Download - comunicação linguagem inovações midiáticas
ReitoraÂngela Maria Paiva Cruz
Vice-ReitoraMaria de FáHma Freire Melo
Ximenes
Diretora da EDUFRNMargarida Maria Dias de Oliveira
Conselho EditoralCipriano Maia de Vasconcelos
(Presidente)Ana Luiza Medeiros
Humberto Hermenegildo de AraújoJohn Andrew Fossa
Herculano Ricardo CamposMônica Maria Fernandes Oliveira
Tânia CrisHna Meira GarciaTécia Maria de Oliveira MaranhãoVirgínia Maria Dantas de AraújoWillian Eufrásio Nunes Pereira
Editor
Helton Rubiano de Macedo
Capa
Taciana Burgos
Revisão
Séfora Cavalcante
Editoração eletrônica
Tobias Queiroz
Pré-impressão
Jimmy Free
Supervisão editorial
Alva Medeiros da Costa
Supervisão gráfica
Francisco Guilherme de Santana
Base de Pesquisa Comunicação, Cultura e MídiaSala COMÍDIA - Laboratório de Comunicação Social, campus da UFRN
FICHA TÉCNICA
APRESENTAÇÃO
A reconfiguração da comunicação midiáHca na esfera pública contem-porânea vem promovendo uma série de transformações sociais que, de igualmodo, possibilita novas reflexões sobre a cultura, a economia, a políHca e aorganização da vida coHdiana. Reconhecer esse novo cenário implica prob-lemaHzar questões que envolvem os sujeitos e suas relações com omeio. Talsituação parHculariza uma realidade que necessita ser invesHgada sob diver-sos aspectos em cujo contexto estão os mecanismos de interação entre osatores sociais e a mídia, do ponto de vista da produção de senHdo e das práH-cas sociais. Foi pensando assim que a base de pesquisa Comunicação, Cul-tura eMídia gerou vários temas epistemológicos para compreender este novofenômeno social, reunidos em três eixos: a comunicação, a linguagem e asinovações midiáHcas.
Esta é a segunda publicação do nosso grupo, porém com a perspecHvaque, inclusive, norteia o presente trabalho: um livro eletrônico, que possibil-itará o maior acesso aos arHgos que aqui estão elencados, na perspecHva dademocracia do conhecimento. O livro reúne trabalhos de professores-pesquisadores e alunos de pós-graduação em níveis de mestrado edoutorado, os quais se uHlizam dos estudos culturais, da economia políHca damídia, da etnometodologia e da análise do discurso comométodos de inves-Hgação.
A COMÍDIA funciona desde 2003 e tem como principal compromisso de-senvolver estudos e pesquisas sobre a comunicação midiáHca e suas inter-faces com a cultura, cujos frutos se refletem em suas várias iniciaHvas denatureza cienIfica, tais como: realização de seminários, conferências,colóquios, fomento à iniciação cienIfica, produção de arHgos e publicaçãode livros.
Acreditamos que estamos cumprindo o nosso papel de pesquisadores,com vistas ao engajamento do grupo à comunidade cienIfica.
Adriano GomesCoordenador da Base de Pesquisa Comunicação, Cultura e Mídia
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Comunicação, linguagem e inovações midiáHcas / organizadoresAdriano Lopes Gomes e José Zilmar Alves da Costa. – Natal, RN:EDUFRN, 2011.
163 p.
ISBN 978-85-7273-768-5
1. Comunicação midiáHca. 2. Linguagem. 3. Novas tecnologias.I. Gomes, Adriano Lopes. II. Costa, José Zilmar Alves.
CDD 302.23RN/UF/BCZM 2011/61 CDU 316.774
Divisão de Serviços TécnicosCatalogação da Publicação na Fonte. UFRN /
Biblioteca Central Zila Mamede
SUMÁRIO
Da leitura do mundo à leitura da palavra: Considerações sobrea formação do leitor no ensino de ComunicaçãoAdriano Lopes Gomes ......................................................................
O discurso da resistência no espaço poéHco da literatura de cordel:Uma leitura dos eventos discursivo-argumentaHvos sobre o episódiode Lampião em Mossoró - RNAna Shirley........................................................................................
Silêncio! A radionovela está no arEdivânia Duarte Rodrigues.................................................................
A Folha de S. Paulo, o grande irmão e as Diretas JáEmanoel Francisco Pinto Barreto.......................................................
Letras de música e seu estatuto de corpus em análisede discurso: anotações metodológicasJosé Zilmar Alves da Costa.................................................................
Publicidade e ideologia: a análise dodiscurso em comerciais publicitáriosJosenildo Soares Bezerra....................................................................
O discurso ecológico nos quadrinhos de Chico BentoMarcilia Luzia Gomes da Costa Mendes.............................................
Estratégias narraHvas do BBB 3: Do anonimato à famaMirian Moema Pinheiro.....................................................................
Comunicação e Hospitalidade no CiberespaçoRonaldo Mendes Neves.....................................................................
A comunicação gráfica na interface dehipermídia e seus atributos de usabilidadeTaciana de Lima Burgos......................................................................
5Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas
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Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 7
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
As políHcas de leitura vêm sendo discuHdas nos diversos segmentos da
educação, destacando-se a sua relevância para a aquisição do conhecimento,
da cultura, do saber e da conscienHzação políHca, face aos desafios do
mundo. Saber ler tornou-se, pois, condição indispensável para o acesso a
qualquer área do conhecimento e, mais ainda, à própria vida do ser humano,
uma vez que a leitura apresenta função uHlitária e transformadora da so-
ciedade. Porém, pesquisas indicam que a falta de leitura não se concentra
apenas no ensino fundamental, mas prossegue no ensinomédio e, por efeito
dessa constatação, alcança o ensino superior. Sendo assim, nem sempre é
correto acreditar que o aluno chega à universidade adotando práHcas sis-
temáHcas de leitura. Este trabalho procura idenHficar as possíveis relações
entre as experiências de leitura na formação do jornalista, além de reunir in-
formações que respaldam nosso postulado sobre a necessidade de se adotar
políHcas de leitura no ensino da Comunicação. Como base empírica das
análises e reflexões, ainda apresenta os resultados da pesquisa As interfaces
da leitura de noIcia no ensino de jornalismo: um estudo etnometodológico
entre Brasil e Portugal, realizada entre 2004 e 2006.
AdmiHmos que haja uma lacuna quanto ao diagnósHco do estado de
leitura dos alunos de Comunicação Social – habilitação em jornalismo, fu-
turos formadores de opinião, de quem se espera a competência para saber
ler e escrever2. Tais requisitos recaem sobre a formação de leitores críHcos e
Da leitura do mundo à leitura da palavra:Considerações sobre a formação doleitor no ensino de Comunicação
Adriano Lopes Gomes1
Adriano Lopes Gomes/Da leitura do mundo à leitura da palavra:Considerações sobre a formação do leitor no ensino de Comunicação
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experientes para traduzir, em textos, a realidade social em que vivem e
atuam, cujo contexto nos autoriza afirmar que a formação do jornalista tem
estreita relação com a formação do leitor. No levantamento que fizemos, não
conseguimos idenHficar estudos semelhantes no Brasil que pudessem rela-
cioná-los ao estado da arte. Em Portugal, convém destacar a invesHgação de
Pinto e Marinho (2005) sobre práHcas e aHtudes face aos media dos estu-
dantes de jornalismo: um estudo de caso na Universidade do Minho.
O aluno de jornalismo que exerce domínio sobre seu objeto de conhec-
imento, através de práHcas de leitura, é capaz de agregar os requisitos de que
necessita para sua emancipação e autonomia no âmbito educacional e so-
cial. Emancipação, porque o aluno encontrará na leitura o suporte de infor-
mação e experiência, permiHndo-lhe o estatuto da criHcidade por estabelecer
parâmetros de referência à diversidade de episódios que exigirão julgamento
e tomada de decisão própria. Autonomia, porque a leitura apontará uma série
de possibilidades que caracterizarão o leitor como aquele que sabe em-
preender a busca necessária ao conhecimento e à aprendizagem na hora e
tempo em que precisa, de forma voluntária e consciente. A despeito disso,
convém ainda assinalar as interfaces da leitura na produção da noIcia, razão
pela qual defendemos que o aluno de jornalismo deve recorrer aos textos de
natureza diversa, notadamente de jornais, de onde se podem reunir infor-
mações estruturais e técnicas para elaborar as matérias.
Silva (1992, p. 42) enfaHza que a leitura está inHmamente relacionada
com o sucesso acadêmico do ser que aprende, e, contrariamente, à evasão es-
colar. Mais adiante, o autor conclui que escrever e ler são atos comple-
mentares: um não pode exisHr sem o outro (idem, p. 64). Sendo assim, para
escrever bem, esse aluno terá na leitura o suporte do conhecimento a ser ar-
mazenado em suamemória de longo prazo (SMITH, 1989; LENCASTRE, 2003),
na organização do repertório lexical e semânHco, à semelhança de fontes ma-
triciais. Por tal moHvo, defendemos que ler é estabelecer relações entre o
texto e o conteúdo sistemaHcamente internalizado sob a forma de conheci-
mentos. Abordamos a questão do conhecimento como resultado de exper-
iências que se sobrepõem àquilo que se é e já se sabe. Essa ideia reforça nossa
concepção de que a práHca da escrita também pode estar atrelada às expe-
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 9
riências de leitura.
2 EXPERIÊNCIA E LEITURA: SABER NARRAR O ACONTECIMENTO
A concepção de experiência é aqui adotada no senHdo pragmáHco que
pressupõe a aquisição de informações por meio da vivência no mundo, rela-
cionando-se com omeio e com os objetos portadores de significados, daí ex-
traindo conhecimentosmúlHplos que alicerçam as práHcas coHdianas de cada
indivíduo. Experiência e conhecimento se complementam quando abor-
damos questões do desenvolvimento cogniHvo em face da funcionalidade
que ambos apresentam na formação do leitor. São funcionais à medida que
revelam uHlidade no ato de estabelecer a compreensão de si mesmo, do
outro e do mundo que cerca esse leitor em conInuo processo de formação.
A psicolinguísHca toma por base a teoria da informação que postula a
relação proporcional entre quanHdade de informações e eliminação de in-
certezas na veiculação de umamensagem. Convém definir informação como
a medida de redução de incertezas sobre um determinado estado de coisas
pela eliminação de alternaHvas improváveis (SMITH, 1989, p. 71) e por apre-
sentar sempre uma taxa de novidade ao receptor. Se ler implica idenHficar
conceitos e palavras cujo acervo reside na memória, isto significa dizer que
quanto maior o armazenamento de informações, mais ampla será a relação
entre o que é lido e, simultaneamente, compreendido.
Ressaltamos tais pressupostos para relacionar a relevância da leitura no
ensino de Comunicação, reforçando a acepção de que o jornalista é, em
primeira instância, um observador e relator dos fatos. Ora, narrar histórias
do coHdiano sempre esteve associado à aHvidade do jornalista, empenhado
em descrever os episódios para transmiH-los a uma comunidade de inter-
locutores que não presenciaram os acontecimentos. Rodrigues (apud
Traquina, 1993, p. 27) assinala que o acontecimento situa-se [...] na escala
das probabilidades de ocorrência, sendo tanto mais imprevisível quanto
menos provável for sua realização. Por tal moHvo, a “estória” apresenta uma
novidade, fugindo da previsibilidade, para se caracterizar como algo novo,
assumindo, assim, o status de noIcia. Nesse senHdo, revela-se o caráter da
profissão, pautado pelo ato de narrar os fatos. O mundo torna-se, pois, o
Adriano Lopes Gomes/Da leitura do mundo à leitura da palavra:Considerações sobre a formação do leitor no ensino de Comunicação
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grande cenário sobre o qual o jornalista vai atuar para daí recolher os frag-
mentos da realidade e publicá-los na mídia.
Queremos, com isso, defender nosso ponto de vista sobre o qual ates-
tamos a eficácia da leitura como experiência de modo a recolher as infor-
mações do mundo cujo conteúdo será o substrato para se poder contar as
histórias. Tuchman (1993) afirma que as noIcias são construções, narraHvas,
“estórias”. Se assim o é, a um bom narrador será requisitado conhecimento
acumulado que se consolida na vida práHca. Traquina (2000, p. 27) cita Eric-
son, Baranek e Chan3 para falar sobre o chamado “vocabulário de prece-
dentes”, ou seja, os saberes necessários para um bom desempenho
profissional. Dentre os quais, o autor menciona o “saber de narração”, ao es-
clarecer que consiste na capacidade de compilar todas essas informações
[que orientam para elaboração de uma boa noIcia] e ´empacotá-las´ numa
narraHva noHciosa. Por tudo exposto, parece tautológico afirmar que só se
conta uma boa história quem sabe o quê e como contar.
3 AS REPRESENTAÇÕES DE LEITURA NA AQUISIÇÃODO CONHECIMENTO: RESULTADOS DA PESQUISA
A pesquisa As interfaces da leitura de noIcia no ensino de jornalismo:
um estudo etnometodológico entre Brasil e Portugal4, pretendeu fazer um
estudo comparaHvo com alunos do curso de Comunicação Social de duas uni-
versidades públicas: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, situada
geograficamente na cidade do Natal-RN, Brasil, e da Universidade Nova de
Lisboa, na cidade de Lisboa, Portugal. Procurou problemaHzar questões que
incidem sobre o ensino de Comunicação, tentando idenHficar as possíveis re-
lações entre as experiências de leitura e o desempenho acadêmico, decor-
rendo daí a delimitação do perfil de leitor entre os sujeitos pesquisados.
Tratou-se, pois, de um estudo etnometodológico, comparaHvo, de base
quanHtaHva e qualitaHva, a parHr do qual Hvemos a intenção de saber junto
aos alunos de jornalismo, dentre outras variáveis, a frequência e o gosto pela
leitura, a opção pelo veículo – impresso ou digital –, a capacidade de com-
preensão das noIcias, as editorias e assuntos jornalísHcos mais apreciados,
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 11
os significados atribuídos à leitura de jornal na vida acadêmica, além dos di-
versos suportes de leitura. AdmiHmos que essas representações de leitura
caracterizam a formação universitária e podem sinalizar determinadas con-
Hngências para o futuro da aHvidade jornalísHca.
Os sujeitos foram alunos de jornalismo, de ambos os sexos, selecionados
aleatoriamente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e da
Universidade Nova de Lisboa (UNL). O espaço amostral totalizou 102 alunos
da UFRN, e 60 alunos da UNL, cuja abordagemmetodológica consisHu na apli-
cação de um quesHonário com 41 questões semiestruturadas. Os sujeitos
foram compostos por 37, 25%, do sexo masculino, 62,75% do sexo feminino
(Brasil); e 18,33% do sexo masculino, 81,66% do sexo feminino (Portugal),
sendo que a maioria possuía idade entre 21 e 25 anos (48,02%, Brasil; 50%,
Portugal). Quanto à ocupação, 57,84% (Brasil) e 10% (Portugal) disseram que
trabalham ou fazem estágio, e os demais informaram dedicação integral aos
estudos. Com estes números gerais, podemos observar que tanto no Brasil
quanto em Portugal o interesse pela carreira jornalísHca está atualmente
voltado à população jovem feminina, reconfigurando uma situação de algum
tempo atrás, nos dois países, onde se era possível ver as redações de jornais,
emissoras de rádio e de televisão ocupadas quase exclusivamente por profis-
sionais do sexo masculino.
Os sujeitos pesquisados revelaram interesse pela leitura, o que reforça
a concepção de que ler é uma aHvidade prazerosa, além de conferir status
social. Quase todos os entrevistados disseram que gostam de ler (99,02%,
Brasil; 100%, Portugal), argumentando que esta é uma das formas de ampliar
os horizontes de conhecimento, pois a leitura, além de deixá-los informados
e atualizados sobre o que acontece no mundo, ainda é uma práHca
“agradável”, “diverHda” e “prazerosa”. As respostas mostram a natureza uHl-
itária e o caráter lúdico da leitura, pois inferimos que os sujeitos demonstram
interesse por ler para adquirir informações, situarem-se no contexto coHdi-
ano dos acontecimentos, mas também por proporcionar estados de fruição.
Quanto à leitura de jornal, considerada como relevante aos alunos de jornal-
ismo, mereceu uma análise mais detalhada, por envolver textos com os quais
irão se deparar nas suas roHnas profissionais, já na condição de produtores
Adriano Lopes Gomes/Da leitura do mundo à leitura da palavra:Considerações sobre a formação do leitor no ensino de Comunicação
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de noIcia. Portanto, a leitura de jornal, além de favorecer a apreensão dos
acontecimentos noHciosos, ainda permite adquirir formas e esHlos de pro-
dução textual.
À pergunta “você lê jornal?”, 94,12% (Brasil) e 98,33% (Portugal) dis-
seram que sim; 5,88% (Brasil) e 1,66% (Portugal) afirmaram que não. No
Brasil, a maioria revelou interesse por noHciário local (81,37%), seguido de
noHciário nacional (66,67%). Já em Portugal a situação é diferente: 85% dis-
seram que se interessam mais por noHciário nacional e 71,66%, por cultura.
A proximidade geográfica com o acontecimento é um dos valores-noIcia
sobre os quais os consumidores de noIcia (news consumers) têm maior in-
teresse, conforme um dos princípios da aHvidade jornalísHca. Horóscopo e
Classificados são os assuntos menos lidos pelas duas amostras.
Entendemos que, nos dois países, as páginas de classificados são lidas
em menor proporção em razão da sua função imediata de informar, vender,
trocar uma diversidade de bens e objetos, nem sempre na ordem de priori-
dade diária dos sujeitos pesquisados. O que merece atenção é a disparidade
estaIsHca entre Brasil e Portugal no que respeita à leitura da editoria de
economia, cujos dados indicam que nos dois países leem-se menos assuntos
desse segmento noHcioso. Porém, em Portugal os números são considerav-
elmentemenores (1,66%), o que nos leva a acreditar que tal realidade reflete
na questão da densidade lexical e semânHca, própria da linguagem adotada
nos textos de economia. Ou seja, há dificuldades de compreender o que, de
fato, as noIcias de Economia querem dizer, o que demanda do leitor um con-
hecimento prévio sobre aquilo que é abordado em suas páginas. A dificul-
dade de compreensão, neste caso, pode gerar desinteresse.
No tocante à dificuldade para compreender determinados assuntos ed-
itoriais, 34,31% (Brasil) e 31,66% (Portugal) disseram que sim, ou seja, que en-
frentam problemas de compreensão, sendo que as duas amostras encontram
maior dificuldade em Economia (27,45%, Brasil; 28,3%, Portugal); PolíHca
(14,71%, Brasil; 8,33%, Portugal) e Internacional (7,84%, Brasil; 8,33%, Por-
tugal).
Estes indicadores fazem emergir uma problemáHca sobre o ensino de
jornalismo especializado, posto que na grade curricular do curso de Comuni-
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 13
cação Social – habilitação em jornalismo, da UFRN e da UNL, não há disci-
plinas como “jornalismo econômico” e “jornalismo políHco”, as quais, pelo
que deduzimos, poderiam ser necessárias para desfazer ou pelo menos clar-
ificar tais dificuldades de interpretação de noIcias com conteúdos tão es-
pecíficos, além de capacitá-los a produzir textos daquela natureza. Na UNL,
diferentemente da UFRN, há disciplinas voltadas para as teorias da econo-
mia e da políHca.
A compreensão é um fenômeno decorrente da leitura que reside na ca-
pacidade de se atribuir senHdos ao objeto lido. Recorrendo aos aportes da
psicolinguísHca, podemos dizer que a compreensão é fruto do conhecimento
armazenado namemória de longo prazo do leitor (SMITH, 1999; LENCASTRE,
2003; KATO, 1999). Devemos entender, contudo, que a leitura de um texto
jornalísHco está inserida no sistema de representações que irrompe uma con-
venção própria de quesHonamentos para daí se inferir o senHdo dos acon-
tecimentos narrados. Assim sendo, a experiência será necessária ao ato da
leitura, uma vez que o conhecimento prévio auxiliará o leitor no momento
de quesHonar o texto para poder desvelar os significados nele intrínsecos.
Contudo, entendemos que a experiência não ocorre senão por meio da sis-
temaHzação de determinada aHvidade que demanda tempo, interesse e mo-
Hvação. Se os sujeitos pesquisados demonstram dificuldades de compreender
assuntos como economia e políHca, acreditamos que se deve ao fato de exi-
gir do leitor um repertório de informações específicas nessa área de conhec-
imento, muitas vezes inacessíveis.
Quanto à “frequência de leitura” de jornais impressos, os entrevistados
responderam o seguinte: Diária (40,2%, Brasil; 16,6%, Portugal); Algumas
vezes na semana (37,25%, Brasil; 56,6%, Portugal); Semanal (11,76%, Brasil;
15%, Portugal); Eventual (3,92%, Brasil; 10%, Portugal).
Perguntamos ainda aos sujeitos sobre as preferências midiáHcas no sen-
Hdo de deixá-los informados. ObHvemos as seguintes respostas de múlHpla
escolha: Ler jornais impressos (54,9%, Brasil; 50%, Portugal); AssisHr aos tele-
jornais (74,51%, Brasil; 80%, Portugal); Acessar à Internet (69,62%, Brasil;
21,66%, Portugal); Ouvir rádio (25,49%, Brasil; 23,3%, Portugal).
Os números nos mostram a semelhança entre os dois países, exceção
Adriano Lopes Gomes/Da leitura do mundo à leitura da palavra:Considerações sobre a formação do leitor no ensino de Comunicação
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feita à opção “acessar à internet” que apresentou desequilíbrio estaIsHco, a
parHr dos quais podemos afirmar que os alunos de jornalismo do Brasil pref-
erem ficar informados através da rede mundial de computadores, possivel-
mente lendo os jornais em versão online ou acessando aos portais de noIcia
ou, de outra forma – e em números que se aproximam –, assisHndo aos tele-
jornais. Os estudantes de jornalismo de Portugal também preferem assisHr
aos telejornais, mas como segunda opção está a leitura de jornais impressos.
Os números parecem indicar que os fatores como dificuldade de acesso e
preço dos jornais nacionais, no Brasil, geram a desproporcionalidade. A Folha
de S. Paulo e O Globo, apesar de serem referência no país, são pouco lidos
pelos alunos em Natal, o que jusHfica a recorrência aos telejornais e à inter-
net comomeios de informação. Em Portugal, pelas dimensões geográficas, os
jornais nacionais naquele país estão mais ao alcance dos alunos, razão pela
qual entendemos o baixo índice de sujeitos que acessam à internet para se
informar, uma vez que não há necessidade para que tal aconteça, não ob-
stante reconheçamos que uma situação não invalida a outra.
Ainda sobre a sistemaHzação da leitura, perguntamos: “Algo o impede de
ler jornal diariamente?”. 62,75% (Brasil) e 63,3% (Portugal) disseram que sim.
As jusHficaHvas foram estas: Não tenho tempo (37,25%, Brasil; 43,33%, Por-
tugal); Prefiro me ocupar com outra aHvidade (2,9%, Brasil; 1,66%, Portugal);
Não tenho dinheiro para comprar (22,25%, Brasil; 26,6%, Portugal).
Os dados indicam que os alunos de jornalismo do Brasil e de Portugal, em
sua maioria, gostam de ler jornais. Porém, afirmam que não dispõem de
tempo – possivelmente por ocupações de trabalho ou de estágios extracur-
riculares, no caso do Brasil; e outras ocupações não reveladas, em Portugal,
de acordo com os números indicados –, ou dinheiro para comprar jornais di-
ariamente.
É lícito retomar a questão da leitura de jornal como forma de apreensão
do conhecimento e da estrutura da narraHva, abordada anteriormente. RaH-
ficamos o pressuposto de que os alunos de jornalismo devem se acostumar
com a linguagem escrita nos jornais como forma de organizar seus próprios
textos e que obedeçam a determinados critérios técnicos e esHlísHcos.
Traquina (2000, p. 27) assinala que “as noIcias são elaboradas com a uHliza-
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 15
ção de padrões industrializados, ou seja, formas específicas que são aplicadas
aos acontecimentos, por exemplo, a pirâmide inverHda”. Por isso, não é ape-
nas a teoria do mundo (cf. SMITH, 1999) que entra em discussão no ato da
leitura, mas questões práHcas que implicam nos desdobramentos da com-
petência acadêmica e profissional.
4 POR UMA POLÍTICA DE LEITURA NO ENSINO DE COMUNICAÇÃO
Com esta pesquisa, vimos que a representação de leitura é propor-
cionalmente significaHva aos objeHvos e finalidades que se apresentam aos
alunos, ou seja, se terá função uHlitária, se atenderá às exigências dos ex-
ames de qualificação, se proporcionará momentos de diversão, prazer, ou
ainda por necessidade da escolha profissional. Os sujeitos pesquisados re-
conhecem que ler confere status social e é fundamental para que eles se
situem numa sociedade letrada, em contato com inúmeros canais de infor-
mações, por experimentarem os efeitos que a leitura possibilita. Entretanto,
observamos que a leitura ainda é desafio ao culHvo diário e sistemáHco, quer
de livros quer de jornais. A literatura, enquanto produto estéHco e de prazer,
e revistas de gêneros variados demonstraram ser primordiais ao desenvolvi-
mento do gosto pela leitura, em razão do elevado percentual na ordem de in-
teresses dos sujeitos. Ainda assim, a televisão é a mídia que eles recorrem
com maior frequência para ficar informados, não obstante declararem que
gostam de ler e que uma parte acessa a internet. Inferimos que assisHr ao
telejornal indica o apelo imagéHco da televisão que termina por concentrar
maior interesse em relação aos jornais impressos. Observamos que no
processo de formação do jornalista, nas duas universidades, as experiências
de leituras estão imersas não só no ambiente acadêmico, mas fora do con-
texto universitário, notadamente no seio familiar ou nos ambientes públicos.
É legíHmo afirmar também que a apropriação de novos conhecimentos am-
plia o repertório de leitura e altera o comportamento metacogniHvo, isto
porque os sujeitos declararam que a leitura promove a aprendizagem e os
deixa mais cultos.
É provável que o reconhecimento da leitura como base de formação
Adriano Lopes Gomes/Da leitura do mundo à leitura da palavra:Considerações sobre a formação do leitor no ensino de Comunicação
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profissional pode levar os aprendizes à condição de atores sociais que a iden-
Hficam como fonte de criHcidade, de prazer, de construção de valores pes-
soais e sócio-históricos, além de parâmetros de referenciação que
possibilitam reunir as informações para escrever e narrar uma noIcia, cujo
texto refleHrá sua capacidade de observar o mundo e desempenhar as
funções de jornalista.
NOTAS
1 -Professor do Departamento de Comunicação Social e dos Programas
de Pós-graduação em Estudos da Mídia - PPgEM e Estudos da Linguagem –
PpgEL da UFRN. Coordenador da Base de Pesquisa Comunicação, Cultura e
Mídia.
2 - Quando evidenciamos aqui a questão de “saber ler” não se entenda
a situação de decodificar palavras e frases, porém compreender os textos
para além das linhas, idenHficando elementos informacionais que não são
tangíveis na materialidade gráfica.
