Bechara, Thiago Sogayar.
Memória cultural. Uma abordagem sobre tradição e modernidade, centrada nas
décadas de 1950 e 1960 com base na vida e na obra do compositor brasileiro Luiz
Carlos Paraná (1932-1970). / Thiago Sogayar Bechara. São Paulo, s.n., 2011. 95 p.
Monografia (Especialização) – Fundação Armando Alvares Penteado. Departamento
de Pós-Graduação (Lato Sensu) – Jornalismo Cultural.
Orientadores: Edilamar Galvão e Camilo D´Angelo Braz
1. Música brasileira 2. Historiografia 3. Memória cultural 4. Luiz Carlos Paraná
Thiago Sogayar Bechara
MEMÓRIA CULTURAL:
UMA ABORDAGEM SOBRE TRADIÇÃO E MODERNIDADE, CENTRADA NAS
DÉCADAS DE 1950 E 1960 COM BASE NA VIDA E NA OBRA DO COMPOSITOR
BRASILEIRO LUIZ CARLOS PARANÁ (1932-1970)
Monografia apresentada ao curso de Pós-
Graduação lato sensu (especialização) em
Jornalismo Cultural, da Fundação Armando
Alvares Penteado – FAAP, como exigência parcial
para obtenção de certificado de conclusão de
curso.
( ) Recomendamos exposição na Biblioteca
( ) Não recomendamos exposição na Biblioteca
Nota: ____________________________________
São Paulo, ______ de _________________ de ____/_____/_______
Professor (a)
Professor (a)
Professor (a)
Este trabalho é dedicado:
Aos meus pais, Jaime e Giselle;
Aos meus avós Bechara, Elda, Jorge e Delva;
À minha tia Cida e meu bisavô Salomão;
À cidade de Ribeirão Claro; e
Ao Luiz Carlos Paraná (1932-1970)
Agradecimentos
Aos meus pais, Jaime e Giselle, com todo meu amor devolvido em dobro,
pela confiança, pelo incentivo e por todos os ensinamentos.
À Giovanna, pelas leituras cuidadosas, por seus conselhos verdadeiros e seu
olhar de doçura que tanto me deu forças para prosseguir.
À Edilamar Galvão, pelos primeiros e valiosos direcionamentos a partir dos
quais este trabalho delineou-se em minha mente e meu coração.
Ao Camilo D´Angelo Braz que, tão generosamente, partilhou suas referências
comigo em todo o processo; a ele, um agradecimento especial impossível de ser
escrito.
Ao primo-filósofo ribeirão clarense Oswaldo Giacoia Junior, por sua atenção e
disponibilidade sempre tão respeitosas, ao apontar caminhos indispensáveis.
Ao Celso Favareto, pelas sugestões metodológicas que redefiniram
decisivamente o enfoque do estudo.
Ao querido amigo, ator e dramaturgo (ribeirão clarense!), Ivam Cabral, por sua
confiança e generosidade para comigo.
A todos aqueles que se envolveram e participaram deste processo de alguma
forma, nutrindo-me de incentivos e acreditando no valor de uma pesquisa como
esta.
Carlos Paraná deixou saudade e quem o conheceu sempre lembra dele, daquele jeito tranquilo de falar, daquela genialidade ao compor. Numa de suas músicas ele disse: “Queria que nunca fosse
preciso esquecer”. Meu caro Carlos Paraná, nós não o esquecemos. Deus o tenha!
Ubiratan Lustosa
Resumo
Bechara, Thiago Sogayar. Memória cultural: Uma abordagem sobre tradição e modernidade, centrada nas décadas de 1950 e 1960 com base na vida e na obra do compositor brasileiro Luiz Carlos Paraná (1932-1970). São Paulo, 2011. 95 pp. Monografia (Especialização). Departamento de Pós-Graduação – Jornalismo Cultural. Fundação Armando Álvares Penteado. Este trabalho concentra-se na produção musical do cantor e compositor ribeirão clarense Luiz Carlos Paraná (1932-1970). Para tanto, partiu-se da premissa de que este artista, inscrito no repertório da música popular brasileira na década de 1960, com duas canções hoje clássicas - "De Amor ou paz" e "Maria, Carnaval e Cinzas" -, sofreu um processo sistemático de esquecimento. Para avaliar as bases desse fenômeno, procurou-se fundamentação nas posições de Paul Ricoeur e Maurice Halbwachs, seguido de autores que tratam da história da música popular brasileira, caso de Zuza Homem de Mello e Ruy Castro, entre outros. Adicionalmente, para melhor compreensão dos temas propostos, o trabalho resgatou aspectos significativos da vida deste compositor, que serviram de alicerce para explicitar a evidente propensão do artista à afirmação da tradição, em meio a uma década de transformações na música popular. Com isto, a intenção foi a de interromper o período de ostracismo e incluir Luiz Carlos Paraná na pauta dos compositores que merecem atenção para uma mais acurada avaliação da sua produção musical.
Palavras-chave: Memória cultural. Esquecimento. Biografia. Música brasileira. Luiz Carlos Paraná. Jogral. Ribeirão Claro. Historiografia. Formação da cultura brasileira. Tradição. Modernidade. Resgate. Preservação.
Abstract
Bechara, Thiago Sogayar. Cultural memory: An approach towards tradition and modernity focused on the 1950s and 1960s, based on Brazilian composer Luiz Carlos Paraná’s life and work (1932-1970). São Paulo, 2011. 95 pp. Monograph (Specialization). Post-graduation Department - Cultural Journalism. Fundação Armando Álvares Penteado. This essay is focused on the musical production of singer and composer Luiz Carlos Paraná (1932-1970), who came from Ribeirão Claro. It is based on the premise that this artist, who in the 1960s imprinted into the Brazilian popular music repertoire two now classic songs - "De Amor ou Paz" and "Maria, Carnaval e Cinzas" - , has been systematically forgotten. To evaluate the basis of this obliviousness, foundations were sought in Paul Ricoeur and Maurice Halbwachs, as well as authors that have addressed the history of Brazilian popular music, such as Zuza Homem de Mello and Ruy Castro, among others. In addition, for a better understanding of this obliviousness, this essay has restored significant aspects of the composer's life, which served as the bedrocks to make explicit the artist’s evide nt tendency to affirm tradition, midst a decade of transformations in popular music. Therefore, the intention of this piece is to interrupt this period of oblivion and include Luiz Carlo Paraná on the list of composers deserving attention for a more accurate evaluation of their musical production.
Keywords: Cultural memory. Obliviousness. Biography. Brazilian music. Luiz Carlos Paraná. Jogral. Ribeirão Claro. Historiography. Brazilian culture formation. Tradition. Modernity. Rescue. Preservation.
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................09
1 As condições da memória...................................................................................14
1.1 A memória histórica.............................................................................................20
1.2 A biografia e a memória......................................................................................24
2 Um olhar analítico de intenção biográfica.........................................................28
2.1 Incursão comparativa nas temáticas..................................................................35
2.2 As paródias políticas e uma análise estética......................................................42
3 A cultura da Metrópole: tradição e modernidade............................................50
Conclusão: último canto.......................................................................................64
Referências............................................................................................................69
Anexos
1 O mundo do caipira (Antonio Candido)...............................................................78
2 Programa do show “Homens verdes da noite”....................................................83
3 Lista de imagens e documentos..........................................................................85
4 CD - Coletânea Luiz Carlos Paraná.....................................................................95
9
INTRODUÇÃO
Lavrador, eu sou dos grandes Cantador, sou dos pequenos (...)
(“Último canto”, Luiz Carlos Paraná e Adauto Santos)
Este trabalho concentrou-se na produção musical do compositor paranaense
Luiz Carlos Paraná, nascido na cidade de Ribeirão Claro. Meu foco central foi o de
avaliar elementos relacionados ao esquecimento a que ele foi submetido, tanto nos
conteúdos do ambiente midiático, quanto nas referências e menções alusivas à
música popular, não obstante o destaque alcançado por ele na década de 1960,
dada sua autoria de algumas das principais canções incluídas no repertório de
grandes cantores, ou mesmo por associar seu nome ao d´O Jogral, muito mais do
que uma simples casa noturna criada por ele - um espaço de encontros e
apresentações de artistas que assumiriam grande importância no projeto de
transformação da música popular em breve.
A escolha deste tema deveu-se a dois aspectos: o primeiro deles, de ordem
particular, refere-se a um conhecimento prévio deste compositor por referências
pessoais, uma vez que possuo laços familiares com sua cidade, onde passei grande
parte de minha infância. Além do mais, apesar de não terem mantido relações de
amizade, meus pais, tios e avós tiveram a oportunidade de conhecer Carlos Paraná
e seus pais, o que, de certa forma, inscreveu em mim um interesse específico pela
busca de mais elementos desta obra, bem como do modo como ela se inseriu na
música popular.
O segundo aspecto refere-se à tentativa de refletir sobre este compositor,
tendo como contraponto a oposição entre a memória e o esquecimento e, como
consequência, tratar da problemática da tradição e da modernização, coisa que o
projeto apontava como um possível caminho analítico para se entender o
esquecimento sistemático de algumas figuras representativas do passado.
10
Motivada pela perspectiva de compreender uma época de grande riqueza
cultural, à luz de uma personagem quase esquecida nos tempos de hoje, minha
investigação para a realização deste trabalho partiu da revisão do material
bibliográfico disponível sobre o contexto da época e, especificamente, sobre Carlos
Paraná (que há, embora em bem menor quantidade e de forma pulverizada, em
bibliografias pertinentes a outros temas).
Para tanto, alguns autores tiveram destaque na hora de iluminar o caminho a
ser trilhado. Alguns deles, como Helvio Borelli, Osvaldinho da Cuíca e Marcus
Pereira, trouxeram à tona o contexto da noite paulistana nas décadas de interesse
desta pesquisa. Outros, como Sérgio Cabral, Ruy Castro, Rosa Nepomuceno e Zuza
Homem de Mello, esclareceram percursos históricos singrados pelo cancioneiro
popular no País, de modo mais amplo. Sem Ubiratan Lustosa, ainda, grande parte
da memória radiofônica do Paraná perder-se-ia (ele clareou, ainda, o momento da
chegada de Carlos Paraná em Curitiba, no início de sua carreira artística); e
François Dosse, por sua vez, abordou em seu “O desafio biográfico: escrever uma
vida” (2009), o mérito específico das reflexões acerca do gênero biográfico, tratado
aqui como uma das possíveis ferramentas de construção da memória.
Por meio desses autores, pôde-se adentrar aspectos e características
peculiares da época, relativas, claro, às questões culturais que indicam novas linhas
de pesquisa, fornecendo nomes a ser entrevistados, veículos midiáticos a ser
consultados, ou mesmo ampliando esta bibliografia com dados complementares.
A metodologia de pesquisa, portanto, esteve fundamentalmente ancorada
num tripé que parece ter tido equivalência entre suas partes. Foram elas, a já citada
pesquisa bibliográfica referente ao tema ou ao contexto que o circunda; o trabalho
de campo que compreende as entrevistas com pessoas que conheceram Luiz
Carlos Paraná e estiveram presentes em sua vida e na criação de seu O Jogral,
como amigos, parentes, artistas, namoradas, garçons, porteiros, etc; e, por fim, a
consulta à documentação que deu conta de reconstituir grande parte da vida do
compositor, na busca de que esses dados indicassem caminhos esclarecedores
para a compreensão de sua formação artística e estética, bem como da época que
11
aqui se busca analisar (certidão de nascimento, atestado de óbito – de irmãos e
pais, inclusive -, registros de imóveis, carteiras profissionais, bilhetes amorosos,
fotografias autografadas, formal de partilha, boletins escolares, registro de Primeira
Comunhão, partituras impressas, artigos de jornal, artigos científicos, revistas,
documentários musicais, etc.).1
Entre os autores aqui citados, talvez Marcus Pereira seja o que mais se
aproximou de Carlos Paraná. Seu livro sobre a história de O Jogral - talvez o único
dedicado exclusivamente a este tema - constituiu imprescindível fonte de
informações, as quais apenas ele, que conviveu tão de perto com o compositor e foi
sócio minoritário do bar, poderia deter.
A importância dos demais autores está no fato de que nos fornecem, em sua
maioria, os ambientes vivenciados pelo compositor, as possíveis e prováveis
influências por ele recebidas, dentre outros dados que facilitam a compreensão do
cenário em que a personagem se desenvolve – tendo como respaldo as
confirmações obtidas por seus familiares e amigos.
Autores como Mário de Andrade, Glauco Barsalini, Renato Ortiz, Antonio
Candido, Sérgio Buarque de Holanda, Maurice Halbwachs, Paul Ricoeur e Jacques
Le Goff foram igualmente fundamentais para o esclarecimento das questões
relativas à música, à memória e ao esquecimento, tratadas na esfera da cultura, no
recorte histórico e da hermenêutica.
Assim, trataremos o tema proposto em capítulos definidos dentro da
seguinte estrutura: na primeira parte, intitulada “As condições da memória”,
abordaremos a temática da memória e do esquecimento, definidos por ações sociais
estimuladas e introjetadas pela mídia ou pelos meios de comunicação, mas nunca
1 É importante mencionar que nem toda a documentação coletada serviu diretamente à análise das
questões pretendidas por este trabalho. No entanto, foi por meio desta gama aparentemente excessiva que se pôde mergulhar de forma íntima no universo pessoal e profissional do compositor, aproximação indispensável para se compreender sua personalidade e, consequentemente, minimizar as chances de se incorrer em erro quando das reflexões de ordem mais subjetiva, igualmente necessárias.
12
espontâneas. São, neste sentido, propícias à preservação de certos fatos, assim
como ao soterramento de outros.
No segundo capítulo, “Um olhar analítico de intenção biográfica”,
apresentaremos aspectos biográficos de Luiz Carlos Paraná, uma vez que a história
pessoal do compositor oferece elementos relevantes para o entendimento da sua
postura, mais afeita ao comportamento reservado, e de suas posições, sejam em
verso ou em estilos musicais. Incluímos, também, a fundação de seu bar O Jogral,
procurando destacar neste recorte, aspectos contrastantes da personalidade do
artista, ao conviver com a tradição da música popular, com o acalorado debate
político em um país que convivia com uma ditadura militar e com novas tendências,
representadas pelo movimento tropicalista, assim como pela Jovem Guarda.
O enfoque da terceira parte estará posto sobre o contexto histórico das
principais etapas de sua vida, sem nos esgueirarmos, contudo, de um breve
panorama das décadas anteriores e também da dita “cultura da Metrópole”. O termo
foi generosamente sugerido pelo filósofo e pesquisador Celso Favareto, enfocando,
assim, os aspectos modernizadores de São Paulo nas décadas de 1950 e 1960, em
menção específica à Galeria Metrópole, onde nasceu a casa noturna de Carlos
Paraná.
Perceber que tipo de cidade era São Paulo nesta época, bem como quais os
principais fatos culturais que nela se desenrolam neste momento, emoldura melhor o
modo como o autor inseriu-se neste período de transição e refletiu isso em sua obra
e seus ideais para todo o País. Usarei, para melhor evidenciar tais relações, letras
de músicas de sua autoria e mesmo aspectos breves de sua composição melódica.
Desta forma, pontua-se com mais nitidez o atrito nele existente entre o
tradicional e o moderno. Daí o capítulo chamar-se “A cultura da Metrópole: tradição
e modernidade”. Este será o momento em que a experiência interiorana de Paraná
consagrará o choque com um novo Brasil; choque que ele já vinha sofrendo nos
anos passados em Curitiba e no Rio de Janeiro, antes de aportar em São Paulo.
13
Em “Conclusão: último canto” buscou-se, por fim, a ligação entre os
elementos expostos nos capítulos anteriores. A reunião dos aspectos tratados,
estabelecida de modo a, dela, obter-se relações originais no universo da canção
popular brasileira, abre caminho para uma possível resultante argumentativa que
procura coroar os temas gerais aqui explorados sobre memória e esquecimento.
14
1 AS CONDIÇÕES DA MEMÓRIA
O que lembro, tenho Guimarães Rosa
“Se o que vemos hoje toma lugar no quadro de referências de nossas
lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptam ao conjunto de
nossas percepções do presente” (HALBWACHS, 2006, p. 29.). É partindo desta
noção de interação existente em nosso processo de rememorar, em que as
lembranças servem ao mesmo tempo de reservatório e plataforma para a seleção do
que será apreendido, que o sociólogo francês Maurice Halbwachs (1877-1945) em
“Memória coletiva”, inicia sua discussão acerca do tema. É na linha formulada por
ele, que este trabalho tem início, ao buscar noções centrais que norteiem a temática,
aplicada à realidade social brasileira.
Assim sendo, vale o destaque de que trata inicialmente Halbwachs; o de que
tanto mais intenso apresenta-se o sentimento de se reviver determinado fato, quanto
mais possibilidades de compartilhamento daquela lembrança com outrem houver.
Noutras palavras, o papel concreto do testemunho revela-se sempre fundamental
para se reforçar ou enfraquecer a memória de determinado evento, tendo em vista,
contudo, a noção abstraída de que o primeiro testemunho acionado no
reconhecimento de qualquer coisa é sempre o nosso, em particular. Tal ideia
relaciona-se de forma justa às posições de Paul Ricoeur, quando o filósofo francês
postula que lembrar-se de algo é sempre, e de imediato, lembrar-se de si mesmo
(RICOEUR, 2007).
No entanto – e não obstante a alusão feita à importância do testemunho de
outros indivíduos neste processo de ordem aparentemente abstrata -, Halbwachs
pontua também outro modo de entender a questão; o de que, mesmo que
vivenciada por apenas um indivíduo, sua memória de um fato será, em última
análise, coletiva. Isto porque referências advindas de origens as mais diversas são
necessariamente chamadas em causa subjetivamente para que se efetive o
processo de rememoração, seja de eventos, locais, pessoas.
15
Isto acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem. (...). Suponhamos que eu passeie sozinho. Será que se poderá dizer que deste passeio guardarei apenas lembranças minhas? (...) Passando diante de Westminster, pensei no que me havia dito meu amigo historiador [por exemplo] (ou, o que dá no mesmo, no que li sobre a abadia em alguma história). (...) Outras pessoas tiveram essas lembranças em comum comigo. Mais do que isso, elas me ajudam a recordá-las (...) (HALBWACHS, 2006, p. 30 e 31)
Entretanto, isto não “garantiria” o reconhecimento das mesmas lembranças
por essas outras pessoas mencionadas, evidentemente. E, ainda que vivenciadas
em conjunto de fato, essas experiências seriam representações nas memórias das
pessoas por meio de imagens e sensações distintas entre si - daí a grande ameaça
de confusão entre memória e imaginação, ambas “associadoras” de ideias por meio
“desse tornar-se imagem da lembrança [, o que compromete] a ambição de
fidelidade na qual se resume a função veritativa da memória” (RICOEUR, 2007, p.
26).
Distintos níveis de intensidade de envolvimento com a lembrança de algo,
retoma Halbwachs, geram para cada membro do grupo que detém esta memória,
um modo outro e particular de vinculação, fruto de incontáveis variantes.
Será que por isso a memória individual, diante da memória coletiva, é uma condição necessária e suficiente da recordação e do reconhecimento das lembranças? De modo algum, pois se esta primeira lembrança foi suprimida, se não nos é mais possível reencontrá-la, é porque há muito tempo não fazemos parte do grupo na memória do qual ela se mantinha. Para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser reconstruída sobre uma base comum (HALBWACHS, 2006, p. 39)
Segundo o autor, a memória individual se preserva e recria ao longo do
tempo como parte integrante de uma memória coletiva, isto é, de algo em comum
que fez e continua fazendo parte de uma mesma sociedade ou grupo. Todavia,
como se verá melhor adiante, todo grupo é finito e uma memória coletiva não se
preserva senão até o término da vida de seu último membro. Tudo o mais, então,
será fruto de histórias deixadas em registro e retransmitidas - nunca de um processo
legítimo de lembrança pessoal.
16
É sabido que “(...) a História se ocupa do que ficou documentado, e a
documentação se refere geralmente à vida das camadas dominantes” (CANDIDO,
2003, p. 23). Isto é: da documentação da memória coletiva de um grupo bastante
específico, que possui sua ideologia - crenças e um conjunto particular de
interesses, sejam estes políticos, econômicos, afetivos e que, claro, servem de filtro
para o mundo (e, neste sentido, como “critério de seleção” psíquica e documental
dos eventos a serem retidos ao longo do tempo e retransmitidos, por meio de
incontáveis formas narrativas).
O ato narrativo, aliás, é visto por autores como o historiador francês Jacques
Le Goff, como um dos principais traços, por sua vez, do ato mnemônico. É neste
gesto, relativo à rememoração, que a própria linguagem como produto social recria e
redimensiona o fato ou objeto ausente, que se narra, conforme encontramos em seu
livro “História e memória” (2003). Daí o aparecimento da escrita ser considerado pelo
historiador como decisivo no processo de transformação da memória coletiva.
