Download - Coelho Neto: Rei Negro
LIBRARY^NSSACHt,^^^
1895
REI
NEGRO
COELHO riETTO
COELHO NETTO
REI
NEGROTERCEIRA EDIO
ROMANCE BRBARO
Rua das
Livraria Lello ft Irmo editores Carmelitas, 144 PORTO
Aillaud & Lellos, Limitada 76, Rua do Carmo, 80 a84-LISBOA
Obras de
COECHO HET70
Ssrto.
A Bico de Penna. Agtia d Juventa.Romanceiro.Theairo, vol. I (O Relicrio,
Ano
Rei Negro. Capital FedsraLConquxsi^.
Tormenta.Treva.
O Raios X,corpo).
O Diabo
Banzo.Turbilho.
Ttieatro, vol. II (Ab E^staes, MuAo LiMir, Ironia, lher, Fim de Raa). Theatro, vol. IV (Quebranto,
A
G meu dia. As Sete Dreanhora. Balladilhas. Pastoral
s Nossa Se-
comdia em 3 actos, e o sainete Nuvem). Theatro, vol. V (O dinheiro. Bonana, e o Intruso). Fabulario.Jardim das Esphingeas.
Vida Mundana.Patinhotorto.
s
quintas.e perfis.
Scenas
Oliveiras.
O
Paraiso. Immorlalidads.
Inverno em Fl6r. Apologos, contos para crian-
NO PBLOFeira livre. Bazar. Theatro Igrico. O Rajah de Pendjab,
Miragem.Uvsterios doNatal, para crianas.Aiorto.
contos
O
PREOS, VR A TABELLA EM VIGOR
A propriedadePortugal pelapelalei
lilteraria s artstica estd
garantida
os pases que adhgriram conveno de Bernelei
de 18 de maro de 1911
No
(Em
em
todos
Brasil
n.
2677 de 17 de janeiro de 191i}.
Artes Grficas
Porto
24359
Acora
casa, antiga e vasta,
acaapada no planalto,
um
largo alpendre sobre atarracados pilares,
abria-se
em innumeras
portas e janellas, recebendo
pelos fundos o ar
da matta que lhe ficava encosta,rijas,
to perto que, s lufadas maislhas acamavam-se-lhe
revos de foe hir-
no telhado denegrido
suto de hervas.
frente,
no lanante do morro, o jardim ver-
dejava escalonado
em
taludes, florido e
copado de
arvoredo alegre. Bastas roseiras embrenhavam-se,
umas achaparradas, outras
hispidas, expluindo
em
vio agreste, estirando varas que se emmaranhavara
nas arvores, cingiam-nas, insinuavara-se-lhes nasfranas entremeando-as de rosas.
O
cho,
em
volta dos jasmineh-os,
era
uma
alcatifa
aromai mosqueada de abelhas. Papoulas
Sf^Ti
LISRARY
6
REI NEGRO
plumejavam, cravos abriam-selas
em
sangue,
em
bor-
de neve
;
bogarys branqueavam
em
flocos e
a
grammasinuosas,
dos taboleiros, muito verde entre as alas
dava aos olhos
uma
impresso macia de
hmida
frescura.
Larga alameda de bambus, oscillando flexuosamente com estralejado sussmTO, abobadava
um
caminho sereno, alfombrado delibllulas e borboletas e
folhas.
Na
trans-
parncia do ar azulado cruzavam-se, de contnuo,
sempre, docemente, soava
um
esvahido
e
tremulo murmrio d'agua. Sebes de
cedros, tosadas alturalhas,
d'homem, muravam asorla das
tri-
formavam tapigo
rampas. Caraoffee,
m.ancheis
em
cpulas ou feio de cabanas
reciam, nas horas clidas, agasalho e frescura,
em
baixo, rente
com
os espinheiros, desgrenhadas
casuarinas desferiam gemidos elios.
Umgolejar
veio limpido descia da
matta em
fio
serpen-
tino, cascalhando,
borbulhando nas pedi'as at gor-
baias
num tanque ourelado de avencas e samamem volta do qual erers domsticos galravam.e
De manhsinha
tarde era
um
soturno, me-
rencoreo arrulhar de
pombos
e,
no raro, garas
immoveis, como de mrmore, reflectiam-se nagua,alvoroando-seo
com
o ladrar arremettido dos ces
partindo tumultuosamente,
com
estrondoso rufiodireco aos ba-
d'azas,
em
largo vo branco
em
nhados.
EEI NEGRO
7
Da varandaraio
alpendrada a vista abrangia:
um
amplo
e
exuberante de terras lavradias
chans
e relevos,
desde a porteira, no alto da estrada n-
greme
e esbarrondada, entre barrancas, at a serra
longnqua, esbatida
em
nvoa, no azul.
a
O
rio
recortava a plancie
em
sulco luminoso
trechos desapparecia, rebrilhava adiante, sufulgia alm,
mia de novo em densa mawsa de bosque,mais largo e offuscanteVisinhas da casa,e perdia-se.
como uma pvoaagrarias
feudal, es:
palhavam-se
as
construces
paies e
tulhas, o moinho, o engenho d'agua, chiqueiros, o
aprisco
e,
ao
alto, o curral
murado de taipa cuja
terra, revolta e
vermelha de estravo, parecia en-
charcada de sangue. Claros sinereos de queimadas,repontados de tocos, abriam cicatrizes entre as balsas.
Palhoas, ranchinhos appareciam
em
massios
d'arvores,
com a
roa de canna ou de milho a trans-
bordar das .cercas de pau a pique. Os terreiros detijolo
sobrepunham-se
em
socalcos
e,
amplo comotre-
um
pateo de presidio,
com
o reforado porto de
tranca cadeiada, o
quadrado
da escravatura
sandava
a espurcicia.
Portas apenas desabafavam as moradias. Era
immundo e lobrego. O audito de terra escura reumava humidade. As paredes escalaM-adas mostra-
vam
as ripas.
Molambos trapejavam em cordas;
tendidas de
muro a muro
tinas g uai* davam barrei-
;
Blas escuras e,
REI
NEGBOlodo,
empoada em regos entupidos defezes,
onde fermentavamPelos
uma agua
pastosa tinha
arripios de vermina.
cantos
ces
morrinhentos
dormitavam
enrodilhados, gallinhas arrufadas cacarejavam pas-
seando ninhadas
;
leites
grunhiam fossando a pu-
trilagem e crioulinhos tolhios, avergoados de magreza,
iam
e
vinham
banzeiros, coando perebas
pequeninos, ns, engatinhavam lambusados,o ranho a escorrer-lhes das ventas ou
com
em
bolo, se-
vandijados, refocillavam, patejavam na estrumeii'aborrifados de lama sob o vo zoante das moscas.
No tempocadeiroe
das aguas o pateo alagava-se
em
atas-
os
negrinhos refestelavam no enxurdo
espojando-se, trambolhando, patinhando no lameiro nauseante.
Cedo, antes do solsolta,
luzh',
com
a
bruma aindamornoo acre
a sineta soava a despertar. Abriam-se as sen-
zalas lufando do interior fuliginoso e
fortura e a fumaraa espessa dos brasidos que ar-
diam noite fazendo
um
ambiente de estufa onde,
em
promiscuidade srdida, rolavam corpos semie,
nus, lustrosos de suor, adultos e crianasto, ces
por per-
cainhando baixinho com o pruir da lepra,
sem falar nas enormes ratazanas que chiavam famintas, passandogallinhas acochadas no choco,
duma
casa a outra pela buraqueira dos muros.
4o toque de matinas a nerada sahia para a
BEI NBQRO9
8
forma arreraangada, estremunhando, com bocejo de bruma ftida. O feitor passava a revista e o bando trasmalhava grazinandosorvia-o gulosamentee,
ia
ao caf aguado,
ainda esmoendo restos de
broa ou mandioca, cada qual tomava a enxada ouo cesto e l
iam carpa ou colheita humillimos,
submissos como animaes.
E
comeava o labor na fazenda.
A;
grande rodae
do moinho ringia rolando no vo sombrio
limosoos
onde o ribeiro escachoava engasgadocarros.
chiavam
No
cmral os bezeiTOS berravam abarbados
com
o mm^o. farejando o cheiro de leite ordenhado.
Enchia-se a escura e espaosa cozinha, onde as negras borborinhavame,
de todos os recantos, sabiam
animaes ao ciboneiroscos,
:
varas de porcos, aves, sujos car-
em
lotes e
grandes bois de carro, d'olhos
pis-
morosos, ruminando, jungidos canga para o
servio.
E
Manoel Gandra, du brim, botas de courodo jardim,
cr,
chapu de palha de largas abas, descia vagarosa-
mente as
escaleiras
com
olhares de dono,
detendo-se aqui, alhures, a
examinar
repolhuda, a escutar, enlevado, osaro,
uma rosa mais gotgeio dum psvarrer asarbusto,
ou,
chamandoaesteio, atar
negTos,
mandava
alas, tosar
gramma
eriada, podar
umE
fincar
um
um
amarrilho.
assim, dis-
trahido, saboreava o caf levado por aceada
mu-
cama,
em bandeja
de prata sortida de guloseimas,
10
BEI NEQRO
desde os sequilhos,
em forma
de amndoas, at os
gordos, abananados bolos de mandioca puba.
Enas
ali
ficava at a hora do almoo, interessado
flores,
abenoando velhos negros que passavam
arrastando os ps inchados e esponjosos ou mole-
ques que lhe sabiam frente
com
ar idiota, maltra-
pilhos e sujos, ramellentos, estendendo a
mo' ma-
gra
em
gesto simiesco,
com
o corpo negro gisado
a
aiTanhaduras,
como manipanos de
basalto lanha-
dos a buril.
A
lavoura no lhe dava cuidado
sentia-a me-
drar nos outeiros encarapinhados pelos cafesaes,
nas chans de milho e canna, nos acclives que o mandiocal alastrava, nas grotas onde os inhames, de
largas folhas brnzeas,
escondiam aguaaes, nos
pastos verdejando macios, a perder de vista.
A
terra,
a agua
e o sol le os
estavam cercando de
fecundidade as raizes
negros auxihavam a na-
tureza capinando as roas, lanando fogo aos maninhos, derrubando- os capoeires para aproveitar o
terreno
em semeaduras
prosperas, ou,os
com um
can-
to triste, guaiado,cafeeiros,
raspavam
ramos lustrosos dos
enchendo as peneiras de bagas vermelhas,
desenterravam a mandioca,
cortavam a canna,desciam
quebravam
o milho
;
e os carros
com um
chiado crispante e os terrekos cobriam-se de caf
para a scca ou os paies atestavam-se de canna
ou de milho para a moagem, para a debulha.
