual apresenta papel significativo no tocante a compreenso do papel do indivduo dentro de um contexto arqueolgico, ressaltando o papel do indivduo enquanto agente social transformador da cultura de um certo grupo cultural (RIBEIRO, 2007: 93). Neste sentido, a cultura material permite, partindo de uma viso PsProcessual, realizar uma leitura de significados, capaz de interpretar o cotidiano de indivduos pertencentes a um dado grupo tnico. A Arqueologia PsProcessual conseguiu sistematizar o estudo da vida atravs da anlise da morte. Os mortos falam aos vivos, simbolizam a si mesmo, representam aquilo que se quer que se pense sobre a famlia, sobre o grupo social e sobre o morto (RIBEIRO, 2007: 96). O sepultamento do corpo visto como mais uma etapa social e no como um mero resduo incidental. O funeral visto como um reflexo da sociedade dos grupos dos vivos, servindo para a (re) construo mesmo que parcial, do mundo dos vivos dos grupos humanos passados. A Arqueologia Ps-Processual faz largo uso de anlises sseas, o que tem permitido um significado avano das interpretaes a partir de dados provenientes dessas anlises; j se observa ser capaz de identificar doenas, dietas, momentos de stress, etc; atravs da Osteoarquoelogia, em suma, da anlise dos restos sseos encontrados nos stios. O estudo dos ossos de ve ser
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precedido do estudo do local onde os mesmos foram encontrados, pois que o meio influencia a qualidade do material sseo encontrado. Atravs do estudo qumico, por exemplo, dos dentes, pode-se chegar a uma possvel dieta do grupo, de modo a poder se chegar a uma provvel economia do grupo. Os desgastes dos ossos podem servir como indicativo das atividades cotidianas desenvolvidas pelos membros do grupo. Atravs de uma anlise mais acurada dos ossos, pode-se chegar, por exemplo, via DNA ou C 14, a idade, sexo, doenas hereditrias, etnias, etc. Serve-se atualmente da anlise ssea para se chegar a pistas que sejam capazes de identificar rituais morturios, como por exemplo, marcas nos ossos podem servir, depois de uma profunda anlise, para perceber que instrumentos cortantes foram utilizados para o descarne num ritual secundrio ps-morte. Essa anlise pode mostrar, tambm, o perfil de adaptao do indivduo e por extenso do grupo, ao meio, bem como, atravs do Nmero Mnimo de Indivduo (NMI), quando da impossibilidade em se contar o nmero de esqueleto, ter uma idia da quantidade de corpos inumados numa necrpole. Esse tipo de estudo pode, inclusive, chegarem a estudos demogrficos de uma regio, a partir dos vestgios funerrios, sendo capaz de se oferecer estimativas populacionais, relaes entre gneros, taxas de mortalidade infantil, expectativa de vida ao nascer, etc. Trata-se de um novo ramo da Arqueologia denominada de Paleodemografia, pouco estudado por sinal. Questiona-se, por exemplo, se uma necrpole pode realmente servir de testemunho ocular para o estudo demogrfico, pois nem todos foram ali enterrados; e aqueles que morreram em guerra longe de seus acampamentos (comum desde a prhistria e largamente relatado pela etnografia)? possvel que os mortos inimigos sejam sepultados no territrio que pereceram? Para Ribeiro (2007: 113), sim, o que geraria o fenmeno da transumncia, ou seja, os mortos de uma mesma populao poderiam deixar seus vestgios em diversos locais afastados de suas comunidades de origem. Uma necrpole indgena torna-se para o Arquelogo uma importante fonte de informaes. Um stio cemitrio, segundo Binford (1971), Ribeiro (2007) pode ser considerado, ao menos sua estruturao organizacional, um reflexo da organizao social do grupo que o produziu. Visto a partir da Teoria do Reflexo, o mundo dos mortos pode ser visto como uma extenso do mundo dos vivos. Uma necrpole no pode ser vista como algo distante, ela deve ser interpretada como uma extenso do grupo tnico que o produziu, que escolheu o lugar para ali depositar seus entes queridos.
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Numa viso Ps-Processual, as crticas so muitas com relao a ver um cemitrio como reflexo dos vivos que os produziu, pois, segundo Ribeiro (2007: 154), os vestgios materiais encontrados nos tmulos so analisados como reflexos dos vivos, manter a viso da cultura material como uma ao fossilizada. Mas o prprio Binford quem afirma ser um cemitrio um local capaz de refletir uma sociedade.
Referncias BINFORD, L. R. Archeology as anthropology, American antiquity 28, 1962. (traduo para o Castellano, Arqueologa como antropologia, publicado en cuadernos de antropologia social y etnologia 3, 41-56, Madrid, 1971. ______. Mortuary Practices: Their Study and their potencial. In: Brown, J. A. 1971. COLL, Josefina Oliva de. A resistncia indgena: do Mxico a Patagnia, a histria da luta dos ndios contra os conquistadores. Porto Alegre: L 8. Pm Editores, 1974. LIMA, Janete Dias de. Pesquisas arqueolgicas no municpio de Brejo da Madre de Deus. Symposium, v. 26, n.1, Recife, UNICAMP, p. 9-60 il. 1984. MARTIN, Gabriela. Pr-histria do Nordeste do Brasil. 5. ed. Recife: UFPE, 2005. TRIGGER, B. A History of Archaeological thought. Cambridge: C. U.P., 1989. RIBEIRO, Marily Simes. Arqueologia das prticas morturias: Uma abordagem historiogrfica. So Paulo: Alameda, 2007.
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Cap.II
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PR-HISTRIA & UFOLOGIACarlos Alberto AzevedoAntroplogo, Chefe da Diviso de Stios Histricos e Ecolgicos do IPHAEP, Scio do Instituto Histrico e Geogrfico da Paraba e da Sociedade Paraibana de Arqueologia. E-mail: [email protected] .