“Histórias, culturas e memórias são produzidas e armazenadas para vencer
de modo brando, a irremediável questão do descarnamento humano”, explicou Maria
Lucia Santaella2. “A cultura só evolui ao passo que preserva a memória do passado
e, neste sentido, a implantação do código alfabético pelos gregos, por exemplo, é
fundamental”.
“Inúmeros documentos mesopotâmicos do I milênio a.C. [aliás] contém a inscrição: ‘Para que não se esqueça!’, revelando uma concepção de História. Para eles, a palavra escrita deveria preservar uma lembrança segura do passado. Os escribas elegiam, assim, alguns fatos históricos como sendo dignos de memória e, portanto, de registro histórico escrito” (POZZER, 2004, p. 87 e 88)
“Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores [, aliás, dos]
mecanismos de manipulação” (LE GOFF, 2003, p. 422) do que é registrado nas
2 Doutora em Teoria Literária e Livre-Docente em Ciências da Comunicação, Maria Lucia Santaella
Braga concedeu uma entrevista para este estudo no dia 3 de julho de 2011.
17
memórias coletivas - precisamente por advirem do processo de luta pelo poder e,
portanto, pelo controle do que se tornará História.
Cada grupo social busca, de fato, “persuadir” seus membros, visando à
produção em cada um, de um sentimento de originalidade e autoria sobre as
inferências, associações, considerações ou emoções que, na verdade, “nos foram
inspiradas pelo nosso grupo”, tamanha a noção de harmonia que se estabelece para
que vibremos em uníssono no coletivo. “Quantas vezes expressamos, com uma
convicção que parece muito pessoal, reflexões tiradas de um jornal, de um livro ou
de uma conversa!” (HALBWACHS, 2006, p. 64).
Não é exagero realçarmos, ainda, que em primeiro plano no processo de
preservação coletiva de um fato, sobrenadam sempre lembranças de experiências
comuns à maioria dos integrantes de um grupo. Contudo, acerca do tema,
Halbwachs é preciso ao fornecer o contraponto fundamental de que
se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. Desta massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles. De bom grado, diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. Não é de surpreender que nem todos tirem o mesmo partido do instrumento comum. Quando tentamos explicar essa diversidade, sempre voltamos a uma combinação de influências que são todas de natureza social (HALBWACHS, 2006, p. 69, grifo do autor)
O conceito de memória, apesar de aludir originalmente ao ramo da
psicologia, da psicofisiologia, da neurofisiologia, da biologia e mesmo da psiquiatria
– sobretudo quando das questões do esquecimento (em que a amnésia se
caracteriza como a principal perturbação da memória) -, faz também com que tal
caráter fisiológico aponte metafórica e concretamente para os dados relativos à
memória histórica e social.
“A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos
em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas” (LE GOFF, 2003, p. 419).
Por meio delas, atualizam-se dados passados ou representados pelo homem como
18
passados, tornando-as ferramenta na noção de aprendizagem, se evocada no
universo da educação, por exemplo. A memória intervém, contudo, não apenas na
ordenação de vestígios como numa releitura desses vestígios.
Quando uma lembrança é contada, escreve o sociólogo e antropólogo
brasileiro Renato Ortiz em “A moderna tradição brasileira”, “sabemos que a memória
se atualiza sempre a partir de um ponto do presente” (ORTIZ, 1994, p. 78) e que,
portanto, a memória “constrói o ‘real’, muito mais do que o resgata” (SEIXAS, 2004,
p. 51). Assim, pode-se refletir que o presente e suas demandas socialmente
estruturadas é que determinam quais memórias serão evocadas no futuro para a
validação da condição do momento em que foram construídas:
Os relatos de vida [por exemplo] estão sempre contaminados pelas vivências posteriores ao fato relatado, e vêm carregados de um significado, de uma avaliação que se faz tendo como centro o momento da rememorização (ORTIZ, 1994, p. 78)
Segundo o historiador francês Pierre Nora (1984) citado por Seixas (2004), a
memória coletiva – enquanto tradição vivida -, no entanto, é também construída, por
sua vez, pela memória histórica – reconstrução intelectual. Trata-se, portanto, de um
processo mútuo em que uma alimenta a outra ao longo dos tempos, ainda que não
se confundam de nenhuma maneira. Isso porque Nora sugere que, para o
historiador, há a necessidade da distinção entre a memória validada no presente e a
memória que será investigada no processo da pesquisa histórica. Em si, essa
posição de Nora sugere, antes, os cuidados para o processo da história não ser
cooptado pelo clamor e pelas tônicas do presente.
Antes, porém, de nos aprofundarmos no conceito de memória histórica para
a melhor compreensão de sua relação com a memória coletiva, um retorno à Idade
Média – período primordialmente estudado por Le Goff – ajudar-nos-á a resgatar,
para efeito de registro, as origens da terminologia: inicialmente mémoire, “surgida
desde os primeiros monumentos da língua, no século XI. No século XIII, é
acrescentada mémorial (que diz respeito (...) a contas financeiras), e em 1320,
mémoire, no masculino” (LE GOFF, 2003, p 455), no sentido de um dossiê
administrativo.
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Os anos 1400 testemunham o surgimento de mémorable, quando do
“apogeu das artes memoriae” e da renovação de uma literatura tradicionalista, até
que em 1552 surgem os mémoires.
O século XVIII cria, em 1726, o termo mémorialiste e, em 1777, memorandum, derivado do latim através do inglês. Memória jornalística e diplomática: é a entrada em cena da opinião pública, nacional e internacional, que constrói também a sua própria memória. Na primeira metade do século XIX, presencia-se um conjunto massivo de criações verbais: amnésie, introduzido em 1803 pela ciência médica, mnémonique (1800), mnémotechnie (1823), mnémotechnique (1836) e mémorisation, criados em 1847 pelos pedagogos suíços, conjunto de termos que testemunha os progressos do ensino e da pedagogia; finalmente, aide-mémoire que, em 1853, mostra que a vida cotidiana foi penetrada pela necessidade de memória. Finalmente, em 1907 o pedante mémoriser parece resumir a influência adquirida pela memória em expansão (LE GOFF, 2003, p 455)
A memória eletrônica faz parte, aliás, desta verdadeira revolução da
memória que marcou o desenvolvimento do século XX, sobretudo após a década de
1950, no contexto do pós-guerra. Foi durante o conflito mundial cessado em 1945
que apareceram grandes máquinas de calcular. Elas integram um processo de
aceleração da história – em particular da história técnica e científica iniciada em
1860 – e, neste sentido, da “longa história da memória automática” (LE GOFF, 2003,
p. 462), que desaguaria em território brasileiro, na veloz implantação da Internet a
partir de meados da década de 1990, e no desenvolvimento de ferramentas a ela
ligadas posteriormente, como o buscador Google – que nada mais desempenha que
um papel de prolongação externa e ampliada da memória humana, conforme
evidenciou Maria Lucia Santaella, em nossa já citada entrevista.
A noção de memória como faculdade intelectual ligada ao conhecimento,
“alimentou [entretanto] toda a tradição platônica e neoplatônica que, por sua vez,
fecundou a Idade Média, de onde, a partir da importância da concepção agostiniana
da memória, influenciou toda a cultura racionalista” (SEIXAS, 2004, p. 39),
encontrada posteriormente.
A adequação entre memória e história possui, portanto, raízes sólidas e longas. (...) Recentemente, a partir da década de 80, a historiografia (...) toma consciência de que a relação memória-história é mais uma relação de conflito e oposição do que de complementaridade, ao mesmo tempo – aqui se inscreve a novidade da crítica – em que coloca a história como
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senhora da memória, produtora de memórias. (SEIXAS, 2004, p. 39, grifo do autor)
Retrospectivamente: vimos que memória individual e coletiva se
interpenetram sem perder de vista seus limites próprios; que do mesmo modo que a
memória individual pode se apoiar na coletiva ao visar à confirmação ou
especificação de lembranças ou então o preenchimento de alguma lacuna, também
a memória coletiva contém as individuais sem que se confundam, de maneira que
“se às vezes determinadas lembranças individuais também a invadem, estas mudam
de aparência a partir do momento em que são substituídas em um conjunto que não
é mais uma consciência pessoal” (HALBWACHS, 2006, p. 72).
Entretanto, tendo em vista a questão do testemunho, é também por meio
dele que se dá esse outro modo de rememoração ligado às noções de história. Mas
não por meio dele tido como relato externo que outras pessoas façam de fatos dos
quais também nós fizemos parte de algum modo – e que compõe, junto ao nosso
próprio relato, portanto, uma expressão da assim chamada memória coletiva.
1.1 A memória histórica
Tratemos, com base neste outro modo de rememoração supracitado, dos
testemunhos registrados de gerações anteriores e da chamada memória histórica.
Há fatos que ocupam lugar de destaque na memória de uma nação, sem ter sido por
ela toda vivenciados - considerada a passagem do tempo como impeditivo para que
tantas gerações experimentem as mesmas vivências e, assim, possam compartilhar
de uma memória coletiva perene, digamos. Se há fatos dos quais só se tem notícia
por meio de jornais, livros, testemunhos de quem deles participou e/ou documentos
de ordens as mais variadas, conforme mencionado, “quando os evoco, sou obrigado
a me remeter inteiramente à memória dos outros” (HALBWACHS, 2006, p. 72),
gerando o que Maurice Halbwachs chamou de uma memória de empréstimo.
Assim, o autor faz a distinção entre dois tipos contrastantes de memória, que
podem ser chamadas de interna e externa, pessoal e social, ou, mais exatamente,
autobiográfica e histórica.
21
A primeira receberia ajuda da outra, já que afinal de contas a história de nossa vida faz parte da história geral. A segunda, naturalmente, seria bem mais extensa do que a primeira. Por outro lado, ela só representaria para nós o passado sob uma forma resumida e esquemática, ao passo que a memória da nossa vida nos apresentaria dele um panorama bem mais contínuo e mais denso (HALBWACHS, 2006, p. 73)
O que postula Halbwachs é a identificação da memória coletiva como um
atividade “natural, espontânea, desinteressada e seletiva (...), ao contrário da
história, que constitui um processo interessado, político e, portanto, manipulador”
(SEIXAS, 2004, p. 40). Pierre Nora (1984) citado por Le Goff (2003) complementa,
por sua vez, que este tipo de lembrança existente no “vivido dos grupos” opõe-se a
priori quase termo a termo à memória histórica. O que ficou do passado para estes
grupos, ou o que eles na realidade fizeram de seu passado coletivo extingue-se com
seus integrantes. Só a partir daí, desta decomposição ou apagamento da memória
social, é que começa efetivamente o que se chama de História; somente quando os
grupos desaparecem por completo, donde se infere certa inadequação do termo
memória histórica que, como diz Halbwachs, associa duas expressões que se
antagonizam em diversos aspectos, ainda que se compreenda de modo genérico, o
que ela parece querer exprimir.
Enquanto subsiste uma lembrança, é inútil fixa-la por escrito ou pura e simplesmente fixa-la. A necessidade de escrever a história de um período, de uma sociedade e até mesmo de uma pessoa só desperta quando elas já estão bastante distantes no passado para que ainda se tenha por muito tempo a chance de encontrar em volta diversas testemunhas que conservam alguma lembrança (...). Como poderia a história ser uma memória, se há uma interrupção entre a sociedade que lê essa história e os grupos de testemunhas ou atores, outrora, de acontecimentos que nela são relatados? É claro, um dos objetivos da história talvez seja justamente lançar uma ponte entre o passado e o presente, e restabelecer essa continuidade interrompida. Mas como recriar correntes de pensamento coletivo que tomam seu impulso no passado, enquanto só temos influência sobre o presente? (HALBWACHS, 2006, p. 100 e 101)
Atualmente, a Nova História ou História das Idéias busca a criação de rigor
científico, mesmo incluindo elementos novos no processo de pesquisa; tais como os
hábitos e os valores, como pontua Le Goff. Este processo, partindo da memória
coletiva, pode ser considerado uma revolução da memória que “constitui em parte o
seu saber com os instrumentos tradicionais, mas diferentemente concebidos” (LE
GOFF, 2003, p. 467).
22
A segunda metade do século XX e a evolução de suas sociedades realçam,
cada vez mais, a importância que a memória coletiva desempenha, integrando as
grandes questões “das sociedades desenvolvidas e (...) em vias de
desenvolvimento, das classes dominantes e (...) dominadas, lutando, todas, pelo
poder ou pela vida” (LE GOFF, 2003, p. 469 e 470). Noutras palavras, as sociedades
cuja memória coletiva se ancora preponderantemente na oralidade são as que
melhor nos permitem distinguir os processos históricos de luta e dominação.
No século XXI, explica Seixas, a humanidade colhe os frutos de um
fenômeno ocorrido nas últimas décadas do século anterior. Qual seja, certa
obsessão comemorativa que nos faz sentir sob a batuta de um “império da memória
(e de seu correlato, o esquecimento)” (SEIXAS, 2004, p. 37 e 38). Entretanto, pontua
Halbwachs, “não é absolutamente por má vontade, antipatia, repulsa ou indiferença
que [uma sociedade] esquece uma quantidade tão grande de fatos e personalidades
antigas” (HALBWACHS, 2006, p. 105), mas por uma razão muito simples; a de que
os grupos sociais detentores de determinadas lembranças desapareceram ou
encontram-se em vias de se dissolverem.
Aliás, é difícil dizer em que momento desapareceu uma lembrança coletiva, e se ela saiu realmente da consciência do grupo, precisamente porque basta que se conserve em uma parte limitada do corpo social para que ali sempre se consiga reencontrá-la (HALBWACHS, 2006, p. 105)
Tal fenômeno relaciona-se de forma íntima com o processo de lembrança e
esquecimento da personagem analisada por este trabalho, sobre quem se tratará no
capítulo seguinte de modo pontual. Isto porque Luiz Carlos Paraná e seu bar O
Jogral caracterizam-se, primordialmente, por gerar em torno de si um grupo social
bastante específico, pequeno, mas talvez por isso mesmo tão frágil no sentido de
que esteve sujeito ao soterramento de sua memória coletiva e documentação
histórica.
Em 2000, retoma Seixas em seu artigo, com a comemoração dos 500 anos
de descobrimento do Brasil, o país passou por uma série de eventos que reavivaram
o fenômeno de caráter obsessivo supracitado, o que aparenta certo paradoxo, dada
nossa fama de nação “sem memória” e carente de manifestações do gênero,
23
sobretudo quando se fala em recuperar a história de parcelas excluídas do nosso
povo. Índios, negros, sem-terra e estudantes são exemplos de grupos que
constituem verdadeiramente nossa formação e não participam da escritura de nossa
história oficial com suas memórias coletivas.
Segundo Maria Lucia Santaella, ainda em depoimento para este trabalho, o
Brasil caracteriza-se, de fato, como uma nação que se relaciona levianamente com
sua memória:
Nosso país não tem um passado do qual se orgulhar, dado o tipo de colonização de extração que sofremos (daí não possuirmos grande peso de tradição). Não há respostas peremptórias, mas sim hipóteses, neste aspecto. Nosso passado além de muito recente, é ralo, no sentido de não ter uma memória histórica de engrandecimento. Nós começamos a desabrochar culturalmente a partir do final do século XIX, apenas. E a tradição, em termos gerais, faz parte da constituição da identidade de uma nação. Por isso, para nós essa questão é complicada. Nossa identidade é híbrida, como explica Néstor Garcia Canclini, no livro “Culturas híbridas”. Segundo ele, as culturas contemporâneas são misturas não apenas de diferentes etnias, mas de signos antagônicos que aqui convivem, como erudito/popular, trabalho/lazer. Isso até mais intensamente no Brasil do que na América Latina em geral. É também o que diz Sergio Buarque de Holanda quando trata da interpenetração do público e do privado, em “Raízes do Brasil”. Além disso, se pensarmos que a história é sempre contada pelo ponto de vista das classes dominantes, no Brasil não há também uma classe dominante unificada, com um só ponto de vista. Não há um uníssono ideológico, de modo que até essa documentação também fica fragmentada, além de diversa. Acho até mais importante pensarmos na questão da diversidade, porque ela produz um tipo de visão caleidoscópica da realidade brasileira. Para concluir, há a questão da nossa relação com o tempo, que é experimentado de maneira acelerada, sempre mirando o futuro, sem a vivência do presente necessária para a construção de uma tradição. E, claro, a educação brasileira, que está falida. Não se trata de negarmos nosso passado porque negar dá trabalho, requer primeiro o reconhecimento. Mas é uma característica da constituição da nossa cultura. Somos levianos e negligentes mesmo. A mesma leviandade que, em contrapartida, traz nossa alegria e espontaneidade.
3
Com tais ponderações, a pesquisadora traça um panorama que justifica, em
grande medida, o sentimento de atração e valorização do brasileiro pelo passado
europeu, já que, segundo ela, não temos o nosso, de que nos orgulhar. “Se não nos
engrandecemos com nossa história, não há razão para querermos preservá-la por
meio de documentação”, pontuou. “Com isso, tudo o que nos remete à pobreza, à
3 Considerações de Maria Lucia Santaella, em sua entrevista para este trabalho concedida no dia 3
de julho de 2011.
24
colonização, ao artesanato, à música local, é repudiado e associado como inferior.
Valorizamos, assim, o que vem de fora!”.
Para a professora, contudo, esboça-se recentemente no Brasil um
movimento de documentação, constatado também por inúmeros autores, e visto por
Santaella como indício claramente positivo do princípio de reversão dessas
características – “desde que não representem mais uma das modas das quais o
brasileiro é tão adepto”, observa.
A crescente revalorização da memória, tanto na esfera individual como nas práticas sociais ou mesmo no interior da historiografia, o acúmulo de falas de memória, sua operacionalização cada vez mais eficaz, o direito e o dever de memória reivindicados por inúmeros grupos sociais e políticos, convivem com um movimento inverso, que aponta um descaso ou fragilidade teórica realmente instigantes (...). Em uma palavra, muito se fala e se pratica a “memória” histórica – o boom atual da história oral e das biografias e autobiografias é, nesse sentido, bastante expressivo -, mas pouquíssimo se reflete sobre ela. (SEIXAS, 2004, p. 37 e 38)
Desta forma, para além de se trazer à tona dados biográficos ou movimentos
históricos perdidos, bastante proveitoso revela-se o aprofundamento sistematizado
nos processos pelos quais a memória torna-se, neste caso, parte das agendas
futuras. A música popular no Brasil esqueceu Luiz Carlos Paraná por ele não
integrar o “real” em funcionamento, o qual evoca outras memórias. Buscaremos, a
partir de então, uma maior aproximação dessa discussão com o gênero biográfico e
com seu possível papel no contexto atual de resgates historiográficos.
1.2 A biografia e a memória
A biografia constitui-se como um gênero por natureza híbrido, além de
extremamente controverso. Desde a Antiguidade, verificam-se registros de vidas de
personalidades notórias nas sociedades, como reis, imperadores e cientistas. Por
dois mil anos aproximadamente, o gênero sofreu por parte de inúmeros autores,
grande discriminação e uma distinção clara em relação à História, sendo visto
mesmo como representante de uma categoria menor, compósita, problemática e,
não raro, impossível de realizar-se. Isto por transitar tão sem cerimônia entre os
ramos da ciência e das artes, valendo-se de técnicas literárias de construção
25
narrativa, tanto quanto de metodologias de pesquisa e recursos científicos de áreas
como a historiografia para a reconstituição de fatos.