RI
NGBO
11
Terminada a faina do beneficiamento erareunir a tropa, jungir os bois canga e partir.
s
E
comeava
o desfile.
De madrugada, ainda com a nvoa
enflocada
em
rolos espumosos, tiniam campainhas, estalavam
relhos. Tropeiros giro-gh:avam aorurados reunin-,
do a recua; montavamnha-seo
e,
com
aiegre alarido, pu-,sa-
comboio em marcha com rumoroso
colejo de cargueii*os, seguindo, ora
em
trilha rasa,
ora por veredas tesas, ao sol ou pela sombra fria e
murmura
das mattas, sahindo
em
andurriaes, galseixos,
gando as grimpas speras, cascalhando emresvalando
em
lages,
mettendo-se agua ou vene
cendo areaes, balofos
quentes
como
rescaldos.
Pousavam empelo cho,
ranchos a
gente
estirava-se
em
couros,
com um
fogo alumiando, a
animalada, pelada, ia e vinha na macega, tinindochocalhos.
De manhsinha, minhavam dias, ao
antes da luz, partiam.sol,
E
ca-
chuva ou, mais agrada-
velmente, pelo claro do luar, ao fresco fragrante,
com uma toadanhas.
a que se juntavam,
em
compasso, o
estropear das mulas e o
som rythmico das campaiturmas dos trabalhado-
res,
vista das primeiras
que andavam construindo a Estrada, dobra-
vam-se os cuidados. Os tropekos desviavam-se dalinha, dos cortes,
guardando,
com mais
atteno, os
2MT!
l:3kARY
1.2
BEI
NEQBO
aniraaes que, ao silvo dos trens de lastro, esbarra-
vam assustados, d'orelliasnose precipitavam,
fitas,
refugando ou dispadentro,
ravam desapoderadamente matto
quando
de rebolo, pelos barrocaes.
E
era
um
trabalho insano para conter os medroconcertar arreios e canga-
sos, reunir* os prfugos,
lhas de sorte que, ao avistarem as primeiras casas
da cidade, ainda de sap, nos mattos ou entre laranjaes e hortas, respiravam e, dando graas a Deus,
entravam na Corte commentando a viagem, osbalhos, as aventm^as e calculando o
tra-
tempo que ainda levariam a chegar os carros que haviam ficadolonge, nas ladeiras escavadas
em
caldeires,
com
as
rodas entaladas no lamaal e os carreiros desesperados aguilhoando inutilmente os fatigados bois atque, exhaustos, ath:avam-seos
na macega, emquanto
animaes esfalfados, a lingua pendente, babavam
arquejantes atolados no lodo.
Na
cidade, a negrada
tomava
um
farto de pa-
^gode admirajido as novidades, a vida tumultuaria.
Aviadas as racommendas do senhor, carregavamosf
animaes cori as compras
e partiam,
com muita
tropa folgada, revezando os cargueiros ao longo do
caminho.
O
regresso era
fcil, alegre,
sem
risco,
a no ser
nos socavos da serra onde bandidos e quilombolas
tocaiavam tropeiros accommettendo-os de improviso,
desbaratando-os a
tiro,
perseguindo-os,
ma-
REI NEGRO
13
tando os mais intrpidos
e
tocando a recua para
os valhacoutos alcantilados.
Mas com
os trabalhos
que andavam na serra os ladres rareavam. Citavam-se os assaltose as victimas
eram sempre
via-
jantes imprudentes que se afoitavam, noite e ss,
em
taes paragens.
Mas a tropa da frente,
Cachoeira
,
ganhara fama desde que,
com Macambira numa garganta,
recolhendo fazenda
com avultado carregamento,
atacada por
uma
quadrilha rechassra os bandidos
matando-lhes o chefe.
Manuel Gandra, senhor da Cachoeira,gara ao Brasil
nma
das fazendas mais ricas do valle do Parahyba, che-
em uma
leva de colonos.
Moo
e robusto,
airosamente aprumado,
com
o
sangue a reumar-lhe
em
cores nas faces,
uma
ale-
gria vvida nos olhos garos, destro ao jogo doe
pau
languido guitarra, impunha-se aos homens pela
valentia g as mulheres
adoravam-no pedindo-lhedei-
tonadilhas e fados
tristes.
Aventuroso como os da sua raa, longe deatrevidamente ao serto
xar-se enredar nas seduces da cidade, metteu-see,
chegando Cachoeira,
que era
um
maninho, engajou-se como administra-
lor fazendo-se valer pela audcia e pelo pulso.
14
REI
NEGRO
Camillo Feitosa, o fazendeiro, obeso e lerdo,
damacasa,
obtusidade granitica^ passava os dias lam-
biscando lambarices, a arrastar as chinelas pela
com
o ventre
enorme a espocar do cs dasa cainalha
cal-
as de enfiar, ou dormitando, aos roncos, sombra
das arvores,rebolcavagras.
com
em
volta.
noite
em
libidinagem pelas tarimbas das ne-
Viuvo, vivia
com
dois filhos
um rapaz
e
uma
menina
:
Honrio
e Clara.
Eramzalas.
dois selvagens criados lei
da natureza,
medrando bruta na
calaaria da roa e das sen-
Debalde Feitosa tentarafessor,
instrui-los.
Tomouo
pro-
um
velho allemo paciente, muito amigo de
plantas e de insectos.
De manhan, quando
bom
homemvam-no.seguinte
procurava os alumnos, as negras chasquea-
Oe,
sbio sorria adiando a lio para o dia
com
o cachimbo, o herbario e
um:
sacco
de talagara, mettia-se pelos mattos.
paz
Os dois irmos madrugavam ao ar livre o racom a espingarda, a menina num rol de negri-
nhas,
ganhando veredas cerradas
um
caa,
outra aos ninhos, s frutas, vagabundagem naespessura. S appareciam noitinha canados, es-
calavrados,frutas.
com
enfiadas de caa e samburs de
a vezes encontravam
o allemo e desciam jun-
REI
NEGRO
16
tos e Feitosa, vendo-os entrar, ria, sacolejando-sc
inos refegos de banha,
achando graa na
estroinice
dos pequenos e louvando a pacincia do professor.
Honrio acabou desastradamente no1
rio,
que-
rendo atravess-lo a nado no mais grosso
e revolto
:duma enchente.lara,
deitando corpo, continuou na bruteza,e
passando os dia entre as negTas, aos palavres
bordoada com as mucamas, informando-se de amores obscenos, rindo
do que lhe contavam,
com um
semvergonhismo crasso ou errando nos mattos, cata de frutas, banhando-se nos crregos, trepando
nas arvoresi
com
frutas verdes
com ou descendo estabanadamente comos crioulos, apedrejando-osinjurias torpes para esmurr-los, se
lum despejo de:os
lOS suTpreitdia agachados, espreitando-a por entre
ramos.
s!do
vezes, antes
do banho, sentada no barranco,
com a camisa hmida collada ao corpo, chapinhancom os ps nagua, ouvia estralejo de ramos.e,
Voltava-se do golpe
descobrindo negros, mole-
iques acocorados nos mattos, apedrejava-os, perseiguia-os s palavradas at longe, correndo,,
com a
camisa tufada ao vento, as pernas nuas, os cabellossoltos prendendo-se, deixando fios nas ramagens.
'
Sentindo-se s, espapava-se na herva
com
vol-
pia animal, espojando-se, a enfunar a camisa, go-
sando o
sol
no corpo como a caricia de
um
macho.
16
AEI NEGRO
Manuel Gandra, assumindo a direco da fazenda, teve geitos de insinuar-se no corao da vir-
gemvisse
agreste e o velho, inerte e pigro, ainda que os
sempre juntos, squando,gritos
se
apercebeu da perdio
dacia,
filha
uma
noit^,
no
silencio
da residn-
os
de Clara repercutiram lancinante-
mente.Ento, sem revolta, recebendo o neto, chamou
Manuel Gandraf-lo aceitar
e,
commovido, quasi em supplica,e,
a filha
com
ella,
toda a vasta riqueza
daquellas terras fartas.
Celebrou-se o casamento capucha e mezes depois,
tendo Camillo, aps abundante almoo, des-
cido pesadamente para a rede,
onde costumavae,
dormitar sesta,
ali ficou o
dia todo
tarde, acha-
ram-no morto, com o caro balofo mascarrado deplacas denegridas, a boca escancarada, retorcida!
em
rictus,
com a baba
vitrificada aos cantos.
E
a fazenda, energicamente administrada por
Manuel Gandra, prosperou desenvolvcndo-se prodigiosamente. Entraram escravos novos, construi-
ram-se casas cobertas de telha, touros de raa ber-
raram nas varzoasno caminho em
e era
um
encanto ver, tarde,
acclive,
o denso
rebanho descer,
to apinhado que parecia a prpria terra esbarron-
dada que resvalava, ladeira abaixo. A residncia, que ameaava ruh*, fendida embrechas, foi reformada c alargada, lanando-se-lhe
REI NEGRO
17
frente o alpendre, limpando-se-lhe o terrenovolta, escalonando-se o
em
jardim
em
amphitheatro.
Quandotorias
os visinhos
viram as grandes bemfei-
da propriedade, dantes tapera, pnzeram-seque o gallego passava notas
a murmurar pelas vendas dos caminhos, pelos negcios da villasas. :
fal-
^empipas de vinho ouisto
Alguns, dando-se por Informados, explicavam
que o dinheiro vinha do Reino
mettidosteiga.
em canudos de lata em barris de man-
Por
ou por
aquillo, Cachoeira tornou-
se a
mais bella fazenda da regio.e,
Gandra tinha gostotocassem
conhecendo, por expe-
rincia, a utilidade das florestas,
no consentia quelenhar alhures.
em
arvore das que faziam sombra casa.
No faltavam capoekes, fosseme,
Gosava sentindo o cheko acreouvindo os pssaros livrestorio,
e sadio
das resinas,
noite, do seu dornii-
que era
um
salo cercado de persianas, escu-
tava,
com
enlevo, o frondejar da matta.
A
mulher, alcunhada de
Capivara
,
medidainrcia,
que rechonchava
em
dipe, amollecia
em
apassivando-se preguiosa e balorda.
Era uma massa de chorume, obesarebolando aos ofgos,
e flcida,
derreando-se nas cadeiras
onde ficava esparrimada, arquejante, a cochilarvadia.
As negras esbeiavam muchochos2
desprezveis
18
REI
NEGROaf-
passando porfrontando-a
ella,
respondiam-Uie de repello,
com
olhaxes eiiviezados e ella temia-as,
sempre a suspeit-las de bruxarias, desconfiando detudo,Se,
num
invencivel, estarrecido
temor da morte.,atre-'
na ausncia do senhor, alguma, maiscomida,
vida, boquejava ameaas, regelava de
medo, recuou
sando a
fazia promessas os santos
mandava cliamar Egydio, velhoquimbande, que conjurava osos fazendo passes
cabinda, pai de^
m.ais violentos feiti-
mando naplvora,
palm.a da
com nm gallio de arruda ou queimo crustcea uma pitada de.palavrasexpellindo
sobre cujo residuo sussurrava
magicas, soprando-o depois eo
com
elle
mandado
funesto.
