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CRCULOS SOCIAIS E INTERAES NO ESTUDO DA
FORMULAO DE POLTICAS: SEGURANA ALIMENTAR NO
BRASIL NAS DCADAS DE 80 E 90
ELIANE SIQUEIRA PEDLOWSKI
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE - UENF CAMPOS DOS GOYTACAZES - RJ
FEVEREIRO -2003
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CRCULOS SOCIAIS E INTERAES NO ESTUDO DA
FORMULAO DE POLTICAS: SEGURANA ALIMENTAR NO
BRASIL NAS DCADAS DE 80 E 90
ELIANE SIQUEIRA PEDLOWSKI Dissertao apresentada ao Centro de
Cincias do Homem, da Universidade
Estadual do Norte Fluminense, como
parte das exigncias para obteno do
ttulo de Mestre em Polticas Sociais.
Orientao: Adelia Maria Miglievich Ribeiro
CAMPOS DOS GOYTACAZES RJ
FEVEREIRO - 2003
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CRCULOS SOCIAIS E INTERAES NO ESTUDO DA
FORMULAO DE POLTICAS: SEGURANA ALIMENTAR NO
BRASIL NAS DCADAS DE 80 E 90
ELIANE SIQUEIRA PEDLOWSKI Dissertao apresentada ao Centro de
Cincias do Homem, da Universidade
Estadual do Norte Fluminense, como
parte das exigncias para obteno do
ttulo de Mestre em Polticas Sociais.
Aprovada em 25 de fevereiro de 2003
Comisso Examinadora:
___________________________________
Prof. Hugo Alberto Borsani Cardozo (Doutor, Cincia Poltica) - UENF
______________________________ Profa. Patrcia Silveira de Farias (Doutora, Antropologia, UFRJ) - UCAM
___________________________________
Prof. Sergio de Azevedo (Doutor, Cincia Poltica) UENF
___________________________________
Profa. Adlia Maria Miglievich Ribeiro (Doutora, Sociologia) UENF
Orientadora
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Em uma fbula um campons
morte diz a seus filhos que h
em suas terras um tesouro
enterrado. Em conseqncia
disso, os filhos escavam e
reviram profundamente a terra
por toda parte, sem encontrar o
tesouro. Mas no ano seguinte a
terra assim trabalhada produz
trs vezes mais frutos. (...) Ns
no iremos encontrar o tesouro,
mas o mundo que ns
escavamos sua procura trar
ao esprito trs vezes mais
frutos - mesmo se no se
tratasse de nenhum modo na
realidade do tesouro, mas sim
de que esse escavar a
necessidade e a determinao
interior do nosso esprito.
(Georg Simmel)
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Dedico este trabalho a meus
pais, que transmitiram, a mim e
a meus irmos, o trabalho, a
honestidade e o esprito pblico
como pressupostos ticos
bsicos em nossa vida
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Agradecimentos
Muitos contriburam para que esta dissertao acontecesse. Mencionar
todos seria aqui difcil, mas considero que o trabalho ora apresentado traz
embutido a impresso de cada vivncia com a qual interagi cada uma delas
deixou em minha prpria vivncia a marca de sua passagem. Porm, algumas
pessoas ajudaram a tornar essa tarefa mais leve, e no posso deixar de aqui de
expressar minha profunda gratido .
Primeiramente, devo declarar que tive a imensa sorte de contar com a
generosidade de pessoas que, algumas at sequer sem conhecer-me, com muita
gentileza enviaram-me ou ajudaram-me - com suas dicas de pesquisa - a
conseguir material de trabalho. Assim, no posso deixar de falar aqui de Brasil
Vargas Junior; Carlos Fernando Galvo; Gabriel, da AS-PTA; Gernimo, do Banco
de Teses/UFRJ; Henrique Cairus; Ivone Atade, da secretaria do DESER; Maria
Clia Lima, do Programa Comunidade Solidria; Marlia Angotti Ledier, secretria
adjunta da ANDIFES; Regina, do Nud/PT; Rozi, do IBASE; Manuela Colao e Rita
de Cassia Perrelli, respectivamente aluna e professora do curso de Graduao em
Nutrio da UFRJ.
Tambm, dedico gratido especial aos professores que participaram do
Exame de Pr-Projeto: professora Leilah Landim (UFRJ), professor Marcos A.
Pedlowski (UENF) e professora Teresa Peixoto Faria (UENF). As contribuies
prestadas durante aquela ocasio foram valiosssimas, e estiveram presentes todo
o tempo em minhas preocupaes;
Aos meus entrevistados, em quem destaco e admiro sobretudo a boa
vontade e a maneira cordial e franca com que me receberam: Jean Marc von der
Weid (AS-PTA); Francisco Menezes (IBASE), e Renato Srgio Jamil Maluf
(CPDA/UFRRJ);
estimada amizade e ajuda de Milene Rodrigues Vargas, palavras no
sero suficientes: estas no podem expressar ou retribuir o contedo de sua
disposio para o impossvel, bem como de sua famlia: Marly, Juliana e
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Eduardo, que souberam aturar minha presena nas vrias visitas que fiz sua
casa, no Rio de Janeiro;
Durante o tempo em que estive em Campos dos Goytacazes, tive a
oportunidade de contar com o afeto, apoio e dedicao de Roosevelt, Ana
Carolina e Hugo, assim como com a convivncia, sempre freqente, de Carolina
de Cssia Abreu e Maria Carolina o sorriso e suavidade de todos me estimulou
e assim continua ocorrendo, embora em minha lembrana;
Aos alunos-companheiros de jornada no Laboratrio de Estudos do
Espao Antrpico (LEEA/UENF): Maria Alice Pohlmann, Leonardo de Souza
Cavadas e Miguel Raul Mazissa Zinga, devo declarar que sentirei falta dos
momentos de trabalho rduo, e tambm de descontrao inteligente, que juntos
experimentamos;
Aos meus irmos Gilberto, Adalberto e Leonel: carrego um pouco de cada
um dentro de mim - que experincia maravilhosa ter amigos como vocs,
capazes de apoio incondicional e sincero;
Especialmente a meu irmo Marcos, principal incentivador desde
sempre, devo dizer que tens minha profunda admirao e respeito: sem a ajuda e
o companheirismo mim dedicados, esta incurso no teria sido possvel;
E com distino e louvor, agradeo minha orientadora Adelia Maria
Miglievich Ribeiro, pelo exemplo de dedicao, competncia e coragem seu
estmulo e otimismo foram fundamentais .
todos, minha dvida eterna.
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Sumrio
Lista de figuras.........................................................................................................
Lista de siglas..........................................................................................................
Resumo...................................................................................................................
Abstract...................................................................................................................
Introduo..................................................................................................................
Captulo 1
Problematizando a dicotomia sociedade civil/Estado.................................................
1.1 Sociedade civil: antecedentes e a leitura de Hegel e Marx................................
1.2 A sociedade civil como o bero da democracia em Tocqueville........................
1.3 Gramsci, marxismo ocidental e a renovao do conceito de sociedade civil......
1.4 . O resgate contemporneo do conceito de sociedade civil...............................
1.5 .Sociedade civil e sua apropriao no contexto brasileiro..................................
Captulo 2
Contra a dicotomia indivduo/sociedade: Georg Simmel e a perspectiva das
formas sociais...........................................................................................................
2.1 A influncia das idias de Georg Simmel.............................................................
2.2 Entre o indivduo e a sociedade a opo por uma sociologia relacional...........
2.3 Simmel e sua proposta sociolgica....................................................................
Captulo 3
A segurana alimentar no Brasil nos anos 80 e 90....................................................
3.1 Viso panormica da dcada de 80.....................................................................
3.2 O grupo de trabalho da SUPLAN de 1985............................................................
3.3 A Conferncia Nacional de Alimentao e Nutrio de
1986............................................................................................................................
3.4 Viso panormica da dcada de 90.....................................................................
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3.5 O Governo Paralelo, propostas de polticas e o dilogo entre Lula e Jos
Gomes da Silva...........................................................................................................
3.6 A proposta de poltica de segurana alimentar do Governo Paralelo...................
3.7 O Movimento Pela tica na Poltica......................................................................
3.8 A Ao da Cidadania Contra a Fome, a Misria e Pela Vida...............................
3.9 Entrecruzamento de crculos sociais: Governo Paralelo, Itamar Franco e Ao
da cidadania - a criao do CONSEA.........................................................................
3.10 Sobre a implementao do CONSEA................................................................
3.11 A I Conferncia Nacional de Segurana Alimentar.............................................
3.12 A avaliao da experincia CONSEA..............................................................
3.13 A extino do CONSEA......................................................................................
3.14 O Programa Comunidade Solidria: a segurana alimentar como uma rodada
de interlocuo poltica...............................................................................................
3.15 O Documento Brasileiro para a Cpula Mundial da Alimentao em Roma,
1996: crculos sociais em interao............................................................................
3.17 Os fios da mobilizao social as sociedades em movimento........................
Consideraes finais.................................................................................................
Referncias Bibliogrficas..........................................................................................
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Resumo
Este trabalho teve como objeto de estudo a mobilizao por uma poltica de
segurana alimentar no Brasil, ocorrida durante as dcadas de 1980 e 1990. A
dinmica social conduziu o trabalho no sentido de desenvolver um estudo que
resgatasse a trajetria dessa mobilizao, privilegiando o estudo das interaes
que viabilizaram as propostas, estratgias, campanhas, os movimentos, os fruns,
as conferncias, os programas.
Para visualizao das relaes entre a chamada sociedade civil e o
governo, envolvidas nesta trajetria, retomou-se a discusso da dicotomia
sociedade civil/Estado, atravs do histrico da noo de sociedade civil, e tambm
sua utilizao contempornea. A opo metodolgica foi a de focalizar as formas e
os crculos sociais presentes na trajetria da mobilizao, o que levou
explicitao da obra de Georg Simmel, matriz terica da sociologia relacional,
subsidiando uma melhor compreenso deste instrumental analtico.
O mvel da pesquisa foi reunir elementos que proporcionassem uma
resposta pergunta: que formas sociais estiveram presentes na mobilizao em
prol da poltica de segurana alimentar no Brasil? Para tal, a base material de
anlise incluiu entrevistas a personagens participantes da mobilizao, bem como
a explorao de fontes documentais, identificadas durante a pesquisa exploratria.
