XVI Congresso Brasileiro de Sociologia
10 a 13 de setembro de 2013, Salvador (BA)
Grupo de Trabalho: Novas Sociologias: pesquisas interseccionais feministas,
pós-coloniais e queer
As desbravadoras do Sertão: travestis “pioneiras” do Nordeste brasileiro
Juciana de Oliveira Sampaio, Instituto Federal do Maranhão – IFMA.
Sandra Maria Nascimento Sousa, Universidade Federal do Maranhão – UFMA.
Janaína Dutra (1960-2004) foi uma travesti do Nordeste brasileiro,
oriunda de uma pequena cidade do interior do Ceará. Como outras travestis,
rompeu padrões normatizados de gênero e, no constante processo de
negociação com as normas, buscou “compensar” essa subversão tendo
alguma inserção nos meios formais de educação e trabalho. Outras
possibilidades que se apresentam às travestis são as inserções na prostituição,
espaço historicamente relegado a elas na nossa sociedade, e no ativismo
político, esta apresentada desde a década de 1990. Pesquisando narrativas
sobre a trajetória de Janaína, nos deparamos, de modo irresistível, com uma
interessante problemática: o pioneirismo de travestis do Nordeste do Brasil.
Apresentamos aqui uma discussão sobre os marcadores sociais da
diferença, dando especial destaque para travestilidade e regionalidade,
analisados em perspectiva interseccional, a partir da experiência da travesti
Janaína Dutra, conhecida como a “primeira advogada no Brasil”. Traçamos,
nesse caminho, um paralelo com experiências de outras travestis nordestinas
que também são retratadas como “pioneiras” em âmbito nacional.
Durante pesquisa de tese de doutorado1, ainda em andamento, que tem
como foco a trajetória de Janaína Dutra, algumas notícias sobre outras
“travestis pioneiras” nos chamaram a atenção. Em 2012, Luma de Andrade,
também do interior do Ceará, concluiu curso de doutorado e era retratada como
a “primeira travesti doutora do Brasil”. Ao mesmo tempo, a diretora de cinema
Karla Holanda produzia um documentário sobre a piauiense Kátia Tapety,
“primeira travesti a se eleger a um cargo político no Brasil”. Ainda nesse ano,
Keila Simpson, maranhense erradicada na Bahia, era eleita a “primeira travesti
presidenta do Conselho Nacional LGBT”. Lembramos ainda de Jovanna Baby,
considerada uma pioneira no movimento social de travestis no Brasil. Aos
poucos, fomos fazendo relações entre travestilidade e regionalidade com o
elemento pioneirismo. Adentrando espaços marcados pela
heteronormatividade, essas travestis relatam histórias de discriminação e
superação.
Seguimos linha que problematiza a construção de regiões geográficas
(ALBUQUERQUE JR, 2011; FOUCAULT, 1979; SAID, 2007), na medida em
1 Referência à pesquisa de tese de Juciana de Oliveira Sampaio, orientada pela Profª. Drª.
Sandra Maria Nascimento Sousa.
que entendemos o Nordeste como uma configuração histórico-social permeada
por relações de saber/poder, uma espacialidade construída como o “Outro” do
Brasil, qualificada como “atrasada” e “conservadora”, tornando inteligíveis
experiências que desestabilizam a heteronormatividade.
Indo ao encontro de discursos que destacam o falo como significante
central das subjetividades nordestinas (ALBUQUERQUE JR, 2003), formando
homens machos (“cabra-macho”) e mulheres virilizadas (“paraíba masculina”),
lançamos a ideia de que, longe de ser contraditório, elementos desse discurso
compõem um modo de ser travesti no Nordeste, contribuindo para a formação
de uma feminilidade peculiar, ao permitir às travestis possuírem elementos
relacionados a masculinidade na composição de suas subjetividades, sem
comprometimento de seus projetos de construção da travestilidade.
As discussões aqui presentes situam-se em estudos feministas e de
gênero, a partir de perspectiva pós-colonial e queer em uma configuração
teórico-metodológica que intersecciona o gênero com outros marcadores
sociais da diferença. A partir dessas referências, é possível perceber o gênero,
a raça, a sexualidade, a região e outros marcadores como fruto de produções
histórico-sociais que se produzem e se reproduzem em meio a estratégias de
saber/poder e esquemas hierárquicos de lugares e corpos.
A interseccionalidade, conceito e proposta metodológica, situa-se no
campo dos saberes subalternos, que, por sua vez, desdobram-se em estudos
queer e estudos pós-coloniais, próximos pelas críticas que tecem aos discursos
hegemônicos ocidentais (MISKOLCI, 2009). Ao analisar aspectos da vivência
de travestis do Nordeste brasileiro em relação ao elemento “pioneirismo”, a
ideia é lançar luzes para a investigação de como as abordagens interseccionais
formam referentes úteis de análise. De acordo com Miskolci, as discussões
sobre intersecções dos marcadores sociais da diferença se tornam cada vez
mais atraentes para investigadores/as brasileiros/as que lidam com temas
como diferenças sexuais, étnico-raciais, de gênero e de nacionalidade.
Na análise do tema proposto, é necessário atentar para as categorias
usadas na interpretação da diferença e de como essas categorias são
“organizadas em certas circunstâncias econômicas, políticas e culturais”
(BRAH, p. 345, 2006). Assim como Brah (2006), Spivak (2010) e outras
feministas pós-coloniais propõem uma análise macro, relacionando a formação
das subjetividades com dinâmicas de poder que estabelecem diferenciações
sociais, “porque as preocupações políticas que as orientam requerem que as
análises compreendam a produção de subjetividades no marco da história do
imperialismo e do capitalismo” (PISCITELLI, 2008, p. 268).
Adriana Piscitelli (2008) nos informa que é no final da década de 1990
que a ideia de interseccionalidade ganhou centralidade no pensamento
feminista devido à ênfase dada a concepções que aludem à multiplicidade de
diferenciações que, articulando-se a gênero, permeiam o social. A autora
ressalta que os marcadores sociais não são âmbitos diferentes que se isolam
ou se sobrepõem de forma hierárquica, mas que “essas categorias existem em
e por meio das relações entre elas. Por esse motivo são categorias articuladas.