As mucamas, quando a viam carrancuda, ^a, trombas, cantavam para irrit-la, riam-lbe em ros-to despejadamente, trocavam diteriosser revoltava-see,
se
a nd-i
ameaando queixar-se ao marido,'frentee,
plantavam-se-lhe nadedos,
enclavinliando
os,
arrebitando o beio:
em momo
sarcstico,,ir
perguntavam-lhe mais depressa?
Se queria
um
carrinho para
Ella engasgava apopltica, roxa de clera, coraos bcios a
papejareme,
e as raparigas
dobravam-se
s cachinadas
rebolindo as nalgas, arrastandol iam,
achincalhadamente as chinelas,chas,
muito ancynica
impando
da rascoagem
descaso, numa ostentao em que viviam com o senhor.
,
'
REI
NEGRO
19
Omeio
filho,
Julinho, crescia robusto e solto naquelle
dissoluto, entre mulatinlias zabaneiras, pree
cocemente devassas
moleques sornas
com
os quaeae,
andava aos ninhos ou farandulava nos crregosicendia-se-lhe
proporo que se desenvolvia reforando-se, ac-
no sangue
uma
sensualidade suina
que o levava a fariscar as mulatas roando-se porlellas
aos reboleios, agarrando-as, apalpando- as onde
ias
encontrava,
num
furor
de
rdega
lascvia,"
Pedia-lhes, lamuriando, que lhe mostrassem nuidezes,
queria ver, s ver. As mais depravadas
/cediam
por pagode
.
E
o rapazelho derrui) a va-as,
:rasgava-as frentico, fossando-as,'Cllas,
mordendo-as
o
rindo, a principio, defendiam-se encolhidas,
isubito,
porm, excitadas, abarcavam-no, subjuga-
vam-no brutalisando-o allucinadamente.Velhas negras resmungavam quando o viam detocaia nos caminhos ou encostado porta dos quar-
tos espiando ase
mucamas em cainhando como co ao cio.
camisa, chamando-as
Isso,
ahn
!
Isso vai s pi qu'o pai.
!
Oia s
,
,
Criana d'outro dia
.
.
Algumas paravam alaxa e aulavam-no:
rir
Espocavam muchochos. interessando-so na manga^. .
Entra
.
Mec t
perdeii'9
do tempo. Pontaria demorada espanta a caa.Outras esconjuravam-noto. . . >:
Credo
!
qu'assanhamen
Manuel Gandra
de^^tinava-o medicina,
que-
20
REI
NEGKO
ria-o formado, fazendo curas prodigiosas, eloiiado
nos jornaes, batendo a cidade a carro,trio apinhado, at ao,
com
o consul-
fama
elev-lo a
medico do Pa-
grande da Corte, celebre no mundo.
Um sonho
I
E
o rapazola arisco, arredio dos livros, corria
mquia ou, com
um
vergalho, alanhava os mole-
ques, perseguia os animaes, aviltava os velhos negros, ultrajava asfilhas
mulheres diante dos maridos, aspais,
na presena dos
chasqueando-as
com
alluses obscenas.
lhe
Os pequenitos abriam choro medroso quando ouviam a voz, arrastavam-se, fugiam de gatievitar,
nhas para onde as mais. Se o no podiamencolhiam-se papeando humildadosvorados, ae,
d'olhos apa-
mo
estendida beno, tremendo, en-
guliam lagrimas na espectativa dolorosa dos pontaps e dos belisces que lhes seviciavam o corpo.
Negros formidveis, de biceps hercleos, se o
viam de relho em punho, cosiam-se covardemente
com
as paredes, confundiam-se
com
as arvores aga-
chando-se nos mattos.Elle, s \ezef5,
chamava-os, interpellava-os ar-
rogante
e,
ordenando que se ajoelhassem, esbofe-
teava-os ignominiosamente.
Oi
pai,
que era generoso, reprehendia-o com
severidade,
mas
o rapaz resmungava amazorrado
que no atm-ava desaforos de negros.mentia, aalumniava.
E, para
justificar-se,
REI NEGRO
21os
Como
os mulatinhos
eram
que mais soffriam, queelle
as negras affirmavam,
com
dio,
era au-
lado pela mi.
A
Capivara faz por vingana porfilhosrle
que sabe que os coitadinhos so
do senhor.
E
eram juras rancorosas, pragas
arripiarem.
Quando Julinho completoue esperto,
treze annos, taludo
Manuel Gandra,
apesai*
da choradeira da
mulher, desceu
com
elle
Corte
e internou-oferias,
em umquando
coUegio de fama, de onde s sahia nas
Macambira
ia busc-lo.
NaBolta,
fazenda o pequeno desforrava-se ufa do
apertado regimen do internato, galopando rdeabanhando-se, s parapemadas, no crrego,
devastando os ninhos a bodoque, armando mundus e arapucas e attrahindo
com
sainetes, senoe grandes,
com
os prprios olhos,
que eram negros
de mrbido languor, as mulatinhas pberes.
E
a mi, esparrimada
em
enxndia, se alguma
negra, por baju^.ao, cochichava4he aos ouvidosas proezas do rapaz, babando-se de jubilo vaidoso
por sab-lo j homem, pedia pormenores vergonhosose,
rindo,
com um
gelatinoso tremer dos refolhos
do papo, approvava os estupros, applaudia as violncias, seguindo,
em
mente, as ignominias do filho
pelosridas.
rnattos, nas cevas sensuaes das balsas flo-
Faz muito bem. Est na idade. Se ha denegro, que sejaelle.
ser
um
Est no que
seu.
REI
NEGRO
Se alguma rapariga, sabendo da desgraa dafilha,
ousava lamentar-se, D. Clara irrompia asso:
madavem
J
viram spor
!
?
Pois no que a descarada
fazer queixa do
meninofiHio
!
Burra
!
Em
vez de
ficar orgulhosa
meu
dar confiana lam-
busona da negrinha, o diabo
estica as!
trombas como
uma
grande
coisa.
Ah
!
vergalho
E meneava com
cabea rilhando os dentes podres.
Para D. Clara tanto
direito tinha o filho sobre
vida e a honra dos escravos como sobre o frutodas rvores e sobre a caa dos mattos. N podia
comprehender que as negrasa violao dasfilhas
se revoltassem contra
ou que os negros se sentissemdesde menina, a vr os
do aviltamento das mulheres que o senhor mooappetecia. Habituara-se,
escravos jungidos aos rebolos na herva, grunhindo, agatafunhando-seIhes pedi'as,
no furor do
cio.
Ria, atirava-
bradava enxotando -os
e elles
fugiam
comode,
ces acossados, mettendo-se na espessui'a on-
de novo, engalfinhavain-se mais ardegos.o
Eramfaris-
como animaes que no conhecem
pudor
e,
cando a fmea, rastream-na, afuroam-na, empolgam-na, abocanham-na, subjugam-na saciando-seinstincti vmente
com a mesma
descuidada, natu-
ral simpleza
com que
espostejam a carnia ou ao
dessedentam numa poa d'agua.
E
Julinho, fiado no prestigio materno e na pasj
REI
NEGRO
23
siva timidez das negras, estuprava crianas ainda
impberes,
forava mucamas,
aforciava
casadas
sem temerdo,a.
represlias, gabando-se,
muito enfatua-
descrever as suas possuidas, elogiando-as ou
com
caramunlias, cuspilhando de nojo, arrependi-
do de se haver atolado S
em
immundicies.
um
negro ousava affrontar-se
com
elle
quan-
do o surprendia
em
contubernio nos mattos ou nal-
gumbira.
desvo das tulhas ou dos paies
era Macam!
Estacava severo, gritava fmea, fosse quem:
sse
Sabe, negra
!
Vai-te
embora
e,
de cos-
tas para o senbor, expulsava a rapariga,
acompa-
nhava-a cora o
olliar at
longe
e,
sem
dizer palavra,
caiTancudo, lentamento afastava-se.
Macambira eraannos sadios,alto,
um
bello
typo de raa. Trinta
entroncado, erecto
como uma
columna, tinha, no porte esbelto, desembaraado,a elegnciaviril e
airosa
dum
athleta.
AA
cr retinta luzia-lbe no rosto
como
vernizface.
lustroso.
Pouca barba,
dois laivos
em cada
boca forte cerrava-se-lhe
em
lbios grossos, os
olhos grandes, severos,
dum
brilho fixo, explosiara
dominio.
Ae
austeridade
das
maneiras, o ar taciturnoo
altivo
impunham-no aos companheiros quee
respeitavam
temiam, conhecendo-lhe a bravura
desabrida, provadatocaia que lhesinha.
em
recontros na serra e
numavi-
armaram negros duma fazenda
]ram quatro latages de fama. Macambira
le-
26
REI NEGROfresca quando, o assalta-
vava o cavallo a passo pela sombra
no cotovello do caminho, subitamenteriaram-po.
ram. Foices luziram, tiniram; vozes surdas inju-
Relanceando
um
olhar rpido, reconheceu a
matularas,
e,
sem
perturbar-se, picou o animal d'espoe,
levantou-o nas rdeas
atrando-o sobre oo ter-
grupo, atropelou dois negros, derrubandoceiro morto,
com uma brecha na
fronte por onde oses-
miolos espocaram.pavorido.
O
ultimo afundou no matto
E Macambh*a.Iho,
serviu-se apenas do cabo do recinta.
sem valer-se da garrucha que levava Ganhou fama.
Filho de minas, falava correntemente a liugua eIjraticava
em
segredo a religio dos seus maiores,
confundindo nosantos e
mesmo
culto Jesus, a Virgem, os
um
idolo
monstruoso falquejado
num
toro.
Entre os da sua raa era tido porte
muchiquo
todos saudavam-no reverentemente, zurabridosvassalagem,
em
vendo
nelle o prncipe, herdeiro
ido heroe
que succumbira humilhado na terra dos
brancos.
Balbina, velha negra havida por mandingueira,
sempre andrajosa'da
e suja,
com a grenhae
refoufinha-
em
tufos,
tresandando pocilga
suarda, era
a sua nica intimidade. Encarregada do chiqueiro,vivia atolada
na lama entre
os lerdos cevados, en-
REI NEGRO
27
cliendo os cochos de
inhame ou mettida com Malse lhe
os car-
neiros srdidos no aprisco.
viam
os olhos
radiados de sangue, sempre de rojo, espreitando
comos
desconfiana,
e,
se
algum lhe falava, encolhiao cho
hombros resmungando, a varrer
com
o
olhar variado, gesticulando repulsas e seguia rin-
chavelhando
um
risinho d'escarneo
ou esganiando
cantarolas zombeteiras.
