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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
Bonecas Karaj:
modelando inovaes, transmitindo tradies.
Sandra Maria Christiani de la Torre Lacerda Campos
- 2007 -
Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia
parcial para a obteno do ttulo de doutora em Ci-
ncias Sociais Antropologia -, sob a orientao da
Profa. Dra. Dorothea Voegeli Passetti.
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BANCA EXAMINADORA
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Profa. Dra. Dorothea Voegeli Passetti
Orientadora
Profa. Dra. Regina P. Mller
Profa. Dra. Mrcia Angelina Alves
Profa. Dra. Carmen Junqueira
Prof. Dr. Rinaldo Arruda
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Dedico este trabalho aos meus pais, com
profunda, gratido pelo apoio e respeito
s minhas opes.
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Agradecimentos
Muitas pessoas e instituies foram indispensveis para a realizao destetrabalho, e certamente, algumas no recebero o reconhecimento devido,
apesar de meu empenho e esforo de memria.
Carmen Junqueira e Dorothea Passetti, que me ensinaram com sabedoria
a seguir minhas escolhas, devo as orientaes fundamentais.
Aos colegas do MAE, que torceram pela concluso deste trabalho. Em es-
pecial profa. Mrcia Angelina Alves, pelo estmulo e conana depositado
neste trabalho.
Aos colegas da Universidade Anhembi Morumbi, que direta ou indireta-
mente, colaboraram para a concluso de um desao.
Ktia Huertas, que em uma brincadeira matinal, criou esta preciosa capa.
A Thiago Rodrigues, pela pacincia e esmero, na formatao do trabalho.
Ao amigo Ijesseberi, em memria, e a Hatawaki, pela reviso dos termosna lngua Karaj.
Ao Joo e aos meus lhos, Thiago e Gabriel, que sofreram comigo as angs-
tias e alegrias deste processo de aprendizado.
CAPES, pelo auxlio nanceiro.
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s ceramistas Karaj, sem dvida, co-autoras deste trabalho.
A Iwraru e esposa, que me escolherampara fazer parte de sua famlia.
Korixa Herenaki Kaherero
Komantira Mahuederu
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RESUMO
Este trabalho analisa as conexes entre arte e sociedade a partir de colees debonecas cermicas armazenadas em museu. A sistemtica de classicao e orga-
nizao de colees em museus etnogrcos vem reduzindo essa categoria da arte
gurativa a brinquedo de menina, ao passo que para a antropologia, o objeto assu-
me o papel de testemunho de prticas sociais vinculadas a cultura de origem.
O exame das colees de bonecas Karaj do Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade de So Paulo, o dilogo com a sociedade produtora em que o objetocircula entre vrias esferas da vida cultural, e a incorporao de bases conceituais
da antropologia, tem como foco as referncias simblicas das divises sociais e a
transmisso de saberes e fazeres acerca da relao entre arte e vida social. Ana-
liso a pintura corporal e os padres ornamentais das guras Karaj, na condio de
manifestaes estticas que se caracterizam como insgnias de identicao tribal
e uma forma peculiar dessa sociedade explicitar seu universo cosmolgico. A circu-
lao interna das bonecas, diferente do que ocorre nas colees de museus, se d
em forma de conjuntos que so presenteados s meninas. Cada conjunto chamado
de famlia representa as fases de idade, identicadas pelos atributos ornamen-
tais e pelas caractersticas fsicas expressas no corpo correspondentes a cada uma
delas. Essa forma de circulao submetida a uma srie de regras tradicionais inter-
nas vem corroborando a hiptese de que os objetos superam a categoria brinquedo,
levando compreenso da estrutura familiar Karaj e da dinmica de mudanas ou
permanncias de vrias esferas da vida social.
Palavras chave: bonecas cermicas; antropologia; cultura de origem; refe-
rncias simblicas; arte e vida social.
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ABSTRACT
From the collections of stored ceramic dolls in museum, in this work areanalysed the connections between art and society. The systematics of
classication and organization of collections in ethnographic museums is
reducing that category of gurative art to a toy of girl, while for the
Anthropology, the object assumes the role of a proof of social practices
as a product of its origin culture.
The examination of Karaj dolls collections at the Museum of Archaeology
and Ethnology of So Paulo University, the dialogue with the producingsociety where the object circulates among several spheres of the cultural
life, and the incorporation of conceptual bases of an anthropology of ob-
jects, has as focus the symbolic references of the social divisions and the
knowledges and making transmissions about the relation between art and
social life. There is an analysis on the corporeal painting and the ornamen-
tal standards of the gures, believing that the aesthetic manifestationsare characterized as insignia of tribal identication and a peculiar way of
that society to make explicit its cosmological universe. The internal circu-
lation of the dolls, differently of what occurs in the museums collections,
happens in a manner of sets which are offered to the girls. Each set named
of family represents the age phases, identied by ornamental attributes
corresponding to each one of them. That way of circulation, subordinated
to a series of internal traditional rules comes corroborating the hypoth-esis of that the objects surpass the toy category, leading to the under-
standing of Karaj familiar structure and of the dynamics of changes or
permanencies of several spheres of the social life.
Keywords: Ceramic dolls; Anthropology; Origin culture; Symbolic references;
Art and social life.
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SUMRIO
Agradecimentos 4
Resumo 6
Abstract 7
Introduo 10
Captulo 1 - Situao atual e organizao social Karaj 1 6
1.1 Histria, territrio, demograa. 17
1.2 Hawal: Os Karaj da Ilha do Bananal 28
1.3 JK e Wata: Dois Polticos, duas Aldeias. 35
Captulo 2 Ritxok do barro fez-se o homem 41
2.1 As mos que tecem o barro: As Oleiras 42
2.2 Hknaritxok e Ritxok - as bonecas antigas e as modernas 462.3 De Dentro e de Fora: Contexto espacial e circulao dos Objetos 49
2.4 Para Alm do Brinquedo:
Bonecas como referncias simblicas das divises de idade 56
2.5 Categorias de idade 63
2.6 Jyr e Ijadokoma os segredos da iniciao 79
2.7 A Famlia 84
Captulo 3 Tecnologia Cermica Karaj 86
3.1 Processos de produo da cermica gurativa 87
3.2 Etapas de confeco da boneca 89
3.2.1 Coleta da argila 91
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3.2.2 Preparo da massa para modelar 93
3.2.3 Modelagem 96
3.2.4 Secagem 983.2.5 Alisamento 100
3.2.6 Queima 100
3.2.7 Pintura 105
3.3 Estilo 109
3.4 Padres temticos 115
3.4.1 Hnknaritxoko 1153.4.2 Ritxok 117
3.4.3 Irodusmo 119
3.4.4 Ani seres sobrenaturais 120
Captulo 4 O museu e o campo 125
4.1 Mosaicos indgenas: acervos etnolgicos dos museus 126
4.2 Os museus etnogrcos brasileiros 128
4.3 Composies: a formao das colees Karaja 135
4.4 A descoberta da famlia 139
Referncias Bibliogrcas 145
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INTRODUO
O propsito deste trabalho o de examinar uma categoriaartefatual, a cermica, inserida no contexto de uma cultura
amerndia, a Karaj. Este estudo constitui uma anlise sobre
a funo classicatria, segundo abordagens de Durkheim e
Mauss (1903), Boas (1996) e Lvi-Strauss (2005) acerca da
maneira como os Karaj apreendem seu mundo em gneros e
em espcies, a partir de mecanismos complexos de construo, projeoexterior, localizao espacial de representao do mundo sensvel. Busca
tambm destacar a atualidade da forma como Boas e Lvi-Strauss articu-
lam Antropologia e Arte, centrando a anlise nos objetos.
A escolha desta temtica surgiu com o desao etnolgico de
se trabalhar com acervos de museus, e para isto, desenvolver metodolo-
gias que permitam explorar o potencial de pesquisa dos objetos extraindo
o contedo intangvel desse universo material. Esta abordagem est ligada
formao prossional desta pesquisadora, cujo contato cotidiano com
a produo material de diversos povos indgenas despertou a percepo
de uma multidimensionalidade de fenmenos artsticos, motivando o de-
senvolvimento da pesquisa com objetivos de anlise que envolve diversos
aspectos relacionados aos processos de difuso, inovao e permanncia
de tcnicas de confeco e de traos estilsticos, observados nas colees
de museus.
A pesquisa tem como base bibliogrca diferentes autores
que procuram discutir as possibilidades de investigao de sistemas de
classicao de sociedades indgenas, a partir do conceito de estilo, ou dos
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elementos formais, de carter geral (Boas, 1996:137), e sua aplicao
ao estudo da produo de registros materiais colecionados em museus em
diferentes pocas, como Mauss, Boas, Lvi-Strauss, entre outros.Para justicar a escolha da produo cermica das populaes
Karaj a pesquisa direciona-se para os trabalhos de Vilma Chiara (1970)
e Helosa Fnelon Costa (1984), que apresentam uma dimenso histrica
sobre a confeco das Ritxok, ou bonecas, como so mais conhecidas.
Os resultados destas abordagens apontam para o fato de o estilo assumir
funes variadas nos diferentes contextos socioculturais, em que as auto-ras destacam o sentimento de identicao e diversidade de organizao
social das sociedades amerndias.
A cermica uma das modalidades da produo material dos
Karaj, ao lado de uma srie de categorias como cestaria, plumria, ador-
nos e armaria, entre outras que abrangem o campo das atividades culturais.
Vale ressaltar que o estudo centrado nas bonecas nos permite estender a
anlise a outras categorias, por se encontrarem associadas s guras cer-
micas, como a pintura corporal, os adornos e a representao de cenas da
vida cotidiana reproduzidas na cermica, que sintetizam e documentam, ao
seu modo, elementos singulares da cultura Karaj.
O conceito de cultura indgena um desao para a Antropo-
logia, levando-se em conta a grande diversidade existente, tanto de de-
nies quanto de populaes indgenas. A cultura pode ser entendida como
um conjunto de sistemas simblicos segundo Lvi-Strauss, pelo estabele-
cimento de relaes necessrias do homem com a natureza. Na introduo
obra de Marcel Mauss, (1974:9) o autor dene que,
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Pode-se ento esperar que para os Karaj, transformar o bar-
ro em guras antropomorfas, zoomrfas e sobrenaturais signica, para
esses povos, ir alm de uma expresso relacional com a natureza e a sobre-
natureza. Na reproduo do nexo social nas guras, os signicados podem
ser inscritos e lidos no simbolismo impresso na cermica, estabelecendo
relaes simultneas com os vrios tipos de seres. No entender de Lvi-
Strauss (2005a:33), Assim como a imagem, o signo um ser concreto,
mas assemelha-se ao conceito por seu poder referencial: um e outro no se
referem a si mesmos, alm de si prprios, podem substituir outra coisa.