A presena de objetos voadores extraterrestres na pr-histria brasileira foi objeto de vrios estudos: Dniken (1969), Ramondot (1985), Brito (1989), Mauso (1995), Trevas (1995), Santos (2003), Luz (2005). Muitos at escritos por arquelogos. No deixa de ser fascinante a maioria de suas interpretaes luz da ufologia, porm nada h de cientfico, so apenas enunciados pseudo-cientficos, sem base de sustentabilidade na arqueologia. Cincia que procura a verdade relativa dos fatos (evidncias), pois a verdade absoluta no existe: A arqueologia uma cincia construda em base diferente das das outras. Valoriza-se os indcios, vestgios de populaes pretritas nisso reside a sua relatividade (PROUS, 2006:41).
A arqueologia trabalha com evidncias, indcios, para, ento, inferir, deduzir, elaborar novas hipteses. Mas tudo provisrio, sujeito mudanas. Uma afirmao feita hoje, poder ser questionada amanh nisso reside a sua relatividade, como acentua Prous. Na teoria arqueolgica esto registradas as mais variadas interpretaes das evidncias arqueolgicas cada corrente imprime uma nova interpretao dos fatos. Da arqueologia processual ps-processual temos vrias abordagens, uma gama enorme de interpretaes, contudo, todas elas no fogem lgica cientfica cincia e bom senso andam juntos. J na ufologia, vemos o contrrio: no h bom senso nem verdade relativa. Predomina a verdade absoluta: os OVNIS existem, logo... O prximo passo provar a influncia de extraterrestres no planeta Terra da prhistria aos tempos atuais. A ufologia trabalha com afirmaes irrefutveis: As afirmaes irrefutveis no fazem parte da cincia (grifo nosso), mas dos mitos (HAGENBERG, 1973: 38).
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Alguns monumentos da pr-histria mundial so interpretados por uflogos como obras de seres extraterrestres: as Linhas da Plancie de Nazca, no Peru (linhas quilomtricas que se estendem em vrias direes, representando seres mitolgicos, animais, plantas e pssaros); o Crculo de Pedras de Stonehenge (Inglaterra); os Gigantes de Tiahuanaco (na regio do lago Titicaca, na Bolvia); as Esculturas Gigantescas (os moais), na Ilha de Pscoa (Chile); Sete Cidades (PI); a Pedra do Ing (PB). Todos esses lugares arqueolgicos so meca de uflogos e de arquelogos maneira de Indiana Jones. Mas, tambm, muitos desses lugares foram estudados por cientistas srios, como Maria Reiche, que pesquisou durante muitos anos as Linhas de Nazca; Alfred Mtraux que fez prospeces arqueolgicas na Ilha de Pscoa e a arqueloga Gabriela Martin que dedicou vrios estudos Pedra do Ing. A pedra do ing: obra de extraterrestre? Nenhum stio pr-histrico com pinturas ou gravuras rupestres, em todo o Brasil atraiu tantas pessoas dispostas a opinar e decifrar, como a Pedra do Ing, cujo impacto visual impressiona os leigos e desafia a arqueologia (MARTIN, 1996: 272). Desafia, tambm, muitos uflogos e arquelogos (com aspas), pseudo-cientistas. Muito j se escreveu sobre as Itacoatiaras de Ing, mas, ainda hoje, no temos um trabalho exaustivo sobre esse monumento rupestre da nossa pr-histria. O que vemos, sim, com freqncia, so estudos sem nenhum respaldo cientfico, como o de Gilvan de Brito: Viagem ao desconhecido O segredo da Pedra do Ing (1989), que se enveredou pelo lado visionrio do misticismo, para explicar as origens dos stios rupestres, conseguindo ver nas Itacoatiaras de Ing possveis gravuras de seres extraterrestres. Essas vises distorcidas e fantasiosas sobre o povoamento pr-histrico da regio podem ser explicados pela pouca relevncia cientfica que se dava temtica, contribuindo para o surgimento e proliferao de pensamentos dessa natureza (SANTOS, 2006: 62). Talvez a explicao para isso, seja o aparecimento no Brasil das obras de Erich von Dniken. Eram os deuses astronautas?, data de 1969. E um ano depois, em 1970, editado deste mesmo autor De volta s estrelas. Este livro teve duas edies em um ano. Com Dniken, desencadeia uma onda de irracionalismo que, de certa forma, afetou muitos estudos na rea de arqueologia. Passou-se a misturar arqueologia com ufologia. Arquelogos recorrem ufologia, como Jacques 30
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Ramondot, na Paraba. Ramondot era Cnsul Honorrio da Frana, em Joo Pessoa. Foi o fundador da Sociedade de Pesquisas Arqueolgicas da Frana. Residiu vrios anos na Capital e, segundo Brito (1993: 47), dedicou-se, por alguns anos, ao estudo da Pedra do Ing. Pouco se sabe da presena desse arquelogo e erudito francs na Paraba. Sabe-se apenas que ele exerceu certa influncia sobre Gilvan de Brito. Em Viagem ao desconhecido, h vrias menes a Ramondot. Cita tambm muitos uflogos e arquelogos, a exemplo de Charles Berlitz, Pierre Carnac, W.S. Cerv, Ivar Lissner, Patrik Ferrin e Ivan Verheiden, estes dois ltimos so autores de Os grandes enigmas da arqueologia. Os autores paraibanos citados so Horcio de Almeida (Histria da Paraba), Ruth Almeida (A arte rupestre nos Cariris Velhos) e Leon F.R. Clerot (Trinta anos na Paraba). Refere-se bastante a Jacques Ramondot no corpus do seu estudo, porm no o menciona na bibliografia. Outra omisso Erich von Dniken no se sabe o porqu dessa omisso. O fato que as idias de Dniken e de Ramondot marcaram o texto de Brito. De Ramondot diz Brito:O professor Jacques Ramondot no tem uma idia formada a respeito das inscries que poderiam representar o testemunho de um culto primitivo s foras da natureza ou, quem sabe, a transmisso grfica para a posterioridade da visita de astronautas aos indgenas da regio. Realisticamente ele diz que gostaria de acreditar em sonhos extraterrestres, ou pelo menos ter provas suficientes para concluir que as inscries de Ing foram feitas por seres de outro planeta (BRITO, 1993:46).