Os moleques,
se a
apanhavam longe da
casa,
juntavam-se para enfes-la. Agachados nos mattos,gritavam-lhe injurias, apedrejavam-na.
Aes,
negra parava no caminho bramindo maldifazendo esconjuros, e emquanto as pedrasdali,
zuniam daqui,das
de joelhos,
com
as pellancas
mamas
a badalhocarem, esticava retesamentefloresta.
os braos
na direco da
D'impeto,
em
arranque, encolhia-os ao peito espalmando as mos.
Duramente aduncavaremessando o busto,las aperradas,
com esforo, arremoendo com as mandbuos dedose,
repuxava, attrahia
um
quer que fossee,
que a sua viso sobrenatural parecia lobrigar
de
golpe, inflectindo para o lado de onde partiam as
pedras, atirava as
mos
e ficava
um momento hh-ta,comose asper-
retrahindo, arreganhando os dedosgisse fluidos.
s
vezes, sentando-se
num
socalco, ensanguen-
tada, quedava ao sol resmungando, cuspilhando a
mascagem
grossa e escura e esquecia-se, indiffe-
.
28
BEI
NEGRO
rente s pedidas que lhe cabiam perto, levantandopoeira,
farfalhando nas folhas.e,
De
repente assapau, investia
nhava-se
furiosa,
brandindo
um
tronando obscenidades.
Essa era a confidente de Macambira.Distrahia-o relembrando,
com
saudade, os pal-
mares copados da sua aringa.Fora da cabilda dorei
Munza, guerreiro temidoo dizia
desde as terras altas at as dunas da costa
a
Macambira, tocando-lhe o corpo
:
Ocia oc v
zri
mmu
;
zri tru,. .
oc.
Quemde
Munza, r
di noss
E
referia,
com enthusiasmo
pico, episdios
guerras,
scenas festivas e religiosas, caadas nas
florestas densas azagaia
ou fimbo,
idyllios
nos
palmeiraeserguia-se
e,
quasi sempre,
em meio da
narrativa,
como
inspirada, punha-se a cantar bai-
xinho, aos pinches, bambaleando o corpo ossudo
em
colleios rebolidos.
E
lagrimas rolavam-lhe dos olhos
a quatro e
quatro, pelo rosto esqulido,
ganidos do canto brbaro,os
em contraste com os com as caramunhas, comtripudio.re-
ademanes com que acompanhava o
E
Macambira, enlevado naquelle batuque,
petia,
meia voz, a toada lgubre, sonhando comno exibo da escravido.
a terra que no conhecera por haver nascido, deestirpe de reis,Triste,
concentrado, mal terminava o servio,
REI NEGRO
29
recebendo as ordens do senhor, recolhia vagarosa-
mente sua cabanamonte,
solitria,ali
apadrinhada com orecebia preito e ho-
num
verde laranjal e
menagem dacomo alar-lhe
gente da sua raa, e Balbina que, to-
das as noites, pisando, de leve, as folhas, sorrateiraona, atravessava os mattos, ia v-lo, fa-
da ptria perdida, dos
reis
mortos
e dos
deuses vingativos.
Ficavam
os dois horas e horas luz
fumarenta
da candeia ou porta, diante do terreiro onde osbacuraus piavam, resmoneando, cantando soturnamente, quando nomascar,elle
em
silencio pensativo
:
ella
a
puxando lentas baforadas do cachimbo.
A
negra tinha sempre
um
caso novo,
uma
re-,e,
cordao trazida do fundo da memoria triste
ouvindo-a, Macambira devaneava, d'olhos muitoabertos, fitos
na extenso rasa das vrzeas abruformigando,
madas, onde lhe parecia ver estendido o grande,invencvel reino das malocase,
com
relumbros d'ai'mas,
um
povo numeroso
e forte, o
seu povo negro, a gente herica e temida da sua
nao guerreira.
O
que mais impressionava
sua irreductivel antipathia
em Macambira com a mulher.apego amoroso.
era a
No
se lhe conhecia
um
30
BEI NEGRO
Na vasta e tenebrosa cozinha tisnada gem, com sanefas de picuman pannejapndobros, no
de felu-
nos cai-
quadrado
,
na roa ou beira do crrego
onde batiam roupa, as negras commentavam, comdespeitada nialicia, aquella averso, attribuindo-a
a bruxarias de Balbina.
Em
verdade o negro, sompre casmurro, evitava
as raparigas tratando-as d'alto, distancia,
como
enojado.
Se encontrava alguma no caminho, fechava acara,
respondendo saudao ou pergunta que lhe
fizesse
com resmungos mal humorados.seu corao impermevel pruia, por vezes,
No
um
remorso fugaz, principalmente quando mar-
geava o crrego, na volta sombria do bambual.que s
elle
conhecia o romance triste de
uma
crioula
que
dali se deitara
a afogar, bradando o seu nome
em
arranque supremo de paixo.
Ova;
caso:
foi
explicado de vrios modos, qual mais
trgico
ataque, quando a pobresinha se banha-
maldade de algum perverso que abusara da
desgraada matando-a,denunciasse;
em.
seguida, para que o no
cobra mandada que a mordera por.
vingana de algum
.
Quanta
coisa
!
E
a ver-
dade jazia no segredo do negro.Lina era
uma
bonita rapariga de vinte annos,
sempre amollecidafina, cr
em dengue
voluptuoso. Pelle
de azeitona, oUios negros, grandes e pes-
REI
NEGRO
81
tauudos, cabellos assedados, boca carnuda e ver-
melha, desabotoada sobre dentes brancos e miudinhos, postos
com
a perfeio de prolas
em
jia.
Alegre e trefega
como umflor
passarinho, rindo de
tudo
e
a todos,
uma
nos cabellos, no corpo onS.
dulante o cheh:o agreste da herva de
Joo com
que perfumava a roupa, outra no havia na fazen-
da to engraada para contar casos nem to graciosa no reboleio elctrico,
nas empinadas upas,
no sapateado lpido do samba.
Rondavam-na, enlevados na sua leda mocidade,rapazes da fazenda e muitos das visinhanas. Ellaolhava-os de viez, retrahindo o lbioprezvele,
em m.omocaso,
des-
aos muchochos, dando
um
geito detra-
vz ao corpo, passava
com poucobico.
batendo
morosamente as chinelas de
Mas o corao Macambira entrou
abriu-se-lhenelle
como
flor
ao sol
e
para mat-la.
Desia,
viva que era e buhosa tornou-see,
evitando as companheirascollo,
macambuisolando-se, com
a almofada de crivo ao
jogando machinal-
mente
os bilros, cantarolava baixinho,
com
tris-
teza, entrecortando o canto de suspirose iam-se-lhe
ou paravasolii*
aguando os
olhos,
tomavam-na
os
e,
debruando-se sobre a almofada, ficava a
chorar dorida.
Fora vista diversas vezes, midades da cabana do negro
noite,
nas proxi-
e rapazes, curiosos
ou
32
BEI NEaHO
ciumentos, segnindo-llie o passo esquivo,
contala-
vam
que
ella ficava
horas acocorada entre as
ranjeiras a espreitar a habitao do apaixonadoou, indo e vindo, trepe trepe, sarapantada, arisca,
cavando aqui,cabana.
ali
ao longo da trilha que levava
Um
molecote, para descobrir o segredo, erapo-
leirou-se
em uma
arvore de onde acompanhou toe,
dos os movimentos da crioula
ao v-la
partii\
saltou ao cho, recavou o terreno nos pontos queella revolvera,
achando feixinhos de h ervas, me-
chas de cabellos,africanobzios,
um
saquitel de feitio,
amavio
em que
se
juntavam,
em
mixordia, raizes,
bagas partidas,
um
trapo sanguinolento
envolvendo
um
pedacinho de zuarte, tudo enter-
rado com inteno manifesta de prender pelos passos o indifferente.
Descoroada dost-lo, venc-lo
sortilgios,
Lina decidiu ten-
com a
prpria carne.
Sabendo,ir
uma
noite,
no sero, que
elle
deviae,
Barra na m^anhan seguinte, mal dormiu
de
crrego,
madrugada, sahiu de casa indo postar-se beira do na volta do bambual, de onde partiam, emesgalho, dois
caminhos
um
direito
ao monte, oue,
tro para a villa, costeando a barrancase entre os
mettendo-
bambus, despiu-se.luzi-
Odia.
frio
picava pondo-lhe arripios na carnee,
Amontoou a roupa nas pedras
encolhendo-
EEI NEGRO
33
Ge
no verde
recliego, ficou
espera,
num
ante-gosto
voluptuoso.
Arrulhos de pombas, cantos de sabis entriste-
ciam o
retiro.
Ouvindo passos estremeceureluzindofebril,
e,
attenta,
o olhar
em
riste,
esperou arfando.
Paratorno'd
ficar era evidencia, subiu
a
uma
pedra
em
qual a agua, j precipitosa, rolando para a
cachoeira, borbulhava, escachoava
na, pz-se firme, erecta, lasciva,
em espuma e, espreita, numa traiocomos peitos rijos aestuo.estr-
remordendo os
beios,
prumo, o ventre redondo afiando
em
Os ramos farfalharam,pito e
rolas
voaram com
Macambh:a appareceu.excit-lo
Paradidae,
mais a crioula fingiu-se surprengritinho de susto, denunciou-se,
com um
aninhando dengosamente os peitos entre os braosrolios,
cerrando as coxas, baixando a cabea e
fi-
cou immovel, estatelada,
em
attitude esculptQi'al
de pudor que a faria ainda mais appetecida a outro,
que no o negro.
Macambira relanceou
um
olha,r
soberbo
e,
rinfor-
do escarninho, sem de leve vibrar seducomidvel, proseguiu impassvel.
Abraos
rapariga estonteoue,
atordoada,
sacudiu
os
saltando da pedra sobre as folhas hmi-
das, correu, arranhando-se nos espinhos e ainda viu
o negro longe, no cotovello da trilha que o sol co-
meava a dourar.3
34
REI
NEGRO
Remorden-se de raiva, mas
num
desespero de
inflammada volpia,lanando,e nsia:
metteu-se-lhe
na peugada,
em
voz lancinante,!
um
appello de dio
Macambira
O
negro iem voltou a ca-
bea.
Rosnou uma
insolncia e foi-se.
Dias depois o cadver de Lina appareceu boian-
do no aude, tmido, rodo dos peixes,desconformee
em nudezquasi
asquerosa.claras,
As prprias mucamas, mulatas
brancas, essas mesmas, apesar das faceirices, dos
requebros ondulados dos quadris, dos suspirinhos
trmulos lanados entrecortadamente, no logra-
vam
dobrar a inflexibilidade do crioulo.