As categorias de diferenciação não são idênticas entre si, mas existem em
relações íntimas, recíprocas e contraditórias” (PISCITELLI, 2008, p. 268).
Judith Butler (2003) propõe uma articulação entre diversos eixos, como
gênero, sexualidade e raça, ao criticar a presunção política de que há uma
base universal para o feminismo, como se a opressão das mulheres possuísse
uma forma singular. Para ela, essa teorização feminista visa colonizar e se
apropriar de culturas não ocidentais, “instrumentalizando-as para confirmar
noções marcadamente ocidentais de opressão e também por tender a construir
um ‘Terceiro Mundo’ ou mesmo um ‘Oriente’ em que a opressão de gênero é
sutilmente explicada como sintomática de um barbarismo intrínseco e não
ocidental” (BUTLER, 2003, p. 21). Assim, reafirma que o gênero estabelece
interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais.
Caminhando com essa problematização, a própria noção de identidade,
de gênero, de sexualidade e de região atravessam um processo de criticidade,
de forma a desestabilizar concepções e epistemologias legitimadas. Esses
elementos, longe de refletirem uma essência estanque, são pontualmente
fabricados em meio a discursos que produzem efeitos de verdade
(FOUCAULT, 1998). A desconstrução da identidade (HALL 2011), do
sexo/gênero (BUTLER, 2003) e da regionalidade (FOUCAULT, 1979; SAID,
2007) já foi empreendida por diversos autores. Esse trabalho se encontra na
esteira desses estudos e lança um olhar interseccional (BRAH, 2006,
PISCITELLI, 2008, MISKOLCI, 2009) para a configuração escolhida como foco
de análise.
Não é um trabalho sobre os sujeitos travestis e/ou sobre o Nordeste.
Problematizamos conceitos, imagens, enunciados, práticas e estratégias que
dão forma e coerência a essas construções identitárias e espaciais. Nas
experiências analisadas, as concepções de gênero aparecem estreitamente
relacionadas às concepções regionais. A região, assim como o gênero, é
institucionalizada, performatizada, repetida a exaustão, uma abstração com
efeitos de verdade. É interessante perceber como esses discursos se cruzam,
como o gênero em intersecção com a regionalidade é produzido nos discursos
sobre essas travestis pioneiras.
A construção das regionalidades e subjetividades
O espaço não é algo fixo, morto, imóvel, palco estático a espera da ação
humana. Essa afirmação traz para a discussão sobre regionalidade a história, o
significado, a discursividade. De acordo com Foucault (1979), esse debate
envolve conceitos de saber, poder, ciência, formação discursiva, épistemè.
Sendo assim, metáforas espaciais (posição, deslocamento, lugar, campo) e
metáforas geográficas (território, domínio, solo, horizonte, regiões e paisagens)
não são noções “verdadeiramente geográficas”, resultando em uma
compreensão da região como construção jurídico-política, fiscal e
administrativa controlada por um poder e formada por discursos que atribuem
unidade, coerência, identidade.
Uma das estratégias centrais que se desenrolam no estabelecimento
das fronteiras territoriais é a constituição de uma identidade. Os indivíduos,
afirma Foucault, não são dados sobre os quais se exercem e se abatem o
poder. Desta forma, as regiões, assim como os indivíduos, com suas
características e suas identidades tidas como fixas, são produtos de uma
“relação de poder que se exerce sobre corpos, multiplicidades, movimentos,
desejos, forças” (FOUCAULT, 1979, p. 161-162).
Edward Said (2007), no célebre livro Orientalismo: o Oriente como
invenção do Ocidente, investiga como o Ocidente construiu uma imagem do
Oriente como o "Outro", dentro de um processo de diferenciação que corrobora
com os interesses do colonialismo. Ao se referir ao Ocidente e Oriente como
espaços antagônicos do globo, Said frisa que nenhum dos dois termos –
“Oriente” e “Ocidente” – possuem estabilidade ontológica. São rubricas
falsamente unificadoras e vêm acompanhadas de identidades coletivas
inventadas. Said examina o Orientalismo como um discurso, no qual existe
uma intricada relação entre conhecimento e poder. Longe de ser um dado
inerte da natureza, o Oriente, bem como o Ocidente, nem sempre esteve ali.
Desta maneira, o autor problematiza a noção de geografia, entendendo-a como
uma entidade cultural e histórica a respeito dos lugares.
Albuquerque Junior (2011) estendeu essas considerações para a análise
do Nordeste brasileiro. Utilizando o esquema analítico de Said e Foucault no
livro A invenção do Nordeste e outras artes, o autor pesquisou como a região
foi inventada a partir de enunciados repetidos com regularidade, produzindo um
“efeito de verdade”. Ao afirmar que o Nordeste é uma invenção recente, datada
do início do século XX, historiciza a estratégia de espacialização que imprime
sentido homogêneo à ideia Nordeste. Isso não quer dizer, no entanto, que as
falas sobre o Nordeste são apenas estereotipadas e mentirosas e que, caso
elas fossem retiradas, uma realidade verdadeira sobressairia. Essas falas são
produtivas, subjetivadas, criam uma realidade e instituem uma “verdade”, ao
invés de escondê-la.
Falar da emergência do Nordeste implica falar da construção de uma
subjetividade nordestina. O/a nordestino/a é também produto de determinadas
relações de saber/poder, no qual se cruzam elementos regionais e de gênero,
entre outros. Na construção do/a nordestino/a, a masculinidade se estabelece
em rígida oposição à feminilidade, quer a partir da sociologia e historiografia
regionais, quer a partir da literatura, da música e/ou das declarações de
autoridades políticas e intelectuais. Afinal, “o nordestino é macho. Não há lugar
nesta figura para qualquer atributo feminino. Na região Nordeste, até as
mulheres são macho, sim senhor!” (ALBUQUERQUE JR, 2003, p. 20).