3- Ericson, Richard V.; Baranek, Patrícia M.; e Chan, Janet B. (1987). Vi-
sualizing Deviance: A study of News Sources. Toronto: University of Chicago
Press.
4 - Quando nos referirmos ao Brasil, entenda-se, portanto, à população
de sujeitos pesquisados, limitada à amostra dos alunos de jornalismo da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Norte, tanto quanto a Portugal, cujo es-
tudo foi circunscrito aos alunos da Universidade Nova de Lisboa, em Lisboa.
REFERÊNCIAS
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(Texto e Linguagem).
LENCASTRE, Leonor. Leitura. A compreensão de textos. Lisboa: Fundação Ca-
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MARINHO, S. & PINTO, M. O papel do acompanhamento da atualidade na
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Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 17
ção apresentada no IV SOPCOM, Universidade de Aveiro, 21 de Outubro de
2005.
RODRIGUES, Adriano Duarte. O acontecimento. In TRAQUINA, Nelson. Jor-
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(Coleção comunicação e linguagem)
______.O estudo do jornalismo no século XX. São Leopoldo, RS: Editora Uni-
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______. O poder do agendamento: análise e textos da teoria do agenda-
mento. Lisboa: Minerva, 2000.
TUCHMAN, Gaye. Contando ‘estórias’. In TRAQUINA, Nelson. Jornalismo:
questões, teorias, ‘estórias’. Lisboa: Vega, 1993
Ana Shirley /O discurso da resistência no espaço poéHco da literatura de cordel: Uma leiturados eventos discursivo-argumentaHvos sobre o episódio de Lampião em Mossoró - RN
18
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Conforme BakhHn (1992), a língua é fator social vinculada à realidade
sócio-histórica do sujeito. Nesse senHdo, ela é algo concreto, resultado da
manifestação individual de cada falante no ato da enunciação. Desse modo,
o filósofo russo atribui à situação enunciaHva o caráter de pano de fundo para
se compreender e explicar a estrutura semânHca de qualquer ato de enunci-
ação, seja oral ou escrito.
Observamos que segundo a óHca bakhHniana a concepção de língua
transcende as concepções tradicionais de linguagem na medida em que
coloca em cena a interação verbal como fator preponderante do uso da lín-
gua por seus falantes. Diante do exposto, é possível depreendermos que é
por meio da enunciação que os humanos interagem entre si, no interior de
certo processo dialógico com papéis sociais bem definidos, a parHr de um
tempo e de espaço delimitados.
Sob esse ponto de vista, a teoria bakhHniana, ao inserir o indivíduo em
um processo de interação verbal e enfaHzar que é na comunicação (enunci-
ação) o lugar onde nasce a intersubjeHvidade humana, adota a visão de signo
dialéHco, em divergência ao signo linguísHco Saussuriano. Enquanto que para
Saussure (1969), a língua é um sistema social abstrato, monológico, ho-
mogêneo desvinculado da realidade contextual do sujeito na perspecHva de
BakhHn (1992), o sistema linguísHco não é neutro, desprovido de uma ide-
O discurso da resistência no espaçopoéHco da literatura de cordel: Umaleitura dos eventos discursivo-argumentaHvos sobre o episódio deLampião em Mossoró - RN
Ana Shirley de Vasconcelos O. E. Amorim1
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 19
ologia, ele é vivo, dinâmico, relacionado com o contexto e submerso numa
ideologia.
A enunciação não é um ato individual, mas social. Ainda para o
pesquisador russo, o individual e o social são indissociáveis. “os senHdos ex-
istentes na sociedade são concreHzados em textos pelos discursos, repas-
sando uma ideologia, o texto é, portanto, a materialidade do discurso”
(CUNHA 2004, p. 95). Por isso, língua e ideologia são inseparáveis das
condições materiais de existência do ato enunciaHvo e do processo de inter-
ação verbal que se manifesta, por meio do discurso, pois “A situação social
mais imediata e omeio social mais amplo determinam completamente, e por
assim dizer, a parHr do seu próprio interior, a estrutura da enunciação”
(BAKHTIN, 1992, p. 113).
Essa visão da linguagem nos leva a crer que o dialogismo proposto por
BakhHn (1992) é parte inerente da interação social. Nesse senHdo, enquanto
sujeitos, estamos inseridos numa teia de relações socialmente determinada
na qual o ato dialógico, entendido como o espaço de tensão, de confronto
entre o “eu e o outro” estabelece, além das relações de senHdos diversos
entre índices sociais de valor, estabelece também, outros processos discur-
sivos (dialógicos), é o caso da mulHplicidade de vozes que falam paralela-
mente inseridas no tecido das relações sociais.
Ao refleHr sobre o discurso escrito, percebemos que na materialidade
textual não há apenas a presença única da voz do seu produtor, mas há vozes
plurais que se configuram a parHr de perspecHvas e pontos de vistas diversos.
Em conformidade com BakhHn, o texto escrito “é parte integrante de uma
discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta,
confirma, antecipa as respostas e objeHva potenciais, procura apoio e etc.”
(BAKHTIN, 1992, p. 123).
Nesse caso, considerando que a enunciação do “eu” está sempre rela-
cionada e condicionada pelo outro, e que o discurso argumentaHvo somente
se estabelece na interação do par “EU-TU” na qual as forças ideológicas dos
sujeitos enunciaHvos se definem e as relações de senHdo aparecem, enten-
demos que os textos escritos os quais compõem nosso corpus apresentam
também uma natureza argumentaHva. De acordo com Koch (1987, p. 19), “o
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homem pormeio do discurso, a ação verbal dotada de intencionalidade, tenta
influenciar o comportamento alheio ou fazer com que o outro comparHlhe
suas ideias”.
Em se tratando do gênero noIcia, universo de nossa pesquisa, verifi-
camos que convencionalmente essa produção textual é concebida pela óHca
da neutralidade em que ocorre o relato imparcial de fatos e acontecimentos
recentes. Em virtude disso, a sua produção e a sua recepção, por exemplo,
criam para o enunciador o compromisso de assegurar o valor de verdade do
conteúdo proposicional do texto. Para o produtor, a noIcia vincula o com-
promisso de confiança do leitor no valor de verdade do acontecimento re-
latado nela.
Perante essa definição do gênero em questão, entendemos que sua in-
tenção comunicaHva seja informar de maneira imparcial, clara e objeHva;
quanto aos papéis conferidos aos sujeitos, imaginamos uma relação distan-
ciada; já a cena enunciaHva varia de acordo com o Hpo de acontecimento
sendo reportado; e, finalmente, em relação às convenções, podemos pensar
no texto escrito como produto acabado, cristalizado, objeHvo, com forte co-
esão lexical para evitar redundâncias; entre outros. Conforme esses fatores,
o texto noHcioso é trabalhado com padronização, obedecendo a regras rígi-
das impostas pelos manuais de comunicação, com sua estrutura definida (re-
latar o fatomostrando o que aconteceu, quando e onde aconteceu), por meio
de uma linguagem impessoal e formal.
Com os avanços ocorridos nos estudos da linguagem e da comunicação,
em especial, com as pesquisas realizadas na área da Análise do Discurso, no
campo dos gêneros textuais, e com o surgimento da Teoria do Agendamento
postulada por McCombs e Shaw (1972) a qual pressupõe haver uma corre-
lação entre a agenda de mídia e a agenda do público, atualmente, passamos
a compreender a produção escrita do texto noHcioso nãomais como um pro-
duto cristalizado, fechado em si, mas como resultado de uma formação ide-
ológica inserida num dado contexto e num determinado espaço discursivo.
Desse modo, a noIcia deixa de ser mero produto linguísHco e passa a ser
apreciada através do encontro entre discursos “já ditos”, visto que o seu dizer
nasce com base no confronto com outras formações discursivas.
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 21
Não obstante, Marcuschi (2002, p. 29) aponta para a impossibilidade de
caracterizar os gêneros como “formas estruturais estáHcas”. BhaHa (2000, p.
148), seguindo uma linha de raciocínio semelhante, defende que apesar de
um gênero está, de certa forma, preso a convenções e expectaHvas linguísH-
cas, ele está sujeito a manipulações por parte de membros da comunidade
praHcante desde que o domine bem. É o caso das noIcias veiculadas nos jor-
nais da época e na mídia atual sobre a resistência de Mossoró ao bando de
Lampião no ano de 1927.
Ao analisarmos o discurso escrito sobre o episódio, observamos traços
bem demarcados do discurso persuasivo. Além disso, é importante dizer que
tendo em vista que a nossa invesHgação possui como preocupação discuHr o
funcionamento da linguagem em uso nas diferentes esferas das aHvidades
sociais, com a finalidade de analisar os recursos argumentaHvos do discurso.
Assim, faremos um percurso teórico sobre a argumentação com o propósito
de delimitar importantes pressupostos dessa teoria.
Optamos pela TAD por percebermos que os discursos que compõem
nosso corpus representam o posicionamento dos oradores, materializado nas
suas formações discursivas. Por sua vez, ao tomar determinadas posições,
esses sujeitos recorrem, nem sempre de modo consciente, às estratégias ar-
gumentaHvas para defender um ponto de vista e provocar a adesão dos in-
terlocutores. Assim, preocupamo-nos em ler esses discursos como analistas,
invesHgando os efeitos de senHdo sugeridos por essas estratégias na cons-
trução do texto com o intuito de obter a adesão do auditório.
2 A GÊNESE DA LITERATURA DE CORDEL NO BRASIL
No Brasil, a origem da Literatura de cordel é revesHda de alguns pressu-
postos históricos cuja atmosfera é obscura. Maxado (1980) e Cascudo (1984)
afirmam que a literatura oral, na qual estão situados os cordéis, sofreu in-
fluências europeias. Todavia, Maxado assegura que foram os índios os pio-
neiros dessa comunicação, pois os portugueses quando aqui chegaram já
encontraram os indígenas com suas lendas e costumes. Para o autor, tanto o
índio quanto o português e o africano originaram as manifestações culturais
do povo brasileiro. Cascudo raHfica que a literatura oral brasileira se formou
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a parHr de elementos trazidos por essas três raças, entretanto, dos por-
tugueses, vieram os trovadores, que divulgaram canções, adivinhas, provér-
bios, anedotas, cantos, com a finalidade de informar e formar o povo
brasileiro. Assim sendo, somente com a chegada desses povos foi que as for-
mas de comunicação oral desenvolveram-se rapidamente.
Além da herança lusitana, o romanceiro nacional também encontra vesI-
gios na cultura popular dos países hispano-americanos como assevera
Diégues Júnior (apud BATISTA, 1997):
É evidente que o romanceiro que nos veio de Portugal não eraexclusivamente lusitano; aí tinha chegado por várias fontes. Eraassim peninsular, tanto que se divulgou também nas partes decolonização espanhola da América. [...] Também na área de ori-gem espanhola os versos que correspondiam ao português na li-teratura de cordel igualmente aparecem, do que ainda hojepersistem alguns traços. Na Espanha, a literatura de cordel erachamada de pliegos sueltos, o que corresponde à denominaçãotambém portuguesa de ‘folhas volantes’ (DIÉGUES JÚNIOR, apudBATISTA, 1977, p. 1).
Soler (1995), de acordo com Gomes (2007, p. 67), enfaHza a ascendên-
cia árabe no folclore do sertão brasileiro, elucidando traços daquela cultura
na região Nordeste, desde a colonização do Brasil por um processo que
aquele autor denomina de “transmigração de costumes do povo europeu”.
Diégues Júnior (1977) relata em seus estudos que os primórdios da lit-
eratura de cordel estão ligados à divulgação de histórias tradicionais, narra-
Hvas de velhas épocas, que a memória popular foi conservando e
transmiHndo. Essas narraHvas são os conhecidos romances, novelas de cav-
alaria ou romanceiro popular de origem ibérica. Assim, ouviam-se através do
romanceiro popular e das novelas de cavalaria, contadas e recontadas pelos
colonos que aqui chegavam, as narraHvas tradicionais como: a História da
Princesa Mangalona, Carlos Magno e os Dozes Pares da França, Oliveiros,
Ferrabrás, A Donzela Teodora, A História da Imperatriz Porcina, João de Calais,
dentre outras (CASCUDO, 1984, p. 24).
Por influência de Portugal, em nosso país, a expressão cordel passou a
ser empregada comumente, porém, SoutoMaior (s.d), em seus estudos sobre
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o tema discorda do termo uHlizado uma vez que para ele essa nomeação não
condiz com as caracterísHcas regionais do país. Conforme o autor, o vocábulo
‘cordel’, palavra importada, provençal, nunca foi usado pelo nordesHno
referindo-se a cordão. Na visão do referido autor, o povomaterializa sua poe-
sia popular em versos através de folhetos, damesmamaneira que a literatura
erudita é materializada por meio de livros. Nesse senHdo, ele propõe chamá-
la de literatura popular em verso ou literatura popular nordesHna.
De acordo com Campos (1960) “os folhetos são os mais autênHcos trans-
missores do conhecimento, cujos textos possuem um caráter criador, espon-
tâneo, informaHvo e expressivo” (apud OLIVEIRA, 1981, p. 22). Os
folheHnistas, demodo geral, versam sobre acontecimentos locais e nacionais.
Eles analisam fatos que aconteceram ou ainda estão acontecendo, quer sejam
da esfera social, políHca, religiosa, cienIfica, entre outras. Informam sobre
crimes e monstruosidades, secas, enchentes, devastamentos florestais, cor-
rupção, etc. Retratam, também, os costumes, as aHtudes, as preferências e os
julgamentos do homem nordesHno. Os cordéis, conforme Diegues Júnior,
“atuam como jornal do sertão, líder de opiniões, interpretador dos acontec-
imentos do país e do mundo” (s.d, p. 22). Desse modo, consHtuem-se em
valiosas fontes de pesquisa, de informações de interesse histórico, etnográ-
fico, linguísHco e sociológico.
Neles são registrados feitos heróicos [ou não], dos cangaceiros célebres
e dos sertanejos valentes, a vida dos fazendeiros e suas filhas, dos senhores
de engenho, além das histórias de amor que retratam as aventuras dos
amantes apaixonados e sofredores representados namaioria das vezes por fil-
has de fazendeiros, senhores de engenho, vaqueiros, pescadores, caçadores,
cangaceiros, enfocando a coragem, a bravura e o heroísmo dos namorados.
Os assuntos desses poemas são expressos em forma de versos, com estrofes
métricas e rimas constantes, geralmente, são escritos em sexHlha, sepHlha e
décimas.
As mensagens são elaboradas e transmiHdas a um público específico,
parHcipam do mundo e das vivências do povo. Imprimem seu modo de vida,
seus costumes, crenças e tradições. O poeta, por pertencer a esse grupo,
comparHlha de tais senHmentos e aspirações, por meio de seus textos. Ele
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passa a ser um comunicador dos anseios e desejos do povo, ambos se re-
conhecemmuitas vezes nas cantorias e declamações dos versos improvisados
ou expressos nos folhetos. Quanto à linguagem, rica em neologismos e sim-
bolismo2, individualiza-se como simples e popular, possuindo caracterísHcas
próprias do falar sertanejo.
3 CONTEXTUALIZAÇÃO DO EVENTO
Quando se fala emMossoró, quem conhece a sua história lembra-se dos
episódios que fazem parte dela e da idenHdade cultural da cidade: O moHm
das mulheres, O voto feminino, a abolição dos escravos cinco anos antes da
lei Áurea, entre esses, um dos mais conhecidos e comentados episódios do
contexto mossoroense foi o frustrado assalto do bando de Lampião a
Mossoró no ano de 1927.
Foi um dos acontecimentos de grande parHcipação popular na defesa
da cidade mossoroense contra cinco grupos de cangaceiros se coligaram sob
a chefia de Lampião para realizar o assalto. O que chamou a atenção do
bando foi o progresso da cidade. Mossoró possuía o maior parque salineiro,
grande comprador de peles e algodão da região. Tinha o comércio forte e
várias indústrias alimentadas pela energia elétrica, além do Banco do Brasil,
das escolas, entre outros símbolos do progresso da cidade.
Decidimos analisar o episódio de 1927 por ser um evento de relevância
histórica, sob diversos aspectos, ainda hoje relembrado como um aconteci-
mento de enorme repercussão, a ponto de introduzir novos elementos no
imaginário coleHvo, consHtuindo a idenHdade e a cultura dessa população
(canonização do cangaceiro Jararaca). É um símbolo de luta pela liberdade,
símbolo de superação. Está imbricado na memória coleHva, devido às con-
stantes alusões ao episódio (como o auto da liberdade: Chuva de bala no país
de Mossoró, espetáculo que já entrou no calendário da cidade).
A seguir, evidenciamos as interfaces do discurso, através da noIcia veic-
ulada no jornal impresso e no cordel selecionado, dentre os diversos que
compõem nosso corpus de invesHgação, para o (re)enquadre do episódio.
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4. AS NOTÍCIAS IMPRESSAS E OS CORDÉIS DE ACONTECIDO:
INTERFACES DO DISCURSO
A presença da imprensa em Mossoró tornou-se fator decisivo. Diante
disso, os relatos são atualmente conhecidos e reconhecidos como documen-
tos comprobatórios da presença de Lampião e seu bando no nordeste
brasileiro. A cidade de Mossoró, especificamente, nas primeiras décadas do
século XX, já dispunha de veículos comunicacionais como os jornais: “Com-
mercio deMossoró”; “OMossoroense”; “O Nordeste” e o “Correio do Povo”.
Com isso, as fontes de informação desse período foram essenciais na con-
strução semânHca dos relatos sobre os acontecimentos decorrentes das ações
dos cangaceiros.
A batalha de Mossoró ganhou destaque local e nacional nos noHciários
da época. As manchetes dos principais jornais do Rio de Janeiro, Recife, Natal
e Paraíba dedicaram-se exclusivamente ao tema. Dentre os jornais locais, a se-
gunda edição do jornal “Correio do Povo” do dia 19 de junho de 1927, anun-
ciava em destaque a seguinte manchete:
4.1 NoEcia 1
“AVÉ! MOSSORÓ! Maior grupo de cangaceiros do Nordeste, assalta
nossa cidade, sendo destroçado após horas de renhida lucta! À manchete
seguem-se os subItulos: A bravura dos nossos civis! As trincheiras heróicas.
Os bandidos são chefiados por LAMPEAO, SABINO,MASSILON e JARARACA.
Comomorreu o bandido COXÊTE e como foi ferido e aprisionado JARARACA,
o maior sicário do nordeste – NoEcias e notas diversas.”
O orador estrutura seu discurso no engrandecimento e louvor aos heróis
da resistência e escárnio do grupo de cangaceiros. Nessa perspecHva,
percebemos que o jornal, veículo da mídia impressa de caráter objeHvo,
torna-se predominantemente subjeHvo, visto que o sujeito enunciador in-
clui-se no discurso como membro da comunidade mossoroense.
O Itulo da manchete chama a atenção do auditório (leitor) para que se
concentre no objeto do discurso: ele orienta o ‘caminho’ que o público irá
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percorrer no discurso. No Itulo, o orador apresenta seu alvo de críHcas: os
cangaceiros, e seu alvo de devoção, a cidade, por meio do vocaHvo religioso
“Ave, Mossoró!”, e seu povo: “A bravura dos nossos civis!”. Nessa perspec-
Hva, constatamos que o Itulo apresenta palavras-chave do discurso, pois, a
escolha das palavras que o compõem aponta para uma construção semân-
Hco-discursiva que irá defender um ponto de vista.
O procedimento e a criação do Itulo têm caráter persuasivo, pois aponta
e contextualiza o conteúdo discursivo. Guimarães (1990), afirma que o Itulo
consHtui índice caracterizador oumodalizador do objeto do discurso, ou seja,
ele é um resumomais que condensado do teor discursivo. Assim, o leitor por
meio dele, prevê o tom do discurso textual.
Além disso, devemos atentar para o fato de o discurso da resistência
aparecer vinculado ao discurso religioso. Percebemos que a arHculação desse
discurso sugere como efeito de senHdo a canonização da cidade, uma vez que
“Ave! Mossoró!” nos remete à concepção doutrinária do catolicismo, por
meio da alusão à oração da Virgem Maria, como argumento uHlizado pelo
orador no reforço da tese da qualificação posiHva da cidade, materialmente
visível no corpo do discurso.
4.2 MOSSORÓ NA RESISTÊNCIA AO GRUPO DE LAMPIÃO3
O folheto a seguir inicia seu processo discursivo com base na relação
entre a história e o fato noHciado. O primeiro conjunto de versos do cordel ev-
idencia o processo histórico para narrar o acontecimento proposto no Itulo
do folheto. Essa ideia é reforçada nos versos [08 e 09] da estrofe seguinte.
Nesse senHdo, ambos revelam a (inter)relação entre o fato histórico e o seu
registro na esfera poéHca, evidenciando que o discurso da resistência é con-
struído historicamente.
01 Sabe-se que a 13 de junho,
02 Do ano de vinte e sete,
03 Nossa Mossoró guerreira,
04 Brava, heróica que compete,
05 Nos deixou para a memória
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06 Um fato de sua História
07 Que ao futuro se remete.
08 Trata-se da resistência
09 Ao grupo de Lampião,
10 Estrategista e valente,
11 Para o povo, assombração;
12 Pois Virgulino Ferreira
13 Liderou sem brincadeira
14 O cangaço do sertão.
Em uma análise argumentaHva das estrofes citadas, observamos que o
enunciador inicia seu processo discursivo uHlizando a tese principal (Mossoró
é combatente; Mossoró é lutadora) que já é aceita pela população, funda-
mentada por meio demodalizadores (guerreira, brava, heroica). Dessemodo,
o enunciador constrói o ethos da cidademossoroense. Ele apresenta a cidade
personificada como um sujeito forte, que luta. Em contraparHda, Lampião é
um ser sobrenatural, maligno, que aterroriza a população. É curioso destacar-
mos que o orador ao se referir à figura de Lampião, ele o faz na voz do outro,
isentando-se de qualquer declaração. Todavia, o orador deixa transparecer
seu ponto de vista sobre os sujeitos definidos, ou seja, ele uHliza a técnica ar-
gumenta#va da definição expressiva.
Sob essa óHca, o sujeito orador, ao qualificar Mossoró como guerreira,
brava, heroica, revela inconscientemente ou não sua postura ideológica lig-
ada ao discurso do poderes políHco e eliHstas locais vigentes na época, in-
serindo-se em uma formação discursiva que fala do lugar social o qual se
inclui e acredita nesse discurso, destacado verbalmente pelo pronome
“Nossa”. Assim, ele dirige-se a um auditório que deve conceber os sujeitos ap-
resentados dessa forma.
A posição do orador assemelha-se à do jornal “Correio do Povo” do dia
19 de junho de 1927:
A nossa ordeira, pacata, laboriosa e nobre cidade foi atacada eassediada pelo maior numero de bandidos do nordeste, sob achefia de Lampeao, Sabino, Massilon e jararaca, chefes de can-
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gaceiros que se colligaram a effeito a empreitada terrível e si-nistra de saquear Mossoró, a mais opulenta e rica cidade do RioGrande do Norte. A immensa fama e o seu amor ao trabalho, ápaz e á ordem despertaram no espírito de feras daquelles ban-dos, apetites vorazes de sangue e de sangue.
Além de ser historicamente consHtuído o discurso da resistência aparece
marcado pelo caráter de dialogicidade, de múlHplas vozes presentes em um
mesmo discurso [16]. Todo discurso é produzido a parHr de outro discurso
de maneira que “os senHdos são sempre referidos a outros senHdos e daí
Hram sua idenHdade” (ORLANDI, 1996, p. 31). Fato que aparece reforçado na
estrofe a seguir:
15 No Rio Grande do Norte,
16 Conforme os livros que li,
17 Facínoras de Lampião
18 Atacaram Apodi,
19 Gavião e Itaú,
20 Não pretenderam Patu;
21 Programaram vir aqui.
Nesse trecho, devemos atentar para o uso que o orador faz do argu-
mento de autoridade, ou seja, os livros (textos escritos) como espaço de le-
giHmação da verdade dos fatos anunciados. Diante desse poder de
autoridade, o fragmento desvela a intenção de legiHmar a voz do sujeito-
autor. As estrofes seguintes (6 a 10) referem-se exclusivamente aos boatos
sobre a invasão do bando à cidade de Mossoró.
[...]
29 Em toda esquina de rua
30 O falatório corria
31 Que Lampião preparava
32 Um assalto e que viria,
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33 Com violentos ataques
34 Bagunçar, praHcar saques,
35 Só estava faltando um dia.
As estrofes assinalam, através do discurso camuflado pela voz do outro,
as práHcas de violência dos cangaceiros.
[...]
43 Aqui Lampião viria
44 Promover perversidade,
45 Desrespeitar nosso povo,
46 Provocar ansiedade;
47 Levar daqui o dinheiro,
48 Que é papel do cangaceiro,
49 Extorquir, fazer maldade.
A voz do enunciador nos trechos destacados dilui-se no discurso re-
latado da coleHvidade, marcado linguisHcamente pelo futuro do pretérito
(viria, seria). Nesse senHdo, observamos nos versos [48 e 49] que o enunci-
ador posiciona-se com base nos relatos obHdos.
No folheto analisado, os versos das estrofes [11 a 18] narram a troca
de correspondências entre Lampião e o prefeito Rodolpho Fernandes. Desta-
cando a resposta negaHva do prefeito e a reação do cangaceiro.
[...]
71 Um portador do Cangaço,
72 Cumprindo sua função,
73 Veio a Rodolfo Fernandes
74 Com um bilhete na mão,
75 Que em termos de missiva,
76 Era uma inHmaHva
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77 Mandada por Lampião.
78 O Prefeito, quando leu,
79 Conheceu o conteúdo;
80 Deu como resposta um não
81 Acrescentou: não me iludo.
82 Esses quatrocentos contos
83 De réis jamais serão prontos
84 O bando vai perder tudo.
[...]
113 Eu não posso permiHr
114 A desmoralização
115 De pedir, alguém negar,
116 De querer, ouvir um não.
117 Acho que só vou senHr dó,
118 Se o povo de Mossoró
119 Desrespeitar Lampião.
120 Mais uma vez o prefeito
121 Deu resposta negaHva.
122 Dessa feita, os cangaceiros
123 Com ação, brutal, nociva,
124 Iniciam a invasão,
125 E estava a população
126 Entrincheirada e aHva.
Nos versos citados, percebemos a manifestação do discurso po-
lifônico, no momento em que o enunciador cede a voz aos personagens do
prefeito [81 a 84], e a Lampião [113 a 119], a fim de estabelecer uma auten-
Hcidade à voz do enunciador.
No decorrer do texto, as estrofes seguintes [19 a 27] são desenovelado-
ras do tema.