Nesse sentido, a pintura corporal, os adornos, o corte de
cabelo, entre outros elementos utilizados na vida cotidiana da aldeia e
acrescentados nas guras cermicas, desempenham o papel de signos ho-mlogos aos referenciais simblicos da organizao cultural Karaj, pro-
jetados nos indivduos.
A pesquisa com os objetos de museus um dos caminhos e
possibilidades investigativas que a antropologia percorre, tendo sua impor-
tncia ressaltada por Lvi-Strauss na dcada de 70, que teceu conside-
raes sobre o valor dos museus de antropologia como um prolongamento
Toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas sim-
blicos em cuja linha de frente colocam-se a linguagem, as regras ma-
trimoniais, as relaes econmicas, a arte, a cincia, a religio. Todos
esses sistemas visam a exprimir certos aspectos da realidade fsica e
da realidade social e, ainda mais, as relaes que estes dois tipos de re-
alidade mantm entre si e que os prprios sistemas simblicos mantm
uns com os outros.
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da pesquisa de campo, onde o contato sistemtico com os objetos acaba
estabelecendo um sistema de comunicao com o meio indgena e o respeito
pela diversidade das manifestaes culturais (Lvi-Strauss, 1975:419).Esse fato motivou a anlise de autores como Boas, Lvi-
Strauss, Mauss, Berta Ribeiro, Fnelon Costa, Chiara, Vidal, Velthem, en-
tre outros, que desenvolveram essa abordagem e que buscaram demonstrar
que os artefatos no se restringem sua materialidade, sendo possvel
articular os objetos s vrias esferas da cultura, uma vez que manifestam
mltiplas informaes e atuam como veculos de idias que revelam a lgicadas relaes sociais (Boas, 1996).
Com a anlise das colees Karaj do MAE, organizadas entre
1904 e 1966, aliada aos dados de referncia que foram buscados nas trs
expedies em campo com os Karaj, nos anos de 2005 e 2006 da ilha do
Bananal/TO, foi possvel analisar os processos de incorporao, inovao e
permanncia de estilos na produo cermica da aldeia de Santa Isabel. A
escolha do local deveu-se ao fato de grande parte das colees estudadas
ser de procedncia dessa aldeia, levando busca de referncias no con-
texto de produo em que os artefatos foram coletados.
Essas referncias permitiram compreender categorias que
suplantaram a estilstica, tais como a dos referenciais simblicos da orga-
nizao da famlia Karaj representados nas fases de idade e nos papis
sociais, distinguidos pela pintura corporal, pelos adornos e outros cones
associados que esto reproduzidos de maneira homloga nas bonecas, se-
guindo os padres culturais praticados na vivncia cotidiana.
Frente diculdade de recompor um elenco de famlia nas
colees do MAE, a opo foi utilizar, em maioria, as imagens das peas
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recentemente coletadas, associadas s do acervo.
O trabalho com colees etnogrcas de museus desemboca
freqentemente nos limites da discusso entre tradio e inovao, arteprimitiva e dinmicas sociais, universo material e imaterial (simblico), es-
ttica e tcnica, no mbito de vrios binmios conceituais recriados ao
longo da histria, para julgamento do homem ocidental.
Todos esses apelos so muito justos e eloqentes quando con-
siderados os rumos traados pela histria da Antropologia, em relao s
sociedades classicadas como primitivas e especialmente para compreen-der como estas foram tratadas nos museus, tendo em vista que as teorias
antropolgicas tiveram, em um determinado perodo, laos muito estreitos
com essas instituies, como preconizam Boas, Mauss e Lvi-Strauss.
Na atualidade, constante a preocupao com os acervos
preservados em museus. Dentro dessa preocupao pode-se destacar a
relacionada ao patrimnio etnolgico indgena, entendido como a repre-
sentao da memria histrica e cultural dessas sociedades que habita-
vam o territrio nacional antes da conquista europia, e de muitas que o
habitam at hoje.
Nossa anlise sobre as colees cermicas Karaj do Museu
de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo, com enfoque na
arte gurativa resulta dessa perspectiva. Essas colees so as mais anti-
gas e uma das mais signicativas expresses materiais de grupos indgenas
do Norte do Brasil.
O trabalho procura ser analtico e compreensivo dos proces-
sos de mudanas e das dinmicas de reordenao social, em que o objeto
artstico se situa como o foco central de interesse desta tese.
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O estudo compreende quatro captulos.
O primeiro trata dos aspectos histricos de maneira a siste-
matizar as formas de contatos, bem como do reconhecimento da ocupaoda regio por esses povos antes da chegada dos colonizadores, segundo
comprovaes arqueolgicas. Alm disso, procura fornecer elementos de
contexto das relaes com as populaes no indgenas desde os primeiros
momentos de colonizao, e compreender de que maneira tais relaes in-
terferem na ordenao poltica e sociocultural dos Karaj.
Dada a importncia fundamental da boneca cermica comoelemento socializador da criana, o segundo captulo aborda as formas de
circulao e dos detalhes simbolizantes da diviso das classes de idade,
muitas, representadas nessa arte gurativa.
Delineado o cenrio da representao, o terceiro captulo re-
fere-se aos processos de confeco dos artefatos, da cadeia de produo
e das construes estilsticas, bem como das relaes envolvidas no tra-
balho das ceramistas, responsveis exclusivas pela confeco, circulao e
comercializao do objeto.
O quarto captulo aborda a formao dos acervos etnolgicos
no contexto da criao dos museus nacionais, ressaltando a importncia do
tratamento museolgico das colees para torn-las acessveis pesquisa,
educao, exposio e difuso de conhecimentos, deixando claro o po-
tencial de pesquisa que envolve os objetos, na explorao de informaes
que ultrapassam o seu carter material.
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Captulo 1
Situao Atual e Organizao
Social Karaj
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1.1 Histria, Territrio, Demograa.
Os Karaj ocupam regies que margeiam o rio Araguaia, emuma rea de abrangncia entre os Estados de Gois, Mato Grosso, Par e
Tocantins, gurando como ocupantes da Regio Centro-Oeste do Brasil1
, pressupostamente antes da chegada dos colonizadores, como apontam
Ehrenreich (1948), Krause (1940-1943), Fnelon Costa (1978), Taveira
(1982), Toral (1994) e Lima Filho (2001), com grande concentrao na
ilha do Bananal.
Mapa da Regio Norte
Fonte: Marques, J.F. 1989.
1 Com a Constituio brasileira de 1988 hove alterao geopoltica na regio em que o Estado do Tocantins passoua ser localizado na Regio Norte.
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As primeiras notcias de que se tem registro sobre os Kara-
j datam do sculo XVI, com a organizao do movimento bandeirista de
1590, que pretendia ampliar a explorao das minas de ouro, saindo deMinas Gerais em busca de novas jazidas nos sertes dos Goiazes. Os pri-
meiros exploradores percorriam os limites das terras goianas, que apre-
sentavam uma congurao geogrca muito diferente da que se conhece
hoje, estendendo suas fronteiras at os Estados do Par e Maranho, fa-
zendo fronteira ainda com os Estados de Minas Gerais, Bahia, Piau e Mato
Grosso. A expanso da explorao de territrios que iam alm dos limiteslitorneos, levou desbravadores missionrios e bandeirantes para Gois,
considerado o corao geogrco do Brasil, que ocupava grande parte do
territrio nacional. O primeiro desmembramento goiano se deu no sculo
XIX, quando se cogitava a mudana da capital da provncia para o norte,
sendo parte de seu territrio incorporado s provncias de Maranho e
Minas Gerais.
Tal arranjo geogrco tornou as regies prximas aos rios
Tocantins e Araguaia povoadas por criadores de gado, o que tornava mais
ativa a navegao pelo Araguaia, intensicando as rotas de comrcio uvial.
Por sua vez, o Estado de Tocantins foi criado pela Constituio Federal de
1988, desmembrando mais uma parcela das terras goianas.
A corrida pelo ouro se estendeu at 1618 e cou conhecida
como ciclo Paraupava, (Neiva, 1986:50), nome atribudo pelos paulistas
ao rio Araguaia na poca. De acordo com o descrito por Neiva (1986:145),
o movimento era composto por sete Bandeiras que foram descendo o rio
Araguaia e Tocantins, escravizando ndios para a explorao das minas au-
rferas. Nessa poca registraram-se contatos com os Carajana, tambm
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citados por Ehrenreich e por Krause no sculo XX, como sendo os Karaj
que habitam historicamente grandes extenses de terras nas margens do
Araguaia, os mesmo ainda encontrados na regio.A riqueza mineral da regio e a privilegiada situao geogr-
ca do rio Araguaia, com mais de trs mil quilmetros de curso navegvel,
atraiu conquistadores que tomando terras indgenas formavam pequenos
povoados ribeirinhos. Esse foi um cenrio propcio para a instalao da
misso religiosa vinda da Amaznia, cheada por frei Cristvo de Lisboa
em 1625, que ao catequizar os ndios favorecia a arregimentao de m-de-obra para a explorao das minas, visto que eram bons remadores e
grandes conhecedores da regio.
Alm desses, outros personagens que guraram como os pri-
meiros desbravadores da regio do Araguaia at o sculo XVIII foram
frei Custdio (1625), padre Antonio Vieira e o capito mor Igncio Rego
Barreto (1635), os sertanistas Manoel Brando e Gonalo Paes (1669), ca-
pito Diogo Pinto Garcia (1720), capito Paulo Fernandes e Manoel Joaquim
de Mattos (1782) e capito-general Joo Manoel de Menezes (1799). Dos
poucos registros que deixaram, mencionaram apenas a audcia que era ne-
cessria para investir contra a barbaria selvagem (Silva, 1936:52). O
movimento mais intenso de colonizao da regio se deu a partir de 1863
com o governador de Gois, Couto de Magalhes, tambm diretor do servi-
o de catequese que pretendia desenvolver a navegao a vapor nos cursos
do Araguaia e Tocantins. No ideal de integrar os ndios sociedade bra-
sileira e trein-los para o trabalho nas frentes de colonizao, fundou em
1871 o Colgio de Santa Isabel para educar os meninos Karaj, Tapirap e
Kayap. Sem conquistar os objetivos idealizados, o colgio foi fechado em
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1890 (Krause, 1940-43:184). O sculo XIX cou marcado por uma srie
de conitos e movimentos de resistncia e reconquista dos territrios
Karaj. Em 1813 foi destrudo o presdio colonizador de Santa Isabel(Mattos, 1874:362), e os Karaj que habitavam a regio passaram a
proibir a navegao.