Na obra Nordestino: uma invenção do falo, Albuquerque Junior (2003)
afirma que a masculinidade é um elemento definidor da identidade dos/as
nordestinos/as. A construção da figura do/a nordestino/a como marcadamente
masculina se constituiu em meio a reações à “feminização” da sociedade em
finais do século XIX, período no qual a sociedade local passava por grandes
mudanças: crescimento das cidades como um espaço não-familiar, quebra de
hierarquias garantidas pela escravidão e monarquia, transformações causadas
pelo advento da República, abolição da escravidão, industrialização,
modernização cultural e técnico-científica. Nesse sentido, as elites locais
traduziam essas transformações como uma ameaça à figura do homem, do pai.
O nordestino, portanto, deveria ser “macho por excelência, com a capacidade
de revirilizar uma região que precisava reagir; região estuprada e penetrada por
interesses e valores estranhos” (ALBUQUERQUE JR, 2003, p. 163).
Apesar de ter sido construída uma imagem de “macho por excelência”
para o nordestino, alguns discursos colocam em cheque características
relacionadas à masculinidade, como a energia e a vitalidade, abaladas devido
às austeras condições climáticas da região. Entretanto, o nordestino é capaz
de ter uma reação viril para enfrentar as adversidades, deixando de ser
indolente para ser valente, um homem que não permite a desonra. A retórica
de retomar a masculinidade e eliminar a feminilidade aparece como elementar
na composição da identidade regional e da própria região, devido à hostilidade
de sua natureza, requerendo a coragem e o destemor. Daí é possível
compreendermos a existência das “mulheres machos”, das “Luzias homem”,
das “paraíbas masculinas”.
É nesse cenário povoado por homens virilizados e mulheres
masculinizadas que as travestis aqui analisadas circulam. À primeira vista,
pode parecer inconciliável que sujeitos com expectativa de se tornarem
homens em uma região que estimula e valoriza a masculinidade possam se
aproximar de elementos da feminilidade e reivindicar uma existência feminina,
conquistando relativo sucesso ao se tornarem “pioneiras”, seja na política, na
militância, no bacharelado ou na produção do conhecimento científico. O
argumento aqui desenvolvido é que não há incompatibilidade entre a
travestilidade e a nordestinidade construída com centralidade no significante
falo, mas que possivelmente o relativo sucesso e atuação dessas Janaínas,
Jovannas, Keilas, Kátias e Lumas tenha se dado devido à peculiar feminilidade
cultivada e aceitável no Nordeste, onde elementos tidos como masculinos que
as impulsionam para o “desbravamento” compõem a feminilidade
performatizada.
Além do mais, a própria noção de que a masculinidade é o elemento
central na composição da identidade regional deve ser flexibilizada, uma vez
que os sujeitos estabelecem constantes negociações com essas expectativas e
com as normas de gênero. As identidades não são compostas como um
núcleo, no qual um elemento se sobrepõe aos demais. Os contextos sociais,
históricos, culturais e geopolíticos formam subjetividades múltiplas e
complexas, formando um nó na constituição identitária.
As características relacionadas à masculinidade são comuns entre as
travestis analisadas, sem que isso abale a feminilidade almejada. Ao mesmo
tempo em que remetem às normas, questionam a lógica binária do
gênero/sexo, ainda que involuntariamente, produzindo outras possibilidades de
“gendrificar” o humano e o regional. Os discursos de transgressão da norma
nem sempre seguem um movimento linear, coerente, consciente e progressivo.
(Trans)Regionais2
Janaína Dutra
Ainda em vida, Janaína Dutra despontou no cenário nacional como “a
primeira travesti advogada no Brasil”, algo um tanto incomum no tocante a
experiências de travestis brasileiras, segmento populacional historicamente
alijado das instituições escolares e do mercado de trabalho formal. Janaína
nasceu em Canindé (CE), reduto de romeiros fiéis a São Francisco das
Chagas, portanto, cidade fortemente marcada pela religiosidade, deixando
marcas profundas na sua forma de compreensão de mundo e na maneira como
era percebida pela sua família e conterrâneos, prevalecendo valores cristãos
na ordenação dessas ideias. Adolescente, migrou para a capital do Estado,
Fortaleza, onde cursou Direito em uma universidade particular.
Mesmo Janaína não tendo exercido a advocacia por toda a vida e,
segundo alguns relatos, sem qualquer identificação com a área jurídica, sua
imagem permanece fortemente ligada a essa profissão, prevalecendo
características como inovação, antecipação, ousadia, coragem e
desbravamento que depois se somarão com as atribuídas a sua atuação na
militância, tais como sensibilidade, pulso firme, maternidade, capacidade de
liderança e agilidade ao resolver problemas. Algumas características permeiam
os dois momentos, como inteligência, habilidade com as palavras, agilidade de
raciocínio e inquietação com relação a injustiças sociais.
2 Aqui faço uma analogia com a análise feita por Marcia Ochoa (2010) sobre o (trans)nacional
ao não perceber as pessoas transgênero como uma exceção no contexto nacional da Venezuela, mas inseri-las em lógicas da nacionalidade que constroem o país como periférico no sistema mundial moderno.
Em vários relatos sobre Janaína é possível perceber marcas do gênero
e da região, dividindo essas características ora como relacionadas à
masculinidade, ora como à feminilidade e até mesmo deixando algumas com
sentido “ambíguo”. Notamos ainda analogias com relação ao Nordeste, como
se fosse necessário uma agência mais firme para que Janaína rompesse os
entraves da região vinculada ao atraso, ao provincianismo do local e dos
costumes relacionados à religião.
Apesar de ter sido uma advogada travesti e não uma travesti advogada,
uma vez que conseguiu filiação à Organização dos Advogados do Brasil antes
de construir para si uma identidade travesti e de não ter sua travestilidade
reconhecida pela OAB3, o “pioneirismo” na advocacia é um elemento presente
em vários discursos a seu respeito.
No documentário Janaína Dutra: uma dama de ferro, de Vagner de
Almeida (2011), a imagem da seca no sertão é recorrente. Dando ênfase aos
discursos sobre o Nordeste como inóspito e conservador, o vídeo com ares
biográficos fortalece estereótipos construídos historicamente sobre essa região.