Se, a literatura em geral tende a ocultar as continuidades e
descontinuidades das aes bem como as personagens envolvidas na formulao
de polticas, a pesquisa efetuada demonstrou que o definhamento de um crculo
social no significa o fim de uma luta, j que novos crculos so ininterruptamente
criados e recriados. Neste dinamismo, nomes permaneceram, apesar das
mudanas de 'lugar' ou status, apresentando diferentes formas sociais de
interao: a cooperao, o dilogo, a parceria aparecem ao lado do conflito e da
dominao, dentre outras, fazendo com que o tema permanecesse na agenda
pblica de debates.
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Lista de figuras
Figura 1 - O grupo da SUPLAN.................................................................................
Figura 2 - O grupo do Governo Paralelo..................................................................
Figura 3 - Do Movimento Pela tica na Poltica Ao da Cidadania.....................
Figura 4 - Entrecruzamento de crculos sociais: a criao do CONSEA....................
Figura 5 - O CONSEA.............................................................................................
Figura 6 - Entidades participantes da Interlocuo Poltica no Programa
Comunidade Solidria representao quantitativa...............................................
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Lista de Siglas:
ABAG - Associao Brasileira de Agribusiness
ABI - Associao Brasileira de Imprensa
ABIA - Associao Interdisciplinar de AIDS
ABIA - Associao Brasileira das Indstrias de Alimentao
ABONG - Associao Brasileira de Organizaes No-Governamentais
ABRA - Associao Brasileira de Reforma Agrria
ABRAS - Associao Brasileira de Supermercados
ABRINQ - Associao Brasileira dos Fabricantes de Brinquedo
GORA Associao de Projetos para Combate Fome
AGROCERES - Empresa do ramo agropecurio
AP - Ao Popular
ARENA - Aliana Renovadora Nacional
AS-PTA - Assessoria e Servios a Projetos em Agricultura Alternativa
ASBRAER - Associao Brasileira das Empresas de Extenso Rural
ASBRAN - Associao Brasileira de Nutrio
CCS - Centro de Cincias da Sade
CEAGESP - Central de Abastecimento Geral do Estado de So Paulo
CEASA - Companhia Estadual de Abastecimento S/A
CEPAL - Comisso Econmica para a Amrica Latina
CFN - Conselho Federal de Nutricionistas
CGT - Confederao Geral dos Trabalhadores
CNBB Confederao Nacional dos Bispos do Brasil
COEP Comit de Entidades Pblicas no Combate Fome e pela Vida
CONAB - Companhia Nacional de Abastecimento
CONCRAB - Confederao Nacional das Cooperativas de reforma agrria no Brasil
CONSEA - Conselho Nacional de Segurana Alimentar
CONTAG - Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CONTEC - Conselho Superior de Tecnologia
CPC - Centro Popular de Cultura
CPDA - Curso de Ps-Graduao em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
CRUB - Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras
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iii
iii
CUT - Central nica dos Trabalhadores
FAE - Fundao de Assistncia ao Estudante
EMATER - Empresa Paranaense de Assistncia Tcnica e Extenso Rural
FAO - Food and Agriculture Organization (Organizao das Naes Unidas para
Alimentao e Agricultura)
FASE - Federao de rgos para a Assistncia Social
FMI - Fundo Monetrio Internacional
IBASE Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas
IBRA - Instituto Brasileiro de Reforma Agrria
IDEC - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
INAN - Instituto Nacional de Alimentao e Nutrio
INCRA - Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria
INESC - Instituto de Estudos Scio-econmicos
INMETRO - Instituto Nacional de Metrologia
IPARDES - Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econmico e Social
IPEA Instituto de Pesquisas Econmicas Aplicadas
ISER - Instituto de Estudos da Religio
JEC - Juventude Estudantil Catlica
JUC - Juventude Universitria Catlica
LBA - Legio Brasileira de Assistncia
MDB - Movimento Democrtico Brasileiro
MRE - Ministrio das Relaes Exteriores
MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
NEPA - Ncleo de Estudos para a Alimentao
OAB - Ordem dos Advogados do Brasil
OMC - Organizao Mundial do Comrcio
ONU - Organizao das Naes Unidas
OPAS - Organizao Pan-Americana de Sade
PAT - Programa de Alimentao do Trabalhador
PC do B - Partido Comunista do Brasil
PDS - Partido Democrtico Social
PFL - Partido da Frente Liberal
PMDB - Partido do Movimento Democrtico Brasileiro
PNAE - Programa Nacional de Alimentao Escolar
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iv
iv
PNBE - Pensamento Nacional das Bases Empresariais
PNDS - Pesquisa Nacional sobre Demografia e Sade
PRODEA - Programa Emergencial de Distribuio de Alimentos
PSB - Partido Socialista Brasileiro
PT - Partido dos Trabalhadores
PUC - Pontifcia Universidade Catlica
PUCCAMP - Pontifcia Universidade Catlica de Campinas
RBS - Rede Brasil Sul de Comunicaes
SESC - Servio Social do Comrcio
SESI - Servio Social da Indstria
SUPLAN - Superintendncia de Planejamento
UENF - Universidade Estadual do Norte Fluminense
UFF - Universidade Federal Fluminense
UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais
UFPE - Universidade Federal de Pernambuco
UFPR - Universidade Federal do Paran
UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
UFSCar - Universidade Federal de So Carlos
UnB - Universidade de Braslia
UNE - Unio Nacional dos Estudantes
UNESP - Universidade Estadual Paulista
UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas
UNICEF - Fundo das Naes Unidas para a Infncia
UNIMEP - Universidade Metodista de Piracicaba
USC - Universidade Sagrado Corao
USF - Universidade So Francisco
USP - Universidade de So Paulo
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1
Introduo
Esta dissertao tem por objeto de estudo a mobilizao por uma poltica de
segurana alimentar, ocorrida no Brasil nas dcadas de 1980 e 1990, que trouxe
embutida em seu bojo avanos e recuos; continuidades e descontinuidades;
momentos de maior ou menor visibilidade; conflitos e alianas entre pessoas e
grupos.
Recentemente, em 30 de janeiro de 2003, assistiu-se ao lanamento nacional
do 'Programa Fome Zero', iniciativa governamental de combate fome e misria,
derivada do documento Projeto Fome Zero Uma Proposta de Poltica de
Segurana Alimentar para o Brasil. Na apresentao inicial do documento, feita em
outubro de 2001, declarou-se que o Projeto... era a sntese de um ano de trabalho
de "companheiros e companheiras, com a participao de representantes de ONGs,
institutos de pesquisas, sindicatos, organizaes populares, movimentos sociais e
especialistas ligados questo da segurana alimentar, em todo o Brasil" (Instituto
Cidadania, 2001). primeira vista, o que no est evidente que o referido
documento representa a continuidade de uma luta pela implementao de uma
poltica de segurana alimentar, defendida desde a dcada de 1980 por diferentes
setores da sociedade brasileira. A dissertao apresentada prope o resgate dessa
trajetria, observando as interaes sociais que, mais conflituosas ou menos,
permitiram a existncia, hoje, deste item como prioridade de um Governo.
Cabe inicialmente, traar um breve percurso dos diferentes significados da
expresso 'segurana alimentar', em funo dos crculos sociais nos quais esta era
incorporada ao debate. A expresso segurana alimentar, utilizada pela primeira
vez logo aps a Primeira Guerra Mundial, com um significado impreciso, se
mesclava idia de segurana nacional. Isto ocorreu porque, no ps-guerra
imediato, explicitou-se o temor de que pases fossem dominados economicamente
uns pelos outros, caso no tivessem alimentos suficientes para servir sua prpria
populao. Naquele momento, o foco de ateno no era a questo da fome em si,
mas da auto-suficincia na produo de alimentos, da a expresso resultar em
'segurana alimentar'. A partir de ento, as situaes de insegurana alimentar
foram relacionadas produo insuficiente de alimentos (Menezes, 2001).
-
2
Segundo Francisco Menezes (1999), at a primeira metade da dcada de
70, prevaleceu a viso de que os problemas da fome e desnutrio resultavam de
uma produo insuficiente de alimentos. Porm, ao findar aquela dcada, isto se
modificou, dado que, mesmo com o aumento da oferta de alimentos, amplos
segmentos da populao mundial continuavam sem acesso comida, evidenciando
que a oferta insuficiente de alimentos no era a nica causa da permanncia da
fome no mundo.
A partir da dcada de 80, o significado da expresso necessariamente
comeou a sofrer modificaes: a explicao anterior - a que bastava produzir
alimentos em mais quantidade que estaria garantido o acesso - no se configurou
como verdadeira. Foi quando se incorporou mais fortemente idia de segurana
alimentar a problemtica do acesso aos alimentos (Menezes, 2001).
Isso no exprimiu consenso sobre o seu significado, nem sobre as
condies e meios para garantir o acesso a todos: desde o incio dos anos 80, pode-
se notar uma disputa de vises, polarizada entre os organismos oficiais e
multilaterais encabeados pela Organizao das Naes Unidas para a Alimentao
e a Agricultura (FAO) de um lado, e organizaes no-governamentais (ONGs) e
representaes de movimentos sociais, de outro. Os primeiros insistiam no aumento
da produo de alimentos para acabar com a fome no mundo, enquanto os outros
propunham a insero do tema da fome no campo dos direitos humanos,
enfatizando o acesso aos alimentos (Menezes, 1998).
No Brasil, as primeiras referncias pblicas segurana alimentar surgiram
no Ministrio da Agricultura e Abastecimento no final de 1985, onde se elaborava
uma proposta de 'Poltica Nacional de Segurana Alimentar'. Ainda na dcada de 80,
o tema foi retomado durante a 'I Conferncia Nacional de Alimentao e Nutrio',
ocorrida em 1986.
A questo voltou pauta em 1990, durante o chamado Governo Paralelo1
Um Conselho Nacional de Segurana Alimentar (CONSEA) foi criado em
1993, subordinado diretamente Presidncia da Repblica, no governo do
.
Naquela ocasio, segurana alimentar foi compreendida como o acesso universal
aos alimentos bsicos necessrios, em todos os momentos (Silva e Silva, 1991).