A primeira monografia sobre os Karaj foi publicada em 1908, resulta-
do das investigaes de Fritz Krause, antroplogo alemo interessado
nas populaes indgenas das proximidades do rio Araguaia. Este tra-
balho somado aos estudos de classificao dos povos indgenas de PaulEhrenreich, publicado em 1888, so estudos bsicos para a etnografia
do grupo, inclusive por chamarem a ateno para as bonecas cermicas
Karaj, foco deste estudo.
Segundo Krause, o grupo se dividia em trs subgrupos com-
postos da seguinte forma:
a )
b )
c )
Os Karaj - da horda setentrional com 14 aldeias, ocupan-
tes da extremidade norte da ilha do Bananal at o rio das
Mortes, e
- a meridional, com 8 aldeias formadas em decorrncia de
movimentos migratrios da parte setentrional, em virtu-
de da instalao dos ncleos neobrasileiros de Carreto eSalinas, prximos aos rios Crix e Vermelho, pressuposta-
mente nos cem anos anteriores visita do autor.
Os Xambio que se instalavam prximos ao trecho enca-
choeirado do Araguaia no sul da ilha do Bananal, e
Os Java, em seu interior. (Krause, 1940-43, 233:242).
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Trinta anos aps a visita de Krause, a distribuio registrada
por Lipkind em 1939 apontava a ocupao de 20 aldeias Karaj, entre a
regio de Leopoldina at o norte da ilha do Bananal, a quase extino dosXambio que resistiam em duas aldeias prximas a Conceio do Araguaia,
e 8 aldeias Java no interior da ilha (Lipkind, 1948:179).
Carajana ou Karaj uma atribuio Tupi herdada, possivel-
mente, do perodo anterior a 1500 em que eles habitaram regies prximas
a grupos que formavam a provncia Tupi Guarani do Par, citada por Vivei-
ros de Castro (1986:137).Por possurem traos sionmicos que os distinguiam dos gru-
pos Tupi, estes lhes atriburam de forma depreciativa o nome Karaj. Em
contraste com os Tupi, geralmente de pequena estatura, os Karaj so
altos, fortes e de pele escura decorrente de longos perodos de exposio
ao sol, por serem pescadores por excelncia. Por esse motivo foram asso-
ciados ao macaco guariba que teria caractersticas fsicas semelhantes aos
Karaj, que em uma traduo livre signica macaco preto, de acordo com
informao dos Guarani atuais2. No entanto, os Karaj se autodenominam
como In ou Inmahadu (nosso povo) e so apontados pelo lingista Aryon
dall Igna Rodrigues, como pertencentes ao tronco lingstico Macro-J,
com formas diferenciadas de falar, de acordo com o sexo do falante.
A auto-designao In3, uma categoria que vincula os Karaj
a um passado mtico. Traduzido como ns mesmos ou gente, a categoria
pode ser denida, segundo o contexto, em oposio a ixju, que designa
a alteridade, a exterioridade, como se fossem os estrangeiros, sendo
aplicado tanto para outros povos indgenas, como para os Tori, como so
chamados os no indgenas (Toral, 1992).2Foi presenciada a conversa de uma liderana Karaj com os Guarani, no Encontro Nacional dos ndios que acon-tece anualmente em Bertioga, litoral sul de So Paulo, onde o assunto estava sendo debatido.3Pronuncia-se In.
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Lutas seculares garantiram a permanncia dos Karaj em seu
territrio, disputado com os grupos indgenas Kayap, Tapirap, Xavante,
Av Canoeiro e com os exploradores no indgenas. Do contato pacco comos Kayp Xicrim e com os Tapirap houve trocas culturais decorrentes de
alguns casamentos intertribais, que podem ser observadas principalmen-
te na produo material. Os Xavante, entretanto, sempre foram temidos
pelos Karaj e os relacionamentos entre os dois povos foram de antago-
nismos por disputas de territrio. Depois de muitas lutas histricas, hoje
os Xavante ocupam a margem esquerda do rio Araguaia no Estado de MatoGrosso, em terras que j foram de domnio Karaj, que hoje esto concen-
tradas na margem direita do rio, em Tocantins.
Mesmo com a ocupao de grande parte da regio dos Karaj,
sobretudo com a formao dos ncleos pioneiros que se instalaram ao lon-
go do Araguaia, eles nunca se afastaram de seu territrio tradicional. O
mais importante aldeamento foi se formando na ilha do Bananal, prximo
corredeira de Santa Isabel, que d o nome aldeia principal, conhecida
como Santa Isabel do Morro, local onde se instalou em 1928 o Posto Ind-
gena Redeno do Servio de Proteo ao ndio (SPI), cheado por Manuel
Sylvino Bandeira de Mello.
O SPI foi criado pelo governo federal sob o comando do gene-
ral Cndido Rondon em 1910 que no dizer de Bandeira de Mello, instalou o
Posto na ilha do Bananal para pacicao leiga dos Karaj. Segundo Darcy
Bandeira de Mello (1982), lho de Manuel Sylvino Bandeira de Mello, a
decadncia do SPI motivou que o posto sob o comando de Bandeira de
Mello fosse desativado em 1930, ocasionando o afastamento do Servio
de Proteo ao ndio.
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A populao Karaj passou por momentos difceis com a falta
de assistncia a que estava acostumada. Muitos caram doentes, com v-
rios casos de bitos, ocorrendo tambm grande incidncia de alcoolismo.As condies precrias ocasionadas pela sada do SPI de Santa Isabel fa-
voreceram a intensicao do movimento de catequese indgena adventis-
ta, que tambm no alcanou totalmente os objetivos esperados.
Comandado pelo pastor Allen, vindo dos Estados Unidos para
instalar em 1928 o ncleo Adventista do Stimo Dia, a Misso Araguaia ti-
nha objetivos evangelizadores, com a edicao de igrejas, escolas e hospi-tais nas proximidades das aldeias de Santa Isabel e Fontoura, por estarem
ali concentradas as maiores populaes indgenas Karaj. O movimento no
teve sucesso, enfrentando a resistncia e indisposio de Manuel Sylvino
Bandeira de Mello que cheava o posto do SPI at 1930, estabelecido na
regio cobiada pelos adventistas, bem como dos Karaj que preferiam
viver em liberdade seguindo seu estilo tradicional de vida. Sem desistir da
idia, na dcada de 1930, instalaram um posto da misso em Fontoura, mas
no conseguiram converter os indgenas pelo batismo, sendo os mission-
rios expulsos da aldeia poucos anos depois (Prestes, 2007).
Com pequenas interrupes, a misso se mantm at hoje
em contatos amistosos com os Karaj na ilha do Bananal, no entanto,
poucos vo aos cultos celebrados aos sbados em igreja construda pela
misso na dcada de 1990 com auxlio nanceiro internacional, na aldeia
de Santa Isabel, o maior e principal aldeamento Karaj da ilha. Mesmo
com a ocorrncia de alguns batismos, da formao de um pastor adven-
tista Karaj e da traduo da Bblia em sua lngua, o adventismo pare-
ce no ter alcanado um signicado relevante, pois a manuteno das
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prticas tradicionais Karaj e de seus rituais manifesta a resistncia
adeso aos valores da misso.
Apesar de terem sido alvos fceis de inmeras frentes decolonizao, de catequeses e da aproximao com a sociedade local, os Ka-
raj demonstram grande fora de resistncia ao preservar suas principais
categorias sociais, mantendo viva sua identidade Karaj atravs de perma-
nncias das principais tradies de sua organizao social.
Contudo, a ampliao dos povoamentos sertanistas no incio do
sculo XX acarretou algumas alteraes no modo de vida da populao Ka-raj local. O nomadismo sazonal deixou de ser freqente, ocasionando a or-
ganizao e crescimento das aldeias Karaj na margem direita do Araguaia.
Houve poca em que no possuam aldeias permanentes e a localizao dos
grupos variava segundo a condio do nvel de gua do rio. Nos perodos
de cheias, entre os meses de outubro e junho, construam suas casas nos
barrancos das margens, acima do nvel das enchentes. Nos perodos de es-
tiagem, entre os meses de julho e setembro, montavam acampamentos nas
inmeras praias que se formam ao longo do rio.
As casas tradicionais eram reconstrudas conforme as exi-
gncias do perodo. S (1983:120) esclarece:
Na estao das chuvas, a casa tradicional Karaj possua uma estru-
tura slida, formada por trs arcos, com vigas de amarrao junto
ao piso, e tetos e paredes em palha, que possibilitavam seu completo
fechamento, para proteo das chuvas e dos ventos. Na estao de
seca, a casa erguida nas praias do rio Araguaia era como que uma
simplicao da utilizada nas estaes de chuvas, um simples para-
vento de palha e madeira.
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Casa da estao seca.
Fonte: S, 1983.
Com a xao dos aldeamentos, as casas passaram a ter uma
estrutura mais slida e resistente, pois mesmo que ainda haja a prtica dos
acampamentos nas praias, no retorno para o local de moradia no mais
necessria a construo de uma nova casa.
Padro de construo que se tornou tradicional a partir a partir da xao local, cominuncia neo-braileira. Aldeia Wata.
Foto: Sandra L. Campos/2005.