O caráter de “impureza” verificado em tais procedimentos parece ter sido
responsável, em grande medida, pelos olhos que maldisseram a biografia, legando
certo mal-estar acadêmico sobre a estrutura narrativa que tanta aceitação possui
entre seu público leitor. Apesar de bastante antigo e de ter percorrido fases ao longo
da História (em que o ato de escrever vidas marcou-se por diferentes tipos de
paradigmas reguladores – sobretudo do critério adotado sobre a escolha das
personagens), o gênero biográfico tem ganhado maior atenção nas últimas décadas
– sobretudo a partir dos anos 1980, com uma explosão editorial verificada em muitos
países - num processo de revitalização; e seu gradativo aprofundamento acadêmico
tem, inclusive, gerado trabalhos acerca da compreensão do estilo em si, e de
reflexão sobre o fazer biográfico e sua relevância para uma análise mais
aprofundada de determinada época histórica.4
Fala-se, com isso, em uma espécie de retorno da biografia, o que na
realidade caracteriza certa imprecisão, dado o fato de que o gênero nunca deixou
efetivamente de ser produzido e consumido. Pode-se pensar, contudo, que
[os] motivos de interesse atual pela biografia podem ser agrupados em dois eixos interligados: um primeiro que diz respeito aos movimentos da sociedade, e um segundo que se refere à evolução do conhecimento histórico, a partir das influências interdisciplinares. No primeiro eixo destaca-se, além de uma importância inicial da experiência democrática depois da Primeira Guerra Mundial, um reforço enorme do individualismo, constatado por muitos dos autores: cada vez mais o indivíduo tem seu espaço na sociedade e cada vez mais o homem se detém nele mesmo. Também tem seu papel o debate sobre a liberdade do indivíduo e sua relação com a sociedade, por meio da discussão das normas e valores, a partir das desilusões já muito discutidas da crise do marxismo e das utopias. Além de tudo isso, a mídia entretém hoje uma grande fome de imagens e de testemunhos, uma enorme curiosidade sobre a vida dos outros: quer-se “consumir a vida dos outros”, próximos e longínquos. Acho que o grande e recente boom da memória pode-se entender também nessa linha (próxima fundamentalmente à perda de identidade causada pela massificação,
4 Tal explosão, ressalte-se, vive em aparente antagonismo com a amnésia individual de nosso tempo,
como se verá melhor adiante. A eclosão do fenômeno deve-se, ainda, à complementaridade e à
interpenetração dos seis tipos de formações culturais classificados por Maria Lucia Santaella como
culturas oral, escrita, impressa, das massas, das mídias e digitais, as quais propiciam, na evolução de
seus cruzamentos, maiores possibilidades de produção e acesso à documentação histórica.
26
midiatização e pela dita globalização atuais) (BORGES, 2004, p. 288 e 289, grifo do autor)
O que Pierre Nora, aliás, identifica em seu artigo “Entre memória e história: a
problemática dos lugares” (1984), é justamente essa relação existente entre o
desejo de memória tão premente da contemporaneidade e a problemática da
mundialização vinculada à cada vez maior atuação da mídia nas sociedades. Com
isso, verifica-se um processo intenso de aceleração do tempo refletido na história e
no dinamismo com que ela passa então a ser registrada, o que se mostra
devastador.
Fatos veiculados pela mídia (e pelas ditas novas mídias) em tempo real,
forjam a sensação de um eterno presente e criam, de certa forma, com tal
aceleração, um novo modo de se fazer e se relacionar com a questão da
documentação histórica – e, consequentemente, de sua preservação, já que a
rapidez de nosso século rema na contramão da preservação e reintegração de
vestígios.
Evidentemente, a construção textual nos mais diversos gêneros vê-se hoje,
por conta disso, diante do desafio de readaptar-se a esta nova realidade. Sobre o
processo de construção narrativa da biografia e seu encadeamento de fatos, vale o
registro do que o jornalista e professor Edvaldo Pereira Lima ajuda a conceituar em
“Páginas ampliadas”, quando traça o panorama mais amplo que tão bem se aplica
ao caso dos textos biográficos, em particular:
Não se trata apenas de armar uma sequência após outra na dimensão temporal e de distribuí-la, como elos de correntes, no espaço. É também uma questão de plantar as ações-chave ao longo do texto, de ancorar a narrativa em pilares localizados de tal sorte que não deixem o teto desabar, para vergonha das paredes nuas. Há também a preocupação com a sequência de conflitos menores, que no seu conjunto somativo estruturam o grande conflito central da obra. (LIMA, 2004, p. 166)
Interpretar uma vida é tarefa que, ademais, abrange problemas de extrema
complexidade. Envolve diretamente elementos constituintes de nossas próprias
vidas e de pessoas próximas a nós, defrontando-nos irreversivelmente com o
processo psicanalítico da projeção, como explicou o historiador francês François
27
Dosse em seu livro “O desafio biográfico: escrever uma vida” (2009). Bastante
comum – e até necessária –, a identificação que se estabelece entre biógrafo e
biografado integra o caráter obsessivo que envolve invariavelmente a produção de
uma pesquisa similar.
Assumido de forma consciente e responsável, este mergulho resulta,
sobretudo, em honestidade intelectual e ideológica por parte do autor que, na
verdade, não pode produzir nada além de sua leitura pessoal daquela trajetória e
conjunto de fatos. No moderno paradigma do gênero, aliás, explica Vavy Pacheco
Borges (2004), o biógrafo encontra-se mesmo implicado na relação, sem
julgamentos e, ao mesmo tempo, sem imparcialidade, mas buscando estabelecer as
relações para a compreensão/aceitação/perdão da personagem. “A biografia
histórica”, segundo Le Goff (1999) citado por Borges (2004, p. 297) “é uma das
maneiras mais difíceis de se fazer história”.5
“A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela
está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento,
inconsciente de suas deformações sucessivas (...)” (NORA, 1993, p. 9). Neste
sentido:
O historiador que recolhe os testemunhos, documentos e vestígios e forma o arquivo, na maioria das vezes não presenciou os acontecimentos aos quais se volta. Ele é aquele que ouve, que se esforça para tirar do esquecimento a história. É ele ainda aquele que põe as diferentes versões e provas em conflito na discussão pública na busca de estabelecer uma versão verossímil – já que uma versão absolutamente verídica parece impraticável (CAZARIM, 2009, p. 10)
É sobre premissas e parâmetros metodológicos que operem dentro desta
lógica, que as análises por este trabalho propostas daqui por diante ancoram-se, ao
ter como ponto de referência a pesquisa biográfica por este autor produzida, desde
dezembro de 2008. Está nela, a origem dos dados pertinentes à discussão proposta
pelo presente estudo e que comporão o quadro histórico capaz de revelar
mecanismos por meio dos quais a obra de Carlos Paraná desvinculou-se da
memória da música brasileira, ao longo dos anos.
5 Jacques Le Goff, “Introdução”, In: São Luís: biografia. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 29.
28
2 UM OLHAR ANALÍTICO DE INTENÇÃO BIOGRÁFICA
A biografia histórica hoje reabilitada não tem por vocação esgotar o absoluto do “eu” de um personagem, como já se quis e ainda se quer. (...) Ela é o melhor meio de mostrar os laços entre passado e presente, memória e projeto, indivíduo e sociedade e de experimentar o tempo como
prova de vida (...)
(P. Lévillain, “Os protagonistas: sobre a biografia”)6
Quem descesse as escadas rolantes do Centro Metropolitano, como
também era chamada a Galeria Metrópole na Avenida São Luís, em São Paulo, e
seguisse (no ano de 1965, ainda sem medo de assaltos ou sequestros) à direita de
seu jardim central, até a última porta dos fundos, poderia entrar sem bater no
primeiro endereço daquele que foi um dos maiores centros de intelectualidade e
resistência cultural do país dos anos 1960 (embora fosse, fisicamente, diga-se, um
dos menores). Foi ali que, com a ajuda de alguns amigos, o cantor noturno Luiz
Carlos, chegado há cinco anos do Rio de Janeiro (onde aportara após uma breve
temporada residindo em Curitiba), pôde finalmente concretizar o sonho de abrir sua
própria casa noturna e encabeçar pessoalmente o projeto de resgate e preservação
da tradicional canção popular brasileira – agora conhecido também como Luiz
Carlos Paraná (como se assumiria juridicamente em 1969, incorporando ao seu, o
nome de seu Estado).
O jovem poeta viveu em sua terra até os 23 anos, aproximadamente.
Nasceu em 15 de maio de 1932, num município do norte paranaense recém-saído
da condição de vilarejo. Antes de chamar-se Ribeirão Claro, assim batizada em
1908, a região onde aportaram os avós de Luiz Carlos - vindos da Itália para
trabalharem nas lavouras de café -, abrigava em si duas vilas, chamadas Espírito
Santo do Itararé e Taquaral. Com a fusão de ambas, devido ao surto de malária que
obrigou a população de Espírito Santo a migrar toda para Taquaral, deu-se o
desenvolvimento de uma população cujos meios de vida eram basicamente rurais.
Com a qualidade deste solo especialmente propício à cafeicultura, dada a
predominância da chamada “terra roxa”, as plantações da região vicejaram e
6 LÉVILLAIN apud BORGES (2004, p. 287), em epígrafe.
29
tocaram a sensibilidade do menino, que não deixou de incorporar em sua obra as
marcas profundas que sua vida de roceiro lhe imprimiria na memória e no coração.
Basta uma primeira e descomprometida audição de um de seus maiores sucessos,
“Flor do cafezal”, para se compreender que os versos eternizados pelas vozes de
Cascatinha e Inhana (em 1967)7, contém o espírito de uma realidade bastante cara
ao compositor - e assim o foi até o final precoce de sua vida, aos 38 anos.
Mas a análise comparativa das obras de Carlos Paraná revela uma riqueza
de gêneros que o impede de ser classificado apenas como compositor caipira,
entendendo a terminologia caipira como sintetizadora do aspecto cultural – nunca
etnográfico8 - específico de uma região interiorana do país denominada Paulistânia
pelo historiador Alfredo Ellis Junior - qual seja, basicamente aquela de “influência
histórica paulista” (CANDIDO, 2003, p. 28) ligada aos ciclos bandeirantes do século
XVIII, ao universo rural e ao modo de vida rústico, tradicionalista, relativamente
homogêneo (e não, evidentemente, às acepções pejorativas mal empregadas na
designação jocosa de um tipo concebido preconceituosamente).
Antes, o ribeirão clarense foi um criador que buscou a diversidade e, para
isso, evitou as amarras estéticas ou uma metodologia de trabalho rígida vinculada a
manifestações de culturas particulares, como ele próprio explicou em matéria
jornalística9, na ocasião de sua bem sucedida participação no Festival de Música
Popular Brasileira da TV Record, de 1966. Mencionando o samba “De amor ou paz”
composto em parceria com o sócio e amigo-violeiro Adauto Santos, cuja segunda
colocação logo após “A banda” e “Disparada” deveu-se também à interpretação da
7 Outros tantos nomes da cultura raiz brasileira gravaram a canção, como Inezita Barroso, Rolando
Boldrin e a dupla Pena Branca e Xavantinho, para citar alguns.
8 Sobre essa questão, o professor Antonio Candido em “Parceiros do Rio Bonito” remete-nos ao livro
“Conversas ao pé do fogo” (São Paulo, 1921), de Cornélio Pires, em que a utilização dos termos “caipira branco”, “caipira caboclo”, “caipira preto” ou “caipira mulato” reforçam a distinção entre o modo de ser e o tipo de mestiçagem racial destas pessoas. Vale mencionar, no entanto, ainda segundo Candido, que a maior parte da população tradicional de São Paulo constitui-se de caboclos, isto é, do mestiço “próximo ou remoto” de branco e índio. Ver texto complementar “O mundo do caipira”, de Antonio Candido, nos anexos deste trabalho, página 78. O texto foi produzido como apresentação do LP duplo “Caipira: Raízes e frutos”, lançado pela gravadora Eldorado em 1980, e constitui fundamental fonte de esclarecimentos referentes à formação deste tipo de homem rural de origem essencialmente paulista.
9 Jornal Última Hora, de 14 de outubro de 1966.
30
cantora Elza Soares, Carlos Paraná retomou aspectos de sua juventude ao justificar
que vivera, ele próprio, entre bandas e disparadas e que, portanto, lhe parecia
pertinente o empate das obras de Chico Buarque e de Theo de Barros e Geraldo
Vandré – ambas faces de um mesmo universo ligado ao regionalismo.10
A criação de um bar-clube musical onde a proposta fosse o resgate da
tradicional canção brasileira em concomitância com toda a modernidade que a ela
se impunha, leva este trabalho a comprovar o intenso desejo do convívio
harmonioso entre manifestações de diversas origens, por parte de seu criador-
idealizador. A menção às bandas e disparadas de sua infância pode ser
complementada na busca de se encontrar as razões desta personalidade
musicalmente híbrida, quando se desvenda o processo pouco sistemático, apesar
de intenso, da assimilação musical de Luiz Carlos, que resultaria futuramente neste
tipo de direcionamento artístico.
Para que O Jogral resultasse num espaço aberto a homenagens como as
prestadas a Luiz Gonzaga, Clementina de Jesus, Adoniran Barbosa ou João
Pacífico, ao mesmo tempo em que propiciava, consagrava e bem-via o surgimento
de novos compositores como Caetano, Chico, Jorge Ben e Martinho da Vila, foi
preciso que na década de 1940 e 1950, o compositor ouvisse muito em seu quarto-
paiol discos de artistas mexicanos, argentinos, paraguaios, italianos, franceses e
portugueses cujas imagens pregava, com orgulho, na parte interna da porta de vidro
do armário fino e alto que seus pais, Braz Carlos e Ida Fonteque, mantinham na sala
da pequena casa. Foi necessário também muito tempo ouvindo o grande rádio que
seu Braz pôde enfim adquirir assim que a família deixou de ser meeira de
10
Para o Jornal Última Hora, de 14 de outubro de 1966, Carlos Paraná declarou: “Eu me considero
um compositor fora de série (...). Minhas composições não obedecem a uma linha determinada. Eu já fiz música caipira, moda de viola, guarânia (...) e até tango (...). Cheguei ao samba, à marcha-rancho (...). Continuarei assim, isto é, um compositor espontâneo. Fazendo a música que me vem à cabeça, pois a minha criação não é elaborada. Vem, quando vem a inspiração”. Sobre sua postura perante o movimento de renovação da música popular brasileira, ele responde que “apesar de não estar vinculado a nenhuma corrente”, acredita que o movimento é válido. Ainda mais quando se sente que os compositores jovens estão a cada dia pesquisando mais e utilizando temas, tanto urbanos quanto rurais, que realmente valorizam e engrandecem a música verdadeiramente nacional. Sobre O Jogral, ele reforça: “foi a primeira [casa noturna] a apresentar na noite a viola – a viola sentida que o Adauto Santos toca tão bem quanto o violão. E lá se pode ouvir desde o desafio nordestino, ao fado português, com Adauto dando à viola sonâncias de guitarra lusa. Já, desde muito, eu cultivava o folclore e todas as modalidades de música nacional”
31
proprietários rurais e comprou seu pequeno sítio próximo à entrada da cidade de
Ribeirão Claro, por volta de 1948. A geringonça oferecia aos seus ouvintes algumas
opções musicais, por meio das emissoras das redondezas – principalmente de
cidades como a paulista Ourinhos -, e toda uma programação de modas e desafios
bastante apreciados pelo público ribeirão clarense. E mesmo pelo pai de Luiz
Carlos, que além de violeiro fazia duos vocais com o irmão, sem maiores pretensões
artísticas.
Vale destacar, segundo referências fornecidas em entrevistas para este
trabalho por seus irmãos José Carlos e Francisco Carlos, que não era arbitrária a
preferência de Paraná por tangos, guarânias e canções mariachis as quais
igualmente influenciaram sua obra, tendo como representantes desses estilos,
tangos de sua própria autoria, como “Você merece um tango” e “Migalhas”, além de
sua guarânia “Queria”, gravada em 1964 pelo seresteiro Carlos José e registrada no
ano seguinte por Hebe Camargo, que a retomaria com as participações de Zezé di
Camargo e Luciano, em disco de 2001.
A história da canção caipira brasileira registra fases de grande influência das
estéticas musicais dessas culturas, segundo elucida o estudo “Música caipira: da
roça ao rodeio”, de Rosa Nepomuceno (2005). A Argentina exportou o tango, tendo
os próprios brasileiros recriado suas desilusões na força rítmica do estilo portenho. A
guarânia paraguaia, gestada por José Asunción Flores (1904-1972) em 1925, deixou
marcas, por sua vez, na obra de grandes e consagrados artistas regionais como o
foram Cascatinha e Inhana. E a sonoridade mariachi dos cantores mexicanos
inspirou não apenas a música de duplas bastante conhecidas na época, como Pedro
Bento e Zé da Estrada, mas também suas indumentárias, com direito inclusive a
enormes sombreiros. Carlos Paraná compôs a sua “Ainda ontem”, nesta linha.
Desde 1929, por iniciativa do contista, folclorista e poeta dialetal Cornélio
Pires, a cultura caipira era prensada em disco, inicialmente pela Columbia, gravando
canções e causos. Entre 1931 e o início do Estado Novo, em 1937, Getúlio Vargas
proibiu novas plantações de café, após queimar 70 milhões de sacas como
consequência da crise de 1929, que tanto fez decair os índices populacionais de
32
Ribeirão Claro, cuja principal economia era a cafeicultura, forçando um enorme fluxo
migratório do campo para as cidades, o que não impediu que no começo da década
de 1950, 63% da população brasileira ainda vivesse na zona rural. Isso ajudou a
manter um diálogo entre os dois universos, mesmo que em Ribeirão,
particularmente, a pecuária tenha assumido a responsabilidade do caixa na cidade.11
O processo de urbanização do Brasil, iniciado nos anos 1930, mas que se estabeleceu efetivamente após 1940, esteve vinculado à industrialização das grandes cidades do sul e sudeste do país, principalmente de São Paulo. (...). A 2ª Guerra Mundial trouxe forte impedimento às importações, estimulando sobremaneira o desenvolvimento da indústria nacional, fazendo com que um gênero de vida urbano moderno se impusesse cada vez mais ao país, coexistindo com um gênero de vida que vem sendo denominado ‘rústico’, que conservou características de épocas passadas, já que nas regiões mais afastadas do interior do país permaneceu a agricultura de subsistência, modelo produtivo desenvolvido pela maioria da população rural até a década de 1960. A mecanização do campo [por exemplo] colaborou na sistemática expulsão dos sitiantes, dos colonos e dos parceiros das terras que ocupavam, forçando-os a buscar novas terras (...). (BARSALINI, 2002, p. 86).
“Nesse ambiente híbrido e próspero, no apogeu dos programas de rádio, a
música sertaneja [termo já consolidado nesse momento] viveu seu período de glória”
(NEPOMUCENO, 2005, p. 143). Com a versatilidade que nossa música raiz seguia
incorporando cada vez mais, somada ao samba que se fortalecia como ritmo
nacional, e ao baião estilizado por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira a partir do
final da década de 1940, tornando-o febre nos salões de dança e nas vitrolas de
todo o país, o Brasil via amalgamar-se toda a riqueza de estilos que até então
vicejavam isoladamente e consagrava seu caráter historicamente miscigenado
devolvendo aos ouvidos de jovens e talentosos aprendizes, a diversidade sonora
que até poucas décadas atrás se encontrava abafada pelos cânones europeus.
Visando uma melhor percepção da questão temporal e do momento cultural de que
se está tratando, ressaltem-se aqui alguns breves paralelos traçados tão somente
como referência. O nascimento de Luiz Carlos Paraná, na chácara Boa Vista,
propriedade de José Bernardo de Faria Neia, deu-se exatos 10 anos depois da
11
Vale lembrarmos que o fortalecimento da pecuária após a crise do café - advinda do crash de 1929
na bolsa de Nova York – está relacionado à diminuição da população ribeirão-clarense devido ao fato de a cultura do café exigir muito mais trabalhadores para manter a lavoura, do que a criação de gado. Com isso, fazendas como a histórica Monte Claro, que até então faziam constar em sua folha de pagamento aproximadamente 300 famílias, tiveram de reduzir drasticamente sua quantidade de funcionários, o que se refletiu em termos gerais na população de todo o município.
33
Semana de Arte Moderna de 1922, quando o rompimento deste cânone imposto de
fora já se apresentava com força e poder modernizador capaz de gerar um perfil
nacional de nossa produção cultural.
Considerado por muitos como o principal compositor erudito do país – e,
talvez, um dos maiores representantes da música moderna naquele momento -, o
maestro carioca Heitor Villa-Lobos (1887-1959) foi também motivo de muitas
polêmicas. Em 1922, ele participou da consagrada Semana antes da qual, como
realça Gilberto Mendes (MENDES, 2007, p. 131), o compositor já havia criado uma
importante obra, capaz de romper o rigor e a seriedade herdados da música
europeia (sobretudo portuguesa) que, até então, compunha, junto da ameríndia e da
africana, nosso cenário musical. Uma música que refletia a própria concepção dos
diversos tipos de habitantes do País, isto é, “um povo misturado, porém inda não
amalgamado” (ANDRADE, 1980, p. 180), que tirou sua base técnica das cantigas e
danças importadas e, até então, não assimiladas de um modo próprio - que desse
ao Brasil, uma identidade.
Carlos Paraná vivenciou intimamente a rotina e o modo de vida do homem
rural. O som da água dos rios, do canto de cada tipo de ave, da mata, dos animais,
insetos – a tudo esteve efetivamente sintonizado, interiorizando de um modo todo
particular as informações que sua terra imprimia. Foi também no correr das águas de
ribeirões como o Claro, o Barro Grande, além do rio Itararé12, que o jovem Luiz
Carlos sentiu pela primeira vez o valor dessa pluralidade, como atestam diversos
parentes e amigos, em seus depoimentos para este estudo. Foi também como
defensor ferrenho das matas e dos animais que encontrou sentido em garantir a
preservação de um cancioneiro que frutificava como a natureza de sua infância.