Entretanto, o pesquisador Ramondot (tenha ou no uma idia formada a respeito das inscries de Ing) quem motiva essas idias pseudocientficas desenvolvidas pelo autor de Viagem ao desconhecido. Brito envereda-se pelos caminhos do irracionalismo puro, uma espcie de Holzweg (Heidegger), para interpretar os enigmas das Itacoatiaras. Insiste em dizer que a Pedra Lavrada do Ing obra de extraterrestre: Baseado no fato dos registros rupestres poderamos usar as teorias cientficas para supor a presena de enviados de outro mundo galctico, capaz de transpor-se em velocidade superior da luz, desembarcando diante da Pedra do Ing e registrando sua passagem atravs de escritos cujos significados ainda hoje vo alm dos nossos conhecimentos. 31
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(...) A idia da presena de extraterrestres no Ing pode parecer absurda, porm esta uma possibilidade que no deve ser afastada, diante de alguns indcios: quando os portugueses aqui chegaram foram informados da existncia das inscries de Ing e verificaram que na poca os habitantes da regio, os ndios Cariris, encontravam-se na Idade da Pedra Polida, desconhecendo o metal ou qualquer outro instrumento capaz de realizar com sucesso os simtricos e profundos traos, de perfeito talhe e excelente polimento. (...) Estimulando a nossa imaginao, vamos encontrar, no painel vertical da Pedra do Ing, um pictograma que lembra uma nave espacial, centrada entre as principais inscries, incluindo entre os quatro maiores ideogramas de todos quanto so observados (BRITO, 1993: 57:58).
Essa a mesma opinio do uflogo Gilberto Santos, presidente do Centro Paraibano de Ufologia. Ele acredita que os registros grficos do Ing foram feitos com uso de raio laser por aliengenas h milhares de anos, quando supostamente visitaram a Terra (BRITO, 2006:2). Nota-se que Gilvan de Brito e Gilberto dos Santos distanciam-se de pesquisadores srios, para dialogar com Dniken e outros autores. Todos eles sem nenhum reconhecimento por parte da comunidade cientfica. Em 1995, chega ao Brasil, o jornalista e pesquisador espanhol Pablo Villarubia Mauso, para fazer pesquisas e reportagens sobre a Pedra do Ing e outros lugares arqueolgicos do Estado da Paraba. Mauso militava h vrios anos no jornalismo cientfico arqueolgico, chegando a publicar vrias matrias sobre arqueologia e ufologia, inclusive no Globo Cincia. Viajou pela Amrica Latina e Norte da frica, procura de informaes sobre OVNIs e evidncias de extraterrestres em stios histricos e arqueolgicos, como Machu Picchu (Peru). A contribuio de Mauso deixou muito a desejar at mesmo como jornalista seu jornalismo cientfico apelou para o sensacionalismo. O resultado de suas pesquisas foi publicado numa revista espanhola: El mistrio da Paraba, en busca de OVNIS e inscripciones prehistricas en Brasil (Revista Enigmas del Hombre, 1995). Mauso defende a tese de que o fenmeno dos discos voadores aparece mais em locais ermos ou em locais que existam registros arqueolgicos ou 32
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fenmenos paranormais (AZEVEDO FILHO: 1995:6). Por isso, limitou, ento, a rea de suas pesquisas a Ing e Cabaceiras. Quanto a pesquisa de Mali Trevas no stio rupestre de Ing, em 1995, pouco somou aos estudos da Pedra Lavrada. Fez vrias escavaes paleontolgicas no municpio, escavaes que no levaram a nada toda escavao destruio. A arqueloga Trevas foi quem deu apoio cientfico a Pablo Villarrubia Mauso na Paraba:Mali Trevas, a lm de no deixar textos referentes s suas pesquisas, acabou por dirigir sua vitalidade e conhecimentos para meios sensacionalistas. Servindo de guia para uflogos amadores estrangeiros, no se importando se seu nome se envolvia em matrias jornalsticas de cunho especulativo sobre colonizao extraterrestre ou conjunturas platnicas na Paraba (BRITO, 2006:2).
Realmente, nenhum stio pr-histrico com pinturas ou gravuras rupestres, em todo Brasil, atraiu tantas pessoas dispostas a opinar e decifrar, como a Pedra do Ing (MARTIN, 1996). lamentvel, porm, que muitas dessas opinies no correspondam realidade dos fatos muitas interpretaes fogem lgica e ao bom senso. Falsas evidncias de extraterrestres na Pr-Histria da Paraba As pesquisas dos uflogos no se limitam apenas s inscries pr-histricas de Ing, eles procuram outras evidncias de extraterrestres em vrios lugares da Paraba. De fato, os pesquisadores ligados teoria dos extraterrestres de Erich von Dniken, produziram muitos textos para provar a presena de inteligncias extraterrestres na nossa pr-histria. Principalmente, textos sobre inscries rupestres que, para os uflogos, elas narram a vinda de seres aliengenas a nosso planeta:
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Devemos destacar tambm uma certa fonte de provas para atestar a presena de inteligncias extraplanetrias na aurora da humanidade terrestre: as pinturas rupestres, formadas por desenhos feitos ainda na pr-histria, em grutas, cavernas ou mesmo em rochas dispersas. Alm da importncia arqueolgica, a manifestao artstica de nossos antepassados constitui uma excelente forma de notarmos a antiguidade da presena de extraterrestres na Terra (LUZ, 2005:24).