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O movimento de sedentarismo teve incio com a instalao do
Posto Indgena do SPI em 1928 dentro da aldeia, quando grandes ncleos
habitacionais foram formados. O padro arquitetnico passou a se espe-lhar no das casas no-indgenas, construindo-se as moradias com quatro
paredes e divises internas. No entanto, continuam seguindo os padres de
distribuio espacial tradicional de acordo com a maneira como percebem
o espao por eles habitado, mantendo o alinhamento paralelo das casas
voltadas para o rio ao longo de sua margem, podendo ocorrer mais de um
arruamento formado pelo enleiramento das construes.Tradicionalmente os Karaj buscam momentos de isolamento
do grupo maior, em especial no ms de julho no perodo de estiagem do rio
Araguaia, quando as famlias montam pequenos acampamentos nas praias
que se formam com a baixa do nvel das guas. Curiosamente, no so mais
construdas as cabanas temporrias de vero. O que se v a substituio
por barracas de camping, compradas na cidade. As temporadas de per-
manncia tambm no so to longas como antes, e dicilmente ocupam a
estao completa do vero. Isto se d por motivo das vrias atividades cul-
turais a que so convidados a participar em diferentes Estados brasileiros
como, por exemplo, os jogos indgenas organizados nos perodos de frias
escolares, acontecendo a cada ano em um Estado nacional. Outro fator
a escola indgena, freqentada por adultos e crianas, que segue o mesmo
calendrio ocial das escolas estaduais, em que o perodo de frias ocorre
no ms de julho, obrigando a reduo de tempo dos acampamentos.
Entretanto, essa prtica de distanciamento tornou-se mais
constante a partir de 1980, em decorrncia dos conitos internos provoca-
dos pelos efeitos do alcoolismo e do crescente uso de drogas que atingem a
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populao da aldeia de Santa Isabel. Em conseqncia desses fatos, vrias
famlias comearam a migrar para reas distantes, ocasionando a expanso
do territrio da aldeia grande. Algumas iniciaram a construo de doisnovos aldeamentos JK e Wata, distantes mais de trs quilmetros de
Santa Isabel, seguindo o padro tradicional de ocupao dos territrios e
construo das casas, em linha paralela ao rio Araguaia. Alm do isolamen-
to e fuga de problemas resultantes do aumento populacional, essa uma
forma de garantir a ampliao e ocupao das terras indgenas. Trata-se
de uma prtica de carter cultural no se congurando como estratgiapoltica, visto que os Karaj possuem o reconhecimento de uso das Terras
Indgenas Araguaia.
A distribuio espacial no deixa de ser, tambm, uma forma
de manuteno da estrutura social e familiar dos Karaj.
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1.2 Hawal: Os Karaj da Ilha do Bananal
Os Karaj, como j foi dito, so ocupantes histricos da Re-gio Centro-Oeste do Brasil, hoje localizados na Regio Norte, segundo
a diviso geopoltica delimitada na Constituio de 1988. Sempre estive-
ram prximos do territrio considerado tradicional, sendo Santa Isabel do
Morro seu principal aldeamento formado por grupos que se estabeleceram
na ilha do Bananal muito antes de 1500 (Toral, 1992:5). Pressupe-se que o
nome Santa Isabel seja herana do perodo da catequese catlica, quandoera comum atribuir nomes de santos catlicos a determinadas regies ou
acidentes geogrcos, a exemplo da corredeira, com o mesmo nome, nas
proximidades da aldeia.
Diante da referida corredeira, local preferido para a pescaria,
foi erguida uma grande gruta de pedras para abrigar uma imagem de Santa
Isabel com mais de um metro e meio de altura, e que pode ser avistada de
longe, servindo como ponto de referncia de localizao. Os Karaj no sa-
bem explicar ao certo a data e o responsvel pela sua instalao na regio
e, tampouco, ela signica algo de grandioso, apenas respeitam a iniciativa,
mas no manifestam nenhum esforo para sua conservao e nem para seu
necessrio restauro, visto que se encontra quebrada h muitos anos.
No entanto, para os ndios o local onde a imagem foi co-
locada um marco importante de referncia por ser a rea do cemi-
trio indgena onde residem seus ancestrais. Ainda ativo, possvel
encontrar nele evidncias de vestgios arqueolgicos das antigas urnas
funerrias que afloram na superfcie, testemunhando a permanncia
secular desses grupos na regio.
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O restante da populao se encontra distribudo em mais de
vinte comunidades margeando o rio Araguaia, nos Estados de Gois, To-
cantins, Mato Grosso e Par, somando uma populao prxima de trs mil
habitantes, segundo dados demogrcos da FUNASA/2005 .
Atualmente o grupo permanece na mesma regio, com uma
produo material semelhante encontrada por Krause e Ehrenreich, no
se reduzindo apenas confeco das bonecas, mas confeco de uma
variada arte plumria, cestaria, madeira, contas e sementes alm de uten-
slios em cermica. Santa Isabel do Morro, ou Hawal como chamada pelo
grupo indgena, a maior e mais antiga das aldeias, com uma populao esti-
So Felix doAraguaia
TO
MT
PALMAS
GO
DF
Localizao das Aldeias Karaj: (MT, TO, GO)
01 Lago Grande - MT
02 Macaba Ilha do Bananal - TO
03 Maitiry Tawa Sta. Terezinha - MT
04 Itxal Sta. Terezinha - MT
05 So Domingos Luciara - MT
06 Fontoura - Ilha do Bananal - TO
07 Santa Isabel - Ilha do Bananal - TO
08 JK - Ilha do Bananal - TO
09 Wata - Ilha do Bananal - TO
10 Nova Tytem Formoso do Araguaia - TO
11 Mirindiba S. Miguel do Araguaia - GO
12 Aruan GO
Croquis AdaptadoFonte: Associao In Mahadu(de assistncia a sade indgena Karaj)
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mada em 612 habitantes distribudos em 96 casas, segundo dados relativos
a 2005, fornecidos pelo plo da FUNASA de So Flix do Araguaia/TO.
Pelas caractersticas de localizao, supe-se que seja uma das aldeiascitadas por Krause em 1908 (Krause, 1911a), por Machado (1947), Lipkind
(1948), e em estudo arqueolgico de Wst (1981). Esta ltima autora men-
ciona referncias populacionais, contando em 1940 com 52 adultos. Fnelon
Costa (1978:23) se estende nas referncias demogrcas estabelecendo
um quadro comparativo entre a dcada de 1957, com ndice populacional
estimado em 208, e a de 1959/60 com uma populao de 194 pessoas. Aaldeia grande, como apontada, com seu crescimento populacional expan-
diu-se nos ltimos anos, subdividindo-se em novos aldeamentos.
A construo das aldeias JK e Wata segue o padro tradi-
cional de distribuio espacial, onde as casas se alinham na margem do rio
Araguaia, por ser este o principal ponto de referncia cultural e cosmo-
gnica do povo In. Apesar da distncia, Santa Isabel ainda o ponto de
referncia das duas aldeias, pois l que se encontra a casa-dos-homens,
ou das mscaras de Aruan, em que so realizadas as principais cerimnias.
Fica localizada a uma certa distncia atrs das leiras de casas, em oposi-
o ao rio Araguaia.
A comunidade Karaj de Santa Isabel, em relao a outras
aldeias, o povoado que mantm seus costumes mais prximos dos tra-
dicionais, dando maior importncia permanncia dos rituais de iniciao
masculina, das festas de Aruan, do uso da indumentria, da pintura cor-
poral e da manuteno do corte de cabelo das meninas solteiras, entre ou-
tras caractersticas. Costumam realizar os grandes festejos do Hetohoky,
cerimnia que culmina com o ritual de transio de idade do menino para a
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vida adulta. Recebem, na ocasio, inmeros visitantes das aldeias vizinhas,
com destaque para as de Fontoura e Macaba, que trazem mais de 50
participantes para compartilhar a luta intertribal, que em clima festivo ecompetitivo reproduz as antigas disputas com inimigos vizinhos.
A viagem de Macaba at a primeira parada em Fontoura, por
deslocamento uvial, leva mais de quatro horas, seguindo-se viagem por
mais de uma hora at a chegada na aldeia Santa Isabel.
O barco da comunidade, que leva o nome de Tebukua, em
homenagem a um dos grandes lideres polticos Karaj j falecido, sai deSanta Isabel no dia anterior festa para buscar os convidados das duas
aldeias vizinhas. Estes so recebidos pelo lder poltico, por amigos e
parentes, cando hospedados na aldeia at o nal da festa, quando so
levados de volta.
Foto: Sandra L. Campos, 2006.
Barco da comunidade Karaj com convidados para a festa.
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O canto ritmado acompanhado pela batida dos ps anuncia a
chegada dos lutadores, antes do barco ser avistado, dando incio s festi-
vidades de recepo na margem do rio.
Tebukua barco da comunidade de Santa Isabel, com os convidados da festa.
Foto:Sandra L. Campos/ 2005.
Esse o mesmo barco que faz viagens dirias transportando
os moradores de Fontoura e Santa Isabel para a cidade de So Flix do
Araguaia. Leva grande maioria dos homens das aldeias, para cumprimento
de suas jornadas de trabalho nos rgos pblicos (FUNAI e FUNASA), eoutros para vender peixes para os moradores da regio. As mulheres se
dirigem cidade para a venda do artesanato, frutas nativas, compra de
alimentos e roupas ou para tratamento de sade, delas e de seus lhos.
A sociedade Karaj mantm restries ao trabalho feminino
fora da aldeia. As poucas que trabalham, exercem funes de auxiliar de
enfermagem no posto de sade mantido pela FUNASA em Santa Isabel
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ou so professoras contratadas para a escola estadual indgena da aldeia.
Estas fazem parte de uma gerao que vem rompendo com a resistn-
cia sada das mulheres para fora, e esto saindo para estudar em SoFlix do Araguaia, Goinia Braslia ou So Paulo, dependendo da rea de
atuao. Recentemente duas jovens saram para estudar em So Paulo na
universidade adventista, UNISA. Uma j concluiu sua formao em Peda-
gogia e retornou para assumir a diretoria da escola da aldeia; a outra est
cursando o segundo ano de enfermagem superior e aps sua formatura
voltar para trabalhar no posto de sade de Santa Isabel. A formaodas irms tem sido possvel com o fornecimento de bolsa de estudos da
universidade e com apoio nanceiro da FUNAI, que auxilia nas despesas
de moradia, transporte e alimentao. Iniciativas que alteram o compor-
tamento comunitrio.
A sada do ambiente domstico, a proximidade com a cidade
e a facilidade de contato, que de Santa Isabel no leva mais do que meia
hora de travessia, vem criando novos hbitos alimentares, muito distin-
tos dos tradicionais. Aliado ao acesso ao dinheiro, passou a ser comum o
consumo de vveres usuais do cardpio no indgena, como sal, caf, ma-
carro, leo, acar, biscoitos e refrigerantes, revelando-se verdadeiros
viles da sade indgena. Em conseqncia do alto consumo de sacarde-
os, verica-se um aumento signicativo de casos de cegueira provocados
pelo diabetes, bem como de outras doenas decorrentes da mudana nos
padres alimentares.