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127 E a batalha começa
128 Na base do chumbo quente:
129 Enquanto o bando invesHa
130 Para dar um passo a frente,
131 As trincheiras resisHam,
132 Lutavam, não permiHam
133 Lampião nem sua gente.
134 Famílias apavoradas,
135 Com os corações aflitos,
136 Entre emoções e medo,
137 Desespero, aplausos, gritos.
138 Pela busca da vitória,
139 Que já está na História
140 De um dos grandes conflitos.
141 As trincheiras preparadas
142 Com civis e coronéis
143 Com os constantes ataques
144 Dos cangaceiros cruéis,
145 Não desisHram do jogo:
146 Avançaram, abriram fogo,
147 Cumprindo bem seus papéis.
Considerando-se o gênero em questão, percebemos um maior desen-
volvimento no nível de dramaHcidade, caracterísHca comum à literatura, cujo
objeHvo, dentre outros, é seduzir para leitura, atrair através da construção
arIsHca. Na narraHva observamos uma exploração desse conflito. Ele inte-
gra os fatos em uma ação única, formando um todo consHtuído pela seleção
e pelo arranjo dos acontecimentos e ações. A relação entre as personagens,
as enumerações de lugares e de ações da trama conferem ao texto a criação
de expectaHva emanutenção do interesse do leitor através de descrições de-
Ana Shirley /O discurso da resistência no espaço poéHco da literatura de cordel: Uma leiturados eventos discursivo-argumentaHvos sobre o episódio de Lampião em Mossoró - RN
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senvolvidas.
No desenrolar da narraHva em estudo, o acontecimento cantado é en-
tremeado pela história que envolve o cangaceiro Jararaca. Assim, nada há de
surpreendente em quemuitas são as histórias que perpassam esse episódio.
[...]
162 Foi da vez que Jararaca
163 Vendo Colchete no chão,
164 Procurou “desarreá-lo”,
165 Lhe dando assim proteção.
166 Ai outra bala vem,
167 Mas não sabia de quem
168 E nem qual direção.
169 E começa a chover balas,
170 Vindas de todo senHdo:
171 Da torre São Vicente,
172 Que se ouviu o estampido;
173 Da praça seis de janeiro,
174 Sem entender o roteiro,
175 Jararaca cai ferido.
176 Logo se levanta aos tombos
177 Pra sair daquele espaço.
178 Ao caminhar poucos metros,
179 SenHu frágeis mão e braço.
180 Como que pouco se ajeita,
181 A sua perna direita
182 Também recebe um balaço.
183 Jararaca cai de novo,
184 Se levanta e foge ao mato;
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 33
185 A ponte da linha férrea
186 Lhe acolheu nesse ato.
187 O bandido baleado,
188 Ali foi capturado
189 Pra ser sujeito maltratado.
Durante o conflito o cangaceiro José Leite Santana, conhecido como
Jararaca, foi aHngido por um Hro e deixado para trás por seus companheiros,
que fugiram após a fracassada invasão à cidade deMossoró. Dias depois, ele
viria a ser morto de maneira singularmente cruel: teria sido enterrado vivo
pela polícia. Jararaca tornou-se, assim, uma personagem de destaque con-
tribuindo para ilustrar a narraHva, que enfaHza a bravura dos resistentes que
impediram a invasão e saque da cidade pelos temidos cangaceiros de
Lampião.
Retornando ao folheto, observamos nas estrofes descritas os espaços
em que se desenvolvem as cenas. Os versos servem também de mote para a
narraHva da finalização do conflito.
190 Lampião a essa altura,
191 Traça o seu novo roteiro
192 Com o bando fracassado,
193 Sem poder levar dinheiro,
194 Derrotado nessa briga,
195 Segue a estrada que liga
196 Mossoró a Limoeiro.
[...]
204 Mossoró, mesmo vencendo,
205 Com força magistral
206 Do seu povo combatente
207 A fuzil, fúria e punhal,
208 A quem agride e vacila,
Ana Shirley /O discurso da resistência no espaço poéHco da literatura de cordel: Uma leiturados eventos discursivo-argumentaHvos sobre o episódio de Lampião em Mossoró - RN
34
209 Fica a cidade intranquila
210 Mas depois volta ao normal.
211 Já se tem oitenta anos,
212 Se contarmos do passado,
213 Que o espírito é resistência
214 A que o povo tem se dado.
215 Lampião não quer de novo
216 Ter por aqui o seu povo
217 Mais uma vez derrotado.
Novamente, temos o processo histórico em destaque. Os versos [211 e
212] fazem a inter-relação entre o registro poéHco e os fatos ocorridos. Na es-
trofe destacada anteriormente, o orador reafirma a tese principal [213], em-
bora os senHdos desta tenham sido, no decorrer do cordel, mais bem
construídos, referindo-se cada vezmais ao contexto específico desse discurso.
Assim sendo, quando o orador expõe sintaHcamente a tese defendida, afir-
mamos que foi uHlizada a estratégia argumentaHva da repeHção para tornar
mais presente no leitor a ideia que se quer a adesão.
218 Mossoró que tem História
219 De luta e Libertação
220 Como o moHm das Mulheres,
221 Uma corajosa ação,
222 Aboliu escravatura,
223 Por que temer a bravura
224 Do bando de Lampião?
Pela historicidade arraigada no espaço entre o acontecimento e o dis-
curso relatado, o cordelista estabeleceu, outra vez, elos com o discurso da
resistência. Definido o enfoque, a narraHva revela, através de seu processo de
construção do discurso, um orador que fala do lugar social de lutas e con-
quistas, dirigindo-se a um público que provavelmente parHlha do mesmo
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 35
raciocínio. Portanto, ao raHficar que Mossoró tem a sua história consolidada
em lutas e glórias [218 e 219], reflete o universo histórico-social do auditório
que tem em suas raízes o discurso de superação das dificuldades [220 e 222].
Além disso, devemos atentar para o fato de que o orador quando expõe
outros episódios que ocorreram em Mossoró em nome da liberdade e dig-
nidade da cidade faz uso do argumento de comparação, pertencente ao
grupo dos argumentos quase-lógicos. Isso significa dizer que, a construção
deste argumento segue um esquema de raciocínio formal. Na realidade, os ar-
gumentos de comparação “são em geral apresentados como constatações de
fato, enquanto a relação de igualdade ou de desigualdade afirmada só con-
sHtui, em geral, uma pretensão do orador” (PERELMAN; TYTECA, 1996, p.
274-275).
O uso de perguntas retóricas consHtui outro recurso empregado pelo
cordelista na expressão do pensamento, das ideias e das opiniões. Embora
não esteja vinculada às técnicas argumentaHvas distribuídas nos quatro gru-
pos de argumento, os enunciados interrogaHvos podem ser compreendidos
como um procedimento retórico que visa estabelecer uma aproximação e
um acordo [muitas vezes implícitos] com os leitores (público). Conforme assi-
nalam Perelman e Tyteca, esses enunciados possuem uma “importância
retórica [...] considerável” (1996, p. 179). A modalidade interrogaHva busca
um posicionamento do público diante do fato exposto, cujas respostas já são
presumidas pelo orador. “A pergunta supõe um objeto, sobre o qual incide, e
sugere que há um acordo sobre a existência desse objeto. Responder a uma
pergunta é confirmar esse acordo implícito” (1996, p. 179).
Na realidade, as perguntas não pretendem esclarecer quem interroga,
elas são empregadas com a finalidade de “encetar raciocínios [...] com a
cumplicidade, por assim dizer, do interlocutor que se compromete por suas
respostas, a adotar esse modo de argumentação” (PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 1996, p. 180). Nessa perspecHva, a noção de teia argumentaHva é re-
forçada a parHr da relação entre as perguntas retóricas e as possíveis
respostas arHculadas pelo leitor.
Considerando-se essa perspecHva de teia argumentaHva, podemos dizer
que o enunciado interrogaHvo que finaliza o texto configura-se numa marca
Ana Shirley /O discurso da resistência no espaço poéHco da literatura de cordel: Uma leiturados eventos discursivo-argumentaHvos sobre o episódio de Lampião em Mossoró - RN
36
linguísHca de caráter dialógico da linguagem, uma vez que o produtor do texto
escrito (orador), mesmo não tendo a presença 3sica do seu leitor no mo-
mento de sua escritura, fundamentou-se no fato de que seu texto dirigia-se
a um auditório (leitor), o qual no momento da leitura complementaria a in-
teração.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer de nosso estudo, relacionamos os discursos dos jornais im-
pressos com os discursos nos textos de cordel, evidenciando amaneira como
o episódio foi veiculado pelas esferas: jornalísHca e poéHca.
Como na AD, parHmos da materialidade do texto para o discurso, sendo
considerado o texto um espaço necessário para instauração de senHdos, é
importante dizer que, apesar de analisarmos separadamente, eles estão inter-
relacionados, porém cada um possui discursos inseridos em diversas FDs (re-
ligiosa, políHca, social, econômica), concebendo a realidade conforme suas
perspecHvas. Por sua vez, estruturam seus discursos com técnicas argumen-
taHvas semelhantes.
Temos ciência que os textos foram produzidos em diferentes períodos,
os jornais pesquisados foram escritos no ano de 1927 e os cordéis no ano de
2004. Entretanto, afirmamos que mesmo assim, o discurso do jornal faz-se
presente nos textos dos cordéis.
A abordagem feita sobre a cidade e seus habitantes está inHmamente
ligada à riqueza, ao trabalho, ao progresso. Os textos retratam Mossoró de
forma personificada. O cordel “Mossoró na resistência ao grupo de Lampião”
mostra a bravura e nobreza da cidade: “Nossa Mossoró guerreira,/ Brava,
heroica que compete, [...]”. O mesmo discurso pode ser percebido no Jornal
“Correio do Povo”, veiculado no dia 19 de junho de 1927, que evidencia
Mossoró como uma cidade próspera, guerreira e batalhadora: “A nossa or-
deira, pacata, laboriosa e nobre cidade foi atacada e assediada pelo maior
numero de bandidos do nordeste”. As qualidades da cidade foram
ressaltadas, a fim de enfaHzar o senHmento a favor de sua defesa, e mostrar
a grandiosidade do episódio perante o auditório parHcular (os mossoroenses).
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 37
Os discursos analisados revelam que o cordelista (orador) fala domesmo
lugar social que o orador do jornal, ou seja, embora não tenham sido pro-
duzidos no mesmo contexto sócio-histórico, ambos são interpelados pela
mesma ideologia e convergem para a mesma formação discursiva, defend-
endo posições idênHcas.
O tema abordado e o modo como foi veiculado pelos jornais e (re) en-
quadrado pelos cordéis são prova dessa interface, pois ambos defendem com
firmeza a resistência da cidade ao bando de Lampião e centram-se na per-
suasão do público leitor (auditório) para insisHrem nessa realidade com o in-
tuito de mantê-la permanentemente viva na memória coleHva do auditório.
Destacamos, ainda, que tanto na esfera poéHca quanto na esfera jor-
nalísHca, houve uma intensa uHlização da técnica argumentaHva da definição
expressiva, realizando a construção posiHva do ethos da cidademossoroense,
com o objeHvo de conseguir a adesão do auditório para a tese defendida.
Além disso, evidenciamos que o texto jornalísHco e o texto poéHco desen-
volvem uma interação mediada com o público-leitor, haja vista que atendem
a públicos disHntos, os quais não comparHlham damesma esfera econômico-
social.
Sabemos que as referências sociais, culturais, políHcas, econômicas a
que um texto remete, acontecem por ele ser produzido por um sujeito ideo-
logicamente marcado e socialmente definido. Por isso, um discurso pode ser
manifestado por diferentes textos, no interior das várias práHcas sociais.
Em nosso estudo, analisamos textos de duas diferentes aHvidades soci-
ais, uma relacionada a uma realidade que faz uso da linguagem considerada
de presIgio social e a outra relacionada a uma linguagemmenos presHgiada,
mais informal. Koch afirma que se vem postulando que os diversos Hpos de
“práHcas sociais de produção textual se situam ao longo de um conInuo
Hpológico, em cujas extremidades estariam, de um lado, a escrita formal e, de
outro, a conversação espontânea, coloquial” (KOCH, 2006, p. 43).
Assim, entendemos que essas formas de expressão são modos de com-
preensão cogniHva e social reveladas em situações específicas. Nessa per-
specHva, não cabe considerar uma forma superior ou inferior à outra, mas
formas específicas de compreensão e expressão da realidade enunciada.
Ana Shirley /O discurso da resistência no espaço poéHco da literatura de cordel: Uma leiturados eventos discursivo-argumentaHvos sobre o episódio de Lampião em Mossoró - RN
38
Portanto, os jornais e os cordéis podem ser diferentes na maneira como
se apresentam ao leitor, em prosa ou verso; em uma linguagem mais velada
de presIgio social ou menos rebuscada, mais popular, porém a relação entre
ambos é apreendida interdiscursivamente, no momento em que admiHmos
os cordéis analisados como (re)enquadramento discursivo das posições de-
fendidas pelos jornais de 1927. Nesse senHdo, afirmamos que a construção
discursiva dos textos aponta determinados padrões de repeHção, visto que,
o contexto linguísHco, caracteriza-se nessas duas esferas por assumir, em
primeira instância, uma expressão local.
Assim sendo, afirmamos, com base nas posições assumidas pelos enun-
ciadores dos dois gêneros ora analisados, os quais defenderam notadamente
posições a favor da defesa de Mossoró, que a relação entre os jornais e os
cordéis é apreendida interdiscursivamente.
De acordo com a memória coleHva do episódio, constatamos que ao
nortear o leitor (auditório), a parHr de suas crenças e valores, a fim de con-
duzi-lo a persuasão, os discursos presentes nessas aHvidades sociais demon-
stram e desenvolvem traços de uma manipulação do sujeito.
As técnicas argumentaHvas aqui reveladas asseveram que o discurso em-
preendido em 1927, e seu (re)enquadramento na contemporaneidade foram
construídos sem nenhum espírito críHco para manipular o leitor.
Portanto, percebemos que a argumentação empreendida nos discursos
passou do logos para o pathos, pois os oradores dos jornais e cordéis inicia-
ram um convencimento baseado em fatos e valores com o intuito de funda-
mentar uma persuasão final. Isso significa que os enunciadores do discurso
passaram do convencimento do auditório, no campo das ideias, do logos
sobre as circunstâncias sociais para o campo da persuasão, atuando na in-
terpelação desse auditório, cuja preferência por estratégias argumentaHvas
para o convencimento do outro, raHficam suas aHtudes na construção de um
discurso que pressupõe a “adesão dos espíritos”.
Notas
1 - Professora de Língua Portuguesa da Rede Pública Estadual, Mestre
em Estudos da Linguagem e Doutoranda em Estudos da Linguagem.
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 39
2 - É o caso dos termos relaHvos ao demônio. Este aparece na literatura
de cordel através de designações como: bicho-preto; cão; feiHceiras; capeta;
capirocho; Hnhoso; bode; gato serpente; etc. Souto maior, afirma que o uso
dos diferentes apelaHvos ao demônio no Nordeste é consequência da pre-
dominância de supersHções na região (OLIVEIRA, 1981, p. 15).
3 - FRANÇA, Aldeci de. Mossoró na resistência ao grupo de Lampião,
2007, p. 1-12.
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Nova retórica, trad. Maria ErmanHna Galvão. São Paulo: MarHns Fontes,
1996.
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 41
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No século XX o rádio introduziu a “eletronização” da voz e transformou
o cotidiano social a partir dos conteúdos transmitidos. A radionovela era uma
das principais atrações das emissoras de rádio nos anos dourados da radio-
fonia no Brasil, envolvendo os ouvintes nos enredos que mesclavam ficção e
realidade, promovendo a imaginação dos receptores. A Rádio Poti de
Natal/RN introduziu a “era de ouro” do rádio no estado e também transmi-
tiu ficção para a sociedade potiguar, nos formatos de drama unitário, radio-
novela e seriado. Entretanto, não se têm registros sonoros conservados
dessas emissões. Além disso, não dispomos de livros sobre a programação
da emissora. Assim, a história das histórias interpretadas pelos radioatores é
contada neste artigo pelos profissionais de comunicação e ouvintes do rádio,
no período de 1941 a 1955. Esses dados foram obtidos a partir do Projeto de
Pesquisa Mídia e Memória, vinculado à Base de Pesquisa Comunicação Cul-
tura e Mídia, desenvolvido de 2003 a 2006.
Vamos adentrar num passado em que o rádio era o principal meio de
comunicação do país e as radionovelas um dos seus mais atrativos produtos
culturais que, por sua vez, prendiam os ouvintes diante do rádio para escu-
tar, em silêncio, a sequência narrativa, costurada com doses de emoção, sus-
pense e aventura.
2 MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: ASPECTOS TEÓRICOS
Para falar das radionovelas transmitidas pela Rádio Poti de Natal re-
corremos àmemória dos personagens reais dessa história, ou seja, é por meio
das narrativas orais dos ouvintes e profissionais da Poti, nas décadas de 1940
e 1950, que falamos sobre os enredos encenados para a sociedade potiguar.
Assim, por meio das lembranças dos ouvintes, de radioatores, diretores, lo-
Silêncio! A radionovela está no arEdivânia Duarte Rodrigues
Doutoranda e Mestre em Estudos da Linguagem- PPgEL (UFRN)Professora do InsHtuto Federal do Rio Grande do Norte - IFRN
Edivânia Duarte Rodrigues/Silêncio! A radionovela está no ar
42
cutores e cantores da emissora, é possível emergir situações vividas, através
das quais se busca manter contato com o passado estando envolto em ideias
e imagens de hoje.
Nesse caso, a memória coletiva sobre a radiodifusão potiguar foi de-
sencadeada através das histórias de vida. As fontes orais, categorizadas como
profissionais da comunicação e ouvintes da Rádio Poti, inseridas no mesmo
contexto espaço-temporal, vivificam o veículo rádio por meio dos relatos e
permitem o processo de reconstituição da memória coletiva sobre a emis-
sora. Entendemos a memória coletiva como todas as reminiscências em
comum que pertencem aos membros de um determinado grupo social:
No primeiro plano damemória de um grupo se destacam as lem-branças dos acontecimentos e das experiências que concernemao maior número de seus membros e que resultam quer de suaprópria vida, quer de suas relações com os grupos mais próxi-mos (HALBWACHS, 1990, p. 45).
É, portanto, no processo de interação social que acontece a formação
da memória coletiva, cujo conteúdo é capaz de representar o conjunto de
membros que a construiu. Sendo assim, ao reconstituirmos a história
apoiando-se namemória, utilizando depoimentos como o eixo central da pes-
quisa, estamos fazendo uso da História Oral que, de acordo comMeihy (2002,
p. 13), “consiste em gravações premeditadas de narrativas pessoais feitas de
pessoa a pessoa em fitas ou vídeo”.
A História Oral além de possibilitar a produção de outras versões
diante da história classificada como oficial, pode reconstruir a história quando
não tem versão alguma. E mais, conforme Thompson (1998, p. 22), ela de-
sempenha uma importante função social: “na produção da história – seja em
livros, museus, rádio ou cinema – pode devolver às pessoas que fizeram e vi-
venciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras”.
Em relação à reconstituição histórica da Rádio Poti, em que não tínhamos
uma versão “oficial”, a História Oral oportunizou a reconstituição e conser-
vação da história ao passo que colocou os protagonistas sociais como os prin-
cipais enunciadores da história.
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 43
3 A DRAMATIZAÇÃO NO RÁDIO
As novelas e seriados encantavam os ouvintes, especialmente o pú-
blico feminino, e estavam entre as principais atrações do mercado publicitá-
rio na “era de ouro” do rádio no Brasil, nas décadas de 1940 a 1950. A
radionovela era um programa obrigatório na grade de programação das emis-
soras. Em 1 de julho, de 1941 foi transmitida a primeira radionovela no Bra-
sil: “Em busca da Felicidade”, de Leandro Blanco, adaptada por Gilberto
Martins. Para se ter uma idéia do sucesso das novelas, Ortiz (2006) diz que no
período de 1943 a 1945 a Rádio Nacional chegou a produzir 116 novelas con-
tabilizando um total de 2.985 capítulos.
As radionovelas eram dirigidas ao público feminino e associadas a pro-
dutos comerciais, por exemplo, a “Colgate Palmolive” que patrocinava a ra-
dionovela de maior sucesso no Brasil: “O Direito de Nascer”. Essa novela,
irradiada pela Rádio Nacional, de janeiro de 1951 a setembro de 1952, con-
quistou recordes de audiência e mudou o cotidiano das pessoas como relata
Reynaldo Tavares citado por Ferraretto (2000):
Quando da apresentação dos capítulos de O direito de nascer, aRádio Nacional, do Rio de Janeiro, era absoluta em termos deaudiência e, naquele horário, os cinemas, os teatros e os outrosmeios de entretenimento ficavam vazios, as ruas como por en-canto silenciavam e ninguém perambulava por elas... Era um ho-rário religioso, uma imensa reunião emudecida e atenta quecomungava, junto aos receptores, todas aquelas emoções vivi-das por Albertinho Limonta e os demais personagens inventa-dos por Félix Caignet (TAVARES apud FERRARETTO, 2000, p. 120).
O drama no rádio é criado a partir da orquestração dos elementos
que compõem a linguagem radiofônica. Isso porque a voz humana, a música,
os efeitos sonoros e o silêncio são capazes de criar cenários, despertar senti-
mentos e envolver o receptor a ponto de fazê-lo transformar o som em ima-
gem mental, processo chamado de imaginação.
Quando criamos imagens a partir das radionovelas, “a imagem é a
criação de uma realidade imaginária, ou seja, de algo que existe apenas em
imagem ou como imagem” (CHAUÍ, 2000, n.p). Sendo assim, criamos uma
realidade imaginária porque os personagens e o enredo são representação,
Edivânia Duarte Rodrigues/Silêncio! A radionovela está no ar
Edivânia Duarte Rodrigues/Silêncio! A radionovela está no ar
44
leitura da realidade, portanto, imagens.
Antônio Grasmsci, citado por Goldfeder (1980), ao analisar a novela de
folhetim, reflete sobre seu papel:
[ela] substitui [e favorece ao mesmo tempo] a fantasia dohomem do povo, é um sonhar com os olhos abertos... no povo,a fantasia depende do ‘complexo de inferioridade’ [social] quedetermina largas fantasias sobre a idéia de vingança, de castigodos culpados, dos males que não se suportam e etc. (GRASMSCIapud GOLDFEDER, 1980, p. 87).
Com essa reflexão podemos perceber como a ficção influi no homem,
pois o que desejamos que aconteça na vida real, acontece na fantasia e nos
sentimos realizados por isso, “a novela produziria, desta maneira um efeito
que poderíamos denominar de compensatório em relação aos dilemas e con-
tradições da vida real” (GOLDFEDER, 1980, p. 87). Nessa perspectiva a novela
mescla elementos fictícios com reais, promovendo os processos de identifi-
cação (o receptor torna-se inconscientemente idêntico a uma personagem
no qual vê qualidades que gostaria ou julga que lhe pertence) e de projeção
(o receptor desloca suas pulsões para os personagens). Goldfeder (1980) ao
analisar a radionovela Mãe, transmitida pela Rádio Nacional, comenta sobre
o processo de identificação, caracterizando-o como condição primordial para
a eficácia e penetração da radionovela, visto que enquanto os personagens
negativos geravam afastamento, os positivos possuíam forte carga emocional
e podiam ser localizáveis no real, por isso, capazes de provocar empatia nos
ouvintes.
A empatia é possível porque a ficção mistura-se a elementos reais,
proporcionando uma leitura da realidade. Sendo assim, dá subsídios para que
o ouvinte projete seus sonhos e desejos nos personagens com os quais se
identifica, realizando-se no universo da fantasia. Edgar Morin, citado por
Goldfeder (1980), fala sobre as imagens criadas pelos meios de comunicação
de massa e sua relação com o real:
[...] as imagens se aproximam do real, ideias tornaram-se mo-delos, que incitam a uma certa práxis... Um gigantesco impulsodo imaginário em direção ao real tende a propor mitos de au-
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 45
torrealização, heróis modelos, uma ideologia e receitas práticaspara a vida privada. Se considerarmos que, de hoje em diante,o homem das sociedades ocidentais orienta cada vez mais suaspreocupações para o bem-estar e o ‘standing’ por um lado, oamor e a felicidade por outro lado, a cultura de massa forneceos mitos condutores das aspirações coletivas (MORIN apudGOLDFEDER, 1980, p. 92).
Assim, dizemos que as novelas traduzem os anseios coletivos, trans-
portam os ouvintes para um mundo de concretização de sonhos, são recei-
tas de como fisgar o receptor para escutar e se envolver nos capítulos até o
desfecho final. Até o momento falamos de imagens produzidas pelos meios
de comunicação, destacando as novelas, mostramos que elas misturam ele-
mentos reais para incitar a identificação e a projeção e ativar a imaginação do
ouvinte, realizando seus desejos. Agora nos resta saber como a ficção se apre-
senta enquanto formato radiofônico, criando uma realidade imaginária.
3.1 Os formatos ficcionais
É importante classificarmos a produção ficcional no rádio para me-
lhor compreendermos como se estrutura a produção novelesca. Essa produ-
ção enquadra-se no “gênero de entretenimento”, formato “programa ficcional
de drama” porque segundo Barbosa (2003):
O drama, que é uma das expressões da representação do real edo cotidiano, caracteriza-se no rádio pela radiofonização, ouseja, pela tradução para a linguagem radiofônica de textos ori-ginais ou adaptados, inéditos ou publicados de obras literárias,peças teatrais, roteiro de cinema, vídeo e, obviamente, dos tex-tos escritos especialmente para o áudio (BARBOSA, 2003, p.117).
Em conformidade com a classificação de Kaplun, citado por Barbosa
(2003), o drama no rádio é dividido em: unitário, seriado e radionovela. O
drama unitário, também chamado de peça radiofônica “constitui uma uni-
dade em si, ou seja, não forma parte de um conjunto; é igual ao que acontece
a uma obra de teatro: os personagens não têm continuidade posterior” (BAR-
BOSA, 2003, p. 118). Em contrapartida, a radionovela consiste numa obra dra-
Edivânia Duarte Rodrigues/Silêncio! A radionovela está no ar
46
mática, de longa duração, com capítulos sequenciados. Nesse caso, o recep-
tor deve acompanhar os capítulos para compreender o enredo.
Enquanto que o seriado consiste em peças independentes com per-
sonagens fixos e cada episódio possui cenário e argumento novos com início,
meio e fim num só capítulo. Adotando o formato de seriado destacamos Je-
rônimo − o herói do sertão e os programas de humor em série que adotam o
formato de seriado com personagens permanente que se apresentam a cada
novo episódio. É valido ressaltar que os programas humorísticos utilizam a
dramaturgia, pois quanto mais interpretado dramaticamente o conteúdo de
humor mais ele se tornará engraçado. Conforme Ferraz (2004), os humoris-
tas e comediantes ao fazerem programas de rádio lançam mão das técnicas
de dramaturgia para obter credibilidade cômica.
4 OS ENREDOS NA RÁDIO POTI DE NATAL
A primeira emissora de Rádio do Rio Grande, surgida em 1941, com a
denominação de Rádio Educadora de Natal, é incorporada à rede associada
de Chateaubriand em 1944 e passa a se chamar Rádio Poti. A emissora dis-
punha de um cast de profissionais distribuídos nos setores artístico, jornalís-
tico e administrativo, do qual destacamos a equipe de radioatores: Zilma
Rayol, Alba Azevedo, Francisco Ivo Cavalcanti, Marly Rayol, Clarice Palma, Lur-
dinha Lopes, Wanildo Nunes, Fonseca Júnior, Lurdes Nascimento, Teixeira
Neto, Ernani Roberto Ney, Glorinha Oliveira, Luis Cordeiro, GenarWanderley,
Nilson Freire, Sandra Maria, Anibal Medina, entre outros. À frente da trans-
missão de programas artísticos, desde a época da REN até a Rádio Poti, cita-
mos dois diretores artísticos: Genar Wanderley e Eider Furtado.