A imagem inicial do filme mostra uma chuva no sertão que pode ser uma
metáfora para falar sobre o surgimento de Janaína no Nordeste como algo
singular, incomum. O título do documentário nos remete a imagens fálicas
(ferro) e de resistência, ambas relacionadas à masculinidade, em
contraposição ou em complemento à feminilidade da “dama”, fazendo
referência à travestilidade de Janaína. Essa mistura de características
evocadas faz menção aos desafios que Janaína teve que enfrentar para ser
uma travesti no Nordeste, rompendo barreiras de gênero e de localização.
Em alguns registros, Janaína fala um pouco sobre a experiência de ser
travesti no Nordeste:
Principalmente o pensamento da família nordestina é que além de ser
viado, ainda se veste de mulher. Ainda não consegue conceber a
construção da identidade da travesti que mora junto da ambiguidade,
em ter um macho e uma fêmea dentro de um corpo que as faz
diferente. Sou presidente da ATRAC – Associação de Travestis do
Ceará. Atual coordenadora nacional da ANTRA, que é a Articulação
3 Na carteira da OAB de Janaína constava o seu nome de registro: Jaime César Dutra
Sampaio. Na foto da carteira, Janaína aparece com cabelos longos, mechas loiras, maquiada, mas usa paletó e gravata, roupa exigida apenas para homens, a partir de determinação do Conselho Federal da OAB, enquanto que para mulheres é exigido o uso de “trajes condizentes com a dignidade da profissão”.
Nacional das Travestis. Faço parte, como conselheira, do Conselho
Nacional de Combate à Discriminação da Secretaria Nacional de
Direitos Humanos da Presidência da República. Estou envolvida no
movimento de transgêneros há mais de dez anos, desde 92, né?
Tenho como formação o Direito. Sou advogada. Em estatísticas já
feitas informalmente pela OAB foi detectado que a única travesti no
exercício da profissão sou eu, e na cidade de Fortaleza, Estado do
Ceará. O que é meio curioso porque é uma cidade que alimenta
ainda resquícios culturais muito machistas e que faz disso um desafio
maior e uma forma de contribuir para o movimento (falas retiradas do
documentário Uma Dama de Ferro, Vagner de Almeida, 2011).
Janaína atuou em entidades de âmbito nacional ao presidir a ANTRA,
compor a ABGLT4, integrar o CNCD - Conselho Nacional de Combate à
Discriminação, órgão vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República, e manteve por alguns anos relativa centralidade no
movimento nacional de travestis, mas frisa que uma expressiva contribuição
para o movimento é a vivência em uma cidade do Nordeste, fato apresentado
por ela como um desafio por se situar em uma região com resquícios de
machismo.
Para Janaína, as famílias do Nordeste não aceitam a
homossexualidade, o que reforça a concepção da região como sexista e
homofóbica. Essa intolerância, de acordo com a narração de Janaína, parece
se agravar com relação à travestilidade, expressão de gênero incompreendida
por ser diferente do viado e se mostrar de forma aparentemente ambígua, já
que abarca no mesmo corpo a masculinidade e a feminilidade, resultando em
uma experiência corporal diferenciada das normatizadas e até mesmo dos
homossexuais, desde que esses não rompam com as normas de gênero,
apesar da orientação sexual discordante da heterossexualidade. Ao mesmo
tempo em que Janaína estabelece um dualismo de gênero – “ter um macho e
uma fêmea dentro de um corpo” – ela efetua uma desestabilização desse
padrão dualista ao afirmar que essa mistura resulta em ambiguidade se
interpretada a partir da norma heterossexual.
Janaína achava “curioso” ter sido possível sua atuação de destaque e
pioneirismo sendo oriunda do Nordeste, sensação advinda da quebra de
estereótipos e expectativas criadas acerca da região, mas imperceptível por
ela. Essa concepção da região Nordeste como “atrasada” e cheia de
4 Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.
preconceitos forma e é formada por Janaína o tempo todo. Ela recebe essas
informações e as transmite, dando sentido à sua atuação no movimento de
travestis, percebendo-a como um desafio ainda maior e um ineditismo.
Na fala de Janaína, a região Nordeste é opressora, apesar de ter
declarado em outros momentos que não sofria preconceitos na família e que
seus pais e irmãos aceitavam sua “diferença”. Ela manteve fortes laços
familiares até o fim da vida e falava com orgulho que recebia apoio
incondicional dos seus familiares. A bibliografia sobre o tema nos mostra que a
relação de travestis com familiares permanece principalmente motivada por
questões financeiras, na medida em que muitas travestis fornecem dinheiro
para seus familiares, mesmo esses não aceitando seu processo de
travestilidade, o que não é o caso de Janaína e sua família.
Essa não discriminação na família ou até mesmo tolerância por alguns
membros teria possibilitado, entre outros motivos, a formação acadêmica de
Janaína, que recebeu uma base financeira e emocional para concluir a
graduação. A partir de entrevistas com alguns deles, foi possível enumerar
elementos apontados como facilitadores para essa aceitação, como: a
profissão da mãe, que era professora e portadora de grande sensibilidade e
altruísmo; a religião que prega a crença na igualdade, no respeito e no amor ao
próximo, vivenciada pelo catolicismo popular no cotidiano de Canindé em meio
aos festejos de São Francisco e inúmeras romarias; e o fato de Janaína ser “o
filho mais novo”5, o que a colocava em uma condição privilegiada frente aos
demais irmãos, já independentes e desprendidos de recursos financeiros e de
mais atenção dos pais.
Além disso, Janaína demandava mais atenção por ser “o caçula” em
uma família numerosa e por sua “diferença”. Dargenira, a mãe de Janaína,
temia pelo futuro “do seu filho”, cobrindo-o de proteção e atenção. O fato do
cuidado com os filhos nesse contexto ser uma função atribuída às mulheres
possibilitou, de certa forma, o distanciamento do pai na criação de Janaína e
consequentemente qualquer repressão ao que encarava como “anormal” no
comportamento do “filho”.
5 Janaína, como a maioria das travestis, é sempre retratada por todos os membros de sua
família pelo masculino. Ela é Jaime, Jaiminho, tio Jaime, filho, irmão, pai.