Os Karaj j foram grandes plantadores de roas de ar-
roz, feijo, milho, mandioca e batata doce, que juntamente com o pei-
xe em abundncia, compunham sua alimentao de forma muito mais
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saudvel do que a adotada atualmente. At o cardpio tradicional das
festas est sendo substitudo por bolos, biscoitos, pes, e se renden-
do ao fascnio pelos refrigerantes.Vrias festas importantes acontecem durante o ano, como a
dana de mscaras, ou a festa de Aruan, com as caractersticas mscaras
que personicam animais relacionados ao mundo natural e ao sobrenatural,
dos trs nveis do cosmos: terra, gua e cu. Segundo Toral (1992a), os
Karaj acreditam que as cerimnias agradam aos seres representados, que
satisfeitos, protegem a aldeia de possveis desgraas.A continuidade das festas tradicionais preservada pelos ho-
mens mais velhos da aldeia, que procuram estimular o cumprimento do ciclo
dos festejos como forma de revitalizao da cultura, uma vez que os mais
jovens manifestam certa descrena e desinteresse por esses rituais. Como
aponta Fnelon Costa, (1978:36),
(...) esses ciclos relembram repetidas vezes as experincias de or-
dem religiosa por que tm passado os Karaj h sculos, e ainda, a
prpria experincia individual de todo Karaj.
Acredita-se que a persistncia dos mais velhos em dar con-tinuidade a tais prticas seja responsvel pela permanncia dos principais
traos da cultura tradicional e de sua resistncia diante de tantos apelos
religiosos externos, como os do catolicismo e do adventismo.
Santa Isabel se destaca das outras aldeias Karaj pela per-
manncia de prticas tradicionais, a exemplo das expresses artsticas,
como cermica, plumria, cestaria, entre outras que se mantm, e ainda so
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de domnio dos membros dessa aldeia, fato que traz indivduos de outras
aldeias Karaj das proximidades para reaprenderem certas tcnicas que se
perderam, revitalizando, assim, alguns elementos da cultura Karaj.Uma caracterstica contempornea a fundao de asso-
ciaes indgenas para o desenvolvimento de projetos coordenados por
membros da comunidade. So organizaes com reconhecimento pblico e
registro em rgos federais, que conquistam auxlio de entidades nancia-
doras para desenvolvimento de projetos culturais. Como exemplo, em 2006
os Karaj, por meio da Associao Cultural In Bededyynana, obtiverama aprovao do projeto de revitalizao da arte de confeco de canoa,
cestaria, cermica e indumentria, enviado Petrobrs. O projeto tem
por nalidade estimular os mais velhos que ainda dominam tcnicas pouco
praticadas pelos mais jovens, a transmitirem seu conhecimento. O espao
da escola da aldeia est sendo utilizado para as ocinas pedaggicas que
so documentadas e lmadas pelos Karaj, para serem transmitidas para
os alunos na escola de Santa Isabel, nos anos seguintes.
1.3 JK e Wata: Dois polticos, duas aldeias.
Durante os perodos de estadia em 2005 e 2006 entre os
Karaj, a aldeia JK estava ocupada com 57 habitantes migrados de Santa
Isabel, distribudos em 9 casas, segundo relatrios da FUNASA. Distante
cerca de 3 km da aldeia grande, JK est sendo formada na regio onde o
presidente Juscelino Kubitschek havia construdo o Hotel Turismo JK na
dcada de 1960. A construo do hotel fazia parte de um projeto ambicio-
so dos ltimos 8 meses de mandato do presidente, que visava o desenvol-
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vimento do vale do Araguaia. Para realizar o seu sonho desenvolvimentista,
Lima Filho (2001:101) lembra que Juscelino,
Convocou Oscar Niemayer, que projetou o Hotel Turismo, o hospi-
tal indgena e um prdio administrativo que se chamou Alvoradinha.
Ainda foram construdas uma escola, uma pista asfaltada e uma base
militar da FAB.
Hotel inacabado, registrado por viajante.
Foto: Ruy Reis Costa/1961.
As questes polticas do perodo impediram a concluso do
luxuoso hotel de turismo, que foi inaugurado em 1961 sem a concluso das
obras, funcionando inacabado em condies precrias. Juscelino freqen-tou vrias vezes o hotel e o prdio administrativo Alvoradinha, recebendo
vrios membros do cenrio poltico da poca.
Aps a sada de Juscelino da presidncia, o hotel foi geren-
ciado em um breve perodo por uma agencia de turismo de Gois, que no
obteve lucros e abandonou o negcio. Antes de ser desativado, em 1964,
foi utilizado temporariamente como posto da Fundao Nacional do ndio
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(FUNAI), que se mudou no ano seguinte para So Flix do Araguaia, em
Mato Grosso. Foi saqueado na poca de abandono, mas pode-se encontrar
no Museu da cidade mantido pela Prefeitura, alguns exemplares dos cris-tais e pratarias gravados com as insgnias de JK.
At ns da dcada de 1970 o gerenciamento do hotel passou
por vrias administraes at ser totalmente destrudo por um incndio.
Os sonhos de JK de promover um desenvolvimento acelerado do Centro
Oeste podem ser traduzidos como pesadelo, pois o que resta hoje da ope-
rao Bananal so runas de um ufanismo desenvolvimentista. As poucasconstrues do complexo que ainda esto erguidas em Santa Isabel foram
ocupadas como moradia por algumas famlias indgenas. O hospital, em ru-
nas e tomado pela vegetao, est irrecupervel. Sobrevive apenas a pista
de pouso, utilizada pelos meninos da aldeia como pista de bicicletas desde
que foi desativada no governo Collor de Mello na dcada de 1990, ocasio-
nando a retirada da base da FAB ali instalada durante o governo militar
para facilitar o combate guerrilha do Araguaia. Na aldeia JK, onde havia
sido construdo o hotel, nada restou alm da memria do presidente que
tanto havia prometido aos Karaj.
Das lembranas da poca e da marca emblemtica desejada
por JK, restou apenas o nome da aldeia, que se instalou desde a dcada de
1980 em uma rea privilegiada na margem direita do rio Araguaia, em linha
contgua aldeia de origem. Pode-se armar que essa tem sido uma situa-
o de fuga de Santa Isabel, local que est se tornando cada dia mais popu-
loso e com problemas srios de alcoolismo e drogas, trazidos da populao
local no indgena para o ambiente da aldeia, provocando brigas e cises en-
tre famlias. Com a ampliao de JK, a aldeia busca sua autonomia poltica
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desvinculando-se da liderana de Santa Isabel, contando hoje com um lder
poltico, Paulo Krumare, seu fundador. Reconhecido pela comunidade como
importante liderana poltica, assume a posio de cacique4
de JK.Situao distinta a da aldeia vizinha, Wata, que ainda no
tem uma liderana poltica desvinculada de Santa Isabel. Fundada em nais
da dcada de 1990, por Iwraru e seu irmo Marvel Tuil, foi construda pr-
xima de JK, correspondendo a uma distncia que no ultrapassa 300 metros,
oriunda de uma nova onda de migrao de Hawal. Os fundadores so netos
do capito Wata que, em homenagem ao av deram seu nome para a aldeia.At o ano de 2006 Iwraru ocupava a posio de cacique de Santa Isabel,
abrangendo Wata, onde mora com sua famlia. Foi substitudo por Idiahina
seu antecessor no cacicado, eleito pela comunidade como liderana poltica,
em agosto de 2006. Nesse aldeamento habitam cerca de 50 pessoas distri-
budas em 10 casas, mais uma que est sendo construda por parentes da
esposa de Iwraru e em 2007 foi construda outra casa, habitada pelo lho
de Iwraru e a esposa. um dos raros caso de alterao da regra social, em
que o lho mora ao lado do pai e no do sogro, como o costume.
4Cacique uma atribuio genrica que se aplica todas as lideranas polticas indgenas.
Foto: Sandra L. Campos
Aldeia Wata, com 9 casas em 2005
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O ttulo de capito foi atribudo a Wata pelo Presidente
Getlio Vargas em uma de suas visitas Aldeia de Santa Isabel e que, de
maneira geral e amistosa, era favorvel ao cumprimento de muitas das rei-vindicaes de Wata. As visitas dos vrios presidentes incluindo a mais
recente, de Luiz Incio Lula da Silva, reetem o grande interesse poltico
pela regio. O rio Araguaia cobiado por vrios governos para a constru-
o de uma hidrovia, que beneciaria o transporte comercial. Existe um
forte movimento de resistncia no sentido de impedir a construo, pois
sem dvida, os menos favorecidos seriam os indgenas que habitam suasmargens, por gerar um grande impacto ambiental e, conseqentemente,
cultural s populaes ribeirinhas.
Aldeia Santa Isabel do Morro em: 1977, 1981 e 2006.
Fonte: S, 1983.
1977
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Fonte: Fnelon Costa, 1988.
1981
Croquis: Sandra L.Campos/2006Arte nal: Denise Dalpino/MAE
2006
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Captulo 2
Ritxok do barro fez-se o homem
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2.1 As mos que Tecem o Barro: As Oleiras.
Habilidosas oleiras, as artess Karaj praticam tradicional-mente a arte da modelagem de objetos em cermica, pressupostamente
antes dos primeiros contatos com os colonizadores. Segundo Schmitz
(1976/77) e Wst (1975, 1981), as prospeces arqueolgicas na regio
evidenciaram vestgios cermicos de antigas populaes, que recuam a
produo ao incio do sculo XII, com caractersticas semelhantes ao que
ainda produzido.Segundo os autores, originalmente as ceramistas modelavam
vrios objetos utilitrios e cerimoniais que acompanhavam os ciclos de vida
e de morte dos Karaj, podendo ser distinguidos morfologicamente em cin-
co tipos de recipientes. De acordo com a forma e a variedade de tamanho,
tinham funes distintas, a saber:
Besgrande, com base plana e borda baixa era utilizado para
assar o beiju e servir alimento para grandes grupos nas festividades. Os de
dimenses menores podiam ser utilizados como pratos individuais ou como
tampa do Boti, recipiente fabricado at hoje para armazenar gua. O
bestambm era utilizado para tampar a watxiwi, panela utilizada para
cozinhar o calog, alimento tpico dos Karaj a base de milho ou mandioca
adoado com mel, consumido hoje, com a substituio do mel por acar.