12
Vale mencionar, para efeito de registro histórico, que a região ainda inexplorada da futura Ribeirão
Claro e, portanto, do rio Itararé fez parte da rota de transporte de gado no século XVIII, quando da atuação dos tropeiros na região visando comércio – como alternativa para atividade mineradora – e consequente introdução da pecuária no interior da colônia. Segundo Mary del Priore e Renato Venancio, em “Uma breve história do Brasil” (2010, p. 82), o itinerário de São Paulo para o “continente de Viamão” partia de Sorocaba e atingia as proximidades de Curitiba após rumar para Itapetininga, atravessar o rio Itararé e se dirigir para a região de Ponta Grossa.
34
O que se constata é que Paraná, apesar de ter-se permitido influenciar pelos
principais mananciais da canção tradicional no Brasil, entrou também, num futuro
próximo, em contato direto com os prenúncios de uma “revolução” estética musical
e, em seguida, com o elemento de reunião das novas ferramentas modernizadoras -
e as marcas dessa influência revelam-se claras em sua obra, que parece buscar um
equilíbrio sintetizador de ambas as linhas, como sugeriu o maestro Julio Medaglia,
em entrevista para este trabalho.
Apesar de nascido em ambiente rural, e embalado pelas modas de viola, por
toda a influência externa que nossa música caipira assimilou, pela consolidação do
samba e pelo surgimento do baião – todos ritmos e estilos ligados a um modo
particular da tradição popular -, Luiz Carlos Paraná, após dividir um quarto com o
cantor Léo Vaz (Anexo 3: página 94: figura 18) e outros artistas paranaenses na
pensão de dona Dionéia em Botafogo, Rio de Janeiro, migrou para o bairro de
Copacabana, no ano de 1958, onde se viu dormindo ao lado da cama do cantor
baiano João Gilberto, o qual, na mesma semana em que se mudara para a pensão,
gravara com a cantora Elizeth Cardoso no histórico LP “Canção do amor demais”,
tido por muitos como o marco da Bossa Nova, antes mesmo do cultuado “Chega de
saudade”. Este último, Gilberto gravaria em breve, após muitas tentativas visando a
satisfação de seu perfeccionismo, como testemunhou Carlos Paraná. E logo João se
transformaria no mito nacional até hoje cultuado.
Luiz Carlos – amigos que se tornaram – não apenas presenciou o
nascimento de uma das maiores transformações na proposta harmônica de nosso
cancioneiro, conforme atesta em texto-depoimento escrito para o programa de um
espetáculo futuro (Anexo 2 - página 83) -, como permitiu-se nutrir, talvez mesmo
inconscientemente, daquela nova batida e, sobretudo, daquela limpeza interpretativa
- enxuta como jamais se teria podido ouvir pouco antes, num dos incontáveis
sambas-canção que ecoaram pelo Brasil, dramáticos e transbordantes com sua
expressividade visceral, conforme explicou o maestro Medaglia, ainda em conversa
para esta monografia.13
13
Nas palavras de Julio Medaglia: “O Paraná tinha um talento fora do comum, sua música era muito
bonita mesmo. Ele era um fazedor. Então nesse novo caleidoscópio sonoro que surgia bem variado e até antagônico, era possível se ver coisas do gênero. O Paraná está nesse caldeirão, mesmo tendo
35
Se Luiz não abriu mão totalmente das opções temáticas daquelas
aboleradas e homéricas dores de cotovelo em sua obra, foi porque talvez sua vida
psíquica andasse imersa numa consciência da tragédia humana – ainda mais na
condição amorosa que tanto lhe era cara, por nem sempre ser bem sucedida, como
atesta o primo Airton Fonteque em seu depoimento ao autor deste trabalho.14 Ou
apenas por mera identificação estética. No entanto, isso não lhe impediu em
definitivo de seguir alguns dos passos que seu moderno companheiro de quarto
passava aos poucos a ensinar a todo o Brasil.
2.1 Incursão comparativa nas temáticas
Luiz não apenas urbanizou melodicamente as canções que criou a partir do
final dos anos 1950, como delas retirou em boa parte o sabor especificamente
regional das temáticas rurais, bucólicas, associadas a um tipo de desenho melódico
característico mesmo da moda de viola – incluídas as segundas vozes que eram
abertas nas poucas gravações que essas obras iniciais (nem sempre de qualidade
uniforme) recebiam dos mesmos mestres que Luiz Carlos ouvia casualmente nas
mudanças de estações – ou mesmo ao vivo, no cine-teatro de sua cidade, onde
artistas como Mazzaropi, Nelson Gonçalves e Cascatinha e Inhana apresentaram-
se, nas décadas de 1950, segundo depoimentos de diversos moradores de Ribeirão
Claro, assim como documentos deixados pelos próprios artistas aos donos do hoje
uma expressão artística mais triste, nostálgica, melancólica, e, nesse sentido, mais próxima dos bolerões de antigamente. Na época da Bossa Nova, claro que ele não teria tanto espaço, muito embora a música dele não fosse assim tão trágica. Na verdade ele fazia uma coisa até um pouco cool, que as pessoas cantavam sem grandes dramaticidades. Era um tipo de músico que não fazia samba de morro, samba de breque, pagode, ou algo assim. Tinha um estilo mais discreto, coloquial, e com isso a música dele não teve aquele caráter alegórico do carnaval, do samba tradicional”.
14 Segundo Airton, “apesar de namorador e até bastante disputado pelas moças da cidade, Luiz
sempre manteve a nostalgia romântica de não ter a pessoa desejada”. Quem foi, ele não revelou nem
ao primo, embora dissesse ser um amor impossível.
36
inexistente Cine Teatro Brasil15 - autógrafos preservados pelos herdeiros e
recuperados pela pesquisa deste trabalho.
Uma breve comparação temática de duas letras de sua autoria pode
colaborar com a melhor visualização das transformações aqui apontadas, as quais
são fruto direto do processo modernizador do País, refletido claramente em nosso
cancioneiro. A primeira delas é “Tezouros de minha terra”, aqui grafada com “s” - ao
contrário do registro original da toada no selo do disco 78 rpm em que se encontra
gravada na voz de Léo Vaz; e a segunda, “De amor ou paz”, composta em parceria
com o amigo Adauto Santos, após o início da década de 1960, quando se
conheceram - e defendida por Elza Soares no Festival de Música Popular Brasileira
da Record, em 1966, com o êxito de uma segunda colocação, como mencionamos.
Tesouros de minha terra (Luiz Carlos Paraná)
(gravada em 1958, mas composta em data imprecisa)
Lá no sul da minha terra/ Quando a lua vem da serra
Prateando os pinheirais/ Cada caboclo que canta
Tem a alma na garganta/ Cada qual soluça mais
As canções da minha gente/ Têm um gosto diferente
Um sabor que faz chorar/ E nos cantos do violeiro
Nunca faltam o pinheiro,/ a serrana e o luar
Ai, serrana... serrana dos pinheiras/ Amo a lua, adoro o pinho
Mas é de ti que eu gosto mais! (Estribilho – 2 x)
Minha terra é mãe do pinho/ Lá se alguém vive sozinho
15
Ver anexo nas páginas 92 e 93: Imagens dos autógrafos deixados na década de 1950 por Amácio
Mazzaropi e a dupla Cascatinha e Inhana.
37
No seu rancho a meditar/ Vendo o luar se debruça
Sobre a viola e soluça/ Suas trovas a dedilhar
Lá existem três motivos/ Sempre belos, sempre vivos
Para um poeta se inspirar/ É um trio feiticeiro
São três musas/ O pinheiro, a serrana e o luar
Ai, serrana (...) (Estribilho – 2 x)
E...
De amor ou paz (Luiz Carlos Paraná e Adauto Santos)
(Gravada em 1966 por Elza Soares)
Quem anda atrás de amor e paz/ Não anda bem
Porque na vida, o que tem paz/ Amor não tem
Seja o que for, sou mais do amor/ Com paz ou sem
Sei que é demais querer-se paz/ E amor também
Já que se tem que sofrer/ Seja dor só de amor
Já que se tem de morrer/ Seja mais por amor
Vou sempre amar/ Não vou levar a vida em vão
Não hei de ver envelhecer meu coração
Vou sempre ter em vez de paz inquietação
Houvesse paz/ Não haveria esta canção
Observe-se não só a mudança radical de opção temática, mas o modo com
que os diferentes assuntos são abordados. Existe na segunda letra (um samba),
maior elaboração de pensamento (ainda que não se possa chamar de erudição),
38
exemplificada pela sofisticação com que o jogo das palavras “amor” e “paz”
acontece – algo que se encontra em consonância com a moderna linguagem
musical recorrente na chamada Era dos Festivais. Enquanto isso, a descrição do
cenário sertanejo presente na toada “Tesouros de minha terra” oferece um rol de
imagens menos abstratas, ainda que não menos buriladas em sua síntese poética,
ao tratar, sobretudo, de um modo de vida, experimentado pelo compositor. Assim,
sentimentos e eventos típicos “lá do sul de minha terra” são descritos, possuindo até
certo grau de informalidade.
Tem-se, também, que a visão bucólica do compositor, exaltando a natureza e
a vida simples na forma idílica, submetida ao ambiente da metrópole, passa a se
deter na oposição “amor e dor”, muito presente na estética da época.
O pouco tempo que Luiz Carlos passou na capital paranaense, logo que se
despediu da pacata Ribeirão Claro (muito provavelmente no segundo semestre de
1955), talvez não tenha sido o suficiente para que se possa considerar o período
como tendo sido propício a uma efetiva influência estética. Mas o tempo ali
transcorrido, por certo que foi muito bem cerzido ao processo de sua maturação
pessoal e artística. Pouco antes, havia abandonado um emprego estável como
agente de estatísticas (Anexo 3: Página 91: Figura 13), trabalhando na prefeitura de
seu município natal – não sem antes ter sido entregador de leite para seu pai e ter
prestado serviços a um escritório de contabilidade da cidade, propriedade de um
homem cujo nome era Paulo Fávaro, conforme lembrou o irmão mais velho de
Paraná, Francisco Carlos, em entrevista para este estudo.
Além disso, a experiência profissional que adquiriu nos estúdios das
principais rádios curitibanas refinava o talento e a autoconfiança do jovem que
aprendera sozinho a pontilhar o violão. O instrumento foi comprado de segunda mão
em sua cidade e precisou ser restaurado para servir aos exercícios que o pequeno
Luiz se impunha. Segundo o radialista curitibano Ubiratan Lustosa (Anexo 3 - página
87: figura 5), foi com seu terno branco que bateu de porta em porta, e sempre ciente
de que viveria em Curitiba uma espécie de estágio que o preparasse para centros
maiores, até porque não havia por lá estúdios para gravação de discos ou uma
39
infraestrutura nem sequer semelhante a que ele encontraria na Rádio Nacional
carioca, quando por lá aportasse por volta de fevereiro de 1957, buscando realizar-
se em seu ambiente preferido de trabalho. Não eram os grandes microfones
radiofônicos nem a preocupação com uma possível produção fonográfica, deles
decorrente. Eram as boates, opção que se mostrará reveladora para este estudo.
Quando, já em 1965, pouco mais de um mês antes de seu aniversário de 33
anos, conseguiu abrir seu bar com o capital do namorado de uma amiga sua (o qual
se mostrou disposto a investir no ramo de casas noturnas), Luiz Carlos Paraná já
possuía, senão um tino comercial invejável, ao menos grande experiência cantando
em boates como Sambalanço, Zelão, Music Box, Open Door e Beco. Até a diretor
artístico do renomado Juão Sebastião Bar ele chegou, segundo jornais da época e
livros como “Noites paulistanas: histórias e revelações musicais das décadas de 50
e 60”, de Helvio Borelli (2005).
No dia 29 de março de 1965, às 19 horas, foi marcado o coquetel inaugural
de O Jogral, na Galeria Metrópole. Um espaço acanhado onde inicialmente apenas
Paraná, Adauto Santos e o amigo biólogo-sambista Paulo Vanzolini se assumiam
como opção musical, sem deixar, contudo, de atrair grande público, interessado não
apenas na proposta de resgate do bom samba tradicional, mas nas manifestações
populares como a seresta ou os desafios e repentes caipiras, improvisados pelas
mentes ágeis de seus fundadores. A seresta, melhor conceituada, é uma
manifestação de elite trazida pelos portugueses (...), que nos legou a principal base melódico-harmônica da nossa música e do inabalável gosto por temas passionais. (...). Os imigrantes europeus, acima de tudo, os italianos logo se identificaram com a seresta, que, aliás, tinha um largo histórico de influência da produção operística de sua terra (CUÍCA; DOMINGUIES, 2009, p. 35 e 34)
Era comum que Paraná e outros companheiros de juventude saíssem às
ruas ribeirão clarenses de chão batido - violão em punho e o gogó aquecido - para
cantar e fazer serestas a amigas, namoradas ou simplesmente possíveis paqueras.
Francisco Carlos, o irmão mais velho, na mesma época começou igualmente a
aprender violão e era um dos que tomavam parte com frequência na romântica
40
cantoria de rua. Como lembrou ainda o primo-irmão Airton Fonteque, um dos mais
próximos de Luiz Carlos no período mais profícuo de sua infância, entre os anos de
1942 a 1949, embora houvesse serestas feitas por bêbados e vagabundos da
cidade, a “serenata do Luiz era coisa séria, de respeito. Nunca levamos balde
d´água na cabeça!”, orgulhou-se bem humorado, em nossa entrevista. “Cantávamos
para aniversariantes, amigos, não era só coisa para se conquistar uma moça,
mesmo que nesse quesito, ninguém fosse páreo para ele”.
No assunto amoroso, a aparição cênica de Luiz Carlos Paraná em São
Paulo parece não ter deixado para trás a fama que o compositor teve em Ribeirão
Claro. No entanto, o que ele registrou em suas canções dá margem a
questionamentos sobre sua verdadeira realização pessoal, como já foi mencionado.
Obras como “Queria”, “Resignação” e “Vou morrer de amor” comprovam, senão uma
frustração relativa às suas experiências afetivas concretas, ao menos um retrato
simbólico de como este assunto se lhe figurava, baseado, claro, em determinadas
vivências particulares. Vale dizer que, mesmo em meio à boemia e a um ambiente
repleto de belas cantoras, como seria o segundo endereço de O Jogral, no número
de 16 da rua Avanhandava, Carlos Paraná mantinha-se profissional, acolhendo a ala
feminina de seu elenco fixo de cantores como um verdadeiro pai, para usar o termo
da cantora Ana Maria Brandão, em depoimento para esta monografia.
Comparando as obras citadas no parágrafo acima, por sua vez, com letras
de músicas como “Terra dos pinheirais”, “Flor do cafezal”, “Último canto” ou mesmo
a já apresentada “Tesouros de minha terra”, tem-se que esse primeiro grupo de
canções ajuda a delinear o universo idílico-afetivo que teceu a trama artística em
que Carlos Paraná se enredou. Nas primeiras três letras, “Queria”, “Resignação” e
“Vou morrer de amor”, a temática do amor como realização impossível em sua
plenitude mantém os componentes de sua memória afetiva, quando ainda na
adolescência, foi ele diversas vezes proibido de cortejar e namorar moças de sua
cidade, dada sua origem humilde e a fragilidade de sua saúde, abalada desde 1950,
quando da temporada que passou em Curitiba prestando o serviço militar - pois lá
contraiu a febre tifóide que quase o matou ainda mais cedo, segundo Ivone de
41
Lorena Neia, sua ex-namorada e musa da histórica “Flor do cafezal”, composta na já
citada Fazenda Monte Claro, em meados da década de 1950.
Nas demais canções, o mesmo sentimento de distanciamento físico remete
o compositor ao olhar nostálgico dessa vez sobre sua terra, e aos elementos da vida
rural vivenciados por ele, os quais, tendo-os Luiz Carlos deixado para trás, tornam-
se conteúdos simbólicos na subconsciência do artista - e referência para se notar
um mundo em pleno apogeu de sua transformação. Parece oportuno pensar que a
importância com que campinas, rios e passarinhos habitam sua obra só se encontra
verdadeiramente dimensionada quando em contraste com a vida que o poeta
escolheu para si, isto é, quando optou viver em centros urbanos maiores, na década
em que São Paulo tornava-se palco da nova música brasileira, assumindo, inclusive,
a “tarefa” de deflagrar para todo o País, uma manifestação restrita, até então, à zona
sul do Rio de Janeiro, que foi a Bossa Nova. Não à toa, cantoras como Alaíde Costa
e Claudette Soares, importantes difusoras do movimento em São Paulo, fizeram de
O Jogral um dos seus principais redutos.
Segundo o recém-falecido cantor curitibano Léo Vaz, em seu valioso
testemunho para este trabalho, cujo argumento se confirma na visão do já citado
radialista Ubiratan Lustosa, Luiz Carlos Paraná possuía consciência e, mais que
isso, o desejo de perseguir o epicentro desse furacão em seu momento decisivo de
transição, que foram os anos 1950 e 1960 no Brasil, tanto em termos políticos,
sociais, comportamentais, quanto artísticos, em todas as suas acepções. A partir
daquele 29 de março de 1965, em que se abriram as portas d´O Jogral, consagrou-
se, portanto, sua postura artística de tendência ao hibridismo. Uma mestiçagem
musical tida, em última análise, como reflexo direto da cultura e do povo brasileiros -
necessária para que sua arte reverberasse de forma poderosa tanto nos ouvidos
mais saudosistas e irreversivelmente platônicos, quanto nos mais modernos e
politizados. Vale ter sempre em vista o fato de que pouco antes do ano de 1968,
seria arrochado em definitivo o processo de fechamento político no Brasil, com o
decreto do sangrento AI-5.
42
2.2 As paródias políticas e uma análise estética
É neste contexto, que Luiz Carlos Paraná, sempre em busca da
compensação de sua frágil formação cultural interiorana, pôde dar vazão ao
conhecimento que, assim como o violão, absorveu gradativamente e de forma
autodidata – e isto valia, inclusive, para questões de posicionamento político, como
se verá. O compositor, de fato, não desenvolvera nenhuma erudição intelectual, o
que não o eximiu de tecer, a seu modo, comentários políticos que refletissem sua
procura lúcida pelo melhor entendimento do mundo em que vivia.
E sua principal arma era a música. Ainda que em sua obra “oficial”, estejam
privilegiados aspectos do idílio e do amor, o compositor não se privou de compor
paródias bastante sagazes e bem humoradas, sobre acontecimentos sociais do
contexto, sobretudo os ligados ao regime militar porque o País passava.
O cantor Léo Vaz, em sua entrevista, revelou que, não apenas estas
pequenas e obscuras obras não eram fruto de uma percepção ingênua ou somente
irônica do compositor, como eram levadas tão a sério pelos censores que, não raro,
estes intervinham com detenção, levando Carlos Paraná para alguma delegacia, de
onde só saía, por influência política, dada sua amizade com várias das autoridades
governamentais que frequentavam O Jogral diariamente.
Essa cova em que estás, no São João Batista/
Ainda é bem melhor do que foi prevista
É uma cova grande pro seu porco defunto/
Tem lugar pra outro que devia ir junto
E ao rapaz do jato, a pátria enternecida/
Fica outra vez muito agradecida
Vamos dar um viva ao rapaz do jato/
43
Esse é na verdade um herói de fato16
Ou então...
Hoje o povo saiu (lalalaiá)/ Procurando saber
Quem pariu/ A você
Foi a redentora, devemos esclarecer
Sua genitora não teve nada que ver
Domingo no sweepstake/ Você vai para a tribuna
Nesse dia lá na pista/ Vai se abrir uma lacuna
Você gosta de corrida/ Mas não dê muito na vista
Vê se agüenta na tribuna/ Não vai lá correr na pista
Se você encontrar o Jango/ Juscelino ou Lacerda
Faça como eu já fazia/ Mande todo mundo à missa17
Entretanto, compostas muito mais como modo de extravasar sua postura
informalmente, jamais estas paródias receberam maior atenção ou foram
consideradas pelo compositor como um início de postura engajada de sua estilística,
a ponto de ele compor o que era, pela época, considerado canção de protesto.
Prevaleceram em seu trabalho, as duas vertentes principais supracitadas - a do
amor e a da nostalgia por sua terra.