Voltam-se esses pesquisadores, quase sempre, para edificaes gigantescas da pr-histria. No caso da Paraba, no h essas edificaes, ento, a Muralha do Meio do Mundo serve como objeto de pesquisa. A Muralha do Meio do MundoA Muralha do Meio do Mundo uma imensa formao rochosa natural e retilnea que atravessa vrios municpios do Cariri paraibano, numa extenso de aproximadamente 115 quilmetros. Merece destaque uma forma de afloramento, alinhado e descontnuo, conhecido como a Muralha do Meio do Mundo, bem observada no municpio de So Joo do Cariri. Corresponde a intruses de rochas de caractersticas granticas (granitos alcalinos-sienitos) que se salientam no relevo por se apresentarem mais resistentes eroso diferencial (RODRIGUEZ, 2000:11). A Muralha do Meio do Mundo, com um recorte brusco no relevo, apresenta formas bizarras. A leitura dessa formao geolgica bastante rica: obra de holandeses, runas de um antigo aqueduto feito por fencios, muralha construda por extraterrestres. A Muralha do Meio do Mundo, hoje, faz parte do imaginrio popular do Cariri. H quem veja nessas formaes rochosas antigos monumentos dolmens. Marco territorial, usado por povos pr-histricos. Questiona-se, principalmente, quem empilhou cada menir. Pedras que pesavam vrias toneladas. Gilvan de Brito se refere Muralha do Meio do Mundo como um grande enigma, to significativo do ponto de vista arqueolgico quanto o da Pedra do Ing (BRITO, 1993:109). No se trata de um enigma arqueolgico. No h quase manifestaes culturais em muitas reas da Muralha. Vamos encontrar apenas trs stios rupestres. Sendo o mais importante deles o stio Picoito.
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Brito enfatiza que a Muralha obra humana. Sugere nas entrelinhas a idia de um enorme aqueduto na regio dos Cariris Velhos. Mas quem o fez? Como foram transportados os enormes blocos para o local? Quem, na poca, teria tecnologia para executar um aqueduto? Segundo a lgica de Brito, foram os deuses astronautas.
Pinturas rupestres do stio Picoitos, municpio de So Joo do Cariri-PB
As Inscries Rupestres da Fazenda Serra BrancaVoltemos, ainda, s idias de Gilvan de Brito que, a todo custo, quer reconstruir o passado pr-histrico da Paraba, centrado na teoria de Erich von Dniken. Brito e Dniken procuram sempre preciosidades arqueolgicas esto interessados mais nas singularidades do que nos fatos arqueolgicos puros, que falam por si mesmos. Lidam com inmeros indcios, oriundos de vrias partes do mundo. De Stonehenge, perto de Salisbury, na Inglaterra, Pedra do Ing, no interior da Paraba. Ambos autores manipulam a informao arqueolgica com tendenciosidade, para provar, em alguns casos, o registro de povos extraterrestres na pr-histria. Para isso, recorrem pintura e gravuras rupestres. Dniken retira seus exemplos dos stios arqueolgicos de Val Camonica, Itlia e vrios outros stios situados na frica. J Brito, para sua exemplificao, recorre Pedra do Ing e alguns stios pr-histricos localizados em Vieirpolis-PB. Trabalham com interpretaes de pinturas e gravuras rupestres tentam visualizar (identificar?) nos desenhos rupestres seres vestidos de cosmonautas. Vultos gigantescos talhados em nichos rochosos da Rodsia, ou nos mataces do Serto. Vejamos, primeiramente, a leitura de Dniken, de alguns painis de stios rupestres:
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A figura desenhada nesta pintura rupestre, em Ti-nTazarift, no Tassili, parece vestida de um macaco bem colante de astronauta, com instrumentos de comando nos ombros e varetas de antenas no capacete protetor (DNIKEN, 1970:32).
E ainda:No stio pr-histrico do Tassili, no Saara: vem-se vultos em roupagens estranhas. Portam capacetes redondos e antenas sobre a cabea e parecem flutuar sem gravidade, no espao (...) Cinco figuras flutuantes que acompanham a esfera portam capacetes nas cabeas, boinas agarradas, brancas com pingos vermelhos, ou vermelhas, de pingos brancos; so notoriamente, capacetes coloridos. Capacetes de astronautas (DNIKEN, 1970:81-83).
As pinturas descritas por Dniken poderiam ser cenas de caa, ou figuras de caadores-coletores do Paleoltico Superior, participando de algum ritual. Gilvan de Brito usa a mesma metodologia de Dniken uma pretensa antropologia visual que pina imagens. Essas imagens (antropomrficas, zoomrficas, fitomrficas) so selecionadas, conforme o interesse do pesquisador: vejo aquilo que quero ver. Tendncia muito comum entre arquelogos que analisam painis rupestres. O melhor exemplo disso a interpretao das Procisses dos homens e mulheres para cena do parto Lagoa Santa, Minas Gerais (cf. GASPAR, 2005:72). Utilizando a mesma tcnica (vejo aquilo que quero ver), Brito usa os registros rupestres da fazenda Serra Branca, em Vieirpolis, para provar a teoria da presena aliengena no Serto:Os litglifos esto insculpidos na entrada de uma caverna, at uma altura de dois metros, a oeste da formao rochosa (...). V-se figura parecida com um OVNI tendo ao lado o que se assemelha a duas pessoas. Acima, o mesmo objeto no identificado, de antena recolhida, no ar, antes de penetrar numa formao de nuvens. No alto, formaes que lembram duas constelaes (BRITO, 1993 : 95).
A suposta nave espacial com dois seres aliengenas, descrita pelo autor de Viagem ao desconhecido, no difere muito das imagens interpretadas por Dniken, no stio pr-histrico do Tassili. 36
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A crena em extraterrestres leva a tendencio-sidade. H uma falsa percepo dos litglifos. Quase todo uflogo acredita que muitos registros rupestres descrevem seres aliengenas que visitaram a Terra. Brito (1993:96) termina sua incipiente anlise, afirmando que o painel das inscries da fazenda Serra Branca lembra a subida de uma nave espacial. Infelizmente, os possveis cdigos de comunicao dos caadores-coletores, ou seja, os registros rupestres, foram traduzidos como evidncias da presena aliengena no nosso planeta.