Em pocas remotas, quando praticavam o sepultamento secun-
drio de seus mortos, o watxiwi, ou watxiwihikytidena(watxiwi panela,
hiky grande, ti osso, dena colocar), era ritualisticamente confecciona-
do pela av materna ou me do falecido para enterrar os ossos exumados,
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e o bes, nessa ocasio, era colocado com alimento nas sepulturas.
Esse ritual de exumao dos ossos no mais praticado, mas a
forma e a funo do objeto reside na memria dos mais velhos e na curio-sidade dos mais jovens, quando observam no cemitrio o aoramento dos
vestgios cermicos de antigos sepultamentos. Na maioria dos casos de
falecimento, os corpos dos Karaj so enterrados no cemitrio da aldeia,
local onde foi colocada a imagem de Santa Isabel.
Atualmente as sepulturas seguem a caracterstica tradicional
Karaj, de enterramento em valas rasas. O fundo da sepultura forradolongitudinalmente com uma srie de pequenos troncos, alguns centmetros
acima do cho para que o corpo no que em contato direto com a terra,
operao que se repete na parte superior a uma determinada distncia do
sepultado. Os mais velhos contam que os espaos deixados abaixo e acima
so necessrios para que o esprito possa se movimentar ao olhar por seus
parentes e sair para se alimentar. Com a ao de religiosos cristos e a
assistncia da FUNASA, as esteiras em que os mortos eram enrolados e
suspensos por duas hastes nas sepulturas, esto sendo substitudas por
caixes funerrios cedidos pelo rgo de sade.
No constante confronto entre tradio e inovao, algu-
mas permanncias podem ser observadas com pequenas adaptaes,
a exemplo do alimento que continua sendo depositado na sepultura,
porm, em recipientes plsticos ou de metal substituindo o watxiwi.
O luto e o choro ritual do funeral tambm so mantidos, sendo respei-
tados pela comunidade os cinco dias aps a morte, causando a suspen-
so de toda e qualquer atividade festiva na aldeia, seja ela uma das
grandes festas do ciclo ritualstico ou uma simples partida de futebol.
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O alimento reposto nesse perodo, para que o esprito se alimente em
sua jornada para o mundo dos mortos.
A cena do sepultamento e do choro ritual registrada embonecas cermicas que so comercializadas.
No uso cotidiano, o watxiwi era utilizado como panela
para coco de alimentos, e estas apresentando uma variedade de di-
menses de acordo com o tamanho da famlia. Com a gradativa substi-
tuio por panelas industrializadas, sua produo foi abandonada, fi-
cando registrada apenas em acervos dos museus, assim como os wal,recipientes menores utilizados para beber gua e armazenar o mel.
Essa riqueza material existe hoje em pequena escala, pois
a maioria dos objetos foi substituda pelos industrializados, sendo o
bot o nico sobrevivente aos apelos de consumo, cuja tcnica de
manufatura ainda dominada por algumas ceramistas de Santa Isabel
que o fornecem, sob encomenda, para vrias famlias da aldeia.
Quase todas as casas tm um ou dois desses potes, com
capacidade de armazenar cerca de 10 litros de gua cada um, mas tam-
bm no incomum encontrar ao lado deles um filtro comprado direta-
mente na cidade ou por meio de catlogos, com entrega dos produtos
escolhidos, pelo posto de correio de So Flix do Araguaia, na margem
oposta do rio.
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Essa modalidade de consumo atravs de catlogos tem se tor-
nado uma prtica comum. Isto se deve ao fato de muitos Karaj serem
funcionrios assalariados dos rgos pblicos, como FUNAI e FUNASA,
em So Flix do Araguaia. Houve a oportunidade de presenciar a chegada
de um desses catlogos causando certa euforia nas mulheres da aldeia que
escolheram seus produtos, aguardaram ansiosas a chegada das encomen-
das e receberam os bens industrializados em um clima muito festivo. Uma
grande variedade oferecida por esse sistema, como utenslios doms-
ticos, brinquedos, roupas, entre outros. O pagamento feito geralmentepelo marido com seu salrio, ou pelas mulheres com o dinheiro ganho com a
venda de seu artesanato.
Muitos dos produtos industrializados acabam substituindo
determinados itens, mas no impede que alguns de confeco artesanal
ainda sejam produzidos e usados, tanto pelos homens como pelas mulheres,
a exemplo das cuias utilizadas em lugar de copos, tigelas ou pratos.
Bot.Com gua retirada de poo artesiano, prximo casa.
Foto Sandra L. Campos/2005.
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2.2. Hknaritxoko e Ritxok: bonecas antigas e
modernas
O fato de os Karaj terem hoje certo domnio da escrita e
da lngua portuguesa, torna possvel sanar alguns equvocos de pronuncia
e graa de termos de sua lngua, reproduzidos por autores que estiveram
em contato, a exemplo de Baldus (1936) e Fnelon Costa (1978), quando se
referem s bonecas atravs de termos como Licocs ou litjok, e outros
modos semelhantes. Hoje podemos armar que a forma correta, discursivae grafada Ritxok, na fala feminina ou Ritxo, na masculina, sendo que o
R tem o som como se estivesse entre duas vogais. Esse dado foi conrmado
pelas ceramistas de Santa Isabel, com Ijesseberi5, lingista Karaj que
auxiliou na pesquisa com a graa das palavras de seu idioma, e com Hata-
waki Karaj que se disps a revisar os termos reproduzidos neste estudo.
Hknaritxoko outro termo usado pelas ceramistas, para designar as
bonecas antigas, diferentes em alguns aspectos da moderna.
As colees de bonecas Karaj do MAE apresentam uma va-
riao temporal de coleta entre 1904 a 2006 e pode-se armar a partir
delas, que as bonecas antigas no esto superadas e no foram substitu-
das pelas novas, pois at hoje elas fazem parte das preferncias e esco-
lhas temticas das ceramistas de Santa Isabel. Verica-se a ocorrncia
de mudanas de ordem tecnolgica, medida que as mais recentes no so
cruas como as antigas.
As evidncias empricas conrmam a convivncia dos dois pa-
dres, pelo fato das meninas pequenas ganharem conjuntos de bonecas
de padro antigo, porm processados da mesma forma que as de padro5Ijesseberi Karaj auxiliava o lingista David Fortune na elaborao do vocabulrio Karaj e na traduo do Bbliapara a lngua In. Faleceu em maio de 2006.
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moderno. As meninas recebem uma famlia de bonecas, composta de
peas que representam os pais, os irmos os avs. Em outras palavras,
as avs que presenteiam, espelham nas Hknaritxoko sua ancestralida-de, seguindo padres tradicionais da constituio familiar. As bonecas,
alm de simularem as diversas fases do crescimento biolgico e de suas
respectivas categorias sociais, bem como a forma antiga da estrutura
familiar Karaj, reproduzem o ato tradicional das avs presentearem as
netas, que mantido e rearmado nas relaes sociais, submetido a re-
gras para esse acontecimento.As ceramistas tm preservado expresses tradicionais na ce-
rmica gurativa, mantendo nas duas conguraes as caractersticas for-
mais e de contedo que podem ser identicadas na pintura corporal, no corte
de cabelo e nos adereos, como resultantes de sua cultura secular.
A famlia de bonecas, sempre produzida pela av (ou tia) para
a neta no padro antigo, um presente que todas as meninas recebem,
quando completam cinco ou seis anos de idade. A av materna se dedica a
confeccionar o presente e caso no tenha habilidade para a confeco, a
tarefa transmitida para uma das tias. No entanto, possvel que ambas
ofeream o presente.
As peas de argila so frgeis e requerem certos cuidados de
manuseio. este o motivo que determina a idade a partir dos cinco anos
para as meninas receberem as bonecas, em que j desenvolveram a noo
dos cuidados de manipulao para no quebrar o brinquedo. O conjunto de
peas tem durao prevista at o nal da infncia, aproximadamente at os
doze anos de idade, quando a menina vai receber outros atributos e outros
objetos referentes ao estgio seguinte. No costumam guardar as poucas
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bonecas que resistem quebra, cando preservadas apenas nas lembran-
as referentes infncia.
Elas brincam com as bonecas na companhia de outras meninase s vezes tambm com a participao dos meninos, fato que acaba acar-
retando a quebra dessas pequenas bonecas de cermica, que variam entre
seis e doze centmetros de altura. Quando as meninas completam onze a
doze anos de idade, restam poucos exemplares do conjunto que pode ser
composto por mais de dez guras. Talvez seja este um dos motivos que jus-
tique o fato dos museus no registrarem essas famlias em seus acervos,e os autores que antes estudaram os Karaj no se referirem a elas. Por
outro lado, em virtude da circulao das bonecas pertencer ao universo fe-
minino, parece no ter despertado a ateno dos coletores (homens), acer-
ca da produo das ceramistas e da utilizao das bonecas pelas meninas
Karaj. Essa questo comea a ser destacada com a participao feminina
nas pesquisas de campo, nos estudos de Wilma Chiara, Maria Heloisa Fne-
lon Costa e neste estudo que d enfoque famlia de bonecas.
Em relao fase moderna, iniciada no nal da dcada de
1940, prevalece a representao de variadas cenas da vida cotidiana da
sociedade Karaj. Essas peas cnicas so mais destinadas ao comrcio,
no fazendo parte do conjunto de peas presenteadas s crianas. Esses
fatores no impedem que as bonecas de estilo antigo tambm sejam co-
mercializadas, fato comprovado pelos museus, que abrigam centenas de
peas avulsas. Porm, so vendidas isoladas de seu conjunto, no formando
as famlias como as meninas pequenas ganham de presente, caracterizando
assim, a distino do contexto de circulao dos objetos.
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2.3 De Dentro e de Fora: Contexto Espacial e
Circulao dos Objetos.
Tradicionalmente existe entre as ceramistas Karaj uma
grande produo de guras cermicas, cumprindo funes plurais de cir-
culao. Nesse sentido, o repertrio gurativo est sujeito a uma srie
Foto: Joo Derado/2006.
Korixa vendendo bonecas de estilo mo-derno, em Bertioga/SP 2006
Bonecas de estilo moderno para comrcio na aldeia JK,
Foto: Sandra L. Campos/2006.