1 Articulao que agregou movimentos sociais, partidos e parlamento, visando atuar como agente fiscalizador do Poder Pblico e como frum gerador de propostas alternativas em diferentes reas (Menezes, L. C., 1991), cujo documento de instalao foi lanado em Braslia, em 15 de julho de 1990.
-
3
presidente Itamar Franco. No CONSEA, consensuava-se que, no Brasil, somente
estaria garantida a segurana alimentar quando toda a populao tivesse acesso
permanente aos alimentos necessrios, quantitativa e qualitativamente, para a
manuteno da vida, de forma digna. Para tal, segurana alimentar era considerada
como um objetivo nacional bsico e estratgico, a permear e articular todas as
polticas e aes das reas econmica e social do Governo, a serem decididas em
conjunto com a sociedade (CONSEA, 1994).
Foi durante a existncia do CONSEA que ocorreu a primeira Conferncia
Nacional de Segurana Alimentar no Brasil, em 1994. Naquela Conferncia,
ampliou-se o entendimento brasileiro acerca da segurana alimentar:
"Por Segurana Alimentar entende-se um conjunto de princpios,
polticas, medidas e instrumentos que assegure permanentemente o
acesso de todos os habitantes em territrio brasileiro aos alimentos,
a preos adequados, em quantidade e qualidade necessrias para
satisfazer as exigncias nutricionais para uma vida digna e saudvel
bem como os demais direitos da cidadania" (CONSEA e Ao da
Cidadania, 1994:12).
No relatrio final da Conferncia, chamou-se ateno para o fato de que,
apesar da construo de um estado de segurana alimentar ter como pr-requisito
produo, estocagem e distribuio estratgica de alimentos, sua efetivao s se
daria com o acesso universal alimentao, ou seja, quando todos tivessem poder
aquisitivo para a compra destes alimentos: os itens anteriores seriam "meios" para a
consecuo de um fim: uma populao com quantidade suficiente de alimentos
mesa.
Fez-se tambm, poca, a defesa de uma reforma estrutural do modelo
econmico do pas, que favorecesse o aumento de renda da maioria da populao,
e a participao da populao na formulao e implementao de um projeto de
nao que inclusse a segurana alimentar (CONSEA e Ao da Cidadania, 1994).
Mesmo aps a extino do CONSEA, em janeiro de 1995, sua formulao
de segurana alimentar permaneceu como ponto de referncia tanto na esfera
governamental, quanto entre os segmentos da sociedade que permaneceram
discutindo o tema. Em 1996, no interior do Programa Comunidade Solidria do
-
4
Governo Federal, dentro dos momentos de interlocuo poltica ocorreu uma
interlocuo poltica especfica sobre o tema que, reconhecendo a existncia de
dissensos na discusso, apresentou o seguinte consenso no tocante segurana
alimentar:
"Segurana Alimentar e Nutricional significa garantir a todos
condies de acesso a alimentos bsicos seguros e de qualidade,
em quantidade suficiente para atender aos requisitos nutricionais, de
modo permanente e sem comprometer o acesso a outras
necessidades essenciais, com base em prticas alimentares
saudveis, contribuindo assim para uma existncia digna em um
contexto de desenvolvimento integral do ser humano" (Peliano e
Franco, 1997: 57).
Esta a definio de segurana alimentar contida tambm no Relatrio
Nacional Brasileiro enviado Cpula Mundial da Alimentao de 1996, com exceo
somente da palavra 'nutricional' que, existente no documento do Programa
Comunidade Solidria, foi omitida naquele relatrio (Ministrio de Estado das
Relaes Exteriores, 1996). Segundo Francisco Menezes, os aspectos da
sustentabilidade ecolgica, social e econmica do sistema alimentar, foram
incorporados noo de segurana alimentar aps a Cpula Mundial de
Alimentao, que ocorreu em Roma, em 1996 (Menezes, s.d. b).
Para Flvio Valente (2000:6), na compreenso mais ampliada de segurana
alimentar, esta deixou de ser uma questo restrita ao tema da fome e da pobreza,
sujeita apenas mobilizao de populaes pobres e excludas, "...j que envolve
fortes grupos de presso ligados ao setor ambientalista, aos interesses dos
consumidores, luta sindical, aos produtores agrcolas e outros". Apesar disso,
segundo Valente, nos ltimos anos, a Unio Europia, o Banco Mundial e outros
atores internacionais tenderam a se afastar do tema da segurana alimentar e do
conceito aprovado na Cpula Mundial da Alimentao, optando por um significado
restritivo e aparentemente superado, aquele exclusivo quase que integralmente
questo da pobreza.
Cabe aqui, devido a uma freqente associao, uma diferenciao entre os
termos fome e misria, por vezes utilizados como sinnimos. Misria, geralmente,
-
5
relacionada a condies de pobreza extrema. Diante da palavra 'fome', um
primeiro pensamento volta-se quela sensao fisiolgica individual que indica a
necessidade de ingesto de alimentos - o impulso alimentao. Porm, tal impulso,
quando no satisfeito continuamente, se transforma em carncia nutricional que, em
termos biolgicos, leva a um funcionamento orgnico deficiente. Ocorre que, de
situao transitria para alguns, a fome tem sido uma manifestao endmica para
grandes contingentes populacionais. No contexto da segurana alimentar, a fome da
qual se trata a fome endmica, ou ainda, a chamada 'fome coletiva', como na idia
formulada por Josu de Castro2
"Eis um problema to velho quanto a prpria vida" (Mayer, 1961:1). Os
nmeros da fome
(Castro, 1961:22).
3
Segundo o Ministrio de Sade, os dados oriundos da Pesquisa Nacional
sobre Demografia e Sade (PNDS) de 1996 indicavam que 11% das crianas
, mesmo com divergncias acerca da metodologia utilizada para
sua obteno, demonstraram-se sempre alarmantes ao longo do tempo no Brasil.
Dados oficiais do Ministrio da Sade do ano de 1991 indicavam que cerca de 13
milhes de adultos brasileiros, 15,9% de nossa populao, tinham baixo peso
segundo o ndice de Massa Corporal (IMC), um indicador utilizado para verificar a
adequao peso atual em relao estatura atual. Ainda segundo o Ministrio, na
mesma poca a prevalncia de baixo peso era de aproximadamente um quarto dos
brasileiros jovens entre 18 e 24 anos. Alm disso, ficou evidenciado o grande dficit
de estatura apresentado pelos nossos jovens, conseqncia do crescimento
deficiente ao longo de todo o perodo de crescimento (Ministrio da Sade, s.d.).
2Sem dvida, a personagem brasileira mais encontrada nos trabalhos que tratam sobre os problemas da fome Josu de Castro. Isto porque ele foi o primeiro brasileiro a levantar o tema da fome, sabendo que se dedicava a um tema considerado tabu: "Josu de Castro ficou no imaginrio brasileiro, especialmente das pessoas que lidam com esse tema, como sendo o grande precursor dessa discusso colocada nestes termos: a fome tratada como fenmeno social, com causas sociais, econmicas. Ele foi um dos primeiros a dizer que o tema da fome era to tabu que se tentou dar uma roupagem a ele mais assptica, pois quando se parou de falar em fome comeou a se falar de desnutrio, para tentar localizar o tema da fome num problema nutricional, tirando assim um pouco de sua carga relacionada aos direitos, explorao econmica, s condies estruturais, pobreza..." (Maluf, 2001). Dentre suas vrias obras, destacam-se O problema da alimentao no Brasil, de 1933; Geografia da Fome, de 1946; O livro negro da fome, de 1957. Em Geopoltica da fome, de 1951, sistematiza e aprofunda algumas elaboraes j abordadas anteriormente, alm de apontar novas questes, tal como o impacto da fome no organismo humano e na vida social deste. Aps o golpe militar de 1964 foi exilado, tendo falecido em Paris, em 1973. Cf. Rosana Magalhes, em: Fome. Uma (Re)Leitura de Josu de Castro,1997. 3 No se mede a fome propriamente dita, mas sim se presume a sua existncia quando ocorre uma combinao adversa de indicadores do estado nutricional, tais como os indicadores de medidas corporais, chamados antropomtricos, os indicadores bioqumicos, os indicadores dietticos, ou ainda os indicadores ditos sociais, onde so includos os indicadores de pobreza.
-
6
brasileiras menores de cinco anos apresentavam uma deficincia estatural em
relao idade. Alm disso, duas entre dez crianas combinam dficit estatural e
baixo peso constitucional: ...a situao nutricional da criana brasileira vem
melhorando, mas a situao ainda preocupa, especialmente o retardo no
crescimento linear, que reflexo da fome crnica (Ministrio da Sade, 2002:52).
Pode-se dizer que os problemas da fome endmica e da (in) segurana
alimentar tm estreita relao com as questes econmicas e de desenvolvimento
do pas. Talvez por isso que, em torno da problemtica da fome endmica e da
busca de sua erradicao, diferentes personagens e interesses tenham disputado
espaos de poder na definio dos rumos de nossa histria poltica.
Ao mesmo tempo, o tema, s vezes, guarda em torno de si um certo
silncio, raramente abalado. Segundo Francisco Menezes (2001), embora sendo
problema secular no Brasil, a fome e a desnutrio tornaram-se visveis,
paradoxalmente, devido ao de alguns brasileiros notveis, como Josu de
Castro e Herbet de Souza, o Betinho4
Por outro lado, deve-se mencionar que a recente mobilizao brasileira em
torno da questo da segurana alimentar ocorreu em momento de tentativa de
redemocratizao de nossa sociedade, aps um perodo de 21 anos de ditadura
militar. Alm disso, o contexto econmico brasileiro nas dcadas de 80 e 90 tambm
favoreceu amplamente as manifestaes sociais. A unio destes dois fatores tornou
, que insistiram em no permitir que suas
causas e efeitos ficassem escondidos, no hesitando em denunciar o problema da
fome no Brasil em todos os espaos que tinham alcance, nacionais ou
internacionais.