16
Trecho de paródia feita por Luiz Carlos Paraná com a melodia de “Funeral de um lavrador”, de
Chico Buarque para o poema de João Cabral de Melo Neto. O rapaz em questão era o piloto do caça T-33 da FAB (Força Aérea Brasileira) que atingiu a cauda do avião Piper Aztec - PA 23 no qual o já ex-presidente do regime militar Humberto de Alencar Castelo Branco morreu a 18 de julho de 1967, pouco depois de ter deixado o poder – em 15 de março daquele mesmo ano, quando foi sucedido por Artur da Costa e Silva. O fato foi amplamente noticiado, não recebendo esclarecimentos satisfatórios nas investigações empreendidas pelos militares, o que, até hoje, gera polêmicas sobre seus reais interesses de que o caso fosse realmente desvendado. 17
Trecho de paródia feita por Luiz Carlos Paraná com a melodia de “Quem te viu, quem te vê”, de
Chico Buarque de Hollanda. Sweepstake era uma loteria associada à corrida de cavalos. A crítica neste caso era ao segundo presidente do regime militar (entre 1967 e 1969), o marechal Artur da Costa e Silva que adorava apostar em cavalos e era considerado grosso e mal educado. Vale realçar que na curta vida de Luiz Carlos Paraná, Castelo Branco e Costa e Silva foram os dois únicos ditadores que ele viu assumir o comando do País, o que torna ainda mais representativos os dois trechos das paródias resgatados valiosamente pela memória indispensável de Léo Vaz.
44
Em algumas de suas canções, aliás, ambas as tendências temáticas
encontram-se mesmo amalgamadas, de modo que a fusão dos elementos ligados à
terra e à saudade de suas origens vai-se gradativamente mesclando com as
desventuras de amor, vividas por Carlos Paraná, concreta ou oniricamente. Dois
exemplos a seguir esclarecem melhor a questão exposta. No entanto, a segunda
canção merecerá, ainda, uma pequena análise, dada sua representatividade e poder
de síntese dos conteúdos emocionais transformados em versos pelo compositor.
Saudade (Luiz Carlos Paraná)
Saudade do meu tempo de criança/ Quando a vida era uma dança
E eu vivia a bailar/ Saudades, quantos anos se passaram
Quantas lágrimas rolaram/ Sem que eu pudesse evitar
Saudade, sei agora muito bem/ Quem não chora por alguém
Sofre e cala em seu penar/ Saudades, por favor tem dó de mim
Não me deixe ser assim/ Qual uma pedra a rolar
Saudade, vivo só e sem carinho/ Sem um gesto pequenino
Que me venha consolar/ Eu que na vida tive amor, felicidade
Hoje só tenho saudade/ Do que não mais vai voltar
45
Último canto (Luiz Carlos Paraná e Adauto Santos)
Era um verde só, sem rios/ Sem estradas, só caminhos
Era um céu sem astronautas/ Era um céu de passarinhos
Era um mundo só de fontes/ Só de lagos e de rios
Sem o longe azul dos mares/ Sem tormentas, sem navios
Cheguei tarde nos amores/ Fui menino só, sem primas
Só mais tarde é que fui tê-las/ E eram cordas e eram rimas
Desse tempo eu peço apenas/ Aos senhores da verdade
Permissão pra volta e meia/ Ter um pouco de saudade
Me cansei de andar caminhos/ Onde pouca gente andava
De cruzar com tanta gente/ Que partia e não chegava
Se eu cheguei, não dou conselhos/ Fui platéia de sermões
Não desfilo nem espio/ Criei calo em procissões
Lavradores eu sou dos grandes/ Cantador, sou dos pequenos
Ferramentas tenho muitas/ Pinho e cordas, tenho menos
Afinal eu não me queixo/ Isso até que me consola
Pois a última contenda/ Não se ganha com viola
Luiz Carlos Paraná não fundou nenhuma corrente nem chegou a produzir
uma obra volumosa. Antes, sintetizou diversas linhas adequando-as aos seus
anseios artísticos, deixando uma quantidade de canções documentadas bastante
reduzida: vinte e quatro apenas, embora se saiba que muito do material produzido
ao longo de seus curtos trinta e oito anos tenha se perdido. “Último canto” trata-se
de uma espécie de epitáfio, por ter sido curiosamente sua última canção e,
sobretudo, por ele indicar isto em seu próprio título, mas, principalmente por
conseguir tocar nos pontos essenciais das angústias mais recorrentes em sua vida,
46
refletidos em toda obra: a desilusão com as mulheres, a saudade de sua terra, e o
irremediado amor pela música, como meio de expressão e sobrevivência, dada a
beleza que esta conferia às suas dores reais.18
“Era um verde só, sem rios/ sem estradas, só caminhos (...)”, primeiro verso
da canção, que reflete toda a carga emotiva e o rol de intenções da primeira estrofe.
Ele segue um desenho melódico descendente em suas notas, o que, amparado pelo
tom melancólico da base harmônica (criada para Carlos Paraná cantar, mas
registrada por Adauto Santos, dado o falecimento precoce do primeiro compositor
em meio aos processos de gravação) e à imagem quase cinematográfica que o texto
descreve, resulta num sentimento de distanciamento, endossado pelo tempo verbal
proposto. Vale registrar, a imagem descrita assemelha-se iconicamente à paisagem
da propriedade rural em que o compositor nasceu, rodeada de pastagens planas e
regatos, sobretudo os estreitos e rasos Ribeirão Barra Grande e Ribeirão Claro, que
se unem justamente à altura da antiga casa dos pais do compositor.19
“Cheguei tarde nos amores/ fui menino só, sem primas/ só mais tarde é que
fui tê-las/ e eram cordas, e eram rimas”, adentra o terreno mais recorrente em Carlos
Paraná. O descompasso interno com as questões do coração acena com a
esperança de um enamoramento tardio, que no próximo verso é desfeito pela
revelação arquitetada na música, como o único elemento capaz de ser recíproco a
ele, simbolicamente, em seus sentimentos. A sequência melódica de cada um dos
versos igualmente reflete a frustração, pois a nota atingida no último verso
esperançoso (“só mais tarde é que fui tê-las”) trata-se da mais aguda da canção,
coberta pelo acorde Maior, capaz de abrir horizontes positivos na percepção do
ouvinte, para, a seguir, a melodia retornar para sua região mais grave, num
movimento indicador do habitual conformismo panorâmico, implícito no próprio fato
de estas informações estarem sendo expressas em andamento quase arrastado, o
18
Vale frisar que as inferências aqui propostas, ancoradas sobre a pesquisa de campo e a análise
pormenorizada das canções apresentadas, são de cunho autoral e refletem a preocupação do autor deste trabalho de produzir relações e modos de se compreender uma obra sobre a qual até então não há indícios de estudos mais aprofundados.
19 Informação observada in locu pelo autor deste trabalho, em uma de suas viagens a Ribeirão Claro,
durante a qual foi guiado pelo terceiro irmão do compositor - José Carlos - à propriedade onde passaram a maior parte de suas infâncias.
47
que se confirma nos últimos versos dessa segunda estrofe, em que o eu lírico
resigna-se com o direito de sentir saudades.
O olhar objetivo e até frio proposto em toda a terceira estrofe, recoloca o
ouvinte na atmosfera limosa que a repetição da melodia parece ter por intenção
suscitar, já que este sentimento complementa, com efeito, a paleta de sensações
que vão impregnando os ouvidos. Parece clara a posição do compositor, que fala de
um púlpito imaginário, onde o que lhe resta é olhar para trás e fazer seu balanço de
vida, já que parece intuir não ter pela frente um futuro largo.
Fica, neste sentido, colocada implicitamente a questão da lembrança, seja
esta do autor com relação a fatos concretos de sua vida ou, em última análise, das
nossas próprias como ouvintes, mesmo que, de forma abstraída, esta lembrança
refira-se a fatos ainda não vivenciados, isto é, remeta-nos a um universo talvez
inexistente na prática, mas do qual todos estamos imbuídos de alguma maneira: a
questão de como enfrentaremos no futuro, nossa própria ausência de perspectiva.
Aplicado especificamente a um caso de análise estética musical, uma referência
filosófica pode complementar a reflexão acerca do tema:
Mas, uma nova questão se coloca: ouça uma música. Como a apreendo? Captando tudo, recordando de tudo, entrando em comunhão total com sua matéria e dizendo assim que o tempo passa, que se trata de uma arte temporal? Considerando o binômio esquecimento e memória, a resposta seria não. Pensemos na caverna (...). Se relativizarmos a concepção de Platão de que conhecer é lembrar do estado anterior ao nascimento, poderemos afirmar que cada mudança ou morte de um estado representa, ao mesmo tempo, o nascimento de outro (SEINCMAN, 2007, p. 204 e 205)
Com isso, Seincman abre a perspectiva para compreendermos a obra de
Carlos Paraná no sentido estrito do que seu conjunto é capaz de vibrar
verdadeiramente, à sensibilidade do ouvinte. Uma primeira audição de “Último
canto”, isto é, o momento de seu conhecimento, traz para o plano concreto o sentido
mais recôndito da alegoria da caverna de Platão, com a sensação real de uma
lembrança de algo que é arquetípico e universal, isto é, presente interiormente na
vida de todos, o que, evidentemente, torna-a atemporal; qual seja, a nítida sensação
de nostalgia tanto das coisas que se foram, quanto das que estão por vir, já que,
48
poeticamente, o universo da arte autoriza este tipo de analogia aparentemente
desconexa, sem sentido ou por demais arbitrária.20
Melhor dizendo, o que é resgatado, são elementos presentes no subterrâneo
de nossa memória emotiva e que vêm à tona mediante o estímulo de uma obra que
em todos os seus aspectos funciona como elemento catalisador dessas lembranças
do por vir – já que inclusive o tema da canção aborda, de modo mais amplo, a
questão da nostalgia próxima, neste sentido, do mito do eterno retorno.
“Lavrador, eu sou dos grandes/ cantador, sou dos pequenos/ ferramentas
tenho muitas/ pinho e cordas, tenho menos”. Luiz foi agricultor até os 20 anos.
Trabalhou na roça, sempre como meeiro na propriedade de outras pessoas e, até
que sua família tivesse condições para adquirir o pequeno sítio próximo à cidade,
toda sua infância e adolescência já teriam sido fortemente marcadas pela
consciência da hierarquia naturalmente existente entre o lavrador e o dono das
terras, ainda que se fale numa relação de percentagens, na retirada da produção de
café. O contraponto poético encontra simetria invertida na imagem do cantor popular
capaz de dar voz à sua gente com sua arte, fechando como que numa gestalt, a
idéia de um real semeador – roceiro dos anseios e desilusões, sintetizador intuitivo
de sua gente e do espírito onírico de sua terra, idéias estas que se unem na fusão
dos instrumentos musicais às ferramentas de trabalho diário de um trabalhador rural.
Paraná é visto por músicos, amigos e estudiosos como um compositor
romântico de idéias simples, enxutas e, por este mesmo grau de depuração,
capazes de trazer em seu bojo a possibilidade mais profunda de analogias e
inferências. Habita o terreno do verso popular e não se quer altamente elaborado
intelectualmente, já que tem de atingir a todos, em sua proposta de difusão de
gêneros e preservação da tradição cultural de seu país, o que não significa em
momento algum, simplificações facilitadoras, e sim um maior acuro na busca da
forma essencial. Na frase-semente, na idéia-cerne deste pomar sonoro.
20 Vale mencionar que, segundo o professor e filósofo nietzschiano Oswaldo Giacóia Júnior, em diálogo com o autor deste trabalho: “esta interpretação da Alegoria da Caverna dá ênfase a vividos afetivos universais, como sentimentos e emoções, e não aos conteúdos lógico-cognitivos, como as essências inteligíveis platôncias”.
49
Para tanto, identifica-se em sua obra, a limpeza estética proposta pela
Bossa Nova; e, se em suas opções como melodista, Paraná deixa-se guiar mais por
águas paraguaias, argentinas ou mariachis, trazendo para estas temáticas, as
visões de mundo mais próximas das dores de cotovelo das década de 1940 e 1950
bem representadas por ídolos – de quem se tornaria inclusive amigo -, como Dalva
de Oliveira e Maysa, por exemplo -, não esqueceria, por outro lado, seu convívio
com o mestre João Gilberto, nem a força de explosões sonoras como o igualmente
já citado advento do baião, do qual herdaria também a sofisticação harmônica,
assim como um gradual auxílio no clareamento das colorações mais presentes nas
imagens sonoras que produziu. Assim, claro, como a própria temática do regional
(que, se antes de Gonzaga era encontrada em nosso cancioneiro de modo
esporádico e com um caráter ainda indefinido, depois deste, oficializou-se como uma
das linhas possíveis e mais bem aceitas do mercado fonográfico).
“Último canto” traz em sua proposta estética, portanto, muitos desses
elementos. É uma canção de cores que tendem a matizes azulados se fossemos
tratar a questão sob um viés mais subjetivo – o que, curiosamente, compactua com
o que Paraná registra em outra letra (“é azul minha saudade/ minha saudade do sul”,
de “Terra dos pinheirais”), obrigando-nos a desvendar uma certa névoa sonora para
que as palavras possam emergir com sua pureza original (não no sentido da
ingenuidade, mas da ausência de preconceitos e contaminações).
Deste modo, termina a última obra deste compositor, com a sensação física
de se estar saindo de um sonho distante e capaz de conter sentimentos pertinentes
a todos, além de nos envolver, devido a sua aparente dissonância da realidade pós-
moderna que tanto nos impinge atualmente à frenética falta de tempo que peças
musicais como esta nos obrigam ter, para sua mais ampla e real compreensão: a
dos sentidos.
50
3 A CULTURA DA METRÓPOLE: TRADIÇÃO E MODERNIDADE
Mas a taba cresceu... Tingueras agressivas, Pra trás! Agora o asfalto anda em Tabatinguera.
Mal se esgueira um pajé entre locomotivas E o forde assusta os manes lentos do Anhanguera.
(“Tabatinguera”, de Mário de Andrade)21
Em decorrência da argumentação anterior, estabelecida entre os conceitos
pertinentes à memória e esquecimento, bem como pela breve análise biográfica de
cunho autoral referente à obra de Luiz Carlos Paraná, neste terceiro capítulo tentar-
se-á abordar as transformações que se manifestam na esfera cultural em que se
observa forte oposição entre a afirmação da tradição e os novos paradigmas
modernizadores da metrópole, assim como a propensão deste compositor aos
temas e ritmos tradicionais, em meio ao atravessamento dos movimentos
modernizadores da música popular, sobretudo nos ambientes da Bossa Nova, do
Tropicalismo e da afirmação do rock brasileiro.
A localização desta oposição entre a tradição e o desenvolvimento tem seu
foco fundador na Semana de Arte Moderna, de 1922, mas irá se manifestar mais
concretamente na passagem da década de 1950 para a de 1960. A presente etapa
deste estudo buscará compreender o ambiente em que Carlos Paraná se insere e
de que modo ele atua neste período. O que estava acontecendo culturalmente em
São Paulo e como sua experiência interiorana convive com o choque com a
modernidade que ele já vinha sofrendo (ainda que menos intensamente) nos anos
de residência em Curitiba e no Rio de Janeiro (1956 a 1959), até chegar à capital
paulista; e de que modo, ainda, o embate entre essas duas tendências tiveram
dentro dele alguma relação com a não preservação de sua memória.
21 SOUZA, Gilda de Mello e (seleção). Melhores poemas de Mário de Andrade, p. 28.
51
Como foi visto, a produção de memória numa sociedade corresponde a um
processo claramente circunscrito ao presente. Em outras palavras, é o cruzamento
de fatores e agendamentos do presente, que determina a pauta daquilo o que será
rememorado no futuro. Luiz Carlos Paraná não entrou nesta pauta.
Até a década de 1930, segundo Glauco Barsalini, os elementos rurais
marcaram fortemente as culturas urbanas. Não era de se estranhar, uma vez que a
própria origem das nossas cidades tinha fortes lastros ancorados no campo e
inclusive na produção do café. Carlos Paraná nasceu neste período, num contexto
social, aliás, baseado economicamente na cafeicultura, e viu sua infância e
juventude desenrolarem-se junto da intensificação do processo de modernização
social que se consagraria na década de 1960 – e cujas raízes se encontravam, em
certa medida, no final do século XIX22. Mas agora, com sua casa noturna aberta e
com razoável prestígio no meio artístico e boêmio da cidade, o compositor parecia
tentar compreender a nova lógica das cidades e conviver com as tendências
artísticas dessa metrópole.
Como sabemos, O Jogral foi símbolo cultural de um momento social;
momento este, resultante direto dessa marcha rumo à urbanização de São Paulo, e
cujo processo se vinculou diretamente “ao progresso industrial e consequente
abertura de mercados” (CANDIDO, 2003, p. 207), o que gerou, por sua vez, para o
homem do campo, representado neste caso pela família de Carlos Paraná, uma
invasão de valores alheios à sua cultura. A contrapartida da modernização esteve,
portanto, igualmente presente na vida do compositor e de seus parentes mais
próximos, o que, evidentemente, refletiu-se em sua obra. Sobre como o interiorano
passou a lidar com essa transformação, Antonio Candido registrou:
22
Em “Raízes do Brasil”, Sergio Buarque de Holanda estabelece relações entre o fim do escravismo, em 1888, e o início de uma era modernizadora no País. Vale também notar a coincidência temporal existente entre a gradual redução das “formas tradicionais” de vida e a “diminuição da importância da lavoura do açúcar durante a primeira metade do século [XIX, bem como] sua substituição pela do café” (HOLANDA, 1995, p. 173). Esta, por sua vez, acelerou em definitivo o processo de desenvolvimento das comunicações no País. Principalmente a das vias férreas, atraídas pelas zonas cafeeiras - fenômeno vivido de perto pela região de Ribeirão Claro. A cidade-natal de Carlos Paraná, a partir do início do século XX, beneficiar-se-ia da linha de ferro da Sorocabana que passava pela cidade vizinha de Chavantes e escoava até São Paulo, por meio da Estação Júlio Prestes, sua produção dos pequenos grãos vermelhos que revolucionaram a história econômica do Brasil e do mundo.
52
Surgem assim, para o caipira, necessidades novas, que contribuem para criar ou intensificar os vínculos com a vida das cidades, destruindo a sua autonomia e ligando-o estreitamente ao ritmo da economia geral, isto é, da região, do estado e do país, em contraste com a economia particular, centralizada pela vida de bairro e baseada na subsistência. Doravante, ele compra cada vez mais, desde a roupa e os utensílios até alimentos e bugigangas de vário tipo; (...) Por outras palavras, surgem relações compatíveis com a economia moderna, que o vai incorporando à sua esfera (CANDIDO, 2003, p. 207).
Se nos anos 1920, o Brasil dos modernistas passou a receber de poetas,
romancistas, sociólogos e historiadores, trabalhos em torno de seu processo de
formação e desenvolvimento (como Mário de Andrade e Gilberto Freyre), partindo de
uma reflexão em função de nosso povo e seu caráter, a década de 1930, como
mencionado, funcionou como limite para a relação do ufanismo – e,
consequentemente, desta busca pela reconciliação do brasileiro com suas origens –
com a percepção da pujança grandiosa de nossa natureza. Noutras palavras, as
décadas posteriores ao movimento modernista, sobretudo a de 1950, como atesta
Claudio Bojunga, operaram não mais no sentido de buscar nestes elementos, a
compreensão de nossa identidade, mas justamente na consciência de nosso imenso
atraso.
JK não foi o primeiro a compreender isso e, a partir daí, lutar de forma
desmedida contra o derrotismo no Brasil. “O sonho modernizador e industrial (...)
tinha raízes antigas: a grande oportunidade surgira nos anos 50 do século XIX,
quando a Lei Eusébio de Queiroz (1850), proibiu o tráfico” (BOJUNGA, 2010, p. 55)
de escravos. O decreto propiciou a transferência do dinheiro destinado até então
àquela atividade, para outros negócios, mais rendosos, e rapidamente farejados pelo
visionário Irineu Evangelista de Souza, o futuro barão e visconde de Mauá que, em
grande medida, antecipou o movimento do País rumo à sua modernização mais
efetiva.
[Mauá] define seu propósito em 1878: “Reunir os capitais, que se viam repentinamente deslocados do ilícito comércio, e fazê-los convergir a um centro de onde pudessem alimentar as forças produtivas do país, foi o pensamento que me surgiu na mente ao ter certeza de que aquele fato era irrevogável”. O fim das revoltas armadas pacificara o país e abriria o caminho para a era Mauá. O Brasil passa a construir ferrovias e telégrafos, começa a fabricar chapéus, sapatos, rapé, cerveja, sabão. Irineu Evangelista de Souza, o barão de Mauá, é o patrono dos empresários, dos empreiteiros, dos ousados, encarna o sonho de um Brasil pujante e
53
próspero como os Estados Unidos. Foi um banqueiro das ferrovias, o empresário da navegação e da inovação tecnológica, das fábricas de manilhas e do cabo submarino (...) (BOJUNGA, 2010, p. 55)
Tudo isso muito antes do salto que a população brasileira daria entre 1940 e
1960, em decorrência justamente da modernização que aumentava a longevidade
das pessoas e diminuía a taxa de mortalidade infantil. De 41.114.000, nossos
índices populacionais subiram para nada menos que 70.799.000 habitantes, como
atesta Barsalini, apesar de a população produtiva continuar sendo
predominantemente rural – proporcionalmente menor em relação aos anos 1950, é
bem verdade.