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de fatores condicionados sua distribuio. O repertrio, assim como os
motivos ornamentais, representa padres aprendidos na infncia e mais
tarde aplicados nas guras, na pintura corporal e em vrias categorias deobjetos que produzem.
Em estudos etnogrcos sobre os Karaj, Krause (1911b),
apresenta um repertrio de motivos que se repetem na aplicao dos tran-
ados, na cermica e em vrios tipos de objetos. Os mesmos motivos so
apresentados por Taveira (1982) em estudo voltado para a cestaria Karaj,
por Toral (1992 b) na pintura corporal, e por mim em artigo recente (Cam-pos, 2002), na cermica gurativa. Taveira (1982:235) elucida que,
Os desenhos representam elementos da fauna terrestre e aqutica,
como o quati, a formiga, a cobra, o urubu, o morcego, o peixe-faca,
etc., numa exposio de partes de seus corpos, nunca o animal todo.
Representaes de objetos e aes do cotidiano tambm se cons-
tituem em motivos ornamentais, sendo exemplos os que signicam
tembet, gancho, ou dar uma volta.
Entre os Karaj, a produo da cermica est restrita rea
domstica. As oleiras modelam seus objetos em espaos no fundo do quintal
e prximos cozinha ou em pequenos espaos construdos para esse m,prximos da casa. O maior uxo de produo est voltado para a venda, por
causa do aumento do grau de dependncia econmica gerada em conseqn-
cia do estreitamento das relaes estabelecidas com a sociedade nacional
e com a economia local, que intensica as necessidades de consumo de bens
industrializados. Outro fator a facilidade de contato com a cidade mais
prxima, distante cerca de 2 km entre a margem onde se encontra a
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aldeia na ilha do Bananal/TO e o porto de So Flix do Araguaia/MT.
A ilha do Bananal, pertencente ao Estado de Tocantins, tem o
rio Araguaia como fronteira com Mato Grosso, sendo So Flix do Araguaiaa cidade mais prxima da aldeia de Santa Isabel. Com a instalao do posto
da Fundao Nacional do ndio (FUNAI) e da Fundao Nacional de Sade
(FUNASA), rgos governamentais que incorporam um nmero repre-
sentativo de indgenas como funcionrios, intensicou-se o contato dirio
com a localidade. O meio de transporte comum o barco da comunidade,
comprado e mantido pelos Karaj com recursos de arrendamento de pastospara no indgenas no interior da ilha, que em acordo com os Karaj, criam
gado em territrio indgena.
O fato de a embarcao comportar mais de cem pessoas, fa-
zendo um trajeto que no dura mais de vinte e cinco minutos, facilita o
acesso cidade e, conseqentemente, o escoamento dos objetos produzi-
dos para a venda.
Esse fator vem dando nfase produo destinada para o co-
mrcio que, paradoxalmente, estimula as ceramistas a preservar aspectos
identicadores da cultura Karaj. Por um lado, existe um pblico consu-
midor cada vez mais exigente na aquisio de uma cermica autntica e,
por outro, h a inteno das ceramistas de manter as prticas e saberes
tradicionais, como forma de valorizao de seus objetos. Com isso, a venda
da cermica e de outras categorias de objetos, como cestaria, colares,
etc., vem sendo uma das maneiras de garantir tanto a sobrevivncia fsica
quanto a sobrevivncia cultural dessa populao, sendo esta uma forma de
desenvolver mecanismos de ajustes nas prticas culturais como garantia
de comercializao do objeto.
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Pode-se associar esse fenmeno natureza da participao
da mulher na vida social da comunidade, sendo ela a principal responsvel
em manter a estrutura tradicional dos padres e costumes da sociedadeem que vive. Como produtora, aplica a fora expressiva da representao
simblica no objeto para o comrcio.
As mulheres ocupam lugar de prestigio no meio Karaj. Sua
ascendncia sobre os homens decorrente de um casamento matrilocal,
que garante a propriedade da casa e o conseqente domnio do espao onde
vivem. Alm disso, ela quem educa os lho, transmitindo e garantindo ocumprimento das normas sociais. Dominam, tambm, o repertrio do gra-
smo simblico sendo elas que aplicam a pintura corporal nos homens e nos
demais membros da comunidade.
Embora a responsabilidade poltica seja de domnio masculino,
os homens no desfrutam da mesma segurana que as mulheres, pois se-
gundo as regras Karaj, os homens devem se adaptar ao meio, j que quan-
do se casam vo morar junto famlia da noiva, mesmo que isso represente
mudar-se de aldeia. Este um dos fatores que reforam a autoridade das
mulheres nessa sociedade. No entanto, isso no signica eliminar a ocor-
rncia da grande discriminao ostensiva entre homens e mulheres. Certos
rituais, como a iniciao masculina, rearmam o poder e a superioridade
do homem, que restringindo a participao e o acesso da mulher a certos
espaos (casa de Aruan), a coloca em um papel secundrio, marcando a
oposio entre os sexos.
Ainda que sejam consideradas dependentes, as mulheres de-
sempenham um papel importante na economia domstica, em funo da
comercializao das peas artesanais que produzem, sendo que o maior
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uxo de objetos de cermica se d para a circulao fora dos limites da
comunidade, inserida no circuito comercial. A despeito da venda ser uma
das prticas mais freqentes e para onde se concentra a produo daspeas, os objetos tambm so utilizados como moeda de troca, no sendo
incomum o escambo por pequenos bens utilitrios ou por alimentos, num
sistema comumente aceito por alguns comerciantes locais, ou ainda como
troca de presentes.
Seguindo uma prtica tradicional, o ato de presentear conti-
nua freqente entre os Karaj, tendo carter de reciprocidade, reconhe-cimento ou agradecimento por algum benefcio auferido para o grupo. A
reciprocidade ou a ddiva, segundo as analises de Mauss, um fundamento
da sociabilidade e da comunicao humana em que a vida social marcada
por uma constncia entre dar e receber. A retribuio de tributos pode
estabelecer uma aliana poltica onde os contratos fazem-se sob a forma
de presentes (Mauss, 1974b - 41).
Os Karaj sempre foram destacados na bibliograa como as-
tutos polticos, dotados de uma diplomacia mpar, acostumados a estabele-
cer alianas e conquistar interesses com representantes governamentais.
Em alguns casos, as trocas foram prerrogativas de cheas que, ao pre-
sentear, representavam os interesses de sua sociedade. O prestgio do
lder Karaj Wata cou marcado por episdios com dois presidentes da
Repblica brasileira, que tinham interesses no desenvolvimento da regio
Centro-Oeste. O primeiro foi com o Presidente Getlio Vargas na dcada
de 40, que recebeu a atribuio de capito Wata, quando este visitou a
aldeia de Santa Isabel na ilha do Bananal, sendo reconhecido at hoje pelos
Karaj, muito tempo aps sua morte.
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O segundo, foi com o presidente Juscelino Kubitschek, como
j mencionado. Essa caracterstica dos Karaj mereceu destaque na mdia,
sendo muito divulgada por ocasio da inaugurao de Braslia na dcadade 1960. Na poca, Juscelino Kubitschek, que tinha interesses declarados
no desenvolvimento do centro-oeste brasileiro, convidou um grupo indge-
na para a missa inaugural de Braslia. Como agradecimento e retribuio,
Juscelino recebeu do capito Wata, liderana poltica que representava
sua sociedade nesse perodo, e do grupo que o acompanhou, uma srie de
presentes gurando entre eles um conjunto de bonecas.Este procedimento uma herana histrica desde os tempos
da colonizao, quando acordos estabelecidos com os portugueses para a
navegao do rio Araguaia garantiram a permanncia de ocupao da Ilha
do Bananal por parte dos Karaj.
Wata e sua esposa (com bonecas nas mos), JK e Dna. Sarah Kubitschek, na primeiramissa em Braslia.
Foto: autor desconhecidoFonte: arquivo pessoal de Iwraru
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Essa foi uma das formas de selar uma aliana com o presi-
dente, atravs da qual ele poderia dar continuidade aos seus projetos de
desenvolvimento da regio, desde que no trouxesse prejuzos s terrasindgenas e aos Karaj das diversas aldeias locais.
Com a facilidade de transito dos Karaj, o principal foco das
relaes externas ocorre com a venda dos objetos, sendo esta uma das
maneiras de garantir parte da estabilidade econmica das famlias para
aquisio de bens de primeira necessidade que no produzem. Aproveitam
os nais de semana, quando aumenta o nmero de turistas na regio, prin-cipalmente nas temporadas de praia, ocasio em que aoram uma srie
de bancos de areia formando as praias de rio. Este fenmeno atrai muitos
turistas que se interessam pelos objetos regionais associados identica-
o dos indgenas intensicando, assim, o comrcio dos objetos Karaj.
No caso da circulao interna da cermica as bonecas ganham
destaque. comum, como j mencionado, que sejam confeccionadas para
presentear as meninas pequenas, tratando-se de uma prtica simblica tra-
dicional em que a av materna ou uma das tias tenha habilidade e empenho
em manufaturar um elenco de guras que projetam por recursos simblicos
uma pequena famlia. Dessa forma, as bonecas assumem um carter peda-
ggico: as meninas enquanto brincam, reproduzem o cotidiano familiar dos
Karaj, organizado segundo normas e valores.
As bonecas e outros objetos cumprem tipos distintos de uso:
- para socializao dos Karaj
- para troca e presente (dentro e fora das aldeias)
- para comrcio
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2.4 Para Alm do Brinquedo: Bonecas como
Referncias Simblicas das Divises de Idade.
No ambiente cultural da aldeia, o primeiro contato com as bo-
necas se d na infncia, na fase pr-pubertria, em que a educao integra
brincadeira e reconhecimento dos graus de idade, determinantes das di-
vises sociais. Fritz Krause (1911a-332) foi o pioneiro a indicar os graus
de idade formais dos Karaj, tendo como seguidores Lipkind (1948-187) e
Dietschy (1978-69). Com os dados coletados nos trs meses de permann-cia em campo em 2005 e 2006, e com a colaborao de algumas famlias
Karaj de Santa Isabel, procuro ampliar as informaes desses autores,
buscando associar as divises de idade com as bonecas que as meninas ga-
nham como brinquedo.