Luma Andrade
Em Morada Nova (CE) nasceu Luma Nogueira Andrade. Contrariando as
expectativas dos pais agricultores e analfabetos, Luma mudou de nome e
desafiou as normas de gênero. Cursou Ciências na Universidade Estadual do
Ceará, foi aprovada nos concursos para o cargo de professor na rede municipal
de Morada Nova (CE) e na rede estadual de Aracati (CE), tendo sido a
“primeira” e única aprovada neste último concurso, é mestre em
Desenvolvimento do Meio Ambiente e em 2012 conquistou o título de doutora
em Educação pela Universidade Federal do Ceará, com trabalho intitulado
Travestis na Escola: Assujeitamento e Resistência à Ordem Normativa, no qual
aborda o tratamento a travestis em escolas cearenses. Luma pretende dar
continuidade a sua carreira acadêmica, preparando-se para o pós-doutorado6.
Ressaltando o elemento “pioneirismo”, várias discursos a retratam como
uma travesti que alçou voos nunca antes atingidos. A maioria das notícias na
mídia destaca seu “pioneirismo” na educação e algumas relacionam sua
travestilidade à região. Luma é uma travesti do Nordeste que enfrentou o
preconceito no âmbito escolar e viu na escolarização formal uma maneira de
superar a discriminação advinda do rompimento com as normas de gênero.
A atuação de Luma no meio acadêmico rompe com o que Berenice
Bento (2011) falou a respeito do fazer ciência e do fazer política no tocante à
produção científica sobre travestis e transexuais. Para a autora, as/os
pesquisadores (não travestis e não transexuais) de transexualidade e
travestilidade engajam-se politicamente após a realização de suas pesquisas,
diferentemente do que ocorre com mulheres e negros nos estudos de gênero e
raciais, respectivamente. A autora estabelece essa diferença sem chamar
atenção para o fato de que historicamente não são dadas condições para
travestis/transexuais terem sucesso na educação formal, quiçá na produção de
conhecimento científico.
O “pioneirismo” de Luma como travesti nesse espaço ocupado por
pesquisadores solidários (“travestis políticas/os”, para Bento) com a causa
trans configura-se nesse contexto. Luma é uma estudiosa travesti sobre
6 Informações retiradas da matéria: GLOSS! LUMA ANDRADE 1ª DOUTORA TRAVESTI DO
PAÍS. http://onixtababado.blogspot.com.br/2012/08/gloss-luma-andrade-1-doutora-travesti.html. 23 de agosto de 2012. Consulta em 18.03.2013.
travestis, uma produtora de conhecimento que tem na sua experiência uma
mola propulsora para seu trabalho científico. Nesse sentido, talvez coubesse a
problematização sobre até que ponto falar em “travestis ou transexuais
políticas/os” compactua com a (im)possibilidade de fala do subalterno, não no
sentido de quem pode falar, mas a partir do discurso estabelecido, que
desautoriza algumas existências e se apropria de suas falas (SPIVAK, 2010).
A existência de uma travesti com pós-graduação chega a ser vista com
excentricidade de tão rara. A história de Luma foi apresentada no programa
televisivo Fantástico, da Rede Globo de Televisão, no quadro O curioso. Para
compor o cenário excêntrico visivelmente pretendido pelo programa, o repórter
posicionou-se na entrada de Russas (CE) e apresentou Luma como “o primeiro
travesti no Brasil a chegar ao doutorado”, deflagrando incompreensão sobre
experiências de travestis, ao tratá-la como pertencente ao gênero masculino,
atitude comum nas mídias brasileiras. Nessa matéria, Luma prioriza a
divulgação da ideia de que há outras possibilidades de vida para as travestis
brasileiras além da prostituição, afastando-se de uma imagem estereotipada.
Ela afirma que a travesti pode ser inteligente e se inserir na sociedade, o que
significa se adequar às normas sociais, apesar de desestabilizar as normas de
gênero. Essa inserção se daria pela educação ou qualquer outra atividade que
não a prostituição, negativando essa atividade.
Kátia Tapety
Kátia Tapety, travesti nascida no Piauí, tornou-se relativamente
conhecida no cenário nacional devido ao seu “pioneirismo” na política. Analiso
aspectos da sua história a partir do documentário Kátia (2012), da diretora
Karla Holanda, ao lado de algumas matérias jornalísticas. O documentário, logo
no início, nos informa a respeito de concepções de gênero que permeiam a
vida da personagem principal: “O homem que vai ser viado tem que morrer”,
repetia Bastim Tapety, o pai de Kátia. A sequência de imagens encarrega-se
de transmitir a mensagem do lugar em que Kátia vive: vegetação seca, estrada
com asfalto cheio de buracos, cidade pequena, muitas motos e bicicletas,
poucos carros, animais conduzidos por trabalhadores/as rurais, sendo Kátia
uma delas, apresentando “a vida de uma camponesa no sertão do Piauí, lugar
difícil de viver”.
Colônia do Piauí, onde reside Kátia, é um município do sertão do Piauí
com apenas oito mil habitantes. Porém, não é somente por isso que Kátia é
conhecida por todos. Sua família é tradicionalmente relacionada à política local
e a própria foi vice-prefeita e vereadora mais votada do munícipio por três
vezes. Todos parecem reconhecer a feminilidade reivindicada por ela, com
exceção dos irmãos que a chamam de Zezão. A própria Kátia frisa: “Tem
homem muito macho no Piauí, mas todos me veem como uma senhora, não
me veem como ‘ó o viado!’. Eles me respeitam: ‘ali é dona Kátia, a vice-
prefeita, é casada, é mãe de filho’”7.
Muitas referências a Kátia chamam atenção para seu pioneirismo no
Nordeste. Ela reafirma sua vitória: “Se criar num sertão desse... tá vendo aqui o
sofrimento, tá vendo?”. Em certo momento do filme, um morador da cidade de
Oeiras (PI), município vizinho à Colônia do Piauí, faz o seguinte comentário: “A
pessoa que luta num lugar como esse, vir de uma família tradicional, pra ter
força do jeito que ela teve... É muito difícil a pessoa conseguir e ela conseguiu
vencer no meio de um sertão desse aqui. A gente de vez em quando vai lá
[Colônia do Piauí] e vê como é a coisa lá. É muito linda a história dela”.