Se alguma, cruzando
com
elle
nos corredores
ou nas immediaes da casa, olhava-o d'esguardo,provocando-o,elle sorria:
desdenhoso ou amarrava
a cara investindo irado
Deixanha nacunfiana.
de s
offiricida, rapariga.
Tem
vergo-
com quem no ti d Eu nao gosto di dirritimento cummigo. Solidrio com a gente negra, sempre e em tudocara. Mais respeitoella,
por
s
no lhe
soffria as
immundicies da
lu-
xuria. Revoltava-se
contra a rai rao
damnadafrenti-
que a bestialisava, vituperando, com dioco,
quantos apanhava ern contubernios ou concha-
vos concupiscentes. Se surprendia casaes esgueirando-se pelos m.attos, sorrelfa, tomava-lhes afrente e apartava- os.
:
REI
NEGRO
35
Ouvindo assobios no macegal, seguia pelo som
como caador matreiro guiando-see,
pelo pio da ave,
topando moleques
em
rabisaca, aos reclamos
a
negrinhas, corria- os a ponta-ps e pedra.
beira do crrego, no
bando impudente das
lavadeiras, de saias colhidas entre as pernas, no
continha o furor
e
desbocava improprios, provodescomposturase allu-
cando represliasS8S obscenas.
colricas,
Umava,
cabrocha, Donaria, d'alcunhaatrevidae
Vacca-hra-
antipathica,e
rixenta,
virago
no
todo
nos vicios, desmazelada at a sordicia, sem-
pre rota, esbagaxada, mascando talos de tamarindo, a cuspilhar,dres, certo dia,
em
pincho, por entre os dentes posi
tomando a
um
palavro do negro,
para afront-lo subiu ade repelloe,
uma
pedra, levantou a saia
despudorada, pz-se a bater palma-
das no ventre flaccido, dobrado
em
refegos, offere-
cendo-o
Oia,T vendoFoi?
muxiba
!
01a, j qu'oc
no cunheee.
carne, muxiba.
uma
cascalhada de troa ao longo da mar-
gem. Macambira sentiu o sangue subir-lhe cabea,a vista turvou-se-lhe,vibrar
um
tremor crispante
fe-lo
em
choque.e,
E
a cabrocha, para desfeite-lo,
agachou-se
num
gesto torpe,fez
alguma coisa derosto:
si,
como meno de
se arrancasse
atirar-lhe
em
:
:
36
REI
NEGRO
Toma,Ose
muxiba!fulo,
negro arremetteu
punhos cerrados, ran-
gendo os dentes. Espavoridas, as negras inetteramtumultuosamente nagua.
A
cabrocha esperou-o'
impvida, d'olhos chammej antes, o nariz franzido,fungando, de raiva, aos sorvos. Quando o viu pertolanou-se d'investida,
com
as
mos em garras, amea-
ando agatafunh-lo. Antes, porm, que lhe chegasse
umae,
bofetada desequilibrou-a.
Tonta, cambaleando, escorregou na pedra, afo-
cinhou
cahindo de borco, o negro pisou-a,
ati-
rando-lhe ponta-ps ao peito, aos flancos, rugindo
num
furor de loucura. Vacca-hrava, espumando,fera, debatia-se
com
um
regougo de
procurando lanar-
Ihe as
mos
e rebolcava-se aos bufos,foi
mas resvalou
dum
lagedo e
nagua em mergulho. Lesta, po-
rm, agarrando-se s hervas, surgiu
com a
carapila-
nha encharcada
e pz-se
a atirar mancheias de
ma, soprando a agua que lhe escorria da grenha aolongo da caraa hedionda, a injuri-loesfalfada
em voz rouca,
Negro perrengueVai cria pinto, capo.
!
No tem
valia p'ra nada.
Elle deu-lhe as costas e
metteu pela
trilha dei-
xando a negrada em alvoroo, a aular a cabrocha que vociferava jurando que no dia em que o apa-,nhasse a geito
s se Deus no quizesse havia!
de tirar
uma
desforra dh-eita;
REI
NEGROE,
37
Oia,esquerdareita
pamontia
.
.
.
voltasse, cerrando os dentes, ella fez
um
esforado gesto
como Macambira se com a mo de torso e com a digolpe rpido, con!
em:
lamina talhou o arAssim, muxiba..
num.
cluindo
p'r'os porcos
e atirou
um
aceno desprezvel.
E
beira d'agua, no meio do crrego toldado
de espuma, entre os mattos, estrondou a cascalhadadas negras.
Macambirate, os
sentia-se
melindrado
com a
bru-
teza libidinosa daquelle cio infrene.
Era a sua gen-
da sua raa que se depravavam
em
lascvia
rolando, rebolcando-se
em
todos os cantos
com
o
cynismo alvar deluios libertinos;
ces. Via-os a
cada passo em con-
no estalar da folhagem adivinhavae batia o
connubios torpesriosos,
matto, aos berros injuse
enxotando casaes que
atropelavam
em
fuga.
Ei-am os negros da roa que, illudindo alncia
vigi-
do
feitor,
esgueiravam-se agachadamente
;para lugares escusos,os tornava ferozes;
numa ardncia lbrica que eram mucamas que desciam
disfaradamente indo ao encontro desocavos das tulhas;
am entes
nos
era beira do crrego,
na hule*
midade das hervasuha.
;
era nos pedregaes, nos grotes,
nos pastos, entre os animaes, entre os toros de
Mas
o que o enfurecia sobretudo era vr negri-
38
REI
NEGROrisota, des-
nhs mettidas nos baixos do engenho, dos moleques, aos rebolos
nudando o corpo esqulido cpida sensualidade
comse
elles,
inconscientes
do mal, brincando com a infmia com avessa indifferena
mesma
tra-
com que
penduravam dos
ra-
mos
altos,
vergados sobre o abysmo, arriscando-se
morte por
um ninlio
vazio ou por
um
ruto verde.
A
intimidade
com que Manuel Gandranoescriptorio,
tratavaconver-
Macambirasando comgcios:
recebendo-oelle,
confiando-llie
todos os seus ne-
pagamentos, cobrauas,
ouvindo-o sobreaos
assumptos da fazenda,do
torna va-o suspeito
negros que no cessavam de rosnar contra a empfiatir
emproado
,
augm^ando-lhe.
a vez de sen-
o peso
da escravido..
T muito inchado:
.
Caminhandocimai
qu'a gen-
ti
v
raio di roda t in
desce.
Dexa
t,
Deus
grande
>I
Quando, pordo a pena aelle ?!
falta
grave,
algum escravo erahavia di s sino
castigado, toda a gentalha assanhava,-se attribuin-
Macambna
:
Quem
E
rogavam-lhe pragas, amaldioavam-no,
jurando vingana.O-
boquejo no o incommodava, mas se algum
negro, mais atrevido, passando por ehe, mii'ava-o
!
.
Ai NEGRO
39attitude de desafio
d'esguellia,e,
parava altivo
em
encarando-o, fazia-o baixar os olhos, seguir hu-
milde. Ento
Porqurapeide.
ameaava em voz surda Mexe cummigo i dipois farreCalado, calado at u sangue ferve, dipois:!
.
.
alm
Com
a vida de trabalho
e
de economia ajuntara
um
peclio nas
mos de
certo negociante da Bai-ra,
conhecido como receptador de furtos de caf e ami-
go dos quilombolas, aos quaes trazia sempre ao corrente dos planos dos senhores, prevenindo-os das
batidas projectadas, das ofertas aos
capites de
matto
ou das diligencias policiaes requeridas pelos
fazendei-os.
Os negros exaggeravam as posses de Macambira orando-as em muitos contos de ris.
A
noticia dessa
vaga fortuna comeou a preoc-
cupar Manuel Gandra com o receio de que o negrolhe falasse
em
liberdade, propondo-lhe o resgate.
Firme no propsito de recusar pensava, entretanto,nas consequnciastia,:
a fuga ou a interveno da jus-
como acontecera no caso do pagem dee sahira li\Te
um
fa-
zendeiro visinho que tomara advogado, ganhara a
causa
por
uma
bagatella e rindo.
Foi para evitarpois
um
de taes desenlaces que, dedecidiu-se
de muito pensar,
astuciosamente
pelo casamento do negro, prendendo- o pelo corao.
Ainda que lhe conhecesse o gnio retrahido,
4U
IlEI
NEQKO
avesso a amores, desconfiava da sua inclinao por
umavez,
das mucamas, Lcia, por hav-los, mais
dumaella,
surprendido;
em
conversa no jardim
dengosa
elle,
de boa sombra.
Rapariga de estimao, criada recatadamentebeii'a
da senhora, quasi como
filha,
era de natural
timido e meigo. Esmerada no alinho das vestes, mui composta nas maneiras, calada e modesta, afigurava-se a Macambira um ser do excepo destacando-se limpidamente,
em
realce gentil,
da horda
que fervilhava no immenso enxurdeiro.Alta, fina e airosa, pelle setinea, cr de jambo,
corada nas acespestanudos,
em
rosas de sade, olhos grandes,li-
dumem
verde liquido, longos cabellos
sos tirando ao castanho,sol,
com
reflexos de om'o ao
falando
voz submissa, de
uma
quebreira
dolente, lAicia impressionava pela doura e pela
originalidade do typo.
Filha de
uma mulata com um
allemo que tra-
balhara nas obras do engenho, crescera sempre mi-
mosa, instruindo-se com
uma
senhora portuguesa,
viuva, que se hospedara na fazenda pagando o agasalho
com
ensinar s
mucamas. Lcia, desde
logo,
revelou-se a mais intelligente e applicada, tornan-
do-se a preferida da mestra, que no se fartava de
a louvar lastimando-lhe o destino
:
Ha por ahi muitaria
filha
de fazendeh^o que da-
uma
perna ao diabo para ter aquelles olhos.
REI
NEGROmos defada.
41
aqaelles cabellos e aqucllasfaz o
S no
que no quer.
E
a pequena apurava-se com aeximia
idade.
Lia e escrevia
com desembaraoe
e era
em
trabalhos de agulha. I.avradeira perita, bor-
dava a branco, a matizos seus e os vestidos
a ouro
;
talhava e cosia
da senhora,
e,
quando traba-
lhava na varanda, sombra dos ramos pendidos dojasmineiro, era
um
encanto ouvi-la cantar modi-
nhas.
Macambira no descia Corte com o comboio sem procur-la e pedir ordens e os olhos accendiamse-lhe
em lumee fina.
alegre
quando Lcia lhe apresen-
tava a nota das suas encommendas
numa
letrinha
midasa
Dobrava-a carinhosamente
e
guardava-a na bol-
com
o
mesmo venerado
respeito
com que
guar-
daria
uma
orao de virtude provada contra ma-
les e inimigos.