4 Betinho iniciou sua militncia na Juventude Estudantil Catlica (JEC) em Belo Horizonte, mais tarde transformada em Juventude Universitria Catlica (JUC), com a qual viajou pelo Brasil com o Centro Popular de Cultura (CPC) da Unio Nacional dos Estudantes (UNE), convocando assemblias estudantis em inmeras faculdades ou disputando a direo da entidade com a Ao Popular (AP), que na poca dominava o movimento estudantil. Na Faculdade de Cincias Econmicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), fez parte do ncleo que gerou o pensamento poltico da JUC e depois o da AP, articulando-se posteriormente com o grupo de cristos progressistas da PUC do Rio. Tendo se formado em Sociologia em 1962, Betinho engajou-se nos movimentos operrios e na luta pelas chamadas "reformas de base, marcantes do Governo Joo Goulart. Depois do golpe militar de 64, Betinho passou a atuar na resistncia ditadura militar. Em 1971, quando a represso foi intensificada, exilou-se. De volta ao Brasil, ajudou a fundar o Instituto de Estudos da Religio (ISER) e logo depois o Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas (IBASE). Betinho tambm desempenhou papel decisivo como fundador e principal articulador da Campanha Nacional pela Reforma Agrria, congregando entidades de trabalhadores rurais. Nessa luta pela democratizao da terra organizou, em 1990, o movimento Terra e Democracia. Em 1985, soube que tinha o vrus HIV. Em 1986, ajudou a fundar a Associao Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), da qual foi presidente durante 11 anos. Mesmo doente Betinho nunca abandonou a militncia poltica. Em 1992, integrou a liderana do Movimento Pela tica na Poltica, que serviu de base para a Ao da Cidadania Contra a Misria e Pela Vida. Morreu em 1997, aos 61 anos. Cf. www.ibase.org.br.
http://www.ibase.org.br/ -
7
nossa sociedade um campo frtil para as iniciativas e mobilizaes em torno da
fome e da segurana alimentar nas referidas dcadas.
O fato que, nas dcadas de 1980 e 1990, a persistncia de nmeros
reveladores da fome e da pobreza, agora com maior visibilidade pblica, aliada
situao econmica em constante flutuao, proporcionou o afloramento tambm da
mobilizao em torno da necessidade de uma poltica de 'segurana alimentar' no
Brasil, ainda que restrita a poucos segmentos organizados.
Como nutricionista e profissional de sade pblica, a prtica me levou a
buscar uma reflexo mais profunda e rigorosa em relao aos programas
assistenciais de combate fome e desnutrio, dados seus tmidos resultados.
Minha insero no Mestrado em Polticas Sociais, na Universidade Estadual do
Norte Fluminense (UENF) tinha como alvo averiguar as formas como se gestavam
as polticas sociais, mais especificamente, como eram pensadas as polticas que se
materializavam nos programas assistenciais de distribuio de alimentos, seus
impedimentos e constrangimentos, assim como o trajeto percorrido por aqueles que
se mobilizam em torno da formulao dessas polticas.
Decidi privilegiar aquelas personagens que se envolveram na mobilizao
por uma poltica de segurana alimentar no Brasil identificando grupos e eventos,
frutos das interaes sociais, que fizeram com que a discusso em torno do tema se
mantivesse contnua, apesar de momentos de maior ou menor visibilidade pblica.
J demonstrava aqui minha opo por entender o combate fome como dinmica
social, relacionada aos mais distintos elementos, no como uma projeo linear e
contnua.
Estudar poltica social sob este ponto de vista significava, para mim, desviar
o foco da tradicional avaliao de resultados em favor do estudo dos processos
polticos e sociais, atravs dos quais eu poderia atentar para as continuidades e
descontinuidades das aes em prol da implantao de uma poltica definitiva de
combate fome no Brasil, neste caso, uma poltica de segurana alimentar,
compreendida como relacionada aos estudos das dcadas de redemocratizao do
pas.
Na busca por reflexes tericas que auxiliassem neste trabalho, percebi que,
na literatura poltica, a partio dos conceitos de Estado e sociedade civil (esta
excluindo as foras econmicas) no me eram suficientemente explicativas. Por
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8
outro lado, na literatura mais estritamente sociolgica, a concepo de sociedade
como parte dos indivduos em ao levava a uma fetichizao do primeiro
conceito, o que as teorias contemporneas tendiam a recusar. Alm disso, o foco
estrito nas aes coletivas obrigavam-me a compromissos tericos com uma
determinada viso de homem e ser racional que no permitiam aflorar a mais
noo mais ampla dos processos que podemos chamar, por exemplo, de fenmenos
de massa.
No dilogo com distintas perspectivas tericas, e na percepo de seus
alcances e limites, tive acesso a um dos clssicos da sociologia, de resgate recente,
porm intenso, entre os socilogos brasileiros: Georg Simmel (1858-1918).
Curiosamente, no era o Georg Simmel ensasta, autor de escritos sobre a
metrpole e seus impactos na construo de subjetividades, a pea poderosa na
equao de minhas questes. Foi, sim, o Georg Simmel metodlogo que, sem
nunca ter produzido acerca da poltica de seu tempo, propiciou as ferramentas para
que eu estudasse a dinmica social, em suas continuidades e descontinuidades.
Autor do conceito de sociao (Vergellschaftung), Simmel o define como
uma unidade de ao que pressupe a existncia de indivduos em interao
(Wechselwirkung), isto , uma ao recproca produzida por determinados instintos
(Trieben), inclinaes ou para determinados fins. A sociao a sociedade en statu
nascendi., o modo escolhido por Simmel para analisar a vida em sociedade,
privilegiando as energias e interaes em detrimento de uma noo pouco realista
da sociedade. Cultura e as instituies sociais so formadas - e transformadas -
nas interaes cotidianas que necessariamente supem foras contrrias em
relao5
.
As relaes sociais so condicionadas de modo absolutamente
dualista: a unio, a harmonia, a cooperao que valem tanto como
foras socializantes, devem ser atravessadas pelo distanciamento,
concorrncia, repulso, para dar lugar s configuraes reais da
sociedade: as grandes formas de organizao, que constroem ou
que parecem construir a sociedade, as quais devem continuamente
5 Distintamente do conceito hegeliano da dialtica moderna, Simmel no postula que as contradies so solucionadas numa sntese superior; entende que as oposies transformam-se incessantemente em novas interaes. So estas que garantem a dinmica social Cf. Vandenberghe, 2001, p. 119.
-
9
ser turvas, desequilibradas, frgeis. (Vandenberghe, 2001:32. A
traduo de Miglievich Ribeiro).
Notando que, em grupos sociais os mais plurais possveis e de insondveis
motivaes, ainda assim se encontram as mesmas relaes formais dos indivduos
entre si, isto , formas sociais recorrentes produtos de oposies/interaes -
tais como, dominao e subordinao, competio e cooperao, diviso do
trabalho e aproximao, formao de partidos e representao, a sociologia
simmeliana prope o estudo da dinmica social propriamente dita.
As motivaes envolvidas nas vrias fases de elaborao e implementao
de uma poltica social so infinitas. O desafio de trazer a perspectiva simmeliana,
que no se prende ao contedo motivacional dos agentes, mas sim s formas
sociais que estes geram - e nas quais so gerados - ao interagirem, possibilitou-me
a observao do campo de atuao onde atores se mesclavam e se confundiam,
assim como a percepo de uma proximidade entre fatos aparentemente isolados.
Assim, a opo de se estudar crculos sociais formando organizaes e
instituies, traz em si a possibilidade de que se tenha uma histria mais realista a
narrar, de modo que a construo da poltica de segurana alimentar no Brasil, a par
dos processos de consolidao democrtica em nosso pas, ganhe uma concretude
que apenas a anlise das configuraes sociais, e no da sociedade como uma
entidade supra-individual permite. Ao mesmo tempo, o olhar acerca das
configuraes sociais convida percepo das resistncias e persistncias das
formas sociais numa anlise histrica de alcance mdio.
Para alcanar meu objetivo, inicialmente efetuei uma pesquisa documental,
onde busquei por todo tipo de documento referente segurana alimentar,
privilegiando, porm, aqueles em que a descrio histrico-poltica estivesse
presente. Ao final da busca, selecionei 57 documentos que, em sua grande maioria,
eram assinados por ONGs, embora tenha encontrado tambm autores em
Universidades, no Governo Federal, em partido poltico e na Igreja Catlica . Cabe
salientar aqui a pequena quantidade de dissertaes e teses, bem como publicaes
acadmicas sobre o tema6
6 As dissertaes das quais tive conhecimento foram: "Segurana Alimentar: a interveno da ABAG no campo de disputa e produo ideolgica", por Paulo Marques Eduardo Moruzzi (CPDA/UFFRJ, 1996); "Segurana Alimentar e Sustentabilidade - Complementaridades e Conflitos", de Francisco Menezes (CPDA/UFRRJ, 1996), sob orientao de Renato Srgio Jamil Maluf; "Participao da sociedade civil no Governo Itamar Franco: Conselho Nacional de segurana alimentar-CONSEA", de
at o momento.
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A explorao inicial dos dados possibilitou-me definir o perodo mais relevante
no qual a questo da segurana alimentar se tornou pblica no Brasil: a dcada de
80 e meados da dcada de 90, bem como identificar informantes privilegiados sobre
os eventos envolvidos; dentre estes, as personagens que escreviam e/ou que
participaram dos acontecimentos identificados.
Durante a realizao do trabalho, visitei a sede do Instituto Brasileiro de
Anlises Sociais e Econmicas (IBASE), a Assessoria e Servios a Projetos em
Agricultura Alternativa (AS-PTA), o Curso de Ps-Graduao em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ). Nestes locais, mantive contatos com protagonistas de algumas das aes
envolvendo as estratgias de combate fome no Brasil: Francisco Menezes,
economista com mestrado no tema pelo CPDA, e que coordenava a Segurana
Alimentar do IBASE; Jean Marc von der Weid, engenheiro qumico de formao,
com ps-graduao em economia, fundador da AS-PTA, ONG brasileira que
trabalha com tecnologia voltada agricultura ecolgica - segundo seu relato, a AS-
PTA tem atuado rea de segurana alimentar desde sua fundao, mas sua
insero na discusso mais poltica e intelectual sobre o assunto se deu a partir de
1994/95, quando comeou a preparao da Conferncia Mundial de Alimentao de
1996. Renato Srgio Jamil Maluf, economista com doutorado em Economia pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); em 1989, transferiu-se para a
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), onde produziu vrios
trabalhos versando sobre segurana alimentar7
Mantive dilogo e recebi informaes via correio eletrnico com entrevistados
e com outros informantes, como Flvio Valente, mdico, com Mestrado em Sade e
.