4.1 Aumente o volume do rádio: é hora de imaginar!
Vamos entender como se desenvolveu os programas ficcionais na
Rádio Poti, quais as novelas transmitidas e como os enredos envolviam os
ouvintes diante do rádio.
Eider Furtado fala do sobre o setor de radioteatro da Rádio Poti di-
zendo que tanto eram transmitidas radionovelas produzidas e veiculadas em
outras rádios do Brasil quanto produzidos programas ficcionais na própria
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 47
emissora:
Veja bem, o nosso... nós tínhamos um teatro, na minha época,que eume lembro bem, a, a grande... da época eume lembro deduas novelas. Uma era, era... como é que chamava? Herói doSertão, como era? “Jerônimo − Herói do Sertão”, essa não tinhafim, não é? Eu não lembro quando começou, nem quando ter-minou,... essa vinha naqueles discos grandes de quinze... e tinhaaquela outra “O Direito de Nascer”. Era uma novela (palavra in-decifrável) uma novela mexicana, também enorme! Essa atra-vessou anos e anos e anos. O que nós fazíamos muito noradioteatro ao vivo era, era o mesmo das peças inteiras, né? no-vela, na minha época não, a gente fazia radioteatro de peça in-teira, meia hora, um hora, uma peça inteira... (EIDER FURTADO− INFORMANTE 2).
Outros profissionais da emissora Poti mencionam algumas radiono-
velas transmitidas pela emissora Poti: “A Casa dos sete Candeeiros” (novela
de terror), “Tormento de Amor”, “Seu Nome Sua Honra” e “Maria Alahô”. O
ouvinte da época, Alberto da Hora, relata os horários e a periodicidade que
eram veiculadas as radionovelas:
As novelas... de rádio, é... não tinham a duração que têm as datelevisão hoje que dura seis meses, quatro meses, mas eram,mas... eram longas, né? E erammuito escutadas naquela épocado rádio,... Eram, era um programa quase obrigatório, das famí-lias escutarem (trecho indecifrável) É..., e elas eram assim, elasnão eram diárias, os dias eram... a novela era, era transmitidana segunda, aí pulava os dias segunda, quarta e sexta, por exem-plo; e outra novela era terça, quinta e sábado (ALBERTO DAHORA − INFORMANTE 3).
Sabemos que os elementos da linguagem radiofônica, para despertar
a imaginação do ouvinte, devem estar bem interligados e, além de uma boa
interpretação dos personagens, os efeitos de sonoplastia são essenciais na
criação de cenários e imagens mentais. Nesse sentido, a radioatriz e cantora
Glorinha Oliveira, comenta os instrumentos utilizados para produzir efeitos
sonoros parecidos com os sons das coisas que se desejava representar nas
radionovelas:
Edivânia Duarte Rodrigues/Silêncio! A radionovela está no ar
48
[...] hoje a tecnologia é maravilhosa! Você faz uma novela nãoprecisa de nada, mas na nossa época era quenga, era tábua nomeio do estúdio, era uma bacia com água, era uma lâmina dealumínio... pra fazer zoada era... tanta coisa, e um... pau grosso,assim pra bater namadeira pra dizer que era um... cara perneta,então aí era: “pum, pou...”, sabe? Perneta. E a água era na baciapra fazer chuva, uma peneira, um bucado de coisa interessante,sabe? (GLORINHA OLIVEIRA − INFORMANTE 5).
O contrarregra era o profissional responsável em manusear os ins-
trumentos para a produção dos efeitos sonoros em tempo real, participando
da cena a partir da interpretação sonora. Ele devia seguir as indicações do
roteiro e nomomento que se fizesse alusão à chuva, por exemplo, fazia o ba-
rulho com a água; quando se referisse ao trovão, usava a lâmina de alumí-
nio; se o cavalo aparecia em cena, utilizava as quengas de coco, e assim por
diante.
Anteriormente, falamos sobre os processos de identificação e proje-
ção, possíveis nas produções novelescas, sendo assim, mesmo não tendo
dados concretos, supomos que as radionovelas e as peças radiofônicas vei-
culadas na Poti promoveram tais processos. Podem ter havido pessoas que se
identificaram e projetaram seus anseios na personagem “Quim”, interpretada
por Glorinha Oliveira:
[...] eu sei que tinha uma... novela que eu fazia o papel de umacriança. Era uma novela americana, né?Mas tudo em português, e eu fazia o papel de uma criança e meu nome era “Quim” emeu pai tinha ido pra guerra e tinha morrido, então eu fiqueicomminha mãe e... aí de repente ela soube que o marido tinhamorrido, né? aí eu dizia: “mamãe porque papai não volta”, eladisse, aí a mãe dizia que ele tava no céu e ia trazer uma bonecapra ela, aquelas coisas... aí : “mas eu não quero boneca, euquero o meu pai”. aí choro e tudo, sabe? Foi muito bonita essanovela! e era muito triste. Quantas vezes eu chorei fazendo essa
Glorinha Oliveira e Wanildo Nunes interpre-tando uma radionovela
Foto: arquivo Diário de Natal
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 49
novela sabe? (GLORINHA OLIVEIRA − INFORMANTE 5).
Somos personagens sociais porque representamos papéis na socie-
dade: mãe, pai, filho e outros. No radioteatro, apesar da representação ser fic-
cional, ou seja, os personagens são verossímeis ou não, é possível perceber
o contexto em que eles eram criados. Em relação ao personagem “Quim”,
identificamos que ele foi criado num contexto da II Guerra Mundial em que
muitos soldados iam para a fronte de batalha e não voltavam para suas fa-
mílias, deixando viúvas e órfãos. No caso da personagem “Quim”, órfão de
pai, sua inocência de criança não a deixava perceber a realidade, sobretudo
devido ao comportamento protetor da mãe, resguardando a filha da dor da
perda. A relação entre as histórias ficcionais e a realidade social que a criou
é possível porque, de acordo comWalty (1999):
No romance, no teatro, as personagens também usam diferen-tes máscaras, de acordo com o papel que representam. Assim,seres de papel, ou não, eles nos permite ler, além da história deque fazem parte, a sociedade que criou essa estória (WALTY,2003, p. 61).
Namaioria das vezes, os personagens na ficção representam os papéis
sociais, desenvolvidos na vida real e, portanto, tais personagens ficcionais se-
guem os mesmos padrões ideológicos do real. Podemos verificar a preocu-
pação em não quebrar a ética, a moral e a ideologia da época através da
explicação do porquê que o personagem “Jerônimo” não podia se casar com
“Aninha”. Deixemos que Moacir Barbosa, ouvinte da época, conte-nos essa
história:
Por exemplo, nós escutávamos a novela nos anos 50 mais fa-mosa que era “Jerônimo – o Herói do Sertão”. Então essa no-vela, aí entra a questão da linguagem do rádio, da especificidadedo rádio, a questão da imagem mental que o rádio propicia pragente, a nossa diversão era imaginar os tipos que estavam portrás das novelas. Por exemplo, a gente ficava imaginando comoseria Jerônimo – o Herói do Sertão? Jerônimo tinha uma noivachamada Aninha, nunca deixaram de ser noivos, e o próprioMoisés Weltmam, que foi o autor da série, ele dizia: eu “nuncapermiti que Jerônimo casasse porque era uma questão moral.
Edivânia Duarte Rodrigues/Silêncio! A radionovela está no ar
50
Por exemplo, Jerônimo se dizia sempre envolto em aventuras,então ele estava sempre conhecendo mulheres, se eu é... se elecasasse ele estaria sujeito a...era uma coisa da moral da época,o adultério, seria uma coisa inconcebível. Ao passo que, sendonoivo, quer dizer, a coisa ficaria atenuada, seria uma traição cor-riqueira, então por isso eu nunca permiti que Jerônimo casasse”.Aí ficávamos imaginando como seria Aninha, a noiva de Jerô-nimo. Jerônimo era acompanhado por um personagem, cha-mando moleque Saci, que era um trio, o trio que estava sempreem todas as aventuras. Então nós ficamos pensando em comoseria Jerônimo? Como seria Aninha?Como seria omoleque Saci?(MOACIR BARBOSA − INFORMANTE 1).
Além de reiterar os valores sociais estabelecidos, o seriado “Jerônimo
– o Herói do Sertão” cumpria a função de ativar o imaginário dos receptores.
O relato do Informante 1, na condição de ouvinte do rádio, deixa claro a ten-
tativa de criar uma imagem visual para “Jerônimo”, “Aninha”, “Saci” e os ou-
tros personagens. Quantos ouvintes não vibraram com as peripécias do
herói? E quantos choraram com os infortúnios da mocinha? Podemos usar
as palavras deMachado, citadas porMorin (1997, p. 60), “Sonhei sem dormir
talvez até mesmo sem acordar”. Enquanto ouviam os seus heróis, os ouvin-
tes sonhavam em sê-los, quem sabe até mesmo gostariam que esse sonho se
tornasse real, portanto, o rádio, em especial a ficção, possui o poder de fazer
com que a mente trabalhe com aquilo que está no inconsciente e como ex-
pressa Morin (1977):
O imaginário começa na imagem-reflexo, que dota de um poderfantasma – a magia dos sósias – e se dilata até os sonhos maisloucos, desdobrando ao infinito, às galáxias mentais, não só de-lineia o possível e o imaginário mas mundo possíveis e fantásti-cos (MORIN, 1977, p. 68).
Para a criação das imagens mentais através das radionovelas, a lin-
guagem descritiva era primordial porque ela expunha as cores dos objetos, as
características físicas dos personagens, criavam um campo propício para ati-
var a imaginação. Na Rádio Poti, de acordo com as narrativas orais, antes das
peças radiofônicas ou radionovelas entrarem no ar havia a narração inicial do
enredo, do cenário e dos personagens. Mas, para entender e se deixar en-
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 51
volver na ludicidade proposta era preciso escutar a emissão. Parece ingênuo
fazer essa observação, mas não o é quando sabemos distinguir o ouvir do es-
cutar. Angel Faus Belau, citado por Ferraretto (2000), faz a separação:
[...] ouvir é um estado passivo, automático, enquanto que escu-tar implica uma atenção desperta, ativa, que formula perguntase sugere respostas, que se antecipa à ação futura que talvez váincrementar a audição. Ouvir não põe em jogo mais do que oscanais do ouvido. Escutar engloba todo o circuito do pensa-mento (BELAU apud FERRARETTO, 2000, p. 28).
É por isso que os ouvintes reunidos diante do aparelho receptor fa-
ziam silêncio para compreender as tramas, pois o propósito era escutar a ra-
dionovela voltando-se para ela uma compreensão responsiva. Alguns
ouvintes nem se quer possuíam o aparelho receptor, mas não deixavam de es-
cutar as radionovelas, Glorinha Oliveira explica como isso era possível:
Por exemplo, você tinha um rádio, eu não tinha, a vizinha nãotinha, então ia tudo pra sua casa na hora da novela: “ah! vou vera novela!, Gessy Lever apresenta: “Tormento de Amor”, aí todomundo calado que não dava um pio!, todo mundo, né? quandodava o intervalo: papa...”comentava ..., quando começava todomundo calado. Era isso, essa aproximação das pessoas com orádio, procurando saber o que é bom, sabe? Vivendo aqueleamor impossível, às vezes, vivendo um drama, quer dizer issoera bom porque agente chorava, a gente ria, comentava, enten-deu? (GLORINHA OLIVEIRA − INFORMANTE 5).
O rádio e um dos seus conteúdos mais populares – a radionovela –
interferiram no cotidiano social das pessoas, seja pelo fato de transportá-las
para uma realidade imaginária, onde os sonhos são realizados, seja aproxi-
mando-as numa mesma coordenada espacial ou não, unido-as pelo mesmo
intuito primordial de escutar o que se busca no real.
4.2 O humor entra em cena
Além das novelas a Rádio Poti também veiculou programas de humor
que fizeram uso das técnicas de dramaturgia. O mais famoso programa de
humor denominava-se: “Beco sem Saída”, produzido por A. G. de Melo Jú-
Edivânia Duarte Rodrigues/Silêncio! A radionovela está no ar
52
nior, de Recife, mas interpretado por radioatores potiguares, tendo como per-
sonagem central o Dr. Toxó – um cara esquecidíssimo – interpretado pelo ra-
dioator Teixeira Netto. Sobre esse programa de sucesso fala o ouvinte Alberto
da Hora:
No sábado tinha, à noite, um programa humorístico muito fa-moso aqui, e que também era muito, tinha muita audiência quese chamava “Beco sem Saída”, né? Um programa humorístico,assim por excelência, nos moldes desses que aparecem em te-levisão, quadros, com quadros... [...]. A participação eramuito...,não vou usar o termo total, mas eramuito concorrido, eramuito,era muito grande porque, em termo de mídia assim, né? Nãohavia ainda... a televisão tava no início (ALBERTO DA HORA −INFORMANTE 3).
O “Beco sem Saída” era apresentado no auditório da emissora Poti
por alguns radioatores do cast da rádio. O radioator e locutorWanildo Nunes
descreve a sua participação no programa, representando o personagem “Zé
Cruzeirinho”:
Tinha “Beco Sem Saída” que revelou muita gente... eu partici-pava dele como locutor e, eu fazia uma participação tambémcomo humorista. Fazia a locução e fazia humorismo com umper-sonagem chamado “Zé Cruzeirinho”, porque o cruzeiro naquelaépoca começava a despontar, que foi em 1942, se não me falhaa memória e, ele era muito fraco diante da moeda americana,que era o dólar. Então, eu fazia o “Zé Cruzeirinho”, o americanofazia: “Zé Cruzeirinho’ como vai você?” Aí eu dizia: “estoumuitofraquinho.” Era assim. Porque era fraco diante da potência dodólar (risos) (WANILDO NUNES − INFORMANTE 7).
É possível verificar que no “Beco sem Saída”, por trás do objetivo de
provocar o riso, encontrava-se também o de criticar. Ao passo que os recep-
tores se divertiam com o personagem “Zé Cruzeirinho”, tomam conheci-
mento, se não o tivessem, da inferioridade da moeda brasileira diante do
dólar americano. Isso reafirma o que disse Lia Calabre (2004) sobre os pro-
gramas de humor, nos anos dourados do rádio corresponderem a uma crí-
tica do cotidiano. Além disso, também acreditamos que a ficção tanto pode
estar a serviço da realidade, sendo útil a ideologia dominante, como a serviço
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 53
da realidade para denunciá-la. É o caso do personagem “Zé Cruzeirinho” que
expôs a realidade econômica da época através da ficção.
Outro personagem do “Beco sem Saída” era “Agripina – amulher mais
feia domundo” que nutria o desejo de um dia se casar, foi então que..., é me-
lhor deixar que a informante 5, intérprete do papel, conte essa história:
Agora o pai dela dava tanto dinheiro pra ela casar, pro povo eninguém queria ela. Aí fizeram uma festa bem grande, uma festatudo demáscara, aí foi uma festa muito grande, muita gente ricae tudo aí, quando dá meia noite tinha que tirar a máscara, né?Aí deumeia noite um cara bem interessado, né? Sabia que o paidela ia dá muito dinheiro, aí de repente o cara dançando comela disse: “você não vai tirar a máscara não? e ela dizia: e eu tôde máscara?,” aí minha filha caiu o pano, o cara foi embora eterminou a pobrezinha sem casar (GLORINHA OLIVEIRA − IN-FORMANTE 5).
A partir do relato acima sobre o personagem Agripina, e sabendo que
o personagem Dr. Toxó – um cara esquecidíssimo, também fazia parte do
“Beco Sem Saída”, dizemos que esse programa trabalhava na ficção com o
que não era tolerado no real, ou seja, a feiúra e o esquecimento, buscando o
riso por meio de atributos que, na vida real, são rejeitados.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conhecer a produção ficcional da Rádio Poti leva-nos a verificar como
as potencialidades do rádio foram usadas para encantar os ouvintes nos anos
dourados da radiofonia potiguar. Percebemos que a emissora Poti seguiu o
modelo das principais emissoras do país transmitindo as radionovelas que
mesclavam realidade e ficção, reunindo a família diante do aparelho recep-
(Arquivo Pessoal de Wanildo Nunes)
Programa Beco sem Saída: Wanildo Nunes, Teixeira Nettoe Glorinha Oliveira Oliveira
Edivânia Duarte Rodrigues/Silêncio! A radionovela está no ar
54
tor e provocando uma fuga das preocupações cotidianas a partir da criação
de ummundo imaginário, constituído a partir das elaborações mentais. Além
disso, veiculou programas humorísticos, baseados na dramaturgia, usando
dos acontecimentos e dilemas sociais introduziram uma diversão pautada na
reflexão.
NOTAS
1 - Doutoranda e Mestre em Estudos da Linguagem – PPgEL (UFRN). Profes-
sora do Instituto Federal do Rio Grande do Norte – IFRN.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA FILHO, André. Gêneros Radiofônicos: os formatos e os programas
em áudio. São Paulo: Paulinas, 2003.
CALABRE, Lia. A Era do Rádio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004
CHAUI, Marilena. A imaginação. Net, São Paulo: Editora Ática, 2000. Dispo-
nível em: <http://br.geocities.com/mcrost02/convite_a_filosofia_19.htm>. Acesso em:
08 maio de 2006.
FERRAZ, Nivaldo. A dramatização sonora. In: BARBOSA Filho, André (org).
Rádio: sintonia do futuro. São Paulo: Paulinas, 2004
FERRARETO, Luiz Artur. Rádio: o veículo, a história e a técnica. Porto Alegre:
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HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: VERPICE, 1990.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom.Manual de História Oral. 4. ed. São Paulo:
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ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira – Cultura Brasileira e Indús-
tria Cultural. São Paulo: Brasiliense, 1994.
THOMPSON, Paul Richard. A Voz do passado. Tradução de Lólio Lorenço de
Oliveira. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra,1998.
WALTY, Ivete Lara Camargos. O que é ficção? São Paulo: Brasiliense, 1999.
56
Prof. Dr. Emanoel Francisco Pinto Barreto¹
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Em ação voltada à sua inserção no mercado jornalístico de forma he-
gemônica, a Folha de S. Paulo desencadeou o Projeto Folha2, que consiste em
elaborado sistema de pensamento ideológico-organizacional, com ação para
dentro e para fora da Redação. É ao mesmo tempo processo tático e estra-
tégico. Tático em sua face interna, quando se manifesta em conjunto de nor-
matizações jornalístico-produtivas voltadas para impor o jornal ao mercado
como produto de excelência. Estratégico porque grande política. Objetiva,
pelo sucesso editorial e de mercado, atuar de forma privilegiada como apa-
relho privado de hegemonia. Seu implante significou drástica intervenção da
Direção sobre a Redação, que se viu subsumida a intenso processo coercitivo
a fim de, disciplinadamente, atuar como intelectual orgânico coletivo.
Instalado o processo a FOLHA passou a atuar internamente em duas
frentes. A primeira voltou-se paramodificações no aspecto gráfico com a ado-
ção de cores, inclusão de gráficos e infográficos como paritários aos textos e
uma rígida disciplina na forma como aqueles deveriam ser redigidos. Obje-
tivo: dar ao jornal feição moderna, identidade gráfico-visual que o insinuava
ser vanguardista, inovador e mais fácil de ser lido. Na segunda frente, emi-
nentemente voltada para desmantelar o jornalista enquanto categoria, pro-
moveu demissões em massa, entrou em choque com o Sindicato dos
Jornalistas de São Paulo, passou a manter fichas de avaliação dos profissio-
nais, exigiu dedicação exclusiva aos contratados e excluiu do Conselho Edito-
rial quem não fosse tido como defensor intransigente do Projeto Folha.
O jornal tem rígidos cronogramas de fechamento de edições e metas
trimestrais para aferição de produtividade, o que se deu após disseminar
Emanoel Francisco Pinto Barreto/ A Folhade S. Paulo, o grande irmão e as Diretas Já
A Folha de S. Paulo, o grandeirmão e as Diretas Já
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 57
ideologia voltada para a formação de quadros, por transformismo e/ou coer-
ção. Sua unicidade permitiria o funcionamento da Redação como intelectual
orgânico coletivo. Ao início do processo a Direção emitia periodicamente do-
cumentos de conteúdo ideológico, em que convocava a Redação amanter-se
em atividade plena, analisava seu desempenho e opinava a respeito de mer-
cado, leitores e política nacional. De 1991 a 1997 divulgou 14 desses docu-
mentos – cinco dos quais tidos como básicos para o Projeto Folha – e editou
três Manuais da Redação: o primeiro em 1984, o segundo em 1987, o ter-
ceiro em 1992; todos em visceral convergência com as pregações contidas
nosmencionados documentos. O Projeto busca estabelecer discurso que seja
visto como racional, em níveis interno ou externo ao jornal. Legitima sua pre-
sença demundo em função de que é “membro” desse mundo e vocaliza seus
valores, como acorreu durante a campanha Diretas-já. Tomando esse movi-
mento pluriclassista como ponto inicial, faremos, a partir de agora, digressão
analítica que entendemos como essencial à compressão dos fundamentos
ideológicos e funcionais do Projeto Folha.
A FOLHA assumiu a bandeira das Diretas-já e mimetizou-se por inteiro
à sociedade civil, mobilizada contra a ditadura advinda do golpe militar de
1964. A partir de então, passou a ser vista como entidade jornalística enga-
jada aos movimentos sociais. A observação a seguir, entretanto, sinaliza o
contrário:
A Folha sempre foi vista pelo empresariado com mais reservasdo que qualquer outro dos grandes veículos de comunicação dopaís pelas suas posições politicamente tidas comomais avança-das, mas não poderá jamais ser considerada – sob pena de serexpelida do sistema de mercado no qual atua e crê necessárioatuar – um órgão opositor do establishment (SILVA, 2005,p.181).
A ação está em aliança com a ordem, com o mercado. Como nas Dire-
tas-já havia assumido posição supostamente aguerrida, sua capacidade de
influenciar setores mais à esquerda fora realçada. O entusiasmo da Redação
era tamanho que os jornalistas se acreditavam autorizados a engajar as edi-
torias em que trabalhavam a favor de causas ligadas à sociedade civil, mesmo
58
passada a fase das Diretas-já. Supunha-se que o jornal se manteria em cru-
zada. Mas isso não mais interessava à Direção. “Havia, assim, uma necessi-
dade política2 [de] aumentar o sistema de controle sobre o trabalho dos
jornalistas” (SILVA, 2005, p. 181, grifos nossos).
Dando ou não apoio a teses populares, a atuação da FOLHA é política.
Pode ser vista tanto como grande quanto pequena política. Grande política
quando se ligou àquele movimento pluriclassista. Pequena política ao enfa-
tizar noticiário ou opinião renitente, ressaltando intrigas ou assuntos meno-
res que destaquem pontos positivos ou negativos de ator político ou entidade
que circunstancialmente lhe seja aliado ou adversário. A ênfase, positiva ou
negativa, sustentada pela “objetividade”, mascara a opinião subjacente. “A
‘pequena política’ [no jornalismo] poderia ser facilmente identificada com a
práxis manipulatória [...]” (COUTINHO, 1989, p. 54). Todavia, “é grande polí-
tica tentar excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e redu-
zir tudo a pequena política [...]” (GRAMSCI, 1988, p. 159). Com isso há elisão
jornalística dos grandes temas, em benefício de assuntos que não tratem de
questões estruturais.
Praticando grande política o jornal aliou-se mansamente ao golpe de
1964. Não foi censurado. Em sentido inverso, praticou também grande polí-
tica ao imiscuir-se à campanha das Diretas-já, obscurecendo, pelo aluvião, da
História, o passado incômodo. Ou seja: pela superposição do positivo ao ne-
gativo obnubilou-se o segundo, surgindo a FOLHA como ator remido. O pas-
sado fora “alterado para melhor”. Com essa sobreposição, na sequência do
tempo histórico obteve inesperado e auspicioso poder: o poder de “construir
o seu próprio passado”.
Esse passado – heroicizado, dignificante, bom – será sempre utilizado
como documentação comprobatória de que o jornal seria instância legítima
e qualificada a falar em nome e ao lado da sociedade civil. O jornal torna-se
proprietário de verdade benigna, a verdade de que participou destacada-
mente da campanha e “estava do lado certo”. Tal participação está docu-
mentada nos seus arquivos. É prova material “incontestável”. Em sucessivas
edições, que podem ser consultadas por qualquer um, está registrado que
teve papel essencial para a consolidação do movimento. Em outras palavras:
Emanoel Francisco Pinto Barreto/ A Folhade S. Paulo, o grande irmão e as Diretas Já
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 59
o jornal “arriscou-se” pela redemocratização. Sempre e quando achar ne-
cessário, a Direção chamará pelo seu passado, instrumentalizando-o como
dado garantidor de credibilidade no antes, no agora e no depois. O passado
não existe apenas porque se deu, mas porque se tornou propriedade imate-
rial fetichizada e aurática.
Neste ponto façamos uma observação a respeito da inserção da FOLHA
na sociedade civil, pois foi aí que teve presença o espetáculo das Diretas-já.
Frente à perspectiva gramsciana, sociedade civil e sociedade política não são
instâncias apartadas e/ou mesmo conflitantes. Não há, organicamente, dis-
tinção entre ambas. Sociedade civil e sociedade política são distinções analí-
ticas produzidas por Gramsci, para melhor expor suas ideias a partir do
conceito de Estado integral, que as abrange.
A sociedade civil não é, portanto, uma instância do real. Ela éuma das formas da natureza estatal. A acentuação da forma “pri-vada” dessas instituições, do seu caráter de regulação não nega(nem o poderia) o seu caráter estatal nem o seu caráter clas-sista, como querem os liberais. Esse aspecto “privado” não seopõe ao aspecto público. No Brasil, todos sabemos, o capital ea dita iniciativa privada são fundamentalmente constituídos pelopúblico, pelo Estado. [...] No pensamento marxista, a oposiçãopermanente que se estabelece é entre as classes em presença ea forma estatal das classes dominantes. Esse estado conformaaquilo que os liberais chamam de sociedade. Se não existe so-ciedade sem Estado, pelo menos após a diferenciação das clas-ses, esse Estado é sempre aquele que explicita a racionalidadedos dominantes ou, como diz Gramsci, aquele que cria as con-dições de máximo desenvolvimento daquelas classes (DIAS,1996, p. 113).
Desmancha-se a visão de sociedade civil “neutra”, solidária e sem con-
flitos. Ao contrário, trata-se de realidade infensa à horizontalidade que os li-
berais apregoam. Tais observações nos indicam que ser falacioso pensar a
sociedade civil como articulação orgânica de instituições diferenciadas. Tal
visão resulta em compreensão homogeneizadora e subalternizante, que im-
plica reducionismo e ocultação dos conflitos sociais, como pretendem os li-
berais (DIAS, 1996).