Nofizera,
regresso,
entregando-lhe as compras que
recusava o dinheiro e ainda ajuntavadelicado da sua lembrana:
um
ndmo
vidro de cheiro,
caixa de sabonetes, collar ou enfeite para o cabello,offerecendo
com vexame,insistia
tremulo, d' olhos baixos,
logo fugindo para forrar-se ao agradecimento. Seella,
porm,
em:
faz-lo aceitar o dinheiro,
recusava-se resentido
Qu'
isso,
Lcia ? Pois eu vou recebe paga-
.
i
BEI
NEGROd'bistoria.
mento da sua mo ta. .
?
Deixa
Uma
coisa
Entovexado:
.
.
.
muito obrigada. E, com
um
riso
Mas
olhe que eu assim no
encommendo
mais nada.
E
olhavam-se
um momento
enleados. Encar-
diam-se mais as rosas nas faces da morena e Macambira,rostoella
comfogo,
o corao aos esbarros, sentindo o
em
tartamudeava afastando-se para qu(
no lhe notasse a perturbao compromette-
dora.
Mas
o prazer de sentir, passando por
ella,
o aro-
ma
da essncia que lhe dera ou deparava
vr, ornando-lhe
os cabellos, o enfeite que lhe offertra era to in-
tenso que
elle
e ficava sorrindo
a respirar o
perfume ou olhando embevecidamente a cabecinhaairosa onde refulgia,
entre o brilho
dokado das
madeixas, o grampo de plaque. Nos seres era Lcia
quem
lia
para os senhores.
As mucamas, sentadas em roda, costurando,ouviam-lhe a doce voz dizendo as aventuras dos
romances ou os casos maravilhosos dos contostaes.
orien-
Noquejava
raro,
no
silencio attento e
commovido,
ar-
umum
sohio,
lagrimas rolavam nas finas
cambraias quando, no desenlace defuzilava
um
capitulo,
punhal cravando-se
em
peito frgil ou
um
recem-nascido, arrebatado de recamara fidalga
:
REI NEGRO
4
e
levado s occultas,
em
noite spera de inverno,
por pinlieiraes lugentes, era abandonado neve
para que,
com
elle,
desapparecesse o vestigio
ul-
trajante de
um
crime de amor.
Dumasala
feita
Manuel Gandra, retirando-se daleitura,
em meio da
deu com Macambira noSe queres ouvir, entra.
corredor, immovel, collado porta, escuta.
Que fazesMas
alii,
rapaz
?
o negro recusou-se
vexadoprendia,
e foi-se, levan-
do nalma o som da voz suave, que no era interessepela narrativa o queali o
mase
o encantoen-
da voz de Lcia, sempre harmoniosa, variandotre
a doura nas descripes poticas
a plangen-
cia nos lances sentimentaes.
Umalagem do
tarde, nos princpios de Maro,
Manuel
Gandra repousava nofilho,
escriptorio ouvindo a paroferias
ento
em
do
3.
anno do curso
medico, que lhe descrevia,
com
arrevesados termos,
a carnagem anatmica no amphitheatro, quando
Macambira, de volta dapediu licena porta.
villa,
onde fora cobrana,
Entra,Oe,
disse o fazendeiro refestelado
na rede.
escravo entrou respeitoso,'' pediu a beno
abrindo a bolsa de couro, passou ao senhornotas. Depois de estalar o queixo
um
mao de
num
bocejo largo, Manuel Gandra perguntou
Contaste Sim,
?
meu
sinh
;
mas
bom
vanc
cuniri.
:
. :
.
44
REI
NEGRO
Gandra remirou
o dinheiro sem, ao menos, dese,
atar o nastro que o apertava
atauUiando-o no
bolso, pz-se de recovo, fitando
no escravo
um
de-
morado olhar. Que diabo
tens lu, rapaz ??
Andas
triste.
Sen-
tes
alguma coisa
Nada no, sinh, graas a Deus. No, ta no ests em Tambm, comti. .
.
a vida que levassorriu e
.
.
.
Queres ser santo
?:
Gandra perguntou de improviso?
O negro Homem,
porque no te casas
Macambu^a aprumou a cabea sobresaltado coma intempestiva pergantae,
de sobr'olho carregado,
como
se
houvesse recebido
uma
affronta, tartamu-
deou encarado no senhor
Uairosto.
!
meu
sinh
.
.
Os dentes alvos reluziram-lhe emtneo, logo,
sorriso instan-
porm, se
llie
fechou severamente o
Macambira tem medo de mulher,Julinho.
chasqueou
O
negro voltou vagarosa e arrogantemente a
cabea e demorou o olhar atrevido no estudante.
O
rosto tremia-lhe
em
frmitos,
um
rictus
rasira.
gou-lhe a boca ranzindo-a
em commissurasandam por
de
O
fazendeiro insistiu
Pois
no, os mollengas
ahi pre..
sos a rabos de saias e tu,
um rapaz
novo, forte
:
REI NEGRO
45Precisamos vr
N^o, senliorisso.
!
No
est
direito.
Nem
os bichos do
matto vivem desse modo,
elles l se
arranjam. Tens casa,
uma
roa regular,
dinheiro junto.deiro atalhou- ose.
O::
negro
ia contestar,
mas
o fazen-
NoFazes
negues. Essas coisas sabem:
E
approvou
quandoque
precisa.
sirva,
bem quem ajunta encontra Mas arranja uma rapariga, coisa que d com o teu gnio e casa-te.os olhos e?
Macambira baixou
miu-mm-ou
Casa p'ra qu, meu sinh Ora, boa p'ra qu Para!!
teres familia,
o teu cantinho alegre, pois ento ?
A gente vive bem ssinho.tementeo:
E, sorrindo seu,
tris-
Onde vai leva tudo quecasa,si
no deixao
pensamento em roda da
nem anda com
cime no corao. Iscravo p'ra
iscravo.
Casamentote falta ?
quem
pode, p'ra
quem
governa.
E tu no Eusilencio,sei,
tens liberdade ?
Que
O
negro fez lentamente
um
aceno negativo recusando
a proposta. Que te falta?
meu:
sinh
!
?
Depois de meditado
ponderou
Iscravo no casa. Branco oia,;
iscoie, tira o
que o corao pede
negi'o,
no
:
casa
cu mu trabaia onde o sinh
manda. E, de novo,
meneou com a cabea negativamente, concluindo em voz baixa Quero vive nu meu sucego, cumu:
at aqui.
Soce^o
I
irrompeu o fazendeiro
;
o teu socego
.
46
REI NEGRO
bemrede
seie,
eu qual
.
Atirou as pernas, sentou-se nafi!
espalmando as mos nos joelhos, d'olhos
tos no escravo, af firmou
comQue
segurana
:
Lcia
Com
ella
casas,
liein ?
dizes ? Julinlio,
que
baquetava na secretria com
uma
esptula de osso,
pz-se vivamente de p, surpreso.
O
negro ficou
attonito, piscando airadamente os olhos,
dimento de estuporado. Acertei, hein negocio feito, hein ? o sorria.
?
num aturCom ellaque no
Anda
l
tens
umates e
mau Eu
gosto.
sou
tolo,
meu
sinh..
I
Penso
l
em
Lcia,
rapariga quasi branca!
Branca
Eos
que fosse
!
Brancos so os dentu.
ningum
tem mais alvos do que
Julinho franziu a boca irnica, levantou-se assobiando, e sahiu para o jardim bambaleando o corpo.
Macambira, que no lhe perdera os movimentos,e,
arfava, remordia os beios, estrincava os dedos
relanceando porta
um
olhar desconfiado, disse ao:
senhor, entre rcprehensivo e timido
Vanc
foi fala issoi
na
vista di
uh Julinho
no tarda nada
t na boca de tudu
mundo. Vance
vai v a caoada qui vo faze.
Caoada Vanc
?
Porque
?
vai v.Elles
Qualra ?
!
sabem com quemQuantas ha por
se
mettem
e
conhecem-me.
E
tornou o assumpto. Por ser claahi, at es-
Que tem
isso ?
.
.
REI
NEGROella lia
47por
trangeiras.
E!
oa no vou for-la,
de
ir
sua vontade, e contente.
Lcia Pois ento?
?
Pensas que no
sei
o que se passa
aqui ?tu.
sei
tudo, e ella no esconde,
nem
ella
nem
Pois se has de andar aos codiichos pelos can-
tos,
melhor tratar disso quanto antes. Entendoo vigrio e arranjamos a coisa
me com
na primeiraandar.
missa de Abril. Estamos
em comeo
de Maro, tens
tem.po de sobra para arranjar tudo.
O
negro sentia a garganta reseccada, o peito
aperra va-se-lhe
em
constrico de angustia,
umacomes-
zoeira estrondava-lhe aos ouvidos.
Espalmou a mo
borda da secretria e pz-se a tamborilaros dedos,
nervoso. Por fim sussurrou:
em
voz
trangulada
Noque gosta
sei
.
.
.
Ha
por
alii
muito moo branco;
delia.
Contra a vontade, no.
isso no..
Vem o arrependimento mais tarde e depois Eu gosto delia, gosto, digo a verdade, mas no. .
.
por
ella ser
branca. Gosto porque ella ba,
temd
preposito, nooutras.
anda por ahi desmandada cum'asdi
Mas a gente deve pensar muito antes
um
passo ansim.
!
a vida
inteira,
meu
sinh sabe.
Qual pensara mulher. Lcia
Pensar quando no se conhece
umaisso
rapariga direita. Que ma-
rido melhor do que tu pde ella querer ? Bonifrates
no faltam, mas
.
.
:
4B
REI NEGRO
Macambira quedou cabisbaixo, com o rosto aarripiar-se
em
crispaes fulgi irantes. Por fime
le-
vantou a cabea
pediu
com submissoento,
E meu sinb fala Falo, Pondo-se,falo.; :
co' ella ?
de p, Gandra
caminhou lentamente at a porta, esteve
um mo-
mento a olhar o cu sob a doura da tarde trisFalo hoje mesmo. Voltou-se. O negro te 6 dissemantinha a mesma attitude estatelada. Vai. E,olhale:
v se mandas limpar,
amanhan
cedo, aquel-,
rego l
em cima
que a agua est com.
um
gosto
de Iodo que no se pde. Mas o negro parecia depedra, immovel,ctus
com:
o rosto a enrugar-se
em
ri-
como
se supportasse dores lancinantes.
O
fa-'
zendeiro insistiu
Vai.
PJnto moveu-se, resfolegou desafogado e sahiu
em
passo vagoroso.
Beno Adens.