No livro “Leituras brasileiras: itinerários no pensamento social e na
literatura”, as autoras Mariza Veloso e Angélica Madeira constituem uma espécie de
estudo do processo de formação da cultura brasileira, como bem define o Ministro
das Relações Exteriores Luiz Felipe Lampreia quando da publicação da obra, em
seu texto de apresentação. O livro demarca claramente, no contexto cultural da
década de 1960, as vertentes ideológicas mais expressivas que estavam se
manifestando e, de certa forma, modificando os rumos da música especificamente: a
conservadora (de um Brasil arcaico); a ideológica (repensando a tradição a partir do
aspecto emancipador da cultura, por meio de instituições como ISEB e CPC, das
quais se tratará a seguir); e, por fim, a corrente da vanguarda (que visa à união das
duas anteriores, caso do movimento tropicalista).
Para que possamos entender o modo como Carlos Paraná permitiu que se
chocassem nele a percepção de sua realidade provinciana com a desta nova cidade
que aos poucos se formava, passemos, a partir de então, a fixar nossa atenção nos
anos 1960 e em seus contrastes com a década anterior, visando o melhor
esclarecimento possível da transição entre os signos de cada período e a
consequente constituição de um cenário propício ao planejamento da preservação
de alguns tipos de memória social, bem como de esquecimentos.
Decorrentes da Segunda Guerra Mundial, registram Mariza Veloso e
Angélica Madeira, o Brasil colheu transformações como a consolidação de seu
parque industrial e a aceleração de seu processo de urbanização, bem como a
54
significativa entrada de indústrias e capitais estrangeiros em solo brasileiro. Nas
ciências sociais, as décadas de 1940 e 1950, vivem o início de sua
institucionalização nos centros acadêmicos “de ensino e pesquisa, rompendo com a
tradição ensaística anterior. Duas instituições se destacam (...)” (MADEIRA;
VELOSO, 1999, p. 180). São elas: a Universidade de São Paulo (USP), fundada em
1934; e o carioca Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), de 1955.
Com a primeira, buscava-se a representação da autonomia na pesquisa
acadêmica em relação a outras instâncias de poder, buscando a internacionalização
de seus procedimentos. Intelectuais como Florestan Fernandes encaminharam
estudos sobre o desenvolvimento do capitalismo e os processos de “dependência”
do Brasil. (MADEIRA; VELOSO, 1999, p. 180).
Neste cenário, já na década de 1950, e em consonância com essa visão, foi
fundado o Instituto Superior de Estudos Brasileiros, na criação do qual nos
deteremos mais aprofundadamente:
No segundo semestre de 1954, [o poeta Augusto Frederico] Schmidt
apresentou [JK], na casa de Israel Klabin, a um grupo de intelectuais que
haviam fundado o grupo de Itatiaia, o Instituto Brasileiro de Economia,
Sociologia e Política (IBESP) e que, no ano seguinte, se tornaria o Instituto
Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), ainda sob o governo Café Filho. Os
isebianos se mostravam dispostos a dar sustentação ideológica ao
desenvolvimentismo juscelinista. A partir de meados de dezembro, JK
começou a visitar as organizações do partido em cada estado para garantir
a indicação e legitimar sua candidatura. Prometeu desenvolvimento para o
interior do país, obras públicas, estradas, energia elétrica e combate à seca
(BOJUNGA, 2010, p. 354)
Vinculado à estrutura do Ministério da Educação, o ISEB visava à
elaboração de um modelo de desenvolvimento social, via reflexão de seu grupo de
intelectuais que falavam, por exemplo, em “tradição de carência” aludindo à cultura
colonial como condição de nossa alienação. É partindo dos princípios que Guerreiro
Ramos, Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier e Nelson Werneck Sodré elaboraram
sobre a força operacional das ideias, que se formula uma “nova modalidade de
55
nacionalismo” (MADEIRA; VELOSO, 1999, p. 181), em busca de independência
cultural e econômica, sendo ambas atreladas e, portanto, partes integrantes de uma
mesma estratégia.
O grupo atua no processo de elaboração do “plano de metas” de JK,
integrado que está em seu ideal desenvolvimentista e, portanto, na inserção do
Brasil num “sistema capitalista internacional” de forma autônoma, o que reflete o
processo de especialização intelectual que o Brasil vivenciou após o Modernismo.
Com isso, a industrialização era vista como possibilidade de saída de uma realidade
agrícola atrasada, rumo ao futuro e à cultura.
Na arte, as décadas de 1950 e 1960 valeram-se dos parâmetros
pesquisados e experimentados pelas vanguardas modernistas, chegando a um
“apuro formal” representado por estéticas como a do Concretismo, do
Construtivismo, da Bossa Nova e do Cinema Novo. O cinema, aliás, foi utilizado
como intensa forma de ação cultural no combate à alienação do País. No entanto, o
ISEB só resistiu até 1964. Três dias após o golpe militar, o instituto foi extinto,
submetido a inquérito policial militar e alguns de seus cientistas sociais foram
investigados e exilados.
Vinculados ao ISEB e à União Nacional dos Estudantes (UNE), e revelando o deslocamento das posições políticas anteriores para outras mais revolucionárias, surgem os Centros Populares de Cultura (CPCs), que se propõem a desenvolver a consciência das massas por meio da arte. Uma produção cultural altamente ideologizada e engajada, que incluía panfletos, poesias, peças de teatro e músicas, pretende cumprir a missão de emancipar politicamente o povo e aproximar os artistas e intelectuais da massa. Outro movimento artístico marcante da época, o Cinema Novo apresenta uma visão crua e sem idealizações, do Brasil e da América Latina, renovando a linguagem cinematográfica em Vidas secas (1964), de Nelson Pereira dos Santos, e Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, para citar apenas dois dos numerosos filmes que tematizaram as contradições mais agudas da realidade brasileira. (MADEIRA; VELOSO, 1999, p. 181)
23
23
Grandemente influenciados pela Nouvelle Vague, aliás, e por suas propostas estéticas e temáticas,
assim como pelo Neorrealismo em certa medida, esse grupo de jovens brasileiros ávidos de romper radicalmente com o estilo cinematográfico importado de países como os Estados Unidos, encontrou nestas referências sociais e políticas da época o ponto de comunhão exato para a elaboração de uma linguagem própria e totalmente vinculada à tentativa de traçar uma identidade do país, representada, quase como que numa metonímia, pelas questões especificamente nordestinas da época. Estas traziam em seu bojo o potencial revelador de uma estrutura mais ampla, possibilitando por meio da gramática cinematográfica, a criação de um universo onírico capaz de dialogar em todas as épocas históricas do país. Uma das principais obras do Cinema Novo - e da cinematografia brasileira de
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Na música, um capítulo à parte desenrola-se no Brasil do final dos anos
1950, acerca deste processo de modernização, iniciado com nomes tais como
Carlinhos Lyra, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Nara Leão, Newton Mendonça,
Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilberto. É na onda desenvolvimentista de
JK que a nova batida ao violão, consagrada oficialmente em 1958, encontra eco e
identificação para revolucionar esteticamente, todos os elementos musicais da
tradicional canção brasileira, sejam estes harmônicos, rítmicos, melódicos ou
interpretativos (CASTRO, 1990).
É no processo de depuração e síntese pelo qual não apenas a cultura
brasileira, mas todo o mundo, vinha passando, que o estilo de emissão vocal, por
exemplo, altera-se, e Luiz Carlos Paraná também reflete muito bem esta transição,
estando num estágio intermediário de interpretação, a meio caminho entre Francisco
Alves e João Gilberto – lembrando, ainda, que Carlos Paraná e João Gilberto foram
amigos por dividirem um quarto de pensão em Copacabana, no ano de 1958.
Neste momento é que o Brasil se desvincula de certa obrigação do canto
operístico (muito associado à influência da música europeia e, neste sentido,
distante da atual busca por uma identidade própria), para levar às últimas
consequências, a proposta interpretativa iniciada com Mário Reis, do canto mais
próximo ao linguajar cotidiano. Com João Gilberto, chegou-se ao sussurro quase
falado, como que na busca da real embocadura de nossa gente.
Qual a dicção melhor expressa nosso povo, qual ginga sonora retrata o
andar de nossas mulheres pelas praias; são questões que – mais que “dar voz” à
nação – acabam por articular, ainda que ancorado na realidade cotidiana de um
grupo bastante específico da zona sul carioca, todo um pensamento em torno do
reconhecimento de uma identidade nacional.
todos os tempos -, Deus e o Diabo na terra do sol (1964), do baiano Glauber Rocha, tornou-se referência na temática do cangaço, nome dado a grupos de bandidos que assolaram o nordeste brasileiro entre os séculos XIX e meados dos XX. (COSTA, 2000).
57
A questão, aliás, foi ordem do dia, sobretudo ante a percepção do progresso,
quando visto como “ameaça” para as tradições de nosso saber popular. Daí o
folclore ter ganhado, desde 1947, maior representação com a Campanha Nacional
do Folclore vinculada ao Ministério das Relações Exteriores e dirigida por Renato de
Almeida.
“A partir do início dos anos 1960, as ‘tradições do povo’ deixam de ser tratadas como ‘folclore’ e passam a ser interpretadas como manifestações de ‘cultura popular’. (...) Os artistas e intelectuais da década (...) viam nas fontes populares uma dinâmica cultural forte, capaz de propiciar novas formas de comunicação entre os intelectuais e o ‘povo brasileiro’. (...). Assim como nos anos 1950, cognominados de ‘anos dourados’, tudo era ‘novo’ – Bossa Nova, Cinema Novo -, nos 1960 tudo se tornou ‘popular’ – Centro Popular de Cultura (CPC), música popular brasileira (MPB) -, nos anos 1970, todas as manifestações estéticas que não se identificavam com o status quo, eram denominadas ‘marginais’” (MADEIRA; VELOSO, 1999, p. 182, 183 e 186)
A virada da década de 1950 para a de 1960 no Brasil, ficou muito marcada,
ainda, por inúmeras manifestações de ordem não apenas cultural, mas política –
num especial amálgama de ambas. Uma delas, o Movimento de Educação de Base
(MEB), tinha em vista a alfabetização e a conscientização por meio das ideias do
pedagogo Paulo Freire, em complemento a outras iniciativas comprometidas com o
resgate de valores do povo, tais como o Movimento de Cultura Popular (MCP).
Mas a partir do golpe de 1964, importantes e radicais transformações
políticas e ideológicas afetaram decisivamente nossa produção cultural e artística.
“Se o movimento militar viera colocar nos eixos um processo de modernização, seus
efeitos ideológicos imediatos encenavam um espetáculo tragicômico de
provincianismo” (GONÇALVES; HOLLANDA, 1982, p. 13), e organizações como os
CPCs, por exemplo, foram então rapidamente desfeitas.
Enquanto a indústria cultural no Brasil “se consolida e a cultura popular
internacional começa a entrar no mercado de forma mais intensa e sistemática”
(MADEIRA; VELOSO, 1999, p. 184), uma cultura de massas passa a ser veiculada
pela TV, que em 1965 vê nascer a futura potência da Rede Globo – e, com este
novo tipo de formação cultural, o fim definitivo da rígida dicotomia existente entre os
signos do erudito e do popular, dado o caráter heterogêneo das novas linguagens
que passam a incorporar elementos oriundos de searas até então distantes.
58
Naquele momento, contudo, era a TV Record quem detinha a hegemonia e
congregava os principais movimentos da nossa música popular, seguindo a linha
direta de shows da televisão americana. A exemplo dos programas apresentados
nos Estados Unidos por Judy Garland ou Frank Sinatra, o brasileiro O Fino da Bossa
era comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues. Como este, outros tantos produtos
televisivos fizeram enorme sucesso no Brasil dos anos 1960, tais como o programa
Jovem Guarda e os festivais de música popular.
Não se pode aqui, deixar ainda de realçar a ligação de Luiz Carlos Paraná,
direta ou indiretamente, com ambos, já que ele participou dos festivais da Record
nos anos de 1966 e 1967 e teve também uma de suas canções defendidas pelo líder
do movimento que dera nome àquele programa. No primeiro festival, sua canção
“De amor ou paz”, em parceria com Adauto Santos, obteve um segundo lugar,
defendida pela cantora Elza Soares, logo atrás do empate de “A banda” e
“Disparada”. E em 1967, “Maria, carnaval e cinzas” ficou em quinta posição,
interpretada pelo ídolo Roberto Carlos, um dos apresentadores e líder do programa
citado, encabeçado também por Erasmo Carlos e Wanderléa.
Era o início de um discreto reconhecimento midiático para Carlos Paraná,
que possivelmente teria criado nós mais sólidos e capazes de deixar rastros efetivos
de sua obra para a preservação de sua memória num futuro próximo, caso não
tivesse falecido tão precocemente, aos 38 anos. É bem verdade, em contrapartida,
que nem todo esse início de contato com o meio televisivo partiu dele com muita
naturalidade, dada sua clara resistência ao movimento liderado por Roberto Carlos,
por exemplo.
Tanto o fundador, quanto os frequentadores de O Jogral, ligados ao bar
também pelo viés ideológico e sentimental, entendiam a Jovem Guarda como uma
porta aberta para a invasão de estrangeirismos, visto pejorativamente pelo grupo, de
modo que hoje se torna praticamente impossível sabermos, de fato, até onde iria o
intuito de Carlos Paraná em continuar vinculando seu nome ao de qualquer
59
movimento de maior visibilidade, mas que lhe escapasse às crenças artísticas
pessoais, estando estas em claro desajuste com a estética vigente.
A própria escolha de Roberto Carlos para interpretar “Maria, carnaval e
cinzas” deu-se, segundo relato deixado em livro pelo publicitário Marcus Pereira
(sócio de Paraná), de maneira bastante gradual, dado o tempo gasto pelos amigos
para convencer o ribeirão clarense de que aquela seria a melhor saída, diante do
fracasso na busca pelo “intérprete ideal” - Sílvio Caldas, um dos ídolos de Paraná.
Além disso, era por opção que a postura do compositor fora a de evitar ambientes
que fugissem de seu círculo de amizades íntimas. O artista parece ter estado
sempre em busca de um universo que reproduzisse o da vida simples e matuta de
sua juventude, o que o mantinha restrito a um grau de exposição menor do que o
que ele poderia, eventualmente, ter assumido.
Pelo Tropicalismo, contudo, não consta que Carlos Paraná nutrisse
proporcional antipatia, como a que lhe inspirava a Jovem Guarda; talvez mesmo,
pelo caráter conciliador do movimento com as formas tradicionais de nossa canção
(mesmo que alegoricamente). Já Chico Buarque, era para o compositor um dos mais
legítimos representantes da canção brasileira moderna, já que assumia como
poucos os elementos sintonizados com a urbanização do País, sem perder de vista
a genética da tradicional seresta, que tão fortemente marcara a juventude interiorana
de Luiz Carlos Paraná. Neste tipo de manifestação, cantam-se temas da tradição
poética antiga e da norma culta. A “função” da música era a de fazer dançar, fazer
lembrar dores de cotovelo ou empreender o sonho. A partir do embate da tradição
com a modernidade, letras como as propostas pela Bossa Nova trazem o signo da
informalidade, da coloquialidade.
Se retomarmos, ainda, os principais traços do contexto social daquela
década, encontraremos, inclusive internacionalmente, um momento de intensa
transformação, cujo reflexo inevitavelmente atingiu a realidade brasileira, pondo
igualmente em cheque, valores artísticos que passavam, rapidamente, a ser
associados com estéticas ultrapassadas. É na década de 1960, que a crise mundial
chega a seu apogeu. Acontecimentos como o assassinato de Kennedy, a Guerra do
Vietnã, a ocupação soviética no leste europeu e as grandes revoluções de costumes
60
- explicam Madeira e Veloso -, “provocam uma crise de valores expressa com
grande força nos movimentos de juventude que se expandiram pelo mundo”
(MADEIRA; VELOSO, 1999, p. 183) de forma bastante ampla.
Os anos 1960, não apenas no Brasil, mas no mundo todo, representam um momento muito significativo, quando a juventude começa a encontrar signos de identidade por meio, por exemplo, da contracultura. Isto é, a juventude passa a ocupar um lugar na sociedade, logo após esta virada da década anterior, quando o Brasil deixa suas feições mais rurais – e aqui estamos falando também da mentalidade, que era provinciana – em direção a uma realidade urbana e industrial. São Paulo representou muito bem esta transformação e até hoje concentra uma característica cosmopolita e mais internacionalizada; assim como a música, que parece ter sido o principal índice dessa transição. Os principais compositores eram jovens, o que já estava no conceito da Bossa Nova – que, aliás, veio se nacionalizar em São Paulo. Dessa maneira, todo o cenário cultural se configurou para que a música sintetizasse essa temática da transição entre tradição e modernidade. Ela representava para a juventude daquele momento, justamente essa tendência para o futuro, para o novo. A identidade que se gerou com a produção daqueles compositores trazia um sentimento muito forte de que “isso é nosso”. Não dos velhos, não da outra geração. Claro que havia debates culturais, antagonismos políticos e discussões de várias ordens bastante profundos. Tudo isso era muito importante. Mas a música foi a grande representante dessa passagem. Tanto que a Era dos Festivais, por exemplo, despertava paixões alucinantes. Amores e ódios, passeata contra guitarra elétrica. Por isso soa mais contraditório ainda, que justo no contexto musical, um representante como Carlos Paraná tenha ficado para trás na questão da documentação histórica.
24
Neste contexto, que ficou marcado não propriamente pela negação da
Bossa Nova, mas pela superação de seu exclusivismo, Luiz Carlos Paraná
promoveu em seu O Jogral, uma retomada de cantores e compositores do morro e
da velha guarda, como Clementina de Jesus, Cartola, Carlos Cachaça, Nelson
Cavaquinho, Luiz Gonzaga e Adoniran Barbosa, apesar de ter sido também um
berço bastante acolhedor de novas manifestações – inclusive o samba-rock (que,
como exceção, era executado sem guitarra pelo Trio Mocotó).
Com Caetano e Gil, o “aproveitamento” tropicalista, irônico e alegórico, das
manifestações antigas e modernas do País, dentro da atual lógica de consumo,
produziu, como mencionado antes, um cenário de hibridismo cultural, que dava
abertura para a fusão de autores como Vicente Celestino com arranjos
ultramodernos feitos com guitarra elétrica, adotada também por Roberto Carlos e os
24
Considerações de Maria Lucia Santaella, em sua entrevista para este trabalho concedida no dia 3
de julho de 2011.
61
artistas da Jovem Guarda, fortemente influenciados pelo rock inglês liderado pelos
Beatles.
Música, cinema, artes plásticas e literatura passaram, com tudo isso, numa
espécie de entrelaçamento, a compor com suas inovações, um reflexo das
mudanças vivenciadas intensamente nestes anos pelo País e pelo mundo. Assim
como o teatro, que teve sua historiografia marcada decisivamente pelas propostas
de rompimento estético de grupos como o Arena e o Oficina, em montagens
históricas como “Eles não usam black-tie” (1958), “Arena conta Zumbi” (1967), e “O
rei da vela” (1967).
Neste momento de efervescência, Luiz Carlos Paraná não foi nem um
completo afirmador da tradição, nem um defensor da vanguarda. Assumiu uma
postura híbrida em sua obra, que refletia, sob esse aspecto, o contexto de
imprecisão pelas novas definições, em que ele estava. Profissionalmente, por não
ser um compositor de grande produção (mas bissexto), nem um intérprete de tanta
proeminência, apesar de seu reconhecido talento, beneficiou-se da abertura de um
estabelecimento comercial que lhe garantiu sustento financeiro e certa projeção,
dada a fama alcançada com a qualidade de sua programação musical. O Jogral foi,
neste sentido, um espaço bastante privilegiado por conseguir congregar em seu
código genético, o conflito do universo urbano, já que aberto à incorporação de
tendências artísticas distintas, apesar de sua vocação tradicional. Este fator da
variedade, aliás, distingue fundamentalmente o próprio conceito do universo da
metrópole. No interior, ao contrário, a convivência com valores e aspectos
heterogêneos faz-se menos tolerante e, por isso, mais bem filtrada.
Para citar novamente o samba “De amor ou paz”, de Carlos Paraná e
Adauto Santos, vale dizer que, no provincianismo, não existe a dicotomia entre
esses dois elementos e nem, portanto, o mal-estar dela decorrente. A percepção
expressa na letra, de que “quem tem paz, amor não tem”, para além do mero
lamento pelos sofrimentos inerentes do amor, está igualmente a consciência trágica
e quase existencialista, típica de valores urbanos, que desmistifica e desconstrói a
chave da exaltação - própria do bucolismo. Neste, dificilmente se deixaria de
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idealizar o amor relacionando-o não apenas à perspectiva da paz, mas à profunda e
eterna felicidade, isto é, duas posturas basicamente antagônicas. Luiz Carlos
Paraná esteve em sintonia com essa transformação de valores, sobretudo porque
além de migrar do interior para a metrópole, ele o fez no período exato em que
ambos alteravam em alguma instância suas lógicas de funcionamento e
compreensão da realidade.