Rosana Sperandio Pereira (ICS/UnB, 1997), sob orientao de Pedro Demo; Abastecimento e Segurana Alimentar: o caso do trigo, de Plinio A. Pereira Jr. (CPDA/UFRRJ, 1998) sob orientao de Renato Srgio Jamil Maluf; "O conceito de Segurana Alimentar e a Formao de Polticas no Brasil: Articulaes com o Debate sobre a Reforma Agrria", de Marcelo Rodrigues Kinouchi (FCF/UNESP, 1998), sob a orientao de Vera Mariza Henriques de Miranda Costa; "Segurana Alimentar", de Sandrine Estella Peeters (COPPE/UFRJ, 1999), sob orientao de Miguel de Simoni; "Contribuio da tecnologia de irradiao de alimentos no fornecimento de segurana alimentar e nutricional", de Sonia Regina Schauffert Ferreira (IN/UFRJ, 1999), sob orientao de Edgar Francisco Oliveira Jesus. Teses, apenas: "Segurana Alimentar como um princpio ordenador de polticas pblicas: implicaes e conexes para o caso brasileiro", de Lavinia Davis Rangel Pessanha (CPDA/UFRRJ, 1998), sob orientao de John Wilkinson, e Manejo de Estoques e Segurana Alimentar no Brasil: repensando estratgias, de Ebenezer Pereira Couto (CPDA/UFRRJ, 2000), sob orientao de Renato Srgio Jamil Maluf. 7 AS entrevistas se deram na cidade do Rio de Janeiro/RJ. Conversei com Francisco Menezes na sede do IBASE, em 06 de fevereiro de 2001; Jean Marc von der Weid na sede da AS-PTA, em 07 de fevereiro de 2001; estive com Renato Maluf no CPDA, para entrevist-lo, em duas ocasies: a primeira, em 13 de julho de 2001, e a segunda, em 24 de janeiro de 2002.
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Nutrio por Harvard, com antiga militncia na rea da sade no tocante rea de
alimentao e nutrio, e Dom Mauro Morelli, bispo catlico de Duque de Caxias,
municpio da Baixada Fluminense/RJ.
Nas entrevistas, utilizei um roteiro semi-estruturado, idealizado a partir da
busca exploratria de dados. O mtodo de entrevista realizado foi, seguindo
Richardson (1999:210), o de entrevista guiada. Seguindo este modelo, levei um
roteiro de tpicos a serem abordados, mas sem perguntas pr-formuladas estas
foram feitas no processo da entrevista. As entrevistas foram gravadas e transcritas
por mim integralmente, logo em seguida, permitindo-me observar lacunas ou
ambigidades e retornar o contato com o entrevistado.
Os entrevistados, personagens de um s enredo, apontaram-me outros
nomes e possibilidades de entendimento de conflito, consenso, aproximaes,
distanciamentos, que criaram a histria da poltica de segurana alimentar no Brasil.
Ao mesmo tempo, contrastei as diferentes falas, em suas
complementaridades e antagonismos, assim como os documentos colhidos na
pesquisa a acervos, de modo a entender as falas nos distintos contextos em que
foram produzidas. No seria de outra maneira capaz de identificar as formas
variadas que os debates e as aes em torno da segurana alimentar ganharam no
Brasil.
A anlise do tipo documental (Richardson, 1999), estritamente temtica, teve
como objetivo bsico determinar o mais fielmente possvel os fenmenos sociais
aqui, tambm as entrevistas foram consideradas documentos.
Os momentos de maior nfase no tema da segurana alimentar persistem ao
lado dos momentos de menor nfase; as personagens parecem conquistar formas
mais slidas de organizao e visibilidade em dadas circunstncias, enquanto que,
em outras, a impresso clara de um esvaziamento da mobilizao. Entretanto, se a
dinmica social traduz continuidades e descontinuidades, na tentativa de
sistematiz-las, busquei a reconstruo da histria (ou das histrias) dos
acontecimentos e dos crculos sociais que expressam os esforos e embates na
sociedade brasileira em torno da segurana alimentar.
A dissertao ficou assim organizada: alm da introduo e das
consideraes finais, foram elaborados trs captulos. O captulo 1 retoma a
discusso da dicotomia sociedade civil/Estado, atravs do histrico da noo de
sociedade civil. Se, proponho uma anlise que reveja tal dicotomia, creio caber antes
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uma reviso dos distintos quadros tericos nas quais a mesma foi construda.
O captulo 2 introduz a sociologia de Georg Simmel: a rigor, o mvel da
pesquisa foi reunir elementos que proporcionassem uma resposta pergunta: que
formas sociais estiveram presentes na mobilizao em prol da poltica de
segurana alimentar no Brasil? Desta perspectiva, a obra de Georg Simmel, matriz
terica da sociologia relacional, explicitada, visando a melhor compreenso de sua
aplicao em minha pesquisa.
Aps apresentar Simmel, no captulo 3, trarei ao leitor a reconstruo do
percurso acidentado da constituio dos debates, aes e mobilizao acerca de
uma poltica de segurana alimentar no Brasil.
Ao final deste trabalho, espero ter oferecido ao leitor uma viso, parcial, mas
no pouco objetiva8
8 No pretendo, com esta afirmao, passar a idia de que o trabalho esteja sustentado por uma crena na 'neutralidade', nem tampouco a situao inversa, isto , que escapo da expectativa de identificar e explicar fenmenos sociais. Tendo a acatar a afirmao de Max Weber (1989:87), quando disse "No existe qualquer anlise cientfica puramente 'objetiva' da vida cultural ou (...) dos 'fenmenos sociais', que seja independente de determinadas perspectivas especiais e parciais, graas s quais estas manifestaes possam ser, explcita ou implicitamente, consciente ou inconscientemente, selecionadas, analisadas e organizadas na exposio, enquanto objeto de pesquisa". Nesse sentido, admitindo as escolhas tericas, Weber no abre mo do rigor e da intersubjetividade no processo de pesquisa.
, dos acontecimentos que avultaram em torno da busca por uma
poltica de segurana alimentar em nosso pas, e tambm da abrangncia e
efetividade da utilizao dos crculos sociais ou formas de sociao como modo de
estudo das dinmicas sociais que direcionaram e definiram as polticas sociais num
contexto marcado pela descontinuidade poltica, tal como o brasileiro, bem como as
novas formas sociais existentes na definio e implementao de polticas.
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Captulo 1 Problematizando a dicotomia 'sociedade civil/Estado'
Considera-se que a retomada do conceito de sociedade civil na
interpretao da realidade social cresceu medida que a poltica ultrapassou a
arena dos agentes polticos tradicionais, mobilizando novas dinmicas sociais. Na
sociedade contempornea, os indivduos interagem em inmeros 'crculos sociais',
institucionalizados em maior ou menor grau, entrelaando mundo pblico e privado,
estes freqentemente representados como Estado e sociedade civil. O esforo
efetuado neste captulo o de demonstrar a importncia de se rever teorias nas
quais a bipartio Estado e sociedade civil foi construda, a iniciar pelos 'clssicos'.
Tambm, procura-se salientar a existncia de leituras distintas acerca do significado
de 'sociedade civil', que ora incorpora as relaes econmicas ou relaes de
mercado; ora prope uma apartao entre sociedade civil e mercado. Sobretudo,
ressaltar que, para alm das diferentes significaes e usos tericos, o conceito est
presente nos discursos dos mais variados atores sociais e polticos.
1.1 Sociedade civil: antecedentes e a leitura de Hegel e Marx
Se, em Aristteles, que viveu de 384 a 322 a.C., a idia de sociedade civil
sugeria a existncia de uma 'comunidade pblica tico-poltica' de iguais, sua
perspectiva organicista no exclua a 'sociedade poltica' da 'sociedade'. Os
jusnaturalistas, de Thomas Hobbes a Emmanuel Kant, compreendiam que
sociedade civil representava a sociedade regulada por algum tipo de autoridade
reconhecida capaz de assegurar a liberdade, a segurana, a convivncia pacfica
entre os homens. Por outro lado, tenderam a v-la como produto do 'contrato social',
de razo humana, portanto. exceo de Rousseau, tambm identificaram a
sociedade civil poltica. Mesmo na diversidade de discursos, inauguraram o
conceito moderno de sociedade civil (Costa, 1997).
A partir do sculo XVIII, 'sociedade civil' ganhou um sentido semntico
autnomo em relao poltica, quando a expresso 'civil' passou a significar
'civilidade' ou 'civilizao', destacando a condio moral e os costumes da
sociedade, sem qualquer conexo com o Estado (Merquior, 1991).
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A idia moderna de sociedade civil, no quadro do Iluminismo, est associada
afirmao de liberdades individuais bem como resistncia de indivduos frente a
Estados autoritrios - da a contraposio dual Estado/sociedade civil - como pode
ser observado pelo percurso histrico do conceito.
Adam Fergusom, em 1717, combateu a idia de que o Estado fosse a
extenso imediata da sociedade; em Thomas Paine, encontra-se a defesa da
limitao do poder estatal para a preservao da sociedade civil. Seu surgimento era
a anttese da sociedade tradicional ou o complexo monrquico-aristocrtico-feudal.
Sua existncia no dependia de vnculos consangneos ou de tradio. Baseava-se
noutras formas de interao no-tradicionais e seu papel inclua o controle do
Estado, cabendo aos 'civis' legitimar as decises tomadas pelo/no Estado.
Em Princpios da Filosofia do direito, publicado em 1821, Hegel (1770-1831)
chamou de sociedade civil a sociedade pr-poltica, isto , a fase da sociedade
humana at ento chamada de sociedade natural (Bobbio, 1999). Hegel
compreendeu a sociedade civil como uma esfera social intermediria, situada entre a
famlia e o Estado, incorporando a esfera da economia, o aparato jurdico e a
administrao pblica, e a corporao - o espao social onde os indivduos se
apresentam vinculados pelas carncias materiais:
"Sociedade civil, associao de membros, que so indivduos
independentes, numa universalidade formal, mediante suas
necessidades e a constituio jurdica como instrumento de
segurana da pessoa e da propriedade e por meio de uma
regulamentao exterior para satisfazer as exigncias particulares e
coletivas. Este estado exterior converge e se rene na Constituio
do Estado, que o fim e a realidade em ato da substncia universal
e da vida pblica nela consagrada" (Hegel, 1997:155).