As crianas brincam com esses pequenos objetos com cerca
de seis a quinze centmetros, simulando com eles situaes que envolvem a
vida cotidiana. Embora seja uma brincadeira de menina, o menino tambm
pode participar na dramatizao representando papeis sociais que no es-
tejam contemplados nas guras, por exemplo, o pai ou o lho mais velho,
que pode ser incorporado na brincadeira como o responsvel por trazer
alimento para a famlia, simulando uma pescaria.
Brincar conhecer e conhecer objetivar; poder distinguir
no objeto o que lhe intrnseco do que pertence ao sujeito cognoscente, e
que, como tal, foi indevida e/ou inevitavelmente projetado no objeto (Vi-
veiros de Castro, 2002-358). Na brincadeira, as crianas se reconhecem
nas guras cermicas; seu papel explicitado no objeto e na cadeia de re-
laes que estabelecem com o conjunto de guras da famlia que assume
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expresses das formas sociais.
Nesse teatro onde os personagens se opem, se complemen-
tam e se integram no funcionamento da organizao social em nveis cres-centes de abstrao, as crianas aprendem a incorporar atitudes e valores
prprios de sua sociedade, permitindo atravs de seu carter simblico,
outras formas de conhecimento do mundo e de seus semelhantes.
A cermica gurativa Karaj pode ser retratada como forma
simblica da produo da vida social. O objeto no uma representao
realista, mas concentra contornos acentuados de valores que se articulamcom os papis sociais dos Karaj. Pode-se encontrar nas bonecas traos
que enfatizam os referenciais simblicos da cultura Karaj, por intermdio
da articulao do objeto com as demais esferas da sociedade.
Nesse sentido, a pintura corporal, os adornos, o corte de ca-
belo, entre outros elementos utilizados na vida cotidiana da aldeia e acres-
centados nas guras, caracterizam-se como cdigos culturais, que cum-
prem a funo distintiva e identicadora entre os indivduos.
A linguagem modelada no barro e pintada sobre as guras re-
trata esses traos diferenciais, destacando as semelhanas da organiza-
o familiar Karaj. Dessa maneira, quando a menina ganha a sua famlia
de bonecas, ela refora seu processo de reconhecimento da organizao
social de seu povo, o aprendizado do ambiente se processa antes mesmo do
domnio completo da linguagem.
As crianas costumam acompanhar seus pais at So Flix do
Araguaia, o que faz com que entrem em contato com um ambiente dife-
rente do tradicional. Novos cdigos de comunicao, outras linguagens so
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apreendidas e alguns modelos so inseridos em suas brincadeiras na aldeia,
no sendo incomum a presena de bonecas Tori, ou seja, no indgenas,
incorporando brincadeira a relao com o mundo da cidade que vem setornando cada vez mais intenso, inserindo assim, novos elementos que se
mesclam aos padres de comportamento da vida na aldeia.
Como exemplo, a boneca de plstico reproduzida acima, que
embora seja de outra sociedade est recebendo os atributos Karaj, como
ocorre com a boneca cermica. A irm mais velha da menina que ganhou
esta boneca estava confeccionando os adereos tradicionais para serem
colocados, como o colar de miangas marani, j colocado no pescoo da bo-
neca, enquanto os outros adereos estavam sendo preparados. Os Karaj
usam o maranidesde pequenos. Com poucos meses de vida, independente-
mente do seu sexo, meninos e meninas ganham o colar que ser trocado por
outros de dimenses maiores, acompanhando as suas fases de crescimento.
Ele ser utilizado junto com outros adereos referentes s fases de idade,
Boneca industrializada com colarKaraj.
Foto: Sandra L. Campos/2006.
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nas cerimnias festivas e nas apresentaes em eventos fora de seu espa-
o de convivncia.
Os Karaj esto em contato constante com a sociedade envol-vente, tanto na regio prxima de suas aldeias, quanto com outros Estados
brasileiros. Todos os anos participam de uma srie de eventos voltados
para as culturas indgenas, como os jogos intertnicos, a cada ano sediados
em um Estado brasileiro, a festa Nacional do ndio, no ms de abril em
Bertioga litoral de So Paulo, entre outras, que favorecem a assimilao
de hbitos distintos de sua cultura adquiridos pelos contatos com outrassociedades. Porm, no h ruptura ou ciso de seus costumes, pois os Kara-
j conservam as relaes domsticas denidas pelo sistema de organizao
tradicional. A boneca de plstico, mesmo incorporando um elemento novo,
ao substituir a boneca de cermica, mantm o cdigo de comunicao, in-
corporando novos materiais.
Kussina, (10 anos) e Nawaritxo (9). Brincam com bonecas cermicas e de plstico na aldeia JK.
Foto: Sandra L. Campos/2006.
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As crianas brincam com as bonecas tradicionais juntamente
com as industrializadas, simulando a convivncia dos Karaj com os no
indgenas, conforme ocorre nas relaes cotidianas. Mas a boneca de pls-tico, quando usa o colar e outros adereos, uma Karaj, no uma tori.
As mulheres so mais preservadas do contato com estranhos,
tanto que so poucas as que dominam outro idioma, sendo este um dos fato-
res que as tornam resistentes s mudanas. Com isto, sua atuao deter-
minante na manuteno de sua cultura, legitimada na educao dos lhos,
fato este que refora a posio das ceramistas que utilizam a linguagemmodelada para representar nas bonecas os principais padres tradicionais
do ciclo de vida Karaj.
Assim, ao completarem cinco ou seis anos de idade, as meninas
recebem de presente sua famlia de bonecas. Dependendo da ceramista,
pode representar o modelo da famlia nuclear, com cinco a seis peas, ou
ser mais completa, com um elenco maior de onze ou mais guras, repre-
sentando a tipologia da famlia extensa, composta pelos avs maternos,
pais, irmos jovens e crianas. Durante a infncia, as meninas podem ser
presenteadas por mais de uma vez com a famlia, no sendo incomum, aps
os estreitamentos das relaes de contato, que a recebam de presente de
Natal ou aniversrio.
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Em um exerccio de classicao, solicitou-se a uma jovem
Karaj que alinhasse as guras de acordo como brincava em sua infncia.
Apesar da idade de 27 anos, agrupou as guras seguindo a maneira como as
crianas brincam, no sendo diferente de sua poca de infncia.
Foto: Sandra L. Campos. JK/2005.
Menina com sua famlia de bonecas em cesta prpria para guard-las
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Nesta seqncia organizada por Hatawaki, lha de uma pres-
tigiada ceramista e sobrinha de Iwraru, dentre as vrias possibilidades
combinatrias, transparece a congurao hierarquizada das categorias
sociais, reetindo o respeito pelos mais velhos, principalmente pela av
materna que ca responsvel pelos netos. O respeito pelos idosos, deten-
tores dos saberes e fazeres, e transmissores dos conhecimentos de sua
cultura, comum nas sociedades indgenas. Esse reconhecimento poten-
cializado na sociedade Karaj, que atribui aos avs maternos a responsa-
bilidade da educao de seus netos. No incomum, por exemplo, uma av
que tenha lho em fase de lactao amamentar seus netos, como forma de
fortalecimento dos vnculos familiares e dos ciclos sociais.
O reconhecimento dos graus de idade e dos ciclos sociais pe-
los Karaj ocorre pelo emprego de uma multiplicidade de cdigos estticos,
com elementos visuais e componentes materiais, como j visto: a pintura
corporal, os adereos, o corte de cabelo, entre outros, num profuso uni-
Av materna, recm nascido, menina pequena, av, me, pai, lho, lha em iniciao pubertria, jir (iniciado),lho e lha solteiros.
Foto: Wagner Souza e Silva/2007.
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verso de formas e cores simbolizantes de cada etapa, que expandidas no
corpo identicam, distinguem e comunicam. Esses elementos so espelha-
dos na maneira como as ceramistas documentam as fases de transio dascategorias sociais.
2.5 Categorias de Idade
Os graus de idade so unidades de classicao Karaj co-
muns a homens e mulheres at o sexto ano de vida. Outra diviso marcanteocorre quando esto prximos ao perodo das fases de transio, ou seja,
os meninos entre onze e treze anos de idade e as meninas na menarca. So
momentos determinados pelas transformaes biolgicas denidoras da
diviso sexual dos papis, pela capacidade de procriao e organizao fa-
miliar. Essa bifurcao de compromissos marcada por atividades cerimo-
niais que determinam sexualmente a atuao e o comprometimento de cada
um com a vida social, poltica, econmica e religiosa da comunidade.
A partir da iniciao, as categorias denidoras das divises
etrias passam por sistemas classicatrios distintos para homens e mu-
lheres, existindo um sistema de correspondncia de algumas fases nas -
guras cermicas, que exemplicam uma srie de valores a serem rmados
na infncia e realizados na vida adulta.
Para ns de classicao, estabeleceu-se expressar a nomen-
clatura dos graus de idade, iniciada pelo nascimento.
Quando nasce um Karaj, em seu primeiro dia de existncia
ele tem seu corpo pintado de vermelho marcando sua entrada no mundo
In. Geralmente o ritual de passagem de responsabilidade da av ou da
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7/22/2019 Campos, 2007 - Bonecas Karaj
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tia materna, que tinge o recm nascido com urucum, marcando, de forma
ritual, o seu primeiro dia de vida no InMahadu. Esta a fase inicial que
encabea a seqncia da infncia, e que se estende at o nal do primeiroms. Atribui-se a ela o nome de Tohokua xoxo. Outra nalidade do tingi-
mento com urucum, considerado como perfume, a de tirar o aroma carac-
terstico do parto.
Ao completarem um ms, superando a fase crtica de latncia
onde qualquer descuido pode ser fatal, passam para outra fase Kytydu
ritxor. Nesta fase os bebs comeam a car mais rmes e resistentes,contando ainda com a ateno constante da me e da av materna. Este
perodo superado aos trs meses, pelo Iwebo webo, onde permanecem
at carem rmes, aproximadamente at os cinco ou seis meses. Para cada
fase h uma correspondncia de classicao, acompanhando as caracte-
rsticas de desenvolvimento fsico e biolgico da criana. At aqui so con-
siderados bebs, alimentadas apenas pelo aleitamento materno e os ris-
cos de vida ainda so presentes, requerendo ateno constante. Superada
esta etapa, entram na fase inicial da infncia, por volta dos cinco meses,
quando so perdidas as caractersticas de beb, passando a ser designada
como criana - Kuladu. A alimentao comea a ser alternada gradativa-
mente com mingaus, suco de f