O embate entre instituições ocorre permanentemente, em processo
60
objetivo de luta. Sob o ponto de vista dos trabalhadores, sua inserção na so-
ciedade civil ocorre a partir de ação consciente frente aos movimentos so-
ciais organizados, sendo o movimento dos trabalhadores ele próprio
movimento social organizado, com potencial de divergir contra-hegemonica-
mente. Isso lhe permite o ingresso na sociedade civil não de forma equipa-
rada, aplainada a outros movimentos, mas como parcela pensante e
dialeticamente questionadora.
Essa mudança de foco não significa desconhecer o plano e opeso das instituições, nem política nem analiticamente. Pelocontrário. Ao colocar o movimento social, com toda a sua con-tradição, no centro da luta social, percebe-se o alcance real dasociedade civil. Desmistificada, ela se revela espaço de luta enão mais cenário de pactos sociais. Ela se apresenta, agora, nopleno de suas contradições. Não cabe mais a ilusão de que ela énecessariamente progressista. Isto nos mostra a falácia e a ar-madilha da afirmação da necessidade de “organizar a sociedadecivil”. Lembremos, à guisa de exemplo, que a UDR faz parte dasociedade civil organizada. E como! Para não falarmos do maispoderoso aparato da sociedade civil no Brasil: a Rede Globo(DIAS, 1996, p. 114).
Feitas essas observações chegamos ao aspecto pontual que nos inte-
ressa: a presença da FOLHA como força conservadora e participante do cen-
tro da luta social das Diretas-já. Plasmada amovimento pluriclassista, e tendo
a seu favor o fato de que efetivamente participava (e participa) da sociedade
civil nos termos acima propostos, foi fácil apresentar-se como defensora da
redemocratização do país. Mas, em si, o movimento não era revolucionário;
antes lutava para que se fizesse a restauração de um status quo em que a so-
ciedade era consultada na escolha, pelo voto, do presidente da República.
Como omovimento era restaurador, mesmo representando expressivo ganho
à redemocratização, não ameaçava os postulados ideológicos da empresa.
Nem a ela ou à estrutura e superestrutura dominantes. Assim, adentrou à
empreitada e contribuiu para sua divulgação participante. O movimento das
Diretas-já representou virtualmente a dissolução das contradições classistas
da sociedade civil em solvente social momentâneo. Forças progressistas e
conservadoras formaram um complexo voltado para reversão de quadro, mas
Emanoel Francisco Pinto Barreto/ A Folhade S. Paulo, o grande irmão e as Diretas Já
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 61
sem profundidade estrutural. E a empresa, assumindo por coordenação al-
guma forma de direção do movimento, agregou valor histórico à sua atitude
tática. A mobilização teve início num domingo, dia 27 de novembro de 1983
em São Paulo, e foi assim saudado com o editorial “Aos cidadãos”:
A cidade de São Paulo se prepara hoje para a primeira manifes-tação pública a favor das eleições diretas para a Presidência daRepublica. Mais do que anseios de grupos ou setores, trata-se deuma exigência nacional longamente amadurecida na reflexão ena prática. O cenário não poderia ser mais apropriado. Os maisdramáticos e surpreendentes episódios da atual transição de-mocrática se passaram em São Paulo, impulsionados pelo dina-mismo da cultura industrial aqui instalada. Território de novosconflitos e atitudes, esta cidade constitui o paradigma de umasociedade complexa, cuja expansão não se podemais conter noslimites acanhados da tutela. O que se reclama, em última aná-lise, é a devolução do direito de autogoverno. Adiá-la, nas atuaiscircunstâncias, poderá transformar o descrédito que separa asociedade e o poder que a governo em antagonismo irredutí-vel3. A Folha atribui importância à manifestação programadapara esta tarde. Esperamos que nela a presença madura, firmee serena dos cidadãos de São Paulo possa traduzir o desejo detodo o povo brasileiro, a esperança em um futuro renovado e acerteza de que conquistaremos a dignidade política, pela qualse mede o valor de uma Nação (FOLHA DE S. PAULO, 1983, p. 2).
A FOLHA começava a construção do passado dignificante. Dia seguinte
à mobilização, a manchete da página 4 afiançava: “Ato pelas diretas leva 15
mil à praça Charles Miller”, com o subtítulo: “Os pronunciamentos de repre-
sentantes de 70 entidades enfatizaram a necessidade de devolver ao povo a
escolha de seu presidente”.
A campanha pelas eleições diretas para escolha do próximo pre-sidente da República ganhou as ruas, pela primeira vez, ontemà tarde, em frente ao estádio de futebol Pacaembu, quando re-presentantes de 70 entidades integrantes da sociedade civil eda classe política (PMDB, PT e PDT), além de um público calcu-lado em 15 mil pessoas, realizaram o primeiro ato público cujoobjetivo fundamental foi solidificar a tese de que sem eleiçõesdiretas não há democracia (FOLHA DE S. PAULO, 1983, p. 4).
Toda a página foi dedicada à cobertura, commatérias expondo diversos
62
ângulos do acontecimento. Uma grande fotografia no alto da página dava
exultante dimensão do público que havia comparecido. Foto do então ope-
rário Luís Inácio da Silva, que a imprensa chamava de “o Lula”, trazia legenda
anunciando que ele prometia “novas manifestações”. Ao lado, o sociólogo
Fernando Henrique Cardoso deplorava o Colégio Eleitoral, que elegia indire-
tamente o presidente: acusava-o de ser “um instrumento desmoralizado”. A
cobertura militante foi mantida ao longo de todo o período. O jornal assu-
mira atitude e prática de partido. Registrava os comícios, atos públicos, pas-
seatas, o grito das ruas. Cobriu tudo, até à derrota da Emenda Dante de
Oliveira, que instituía as diretas, votada dia 25 de abril de 1984. Então, o jor-
nal veiculou a seguinte manchete: “Sem apoio do PDS, a emenda das diretas
é rejeitada”. O antetítulo anunciava: “A marcha da decepção.” Em texto in-
dignado, o jornalista Clóvis Rossi, enviado especial a Brasília, dizia:
Foi a noite da vergonha: vergonha nos gestos dos deputados doPDS que ou se ausentavam do plenário ou, quando votavam não,geralmente o faziam de seus próprios assentos, sem coragemde enfrentar o microfone de apartes, de onde deveriam profe-rir o voto. Vergonha pelo escandaloso esquema de policiamentomontado ao longo da Esplanada dos Ministérios, restringindo oacesso ao Congresso Nacional (ROSSI, 1984, Política, p. 5).
Omomento histórico propício à “ocidentalização” e os desdobramentos
favoráveis à reversão do quadro de ditadura, formaram caldo ideológico pro-
videncial. O jornal usufruiu das circunstâncias e afirmou imagem de “avan-
çado” e parceiro da sociedade civil em sua face pluriclassista reivindicante.
Vista de hoje, a construção desse passado oportuno desvela os rumos para a
consolidação do Grupo Folha como formulador de grande política, empresa-
rial e politicamente. Esses dois fatores, plásticos entre si, são dinamizados
pela motricidade ideológica contida no Projeto.
2 A FOLHA e o “Grande Irmão”
A partir das Diretas-já como passado benéfico construído, propomos
constatação singular: à alusão feita à construção e controle do passado – do
Emanoel Francisco Pinto Barreto/ A Folhade S. Paulo, o grande irmão e as Diretas Já
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 63
jornal pelo jornal – se apresenta como pista que nos permite estabelecer ana-
logia entre o agir da FOLHA e a realidade ficcional da obra de George Orwell
1984. Ali, entidade fetichizada, o Grande Irmão, tem a seu serviço o Partido,
intelectual orgânico coletivo que manipula continuamente o passado a favor
da manutenção, no presente, da ordem instituída. A rememoração desse
passado dá ao Grande Irmão a imagem demiúrgica de condutor imperial da
história. Como ocorre, no plano vivido, com a FOLHA em relação ao capital-
Grande Irmão e em relação a si própria, Partido.
Tomando-se como ponto de partida o fato de que a ficção não é algo
descolado ou falseamento do real, mas ilação tomada a partir do real para
sobre este incidir criticamente, entendemos como passível a utilização de
obra ficcional para os fins aqui pretendidos. A ficção lança sobre o mundo da
vida um olhar de estranhamento, questionador. Com isso faz seu desnuda-
mento. O mundo ficcional é artificial, mas advindo de visão lúcida sobre o
mundo da vida que, por sua vez, também resulta do homem na sua condição
de artífice. Essa condição de artificiar a vida dá parte à ideologia como pro-
cesso ilusivo, que permite a imersão do sujeito em realidade falsamente re-
presentada. Disto, porém, não se dá conta, e por isso mesmo a vive como
circunstância condicionante e “real”. A ficção lúcida, em antítese, reconverte
a razão ao ato compreensivo do sujeito cognoscitivo e expõe o real fático em
sua situação ilusionista. A ficção é uma forma de real, embora não realidade
no sentido de nela estarmos imersos. É o real escandido, criticando o real fá-
tico-artificial. Situa-se noutro plano, mas é significante válido, já que aquele
infere e desmistifica. No mundo orwelliano, e nas páginas da FOLHA há um
dado, um traço de união que estabelece e explica nossa escolha por esse tipo
de abordagem: é possível perceber-se a presença da ideologia como ele-
mento central a disciplinar toda a trama, seja a jornalística, seja a ficcional. A
ideologia é o ponto nodal entre um universo e outro, ponto qual nos utiliza-
remos para desenvolver a abordagem proposta.
Sendo a ideologia processo relacional de ilusão, reversão e ocultação
do real, mas sendo também aspecto composto à realidade enquanto repre-
sentação desta, temos que, no mundo vivido e na obra literária, esta se en-
contra exemplarmente expressa, ou seja: a ideologia, em suas manifestações
64
fenomênicas, é real num e noutros planos. A diferença é que a leitura da
FOLHA, em sua forma positiva, é ilusiva. Por sua vez a leitura de Orwell é des-
velamento, ação crítica sobre o processo ilusório. Mas o processo ideológico
é idêntico: os planos de realidade onde a ideologia se manifesta – ficção e
jornalismo – é que se alternam ao mesmo tempo em que experimentam re-
lação de complementaridade pela circunstância de serem, ambos, represen-
tações da realidade.
O que o autor de 1984 exercita é sua crítica à ideologia do mundo da
vida, trazida por ele para a metalinguagem do discurso literário. Do mesmo
modo que o fazemos, neste trabalho, com relação à FOLHA. Assim, a obra de
Orwell está plenamente inserida no mundo vivido, no momento mesmo em
que é lida e o refuta ideologicamente. Da mesma forma, nosso texto está em
atitude invasiva e reveladora da ideologia do jornal. A ideologia é a liga que
funde 1984 à FOLHA e os torna implicados. A partir deste aspecto formula-
remos nosso ato compreensivo quanto ao trabalho do jornal, esclarecendo,
todavia, que será complementar às visões gramscianas.
Antes de nos aprofundarmos na citação de excertos orwellianos que es-
tabelecem esta paridade, insistimos: temos consciência de ser inusual e atí-
pica a utilização bibliográfica de obra ficcional para dar sustentação a trabalho
de cunho acadêmico. Seja para a definição do objeto de conhecimento ou
para seu alicerce teórico-metodológico. Permitimo-nos, porém, esta licença
analítica, a partir de questionamento quanto ao que sejam “objeto real” e
“objeto teórico” e as premissas para delimitação de um e outro e suas inter-
conexões. Valemo-nos da citação a seguir para adensar a justificativa pela uti-
lização da obra de Orwell:
“[...] analiHcamente, o “objeto teórico” é disHnto do“objeto real” e interpreta essa sentença no senHdoem que foi claramente indicado por Marx em Para acríHca da economia políHca. Isso quer dizer que o real,para o conhecimento não aparece imediatamente emsua concreHcidade. Não é a objeHvidade evidenciadadiretamente pelos senHdos que consHtui o concreto,mas a síntese de suas múlHplas determinações en-quanto concreto pensado, embora a concreHcidade
Emanoel Francisco Pinto Barreto/ A Folhade S. Paulo, o grande irmão e as Diretas Já
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 65
que o consHtua seja o verdadeiro ponto de parHda.O percurso do conhecimento vai do abstrato ao con-creto, das abstrações mais gerais produzidas pelosconhecimentos anteriores [...] até omomento da sín-tese realizada pelo conceito para apanhá-lo em suasdeterminações específicas, isto é, como concretopensado. [...] Neste senHdo, o “objeto real” é opróprio fenômeno, aquilo que aparece imediata-mente aos senHdos e se anuncia na experiência pre-sente, assimilada de forma isolada e fragmentária. Eo “objeto teórico” (ou “objeto de conhecimento”) é arealidade observada sob o ângulo dos conhecimen-tos acumulados preliminarmente, ou seja, nos limitesem que isso foi possível já vinculada (a realidade) aoseu princípio. Assim, dois aspectos merecem serressaltados. Primeiro, que o “objeto teórico”, tal comoo “objeto real”, não é algo dado de uma vez para sem-pre, alguma coisa fixa e inerte, mas um processo deconstrução paralelo à produção da própria realidadehumana. Segundo, que não existe um fosso in-transponível entre um e outro, mas uma transfor-mação constante e progressiva do “objeto real” em“objeto teórico” e vice-versa. É se apropriando domundo que o homem vai realizar essa transformaçãoe, através dela, revelando a verdade do objeto real[...] (GENRO FILHO, 1987, p. 5, grifos no original).
A partir destas observações propomos: é essencial, em trabalho aca-
dêmico, a utilização de referencial ficcionista para a construção e abordagem
de “objeto teórico”? Certamente que não. Mesmo assim, cogitamos: seria
possível, aqui no sentido de admissível, sua utilização? Supomos que sim. Jus-
tificamos: tomando-se como parâmetro a assertiva de que o “objeto teórico”
é “um processo de construção”, advindo, portanto, de sujeito cognoscitivo,
entendemos ser possível/admissível agregar material ficcional a tal processo;
isso, desde que se estabeleça nexo de proximidade ou coincidência entre a fic-
cionalidade e as propositivas teóricas, quando nos remetemos ao “objeto
real” e sua análise.
Assim, a desconstrução do “objeto real” FOLHA DE S. PAULO e sua re-
66
construção no “objeto teórico” FOLHA, como a vimos designando, dá parte à
ficção quando percebemos homologia entre os textos jornalísticos sob aná-
lise e a escritura do universo orwelliano. Ou seja, há uma intertextualidade a
estabelecer paradigma heurístico-verossimilhante. A abordagem literária, a
semiose impressionista das citações orwellianas, atiradas do mundo ficcio-
nal para dentro do mundo do jornal, acentua o dado burlador e burlesco do
discurso imanente ao objeto FOLHA e seu Projeto. A abordagem teórico-
gramsciana, por sua vez, deslinda a prática ideológica perpetrada pelo jor-
nal, agora na facticidade das ações. Assim, estabelecemos uma espiral
interpretativa.
A nosso juízo não há um fosso intransponível a tal admissibilidade, re-
sultando assim argumento novo de abordagem. Trata-se, estimamos, de con-
tributo que, mesmo idiossincrático, sui generis, intencionalmente gauche,
que traz um adendo às formulações acadêmicas sem prejuízo da integridade
do estudo em percurso. Estabelecida tal proximidade, comecemos por duas
citações: “Quem controla o passado”, dizia o lema do Partido, “controla o fu-
turo; quem controla o presente, controla o passado” (ORWELL, 1975, p. 36).
Trata-se de situação em que uma circunstância implica a outra, em pro-
cesso circular de conservação emudança para conservar, funcionando o pre-
sente como momentum de reflexão e refazimento de forças do sistema. O
controle do passado foi um dia exercício atual de domínio histórico conser-
vador. A partir desse marco zero, a mudança do passado que se reatualiza é
a escritura mutante desse passado, que renasce na alteração diária do noti-
ciário. A medida é premunitiva dos dominantes: é preciso manter o passado
em dia, preservar o domínio vindo daquele passado e reescrevê-lo todos os
dias, para perpetuar-se no poder. Este tem sido efetivamente o trabalho das
elites, de seus intelectuais orgânicos e aparelhos privados de hegemonia:
viver o presente, mas sempre como dádiva que lhes deu o passado. Como se
o passado fosse uma espécie de “presente anterior que hoje ainda se posta”
e assim assegurarem-se de que continuará ilimitadamente. O controle do pas-
sado significa também glorificar no presente a obra dos dominadores, reafir-
mando-a como universal e desejável, legado e bem-comum. Vamos à segunda
citação:
Emanoel Francisco Pinto Barreto/ A Folhade S. Paulo, o grande irmão e as Diretas Já
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 67
O passado é o que dizem os registros e as memórias. E como oPartido tem pleno controle de todos os registros, e igualmentedo cérebro dos seus membros, segue-se que o passado é o queo Partido deseja que seja. Segue-se também que, embora o pas-sado seja alterável, jamais foi alterado num caso específico. Issose aplica mesmo quando, como acontece com frequência, omesmo sucesso tem de ser alterado várias vezes no decurso deum ano. Todas as vezes o Partido é detentor da verdade abso-luta, e claramente o absoluto não pode ser nunca diferente doque é agora. Ver-se-á que o controle do passado depende, acimade tudo, do treino da memória. Não passa de ato mecânico cer-tificar-se de que todos os registros escritos concordam com a or-todoxia domomento. Mas também é necessário recordar que osacontecimentos se deram da maneira desejada. [...] Esse é umtruque que pode ser aprendido como se aprende qualquer outratécnica mental. [...] (ORWELL, 1975, p. 199-200, grifos nossos).
Os registros e as memórias do jornal o “confirmam” diariamente como
credível. O próprio fato de ser editado é parte do discurso de credibilidade.
Quando da ditadura, a ortodoxia do momento o mandava coonestá-la. A
mesma ortodoxia agora o diz hoje jornal de mercado, mas, quando nas Dire-
tas-já, o apresentava como olhar e voz da sociedade civil. O passado velho
das Diretas-já foi substituído pelo passado transitório do dia a dia da atuali-
dade e hoje a FOLHA atende o mercado. Trata-se, como vemos, de verdade
moldável, volúvel, que se resolve sob as mãos da Direção.
Estabelecendo paralelo entre o dizer orwelliano e o discurso da FOLHA,
temos a palavra de Odon Pereira, intelectual orgânico daquela. Jornalista, tra-
balhou na Redação de 1969 a 1983, com intervalos. Foi repórter, repórter es-
pecial e exerceu cargos de editor de Cidades e Secretário de Redação
(PASCHOAL, 2007).
Para Odon, “os autores da reviravolta da Folha são o sr. Frias e o[jornalista] Cláudio Abramo. O sr. Frias com a extrema capaci-dade mercadológica de identificar onde estava o mercado parao jornal, e o Cláudio, com a capacidade de traduzir isso para umalinguagem jornalística e política adequada – quando eu digo jor-nalística e política é porque na época não bastava, e creio queainda hoje não basta, uma visãomeramente jornalística, era pre-ciso adaptar isso também aos ventos da política.” A [...] fase demaior crescimento da Folha e que a colocou como concorrente
68
disputando o primeiro posto entre os jornais brasileiros, [é a]fase pública: “A situação atual não seria possível se a Folha nãotivesse o crescimento de antes. Seria extremamente frágil a baseda qual ela partiria, porque todo o marketing da Folha está ba-seado no passado. E esse passado aconteceu nessa fase da Folhaque vamos chamar de heróica [Diretas-já], quando se encerroutambém a fase romântica. Encerrou-se aí a fase do jornalistaboêmio, poliglota, aristotélico, com respeito universal. Essa ima-gem dos jornalistas declinou, [...] dando lugar à fase do marke-ting, da estratégia de venda do produto. [A Redação] era umambiente romântico, em que o jornal tinha de vender com baseem suas posições, seu noticiário, suas reportagens. Essa fase foitotalmente superada. Mas creio que, de qualquer maneira, ocrescimento que se seguiu só foi possível porque existiu antesessa fase muito difícil, mas muito bem armada, muito bem ar-quitetada” (PASCHOAL, 2007, p. 150, grifos nossos).
Frias Filho, diretor-editorial, aduz:
O problema [da feitura de um jornal] fica mais claro quando setem em mente a incomensurabilidade do campo de interessedo jornalismo. As possibilidades não se esgotam jamais e na suaresolução há, portanto, um núcleo de arbitrariedade, de pes-soalidade irredutível. Como o artista, neste particular, o jorna-lista será tolo se imaginar que seu trabalho preenche um objeto,já que o seu trabalho cotidiano é, pelo contrário, conceber esseobjeto, esperar que as suas habilidades para fazer assegurem aadesão de quem lê e que depois até essa adesão se torne dis-pensável porque ela será nada além do que um hábito. E isso éo que os jornais dizem todas as manhãs: renuncie aomundo, gi-gantesco e inatingível demais para qualquer pessoa individual-mente, e adote este artifício como se ele fosse de fato omundo.A unidade do jornal é o seu próprio ritmo, mas sem o arbítrio,não há o que ritmar (FRIAS FILHO, 2005, p. 51).
Estabelecendo-se nexo entre os discursos dá-se a percepção de sua con-
vergência. O poder – seja do Partido orwelliano, seja da FOLHA – é arbitrário.
Sua verdade, absoluta na legalidade interna do discurso. Sua decisão de con-
trolar o passado e recordá-lo instrumentalmente é parte de hegemonização
permanente, ajustada pelo marketing à casuística do momento. A ortodoxia
emitida da FOLHA para o mundo vivido deveria assim, pelo “bom senso” do
leitor, ser reproduzida em processo, como o quer Frias Filho. A partir deste ra-
ciocínio, seguir a ortodoxia jornalística seria apenas questão de aplicar-se a si
Emanoel Francisco Pinto Barreto/ A Folhade S. Paulo, o grande irmão e as Diretas Já
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 69
um truque mental, cômodo e tranquilizador, e tudo estaria aceito como se
assim fosse. O que se pretende é consenso, adesão ao que diz/prega o jornal-
mundo-FOLHA. Esse ato é atomental. É artifício – o truque orwelliano – como
admite o jornal. A “adesão de quem lê” tem similitude ao ideário do Partido
ficcional: este prega a necessidade de o “ato mecânico certificar-se de que
todos os registros escritos concordam com a ortodoxia domomento”. Aquela
reza pelo sermão de que é imperiosa a adesão de que quem a lê venha a agir
mecanicamente, “e que depois até essa adesão se torne dispensável porque
ela será nada além do que um hábito”. Em 1984 e na FOLHA traço em comum:
a busca do estabelecimento de uma fé. A presença da ideologia ligando
mundo vivido e mundo ficcional.
Artifício num, truque noutro, apenas uma questão terminológica – a
FOLHA, da forma comomesmo se pretende, “é” o mundo. A proposta repre-
senta postulado à capitulação, renúncia ao conhecimento do que seja o real
histórico. O leitor abdicaria a qualquer senso de realidade ao elaborar para si
o artifício de forjar e obedecer à fé de que o jornal “é” o mundo, mesmo sa-
bendo sua Direção que o mundo mesmo está lá fora. O chamamento chega
a desejar que a adesão seja irrestrita. No fundo, nem mais adesão seria – o
leitor é que estaria adesivado ao jornal. Ou seja: nãomais estaria comprando
um jornal; estaria adquirindo um impresso, amoldando-se à aquisição diária
de qualquer coisa que lhe fora impingida. Ela, em si, não seria importante ou
desimportante, apenas deveria ser comprada, como ocorre no adestramento
dos personagens de 1984.
A defesa da arbitrariedade do jornal dá clareza à essência autoritária
do Projeto Folha e estabelece: de um lado o jornal-mundo, eminente e es-
clarecido; do outro o leitor mecanizado, mero consumidor. A arbitrariedade
seria a manifestação do saber absoluto e incontestável do coletivo FOLHA,
que teria assim chegado às alturas do Partido orwelliano. A arbitrariedade
seria a capacidade de impor e fazer aceitas quaisquer verdades, uma vez que
o social está sendo convidado a deixar de escolher, para simplesmente aca-
tar. Entre o mundo de 1984 e a FOLHA há espantosa convergência. Seu tra-
balho manipulador resulta em que, pela mimese social que pratica, como o
fez durante as Diretas-já, estanca o processo de transparência de seus ver-
70
dadeiros propósitos de aparelho privado de hegemonia e passa a produzir
opacidade quanto ao que é e o que pretende. Em Orwell, o Partido também
produzia opacidade. O jornal busca consenso artificial. Consenso como con-
vergência obtida mediante manipulação – o que não seria, a rigor, consenso.
Seria sim consenso urdido, não resultado de conjunto de valores comuns e
históricos que unem determinada classe. Capitulação de interesses classistas
subalternizados perante discurso de dominação – e consequente aclamação
desse domínio.
Tal rendição da sociedade ao conjunto informativo que lhe é disponibi-
lizado diariamente configura e confirma que um determinado modo de pen-
sar, a racionalidade predominante no jornal, é a racionalidade pretendida,
especialmente naqueles nichos do senso comum onde logrou penetração. A
crença passa a razão. A sociedade passa a acreditar e “o ‘certo’ se torna ver-
dadeiro” (GRAMSCI, 2001, p. 44). À medida que alguém ou grupo passa a
acreditar em pressuposto, mesmo que falso, este será tido como verdadeiro
e racional, fornecendo-se argumentos para sua defesa: “[...] la racionalidad de
una creencia o de una acción es inherente, de manera precisa, a la verossi-
militud de las razones que pueden ordenarse a partir de la afirmación de que
el mundo es de tal manera” (SITTON, 2006, p. 100).
Assim, quando el mundo es de tal manera, está posto e foi racionali-
zado. Adequando-se o leitorado ao que diz o jornal, forma-se princípio de
convicção socializado. Agrega-se aí aspecto de importância perante o leito-
rado: a confiança, advinda da suposição de que o jornal “está sendo sincero”.
A confiança ajuda a estabelecer processo comunicativo de consenso alinha-
vado, convicção de que o “certo” será sempre o “verdadeiro”, e mais: que
esse verdadeiro poderá ser encontrado em suas páginas. Mas isso assegura
apenas a ordem que interessa ao jornal, que garante que el mundo es de tal
manera e que assim sempre o será. O Projeto Folha, para tanto, deu expres-
siva contribuição. Os aspectos acima mencionados têm, organicamente, li-
gações com o Projeto, formam seu arcabouço e ramificações compondo o
intimus ideológico de todo o processo, seu ânimo e permanente disposição
de assegurar que o jornal semantenha “fiel” aos postulados do Grande Irmão,
pelos quais propugna.
Emanoel Francisco Pinto Barreto/ A Folhade S. Paulo, o grande irmão e as Diretas Já
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 71
NOTAS1 - Professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Fed-eral do Rio Grande do Norte UFRN, Doutor em Ciências Sociais.2 -Com relação a este, usaremos as denominações “Projeto Folha” ou “Pro-jeto”.3 - A necessidade de controle políHco demonstra como, internamente, o jor-nal impõe e busca formar um corpus profissional disciplinado e conhecedorde que, individualmente, seus membros não têm permissão para se expres-sar. Tal direito pertence unicamente à empresa, que os remunera para queformulem representação de mundo que coincida com o ideário da Direção
REFERÊNCIAS
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FRIAS FILHO, Otávio. Apresentação. In: SILVA, Carlos Eduardo Lins da.