Carlos Nelson Coutinho (1998) observou que Hegel compreendeu a famlia
como a primeira forma objetiva de comunidade universalizadora de interesses - isto
, definidora efetiva de normas ticas para a ao dos indivduos. Nesta, contudo,
inexistia o ideal de pblico; pessoas singulares, em suas atividades cotidianas,
interagiam. Nesse aspecto, a sociedade civil era uma etapa frente na histria da
humanidade visto que nela, comeavam a surgir o que o filsofo poltico designou
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como atores coletivos.
No se tratava, na sociedade civil, da possibilidade de instaurao de uma
tica universal; embora, nesta, as vontades humanas j no fossem apenas
singulares (individuais), mas corporativas (particulares) como nica forma de
alcanarem seus fins. A sociedade civil, portanto, era um campo de lutas tanto do
interesse privado 'singular' de todos contra todos quanto do interesse privado
singular contra o interesse de grupos particulares. Nesta disputa, os interesses
privados particulares de grupos vencem os interesses privados singulares.
"A sociedade civil contm os trs momentos seguintes: a) a
mediao da carncia e a satisfao dos indivduos pelo seu
trabalho e pelo trabalho e satisfao de todos os outros: o sistema
de carncias. b) a realidade do elemento universal da liberdade,
implcito neste sistema, a defesa da propriedade pela justia. c) a
precauo contra o resduo de contingncias destes sistemas e a
defesa dos interesses particulares como algo comum, pela
administrao e pela corporao" (Hegel, 1997:173).
No por reconhecer na sociedade civil o lcus dos associativismos que
Hegel deixou de critic-la como claramente mercantil-capistalista. Recusou a
concepo de sociedade civil como espao de realizao do 'bem comum' tal como
Mandeville9
Hegel prosseguiu no sentido de conceber que assim como os homens
necessitaram associar-se na sociedade civil, tambm as corporaes necessitaram
superar-se a fim de se preservarem e terem suas vontades particulares plenamente
realizveis numa forma de ordenamento mais elevada; convertem-se, assim, no
previu em sua mxima 'vcios privados, virtudes pblicas'. Tambm no
aderiu noo de Estado Liberal capaz de gerenciar os interesses particulares.
Neste ponto, como admirador de Rousseau, privilegiou a noo de 'vontade geral'
mas se recusou a entend-la como realizvel apenas na supresso das liberdades
individuais.
9Bernard de Mandeville, pensador holands nascido em 1670. Segundo ele, no existe nexo necessrio entre virtudes privadas e virtudes pblicas. Ao contrrio, em sua clebre frmula "vcios privados, virtudes pblicas", assegurava que a imperfeio humana, ao abrigar uma infinidade de talentos e preferncias, responsvel pelo que a humanidade agregadamente possui de melhor, atribuindo s 'artes do bom governo' a garantia de uma converso dos vcios privados em virtudes pblicas.
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'esprito do Estado', dado que no Estado que encontram os meios para alcanar
seus fins particulares.
Assim, em Hegel, a sociedade civil representava um campo de articulao
de particularidades. Tal articulao representada nas associaes e nas instituies
particulares a condio de sada do amorfismo social, visto que indivduos
singulares no passam de uma 'massa disforme'; porm, o pluralismo das vontades
particulares h que se conciliar com a prioridade da vontade geral, e este o papel
do Estado.
Segundo Bobbio (1999), o Estado hegeliano contm e supera a sociedade
civil; transformando uma universalidade meramente formal o reino das
particularidades - em universalidade objetiva, em uma realidade orgnica: "... a
natureza do Estado no consiste em relaes de contrato, quer de um contrato de
todos com todos, quer de todos com o prncipe ou o governo" (Hegel, 1997:93). A
unio dos interesses particulares com o interesse geral no se d fora do Estado
Racional. Para Hegel, no existia a possibilidade de 'esfera pblica' - espao
intersubjetivo criado por meio do contrato e do consenso - fora da burocracia
estatal; assim como a auto-gesto ou a democratizao do poder so faces do
individualismo e do contratualismo, que Hegel rejeitava como capazes de realizar
aquilo que prometem: a democracia propriamente dita.
Contrariamente a Hegel, em Karl Marx (1818-1883), o Estado foi
considerado o elemento subordinado da histria. Na perspectiva do materialismo
histrico e dialtico, a sociedade entendida como modo de produo determinado
pela luta entre as classes sociais que definem o 'modo' propriamente como cada
sociedade produz e organiza seu 'produto'. So as relaes sociais - foras
produtivas e relaes de produo - que formam 'sociedade'. As instituies
polticas, jurdicas, ideolgicas so conformadas pela dinmica estrutural - base
econmica - que muito mais ampla que as formas organizacionais que desta
derivam no plano superestrutural.
Assim sendo, Marx no d ao Estado - superestrutura - um papel central no
modo pelo qual uma sociedade historicamente se constitui. O Estado uma
instituio dentre outras que vo legitimar o que acontece no 'solo real da histria',
isto , no modo de produo de uma sociedade. Questionando o Estado-Racional
formulado por Hegel, identificando-o to apenas como 'coletivo ilusrio' ou 'comit
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executivo da classe dominante', Marx inverteu o idealismo hegeliano - elaborando o
materialismo histrico e dialtico - e no admitiu a possibilidade da tica pblica se
realizar num 'Estado' que nasce de uma 'sociedade civil', tal como definida por
Hegel, como reino dos particularismos.
Marx pouco trabalhou com os conceitos de Estado e sociedade civil, no por
descuido, mas devido sua tese, que relativiza a credibilidade desta concepo de
sociedade. Estado e sociedade civil, para Marx, constituem uma construo social
prpria da ordem capitalista onde a sociedade civil confunde-se com a estrutura, isto
, com as condies materiais de existncia da qual deriva a superestrutura - nesta,
o Estado - como pode ser observado no clebre prefcio na Contribuio Critica da
Economia Poltica:
"...na produo social da prpria existncia, os homens entram em
relaes determinadas, necessrias, independentes da sua vontade;
estas relaes de produo correspondem a um grau determinado de
desenvolvimento de suas foras produtivas materiais. O conjunto
dessas relaes de produo constitui a estrutura econmica da
sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura
jurdica e poltica e qual correspondem formas sociais determinadas
de conscincia . O modo de produo da vida material condiciona o
processo de vida social, poltica e intelectual" (Marx, 1992:82).
Na carta de Marx a Annenkov, escrita em 1846, pode-se perceber que a
idia de sociedade civil em Marx estava longe de ser uma concepo esttica, j que
era sempre relacional ao estgio de desenvolvimento das foras produtivas:
"Que a sociedade, qualquer que seja a sua forma? O produto da
ao recproca dos homens. Podem os homens eleger livremente
esta ou aquela forma social? Nada disso. A um determinado nvel do
desenvolvimento das foras produtivas dos homens corresponde uma
determinada forma de comrcio e de consumo. A determinadas fases
de desenvolvimento da produo, do comrcio, do consumo
correspondem determinadas formas de organizao social, uma
determinada organizao da famlia, das camadas sociais ou das
-
18
classes; em sntese: uma determinada sociedade civil. A uma
determinada sociedade civil corresponde um determinado Estado
poltico, que no mais que a expresso oficial daquela" (Marx,
1992:85).
A sociedade civil era fonte e expresso do domnio da burguesia. Assim,
tanto a sociedade civil quanto o Estado que lhe era imanente no se concretizavam
como local da esfera pblica, mas sim de particularismos. Diferentemente dos
particularismos identificados por Hegel, capazes de se transmutar em vontade geral,
para Marx os particularismos revelavam contradies de classes economicamente
antagnicas. Para ele, o capitalismo s fez acentuar a contradio e simplificar os
conflitos, levando-os ao pice ao colocar em plos opostos a burguesia e o
proletariado. Marx considerava que, para que a esfera pblica se concretizasse, a
classe proletria representando a imensa parcela da humanidade historicamente
oprimida - deveria suprimir o poder poltico da camada ou classe social dominante -
a burguesia e seu Estado burgus. A noo de 'comunismo' implicava, portanto, em
uma sociedade auto-regulada sem classes, logo, sem sociedade civil ou Estado.
Em Sobre a questo judia, artigo de 1844, Marx refora a idia de sociedade
civil como o campo de atuao do privado:
"O Estado poltico acabado ou perfeito, por sua essncia, a vida
genrica do homem por oposio sua vida material. Todas as
premissas dessa vida egosta permanecem de p margem da
esfera do Estado, na sociedade civil, mas como qualidade desta. Ali
onde o Estado alcanou o seu verdadeiro desenvolvimento, o
homem leva uma dupla vida, no s no plano do pensamento, da
conscincia, como tambm da realidade, da vida: uma vida celestial
e outra terrena; a vida na comunidade poltica, na qual se considera
como ser coletivo, e a vida na sociedade civil, na qual atua como
particular ..." (Marx, 1992:187).
1.2 A sociedade civil como bero da democracia em Tocqueville
Outras vertentes recusam a proposta marxista, e insistem na valorizao da
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sociedade civil como possibilidade de participao dos cidados comuns nas
polticas de Estado. Os escritos do francs Alexis de Tocqueville (1805-1859), por
exemplo, tm sido constantemente revisitados tambm para avaliar a relao entre
sociedade civil e democracia.
No primeiro volume de seu livro, A Democracia na Amrica (2000), publicado
pela primeira vez em 1835, Tocqueville empenhou-se em trazer tona a
problemtica da liberdade na democracia, apontando as virtudes e limitaes da
equao liberdade e igualdade, tema caro a liberais e marxistas.
Franois Furet, no prefcio do primeiro volume de A Democracia na Amrica
comentou que
"...o famoso captulo (...) sobre as associaes mostra que estas
desempenham na sociedade democrtica um papel comparvel ao
da aristocracia na sociedade aristocrtica, constituindo outros tantos
corpos coletivos que manifestam a iniciativa do social
independentemente do Estado. Por isso, a anlise de Tocqueville
consiste no apenas em estudar a paixo igualitria, ainda que esta
seja central, mas compreender como, no caso americano, a
democracia teceu uma rede de sentimentos, de idias e de
costumes que confere sociedade suas caractersticas distintivas e
sua vida particular" (Furet, 1998:XLIII).