O resultado foi uma obra inicial bastante comprometida com a visão idílica
de elementos bucólicos de sua terra e juventude, bem como a alternância de ponto
de referência, quando deste salto para um olhar artístico em maior consonância com
a lógica citadina. Entretanto, esta transformação evidenciou também um grande
conflito em sua obra, notado em sutilezas de discurso adotadas pelo compositor,
mesmo quando em parceria com outros artistas. Isto porque, ainda que intuindo tais
mudanças sociais e artísticas em seu entorno, o modo como Luiz Carlos Paraná
incorporou esta percepção no subtexto de sua obra conteve, muito particularmente,
a nostalgia pela realidade que em tão pouco tempo ficava para trás – uma das
principais chaves para a compreensão de seu trabalho.
Assim, o que se expressa em suas letras e melodias, reflete um embate
claro da tradição que é trazida para a cidade, tendo como agravante deste choque, o
fato de que neste exato momento histórico, o País passava ainda por um especial
processo de “desrruralização”. Daí a consciência não somente do déficit humano
sentido pelo compositor na capital paulista, mas dos novos valores estéticos que, a
princípio contra sua formação, instituíam-se no ensejo de inúmeros adventos
tecnológicos que desde a década de 1950 se firmavam. Eram estes, representados
por multinacionais, indústrias automobilísticas, linhas branca de eletrodomésticos
(transição do fogão à lenha para o à gás), televisão, dentre outros.
Daí a opção do compositor por formas mais tradicionais e uma postura idílica
(nunca passadista ou reacionária), apesar de seu hibridismo advindo, sobretudo, da
percepção do novo mundo em que ele inevitavelmente entraria de modo ainda mais
intensamente, caso à sua doença ele tivesse sobrevivido. Deste modo, não apenas
o presente de modernização produziu uma instabilidade que compelia à memória
63
afetiva da vida simples – sobretudo no eixo identitário, manifestado na cultura -,
como gerou, para Luiz Carlos Paraná, a cisão entre as suas noções de forma
estética ideal e a abertura conceitual do que viria a ser a música no Brasil daqueles
anos em diante.
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CONCLUSÃO: ÚLTIMO CANTO
“Em cada época deve-se fazer a tentativa de arrancar a tradição do campo do conformismo
que está sempre prestes a subjuga-la”
(Walter Benjamin)
Compreender e situar uma personagem, além das configurações da
notoriedade que esta possua, requer a dedicação de grande parte da pesquisa na
busca por aspectos situacionais relacionados com o contexto histórico e social, em
meio aos quais se desenvolveu esta personagem. Nesta monografia, a relevância do
cantor e compositor paranaense Luiz Carlos Paraná (1932-1970) encontra-se
justamente, e de modo particular, no fato de este deflagrar um processo de reflexão
que, há muito, o autor da pesquisa desejava enfrentar, para melhor entender alguns
temas da música, relacionando-os com a condição da memória cultural no País.
Para tanto, optou-se pela subdivisão temática em três eixos básicos, em torno
dos quais girou a discussão: o da memória e alguns mecanismos de seu
funcionamento; o da análise da sua produção musical, relacionados com aspectos
esclarecedores de sua trajetória pessoal; e, por fim, a tentativa de situar esta
produção musical na transição das décadas de 1950 e 1960, na cidade de São
Paulo, o que possibilitou refletir sobre a tradição e a modernidade; ou seja, buscou-
se relacionar aspectos em torno da constatação de que o compositor Luiz Carlos
Paraná posiciona-se como um artista que conhece e vive o presente das
transformações da metrópole, mas assume, em suas músicas, conexões quase que
inevitáveis com a tradição, o que pode estar relacionado ao esquecimento, nos dias
de hoje, da sua produção musical.
Mesmo tendo seu nome associado ao O Jogral e à significação que este
espaço assumiu na cultura paulista, sobretudo pelo fato de os frequentadores serem
os futuros nomes da primeira linha da música popular brasileira, ao se deter nas
letras de canções e no ritmo delas (samba-canção e modinhas), a presença do
embate entre o tradicional e o moderno, desvenda o modo pelo qual Carlos Paraná
obteve um resultado de coabitação de signos aparentemente antagônicos, numa
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tentativa menos consciente - e sem dúvida menos abrangente -, que Caetano e Gil
no Tropicalismo, por exemplo, mas ainda assim, capaz de gerar, dentro de suas
proporções, um movimento de novos e velhos artistas orbitando em torno da sua
figura, por meio de um popularíssimo centro de resgate e, ao mesmo tempo,
lançamento desses talentos que despontavam.
Luiz Carlos Paraná, não obstante o seu já apontado caráter de hibridismo,
assim como o ânimo que definitivamente nutria pelas novas gerações, ora de apreço
por Caetano Veloso, Geraldo Vandré e por Chico Buarque, ora de repúdio à Jovem
Guarda, deixou que sobrenadassem em sua obra, os valores da cultura tradicional
presentes não apenas na abordagem bucólica sobre o sentimento referente às suas
origens rurais, mas igualmente com relação às temáticas do amor, predominantes
em suas escolhas temáticas. Somente esta característica (classificada pelos críticos
de música como “saudosista”), analisada brevemente em mero confronto com o
contexto musical do País na época, já contornaria a ideia de um compositor
anacrônico.
Visto sob um ângulo mais aprofundado, contudo, o fenômeno denuncia por
meio deste aparente desajuste, um conflito interno e existencial bastante coerente,
inclusive, com sua personalidade taciturna, segundo apontaram amigos e parentes.
Tratava-se do principal indício da transformação pela qual o Brasil passava,
presente na obra do compositor, e por meio da qual se incutiu uma interessante
ironia. Isso porque, talvez inconscientemente, com uma canção de feições antigas,
Carlos Paraná acabou sendo um grande comentador de seu presente – mostrando
subliminarmente como nem sempre fora hegemônica a aceitação natural destas
mudanças estruturais, ainda que vistas pela maioria como positivas, porque
associadas à ideia de uma música, assim como o País, mais moderna.
A canção de Luiz Carlos Paraná reflete, deste modo, a transformação
modernizadora pela qual o Brasil passou entre 1950 e 1960, à medida que evidencia
seus conflitos em mudar também. Daí a fundação de uma casa noturna em que
pudesse abrir espaço para artistas que naquele momento já haviam sido esquecidos
ou rapidamente passados ao posto de Velha Guarda, o que não deslegitima em
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momento nenhum o desejo que Paraná possuía de incorporação de novos artistas,
servindo mesmo como berço para muitos dos estilos e ritmos modernos que fariam
sucesso décadas a fio, como o samba-rock do Trio Mocotó, depurado por Jorge
Bem, conforme mencionado no trabalho.
Contudo, Paraná produziu uma música que, apesar de todo seu mérito
artístico reconhecido por intérpretes, estudiosos e compositores, já não era o que se
esperava naquele momento. O novo era a ordem do dia. Até mesmo o Tropicalismo
dificilmente teria existido ou criado as referências intelectuais que se sustentam até
hoje se, aliado ao seu olhar para o passado, não estivesse embutida a inovadora
atitude de mescla, ironia e riqueza de gêneros que o olhar moderno de seus líderes
continha – isto é, trazendo o velho associado ao novo, alegoricamente, em seu
conceito: a inclusão da guitarra elétrica, a grande influência do rock inglês dos
Beatles e a reverência à tradição do baião, da marcha, da música de protesto e da
Bossa Nova.
Luiz Carlos Paraná, neste ambiente de atravessamento midiático da televisão,
das novas celebridades do rock e dos festivais de música, voltou-se para O Jogral
que acabou tornando-se – ainda que não parecesse ser este, o desejo genuíno do
compositor -, um local onde predominava a ideia de nostalgia e saudosismo. Neste
sentido, foi que também se criou uma espécie de família. Era a atuação de certo
senso de pertencimento unindo os artistas que também não se encaixassem
perfeitamente às estéticas do momento, como atesta claramente a cantora Inezita
Barroso, amiga e intérprete de Carlos Paraná, em depoimento para esta pesquisa.
De tal maneira amalgamaram-se esses fenômenos que, com as
características da obra composta pelo artista até aqueles anos 1960, não haveria, de
fato, maiores condições para que este entrasse na agenda dos movimentos culturais
de maior destaque do momento, estando, por assim dizer, à margem de um circuito
tido, a partir de então, como o “oficial”. Talvez, caso não tivesse falecido tão
precocemente, desenvolvesse um trabalho mais sintonizado àquele momento, como
parecia começar a movimentar-se a partir do destaque de suas canções nos
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festivais de 1966 e 1967, pela TV Record. Mas isto são apenas especulações que,
metodologicamente, não nos poderiam conduzir a lugar algum.
O que foi por este trabalho considerado factualmente, é que sua obra,
associada a este dito anacronismo e, claro, à sua postura matuta e resguardada,
não lhe propiciaria condições concretas de ser lembrado, por não ter produzido a
exposição e as marcas que o futuro rastrearia para retomar sua trajetória.
Vimos no primeiro capítulo, aliás, inteiramente dedicado ao delineamento dos
parâmetros que regem a questão da memória, que é o presente que cria a agenda
do que será lembrado do passado. Isto significa que, tanto a preservação de
memórias, quanto a manutenção de determinados fenômenos em total estado de
esquecimento, são ações socialmente planejadas, como sustenta Paul Ricoeur. Luiz
Carlos Paraná não deixou os rastros que aquele novo contexto lhe exigia. Pelo
menos não em termos de mídia e imprensa, pensando a preservação de sua
memória com a possível dimensão da de um dos nomes de relevância da atual MPB
(já que, em menor escala, esteve sempre presente nos jornais).
Hoje, distantes da efervescência das novas estéticas artísticas dos anos
1960, e com a já mencionada onda de biografias e resgate de manifestações
culturais, iniciada a partir de meados da década de 1980, criou-se mais sentido para
a pesquisa historiográfica sobre a obra de artistas como Carlos Paraná, do que
talvez houvesse nos próprios anos em que o compositor ainda vivia. Assim, no
segundo capítulo, tratamos de abordar aspectos biográficos do compositor, para
melhor explicitar sua opção estética, associada à forte influência interiorana.
A produção musical do ribeirão clarense, além de vasta ritmicamente e de
forte intenção lírica na escolha de temas, reflete o estado das coisas no que tange à
transformação histórica do momento em que eram compostas, e só pode,
naturalmente, receber esta abordagem, à luz do distanciamento temporal, o que faz
com que, ironicamente, mesmo escrita com o olhar voltado para o passado, ela só
pudesse ser compreendida em relação ao seu contexto, no futuro. Visto por este
ângulo, o esquecimento e seu consequente distanciamento temporal, acabou
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indiretamente funcionando como a principal chave para a compreensão e, neste
sentido, para o redimensionamento e a ressignificação do autor.
Afinal, a produção de memória histórica em nada ultrapassa os limites da
interpretação dos vestígios e testemunhos, tendo por referência o conjunto de
valores que permeiam o instante em que se tece a análise. Inspirado pelas novas
possibilidades deste olhar, próprias de um presente distante mais de quatro décadas
daquele, foi que este estudo buscou, por meio do caso específico deste compositor
paranaense, a compreensão mais ampla de um viés de nossa formação, bem como
a discussão de uma época-chave em que o País viveu intensamente, a
transformação de aspectos fundamentais de sua realidade.
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b) Jornais, revistas PRATT, Van Der. Roteiro da Pauliceia. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 jun. 1970. (Recorte sem demais informações). ROCHA, Janaina. O último canto de Adauto Santos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 ago. 1999. Caderno 2. SEM AUTOR. Paraná, Adauto e Elsa foram a surpresa do festival. Última hora, São Paulo, 14 out. 1966. (Recorte sem demais informações).
c) Lista de entrevistados
Aqueles sem os quais o trabalho de reconstituição biográfica simplesmente não existiria:
1. Abigail Mazzetti Carnieli (moradora de Ribeirão e amiga de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.
2. Airton Fonteque (primo de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.
3. Aluízio Falcão (jornalista e amigo de Carlos Paraná) Entrevista por telefone realizada a 30/09/2010.
4. Aldina Soares Barroso (Claudia Moreno) (cantora do Jogral) Entrevista por e-mail respondida a 10/11/2009.
5. Amélia Carlos (irmã de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 29/11/2009.
74
6. Amélia Rocha Barroso (Claudia Barroso) (cantora e amiga de Carlos Paraná) Entrevista por e-mail respondida a 26/04/2010.
7. Ana de Oliveira Colioni (moradora de Ribeirão Claro) Conversa informal, s/d.
8. Ana Maria Elyseu Brandão (cantora do Jogral) Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada em abril de 2010.
9. Antonio Candido de Mello e Souza (professor e crítico literário) Registro digital (Arquivo pessoal). Conversa realizada a 18/06/2011.
10. Antonio Carlos de Campos (Carlinhos) (porteiro do Jogral) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.
11. Antônio Teodoro de Oliveira (“Toninho da farmácia”, exército) Entrevista por telefone. s/d.
12. Benedita Fonteque (prima de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.
13. Chico Anysio (ator, dramaturgo, humorista e júri do Festival de 1968, da TV Record) Conversa informal. s/d.
14. Claudio Hercílio Araújo (ex-morador de Ribeirão Claro) Entrevista por telefone. s/d.
15. Clélia Chammas (amiga de Carlos Paraná) Conversa informal. s/d.
16. Dinamérico Aguiar (amigo de Marcus Pereira, sócio de Carlos Paraná) Conversa informal. s/d.
17. Domingos Brambilla (morador de Ribeirão Claro e amigo de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.
18. Eduardo Alves de Lima (Proprietário da Fazenda Monte Claro, em Ribeirão Claro, onde Carlos Paraná compôs a famosa canção “Flor do cafezal”) Entrevista pessoal, sem registro. s/d.
19. Egídio Jorge Giacóia (Advogado da família de Carlos Paraná em 1970 e 1971) Conversa informal, s/d.
20. Elza Soares (cantora) Entrevista por telefone. s/d.
21. Eva Néia Lima (amiga de Carlos Paraná) Entrevista por telefone. s/d.
22. Fernanda Marton Ribeiro Soares (viúva de Adauto Santos, cantor, violeiro, amigo e sócio de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 26/10/2009.
23. Francisco Carlos (irmão de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal), s/d.
24. Geraldo Cunha (cantor) Entrevista por telefone, s/d.
25. Inezita Barroso (cantora e pesquisadora musical) Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 13/10/2009.
26. Iracema Cirelli Brambilla (moradora da cidade e amiga de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.
27. Ivone de Lorena Néia (ex-namorada de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.
28. João Carlos Gomes (João Parahyba) (o “timbatera” do Trio Mocotó, nascido n´O Jogral)
75
Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 10/05/2011. 29. José Aparecido Fonteque (Tuim) (primo de Carlos Paraná)
Registro digital (Arquivo pessoal). s/d. 30. José Carlos (irmão de Carlos Paraná)
Registro digital (Arquivo pessoal). s/d. 31. José Carlos Néia (Juca Néia) (amigo de Carlos Paraná)
Conversa informal. s/d. 32. José Domingos da Silva (cantor, compositor, violonista, poeta e escritor)
Registro digital (Arquivo pessoal). s/d. 33. José Ferreira de Aquino (Zé do Sapo) (morador de Ribeirão Claro)
Conversa informal. s/d. 34. José Nogueira (produtor musical)
Registro digital (Arquivo pessoal). s/d. 35. Julio Medaglia (maestro e crítico musical)
Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 23/10/2009. 36. Lázaro Carlos (irmão de Carlos Paraná)
Entrevista por telefone. s/d. 37. Léo Vaz (cantor e amigo de Carlos Paraná) (In memoriam – falecido a 24 de
fevereiro de 2011) Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 24/11/2009.
38. Luiz Fonteque (primo de Carlos Paraná) Conversa informal. s/d.
39. Maria Alice Vergueiro (atriz, filha de Maria Antônia Vergueiro, amiga de Carlos Paraná) Conversa por telefone. s/d.
40. Maria Helena D´Ávila Botelho Lopes (ex-namorada de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.
41. Maria Lucia Santaella Braga (Professora Titular da PUC-SP, Doutora em Teoria Literária e Livre-Docente em Ciências da Comunicação) Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 03/07/2011.
42. Maria José (Zita) de Lara Miguel (ex-namorada de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 11/10/2009.
43. Mario Edson (pianista d´O Jogral) Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 13/11/2009.
44. Mario Prata (escritor) Entrevista feita pelo ator Ivam Cabral em 2000 e gentilmente cedida para minha pesquisa. Registro digital (Arquivo pessoal).
45. Mauro Moreton (morador de Ribeirão Claro) Conversa por telefone, s/d.
46. Mazir Maria Araújo de Oliveira (moradora de Ribeirão Claro e amiga de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.
47. Nadir Gomes da Cruz (amiga de Carlos Paraná e sua colega de elenco em peça amadora realizada em Ribeirão Claro) Registro digital (Arquivo pessoal), s/d.
48. Ovídio Fabiani (In memoriam - bancário e vereador de Ribeirão Claro, gestão de 1948) Entrevista pessoal, sem registro. s/d.
49. Paulina Marques Cassetari (professora de Carlos Paraná na 4ª e 5ª séries do primário)
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Registro digital (Arquivo pessoal). s/d. 50. Paulo Emílio Vanzolini (biólogo, compositor e amigo de Carlos Paraná)
Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 03/10/2009. 51. Pedro Miguel (cantor, seresteiro d´O Jogral)
Registro digital (Arquivo pessoal). s/d. 52. Regina Rahuan (amiga de Carlos Paraná e moradora de Ribeirão Claro)
Conversa informal. s/d. 53. Roberto Luna (cantor)
Conversa informal, s/d. 54. Thereza César Araújo (ex-moradora de Ribeirão Claro)
Entrevista por telefone. s/d. 55. Thereza Néia Nogueira (amiga de Carlos Paraná)
Entrevista por telefone. s/d. 56. Ubiratan Willian Lustosa (Escritor e radialista de Curitiba, amigo de Carlos
Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.
57. Vera Regina Pinto Coutinho (Vera Coutinho) (cantora d´O Jogral) Entrevista por telefone realizada a 09/08/2010.
58. Zeza Dubock (cantora d´O Jogral) Conversa informal. s/d.
59. Zilá Paladino (amiga de Carlos Paraná e moradora de Ribeirão Claro) Conversa informal. s/d.
d) Lista de demais colaboradores
1. Adriana Augusta do Amaral (auxiliar de enfermagem, funcionária de Ovídio
Fabiani, em Ribeirão Claro) 2. Agnaldo Rayol (cantor, ator e intérprete de Carlos Paraná, confirmou sua
gravação da canção “Em vez de adeus” em 1966) 3. Amanda Brambila da Silva (dados populacionais do município de Ribeirão
Claro) 4. Ana Bernardo (cantora e esposa de Paulo Vanzolini) 5. Andressa Mareca Néia (cartório de registro civil de Ribeirão Claro) 6. Ariel Mário Okopny Júnior (Coronel e chefe da seção de Comunicação Social
do Comando da 5ª Região Militar – 5ª Divisão de Exército – Curitiba) 7. Camilo D´Angelo Braz (orientador de conteúdo desta monografia). 8. Celso Favareto (Filósofo, professor efetivo da Universidade de São Paulo)
Cleide Consulin Pereira (moradora de Ribeirão Claro) 9. Dalva Aguiar (esposa de Dinamérico Aguiar, amigo de Marcus Pereira) Diana
Saad (moradora de Ribeirão Claro) 10. Edilamar Galvão (orientadora de metodologia desta monografia) 11. Edmir Lima (funcionário do banco de dados do jornal Folha de S. Paulo.