Consideraes Finais
Pinturas de Serra Branca
Questiona-se a postura de uflogos e arquelogos em relao a prhistria. Mas no se tentou corrigir nenhum modelo de pr-histria, como o fez acertadamente Belarmino Alves (2006): Que pr-histria queremos para a Paraba? O objetivo principal deste estudo foi criticar a atitude pseudocientfica que se tem diante das materialidades culturais interpretaes da pr-histria regional luz da ufologia. Essas interpretaes no tm base de sustentabilidade na arqueologia so dados anedticos que, quando muito, fazem parte da arqueologia fantstica. Fogem lgica e ao bom senso. Partiu-se das interpretaes de Dniken que influenciou vrios estudiosos da pr-histria no Brasil. A teoria ufolgica de Dniken teve muita aceitao na Paraba, principalmente entre arquelogos Mali Trevas e Jacques Ramondot tambm influenciou outros pesquisadores: Gilvan de Brito e Zilma Ferreira Pinto, autora de Nas pegadas de So Tom (1993). Outra influncia que se constatou foi a exercida por Mauso (1995), com sua arqueologia fantstica aguou a imaginao de uflogos na Paraba. Mauso foi responsvel por falsas interpretaes de monumentos arqueolgicos. Da Pedra do Ing s pinturas rupestres de Boqueiro. Mas o exemplo mesmo de m-interpretao da pr-histria local nos foi dado por Brito, no seu estudo Viagem ao desconhecido. Com este texto, originou-se uma srie de interpretaes errneas sobre a Pedra Lavrada do Ing.
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RefernciasALVES, Carlos Antonio Belarmino. Que pr-histria queremos para a Paraba? In: SANTOS, Juvandi de Souza (Org.). Pr-histria: uma coletnea de textos didticos. Campina Grande: JRC, 2006. AZEVEDO FILHO, Carlos Alberto Farias de. Espanhol pesquisa Pedra do Ing. Correio da Paraba, Joo Pessoa, 19 de dezembro de 1995. BRITO, Gilvan de. Viagem ao desconhecido. Os segredos da Pedra do Ing. 3 ed. Braslia: Grfica do Senado, 1993. p. 47-109. BRITO,Vanderley de. Histria da arqueologia na Paraba. Monografia. Campina Grande: Universidade Estadual da Paraba UEPB, 2003. _______. As pesquisas de Mali Trevas na Paraba. Dirio da Borborema, Campina Grande, p. 2, 22 de agosto de 2006. DNIKEN, Erich von. Eram os deuses astronautas? Enigmas indecifrados do passado. 6 ed. Traduo E.G. Kalmus. S. Paulo: Melhoramentos. 1970. _______. De volta s estrelas. Argumentos para o impossvel. 2 ed. Traduo: Else Gray Kalmus. So Paulo: Edies Melhoramentos, 1970. GASPAR, Madu. A arte rupestre no Brasil. Rio: Zahar. Ed., 2003. p. 72. HAGENBERG, Lenidas. Explicaes cientficas: introduo filosofia da cincia. 2 ed. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1973. p. 38. LUZ, Luiz Ricardo da. Ufologia na pr-histria. ALIEN. Revista de Pesquisas Ufolgicas, So Paulo, 2005. MARTIN, Gabriela. Pr-histria do Nordeste do Brasil. Recife: Editora Universitria da UFPE, 1996. p. 272. MAUSO, Pablo Villarubia. El mistrio da Paraba. Revista Enigmas del Hombre, Madrid, n. 7, 1995. PROUS, Andr. O Brasil antes dos brasileiros: a pr-histria de nosso pas. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. p. 41.RODRIGUEZ, Janete Lins. Conhecendo o Cariri. Recife: Grfica Liceu, 2000.
SANTOS, Juvandi de Souza. Paraba: da pr-histria ao incio da colonizao. Campina Grande: JRC, 2006. p. 62. 38
Cap.III
As itacoatiaras e os meglitosLuiz Galdino
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AS ITACOATIARA E OS MEGLITOSLuiz GaldinoScio do Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo e da Sociedade Paraibana de Arqueologia.
Como que o homem do paleoltico, caador e coletor por excelncia, que precisava lutar diariamente pela sobrevivncia e que enfrentava os rigores do inverno glacial, protegido por sumrias peles de animais, podia se entregar ao luxo de fazer arte? Esta foi quase sempre a questo, que assaltava de imediato o pensamento de quem quer que tenha se colocado diante de uma pintura numa caverna dos Pirineus. Frente ao realismo impressionante de cenas em que os rebanhos de bisontes pastavam com ar buclico e bandos de renas davam a impresso de saltar sobre o visitante apalermado, conseguimos entender, at certo ponto, a acusao de fraude lanada contra Marcelino de Sautuola. Acabrunhado, o descobridor de Altamira viria a falecer antes que novas descobertas na Frana convencessem os estudiosos que aqueles conjuntos pintados constituam, de fato, exemplares de uma arte invejvel, cujas origens recuavam a cerca de 35 mil anos atrs. Ao final do sculo XIX, dominados por uma idia equivocada de uma arte pela arte, no imaginavam os especialistas que, longe de constituir luxo ou lazer, aquelas pinturas, concrecionadas nas profundezas das cavernas, constituam no a decorao, mas um instrumento da crena mgica, que respondia pela sobrevivncia e persistncia das espcies animais e dos prprios cls. Como a magia manifestou-se em todo o mundo primitivo, a arte que lhe servia de instrumental acabou por atingir dimenses universais; e o Brasil no seria exceo. Nos anos 70, quando nos pusemos a campo, a fim de realizar uma pesquisa sobre a arte rupestre pr-histrica, fomos surpreendidos pela imensa riqueza do acervo. Naquele tempo, quando a divulgao desse material se limitava a publicaes em boletins e revistas de circulao acanhada produzidas por museus e universidades, as cpias dos registros evidenciavam muito mais o estilo do copista que o do artista. Na realidade, descobrimos, este acervo compunha-se de elementos diferenciados: pinturas policromticas em que predominavam os zoomorfos, correspondentes Arte das Cavernas na Europa; registros de carter esquemtico, pintados e gravados ao ar livre, que recordavam de imediato a Arte da Espanha Levantina; e, finalmente, os exemplares que marcavam a transio entre os dois momentos artsticos. A grande surpresa, entretanto, nos aguardava na Paraiba. Para l nos dirigimos, atrados por duas ocorrncias que, at hoje, se contam entre os