A democracia desenvolve-se e fortalece-se atravs da multiplicao das
associaes voluntrias e grupos de interesse. Em seu relato sobre as associaes
voluntrias encontradas na Amrica, Tocqueville observou que americanos de
diversas idades, condies e opinies se associavam constantemente, tanto em
termos comerciais e industriais, quanto nas formas religiosas e morais, srias ou
fteis, gerais ou particulares, grandes ou pequenas; estas, que lideravam os novos
projetos sociais, no o Estado ou os grandes proprietrios.
Analisando a democracia como fenmeno inelutvel da modernidade, porm
a ser aperfeioado, interessava-lhe demonstrar como esta poderia dar vida ao
chamado 'esprito pblico', a par do individualismo que marca a sociedade de
massa. Atribua consolidao das instituies democrticas um papel central na
viabilidade de uma sociedade de cidados ativos e virtuosos ainda que sob a gide
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das carncias materiais.
Tocqueville (2000), que sentia ainda muito proximamente os efeitos da
Revoluo Francesa, sabia que um regime democrtico poderia levar 'tirania da
maioria', uma forma de opresso at ento pouco mencionada entre os arautos do
regime democrtico. Por fim, temia que a democracia tambm resultasse na
negligncia do bem-estar da sociedade: uma tendncia ao individualismo
exacerbado e no-participao no espao pblico levaria ao descaso com o bem
comum, ao 'despotismo democrtico'.
Na fragilidade dos vnculos sociais tradicionais - o reforo do individualismo -
estava, paradoxalmente, a fora da democracia, ao permitir e encorajar os cidados
a formar associaes de todos os tipos e finalidades com base na igualdade entre os
indivduos. As associaes cvicas, ao promoverem o esprito de colaborao,
tornavam-se essenciais para a discusso dos assuntos pblicos:
"Os sentimentos e as idias s se renovam, o corao s aumenta e
o esprito humano s se desenvolve mediante a ao recproca dos
homens uns sobre os outros. Mostrei que essa ao quase nula
nos pases democrticos. portanto necessrio recri-las
artificialmente a. E isso somente as associaes podem fazer" (Op.
cit:134).
Atravs da vida associativa de Igrejas independentes e de associaes
voluntrias, os cidados americanos - que viviam em condies de igualdade
superior dos europeus - adquiriram a tica de interesse prprio bem
compreendido que contrabalanava a fora do individualismo, visto que supunha a
fuso entre os interesses pblico e privado. Reconhecia que as peculiaridades da
democracia dos Estados Unidos eram historicamente singulares, sendo devedoras
de seu estvel sistema institucional de leis e justia, com grande respeito pela lei, e
pelos 'hbitos do corao' do povo: o gosto da liberdade, um igualitarismo
espontneo espalhado por todos os nveis da sociedade, as virtudes privadas, o
associativismo, a importncia das comunidades locais, o interesse pelas causas
pblicas.
Uma articulao bem temperada entre associativismo e interesse
comunitrio, por um lado, e a livre expresso de direitos e interesses individuais de
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outro, dava, nos Estados Unidos da Amrica, a possibilidade de se definir a
sociedade civil no exerccio de sua misso: a definio e fiscalizao do papel do
Estado. Os poderes Executivo, Legislativo e Judicirio, por sua vez, representariam
no controle mtuo, a tima relao entre representados e representantes. Os riscos
da 'tirania da maioria' e do 'despotismo democrtico' poderiam ser freados ao se
garantir a liberdade igual de participao dos cidados na 'coisa'pblica.
1.3 Gramsci, marxismo ocidental e a renovao do conceito de sociedade civil
Antonio Gramsci, terico marxista italiano, admirador da revoluo
bolchevique ao mesmo tempo que seu crtico na maneira de sua realizao no
Ocidente - , detinha a mais forte convico de que toda revoluo era precedida por
um intenso trabalho de crtica, de penetrao cultural, de permeao de idias em
grupos antes refratrios.
Gramsci cr na tarefa da 'filosofia da prxis' enquanto ideologia superior,
coerente e orgnica a superar os julgamentos do mundo, confusos e contraditrios,
marcados por elementos 'egosticos-passionais', individualistas e corporativistas. A
'batalha cultural', a preparao ideolgica organizada, a luta pela hegemonia (da
direo poltico-cultural de uma sociedade), tinham um lcus por excelncia para
ocorrer: a sociedade civil.
O conceito de 'sociedade civil', no-fundamental em Marx, ganhou em
Gramsci grande relevncia, ao exprimir a mediao entre a infra-estrutura
econmica e o Estado 'em sentido restrito'. Arena privilegiada da luta de classe,
portanto, a incluir as relaes econmicas (distintamente da abordagem
habermasiana, por exemplo), a sociedade civil apresentava-se como um momento
constitutivo do Estado.
Na teoria ampliada do Estado de Gramsci, o Estado possui duas esferas
principais: "...por Estado deve-se entender, alm do aparelho governamental,
tambm o aparelho privado de hegemonia ou sociedade civil" (Gramsci, 1991:147).
Para Coutinho, o Estado gramsciano comporta a sociedade poltica - o Estado em
sentido estrito ou Estado-coero - e a sociedade civil, formada pelo conjunto das
organizaes responsveis pela elaborao e/ou difuso das ideologias, incluindo
sistema escolar, Igreja, partidos polticos, sindicatos, organizaes profissionais,
organizao material da cultura, dentre outras (Coutinho, 1999:127).
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Gramsci acreditava que a superposio entre as noes de Estado e
governo provinha de uma 'confuso' entre a sociedade civil e a sociedade poltica,
"pois deve-se notar que na noo geral de Estado entram elementos que tambm
so comuns noo de sociedade civil (neste sentido, poder-se-ia dizer que o
Estado = sociedade poltica + sociedade civil, isto , hegemonia revestida de
coero)" (Op. Cit:149) .
Gramsci salientou que nem tudo o que faz parte da sociedade civil deve ser
considerado como 'bom' j que ela poderia, por exemplo, ser hegemonizada pela
chamada 'direita'. De maneira anloga, nem tudo o que provm do Estado 'mau',
pois este pode expressar demandas universalistas que se originam nas lutas das
classes subalternas (Coutinho, s.d.).
A sociedade civil, como mundo das livres iniciativas, dos conflitos
ideolgicos, dos cruzamentos culturais e de definio poltica emerge como espao
de movimentao de diversas foras concentradas em partidos, organizaes,
grupos, que no se apresentam, ao contrrio, como 'grupos desinteressados'. Desta
forma, nos trabalhos de Gramsci, o conceito de hegemonia ganhou importncia
central, j que expressa potencialmente a liderana cultural-ideolgica de uma
classe sobre a outra na sociedade civil:
O exerccio normal da hegemonia, (...) caracteriza-se pela
combinao da fora e do consenso, que se equilibram de modo
variado, sem que a fora suplante em muito o consenso, mas, ao
contrrio, tentando fazer com que a fora parea apoiada no
consenso da maioria, expresso pelos chamados rgos da
opinio pblica - jornais e associaes -, os quais, por isso, em
certas situaes, so artificialmente multiplicados. (Gramsci,
2000:95).
A compreenso da sociedade civil como o lcus da luta de classes a se dar
pela conquista da direo poltica mais do que pela dominao/coero - tarefa, por
excelncia, do Estado 'em sentido estrito' - coloca Gramsci em posio antagnica
dos pensadores liberais, sobretudo, quando se observa que a noo de estado em
sentido amplo visa a possibilitar a efetivao de uma sociedade auto-regulada, numa
era ps-derrubada do capitalismo.
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1.4 O resgate contemporneo do conceito de sociedade civil
H cerca de pouco mais de duas dcadas, observa-se uma reviso terica
dos conceitos de Estado e sociedade civil, clssicos das literaturas sociolgica e
poltica.
Srgio Costa (1997) aponta que, no leste europeu, esse debate acendeu-se
no incio dos anos 70, como crtica 'onipresena' do Estado no 'socialismo real',
enquanto que, na Amrica Latina, tal debate esteve associado resistncia contra
os regimes autoritrios. O tema no novo, mas seus usos contemporneos
supem a 'emergncia da sociedade civil', a partir da segunda metade do sculo XX,
evidenciada nos movimentos sociais e repercutida na mdia, assim como as crises
de legitimao - quer de Estados capitalistas quer socialistas - que obrigaram a um
retorno dos critrios de definio do que se chama 'democracia' por lideranas
polticas, intelectuais, entre outras, que se viram diante do desafio de redefinir suas
prprias definies" (Op. cit:5) .
Retomando o debate internacional contemporneo, Srgio Costa (1997)
identifica duas vertentes interpretativas da sociedade civil, as quais ele denominou
moderada e enftica. Na chamada corrente moderada, sociedade civil tratada
como uma categoria preponderantemente emprica, uma descrio das
conformaes poltico-sociais existentes no contexto liberal-democrtico. Aqui, no
h novidade em se falar 'sociedade civil organizada', dado que esta foi a condio
mesma do surgimento do Estado-Nao no advento da modernidade burguesa.
Pode-se dizer que, nesta perspectiva, a sociedade civil a 'outra face da moeda'
num regime poltico pautado no Estado democrtico. Dentre os autores desta
corrente, segundo Costa, esto Edward Shills e Ralph Dahrendorf.
Por sua vez, os tericos da corrente enftica defendem o fortalecimento da
sociedade civil como uma nova 'ordem social' distinta da j conhecida e que
representaria o ndulo normativo de um projeto radical democrtico; dentre alguns
tericos desta linha, cita: Charles Taylor; John Keane; Michael Walzer; Cohen e
Arato.