Arquivo consultado em 15 de dezembro de 2010). 12. Elias Andreato (ator, diretor e ex office-boy da Discos Marcus Pereira) 13. Emmanoel (Badeco) Barbosa Furtado (ex-integrante do conjunto Os Cariocas,
de Bossa Nova, no Rio de Janeiro) 14. Fernanda de Almeida Prado (psicóloga e agitadora cultural) 15. Fernanda Rocha de Pontes Barbosa (MIS – RJ) 16. Giovanna Crispim Costacurta (interlocutora) 17. Giselle Sogayar Bechara (ex-moradora de Ribeirão Claro)
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18. Guilherme Brenk (morador de Curitiba) 19. Irene Rosso (ex-namorada de Carlos Paraná, no período de 1951 a 1954) 20. Isadora Ribeiro de Mareca (cartório de registro civil de Ribeirão Claro) 21. Ivam Cabral (ator, diretor, dramaturgo, fundador do grupo teatral “Satyros” e
ex-morador de Ribeirão Claro) 22. Jaime Jorge Bechara (ex-morador de Ribeirão Claro) 23. Jorge Sogayar Neto (in memoriam: advogado da família de Carlos Paraná e
ex-morador de Ribeirão Claro) 24. Leonardo Mysock (sebo Jovem Guarda, São Paulo, Mooca, consultado em
maio de 2011) 25. Luiz Antonio de Almeida (MIS – RJ) 26. Marcus Pereira (in memoriam: pelo indispensável e pertinente testemunho
deixado em seu livro sobre O Jogral e Carlos Paraná) 27. Maria Carolina de Andrade (viúva de Marcus Pereira) 28. Maria Helena Borges (Igreja Matriz de Ribeirão Claro) 29. Maria José (Zita) Krainer Rodrigues (moradora de Ribeirão Claro) 30. Mario Cesar Lobo (cartório de imóveis de Ribeirão Claro) 31. Marlucia de Aquino (Grupo Escolar Corrêa de Freitas, de Ribeirão Claro) 32. Neusa Maria Viecelle (Hospital Oswaldo Cruz - SP) 33. Nilu Lebert (Jornalista e biógrafa de Agnaldo Rayol) 34. Odeth Baptista Ravanhol (moradora de Ribeirão Claro) 35. Oswaldo Giacóia Júnior (advogado, filósofo e ex-morador de Ribeirão Claro) 36. Pena Branca (in memoriam: o cantor José Ramiro Sobrinho, falecido a 8 de
fevereiro de 2010, conversou com o autor deste trabalho sobre sua gravação de “Flor do cafezal” em dupla com Xavantinho)
37. Prefeitura Municipal de Ribeirão Claro 38. Roberta Vaz (filha de Léo Vaz) 39. Rolando Boldrin (cantor, ator e compositor; conversou com o autor deste
trabalho sobre sua gravação de “Flor do cafezal”, em duo com o cantor Cascatinha, em 1981)
40. Rosy Sydney Brenk (moradora de Curitiba) 41. Ruy Castro (jornalista, escritor e biógrafo) 42. Sabrina Bueno (Produção de Elza Soares) 43. Sandra Genes Borghi (fotógrafa e interlocutora) 44. Sargento Mache (do 20º BIB de Curitiba) 45. Soraia Fernandes (cartório de imóveis de Ribeirão Claro) 46. Suely Maria Lourenço (filha de dona Nadir Gomes da Cruz) 47. Thais Matarazzo (pesquisadora musical) 48. Yara Rahuam da Silva (moradora de Ribeirão Claro) 49. Yvone Bechara Baggio (moradora de Ribeirão Claro)
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Anexos
1 O Mundo do Caipira
Por Antonio Candido
(texto de apresentação do LP duplo “Caipira: Raízes e frutos”, Eldorado, 1980)
Este disco [Caipira: raízes e frutos] põe o ouvinte no centro de um mundo
cultural peculiar, que está se acabando por aí: o mundo caipira.
A gente que vive na cidade procurou sempre adotar modos de ser, pensar e
agir que lhes pareciam os mais civilizados, os que permitem ver logo que uma
pessoa está acostumada com o que é prescrito de maneira tirânica pelas modas –
moda na roupa, na etiqueta, na escolha dos objetos, na comida, na dança, nos
espetáculos, na gíria. A moda logo passa; por isso a gente da cidade deve e pode
mudar, trocar de objetos e costumes, estar em dia. Como consequência, se entra
em contato com um grupo ou uma pessoa que não mudaram tanto assim; que usam
roupa como a de dez anos atrás e respondem a um cumprimento com certa fórmula
desusada; que não sabem qual é o cantor da moda nem o novo jeito de namorar;
quando entra em contato com gente assim, o citadino diz que ela é caipira, querendo
dizer que é atrasada e, portanto, meio ridícula. Diz, ou dizia; porque hoje a mudança
é tão rápida que o termo está saindo das expressões de todo o dia e serve mais
para designar certas sobrevivências teimosas ou alteradas do passado: música
caipira, festas caipiras, danças caipiras, por exemplo. Que aliás, na maioria das
vezes, conhecemos, não praticadas por caipiras, mas por gente que finge de caipira
e usa a realidade do seu mundo como um produto comercial pitoresco.
Nem podia ser de outro modo, porque o mundo em geral está mudando
depressa demais neste século, e nada pode ficar parado. Hoje, creio que não se
pode falar mais de criatividade cultural no universo do caipira, porque ele quase
acabou. O que há é impulso adquirido, resto, repetição – ou paródia e imitação
deformada, mais ou menos parecida. Este disco é um esforço para fixar o que sobra
79
de autêntico no mundo caipira, através da difícil permanência ou da modificação
normal, devida à influência inevitável da cultura das cidades.
Aliás, a cultura do caipira não é nem nunca foi um reino separado, uma
espécie de cultura primitiva independente, como a dos índios. Ela representa a
adaptação do colonizador ao Brasil e, portanto, veio na maior parte de fora, sendo,
sob diversos aspectos, sobrevivência do modo de ser, pensar e agir do português
antigo. Quando um caipira diz “pregunta”, “a mo´que”, “despois”, “vassuncê”, “tchão”
(chão), “dgente” (gente), não está estragando por ignorância a língua portuguesa;
mas apenas conservando antigos modos de falar que se transformaram na mãe-
pátria e aqui. Até o famoso “erre retroflexo”, o “erre de Itur” ou “de Tietêr”, que se
pensou devido à influência do índio, viu-se depois que pode ter vindo de certas
regiões de Portugal. Como veio o desafio, a fogueira de São João, o compadrio, o
jogo do cacete, a dança de São Gonçalo, a Festa do Divino, a maioria das
crendices, esconjuros, hábitos e concepções. Quantas vezes ouvi caipiras
“improvisando” na viola quadras bonitas que anos depois encontrei em coleções de
folclore português! Lá por 1946, creio que num sítio perto de Rio das Pedras, me
senti transfixado pelos versos admiráveis de um deles sobre a pureza de Maria
Virgem, recebendo no seio o Espírito Santo sem a mancha do nosso velho pecado.
Mais tarde, numa coletânea de poesia popular portuguesa, li quase a mesma coisa,
identificando a fonte que o cantador ignorava tanto quanto eu, e com a qual se
comunicava por participar na sequencia de uma longa tradição.
Portanto, é preciso pensar no caipira como um homem que manteve a
herança portuguesa nas suas formas antigas. Mas é preciso também pensar na
transformação que ela sofreu aqui, fazendo do velho homem rural brasileiro, o que
ele é, e não um português na América. “Tabaréu”, “matuto”, “capiau”, “caipira” ou o
que mais haja, ele é produto e ao mesmo tempo agente muito ativo de um grande
processo de diferenciação cultural própria. No Norte, talvez esteja mais perto do
português pela língua e a tradição, apesar da mistura maior com as raças ditas de
cor. No Sul, está mais afastado, mais transformado pela contribuição do índio. Na
extensa gama dos tipos sertanejos brasileiros, poderia ser considerado “caipira” o
homem rural tradicional do Sudoeste e porções do Centro-Oeste, fruto de uma
80
adaptação da herança portuguesa, fortemente misturada com o indígena, às
condições físicas e sociais do Mundo Novo.
Na verdade, o caipira é de origem paulista. É produto da transformação do
aventureiro semi-nômade em agricultor precário, na onda dos movimentos de
penetração bandeirante que acabaram no século XVIII e definiram uma extensa
área: São Paulo, parte de Minas e do Paraná, de Goiás e de Mato Grosso, com a
área afim do Rio de Janeiro rural e do Espírito Santo. Foi o que restou de mais típico
daquilo que um historiador grandiloquente mas expressivo chamou de “Paulistânia”.
Nessa linha de formação social e cultural, o caipira se define como um
homem rústico de evolução muito lenta, tendo por fórmula de equilíbrio a fusão
intensa da cultura portuguesa com a aborígene e conservando a fala, os usos, as
técnicas, os cantos, as lendas que a cultura da cidade ia destruindo, alterando
essencialmente ou caricaturando. Não se trata, portanto, de um ser aparte, mas de
um irmão mais lerdo para quem o tempo correu tão devagar que frequentemente
não entra como critério de conhecimento, e que em pleno século XX podia viver, em
parte, como um homem do século XVIII. Quem esteve em contato com ele sabe, por
exemplo, o quanto é impreciso sobre a própria idade e como não consegue por
datas na lembrança, além de não saber o que se passa na sociedade maior, cujos
sinais podem estar ao seu lado sob a forma de jornal que ele não lê, de cinema que
não vê, de rádio que não escuta, de trem que não toma. “Como vai o Imperador?” –
perguntou-me em 1948 o nonagenário Nhô Samuel Antônio de Camargo, nascido no
Rio Feio, atual Porangaba. “Vai bem”, respondi. E ele, com uma dúvida: “Mas não é
mais aquele veião de barba?”. E eu: “Não, agora é outro, chamado Dutra”.
Em compensação, no quadro da sua cultura o caipira pode ser extraordinário.
É capaz, por exemplo, de sentir e conhecer a fundo o mundo natural, usando-o com
uma sabedoria e uma eficácia que nenhum de nós possui. No ano de 1954, na zona
rural de Bofete, eu me atrasei para um encontro com Nhô Roque Lameu, marcado
para as 10 horas. O meu relógio indicava 10:15 e eu comentei que estava
desacertado. “Está pouca coisa”, disse ele, “porque pelo sol deve ser 9 e meia”.
Quando dali a pouco acertei o relógio, vi que estavá adiantado 45 minutos, e que o
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velho caipira não apenas calculara a hora com absoluta exatidão, mas achava que
três quartos de hora não era coisa apreciável, além de não me corrigir, com a
constante polidez do caboclo, lembrando que, ao contrário, eu tinha chegado antes
da hora marcada.
Com o seu perfil adunco, cor bronzeada e barba rala na face magra, Nhô
Roque podia ser um mameluco apurado. Do ancestral português herdara com a
língua e a religião a maioria dos costumes e das crenças; do ancestral índio herdara
a familiaridade com o mato, o faro na caça, a arte das ervas, o ritmo do bate-pé (que
noutros lugares se chama cateretê), a caudalosa eloquência no cururu.
O cururu e a dança da Santa Cruz são dois exemplos muito bons do encontro
das culturas. Parece terem sido elaborados sob influência dos jesuítas, que
aproveitaram as danças indígenas e o gosto do índio pelo discurso e o desafio para
enxertar doutrina cristã. Nada mais caipira do que cururu e dança da Santa Cruz,
que só existem em áreas de forte impregnação originária dos antigos piratininganos.
E nada mais misturado de elementos portugueses e indígenas, como tanta coisa
que observamos nas cantigas, nas histórias, nas técnicas do homem rural pobre e
isolado de velha origem paulista.
Faz muito tempo que não ando pelos lugares isolados do interior, e nem sei
se eles ainda existem como tais depois da multiplicação das estradas e ônibus.
Quando eu andava entre 1943 e 1955 - o caipira ainda era uma realidade cultural
definida, apesar de ser cada vez maior a sua ligação com a cultura urbana,
aceleradamente modernizada. Era espoliado e miserável na absoluta maioria dos
casos, porque com o passar do tempo e do progresso, quem permaneceu caipira foi
a parte da velha população rural sujeita às formas mais drásticas de expropriação
econômica, confinada e quase compelida a ser o que fora, quando a lei do mundo a
levaria a querer uma vida mais aberta e farta, teoricamente possível.
Foi então que o caipira se tornou cada vez mais espetáculo, assunto de
curiosidade e divertimento para o homem da cidade, que, instalado na sua
civilização e querendo ressaltar este privilégio, usava aquele irmão miserável para
82
provar como ele tinha prosperado, como era triunfalmente diverso. A vida do caipira
ficou sendo então, para ele próprio, uma privação terrível, porque comparável a
outras situações; e para o citadino, um divertimento que lhe dava a confortável
sensação de haver mudado para algo melhor e mais alto.
A partir daí, o canto e a música caipira sofreram, não as influências normais
e por assim dizer orgânicas que sempre sofreram das suas congêneres cultas; mas
a deformação caricatural e alienante que a desfigura, e que corrompe o gosto médio
como vingança involuntária do espoliado contra o seu espoliador.
A tarefa, portanto, é procurar o que há nele de autêntico. Autêntico não tanto
no sentido impossível do originariamente puro, porque em arte tudo está mudando
sempre; mas no sentido de buscar os produtos que representem o modo de ser e a
técnica poético-musical do caipira como ele foi e como ainda é; não como querem
que ele seja para espetáculo dos outros.
83
2 Programa do show “Os homens verdes da noite”
‘O senhor me leve na Rua das Palmeiras, onde canta o sabiá’.
Essa beleza de verso foi dita ao motorista do taxi. Não queríamos ir a lugar
nenhum, queríamos apenas bater um daqueles papos de quando éramos
companheiros de quarto em Copacabana, num apartamento térreo, de fundos, sem
janelas, onde moravam 14 pessoas, inclusive um general reformado com quem João
brigou um dia e disse, no alto da discussão: ‘Vai, vai, velhinho, volta ao quartel, pega
o teu canhão e vem!’.
Entrávamos no taxi. João já era um ídolo (eu continuava a cantar pelos
inferninhos) e não havia mais lugar onde conversar sossegado, mesmo de
madrugada. Às vezes, como um turista qualquer, pedia ao motorista que nos
levasse a uma rua onde houvesse mulheres. Quando já estávamos de papo
engatilhado, o taxi parava:
- Chegamos, olha aí as mulheres.
- Ah, sim!
Estávamos na Boca do Lixo, em frente um edifício com mulheres apinhadas
na porta. Para não decepcionar o motorista, João descia e ia conversar com elas.
Logo voltava, debaixo de palavrões. É que João não reparava onde pisar com sua
poesia. Conversava comigo, com o motorista e com a prostituta no mesmo Tom em
que conversava com Vinícius (desculpe o trocadilho, mas já que saiu, deixa ficar).
Fora parar naquele apartamento de Copacabana, onde ficaria sendo o 14º
inquilino, em busca de um violão emprestado, com o qual gravaria, no dia seguinte,
algumas faixas com Elisete Cardoso, naquele LP antológico. Já começava a fazer
escola, mas ainda não tinha violão e levaria muito tempo para ter um, se é que
agora tem. Um dia, já em São Paulo, veio buscar o meu mais uma vez, para cantar
no programa de entrega dos prêmios CHICO VIOLA. Quando chegou a sua vez,
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apareceu tocando num violão diferente. O meu ele tinha acabado de quebrar na
cabeça do Tito Madi.
Deixa-me contribuir com mais um pedacinho da biografia de João Gilberto. A
gravação de CHEGA DE SAUDADE, o grande marco, devia ser de manhã, o que
prova que os diretores da Odeon pouco sabiam de João. Naquela noite, contra o
hábito, João tentava dormir e não conseguia. Mudava de posição, mudava de cama,
mudava de quarto (os quartos e as camas estavam vazios, todo mundo era músico
noturno) e continuava acordado. Acabou amarrando sobre os olhos, bem apertada,
uma gravata de seda pura, presente de Maysa numa noite em que João devia
acompanhá-la num show e não tinha gravata. Fiquei com pena e troquei-a por uma
das minhas, mais barata (a de seda pura está comigo). João continuava com
insônia. Lá pelas nove da manhã começaram a telefonar do estúdio. Tom já estava
lá, a orquestra reunida, os técnicos a postos, os aparelhos ligados. Faltava só João.
Não iria, não tinha dormido nada, como é que iria gravar? Vieram buscá-lo e
levaram-no meio à força. De tarde voltou com um acetato e tocou-o na vitrolinha da
casa, entusiasmado: ‘O Aloísio [Oliveira] diz que vai ser sucesso, eu vou ficar rico!’.
Não ficou e nem ficará nunca. Nem vai ser preciso
Que têm a ver estas histórias com ‘OS HOMENS VERDES DA NOITE’?
Nada, absolutamente nada. Não existe uma só música de João no show. Acontece
que o material para este folheto já estava atrasadíssimo e eu não estava com um
pingo de vontade de escrever sobre este maldito show, no qual estou jogando tudo o
que ganhei em vários anos de exploração do alcoolismo alheio.
Luiz Carlos Paraná
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3 Lista de imagens e documentos
Figura 1: Casa comprada por Paraná para os pais em 1969, Ribeirão Claro (PR). Acervo pessoal.
Figura 2: Em Curitiba (PR), com Paulina Cassetari, professora primária de C. Paraná. Acervo pessoal
86
Figura 3: Em St. Antônio da Platina (PR), com José e Francisco, irmãos de Paraná. Acervo pessoal.
Figura 4: Em Sorocaba (SP), com Amélia, irmã de Carlos Paraná. Acervo pessoal.
87
Figura 5: Em Curitiba (PR), com o radialista Ubiratan Lustosa. Acervo pessoal.
Figura 6: Em São Paulo (SP), com o sambista e biólogo Paulo Vanzolini. Acervo pessoal.
88
Figura 7: Em São Paulo (SP), com a cantora e folclorista Inezita Barroso. Acervo pessoal.
Figura 8: Ribeirão Claro (PR), com a ex-namorada de Paraná, Ivone Néia. Acervo pessoal.
89
Figura 9: Luiz Carlos, anos 1950. Antes de virar Paraná, no grupo Os Sinuelos, Rio de Janeiro.
Acervo José Carlos (irmão).
90
Figura 10: Partitura de “Maria, carnaval e cinzas”, 1967, interpretada por Roberto Carlos. Acervo
Amélia Carlos (irmã).
91
Figura 11: Foto autografada em 1958. Rio de Janeiro. Acervo Amélia Carlos (irmã).
Figura 12: Em Ribeirão Claro, com a avó, 1970. Acervo Amélia Carlos (irmã).
Figura 13: Certidão de identificação, 1953. Acervo Amélia Carlos.
92
Figura 14: Com a cantora Elza Soares, sem data. Acervo Amélia Carlos.
Figura 15: Autógrafo dos cantores Cascatinha e Inhana, de passagem por Ribeirão Claro, 1955.
Acervo Irmãos David.
93
Figura 16: Autógrafo de Mazzaropi, de passagem por Ribeirão Claro. Acervo Irmãos David.
Figura 17: Carlos Paraná e Léo Vaz, na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, anos 1950. Acervo Amélia
Carlos.
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Figura 18: Em Curitiba (PR), com o querido amigo e cantor Léo Vaz, 2010. Acervo pessoal.
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4 CD – Coletânea Luiz Carlos Paraná
01 – Flor do cafezal (Luiz Carlos Paraná), com Luiz Carlos Paraná (1970).
02 – Flor do cafezal (L.C.P.), com Cascatinha e Inhana (1967).
03 – Maria, carnaval e cinzas (L.C.P.), com Roberto Carlos (1967).
04 - Maria, carnaval e cinzas (L.C.P.), com L.C.P. (1967).
05 – De amor ou paz (L.C.P. e Adauto Santos), com Adauto Santos (1970).
06 – De amor ou paz (L.C.P. e Adauto Santos), com Martinália e Martinho da Vila
(2002).
07 – Queria (Luiz Carlos Paraná), com Luiz Carlos Paraná (1964).
08 - Queria (Luiz Carlos Paraná), com Hebe Camargo (1965).
09 – Canoa vazia (Luiz Carlos Paraná), com L.C.P. (por volta de 1967).
10 – Canoa vazia (Luiz Carlos Paraná), com Adauto Santos. (1970).
11 – Nem sequer uma rosa (L.C.P. e Victor Rafael), com Emílio Escobar (1970).
12 – Vou morrer de amor (L.C.P.), com L.C.P. (1970).
13 – Resignação (L.C.P.), com L.C.P. (1970).
14 - Resignação (L.C.P.), com Hebe Camargo. (1967).
15 – Quando meu bem voltar (L.C.P. e Walter Santos), com L.C.P. (entre 64 e 67).
16 – Marcha do amor sem esperança (L.C.P. e W. S.), com Emílio Escobar (1970).
17 – Em vez de adeus (L.C.P.), com Agnaldo Rayol (1966).
18 – Se for pra medir saudade (L.C.P.), com L.C.P. (1964).
19 – Se for for pra medir saudade (L.C.P.), com Emílio Escobar (1970).
20 – Você merece um tango (L.C.P.), com Emílio Escobar (1970).
21 – Ainda ontem (L.C.P. e Bolinha), com Belmonte e Amaraí (s/d).
22 – Terra dos pinheirais (L.C.P.), com Nenete e Dorinho (s/d).
23 – Saudade esperança (L.C.P.), com Pedro Bento e Zé da Estrada (s/d).
24 – Caminho verde (C. Larrea, versão L.C.P.), com Léo Vaz e L.C.P (1957).
25 – Último canto (L.C.P. e Adautos Santos), Adauto Santos (1970).