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xista do jornalismo. Porto Alegre: Tchê, 1987.
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Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1988.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975.
PASCHOAL, Engel. A Trajetória de Octavio Frias de Oliveira. 2. ed. São
Paulo: Publifolha, 2007.
ROSSI, Clóvis. Sem apoio do PDS, a emenda das diretas é rejeitada.
FOLHA DE S. PAULO, São Paulo, 26 abr. 1984. Política, p. 5
SILVA, Carlos Eduardo Lins da.Mil Dias: Seis Mil Dias Depois. São Paulo:
PubliFOLHA, 2005.
SITTON, John. Habermas y La Sociedad Contemporánea. México (DF):
FCE, 2006.
Nome do autor e Itulo do texto72
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 73
José Zilmar Alves da Costa/Letras de música e seu estatutode corpus em análise de discurso: anotações metodológicas
74
O homem em suaespecificidade humana cria texto
para exprimir a si mesmoBAKHTIN (2003, p. 312).
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Considerando que as Ciências Humanas são as ciências do homem e
não de uma coisa muda ou um fenômeno natural, e que o homem, em sua
especificidade humana, cria texto para exprimir a si mesmo (BAKHTIN, 2003,
p. 312), o texto foi o ponto de partida da pesquisa que desenvolvemos
(COSTA, 2009) junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Lin-
guagem (PPgEL-UFRN), durante a qual trabalhamos com um corpus oriundo
de uma esfera específica da comunicação humana – omundo damúsica. Para
isso, fizemos uma seleção de canções do repertório do artista popular
brasileiro Luiz Gonzaga (1912-1989), em cuja materialidade linguística fomos
em busca da(s) identidade(s) domigrante do sertão nordestino, numa análise
discursiva feita sob um arcabouço teórico fortemente amparado pelas re-
flexões de Mikhail Bakhtin, tendo como fio condutor o tema da migração.
2 ARTE E REALIDADE
Vamos começar pelo problema da sua inserção no mundo das artes,
que é um setor da produção simbólica de significados que certos estudos (for-
mais) procuram dissociar do mundo da vida, como se uma obra de arte de-
rivasse genuinamente da “fantasia”, da viagem lúdica, transe onírico ou do
psiquismo de quem a escreve. Para quem habitualmente costuma alimentar
Letras de música e seu estatuto decorpus em análise de discurso:anotações metodológicas
José Zilmar Alves da Costa1
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 75
essa oposição arte-vida, Bakhtin (1990, p. 29) lembra, “de uma vez por todas”,
que não se deve opor à arte nenhuma realidade em si, tampouco imaginar o
domínio da cultura como uma entidade espacial que possui limites precisos
e definitivos e um território interior. Para esse teórico, o domínio da cultura
está inteiramente situado sobre fronteiras, fronteiras que passam por todo
lugar, através de cada momento seu. O que Bakhtin postula tornou-se suma-
mente pertinente para não aprisionarmos as LMs numa análise sumamente
restrita a fatores verbais, estilísticos ou composicionais, mas sim vinculada à
vida cotidiana e à situação pragmática extraverbal. Quer dizer, consideramos
que o ato responsável de compor a LM não é um ato cognitivo alheio à real-
idade circundante, ou seja, não imbricado na atmosfera social.
Na análise empreendida, LM é um evento da vida e não um mero
artefato linguístico. Mesmo na sua eventicidade, postulamos o quanto esse
material cultural detém pragmática diferente em comparação, por exemplo,
a uma sentença jurídica, uma receita médica, sem desconsiderar que possa
ser tanto mais ou menos detentor de uma palavra autoritária como outras
formas enunciativas, ou mesmo que ela tenha menos ou mais autoridade2.
Evidentemente, essa “escrita especial” possui uma natureza social e um prag-
matismo específico. Decerto que, comumente, não se pode tomá-la como
um ato ilocutório no mesmo nível de uma sentença judicial, de uma notícia
jornalística, de um sermão, de uma ordem militar.
Ainda que sua forma composicional possa ser apresentável em um
desses gêneros do discurso, a potência persuasiva dela vai depender do con-
texto extraverbal, afinal, na eventicidade da vida, nunca se sabe, com ex-
atidão, qual atitude responsiva imediata um texto provoca, uma vez que sua
conexão com o contexto pragmático da vida lhe oferece ummundo de opor-
tunidades pragmáticas. Ademais, parece inconteste admitir que é no processo
de sua assimilação por outrem que esse tipo de texto desenvolve seu dom
ilocucionário, podendo adquirir ou não sentido profundo e importante na
formação ideológica do homem. Inclusive, podendo ou não se apresentar ao
outrem na qualidade de informação, indicação, regra, modelo, ordem, de-
sejo que o homem pode adotar ou não no seu agir ético. Seria ainda no
processo de assimilação no mundo da vida que ela pode definir para o out-
José Zilmar Alves da Costa/Letras de música e seu estatutode corpus em análise de discurso: anotações metodológicas
76
rem as próprias bases de sua atitude ideológica, surgindo para esse outrem
como uma palavra autoritária ou não, como palavra interiormente persua-
siva ou não, assim como ocorre com a recepção de outros textos.
Mesmo circulando por aí, por auditórios indeterminados e desconheci-
dos, e independente da autoridade de que desfrute perante seu público, essa
forma de comunicação artística deriva da base comum a ela e a outras man-
ifestações culturais (o social), mas, ao mesmo tempo, retém, como as outras,
sua própria singularidade, enquanto um tipo especial de escrita comunica-
tiva. Visto por esse ângulo, a LM mostra ser um organismo muito mais com-
plexo e dinâmico do que parece, desde que não se leve em conta apenas sua
orientação objetal e sua expressividade unívoca direta, isto é, se não for vista
do lado de fora da cadeia da comunicação discursiva. Fora dessa cadeira, seria
apenas “um artefato físico” ou um “exercício linguístico”. Dito isto, pres-
supomos LM portadora de conteúdos ideológicos e valorativos determina-
dos, porque a língua, enquanto meio vivo e concreto onde vive a consciência
do artista da palavra, nunca é neutra (BAKHTIN, 1990, p. 96). Mesmo fazendo
parte de um mundo artístico, a palavra da LM adquire o “perfume especí-
fico” do ideológico e se adequa a pontos de vista específicos, a atitudes, a
formas de pensamento, a nuanças e a entonações das vozes que compõem
a heteroglossia social. Surgida demaneira significativa num determinadomo-
mento social e histórico, LM formula discursos tocando em fios ideológicos,
torna-se participante ativo no diálogo social, de onde surge em seu pro-
longamento e também como réplica. Neste processo interativo, não sabemos
a aproximação dela com fios ideológicos e, como tal, isso suscita um conjunto
de questões que orienta o pesquisador no sentido de investigar as formas de
refração da palavra existente no discurso cancionista.
O discurso cancionista, ao fazer parte da categoria dos longos enuncia-
dos da vida corrente, apresenta a condição de assumir saberes, seja um saber
histórico, geográfico, social, técnico, botânico, antropológico e pode ser
tomado como fulgor da realidade. Ou seja, acreditamos que ele faz girar
saberes, sabe de coisas, sabe algo das coisas e que as profundidades de seus
sentidos o predispõem a infinitas interpretações, o que também respalda se
estatuto de corpus. Quer dizer, há uma crença do pesquisador em sua ser-
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 77
ventia como base social e exibição de um elenco de temas relacionados ao
homem e ao mundo em geral, temas polêmicos e complexos, sumamente
importantes, sob o eco de vozes sociais que trazem ideias e concepções de
mundo e pontos de vista sobre inúmeras ocorrências domundo empírico. Ou
seja, é crível de que, implícita ou implicitamente, o discurso cancionista
encesta questões que permeiam a existência humana e as convertem em dra-
mas de várias dimensões e apresentam questões que participam ora de um
microdiálogo, ora de um grande diálogo a respeito do que Bakhtin (2005) de-
nomina “as profundezas inconclusíveis do homem”.
Por conta disso, encontramos autores, como Bentes (2003), que con-
sideram LMs material linguístico que deve ser tomado para análise e com-
preensão dos processos de construção de sentidos e do funcionamento da
linguagem. Ou seja, além das suas finalidades estéticas e lúdicas, LM de
música se oferecem como lugar de uma grande riqueza para se observar o
funcionamento da linguagem e, consequentemente, do discurso. De forma
que, o investimento heurístico aplicado neste material numa pesquisa reside
também no potencial que LM tem de manifestar determinadas tradições,
ideias determinantes dos “senhores do pensamento” expressas e conser-
vadas em vestes verbalizadas, assim como de ser portadora de conteúdos
ideológicos e valorativos determinados, conformando uma prática discursiva
cuja axiologia e possibilidades intencionais realiza em direções definidas e
carregadas de conteúdos determinados, plena de alusões a grandes e pe-
quenos acontecimentos da atualidade, caracterizando-se por uma excep-
cional capacidade ideológica. Assim, quem sabe, não descobrimos alguma
coisa nova nelas que contribua para uma compreensão mais fecunda do
homem e da sociedade. Afinal, como lembra Bakhtin (2003),
correntes poderosas e profundas da cultura (particularmente asde baixo, populares), que efetivamente determinam a criaçãodos escritores, continuam aguardando descobertas e às vezespermanecem totalmente desconhecidas de pesquisadores(BAKHTIN, 2003, p.361).
3 CANÇÃO, LETRA MÚSICA E POESIA
José Zilmar Alves da Costa/Letras de música e seu estatutode corpus em análise de discurso: anotações metodológicas
78
Desde que começamos nossa exposição, em vários momentos nos refe-
rimos ao corpus dizemos “letras de música”, em outro, “canção”. Men-
cionamos assim pensando que ambos representam o mesmo material
simbólico. Os dois termos servem para designar a materialidade do discurso
cancionista, e com ele se confunde. Num estudo dedicado aos recursos orais
predominante entre os séculos X e XV, Zumthor (1993) alude ao termo canção
como uma técnica de escritura que permitiu adaptações dos “índices de oral-
idade” ao dito, ao escrito, mais precisamente das entoações medievais que
caíram no domínio da escrita. Ele cita a canção de gesta, que surgiu em fins
do século XIII, ao que é percebido como um conjunto de discursos definidos
pela singularidade da arte vocal que o implica. Lembrando que, antes da
aparição da escrita, vivia-se sob um regime de pura oralidade. Situação em
que o discurso era confinado às circunstâncias das transmissões orais e havia
uma rede coesa de tradições poéticas orais que abrange todo o Ocidente. Daí
que, o surgimento da canção, como uma técnica narrativa, segue a uma etapa
em que logo as tradições orais, entre elas, o canto, teriam parte confiscada
pela escrita. Daí, os textos auscultados na análise sugerirem dimensões de
um universo oral, por mais que estejam escritos. Zumthor (1993) lista vários
tipos de canções, como as chansons de toile geralmente associadas à Franca
setentrional, cantadas pormulheres enquanto costuravam. Eram poemas cur-
tos em forma de estrofes monorrimas com refrão e geralmente relatavam al-
guma mágoa ou episódio amoroso. Canções de trovadores. As canções dos
santos, sobre os milagres de Cristo, século IX a meados do século XII.
No caso do Brasil, a canção, como nos apresenta Tatit (2004), é o gênero
musical ou prática artística musical que se disseminou e se consolidou du-
rante o século XX, tendo presença marcante em várias formas na construção
da identidade sonora brasileira. Lembra o autor que o estilo brasileiro de com-
por vem das práticas nativas, ou seja, da rítmica música indígena de encan-
tação, com elementos de magia, religiosidade, rito propiciador de espíritos,
defuntos e trabalho coletivos, com a presença da música portuguesa mais
melódica do que rítmica, onde ressoava o canto gregoriano do medievo eu-
ropeu, hinos católicos de celebração e catequese, e também cantos coletivos
de lazer, junto à percussão e à dança das músicas africanas.
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 79
Tatit (idem, p. 11) vai dizer que a canção é um gêneromusical que traduz
os conteúdos humanos em pequenas peças formadas demelodia e letra, uma
prática que jamais interrompeu seu fluxo de criação e perpetuação das for-
mas cantáveis da fala, gerando no Brasil “uma das tradições cancionistas mais
sólidas do planeta”. O autor (idem, p. 70) elabora o seguinte pensamento a
respeito da canção no âmbito da cultura brasileira:
A prática musical brasileira sempre esteve associada à mobiliza-ção melódica e rítmica de palavras, frases e pequenas narrati-vas cotidianas. Trata-se de uma espécie de oralidademusical emque o sentido só se completa quando as formas sonoras se mes-clam às formas linguísticas inaugurando o chamado gesto can-cional. Tudo ocorre como se as grandes elaborações musicaisestivessem constantemente instruindo um modo de dizer que,em última instância, espera por um conteúdo a ser dito (TATIT,2004, p.70).
Se considerarmos apenas as letras sem a sonoridade, é possível discor-
damos de Tatit de que “o sentido só se completa quando as formas sonoras
se mesclam às formas linguísticas” (ibidem). A respeito disso, convém citar o
documentário da diretora Helena Solberg3 que mostra as relações entre
música e poesia, e defende que letra de canção informa ao Brasil “iletrado”
e letrado. Com depoimentos de Chico Buarque, Arnaldo Antunes e outros, o
documentário ressalta o papel histórico de cantores e compositores do país,
lembra que o Brasil tem grandes letristas, mostra o papel histórico que essa
alta qualidade desempenha no país. Ecoando depoimento de José Miguel
Wisnik, diz que, paradoxalmente, foi por “sermos uma cultura pouco letrada”
que houve um salto em direção a letras tão sofisticadas. A música tornou-se
veículo para transmitir em grande escala material poético de primeira linha.
Em depoimento ao jornal Folha de S. Paulo4, a diretoria (escolhida a melhor
diretora de documentários do Festival do Rio de 2008), diz que "conseguimos
dar um jeito de pular o processo. Em vez de esperar que o povo estivesse al-
fabetizado e letrado, encontramos uma solução de extraordinária criativi-
dade". O filme comenta que o encontro perfeito ocorrido entre música e
poesia no Brasil do século XX é algo raro, presente, por exemplo, na lírica da
Grécia Antiga e na trova provençal da Idade Média "Criou-se uma situação
José Zilmar Alves da Costa/Letras de música e seu estatutode corpus em análise de discurso: anotações metodológicas
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que não existe em nenhum outro país: uma canção popular fortíssima, que
ganhou uma capacidade de falar para auditórios imensos e levar a esses au-
ditórios poesia de densa qualidade com a leveza que a canção tem", aponta
Wisnik no filme.
No filme, a cantora baiana Maria Bethânia assume que, ao interpretar
poemas em shows e discos, busca informar o grande público sobre a "palavra
falada, não cantada". De outra geração, Lirinha, do Cordel do Fogo Encan-
tado, tem a mesma atitude ao recitar João Cabral de Melo Neto nas apre-
sentações do grupo. No documentário, os artistas brasileiros Chico Buarque
e Caetano Veloso sãomais citados como exemplos da excelência dos letristas.
Chico “deixa claro” que escreve versos para melodias e “não vendo-os como
poesia escrita, o que não impede que tenham qualidade poética". E diz: "não
quero ser chamado de poeta, porque não sou". Chico ressalta a força dos
chamados "compositores demorro", como Cartola, que espelhavam em suas
letras alguma formação poética, mesmo que pré-modernista, parnasiana.
A respeito da questão levantada há pouco pelo compositor brasileiro
Chico Buarque, Costa (2004) e Moriconi (2002) registram parte do debate
sobre a identidade do discurso cancionista, informando-nos que, quando re-
cepcionadas nos estudos literários, as canções são alvo de controvérsia e
polêmica por conta da sua duplicidade semiótica e da interface com a melo-
dia. De acordo eles, uma parte desses estudos impõe um valor axiológico ao
gênero “genuinamente” poético, atribuindo à canção a condição de “patinho
feio”. Costa (idem), por exemplo, lembra que o meio literário tende a tentar
anexar a canção, mas quando faz isso a situa nas extremidades de sua esfera.
Nos termos de Costa, há uma “anexação excludente” da canção, com o fito de
proteger a identidade do gênero poético. Resta saber proteger de quem? Será
que dos ditames da indústria cultural e da cultura de massa, áreas em que a
canção popular flutua lépida nos veículos de comunicação e flerta com omer-
cado de consumo?
Por sua vez, Moriconi (idem) reforça o depoimento de Wisnik dado no
filme de que, em nenhum outro país domundo, a canção popular atingiu um
status tão intelectual quanto no Brasil. O autor lembra que o Brasil é provavel-
mente o único ou um dos poucos países do mundo em que se empregam
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 81
largamente letras de música como parte do ensino de Literatura nas escolas
primárias e secundárias.
Em todas as literaturas domundo, a poesia literária encontra nacanção popular umamatriz inspiradora, fornecedora de temas emote. Mas ela lá e ”nós” aqui. A canção popular na cultura po-pular, a poesia literária na cultura erudita. (...) A originalidadebrasileira é que aqui, depois da Bossa Nova e da MPB, a própriacanção popular tem-se alimentado da literatura. Nossa cançãopopular tem alta voltagem intelectual (MORICONI, 2002, p. 12).
ParaMoriconi (2002), toda linguagem tem seu quê de poesia. Um filme
pode ter poesia. Um gesto comum ou excepcional pode ter poesia, de
maneira que a palavra poesia apresenta certa flutuação de sentidos. Na sua
face de arte brasileira da palavra, a poesia está em boa parte nas letras de
música popular. Está no cordel nordestino. Recitado por cantadores nas feiras
e nas ruas. Está no rock dos anos 80 e no hip hop dos anos 90. No panteão
poético brasileiro, Moriconi (idem) inclui Caetano Veloso, Chico Buarque, Noel
Rosa, Lupicínio Rodrigues e Cartola. Integramos a essa lista, a produção de
poetas-letristas como Vinícius de Morais, Torquato Neto, Cacaso, Geraldo
Carneiro, Arnaldo Antunes e letristas de rock como Cazuza e Renato Russo.
No modo de Moriconi ver essa questão, a canção não deixa de agregar
um enriquecimento da cultura. Ele lembra que a indistinção e, até certo
ponto, fusão conceitual entre poesia e canção têm uma longa história na cul-
tura literária. Para esse autor, foi nesse ponto de confluência que começou a
tradição poética na língua portuguesa. Ele cita as medievais cantigas de amor
e de amigo, que inauguraram a poesia sentimental lusa, como letras de com-
posições musicais. As cantigas e suas melodias perderam-se no tempo, mas
as letras sobreviveram, viraram literatura pura, literatura de livro. Em Mori-
coni (idem), a duplicidade verbal-musical é indicada também com base no
fato de que muitos poemas modernos em língua portuguesa chamarem-se
“cantigas”, “canções” e não constar que se destinassem a ser efetivamente
musicados, citando o caso de “Canções” de Cecília Meirelles e Fernando Pes-
soa, ao que acrescentamos “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias.
Evidentemente, essa é uma analogia para o sentido de canção, tendo-
José Zilmar Alves da Costa/Letras de música e seu estatutode corpus em análise de discurso: anotações metodológicas
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se em conta que canção é para ser cantada e poema é para ser lido em silên-
cio ou falado em voz alta. Contudo, qualquer poema pode receber melodia e
virar canção. Poemas de Manuel Bandeira serviram de letras para com-
posições de músicos como Villa-Lobos. Muitos textos de poetas foram musi-
cados como canções de rock e de MPB. Recentemente, a cantora Rita Lee
musicou uma crônica do cineasta Arnaldo Jabor. “Morte e vida Severina”, um
poema escrito por João Cabral de Melo, em 1956, foi cantada por Elba Ra-
malho. Como esses, hámuitos casos de transposição de um planomeramente
verbal para o musical.
A ideia de uma linguagem da poesia, única e especial, é para Bakhtin
(1990, p. 95) um filosofema utópico característico do discurso poético e soa
como autoritária, dogmática e conservadora. O autor critica uma dada lin-
guagem literária em prol de um uma “linguagem dos deuses”, de uma “lin-
guagem sacerdotal da poesia”. Bakhtin (idem) lembra que, no início do século
XX, quando os prosadores russos começaram a manifestar um interesse ex-
clusivo pelos dialetos e pelo skaz, os simbolistas sonharam em criar uma lin-
guagem da poesia. Em seu sentido estrito, o poético canônico é a poesia que
desde o seu nascedouro se quis e foi lida como tal, por sua ambição filosófica
e estética, por seu fôlego criativo (MORICONI, 2002, p. 68).
Poesia no sentido formal ou não, a canção não deixa de expressar certa
poeticidade do sujeito. Nesse aspecto, os “poemas nordestinos” selecionados
para análise encontram-se na condição de artifícios de formulação desse su-
jeito, através deles, o artista se vale das tradições literária e historiográfica
para tramar múltiplas subjetividades e, assim, encontrar, no manuseio das
palavras, os seus próprios sujeitos e o "eu" lírico, não importando se sua
poética varia entre formas clássicas e modernas.
A respeito de quem já analisou canções, cabe registrar o estudo coor-
denado por Wrathall (2007) sobre as letras de músicas da banda irlandesa
U2, que faz uma abordagem filosófica a respeito das canções desta banda de
rock. O próprioWrathal destaca quemuitos filósofos empinaram o nariz ante
a ideia de tratar a música popular contemporânea como um tema sério para
a reflexão política. Mas, o autor lembra que a música pop é uma indústria de
bilhões de dólares que molda o nosso modo de pensar, vestir e falar. Se a
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 83
música pop se tornou tão penetrante na sociedade, o autor se pergunta por
que ela tem atraído tão pouca atenção filosófica. Lembrando Nietzsche, o
autor inclui a música como uma fonte de insight para entendermos a nós
mesmos e considera formas populares demúsica temas promissores e férteis
para um estudo filosófico.
A prática de musicar textos é antiga. Zumthor (1997, p. 163) denomina
de a “arte dos cançonetistas”, em referência aos homens que se deixaram se-
duzir por este modo de difusão da palavra, na França, entre 1729 e 1809,
período que para ele abriu a era moderna da canção, tornada nesse meio,
gênero literário. Zumthor (idem) coloca o canto entre as manifestações de
uma prática significativa privilegiada onde se articula a simbologia de uma
cultura. Para o autor, no mundo de hoje, a canção, apesar da sua banalização
pelo comércio, constitui a única verdadeira poesia de massa, “uma enunci-
ação às vezes atraente e perigosa, por onde transitam forças talvez perigosas”.
NA leitura da obra de Zumthor vemos que poesias sacras escritas em
grego antigo formatam o que conhecemos por canto bizantino. A igreja orto-
doxa preserva o canto bizantino em todas as suas liturgias e ofícios religiosos,
mantendo assim as tradições cristãs antigas. Hoje, é grande o número de
composições em idiomas como o árabe, o inglês, o francês, o espanhol e o
português, para que os fiéis tenham maior participação na liturgia. Essa
tendência acompanha a expansão da Igreja Ortodoxa para o Ocidente, em
paralelo aos grandes movimentos imigratórios dos séculos XIX e XX. Por sua
vez, “as cantigas de ceifas” são cantos de trabalho muito antigos que têm
origem nos romances e nos cantares de amor e de amigo medievais.
Por sua vez, Wisnik (1987) considera a música
Um foco de atrativos que se presta a variadas utilizações e ma-nipulações. Instrumento de trabalho, habitat do homem-massa,meio metafísico de acesso ao sentido para além do verbal, re-curso de fantasia e compensação imaginária, meio ambivalentede dominação e compensação imaginária, de compulsão repe-titiva e de fluxos rebeldes, utópios, revolucionários, a “música ésempre suspeita”, dizia um personagem de ThomasMann, em AMontanha magia (WISNIK,1987, p. 115, grifo do autor).
Lembrando que música tem um papel decisivo na vida das sociedades,
José Zilmar Alves da Costa/Letras de música e seu estatutode corpus em análise de discurso: anotações metodológicas
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no cotidiano popular, e que o Estado e as religiões não a dispensam, Wisnik
(idem) diz que a prática da música pelos grupos sociais mais diversos envolve
múltiplos e complexos índices de identidade e de conflito, o que pode fazê-
la amada, repelida, endeusada ou proibida, sendo sempre comprometida, é
uma terra-de-ninguém ideológica.
Interessante anotar ainda emWisnik a separação levada a efeitos pelos
grupos dominantes entre a música “boa” e a música “má”, entre a música
considerada elevada e harmoniosa, por um lado, e a música considerada
degradante, nociva e “ruidosa”, por outro. Em sua análise, isso se deve a que
a própria ideia de harmonia, que é tão musical, aplique-se desde longa data
à esfera social e política, para representar a imagem de uma sociedade cujas
tensões e diferenças estejam compostas e resolvidas. Wisnik (Idem, p. 120)
registra que, na passagem dos anos 1940 para os anos 1950, a música popu-
lar no Brasil toma um aspecto mais abrangente, globalizando o país nas suas
regiões e penetrando mais fundo no tecido da vida urbana, casos dos ritmos
nordestinos que ganharam uma compactação no baião de Luiz Gonzaga.
4 A ATUALIDADE DAS CANÇÕES
A maioria das canções do corpus da nossa pesquisa data da década de
50 do século XX, fato que pode suscitar restrições quanto à sua atualidade.
Nascidas sob determinadas condições (históricas e sociais) de produção, essas
canções não deixam de ser portadoras da marca da sua época onde tiveram,
de forma limitada, aspirações, interesses, força ou fraqueza histórica perce-
bidas pelos seus destinatários imediatos. Contudo, seria nocivo ao nosso es-
tudo fechar o espectro delas à época da sua criação, em sua chamada
atualidade, uma vez que, analisá-las apenas com base nas condições da época
de sua composição, apenas sob condições de sua época mais próxima, não
nos permite penetrar nas profundezas dos seus sentidos. Mesmo porque,
quem segue orientações metodológicas bakhtinianas, como nós, não pode
estudar um fenômeno da linguagem mantendo-o preso à cultura da sua
época, e, sim, precisa ficar atento ao fato de que, se o sentido delas nascesse
todo e integralmente no ninc et nunc da época da sua criação, não daria con-
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 85
tinuidade ao passado e nãomantinha com o presente um vínculo substancial,
como também não poderia viver no futuro, pois “tudo que pertence apenas
ao presente morre juntamente com ele” (BAKHTIN, 2003, p. 263). De acordo
com o pensamento bakhtiniano, um enunciado não se desatualiza.
Sustentando-se neste postulado, a nossa análise procura libertar cada
música do “cativeiro do tempo” e oferece-lhe a oportunidade de ser “a nova
portadora de material de sentido”, o que requer adotar um estilo de análise
que evita tratá-las como um acontecimento produzido em um tempo e lugar
determinado e que só poderia ser lembrado e celebrado de longe, como um
ato de memória. De certa forma, essa atualização fazemos, quando levamos
as canções nordestinas a dialogarem com a sociologia baumaniana, sob os
auspícios da Linguistica Aplicada. Ademais, como enunciado concreto, as
canções nascem, vivem e morrem no processo de interação social. Se cor-
tadas do solo real que as nutre, perdem a chave tanto de sua forma como do
seu conteúdo e tudo que resta delas é uma “casca linguística”. Como enunci-
ado concreto, não perdem sua atualidade porque, não só agora como desde
sua origem, penetram nummeio dialogicamente perturbado e tenso de diál-
ogos de outrem, de julgamentos e entonações, e se entrelaçam com eles de
maneira complexa, ora fundindo-se com uns, ora isolando-se de outros.