Andrew Arato (1995) interpretou positivamente a recuperao do conceito de
sociedade civil, considerando-o prenncio de uma organizao autnoma da
sociedade, na reconstruo de laos sociais 'fora' de Estados autoritrios, laos
esses concebidos como formadores de uma esfera pblica independente e separada
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de toda forma de comunicao oficial, estatal ou controlada por partidos. Porm,
Arato salientou que o uso metodolgico do conceito de sociedade civil possui
inmeras ambigidades, j que mesmo quando se diferencia sociedade civil de
sociedade poltica e sociedade econmica - tal qual o seu caso - permanecem "...
obscuras as dimenses da sociedade civil que estariam fundamentalmente
envolvidas". Para Arato,
"...a unidade da sociedade civil s bvia quando considerada de
uma perspectiva normativa. Sem dvida, o dinheiro e o poder
representam a efetiva razo de ser de muitas associaes da
sociedade civil e existem partidos polticos que, agindo como
movimentos sociais, procuram adotar, por exemplo, uma lgica
antiburocrtica e de democracia direta. Neste ltimo caso, os
argumentos funcionais que contm predies especificamente
empricas (...) demonstram bem as dificuldades envolvidas na
questo." (Op. cit:21-2).
Norberto Bobbio (1999:49) chamou a ateno sobre a problemtica
utilizao deste conceito, pois, segundo ele, "...o conceito de sociedade civil (...)
usado, at mesmo na linguagem filosfica, de modo menos tcnico e rigoroso, com
significaes oscilantes, que exigem uma certa cautela na comparao e algumas
precises preliminares". fato que, dadas as diferentes formas de apropriao do
conceito de sociedade civil pelas diversas vertentes intelectuais e polticas, se
busca, em diferentes estudos, uma determinao especfica 'de qual sociedade
civil est se falando'.
Jrgen Habermas (1984), percebeu a sociedade como sistema social,
cujos sub-sistemas so o Estado e o Mercado - ambos regidos pela moralidade
instrumental- , a sociedade civil, lcus da esfera pblica - a ser regida pela razo
comunicativa, se as foras instrumentais assim permitirem e, por fim, o mundo da
vida, como a esfera das subjetividades.
Ao tratar da esfera pblica, demonstrou que, nas primeiras constituies
modernas copiou-se o modelo liberal da esfera pblica burguesa, o qual garantiu
ser a sociedade civil a esfera da autonomia individual, onde cidados definiam o
bem pblico na arena de debates. Contraposto sociedade civil, existia o Estado,
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limitado a poucas funes, tal como garantir a liberdade na sociedade civil. Na
esfera pblica, a se desenvolver na sociedade civil, a autoridade do Estado deveria
ser, portanto, restrita e legitimada por cidados politicamente ativos.
Habermas atentou para a mudana estrutural da esfera pblica, tanto no
aspecto de sua instrumentalizao como na restrio de seus efetivos participantes.
A mudana estrutural da esfera pblica habermasiana trouxe para dentro dela as
coligaes econmicas; as organizaes de massa; os representantes polticos das
foras culturais e religiosas. Segundo Habermas, a esfera pblica tornou-se o local
de intensa concorrncia dos interesses privados organizados frente ao Executivo
intervencionista, o que ele identificou como uma 'refeudalizao da sociedade':
"... medida que, com a delimitao entre setor privado e setor pblico,
no s instncias polticas passam assumir certas funes da esfera
da troca de mercadorias e do trabalho social, mas tambm
inversamente, foras sociais passam a assumir funes polticas. Por
isso que essa refeudalizao tambm se estende prpria esfera
pblica poltica: nela, as organizaes procuram compromissos com o
Estado e entre si, se possvel com a excluso da esfera pblica..."
(Habermas, 1984:269)
Se, por um lado, Habermas acredita que a esfera pblica tenha se tornado,
tambm, o 'reino da competio' e dos interesses particularistas, devido sua
invaso pela lgica da eficcia econmica, por outro lado ele acredita na
revitalizao do conceito de sociedade civil. Cr que a mquina administrativa do
Estado e o mercado cumprem metas que no poderiam se dar em outra lgica que
no a da adequao meios e fins - razo instrumental. Por outro lado, observa srios
riscos democracia se tal lgica se tornasse a nica forma de sociao entre os
indivduos. Supunha que, num nvel maior ou menor de idealizao, nichos de
oxigenao haveriam de permear a sociedade civil de modo a conformar modos de
interao entre indivduos no movidos exclusivamente para a sobrevivncia
material. Entende que o trabalho permite relaes sociais avessas ao debate 'entre
iguais' na sociedade capitalista; contudo, a construo de espaos pblicos de
interao, a par das relaes econmicas, por exemplo e, tambm, da vida privada,
poderiam se constituir em novas formas de solidariedade menos instrumentais e
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mais democrticas (Miglievich Ribeiro, 2002)
1.5 Sociedade civil e sua apropriao no contexto brasileiro
Marcos Pedlowski (2001), em reviso acerca do uso do conceito de
sociedade civil, demonstrou que, mesmo possuindo uma longa histria no
pensamento poltico ocidental, este conceito apenas recentemente reapareceu como
um tema central em debates contemporneos que englobam teorias do Estado,
desenvolvimento econmico, e democracia. O autor observou que o interesse
renovado na sociedade civil adveio de uma preocupao generalizada com o
fracasso de regimes polticos e estratgias econmicas, que caracterizou a dcada
de 80. Alm disso, salientou que existe a defesa, por parte de alguns autores, de
que a existncia de organizaes no-governamentais (ONGs) seja essencial para a
construo de sociedades civis fortes, ao mesmo tempo em que um crescente
nmero de autores questionam tais potencialidades.
No contexto brasileiro, pode-se observar que o uso do conceito 'sociedade
civil' cresceu a partir da segunda metade dos anos 70, poca em que se acentuaram
os processos de corroso da ditadura militar e a concomitante irrupo de novos
movimentos sociais. Interessa enfatizar que, no contexto da luta contra a ditadura, a
chamada 'sociedade civil' tornou-se sinnimo de resistncia ao Estado ditatorial, j
que no uso coloquial da palavra, a semntica indicava 'civil' como o contrrio de
'militar.
Na dicotomia civil/militar, tudo o que provinha da 'sociedade civil' era visto de
modo positivo, enquanto o inverso, isto , tudo o que dizia respeito ao Estado
(militar), aparecia com forte conotao negativa. O conceito ocupou ento, naquele
momento, uma funo mais poltica do que analtico-terica; contudo, abriu caminho
para os futuros usos no Brasil, da expresso sociedade civil como dissociada do
Estado.
Digno de observao o fato de que, quase ao mesmo tempo, cresce a
importncia da atuao das ONGs na sociedade brasileira. A intensificao da
discusso sobre o conceito - acompanhada da crtica ao estatismo - coincidiu com o
interesse dos organismos internacionais, principalmente o Banco Mundial, na
cooperao multilateral com as ONGs brasileiras, a partir dos anos 80.
Principalmente desde ento, as expresses 'sociedade civil' e 'ONGs' passaram a
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freqentar os mesmos locais.
Nanci Valadares de Carvalho 10
Valadares defende que as ONGs articulam um projeto de sociedade
transnacional que remonta sociedade autogerida do comunismo. Nesse sentido,
expressou sua crena na sociedade civil como sinnimo de uma comunidade de
indivduos automediados. Aposta na sociedade civil como ncleo da solidariedade
universal contra as formas ilegtimas dos Estados-Nao na contemporaneidade, ao
mesmo tempo em que reconhece no fortalecimento da sociedade civil a garantia da
democratizao do prprio Estado.
(2001) mostrou que, longe de serem um
fenmeno estritamente brasileiro, as ONGs eram manifestaes de um movimento
histrico europeu de origem altrusta, formadas a partir de um mesmo molde e
formato organizativo. A autora esclareceu que, desde o fim dos anos 60, a idia de
autogoverno tornou-se crescentemente assunto das discusses polticas em todas
as partes do planeta e, em menos de uma dcada, estes grupos alcanaram tanto
um padro de organizao quanto de objetivos sociais que os distinguiam das
entidades sociais tradicionais de filantropia.
As ONGs, grassroots ou organizaes-de-base estabeleceram-se por volta
dos anos 70 nos pases desenvolvidos e rapidamente se espalharam pelo mundo,
com o objetivo de responder s demandas legtimas de governabilidade de seus
associados, ento atendidas nos canais burocrticos estatais ou privados (Op. cit:
211). Desde seu nascimento, estas organizaes criaram polticas alternativas s
burocracias estatais:
"Pode-se ento afirmar que as Ongs, a despeito dos vnculos
associativos que porventura venham enlaar, so estritamente
independentes e autnomas em face ao Estado e ao mercado que,
at este ponto, haviam sido considerados os agentes exclusivamente
responsveis pelos processos de desenvolvimento econmico,
simblico, social e poltico das sociedades na sua totalidade"
(Carvalho, 2001:212).
Herdeira da tradio de estudos norte-americanos acerca do non-profit
sector, a autora est entre os defensores de um espao de 'sociaes' onde as
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lgicas da hierarquia estatal e de mercado no tm penetrao.
Leilah Landim (1998) por sua vez, permite-nos atentar para a peculiaridade
das ONGs no contexto brasileiro, que traz diferenas em face realidade norte-
americana. Para esta autora, no Brasil, por 'ONG' deve-se entender um conjunto de
organizaes da sociedade civil com caractersticas bastante peculiares:
"...instituies com razovel grau de independncia em sua gesto e
funcionamento, criadas voluntariamente, sem pretender carter
representativo e sem ter como mvel o lucro material, dedicadas a
atividades ligadas a questes sociais, pretendendo a
institucionalizao, a qualificao do trabalho e a profissionalizao
de seus agentes, tendo a frmula projeto como mediao para suas
atividades, onde as relaes internacionais - incluindo redes
polticas e sociais e recursos financeiros - esto particularmente
presentes. Organizaes nas quais, finalmente, o iderio dos
direitos e da cidadania marca de peso, permeando e politizando
atividades variadas" (Op. cit:54-55).
Leilah Landim alerta para o fato de que freqentemente as ONGs so
mencionadas na temtica das novas relaes entre Estado e sociedade, com papis
diversos - para o 'bem' ou para o 'mal'. Para o bem, quando atuam no controle,
proposio, co-gesto de polticas pblicas. Para o mal, quando atuam pela
execuo de servios, momento em que so freqentemente acusadas de
substitutas funcionais e estratgicas do Estado no contexto neoliberal. Este ltimo