Em algumas matérias jornalísticas Kátia é o próprio Nordeste, como na
matéria Encontros e desencontros de uma brasileira nas telas, de Iracema
Sales (2013), que diz: “A história da personagem do filme confunde-se com a
do próprio Nordeste, região inventada no início do século passado, sendo
marcada por estereótipos, uma vez que o sertão é associado ao atraso tanto
cultural quanto tecnológico”. Apesar de ressaltar o caráter de construção da
região e da história de Kátia, a compara ao “atraso cultural e tecnológico”.
Continuando com a analogia entre Kátia e a região, diz a jornalista:
Tal qual o Nordeste, de chão vermelho arenoso, Kátia Tapety aprendeu a se reinventar para sobreviver. E, mais: lutar para expressar a sua real identidade, já que nasceu ‘José’, mas no íntimo, sentia-se Kátia. No cartaz do filme, aparece de chinelos, lábios e unhas vermelhos numa estrada, como se estivesse abrindo caminho, à frente de carros. Na realidade, Kátia Tapety não apenas abriu caminhos para dar voz a outras Kátias nascidas no semiárido nordestino, como fez história”
8.
7 Disponível em: http://katiaofilme.com/sobre-katia2/. Consulta em 04.06.2013.
8Disponível em: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1276283. Acesso em
04.06.2013.
De acordo com essa fala, por trás de toda essa construção de
estereótipos, existiria uma real identidade. Kátia e as estradas do Nordeste
abrem caminho para a inovação.
É comum também encontrarmos comentários sobre a surpresa da
história dessa “pioneira” acontecer justamente no Nordeste, como na matéria
intitulada Muito Autêntica, veiculada no Jornal O Povo, de autoria de Nara Vale:
"No mesmo sertão que a música cantou como ‘terra de cabra macho’, Kátia
tornou-se a primeira travesti a ser eleita a um cargo político no Brasil e uma
das mais respeitadas cidadãs de Colônia do Piauí, município emancipado de
Oeiras”9.
A diretora Karla Holanda relata a mesma surpresa em entrevista: “o fato
de a primeira travesti a se eleger a um cargo político no país vir de uma
pequena cidade cravada no sertão do Piauí, foi o que primeiro me chamou a
atenção”. Ao ser perguntada sobre o papel do seu filme dentro do Universo
LGBT, a diretora fala sobre a “revelação de uma personagem travesti vista com
dignidade”10.
A associação feita entre “travesti pioneira” e “dignidade” é recorrente em
relação às outras travestis apontadas nesse artigo, o que revela a abjeção11 de
travestis no Brasil. Ser uma travesti digna significa se adequar o máximo
possível ao padrão de normalidade instituído. É não ser prostituta, é trabalhar
no mercado formal, é constituir uma família tradicional. Nesse sentido, Kátia é
digna. Foi casada com um homem por 20 anos, adotou três filhos, nunca se
prostitui. Cabe a pergunta: a história de Kátia só é “digna” de ser narrada por
que ela é uma travesti pioneira, uma travesti diferenciada (diferente das não
dignas)? Isso nos leva a reflexões sobre os limites entre normatização e
transgressão a partir da sexualidade e do gênero que conflitam na construção
dessas travestis higienizadas, dessas transgressoras certinhas.
9http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2013/06/10/noticiasjornalvidaearte,3071415/mui
to-autentica.shtml. Acesso em 03.06.2013. 10
Disponível em : http://www.papodecinema.com.br/entrevistas/karla-holanda-desvenda-katia. Acesso em 02.06.2013 11
Abjeção no sentido dado por Butler (2002, 2008) para falar sobre aqueles seres inaceitáveis por códigos de inteligibilidade ao ponto de não serem considerados sujeitos, designados como zonas inabitáveis de vida e “corpos que não importam”. No entanto, afirma a filósofa, a ideia de seres abjetos é necessária para definir o domínio do sujeito. Esses corpos existem e sinalizam algo que permanece fora dessas oposições binárias, possibilitando o próprio binarismo.
Matéria intitulada Kátia: A luta pela dignidade no sertão nordestino
retrata Kátia como uma travesti que desafia o conservadorismo na tarefa árdua
de conquistar a dignidade no Nordeste, deixando mais complexa a relação
entre travestilidade/regionalidade/dignidade. É como se a região prevaricasse a
dignidade das pessoas, notadamente das que rompem as normas de gênero,
já “naturalmente” corrompidas. A matéria mostra “contrastes quase
inconcebíveis” entre “uma roça maltratada pela seca” / “a vida humilde de um
município” e “uma parada pela igualdade em um trio elétrico”/ “um encontro da
causa gay no Rio de Janeiro”, estabelecendo uma dicotomia entre o rural (a
roça, a seca, a hierarquia) e o urbano (a tecnologia, a igualdade), bem como o
contraste entre o Nordeste e o Sudeste. O destaque de Kátia em seu
desbravamento é único:
O tom pode parecer otimista demais de início, pintando quase que um oásis de respeito e cooperação no meio do sertão brasileiro, mas tem um bom fechamento ao chamar atenção ao fato de que Kátia é uma exceção na região em que vive, e até mesmo no país. Mesmo com as conquistas dos últimos anos, a homofobia ainda existe e continua sendo um assunto que precisa de atenção
12.
Conclui, assim, dizendo que o sertão onde Kátia mora não pode ser
harmônico em termos de respeito e aceitação da diferença.
Jovanna Baby
Jovanna Baby é natural de Mucuri (BA), porém cedo foi para o Piauí,
onde permaneceu até a adolescência. Sua atuação nos movimentos sociais se
iniciou no Rio de Janeiro, onde morou por vinte anos. Hoje ela retornou para o
Piauí e reside no município de Picos. Analiso fragmentos da sua história a
partir de conversa que tivemos13 e retiro outras informações do documentário
Travestilidades e transexualidades14.
A criação da ASTRAL/RJ e a organização do ENTLAIDS15 são
consideradas referências para o movimento de travestis no Brasil, com atuação
central de Jovanna Baby, apontada como “pioneira” na militância de travestis.