Podemos dizer que, em sua trajetória, elas estão amarradas e penetradas por
ideias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por enton-
ações, sendo oportuno saber de que modo elas atualizam esse já dito. Assim
posto, sairemos à procura dos “tesouros dos sentidos” que se escondem na
linguagem verbalizada dessas canções, momento em que elas se enrique-
cerão de outros sentidos e significações, podendo superar a entonação que
tiveram na época da sua criação. Com essa aposta heurística, a análise quer
descobrir algo novo nesses escritos do passado.
A respeito desta marca épica, até podemos dizer ainda que, de cada
época, a letra de uma música é uma espécie de monumento com um “sig-
nificado final”. Contudo, além desse significado final do monumento, existe
um significado vivo, crescente, em formação e emmudança que não nasce in-
teiramente na época limitada do nascimento domonumento. Um significado
que, pela ótica de Bakhtin (2003, p. 356), é preparado ao longo de séculos
José Zilmar Alves da Costa/Letras de música e seu estatutode corpus em análise de discurso: anotações metodológicas
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antes do nascimento e continua a viver e desenvolver-se durante séculos
após. Ou seja, um significado que a remonta o enunciado, inclusive com suas
raízes, a um passado distante, preparado por séculos. De maneira que, na
chamada “época da sua criação”, a letra da música está apenas colhendo “os
frutos maduros do longo e complexo processo de amadurecimento” a que
está submetida.
Em se concordando com esse entendimento, o significado crescente e
inconcluso da letra de uma música não pode ser deduzido e explicado ape-
nas das condições limitadas de uma dada época, a época do nascimento do
monumento. Ademais, quando a letra da música é considerada enunciado,
como procedemos aqui, somente as condições de produção imediatas não
servem para dar sentido a ela, pois as condições de produção imediatas são
apenas as condições ideais de uma determinada época e elas não esgotam o
significado crescente e permanente de uma obra artística aberta, como é a
letra de uma música. Não queremos dizer com isso que iremos ignorar in-
teiramente a época contemporânea da gênese das canções.
Foucault (2002) também nos oferece um reforço a essa questão da at-
ualidade das letras de músicas, dizendo que
Ao invés de ser uma coisa dita de forma definitiva e perdida nopassado como a decisão de uma batalha, uma catástrofe ecoló-gica ou a morte de um rei – o enunciado, ao mesmo tempo emque surge em sua materialidade, aparece com status, entra emredes, se coloca em campos de utilização, se oferece a transfe-rências e a modificações possíveis, se integra em operações eem estratégias onde sua identidade se mantém ou se apaga.Assim, o enunciado circula, serve, se esquiva, permite ou im-pede a realização de um desejo, é dócil ou rebelde a interesses,entra em ordem das contestações e das lutas, torna-se tema deapropriações ou de rivalidade (FOUCAULT, 2002, p. 121, grifosnossos).
Assim, apostamos que, mesmo distante do vínculo substancial do pas-
sado, a presente análise pode conseguir enriquecê-las com novos significados
e novos sentidos, superá-las no que foi em sua época, em seu momento
histórico, dissolvendo as fronteiras de sua época. Queremos crer que, vivendo
outro momento estético, isto é, no grande tempo de um estudo de caráter
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 87
científico, em outro plano de sua existência, as canções podem levar, como
parte inseparável da cultura humana, vida intensiva e plena, tanto quanto foi
em sua atualidade propriamente dita.
Considerada texto que reflete o mundo objetivo, como expressão da
consciência que reflete algo (BAKHTIN, 2005, p. 312), a análise escuta a “alma
social” das palavras ditas pelos falantes. Isso implica envolver as letras das
músicas em um tratamento discursivo, saber da discussão ideológica em que
elas se envolvem e onde elas respondem, refutam, confirmam ou antecipam
alguma coisa. Como sugere Bakhtin (2003, p. 404), trata-se de fazer o meio
linguístico, que atua mecanicamente sobre o indivíduo, começar a falar, isto
é, descobrir nesse meio a palavra em potencial e o tom. Trata-se de trans-
formá-lo no contexto semântico do indivíduo falante, pensante e atuante. Em
outras palavras, desvelar os atos e os pensamentos do falante. Ouvir suas
vozes.
NOTAS
1- Doutor em Estudos da Linguagem, Superintendente de Comunicação da
UFRN, professor do Departamento de Comunicação da UFRN.
2 - Embora não entre no exame das possíveis variedades da palavra au-
toritária, como por exemplo, a autoridade do dogma religioso, a autoridade
da palavra da ciência, tampouco nos graus de autoritarismo que essa palavra
pode conter, BakhHn (1990, p. 143) desenvolve um pensamento a respeito da
palavra autoritária, resumido aqui nos seguintes termos: A palavra autoritária
exige de nós o reconhecimento e a assimilação, ela se impõe a nós indepen-
dente do grau de sua persuasão interior no que nos diz respeito; nós já a en-
contramos unida à autoridade. [...] A palavra autoritária pode organizar em
torno de si massas de outras palavras (que a interpretam, que a exaltam, que
a aplicam desta ou de outra maneira), mas ela não se confunde com ela (por
meio de comutações graduais) permanecendo níHda isolada, compacta e in-
erte: poder-se-ia dizer que ela exige não apenas aspas, mas um destaquemais
monumental, por exemplo, uma escrita especial (grifos nossos).
3 - InHtulado “Palavra (En)cantada” que foi lançado no dia 13 de março de
2009.
José Zilmar Alves da Costa/Letras de música e seu estatutode corpus em análise de discurso: anotações metodológicas
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4 - Edição de 13.03.2009.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drumond de. A rosa do povo. 19. ed. Rio de Janeiro:
Record, 1998.
AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas. Campinas: Pontes, 1996.
BAKHTIN, Mikhail (Volochinov).Marxismo e filosofia da linguagem. 11. ed.
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Nome do autor e Itulo do texto94
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 95
Josenildo Soares Bezerra1
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Desde fins dos anos 1980 do século XX, a sociedade ocidental tem pas-
sado por turbulências sociais e econômicas devido ao processo acelerado da
globalização. Tal processo mundializa e influencia não só o espaço socioe-
conômico, como também a cultura e as relações de troca entre os indivíduos.
A virtualidade, que outrora era o oposto à realidade, distante da compreen-
são do possível, tem hoje espaço comum de relacionamento interpessoal e
de trocas comerciais. A publicidade, a arte do cotidiano, não deixou de acom-
panhar esse processo demundialização. Assim, esses escritos têm o propósito
de discutir, à luz da análise do discurso, os conteúdos ideológicos que são ve-
iculados através dos comerciais publicitários, enquanto locus da produção de
sentido.
Tem-se hoje uma nova interpretação para o indivíduo. Ele é chamado de
consumidor, ou seja, um número estatístico que compra determinado pro-
duto ou serviço, que assiste aos comerciais publicitários, que sem exceção, é
monitorado, vigiado e interpretado como possível dado estatístico. Então, os
profissionais da publicidade usam de artifícios variados para atender às ne-
cessidades, ou como diz Baudrillard (2004), os espaços em branco, que a cul-
tura industrializada de massa lhe proporciona. Tais necessidades podem ser
geradas tanto por incentivo nos comerciais veiculados quanto sinalizadas
pelos consumidores. Assim, Barbosa (1995) diz:
No contexto mercadológico, cabe à publicidade informar sobreaspectos reais ou imaginários de um produto, serviço ou loja(em particular), a fim de convencer, persuadir, envolver um seg-mento de mercado de forma que este tenha o desejo de satis-fazer suas necessidades físicas ou psíquicas por intermédio do
Publicidade e ideologia:a análise do discurso emcomerciais publicitários
MSc. Josenildo Soares Bezerra/ Publicidade e ideologia:a análise do discurso em comerciais publicitários
96
objeto ou serviço (BARBOSA, 1995, p.34).
Tem-se aí um viés que a publicidade usa de forma sábia: vincular seus
produtos e serviços a sonhos. O mercado hoje se encontra em meio a uma
concorrência acirrada. Por tal motivo, o diferenciador de cada produto ou
serviço é o conteúdo emocional, sensorial, e que eleve a um status. Vive-se,
na contemporaneidade, essa busca por identidade. A globalização traz, além
da queda entre-muros das culturas, uma volatilidade nas identidades dos in-
divíduos. Entende-se por cultura, a partir de Geertz apud Alípio (2001) uma
teia semântica de linhas e entrelaçados que forma o que se consegue ver a
olho nu: o tecido. Esse conceito de cultura, que entende o espaço social como
plural, dinâmico e vivo, é importante para que se possa analisar, à luz da
Antropologia e da Sociologia, a produção humana enquanto espaço da mul-
tidisciplinaridade, do desterritorializamento dos saberes e das práticas cul-
turais fechadas em si mesmas. Geertz (1989, p. 61) afirma:
Sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de formasemelhante e muito significativamente, sem a cultura não ha-veria homens. [...] nós somos animais incompletos e inacabadosque nos completamos e acabamos através da cultura – não atra-vés da cultura em geral, mas através de formas altamente par-ticulares de cultura [...] A grande capacidade de aprendizagemdo homem, sua plasticidade, tem sido observada muitas vezes,mas o que é ainda mais crítico é sua extrema dependência deuma espécie de aprendizado: atingir conceitos, a apreensão desistemas específicos de significado simbólico (GEERTZ, 1989,p.61).
Fica evidente que a cultura é o pátio em que se trafega, vive-se e pro-
duzem-se seus artefatos, que o classificam culturalmente humanos. Uti-
lizando tal conceito do norte-americano Geertz apud Sousa Filho (2001), o
conteúdo publicitário passa a ser entendido como o “ar” que a sociedade res-
pira. O que se produz nada mais é que o conhecimento comum a determi-
nado grupo culturalmente significado. O entendimento de cultura enquanto
produção, valores, normas, leis, padrões etc., é colocar a cultura no clássico
conceito antropológico estruturalista pelo qual o homem apenas a recebe,
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 97
introjeta-a e vive, não entendendo este homem como produtor de suas
próprias necessidades, de seus desejos. Precisa-se entender o ser humano
como copartícipe de sua cultura. Ele reinventa, retroalimenta e ressignifica
suas práticas. Seguido neste mesmo pensar, o homem produz suas próprias
fraturas e anseios.
A publicidade tem a pílula mágica para todas as urgências humanas.
Sabendo que o caos se estalou os astutos profissionais lançam mão de pro-
dutos e serviços adornados e embalados em forma de felicidades, de solução
instantânea, pois o que vale nessa conjuntura pós-moderna é o aproveita-
mento máximo do tempo, e em tempo recorde. São produtos perecíveis, ou
seja, com um ciclo de vida curto, pois a ordem é comprar, consumir e satis-
fazer os desejos. Esta satisfação não se dá por completo, pois os desejos hu-
manos são insaciáveis e tão dinâmicos como a própria vida. Tão logo se
satisfaça aqui, surge um novo anseio ali. Para essas necessidades: publicidade
e consumo satisfazem essa ilusão de falta. Lipovetsky (2007) classifica os
Shopping Centers como o espaço para satisfazer e preencher esse vazio, pois
as cores, as luzes, o clima, a intensidade de pessoas e as possibilidades de
compras deixam o indivíduo em êxtase. Consumir massageia o ego e
preenche o vazio pós-moderno de incompletude.
Para tanto, dos comerciais de cervejas a produtos de limpeza, utilizam
uma quantidade exacerbada de vantagens e promessas de dias mais promis-
sores. São conteúdos de fácil entendimento e com temas sexistas, que ven-
dem todos os tipos de produto ou serviço. A erotização de comerciais os
tornam mais desejáveis de serem adquiridos e chamam de imediato a
atenção do consumidor, pois não há necessidade de muito esforço para en-
tender amensagem. Outro tema que tem sido demais utilizado é o que se ref-
ere ao meio ambiente. Ultimamente, o planeta terra tem sofrido com uma
série de problemas de ordem natural. Toda a sociedade civil organizada se
movimentou. A publicidade não poderia fugir dessa oportunidade de mer-
cantilizar seus interesses. É comum ver empresas que agem de acordo com
esse desrespeito ao meio ambiente veicular comerciais mostrando exata-
mente o contrário. Um famoso biodegradante, também poluidor do meio
ambiente, com seus produtos com embalagens impressas em tinta e embal-
agens plásticas, anuncia que a cada produto comprado, uma árvore é plan-
tada. Como vender uma imagem institucional de responsabilidade quando
seus produtos agridem o meio ambiente? O comercial referido tem não só
uma construção imagética, como também uma excelente musicalidade e
ideia de cuidadora do planeta. Poderia ilustrar em diversos comerciais essa
disparidade: produto X responsabilidade social. O ideal é posto de forma síg-
nica nos diversos elementos do comercial: uma mulher de beleza incon-
fundível representando as donas de casa, efeitos, cores e um jingle referente
à floresta e um espaço verde bem cuidado. O belo está presente em todo
comercial. Pode-se frisar esses elementos nos comerciais de margarina,
shampoo, carros, remédios etc. Sempre anunciam vantagens, kits promo-
cionais e a maximização da vida, em detrimento de um tempo que se esvai e
torna obsoletas as coisas.
O uso de corpos também é um ingrediente que gera muito apelo visual,
erótico e imagético, enquanto que, dentre estes corpos, a utilização do negro
é minimizada. Se estiver em um tempo intitulado pós-moderno, em que os
conceitos são atualizados de forma rápida e dinâmica devido à compreensão
que se tem de “tempo” o qual se esvai, passa por entre os dedos e não se
consegue detê-lo, porque a misoginia, a homossexualidade e o preconceito
de cor não se atualizaram no sentido de ser entendido como ignorância? Os
meios de comunicação têm tratado de ressignificar tais preconceitos, e lê-los
à luz da igualdade e do respeito? São algumas críticas que ainda precisam ser
digeridas e pensadas. Uma grande quantidade de comerciais nos espaços on-
line e offline trazem a perspectiva do belo europeizado, predominando o
biótipo e as características do branco, magro, alto e macho. Uma sociedade
centrada no falocentrismo1, que quando trata o feminino, o faz desvincu-
lando-o das capacidades intelectivas e legando apenas à sensibilidade, à del-
icadeza e à erotização. Nestes termos, Ponzio (2008) descreve acerca do que
seja o tema no pensamento bakhtiniano:
[...] o tema tem um caráter valorativo e requer uma compreen-são ativa, uma relação de interação dialógica, dado que pressu-põe sempre o intercâmbio sígnico em determinadas situaçõescomunicativas. O tema, além de ser algo unitário é também algoúnico e irrepetível, como consequência de sua relação com a in-
MSc. Josenildo Soares Bezerra/ Publicidade e ideologia:a análise do discurso em comerciais publicitários
98
teração comunicativa especial (PONZIO, 2008, p.91).
Tem-se aí uma compreensão de que o tema vai atualizando-se, pois ele
depende da interação verbal do “eu” e do “tu”. Os sujeitos vão interpretando
e ressignificando os pensares. Tendo em vista tal significação, os conceitos
utilizados pela publicidade também estão nesse caso. O “tema” continua
sendo o que foi discutido há pouco: falocentrismo, europeísmo, desrespeito
e descaracterização damulher enquanto sujeito, mas atualizado às condições
vigentes. Bakhtin apud Ponzio (2008) ainda se refere a signo como plural e
fluído, capaz de adequar-se a situações sempre novas e diferentes. Esse con-
ceito de signo se encaixa perfeitamente no fazer publicitário. Todos os efeitos
e fazeres artísticos da publicidade se revestem do novo, do fantástico e atual,
mesmo trazendo em seu espectro, o mesmo fazer de outrora. Eis um exem-
plo, conforme Figura 1.
O conceito ideológico neste artigo tenderá a situar-se em uma linha
tênue de conceitos. Serão adotados tanto o viés da “falsa consciência” marx-
ista quando os “reflexos e interpretações da realidade expressa em palavras
ou de outras formas sígnicas”, de Bakhtin. Acredita-se que o partidarismo e
a exclusão teórica tendem a empobrecer a análise crítica ora pensada. Ao
trazer o questionamento acerca das produções publicitárias, seus conteúdos
e interesses, não há como fugir da esfera ideológica que falseia uma reali-
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 99
Figura 1 – Sabão em pó Ariel: Revista da ESPM.
dade para a transformação damercadoria em algo necessário. No discurso ac-
erca dos desejos, Marx (2006) situa a esfera das necessidades como tipica-
mente humana, seja ela biológica, seja da ordem das fantasias. Ambas são
usadas paramercantilizar produtos ou serviços. Aí, nessa conjuntura, o falsea-
mento da consciência é real. Grande parte dos comerciais de produtos de
beleza, bem como os de margarina, traz tais conceitos. Enquanto o primeiro
falseia quando faz alusão à maximização vital, corpórea e do prazer, o se-
gundo vai além do orgânico, mercantilizando valores hedônicos, simbólicos e
imagéticos. A indústria farmacológica utiliza tal mercantilização na produção
das drogas que a sociedade consome. A variedade de componentes que aju-
dam a minimizar a dor, a rejuvenescer, a dar disposição física, a emagrecer, a
retirar manchas, a melhorar pele e o cabelo, atende aos dois critérios usados
por Marx. Não há dúvida de que a evolução da medicina e de todas as áreas
da tecnologia e da informação é importante para a sociedade. Mas até que
ponto todos esses avanços priorizam o enfermo? O que está posta é uma ver-
dadeira corrida mercadológica entre as indústrias farmacológicas de transna-
cionais. No quesito fantasia, a ordem é rejuvenescer para ser desejado (a),
para consumir outras marcas de extensão do produto, dá lucro. Não se pre-
tende parecer pessimista diante de tal discussão, mas, ao adentrar em uma
esfera crítica, não há como deixar de perceber essa corrida para alcançar o
top of mind2 e figurar com sucesso mercantil.
O segundo pensamento acerca da ideologia é uma leitura do pensa-
mento de Bahktin, que se afasta da perspectiva marxista no tocante ao falsea-
mento. Há elementos que se aproximam do autor quando trata que a
ideologia está no cotidiano, na palavra, no signo, pois eles são ideológicos
por natureza. Pêcheux apud Orlandi (2007) afirma que “[...] não há discurso
sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em su-
jeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido.” Os autores acima cita-
dos situam a ideologia no campo humano de representações. Bakhtin (2009)
não percebe como aparato mecânico e estruturalmente econômico-social,
como causalidade mecânica. Mas vai para além dessa perspectiva, e a situa
também na infraestrutura, espaço da realidade social. Nesta, os elementos
semióticos-sígnicos carregam todo o teor ideológico: a ideologia estranhada
MSc. Josenildo Soares Bezerra/ Publicidade e ideologia:a análise do discurso em comerciais publicitários
100
nos discursos e vivenciada pelos indivíduos. Assim, Bakhtin (2009) afirma:
[...] a palavra penetra literalmente em todas as relações entreindivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica,nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de cará-ter político, etc. As palavras são tecidas a partir de umamultidãode fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociaisem todos os domínios. É portanto claro que a palavra será sem-pre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais,mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não toma-ram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideo-lógicos estruturados e bem formados. [...] A palavra é capaz deregistrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras dasmudanças sociais (BAKHTIN, 2009, p. 42).
O uso da palavra na publicidade é de um valor importantíssimo, pois
ela serve de ponte entre o desejo de sucesso mercadológico do anunciante
e a produção de feelings hedônicos do consumidor. A palavra traz consigo um
teor ideológico, e é isso que a faz ser entendida e compreendida por quem a
usa. Está-se numa sociedade sígnica, e todo ato expressivo de fala se torna
mensagem quando produz sentido. Portanto, a produção de sentido é uma
tal de “vaca profana” publicitária. Infelizmente, como já dito anteriormente,
essa produção de sentido na publicidade precisa alcançar o maior número
de indivíduos, fazendo assim anúncios empobrecidos de conteúdos, os quais
dão vida e erotizam de forma vulgar os produtos, para poderem ser entendi-
dos por umamassa social sem tempo para ver e criticar sua forma de aparição
social (Ver Figura 2).
`
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 101
Figura 2 – Anúncio da cerveja Kaiser.
O conteúdo tem sido levado sempre a tal entendimento. Alguns dizem
que é apenas engraçado, outros levantam bandeira de dizer que é “humano”,
no sentido das associações à erotização. Há correntes práticas, as quais afir-
mam que a publicidade não precisa de conteúdo crítico, pois a pragmática
dá conta e vende acima de tudo. Alcança-se o desejo maior, que é a venda,
por que se preocupar com o conteúdo? Assim, os comerciais de mau gosto,
seja no campo do estético, seja no campo da mensagem, são, a cada dia, em
maiores quantidades. Isso se tornou perceptível em comerciais de cerveja,
nos quais o conteúdo erótico é cada vez mais intenso. Esperava-se o próximo
para ver qual seria a nova sacada. Cada vez mais, pessoas sem roupa, corpos
torneados, expressões em êxtase e poucas palavras, quando elas aparecem,
são, em sua maioria, de sentido dúbio, mostram o quanto a semântica, bem
como a produção de sentido são puramente sociais, e trazem consigo con-
teúdos ideológicos. O diretor de arte do outdoor abaixo (Figura 3) esclarece
que foi uma alusão ao carnaval fora de época, as famosas micaretas. O uso da
expressão de alegria e tristeza apresenta sentidos ligados à erotização.
A análise do discurso também é ímpar na compreensão dialógica exer-
cida pela comunicação no discurso publicitário. Basta observar as produções
publicitárias, para constatar o quão ideológicas e situacionais elas são. O con-
texto sociocultural é condição importante para uma boa comunicação pub-
licitária. A análise do discurso não trabalha com a língua enquanto sistemas,
mas com a língua em ação, no espaço vivo em que os homens atuam, tra-
balham, significam. Alguns autores do designer brasileiro, afirmam que para
a palavra ser identificada e decodificada, precisa ser compreensível social-
MSc. Josenildo Soares Bezerra/ Publicidade e ideologia:a análise do discurso em comerciais publicitários
102
Figura 3 – Outdoor do Motel Dolce Amore.
mente. Assim, toda palavra é sempre-já imagem. O texto no qual a análise
do discurso trabalha não são apenas palavras, mas cor, formato, imagens, dis-
posição gráfica, e até mesmo a confusão proposital geradora de sentido. A
mistura de escolas e épocas tem sido muito utilizada nos comerciais public-
itários. Esse interdiscurso traz referências outras para a pós-modernidade.
Um bom profissional de publicidade, bem como das artes, necessita ser alfa-
betizado visualmente. É importante conhecer as inferências, e usá-las ao seu
favor. Acerca do interdiscurso como formador de conceitos, Orlandi (2007)
afirma:
O interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e já es-quecidas que determinam o que dizemos. Para que minhas pa-lavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido. E istoé efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito por um su-jeito específico, em um momento particular se apague na me-mória para que, passando para o ‘anonimato’, possa fazersentido em minhas palavras (ORLANDI, 2007, p.32-33).
O que se crê ser criação em comerciais publicitários, temmuito do que
já havia sido trabalhado outrora. É a operação do interdiscurso, seja na re-
produção, seja na releitura de uma escola, com suas influências. As “Hava-
ianas” trouxeram, com muita propriedade, um comercial com o estilo
psicodélico dos anos 1960 e 1970. A arquitetura decorou, há pouco tempo,
espaços com influências do Pop Art dos anos 1960. Nesta perspectiva, na co-
municação visual e na publicidade, os discursos estão retroalimentando-se e
tornando-se referências para outros fazeres. A análise discursiva leva em
conta forma e conteúdo, pois não há como dissociá-los. O sentido não está so-
mente no emissor, namensagem e no receptor, mas também na produção de
sentido gerada entre eles.
A discussão que foi gerada acerca da qualidade dos comerciais public-
itários e que até hoje muito se analisa é que, tanto a esfera profissional
quanto a social, ficam no jogo de empurra-empurra para pôr a culpa um no
outro. O indivíduo consome porque o que lhes apresentam é de má quali-
dade, ou a publicidade produz o que o indivíduo consegue apreender? Crê-
se que essa é uma via de mão dupla. A demanda e a oferta se encontram em
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 103
uma sinergia tal, que um beneficia o outro. É essa perspectiva que Bakhtin
(2009) intitula de dialogia. Um e outro, não em oposição, mas no sentido da
completude, pois cada uma das esferas se encontra incompletas e comple-
tam-se a partir da produção de sentidos. Para Orlandi (2007),
Compreender o que é efeito de sentidos é compreender que osentido não está (alocado) em lugar nenhummas se produz nasrelações: dos sujeitos, dos sentidos, e isso só é possível, já quesujeito e sentido se constituemmutuamente, pela sua inscriçãono jogo das múltiplas formações discursivas (que constituem asdistintas regiões do dizível para o sujeitos) (ORLANDI, 2007,p.20).
O discurso, os sujeitos e os sentidos são incompletos, assim como a pub-
licidade também o é. O sentido da incompletude é que faz o sujeito nunca sat-
isfeito. Tal insatisfação movimenta o sujeito na produção contínua de
necessidades, a complementarem-se. A busca por conseguir a satisfação faz
o mercado tornar-se mais plural. Nenhuma necessidade ou desejo deve ser
total, pois é dessa falta que surgem novas possibilidades de consumir. Nos
discursos publicitários, a incompletude como mensagem é uma tática. Pul-
verizar os diversos sentidos para que o “outro” os complete. O indivíduo, em
sua caminhada histórica, é que, através dos interdiscursos e da produção de
novas realidades, encontra-se em vias de significar tais contextos public-
itários. Na verdade, há trocas de significações entre o “eu” que produz sen-
tido aos discursos e o “tu” publicitário. Essa dialógica é humana por
excelência.
Ainda acerca da produção de sentido, o silêncio é um viés por demais
importante nessa discussão. O silenciar não é apenas o não dizer, mas sig-
nificar e estar para além do discurso escrito e imagético. O silêncio é a pro-
dução do sentido. Enquanto a palavra é unitária e calculável no que se refere
ao sentido, o silêncio deixa margem para pluralização de sentidos. Ele atrav-
essa os fios ideológicos da fala. Está latente no dito e no não dito. Atravessa-
os e os significa. O silêncio na publicidade funciona como complemento do
sentido que está para além das imagens e do texto. Na verdade o que se de-
seja comunicar, ou seja, o conceito é do não dizível, mas significável. Pode-se
MSc. Josenildo Soares Bezerra/ Publicidade e ideologia:a análise do discurso em comerciais publicitários
104
constatar no seguinte anúncio da H.Stern3 (Figura 4).