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referenciais mais singulares da arte rupestre no pas. A Pedra do Retumba, que deve seu nome ao seu descobridor, o engenheiro Francisco Soares da Silva Retumba, e que vinha sendo reproduzida de forma recorrente em escritos sobre as itacoatiaras dos nossos indgenas. Apesar de desaparecida sob as guas de um aude, sua imagem tornou-se to popular, que acabou por confundir-se com a fictcia Pedra Fencia da Paraba, cuja inscrio um ex-diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro traduziu, referendando a suposta descoberta do pas pelos fencios. A pedra original, no entanto, jamais foi encontrada, fazendo crer que tudo no tenha passado de uma fraude. Alis, no teria sido a nica. Viajamos com destino Paraba em 1970. Seguimos diretamente para Pedra Lavrada, municpio onde se encontrava o monumento, desconhecendo que a Pedra do Retumba se achava submersa no aude formado com as guas do rio Cantagalo. Desconhecamos, tambm, que, naquele ano, a regio do Serid paraibano havia enfrentado uma das secas mais terrveis dos ltimos anos, circunstncia que nos permitiu deparar com o aude seco e com a pedra Registro da Pedra de Retumba por ns recolhido em 1970 livre de gua e lama. Apesar de alguns reforos executados recentemente na pedra com auxlio de tau e carvo misturados a leo vegetal e da decomposio superficial do suporte, o registro deixava patente que o engenheiro Retumba havia realizado uma cpia que beirava a perfeio. Publicamos duas ou trs fotos, junto a um artigo na revista SENHOR (Editora Trs SP), e nunca nos passou pela cabea o carter exclusivo daquele registro. S muito recentemente, numa troca de idias com alguns companheiros da SPA, tivemos cincia de que talvez sejam elas as nicas fotos existentes da decantada Pedra do Retumba. Ns nos referimos, linhas atrs, que fomos levados Paraba, em virtude de dois referenciais singulares. O segundo, naturalmente, correspondia Itaquatiara de Ing. O monumento havia se tornado onipresente para mim, no apenas pela sua representatividade, mas tambm em face da diuturna ateno que lhe dedicava o amigo Jos Anthero Pereira Jnior, professor da cadeira de Etnografia e Lngua Tupi-Guarani, na Universidade de So Paulo, e grande
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divulgador do Monumento fora da Paraba. O conjunto principal havia sido gravado em baixo-relevo, no dorso vertical de um bloco de gnaisse de cerca de 24 metros de extenso por 3 de altura, situado de costa para o riacho Bacamarte. Alm deste, havia um painel na parte superior do bloco, e um terceiro, gravado no lajedo, aos ps do painel principal. Estas ocorrncias paraibanas a Pedra do Retumba e a Itaquatiara de Ing causaram-nos uma surpresa muito vvida. Afinal, as manifestaes naturalistas e esquemticas podiam ser encontradas em vrios locais; e, na Paraba, ao contrrio, nos vimos diante de um signrio diverso, j pronto e definido, que se circunscrevia praticamente quele Estado. Os exemplares raros do Serid potiguar e interior de Pernambuco constituiriam apenas extenses naturais daquela central geradora; afora o que se percebiam raras afinidades em exemplares distantes, como as gravuras de Florianpolis e ilhas circunvizinhas; e as enigmticas gravaes de Corumb (MS), na fronteira com a Bolvia. De certo modo, era como se a Paraba constitusse uma ilha, que teria limitado ao seu espao um estilo prprio brotado ali mesmo, o que no verdadeiro. As diferenas perceptveis entre o monumento de Ing e as inscries de Picu, Pedra Lavrada, Serra Branca e Campina Grande, por exemplo, no mostravam as fases de um processo. De fato, umas so mais pobres, outras mais ricas, por uma circunstncia qualquer; porm os elementos utilizados em todas elas compem o mesmo signrio. Em se procedendo a dataes naqueles stios, teramos, muito provavelmente, a mesma antiguidade para todos os conjuntos. De resto, basta olhar para a Pedra de Ing e o acervo do resto do pas, para entender que, salvo as raras afinidades propostas, temos ali a manifestao de uma cultura intrusiva. E no acreditamos, como querem inclusive arquelogos de certo renome, que seriam os Cariri os responsveis por este aporte cultural. Neste caso, deveramos encontrar concrees similares no interior do Cear, no vale do rio So Francisco e rio Paraguau, na Bahia, o que no acontece. Outro aspecto que nos surpreendeu naquela poca foi a flagrante afinidade da tipologia daquele signrio com manifestaes do neoltico europeu. Queremos registrar, a propsito, a nossa satisfao diante de artigo recente, em que o antroplogo Carlos Alberto Azevedo, companheiro de SPA, levanta questo parecida, criticando a tendncia de se ignorar a periodizao com base na tradio europia, cambiando-a por uma tendncia esquemtica e estril, que divide a nossa pr-histria por regies. E, desde aquele momento, vimos chamando a ateno para a similaridade de Ing e da Paraiba em geral com as manifestaes do neoltico e a cultura de meglitos, o que d na mesma.