I
Atravessou o jardim comoceu ao terreiro onde os ces,
um somnambulo,em
des-
atropelada corrida
brincalhona, abocanhavam-so rolando aos rebolos.
A
tarde declinava suave, estridula de cigarras.
Diluiam-se as ultimas cores do sol e a sombra en-
nevoada comeava a arminhar a paizagem.cheirava. Bois
O
ar
mugiam a
espaos, longamente, e
a voz eterna das aguas, escachoando no
inferno
do moinho, roHva merencorea
e profunda.
REI
NEGRO
49
Macambira sentou-se borda do.cendeu
terreiro, acincli-
um
cigarro
e,
descaliindo o busto,
Daiido a cabea, pz-se a estalar as unhas, alheio a
tudo, no enlevo
dum pensamento
feliz,
sem
sentir
a noite que o envolvia, cheia de estrellas no cu,raysteriosamente
murmura de ruoores que subiam
da terra etn vrios tons accordes na melancolia.Sbito, levantando-se d'impeto, firmou-se
em
entono arrogante, cabea alta, olhosos braos
fitos.
Cruzou
impondo-se
em
attitude augusta, logo,
porm,
em
frenesi, m^ettendo as
mos gaforinha
e
avanando
um
passo, estacou encarado
numa
viso
herica e de
amor que
lhe corria ante os olhos
ma-
ravilhados: as suas npcias de rei
na aringa
ptria.
As descripes que Balbinaperdido,
lhe fizera do reino
sem
omittir
uma
arvoi'e
paizagem,
umfun-
objecto de uso, o
nome de um
idolo
ou de
um heroe,
umlhe
verso aos cantos de guerra ou de
amor to
do se lhe gravaram no espirito que, por vezes, se
representavam objectivamente.fientia-se
como transportado
cabilda
e,
num
instante fugaz, era o rei moo.
Naquelle momento,da,
com
a imaginao excita-
uma nuvem
esciu-eceu-lhe a \ista,
amoucaram-
se-lhe os ouvidos aos
rumores da realidademaravilhoso do
logo,trans-
porm, estendeu-se-lhe ante os oihos,figurao,
numa
o
espectculo
pensa-
mento evocado.4
.
i
50
REI
NEGROentre a sua gente:
Viu-se
em
Afrira e
rei,,
os so-
bas g^neteando, cercados de lanas que se emmara-
njhavam nos meneiosos cocares de
em que eram;
destros os guer*pelles e
reiros robustos, vistosos sob os
mantos de
plumas
os feiticeiros sarapintados,
brandindo punbaes
em
torno de manipanos
;
mU'
sicos aos pincbos cascavelando chocalhos, tangen-
do atabales, soprando possantes tubas ou frautasfinas de
canna
;
mulheres desnalgando-se
em
sara-
cotejos lbricos,
com um
guizalhar estrepitoso dee
bzios e seixos quelhes o peitoe,
formavam tangas
ornavam-
entre vkgens serni-nas, que empu-:
nbavamramos
flores
de haste longa, balouando-as ao
rythmo do passo languido, Lcia, numas andas defloridos,
sob flabellos e patoas, levada aos
hombros de
chefes,
acclamada por milhares de vo-
zes estrondosas.
Mas
as estrellas reabriram-se sointillao, su^
biram, de novo, no silencio, as vozes varias da terrae a viso
desvaneceu-se.alto.
Os sapos gargarejavam
tal!
!
explodiu o negro! . .
num
arranque. Fosso
Minha
terra
Sacudiu nervosamente a cabeamoroso,foi-se,
e,
em
passo
morro acima,
direito cabana,
seme,
vr os bacuraus que esvoaavam
em
surtos breves
na escurido dos mattos, falseando, os piscos vag^^lumes.
BEI NEOR
51
Echada
nessa noite Balbina encontrou a cabanae
fe-
apagada.;
Kondou-a, bateu porta, forou a janollafim ?entou-se no tronco
por
que formava degrau
porta, mascando, d'ol]ios perdidos no luar, espera
do seu
rei
moo.ella,
Macambira, contando comestar s, trancara-see,
mas querendocandeia, dei-
sem accender ae,
tara-sc no catre, quieto, antegosando o inesperado
bem que
lhe fora proi^ettido
no enlevo de amor,
fantasiava.
Um
claro de luar, que alumiiava a parede de
reboco, pareceu-lhe
um
vestido de noivado e logo
a imaginao pz nelle o corpo da morenasua graa ingnua.
com
a
Eraxvel,lisos,
ella, ali
estava, j dclle
!
alta, esbelta, fle-
com atoda
pelle fina e doirada, os lindos cabellos
os olhos grandes, verdesella, delle e
como
algas, o!
doce
sorriso,
para o sempre;
Ocatre
claro escorria da parede, lento
j
uma
par-
te alumiava o cho, chegava-se timidamente ao
rindo
com feminino pudor, e elle esperava-o sorcomo se nelle, em verdade, fosse o corpofadiga, tentava resistk ao sorano
amado.
Quebrado deembevecido no
idyllio imaginrio.
Fora havia rumores
iterativos,
folhas estrale-
javam. Por vezes a porta trepidava d'encontro
52
REI NEGRO
tranca, a janella rangia e a voz de Balbina rosnava
impaciente.
Por fim ficou ovores,
silencio
s
as folhas das ar-
sussurrando,
punham na
quietude
um
fr-
mito de vida.
Obaixo
negro bocejou largamente,
com
estrpito das
mandbulas,
distendeu os braos,e,
dobrou-os pord'olhos
da cabea
estirado,
immovel,
ardidos,
com
o
espirito j
abrumado, mas aindamais subtis
girando
em
torno da ida fixa, ouvia os vagos mure
mrios nocturnos, a mais
e longn-
quos at que se lhe fecharam as plpebras e mergulhou no somno.
Ecome s o
o claro do luar, subindo ao catre, deitou-se o escravo, cobriu-o
como
um
lenol diaphano
deixou quando os gallos comearam a amiu-
dar nos poleiros, nas arvores,
como
sentiu ellas
emni-
postos annunciando o dia que vinha atravz da
nvoa apagando asnhos.
estrellaSj
despertando os
Ill
Na fulgurante terra em lanlios,brandorafunda
e trrida
estiagem que fenrlia a
desentaliscava os calangos e assilvestres,
sanhava as moscas
que ziniam relum-
em
cores ao claro fulvo do sol,
com a
ba-
e o
babareu das negras, o acceitoso
sitio
regadio apparentava o tumultuoso aspecto dearinga.
uma
O
crrego dividia- oesquerda, era
em duas bandascom um ou
dispares.
um
areinho sfaro, pedrento,outro ar-
espetado de spero silvedo,
busto esmarrido.
claridade vvida, que faiscava na terra ariliispida
damente calva ou espinhada emincrustada,
macga,
em
pontos, de lascas de malacachetaali,
que expluiam centelhas, reluziam, aqui,
espe-
Ihentas poas d'agua. Coqueiros, de palmas arre-
Z
REI NEGflO
pelladas,
derreavam-se como
em
delquio
farfa-
Ihando moUemente a sopros mornos.-
Ao
longo da margem,
em
estendal de alvor of-
fuscante, a roupa corava ao sol.
Contnuas,
em
clirriada
montona, por vezes
como
chiai'
de carros, as cigarras mantinham o ree,
chino enfadonho e torpido do estio
a espaos,
dum
e
doutro ponto, saltavam gafanhotos
com umlesns e
crepitar metallico de elytros.
Nas barrancas amarellas, sulcadas emabochornados.cio e
oureladas de matto intonso, lagartos papejavam
A
immoblidade dizia com o
silen-
os raros ruidos
do vento soavam frouxos,
sinistros
como
lufadas de incndio. E, para aggra-
var o escaldo, encandeando a vista, a pedreira,escalavrada
em
laivo
escandecido,
destacava-se
branca, reticulada de veios,
como a nuca de umcomoencarapi-
gigante encovado no areal, cuja cabea fosse acollina redonda, coberta de silvas,
nhada em grenhamacias de setim.
hirsuta.
O
azul, alto e transl-
cido, tinha diaphaneidades de crystal e
branduras
Na bandaatas
direita,
em
contraste, tudo era vio
e frescura, desde a relva, muito verde e hmida,
franas
das arvores copadas que abriame
lai'gas
sombras mosqueadas de soalhas
estrias
de
sol.
O
crrego somnolento, ilhado de espumas vi-
REI NEGRO
56
trificadas
em
bolhas rutilas, descia vagaroso sob olibellulas,
voo irrequieto das
rebalsando frocos ao
longo das margens ou condensaudo-os
em
torno
das lavadeiras, brancos, rendados cmo folhos da
camisa que lhes houvesse escorrido dos hombrosamontoando-se-lhes
em volta da cintura. Eram em bando, typos vrios, negras,
cabro-
cas e mulatas.
Rapariguinhas franzinas, ainda impberes, muIheraas fornidas e desenvoltas, velhas macilentas^saias sungadas,
enrodilhadas cinta,;
ou com
uma
simples tanga
peitos ainda
em camisa em boto,
mamasflcidas,
fartas
bamboando
gelatinosas ou chatas,
dependuradas
em
linguas molles.
s upas d'ancas,^nocantigas
esforo arrancado de es-
fregarem a roupa, algazarravam ou guinchavam
em
falsete.
Negrinhos ns,
em
alarido
alegre,
chapinha-
vam no
lodo,
rebolcavam-se, trambolhavam nas
peas de roupa suja,
espadanavama carapinha
s pernadas
nagiia mergulhando, surgindo aos bufidos nos bor-
bulhes d'espumalhada.
com
como
polvi-
E
pequenos engatinhavam choramigando,
agarravam-se aos ramos, amparavam-se s pedrastenteandopassos,
equilibrando-se
;
outros,
papo
para o
ar,
pernas abertas, dormiam
em
trapos ao
abrigo das montas.
a
vezes ao choro
dum, uma negra sahia d'agua
56
REI
NEGRO
comos
as saias apegadas ao corpo, esfregando os bra-
enluvados
de
espuma, sentva-se na relva,e,
tomava
o filho ao collo
chegando-lhe o peito felicidacie doce,
boca, ficava distrahida,
numa
ven-
do-o sugar golfadas clieias aos goles lentos e gorgolej antes.
Bemtevis, das grimpas dos coqueiros, respon-
diam chocarreiramente surriada dos sanhassos. Anuns voejavam nos ramos baixos e, de pausa empausa,
com
a regularidade rythmica de
um pndulo,
soturno gemido d'ave partia da capoeira, lgubre.
O
ar abafadio, impregnado da urente evapo-
rao da terra, clieirava coivara. Os mattos resequidosestralejavam.