“Sou a fundadora, idealizei, convidei seis companheiras no Rio e a gente criou
12
Disponível em: http://cinemacomrapadura.com.br/criticas/280466/katia-2012-a-luta-pela-igualdade-no-sertao-nordestino/. Acesso em 29.05.2013. 13
9º Encontro Regional Nordeste de Travestis e Transexuais, Teresina-PI, 2012. 14
Produzido pelo Nuh/UFMG – Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT, com depoimentos captados durante o XVII ENTLAIDS. 15
Encontro Nacional de Travestis e Transexuais, concebido no ano de 1993 como Encontro Nacional de Travestis e Liberados.
esse movimento que hoje tá aí em todos os estados do Brasil. A gente criou em
1992, eram apenas seis pessoas e já decidimos, já no primeiro ano de criação
do movimento, já fizemos um encontro nacional”, afirma Jovanna, corroborando
com uma espécie de mito fundador do movimento de travestis no Brasil.
Embora tenha ido para o Rio de Janeiro e lá tenha consolidado sua
atuação política, Jovanna aponta sua origem no Nordeste e sua relação com a
família como fundamentais para o seu ativismo:
Sou nascida em berço cristão. Meu pai é pastor jubilado da Igreja Assembleia de Deus. Eu particularmente não sofri [preconceito na família]. Mas o meu pai foi a pessoa que mais me apoiou. Ele dizia assim: “Ah venha, mas já que você resolveu ser mulher, venha com uma sainha mais comprida”. E os irmãos de igreja questionavam ele porque que ele fazia questão de sair comigo. Ele dizia: “Deus disse que você tem que amar a todos como a si mesmo” Eu, travesti, não tive condições de fazer faculdade de nível superior, mas eu fiz o Ensino Fundamental e Ensino Médio completo, mas foi com muita dificuldade. Mas foi muito difícil estudar, mas estudei. Graças a Deus, completei o Ensino Médio e agora Graças a Deus vou fazer lá na minha cidade o curso de Serviço Social (Jovanna Baby, documentário Travestilidades e transexualidades).
A relativa aceitação de Jovanna por seu pai aparece relacionada à
religiosidade, pelo viés da conformação pautada no amor cristão. Aqui
podemos perceber proximidades com a experiência de Janaína Dutra. No
entanto, o pai de Jovanna exige que ela seja, no seu entender, uma “mulher
respeitável”, principalmente no que tange a sua vestimenta. Ela aponta ainda
para suas dificuldades, como travesti, em continuar os estudos, mas a
possibilidade de cursar uma faculdade é atribuída a Deus, concepção advinda
da influência familiar.
O pioneirismo de Jovanna aparece muitas vezes relacionado às
qualidades pessoais, deixando invisível todo o jogo entre movimentos sociais e
Estado, especialmente no caso do movimento de travestis no contexto de
enfrentamento à epidemia da Aids16, da efervescência de associações de
travestis na maioria dos Estados brasileiros e de financiamentos de projetos
pelo governo. Enfim, ao afirmar que é “a idealizadora que começou tudo isso”,
Jovanna aparece como descolada do contexto social que possibilitou a atuação
desses sujeitos em detrimento de esforços e características individuais.
16
Vide, por exemplo, a mudança do nome do ENTLAIDS que passou se chamar Encontro Nacional de Travestis na Luta contra a Aids em 1996 devido ao financiamento pelo Programa Nacional de DST-AIDS do Governo Federal, configurando o que Pelúcio (2009) chama de sidadanização.
Keila Simpson
Keila nasceu em Pedreiras (MA) e se mudou para Teresina (PI) aos 14
anos de idade porque “tinha fascinação por conhecer cidade grande” e também
porque “queira uma liberdade pra fazer o quê e onde eu quisesse”, embora
afirme que os pais não a controlavam muito (entrevista em 23/10/12)17. Essa
relativa liberdade que vivenciou na infância pode ter contribuído para que ela
desse vasão aos seus desejos de experimentar ser diferente dos meninos da
sua cidade, segundo relata.
A história de Keila é uma constante busca por centros urbanos que ela
relaciona diretamente à liberdade. De Teresina, cidade ainda muito pequena e
violenta devido à ação de policiais na década de 1980, ela foi para São Luís
(MA) e depois para Recife (PE), que já havia passado por um processo de
urbanização e industrialização mais intenso do que as demais capitais
nordestinas.
Nota-se que Keila parte para centros cada vez maiores. Na medida em
que Keila viaja pelas capitais dos Estados nordestinos, ela vai construindo sua
travestilidade e dando corpo aos seus anseios de transformação. O encontro
com a prostituição reforçou esse desejo de mudança, aliado às necessidades
financeiras. Ela relata a surpresa que teve quando no centro de Recife
encontrou em uma só esquina 40 travestis com o corpo siliconado e
hormonizado e com a constatação de que ganhavam dinheiro com o sexo.
Entretanto, em Recife, Keila também se deparou com a violência contra
travestis e resolveu partir para Salvador (BA).
Da participação na pesquisa Don Kulick (2008) com as travestis em
Salvador, resultou grande amizade entre o antropólogo e Keila e a
possibilidade dela ir para a Suécia, por intermédio de uma passagem dada a
ela como presente pela amizade firmada. Já na Europa, motivada pelas
histórias de muitas amigas travestis brasileiras que tinham migrado para a
Itália, resolveu passar pela mesma experiência. Depois de alguns anos, decidiu
voltar para o Brasil, quando consolidou seu engajamento no movimento de
travestis. Depois de ter passado pela presidência da ANTRA e pela
coordenação de projetos nacionais direcionados às travestis, chegou à
17
9º Encontro Regional Nordeste de Travestis e Transexuais, Teresina-PI, 2012.
presidência do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção
dos Direitos LGBT (CNCD/LGBT)18, feito inédito até o momento. O pioneirismo
de Keila é ainda mais destacado nesse ponto porque, além de ser a primeira
presidenta travesti de um conselho federal, ela foi a primeira pessoa da
sociedade civil a ser eleita para a presidência.