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Diante daquele signrio presente no Retumba e no Ing, ocorreu-nos que ele continha evidentes conotaes astronmicas, embora acreditssemos, ento, que seus autores estariam mais para cronistas dos eventos do que para astrnomos. Mais importante, no entanto, concluimos que aquele signrio de carter neoltico pressupunha a existncia de meglitos em nosso territrio e na Paraba em particular. Dois anos depois, publicaria um artigo expondo estas idias numa revista de So Paulo. pergunta ttulo do artigo Eram os ndios astrnomos?, respondeu-me o doutor Francisco Pessoa Faria num bilhete lacnico Sim, Galdino. Os ndios eram astrnomos! E instruiu-me, durante algum tempo, atravs de cartas, antes de publicar seu interessante livro. Eu propunha, ainda, que os componentes daquele signrio que se repetia ao longo de toda a Paraba poderiam compor um sistema pictogrficoideogrfico, no que contava, de certo modo, com o referendo do professor Anthero Pereira. Com ousadia maior, ele defendia que as inscries representavam um sistema ideogrfico, bastante similar s tabuinhas koaurongo-rongo da Ilha de Pscoa. No ano seguinte, o engenheiro Jos Bencio de Medeiros publicaria artigo no qual tentava datar o monumento de Ing. E na dcada de 80, surgiria o artigo do arquelogo espanhol Pavia Alemany, que via a pedra como um calendrio solar; e a referida publicao de Pessoa Faria. Se um sistema misto pictogrfico ideogrfico utilizado para anotar eventos sociais e cotidianos ou observaes de cunho astronmico, no muda grande coisa. Ademais, acreditamos hoje que, embora as conotaes astronmicas sejam evidentes e se refiram a observaes celestes visando a criao de calendrios, com certeza elas no sero as nicas. Principalmente a Pedra do Ing deve ter servido a outros propsitos. De qualquer modo, ao cogitar da existncia de meglitos no Brasil pr-colonial, fui pesquisar, primeiro, na mitologia indgena. Encontramos vrias referncias a bancos de pedra, banco dos pajs, banco dos espritos, alguns associados a marcas de ps gravados nas rochas e ou inscries atribudas a Caru, Izi e Macunaima, iniciadores solares da regio amaznica, e a Sum, o civilizador mximo dos Tupis, de mbito nacional. Para que se tenha uma idia da sua importncia para a regio da Paraba, seu nome foi dado a um municpio. E na crnica colonial, encontramos inmeras referncias a monumentos megalticos, descobertos inclusive na Paraba. Segundo Brandnio, autor annimo dos Dilogos das Grandezas do Brasil, as inscries descobertas pelo capito-mr Feliciano Coelho de Carvalho, margem do rio Arauagipe, achavam-se gravadas no dorso de pedras que compunham um rstico monumento. ... toparam nas suas fraldas com uma cova da banda do poente, composta de trs pedras, que estavam conjuntas umas com as outras, capaz de poderem se recolher dentro quinze homens; ... O que de tudo era de maior
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considerao era o estar entre duas pedras muito grandes uma que botava a borda sobre as outras arcadamente, como estarem to juntas, que por nenhuma parte davam lugar a se meter o brao. A cova formada pela perfeita juno de trs pedras, duas de apoio e uma como tampo, corresponderia a um dlmen de confeco simples. Em sua obra sobre o governo de Maurcio de Nassau no Brasil, afirma Kaspar Barleus que, a caminho da Serra da Cupaoba, viram como que pedras de moinho perfeitamente circulares e de estupendo tamanho. Mediam 4,80 metros de dimetro e era to considervel a sua espessura que apenas a metade dela podia ser alcanada pelas pontas dos dedos de um homem de p no cho. Por sua vez, quando Elias Herckmans chegou aldeia de onde os portugueses haviam expulsado os indios Potiguares, viram novamente pedras de desmesurada grandeza, amontoadas pelas mos do homem, as quais possui tambm a regio de Drent, na Holanda, para onde no se cr tenham sido carreadas por fora humana por causa do seu volume. As tais pedras pareciam-se altares. Entre os possveis meglitos paraibanos existiu um de conformao especialmente interessante que desapareceu em poca recente. Segundo relato do confrade Adauto Ramos, secretrio do Instituto Histrico e Geogrfico Paraibano, o monumento em questo situava-se em terras do Engenho Cafund, que pertenceu sua famlia, e que se tornou conhecido pelo nome de Pedra Aguda. O nome dado conferia com sua forma: um menir de dois metros com a extremidade apontada formando ngulo agudo; na sua superfcie achavam-se gravados uma marca de p, uma pata de animal e uma cruz. Ao ser destrudo, causou admirao a descoberta de que o menir estava soldado a uma pedra esfrica de grandes dimenses, que permanecia totalmente oculta sob a terra. O termo meglito, bem como a forma adjetiva megaltica, so aqui tomados no seu significado genrico, para designar monumentos erigidos com o concurso de pedras rudes. Originalmente, devemos esclarecer, a palavra meglito subentendia um monumento elevado com pedras de grande volume, do grego mega (grande) + litos (pedra). Hoje, no entanto, seu uso estende-se a qualquer tipo de monumento construdo com pedras, ainda que de pequenas dimenses. E o menir, vocbulo breto para pedra levantada, constitui o meglito de estrutura mais simples: um pilar de pedra fincado verticalmente no solo. Em nosso pas, o menir solitrio raro, sendo encontrado regularmente reunido, originando linhas retas, crculos e formas geomtricas variadas. Menires, dlmens e principalmente alinhamentos de pedras, apontando para a posio em que o Sol nasce no primeiro dia do inverno (solstcio), tm sido descobertos no Roraima e Amap, Gois, Maranho e Piau, Paran e Santa Catarina. E provavelmente eles existem tambm na Paraba; o signrio rupestre daquele estado uma indicao segura disso. A exemplo do menir de Sap
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(Pedra Aguda), possvel que monumentos desta ordem tenham sido destrudos na esperana de que demarcassem o local de ocultos tesouros flamengos ou jesuticos. No entanto, devem existir outros, com certeza, que somente se mantm annimos porque ainda no os associaram sua verdadeira realidade.Referncias ALEMANY, Francisco Pvia El Calendrio solar de la Pedra de Ing. Boletim do CBA, Rio de Janeiro, 1986. AZEVEDO, Carlos Alberto. Para entender a escritura neolitica... In: PrHistria: Estudo para a Arqueologia da Paraba, J. Pessoa, JRC Editora, 2007. BRITO, Vanderley de. A Pedra do Ing: itacoatiaras na Paraba. Joo Pessoa, JRC, 2007. FARIA, Francisco Pessoa. Os astrnomos pr-histricos do Ing. So Paulo, Ibrasa, 1987. GALDINO, Luiz Itacoatiaras: uma Pr-histria da Arte no Brasil, Editora. Rios, So Paulo, 1988. _________, O Segredo das Itacoatiaras. So Paulo, Revista Paulista de Arqueologia, 1983. HERCKMANS, Elias: Descrio Geral da Provncia da Paraba, In: Revista do Instituto Arqueolgico Histrico e Geogrfico Pernambucano, Tomo V, Recife, 1886. LEROI-GOURHAN, Andr. Pr-histoire de l'Art Occidental, tudes Antropologiques Paris, 1958. MARTIN, Gabriela. Pr-histria do Nordeste do Brasil. 3 Edio - Recife, Editora Universitria UFPE, 1999. MEDEIROS, Jos Bencio de. Tentativa de determinao da poca. Boletim do CBA. Rio de Janeiro, 1974. PEREIRA JNIOR, Jos Anthero. Introduo ao Estudo da Arqueologia Brasileira, Editora Bentivegna, So Paulo, 1967.