Refegas de vento revol-
viam
folhas,
bojavam roupas suspensas dos ramos,sal-
levantavam, terebrantes torvelins de poeira,
teando aos repiquetes, oraflando
num
cho vazio, su-
a
terra
solta,
ora
ondulando os capins
esturricados ou agitando as franas que reboliam
com
farfalboso barulho.seccas,
As roas de milho,coradas ou rotasbertas de cinzas.
com
as folhas encos-
em
fiapagens, sujas, pareciam co-
A
quandoo
e
quando, no rdegode
silencio,
vibrava
metallico
canto marciallassa,
um
gallo.
Mas a
quietao
recahia
modorrenta, abhorrida.
Longe, nas montanhas deparecia pulverisadae
um
azul esfumado, a luz
as
vrzeas, retalhadas
em
;
REI NEGROcaminlios tortuosos, tremiam
67
em
arripio lcido e
contnuo
como
se as reflectisse
um
espelho vibra-
trio. Abafava-se.
As prprias negras semi-nas, mettidas naguaou patinhando no lameiro, suspendiam, avallos,
inter-
a labuta, offegando exhaustas.
Ufa!E
Nossa Senhora! Paroce fogo! Isso
trovoada que
vem
ahi.
o claro accendia-se mais,
dum
amarello
l-
vido, scintillando nas folhas, crestando
a terra, res-
plandecendo afogueadamente no azul immaculado.
Odo
lavadouro atroava no auge da balbrdia quan-
Vacca-h^avaos
appareceu arremangada,
suada,pelos
comres
molambos esvoaando. Viam-se-lhe,
rasges da saia, trapos da camisa srdida e negro-
da carne magra.
UaiOcabrocha.
!
Donaria ... oc pur aqui.
moiu-ejo cessou de golpe
com
a presena da
As negras aproveitaram o
ncidt-nte
para
um um
repouso grrulo. Umas, subindo margem, accen-
deram
o cachimbo, outras
metteram na boca
naco de fumo mascando saboridamente. Tal espapou-se de borco fincando os cotovellos na herva
kumida,
com
o
rosto
enforquUhado nas mos
:
64ualfando.refestelou-se
REI lEGRO
resupina,
braos
abertos,
ar-
Oci
aqui cosa.
I
a modi qu'oc ando ro-
lando nu barro.
Qai cara injuada,no gosto. Poisia, s'
iclie
!
Cara
di
quem cumeup'ra c, qu'o-
bom manda
c
mmti
j no aguenta bqui di marru.
Auma
gargalhada explodiu.
A
cabrocha voltou-6
carrancuda, mediu d'alto a mulata que a troara,fula, esqueltica,
braos muito compridos, cara
ossuda, picada de bexigas.
Cala a boca,nha nessa caratendolI :
fedentina. Occ no cria vergo-
?
E, frentica, roufenha, arremet;
Oc no toma pagode cummigo, nojti
oia,
Eu
dei
cunfiana,dipois..
pixilin ?.
Toma
sin-
tido, bruca.
Dipois,os
E
gingava, viro-
virava,desafio.
a alisar
braos
msculos como
em
Ae ria
mulata em.batucou ante avexada, esfuracando a terra
fm-ia
da cabrocnagraveto.e,
com um
Mas como
as injurias continuassem levantou~se
de repello, sungando a saia encharcada
Ahsabi ?I
!
tamem
...
a gente no pde brinca.
Oc tem dirto
di diz
tudo
i
os tro
.
.
.
Quem
To bom cumu to bom. Metteu-se nagua e, atafulhando
as saias entre
as pernas, pz-se a lavar resmungando.
Donaria,
olhando-a d'esguelha, escarrou alto e cuspiu
com
!
.
:
REI
NEGRO
59
asco
e,
sem
lhe dar mais atteno, acenou a
ma
das negras.
Oia aqui, Damiana. Eu Oc mmu. Escuta aqui uma cosa.?
Esfregando os braos rolios
:*
nomeada sahiu
do crrego com a saia collada ao corpo, mode*lando-lhe as coxas gordas, o ventre ancho e re-
dondo.
Era uma negra moa, atarracada,a gaforinha tranada rente,
retinta,
com
em malhas
imbricadas,
parecendo maisse diante
uma
calote de retroz. Plantando-
de Vacca-hrava, mos nos quadris,
com
as
formas anafadas muito
em
relevo, indagou
:
Qui Ans.
?
cabrocha rosnousah daqui.
Bamo
T tudo
d'io in
cima
di
Afastaram-se. As lavadeiras, vendo-asjuntas, cochichando,
ir
muito
davam de cabea espichando
o beio maliciosamente.
Patifaria Uhmpernas,
.
.
As duas entraram no balsedo, sentaram-se sombra das pitangueirase
Donaria, encolhendo as
com:
os cotovellos nos Joelhos, o busto des-
cabido, disse
em tom de
mysterio, encarada na com-
panheira
!
60
EEI NEGRO
Oc j sabi U qu Casamentu di Liicia cum Mcambira ? Hu, gente exclamou Damiana em sobresal?
?
.
.
.
!
to.
E depois dum silencio
de pasmo: Historia... con-
testou abotoando os beios
em momo.
de increduli-
dade.
Ora
I
s'eu t dizendo
.
.
Mercedes soube
di
nb Julinho.
Damianavam-lhe daspeitos,
escancellava a boca, os olhos espocaorbitas.
Cruzou os braos premindo os
que rebojaram transbordando..
Mas qu' qu'oc t dizendo, criatura p'r'oc Casamentu ficou cumbinado..
!
?
v.
bonte. Foi sinb
memu?!
qui falo
cum
lAicia.i
Oc qu v qui veio j passo rodo nellara que remenda
ago-
Sinhmuxibai
?
u m Qu!
U!
qu^elle
qu
prende u
bota mui
nclle..
}.las
Lcia
.
.
pasmou Damiana
enclavi-
nbando
as mos, olhosv.
em
alvo, abobada.s'is^
p'r'oGpanta ...
Aquella songa-monga. Oc
Eu
qui
nunca m'inganei
c'aquillo.olla
Mu-
lata di cabellu ruivo, io nella.
A mim
nunca
ingan. Muito luxu, muita fiducia p'ra s'istrep;
nu
muxiba. Porqura
Ambio.
Foi s modi dinhro. Mcambirafaz
tem gimbo, sinh
tudu qu'eUe qu.
E
cuspi-
:
.
:
HEI NEGRO
ei
ihou
:
Mandigiiro safado
!
Dxa
ella,
Barbina t
l
in cima.
E
falaram do negro e da mulata
com
maledi-
cncias torpes, rindo escarninhas.
Vacca-orava, atirando
um
murro coxa, jm-oue,
gue Macambiia havia de pagar-lheexpresso feroz
rouca,
com
Samenhan
s'cu
no cunhici a mi d'aqnella bicha,
mais rasa du que bassra. Aquillu, mais hoje, maisinja catinga
du
tio
i
vai co' primro
qu'apparecc, ciimu cachorra d'istrada. Oc ha di v.
Eumente.
A
outra,
com nm
rebrilho de dentes claros
:
s quiria fica
nu quaitu;
delle
na
noiti
du casamentu modi v o pagodiDonaria atirou
e riu esganiada-
um!
muchocho.?
Pois^andoranj geito.
sim ...
Qu' qu'oc pensa
trambed'ar-
momu elle ha
di l.
Mulata tem fogo, ha
Sem
vergonha
!
Este!
vantaram-se. T logo
mundo Roupa t hi..
.
.
uhme,
!
Le-
Donaria enveredou matto a dentroocculta pelas arvores
j longe,
Oia,
amenhan tem zor.
l in casa.
Oc que-
rendu leva boca
.
Brigada.Damiana tornou aocrregoe,
instantes depois,
a farandula, sabedora do caso, rinchavelhava s
:
62
REI NEGRO
escancaras,
commentando impudentemente a sem-
\ergonliice da mulata.
E uma
negra cantou de im-
proviso
:
Eu
quero v p'ra conta,cr'
Eu quero v modi
Fogu pega dentru d'au I u muxiba cum mui.
O
comadrio delirou com a trova repetindo-a
por entre risadas cascalhantes. Negras mais desabridas
sambaram ao som das
vozes, corcoveando
aos reboleios.
noite,
na cozinha, as velhas nedos crioulos.
gras cachimbando,
mascando acamaradadas gosa-
ram
as micagens dasdelles,
mucamas
e
Umem
macaqueando Macambira, empinado
recacho pimpo, abarcando a cinta de
uma
cafusa, que fingia de Lcia,
deu volta cozinha,
atravz do riso e dos diterios canalhas da assistncia.
Sbito, atracando-se
com a
rapariga, forcejancollo, pz-se
do por derrub-la, a farejar-lhe oa fungar
em
cio,
fossando, grunhindo.
As velhas
dobraram-sores
em
guinchadeira largada, aos empur;
umas
s outras
e
uma
cantou, batendo as
palmasEu quero v p'ra conta, Eu quero v modi cr.
.
.
P]
O crioulo e a
mucama tripudiavam
desconjun-
tando-se
em
rebolir obsceno, agachando-se penei-
:
.
REI
NEGROa
63
radamenteos dois a
;
mas
cl'impeto,
um
grito,
pondo-se
prumo, cliocaram-se em iimbigada.
E
foi
um
rebolio alegre e estrondoso de applausos.
Etas,
o
quadrado
,
ainda depois do toque de
si-
lencio,
com
os negros sentados
no limiar das por-
muito tempo rumorejou sarcstico com o zum-
bido da cantarola zombeteiraEli
quru v p'ra conta,cr.
Eu quero v modi
.
Foi no escriptorio, tarde, que os noivos tive-
ram
o primeiro encontro.
Macambira dava conta
do servio que fizera na matta com trs negros, lim-
pando a fonte
e o rego
de onde desalagara todo o
balseiro de folhas e liervas mortas,
amotando
as
margens para canalisar a agua, quando Lcia appareceu porta, parando no limiar.
Senhor me chamou Entra ordenou o fazendeiro.?!
Osos.
negro perturbou-se. Fez
uma
atordoada volta
olhando airadamente
em
torno, a remexer nos bole,
Tirou o leno, limpou o rosto
atarantado,o olhar era
ia
pondo o chape a quando deu com
Manuel Gandra. Retrahiu-se vexado, como surpreudido
em
falta.
O
fazendeiro continha, a custo, o riso ante o ar
:
64
REI NEGRO
canliestro dos dois. Mirou-os tranquillamente e disse,
em tom de galhofa Homem, vocs parecem:
Quese
crianas.
Que diabo
i
Lcia encostara-se ao umbralda, a xjonta
e retorcia,
acanha-
do casaco. Entra duma vez, rapariga.
ests fazendo abi fora ?
A. mulata adiantou-se tmida. Gandra sentou-
na
rede, accendeuse desse
um
charuto
e,
vagarosamente,:
como
u