Atravessada por hierarquias geopolíticas e por normas de gênero
binárias, Keila, assim como Jovanna e Janaína, efetuou deslocamentos
espaciais ao migrar do interior nordestino para centros urbanos maiores.
Dentro do território brasileiro, o destino privilegiado que mais aparece nas falas
das travestis são as capitais do Estado onde moram ou dos Estados vizinhos e
cidades do Sul e Sudeste, em especial São Paulo. Entre países do exterior, a
França figurou em primeiro lugar durante a década de 1980, disputando
posteriormente com a Itália e outros países europeus, como Espanha. Ao
percorrerem esses caminhos em busca da urbanização-modernidade-
liberdade, essas travestis estão imersas em lógicas que as percebem como
retirantes a procura de uma vida menos dura e, no caso das travestis
especificamente, de uma vida de glamour.
Considerações finais
Ao longo do artigo, buscamos explorar marcas do gênero presentes em
fragmentos biográficos de travestis do Nordeste, inserindo-as no seu contexto e
em concepções acerca da região e de como elas são atravessadas por essas
marcações.
Piscitelli (2004), em seu estudo sobre pioneiros fundadores de grupos
empresariais brasileiros, fez análise semelhante sobre como características
consideradas masculinas e femininas atravessam relações familiares e
econômicas e percebeu que as narrativas sobre eles possuem um caráter
edificante, apresentando esses empreendedores como exemplos de vida
capazes de inspirar outros. Podemos estender essas afirmações ao modo
como essas travestis pioneiras são percebidas, como portadoras de
18
Vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. O Conselho é composto por trinta membros, sendo quinze agentes governamentais e quinze da sociedade civil. Foi criado em 2001 como Conselho Nacional de Combate a Discriminação até quem em 2010 passou a atender demandas específicas do movimento LGBT passando a se chamar Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD-LGBT).
características marcantes de personalidade e de qualidades baseadas em
méritos individuais que as conduziram ao sucesso – ou pelo menos que as
distanciaram de estigmas que marcam a travestilidade no Brasil: prostituição,
criminalidade, perigo. Evidente que com as devidas ressalvas, já que nos
relatos de empreendedores as qualidades apontadas são virilizadas e
assentadas em corpos reconhecidos como correspondentes, ou seja, ancoram-
se em elementos de gênero legitimados ao não discordarem do padrão
heteronormativo. Além disso, esses empresários passam a constituir uma elite
econômica, portanto, possuidores de grande prestígio.
As estratégias das travestis aqui analisadas e de alguns discursos ao
seu respeito apresentam-se, sobretudo, como maneiras de resistência que se
configuram na atualidade, na busca por reconhecimento ou simplesmente pelo
direito de existirem como corpos que importam (BUTLER, 2008). Buscamos,
assim, entender como “esses corpos inconvenientes emergem em espaços de
abjeção e prestígio” (OCHOA, p. 65) e como a perversão dessas pessoas e
lugares negocia sua existência nos círculos de poder.
Subjacente à discussão sobre ‘“pioneirismo” emerge a questão das
hierarquias de saberes e espaços que vão sendo definidas ao longo do tempo.
Mostrando que aqui “também” abarca o “avanço”, não rompemos com a
posição de inferioridade relegada ao Nordeste e com a construção de saberes
sobre a região. Não é suficiente negar esse lugar e a condição de ser o “outro”
com concepções do tipo “aqui também conseguimos”. Assim não saímos da
lógica, apenas a invertemos.
O questionamento que deve ser feito não é como foi possível que
travestis consideradas pioneiras em determinados aspectos (militância,
advocacia, política, academia) surgissem justamente no Nordeste, mas porque
não poderiam existir nessa região. É necessário deslocar o foco da questão
para que a desconstrução do Nordeste e das/os nordestinas/os seja efetuada,
abrindo brechas para experiências de gênero e espacialidades outras. Não
ignoramos os aspectos discriminatórios existentes no Nordeste com relação às
travestis, afinal, existem muitos elementos que apontam para dificuldades,
violências, abjeções e impossibilidades nas entrelinhas das narrativas acima,
na medida em que desafiam padrões de masculinidade e de feminilidade
construídos como “verdadeiramente” regionais. Entendemos, no entanto, que
ficar preso a esses discursos com forças de subjetivização que circulam no e
sobre o Nordeste, reafirmando constantemente o atraso, o conservadorismo, o
machismo, acabam por perpetuar a edificação dos sujeitos e do espaço em
uma posição de subalternidade, de “outridade”.
A proposta foi de lançar um olhar que complexifica a região e as
concepções de gênero, ao invés de perpetuar a imagem da seca, da miséria,
do atraso, da injustiça, da ignorância, da fome. As vozes sobre e dessas
travestis pioneiras destoam desse “hino nordestino” da súplica, dos discursos
de vitimização, de discriminação, sem cair no outro extremo da total
liberalização dos costumes, pois suas conquistas são ainda limitadas.
Procuramos desnaturalizar normas de gênero e de figuras regionais, pensar
em nordestinas/os que não reforçam a imagem do macho e/ou da fêmea, essa
que, se não é também masculinizada, é submissa.
Ao propor uma abordagem interseccional entre regionalidade e
travestilidade, de forma a identificar especificidades de opressões particulares,
empreendemos uma reflexão inicial como parte do processo de construção de
referências teóricas e metodológicas para pensar o objeto de tese em
construção, visto que estudar travestis nordestinas é pensar em relações
sociais, econômicas e políticas marcadas por gênero, sexualidade, classe,
raça/etnia, religião, geração no Brasil pós-colonial, não como variáveis
independentes, mas percebendo-as como formas de opressão inscritas uma
dentro da outra, constituída pela outra e constitutiva dela (Brah, 2006, p. 351).
Com a discussão interseccional proposta, a intenção é ampliar os níveis
de investigação, entendendo que as diversas formas de diferença são
produzidas simultaneamente. Um movimento atento às interseccções entre os
mais diversos marcadores sociais da diferença permite uma visão mais
complexa dos objetos de estudo nas Ciências Sociais, situando-os em
processos mais amplos de colonialidade, de imperialismo e de capitalismo.
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