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Cap.IV
Evoluo da arqueologia e a falta de compromisso governamentalCarlos Antonio Belarmino Alves
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EVOLUO DA ARQUEOLOGIA E A FALTA DE COMPROMISSO GOVERNAMENTALCarlos Antonio Belarmino AlvesProfessor do Campus III da UEPB e Membro da Sociedade Paraibana de Arqueologia.
A Arqueologia (do grego archaios: antigo, logos: cincias) , na sua essncia, a cincia que estuda a antiguidade. Porm o seu sentido mudou muito durante o passar do tempo. Ela passou do estudo dos poetas gregos pelos romanos cincia dos monumentos da Antiguidade Clssica, no sculo XIX. Desde sempre o homem se espelha em seu passado. Poderamos citar inmeros dentre outros pioneiros que se preocuparam em registrar a histria dos homens como Homero (sculo IX a.C), Tucdides (470-401), Herdoto (485?420 a.C) o pai da histria, como ficou conhecido, Aristteles (384-322) ou mesmo Plato (428/427 a.C) que imortalizou a lenda de Atlntica em seus dilogos e que hoje estudiosos, como o gelogo Jim Allem, acreditam, embasados na interpretao dos escritos de Plato, estudos topogrficos e achados escravos no altiplano boliviano, que a mtica ilha-continente seja a Amrica, porm a Atlntica est nos olhos de quem v. A prpria Bblia, como um dirio da Antiguidade, nos d precisas referncias aos tempos pretritos da humanidade. Seja como for, cada qual sua maneira deu sua contribuio na construo das disciplinas afins da Arqueologia. Apesar de alguns autores estabelecerem limites temporais entre a arqueologia a histria, ou simplesmente restringi-la ao estudo dos povos sem escrita, na verdade, a arqueologia chega at ontem. No pode ter limite enquanto houver um Hoje e um Amanh (Louis Frderic, 1980, p.21) e se prope a estudar todos os documentos, que possam trazer algum luz ao passado do homem, independentemente da sua natureza (Idem, p.20). Assim, podemos ver a atualidade como formada de momentos que foram, estando agora cristalizados como objetos geogrficos atuais (...). Por isso, o momento passado est morto como tempo, mas no como espao (SANTOS, 2004), entendendo o espao como a marca visvel do tempo, marcas naturais ou antrpicas. So essas marcas que estuda o arquelogo. Por ser uma disciplina bastante abrangente, a arqueologia se confunde com outras afins como a Histria, a Histria da Arte, Antropologia, a Paleontologia, dentre outras, contudo, ela se distingue das demais pelos seus fins e mtodos. Enquanto um historiador v o achado como uma obra de arte e seu contedo esttico, o arquelogo enxerga como uma pea de um quebra-cabea, uma ponte para a elucidao do passado e se interessara pela arte da histria que desapareceu. Ir buscar-lhes os traos, observ-los- e tirar deles dedues Louis Frderic, 1980, p.19).
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Na Arqueologia h inmeras divises. A que nos interessara, no momento, a Arqueologia pr-histrica. Sendo esta dedicada aos vestgios das culturas sem escrita. Mesmo que o termo pr-histria possua um teor preconceituoso como se a falta de escrita significasse falta de cultura, ou seja, de histria, nesse sentido os povos antigos sem escrita no teriam histria, viveriam antes dela. O que s viria a acontecer, no nosso caso especfico das Amricas, com a colonizao europia. Porm, os indcios de abstrao do Homem Pr-histrico, ou melhor, Pr-colombiano, como por exemplo as Pinturas e Gravuras Rupestres, indicam uma rica e bela cultura. um de nossos intuitos podermos contribuir, mesmo que infimamente, com a reconstruo scio-cultural de nossos antepassados, conhecer seus meios tcnicos e entender estilos de vida no como de um selvagem, mas como o de um ser humano que modificava o espao a partir de suas necessidades. Andr Parrot em seu livro L'archeologie (1976) publicado no Brasil, um ano mais tarde, com o ttulo: Introduo Arqueologia, indaga se seria definitivo, o que ele chama de, a derrubada do muro do silncio que separava a Arqueologia do grande pblico. Ele relata as dificuldades de se publicar artigos na Frana sobre as descobertas arqueolgicas no incio do sculo XX. Entretanto, no final da dcada de 1960, passaram a aflorar, sobretudo naquele pas, publicaes sobre o tema. Seguindo esse movimento no Brasil, foram impressos por editoras vrios artigos e livros os quais, quase sempre, eram impressos por editoras universitrias e museus, vocao observada at os dias atuais. Isso de modo algum veio a vulgarizar o conhecimento cientfico, como pensavam alguns contemporneos de Parrot, e sim sociabiliz-lo, fazendo com que toda a sociedade regozije-se com os achados e no apenas um seleto grupo de letrados. Arqueologia Brasileira No Brasil, os relatos de gravuras rupestres remontam o incio da colonizao, como os de Feliciano Coelho de Carvalho, na Paraba, em 1598, e os relatrios do Pe. Francisco Correa Tales de Menezes na sua Lamentao Braslica. Porm: As primeiras descries de figur