A análise do discurso do silêncio trabalha no limiar dos discursos outros,
das formações discursivas. O silêncio trafega na fronteira do dizível, mas não
dito. Ele está além, pois atravessa os sentidos e produz uma polissemia. Bus-
set apud Orlandi (2007) afirma:
O silêncio não é ausência de palavras; ele é o que há entre aspalavras, entre as notas de música, entre as linhas, entre os as-tros, entre os seres. Ele é o tecido intersticial que põe em relevoos signos que, estes, dão valor à própria natureza do silêncio quenão deve ser concebido como um ‘meio’. O silêncio, diz o autor,é o ‘intervalo pleno de possíveis que separa duas palavras pro-feridas: a espera, o mais rico e o mais frágil de todos os esta-dos...’. O silêncio é ‘imanência’ (ORLANDI, 2007, p.68).
Não sobram dúvidas de que este é o viés que a publicidade utiliza para
a persuasão. O conteúdo ideológico está lá, escorregando entre os sentidos,
sumindo aqui, aparece ali. Todo o silêncio é eivado de conceitos ideológicos.
O silêncio ématerial sígnico por excelência (ORLANDI, 2007). Para o consumo
tornar-se uma excelência na sociedade pós-moderna, faz-se necessário esse
discurso do silêncio que pluraliza suas significações, e está a todo tempo pro-
duzindo sentidos da incompletude e do preenchimento do vazio deixado pelo
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 105
Figura 4 – Anúncio da H.Stern.
individualismo dessa nova conjuntura social. O ambiente virtual, ao mesmo
tempo em que dissocializa o sujeito, põe-no em outro sentido de coletivi-
dade-individualizada. Está só, mas mundialmente acompanhado. Aí, tem-se
um espaço que Bauman (2007) classifica de “líquido”, pelo qual surgem novas
possibilidades de consumo, atualizadas para tal indivíduo, que deixa de perce-
ber os vínculos sociais e institucionais de outrora como importantes para uma
sociedade oumesmo um sujeito imerso no coletivo. Não dá para dissociar os
conteúdos ideológicos desse silenciamento produtor de sentidos pós-mod-
erno, de necessidades “novas” para estar incluído no social.
Então, tecer comentários sobre o conteúdo publicitário é também imer-
gir na ideologia enquanto fluida que penetra e está latente na infraestrutura
bakhtiniana, na realidade em que se atua, vive-se e pensa-se, é além de tudo
usar a análise do discurso para ver que cada signo adquire sentido de acordo
com a cultura, com sua atualização, e que está imbricada de conteúdos sig-
nificantes, que trafegam entre os sujeitos, a mensagem e o sentido. Esta su-
posição é considerada como importantíssima para a compreensão dos
discursos publicitários. Analisar tais conteúdos pela compreensão da dialo-
gia tornamais compreensível toda a supremacia mercadológica do consumo.
Nota1- Falocentrismo foi desenvolvido por Sigmund Freud e Jacques Lacan:
aHtude segundo a qual o falo consHtui o valor significaHvo fundamental peloqual o homem, em sua força e virilidade, percebidos como princípio de tudo.
2 - Top of mind: alcançar no indivíduo o nível de lembrança máxima doproduto
3- Publicidade encontrada no livro Linguagem Publicitária: análise e pro-dução de Lucilene Gonzales.
Bibliografia
BAKHTIN, M. M.Marxismo e filosofia da linguagem: problemas funda-
mentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michel Lahud e
Yara Frateschi. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2009.
BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do so-
Josenildo Soares Bezerra/ Publicidade e ideologia:a análise do discurso em comerciais publicitários
106
cial e o surgimento das massas. Tradução Suely Bastos. São Paulo: Brasiliense,
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BAUMAN, Zygmund. Vida líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
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______. Redação publicitária – estudos sobre a retórica do consumo. 4.
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LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de
hiperconsumo. Tradução Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das
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Campinas, SP: Pontes, 2005.
______. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 7. ed., Camp-
inas, SP: Pontes, 2007.
PONZIO, Augusto. A Revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin
e a ideologia contemporânea. Tradução Valdemir Miotello. São Paulo: Con-
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SOUSA FILHO, Alípio. Medos, mitos e castigos: notas sobre pena de
morte. 2. Ed. – São Paulo: Cortez, 2001. (Questões da Nossa Época).
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica
na era dos meios de comunicação demassa. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995
Foto 1 - Sabão em pó Ariel: Revista da ESPM, volume 6, ano 5, edição
n.4/agosto de 1999, p.78
Figura 2 - http://fotos.imagensporfavor.com/img/pics/glitters/k/kaiser-178.jpg
Figura 3 - http://3.bp.blogspot.com/_WAf9KtJek78/SxBKsUOfDbI/AAAAAAAAAL8/
dolce_carnatal.png
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 107
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A noção de discurso tem adquirido nos últimos anos papel relevante
nos trabalhos de Ciências Sociais e Comunicação. A incorporação do conceito,
originalmente desenvolvido no interior da Linguística, não se tem dado, en-
tretanto, sem encontrar dificuldades, algumas oriundas de sua banalização
conceitual, outras da complexidade que envolve a interdisciplinaridade e a
recusa demodelos teóricos rígidos. A interdisciplinaridade e o abandono des-
ses modelos podem contribuir para uma maior possibilidade de compreen-
são por parte de outras áreas do conhecimento que se apropriam do campo
teórico proposto pela análise de discurso (AD).
A falta de clareza sobre o conceito e sobre a teoria da AD tem levado a
equívocos que vão desde a identificação entre discurso e oratória, passando
pela conceituação de ideologia enquanto inversão do real e, por último, da
identificação da AD com um método de estudos de texto.
O discurso deve ser analisado tendo em vista as condições de produção
que o determina. Nesse sentido, é importante ressaltar a posição dos inter-
locutores, pois a atribuição de sentidos irá depender da posição que cada um
ocupa em uma formação discursiva. O discurso surge no momento em que o
sujeito participa da sua linguagem, pois, segundo Bakhtin (1993, p. 88-9) “o
discurso nasce no diálogo como sua réplica viva, forma-se na mútua orienta-
ção dialógica do discurso de outrem no interior do objeto”.
Concebemos a linguagem como discurso e não apenas como um ins-
trumento de comunicação ou expressão de pensamento, ou seja, a lingua-
gem compreendida como interação é um modo de produção social, não é
neutra, nem imparcial ou inocente, uma vez que acontece em condição his-
Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes/O discurso ecológico nos quadrinhos de Chico Bento
108
O discurso ecológico nosquadrinhos de Chico Bento
Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes1
tórica de produção, deixando entrever as posições que os sujeitos ocupam
na estrutura social.
Tratando mais especificamente dos quadrinhos, é importante ressaltar
que não existem quadrinhos inocentes. Ideológico, sem dúvida alguma, o dis-
curso do quadrinhomarca em seu funcionamento a presença do social. Que-
remos dizer com isso que os quadrinhos de Maurício de Sousa figurativizam,
por meio das personagens e dos enredos, os temas que circulam na socie-
dade e revelam/desvelam concepções demundo. Cada uma das personagens
retrata através de seus discursos os seus lugares de poder reproduzindo falas
que foram construídas ao longo da história.
É também especificamente na possibilidade que os discursos têm de
exprimir as faces da ideologia que se podem definir as características de uma
determinada forma de pensar as relações mantidas pelos homens. Se, como
coloca Nattiez (1979), o processo de leitura é múltiplo e indefinido, também
não podemos esquecer que a definição de um corpo ideológico só é possível
porque estamos atribuindo sentidos aos diversos discursos que nos chegam
cotidianamente.
Para Brandão (1997) o discurso é lugar de tensão, de enfrentamento, de
confronto ideológico, não podendo ser analisado fora da enunciação, uma
vez que os processos interativos que o constituem são histórico-sociais. Se-
gundo esse raciocínio, o discurso seria o ponto de articulação entre os pro-
cessos ideológicos e os fenômenos linguísticos. Como ele promove essa
articulação, não podemos perder de vista a relação intrínseca entre discurso
e sociedade. Disso decorre que os estudos sobre o discurso não podem se
desvincular de suas condições de produção, pois tais condições são determi-
nantes do discurso.
Um dos elementos que constitui as condições de produção do discurso
é a formação discursiva, em que o sujeito está inserido. Ela “determina o que
pode e deve ser dito em uma conjuntura histórica” (PÊCHEUX, 1997, p. 162).
Dessa forma, o que define o sujeito é o lugar social do qual ele fala em rela-
ção aos diferentes lugares de uma esfera social. As condições de existência de
um discurso são dadas pela resposta às seguintes questões: Quem pode falar
o quê? Para quem e em que lugar? Seguindo também esse raciocínio, é bas-
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 109
tante elucidativa a afirmação de Orlandi (1993):
As formações discursivas representam, na ordem do discurso,as formações ideológicas que lhes correspondem. É a formaçãodiscursiva que determina o que pode e deve ser dito, a partir deuma posição dada numa conjuntura dada. Isso significa que aspalavras, expressões, etc. recebem seu sentido da formação dis-cursiva na qual são produzidas (ORLANDI, 1993, p.108).
Isso significa que a formação discursiva é o lugar da construção de sen-
tido. O sujeito atribui significados às mensagens de acordo com a sua inser-
ção em uma determinada formação discursiva.
Se tomarmos o discurso como exercício de poder, devemos considerar
que isso se deve ao fato de que o discurso é um campo de enfrentamento,
lutas, conflitos e tensões entre diferentes posições enunciativas. É nesse sen-
tido que o discurso é interpretado de forma diferente por diferentes sujei-
tos, constituindo-se em “efeitos de sentidos” (FOUCAULT, 1995).
A abordagem foucaultiana é profícua na medida em que coloca diretri-
zes para uma teoria do discurso. Foucault (1995) concebe os discursos como
uma dispersão, isto é, como sendo constituídos por elementos que não estão
formados por nenhum princípio de unidade. Caberia à AD descrever essa dis-
persão, buscando o estabelecimento de regras capazes de reger as forma-
ções dos discursos. Tais regras, denominadas pelo autor de regras de
formação, possibilitariam a identificação dos diversos elementos que com-
põem uma formação discursiva. Foucault apresenta-as como um “feixe de re-
lações” entre os objetos do discurso, as diferentes formas de enunciação que
permeiam o discurso, os conceitos e as diferentes estratégias capazes de dar
conta de uma formação discursiva, incluindo ou excluindo determinados
temas e teorias.
O autor define discurso como um conjunto de enunciados que se re-
metem a uma mesma formação discursiva, ou seja, “um discurso é um con-
junto de enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação”
(FOUCAULT, 1995, p. 124). Definindo o discurso como esse conjunto de enun-
ciados, e os enunciados como performances verbais em função enunciativa,
o conceito foucaultiano de discurso pressupõe, necessariamente, a ideia de
Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes/O discurso ecológico nos quadrinhos de Chico Bento
110
“prática”. Sob essa perspectiva, a arqueologia propõe estudar as práticas dis-
cursivas, isto é,
Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determi-nadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dadaépoca para uma determinada área social, econômica, geográ-fica ou linguística, as condições de exercício da função enuncia-tiva (FOUCAULT, 1995, p. 136).
De acordo com Foucault, a análise de uma formação discursiva consis-
tirá, então, na descrição dos enunciados que a compõem. Sua noção de enun-
ciado não se confunde com a noção de proposição ou de frase, uma vez que,
para ele, o enunciado não é uma unidade elementar que viria juntar-se às
unidades descritas pela gramática ou pela lógica da frase, mas:
Uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos sig-nos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análiseou pela intuição, se eles “fazem sentido” ou não, segundo queregras se sucedem ou se justapõem, de que são signos e que es-pécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ouescrita). Não há razão para espanto por não se ter podido en-contrar para o enunciado critérios estruturais de unidade; é queele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma função quecruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e quefaz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo eno espaço (FOUCAULT, 1995, p. 99, aspas do autor).
Para Foucault (1995, p. 113), o enunciado não é a projeção direta, sobre
o plano da linguagem, de uma situação determinada ou de um conjunto de
representações. Não é apenas o emprego, por um sujeito falante, de um certo
número de elementos estabelecidos dentro de critérios linguísticos. Assim, o
enunciado para Foucault, em hipótese alguma, pode ser interpretado como
a expressão direta de uma forma gramatical pura e simples. Bakhtin também
vai se contrapor aos linguistas demaneira geral concebendo um estatuto pró-
prio ao enunciado, estatuto esse que o distancia (como Foucault) das refe-
rências puramente formais/gramaticais.
Os diversos conceitos elaborados por Foucault2 (discurso, enunciado,
formação discursiva, regras de formação, práticas discursivas e não discursi-
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 111
vas) são fundamentais para os teóricos que se dedicam em analisar o dis-
curso. Apesar de não trabalhar especificamente com o conceito de ideologia
em seus estudos, conseguimos visualizar marcas da ideologia, através da pro-
funda abordagem que o referido autor realiza sobre o saber e o poder nas
sociedades modernas. Além disso, Foucault não estabelece relações diretas
entre o saber e o poder com a economia (a infraestrutura), como no mar-
xismo clássico.
De acordo com Silva (1994) na concepção foucaultiana, o poder não se
define na luta de classes e o Estado não é tomado como aparelho de repro-
dução da exploração de uma classe sobre a outra. Em seus estudos, o poder
é lugar de luta, relação de força. Ele se exerce e se disputa. O poder funciona
e se exerce como uma rede que se dissemina por toda a estrutura social com
suas micro e poderosas ações, que estão em toda sociedade.
Foucault não fundamenta suas ideias sobre o discurso com base na lin-
guística; ele vai mais além, quando propõe analisar o discurso como um jogo
estratégico e polêmico: o discurso não pode ser apenas analisado sob seu as-
pecto linguístico, mas como jogo estratégico de ação e reação, de questões e
respostas, de dominação e de recusa e também como luta e enfrentamento,
“discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de do-
minação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos
apoderar” (FOUCAULT, 2006, p. 10). Resumindo, o discurso seria um lugar
onde se refletiriam as tensões e os conflitos existentes na sociedade.
Não podemos esquecer, portanto, que as sociedades capitalistas são
fortemente organizadas por um discurso que dá sentido também à reprodu-
ção do capital. Com isso, a produção desse discurso gerador de poder é con-
trolada, selecionada, organizada e redistribuída por certos procedimentos
que têm por função eliminar toda e qualquer ameaça à permanência desse
poder (FOUCAULT, 2006, p. 9).
A concepção de interdiscurso nos leva a observar a relação entre me-
mória e discurso. Toda produção discursiva, que se efetiva sob determinadas
condições de uma dada conjuntura, faz circular formulações já enunciadas,
fórmulas que constituíam a enunciação de um discurso anterior.
Demodo bastante genérico, o interdiscurso é o que permite ao analista
Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes/O discurso ecológico nos quadrinhos de Chico Bento
112
dizer que o discurso se constitui no jogo da interdiscursividade, isto é, na re-
lação de um discurso com outros discursos.
Explicitando o funcionamento discursivo, Orlandi (1999), numa leitura
de Pêcheux, afirma que o fato de que há um já dito que sustenta a possibili-
dade mesma de todo dizer é fundamental para se compreender o funciona-
mento do discurso. A observação do interdiscurso nos permite remeter o
dizer a toda uma filiação de dizeres, a uma memória, e identificá-lo em sua
historicidade, em sua significância, mostrando seus compromissos políticos e
ideológicos. Assim, na produção de sentidos, haveremos de considerar que
todo dizer se encontra na confluência de dois eixos: o damemória que sema-
nifesta pelo interdiscurso (constituição) e o da atualidade (formulação).
Por essa formulação podemos entender a relação da língua com a his-
tória postulada pela AD. Quando falamos da exterioridade como elemento
constitutivo dos sentidos, estamos querendo explicar o processo pela rela-
ção que ele mantém com aquilo que, estando fora, mas lhe é constitutivo,
inscreve-se na materialidade do discurso e o constitui. Temos que considerar
a relação entre aquilo que é da ordem da língua (intradiscurso) e o que é da
ordem da exterioridade (interdiscurso). Como o interdiscurso relaciona-se
com a ideia dememória discursiva (a memória se atualiza pelo interdiscurso),
ele inscreve a memória no fio do discurso e isso afeta o modo como o sujeito
significa em uma dada formação discursiva e se constitui.
A memória se configura num dispositivo teórico-analítico imprescindí-
vel para explicar o processo de produção de sentidos. Para a análise de dis-
curso, a memória é entendida como “conjunto complexo, preexistente e
exterior ao organismo, constituído por uma série de ‘tecidos de índices legí-
veis’, em um corpo sócio-histórico de traços” (PÊCHEUX, 1999). A toda for-
mação discursiva é associada uma memória discursiva, constituída de
formulações que repetem, recusam ou transformam outras formulações. Me-
mória não psicológica que é presumida pelo enunciado enquanto inscrito na
história. A noção de memória discursiva diz respeito à existência histórica do
enunciado no interior de práticas discursivas.
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 113
2 O DISCURSO E A ECOLOGIA NOS QUADRINHOS DO CHICO BENTO
Chico Bento, criado em 1961, teve como inspiração um tio-avô deMau-
rício de Sousa, a respeito do qual o autor ouvia diversas histórias que haviam
sido contadas pela sua avó. Em 1982, foi lançada a primeira revista com a
Turma da Roça, entre eles Rosinha (namorada de Chico Bento), Zé Lelé (primo
de Chico), Hiro e Zé da Roça. A Turma de Chico Bento vivencia o cotidiano
rural: o trabalho com a terra, o cuidado com os animais, a valorização das
lendas e dos costumes campestres. Os amigos, além da professora, pais, vi-
zinhos e Padre Lino, são as coadjuvantes das histórias de Chico Bento. Todas
essas personagens divulgam a rotina de grande parte da população rural do
Brasil e abordam questões particulares desse segmento social, principal-
mente a constante preocupação com a preservação da natureza, pois é dela
que essa população retira seu sustento.
Nas histórias da personagem Chico Bento a temática ecológica é e já foi
utilizada reiteradas vezes. Omote da preservação ecológica compõe-se quase
que como uma estrutura narrativa diferenciada dentro dos subgêneros que
compõem a ficção da personagem. Chico assume uma postura diferente de-
pendendo do papel social que está desempenhando, seguindo as conve-
niências da trama. Assim, podemos perceber inúmeras diferenças em seu
comportamento quando ele está na escola ou na roça.
As narrativas que abordam a ecologia como tema compõem-se como
um espaço privilegiado para a veiculação de determinados discursos e visões
de mundo. Tomando como exemplo e objeto de estudo a história em qua-
drinhos intitulada Construindo um novo homem, podemos perceber como o
discurso é elaborado objetivando determinados interesses. A primeira página
desse quadrinho traz uma gag3 visual que antevê e promete o choque cultu-
ral que resultará do contato entre pessoas cuja socialização ocorre em espa-
ços diferentes. Nela, podemos ver Chico Bento caminhando na mata
calmamente enquanto admira uma libélula. No quadrinho seguinte, para
grande susto da personagem, esse inseto é substituído por um helicóptero de
brinquedo, seguido por uma criança da cidade que guia esse último por con-
trole remoto.
O menino da cidade de nome Téo mostra toda a tecnologia de seu trai-
Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes/O discurso ecológico nos quadrinhos de Chico Bento
114
ler e em seguida, Chico apresenta seu modo de vida campestre, é feito um
contraponto entre a visão de mundo dos habitantes do meio urbano e rural.
No discurso quadrinizado da personagem Chico Bento percebe-se como o
conceito de natureza é trabalhado a partir de diferentes demandas. Enquanto
o empresário capitalista percebe a natureza como um meio para acumula-
ção de riqueza, Chico e sua família seguem a tradição inaugurada pelo Ro-
mantismo da natureza como espaço de construção do belo e do intocável.
Conforme Fernandes (2005, p. 20),
Observamos, em diferentes situações de nosso cotidiano, sujei-tos em debates e/ou divergências, sujeitos em oposição acercade ummesmo tema. As oposições em contraste revelam lugaressocioideológicos assumidos pelos sujeitos envolvidos, e a lin-guagem é a forma material de expressão desses lugares.
As visões de mundo das personagens do campo e da cidade em quase
todos os sentidos são diametralmente opostas. Da mesma maneira que as
pessoas da cidade percebem o campo como algo atrasado, Chico e sua famí-
lia a todo momento reiteram o quanto as coisas típicas da cidade parecem-
lhes exóticas e um tanto extravagantes. A convivência dos dois grupos faz as
diferenças caírem por terra, mas a sentido da aproximação é de mão única,
não existe uma recíproca na troca de vivências e experiências. Nenhum tipo
de benesse ou tecnologia é introduzido no meio rural enquanto esse último
pode exibir-se como atrativo aos moradores da cidade.
O interdiscurso presente nessa história permite-nos perceber como o
discurso capitalista e ecológico faz-se presente. Essas concepções discursi-
vas, porém, assemelham-se pouco a seu outro real, presente na sociedade.
A imagem do capitalismo veiculada é antes uma simplificação da exploração
dos recursos naturais bem à maneira presente nos quadrinhos do Tio Pati-
nhas. Em nenhum momento é mostrada a face da exploração “do homem
pelo homem” e os empregados do empreiteiro sãomostrados como pessoas
servis e felizes com sua função. A concepção de ecologia4 é bastante ideali-
zada, já se propõe a subsumir a causa da preservação ambiental à questão da
preservação das matas.
Essa simplificação, senão maniqueísta, ao menos simplória, tem a fun-
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 115
ção clara de atingir o público infantil com mais intensidade. O mundo ideali-
zado e muitas vezes paradoxal das histórias em quadrinhos infantis possui o
apelo óbvio de construir uma realidade ficcional que possa ser fruída sem
que seja necessário um grande conhecimento de mundo. Nesse contexto, a
causa da preservação ecológica, apesar de sua clara idealização e compro-
metimento com as funções narrativas, mostra-se como um tema importante
para educação e formação das crianças. A maneira como é tratado, porém,
parece seguir bem a lógica um tanto antiquada dos quadrinhos da Turma da
Mônica, onde o desnudamento da realidade é substituído pela mistificação
e idealização das formações sociais.
Na história em quadrinhos de Chico Bento Construindo um novo
homem, podemos encontrar também, sujeitos em oposição acerca de um
mesmo tema. Ou seja, os sujeitos encontram-se em lugares socioideológicos
contrastantes. Tomemos ideologia como “uma concepção de mundo de de-
terminado grupo social em uma circunstância histórica” (FERNANDES, 2005,
p. 29).
A família de Chico Bento traz um discurso de preservação da natureza.
O que pode ser confirmado na fala de Chico Bento quando o filho de Amilton
explica que o pai vai comprar as terras para represar o rio e construir uma hi-
drelétrica. Chico Bento pergunta o que vai acontecer com as plantas e ani-
mais. Já a família de Amilton tem a visão de explorar o meio ambiente com a
finalidade de obter lucro. Isso pode ser entendido pela própria construção
da represa e da hidrelétrica.
O fato ainda pode ser explicado pela maneira com a qual as duas famí-
lias vivem. A família de Amilton vive na cidade e usufrui de todas as facilida-
des que a tecnologia pode oferecer. Já a família de Chico Bento pratica uma
agricultura de subsistência, em que Zé Bento e Chico plantam os alimentos
que a família necessita.
O discurso da família de Chico Bento vai ao encontro do discurso dos
ecologistas, que defendem a preservação do meio ambiente. Enquanto que
Amilton e sua família têm o seu discurso entrelaçado com o dos capitalistas,
que acreditam que a obtenção de lucro é mais importante do que a preser-
vação da natureza. Esse entrecruzamento do discurso caracteriza o interdis-
Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes/O discurso ecológico nos quadrinhos de Chico Bento
116
curso. Segundo Fernandes (2005), o interdiscurso marca o entrelaçamento
de diferentes discursos, oriundos de diferentes momentos da história e de
diferentes lugares sociais.
Além de colocar o lucro sobre todas as coisas, Amilton e sua família
ainda veem todos os aspectos rurais como um atraso. Após perder o trailer
com todos os mantimentos, a esposa de Amilton diz: “Oh! O que será de nós,
aqui, no meio do mato, sem roupas... sem comida, sem tevê...”. Ou seja, ela
atribui significados que no interior não existem condições de sobrevivência,
inclusive porque não há televisão. Pode-se perceber o preconceito com o cai-
pira que é devotado à natureza. O filho de Amilton chega a dizer que no trai-
ler onde eles estavam tinha tudo que eles precisavam para sobreviver porque,
lá havia fogão elétrico, micro-ondas, tevê e banheira com hidromassagem.
A história ainda levanta as diferenças entre a cidade e o campo. En-
quanto que Amilton diz que a chuva só traz transtorno nas cidades, Zé Bento,
Bento afirma que ela é abençoada.
A família de Chico Bento ainda representa o discurso tradicionalista dos
valores familiares. Um exemplo é o fato de todos se reunirem para conversar
após o jantar. Depois da refeição, Amilton pergunta ao pai de Chico Bento o
que eles fazem já que não têm televisão. Ao que recebe a resposta que eles
conversam sobre o dia de cada um. Já a outra família assiste à televisão após
o jantar e não costuma conversar entre si, o que representa uma quebra das
antigas tradições familiares, o que é uma das características de pessoas que
vivem nas cidades.
Em Fernandes (2005), tem-se que o sujeito não é homogêneo, mas o
seu discurso se entrelaça com outros que têm origem em diferentes mo-
mentos da história. O discurso tradicionalista é formado por famílias que
vivem no campo e desejammanter as mesmas tradições nas quais foram cria-
das.
Após perder o trailer e passar um dia na casa de Chico Bento, sem ne-
nhuma comodidade com que eram acostumados a ter em sua casa, na ci-
dade, ou no trailer. No campo, Amilton e sua família conhecem a natureza
em várias de suas formas e percebem como a vida que eles levavam estava
errada e que isso pode mudar. O filho de Amilton chega a dizer que deseja
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 117
construir sua casa campo. Toda a família também passa a integrar o discurso
dos ecologistas e defender a preservação do meio ambiente, acima dos lu-
cros.
Maurício de Sousa, criador das histórias de Chico Bento, coloca que os
capitalistas ávidos por lucro, podemmudar de opinião se conhecerem omeio
ambiente damesma forma que a família de Amilton. E ainda, que as novas ge-
rações também podem ser ensinadas a preservar o meio ambiente. Dessa
forma, podem ser construídosmuitos outros novos homens, damesma forma
como aquela família teve sua vida e ideias mudadas.
O discurso de Maurício de Sousa também vai ao encontro do discurso
dos ecologistas, que colocam a natureza como um bem a ser preservado. Ou
seja, o discurso de Chico Bento revela o discurso do seu criador.
Na AD, o sujeito é tomado como uma posição sujeito. Isso significa que
ao tomarmos a palavra produzimos sentido dos lugares sociais que nos cons-
titui enquanto sujeitos. Como todo sujeito pertence a uma formação discur-
siva que, por sua vez, se liga a uma formação ideológica, os sentidos são
produzidos desses lugares sócio-históricos.
Numa vertente foucaultiana, esse sujeito é pensado como constituído
nas relações de poder. Assim, esse autor nos fala de dois processos dessa
constituição: pela objetivação, o sujeito é produzido na ordem do estabele-
cido como verdade, como a norma, e esta é sempre uma verdade no sentido
de servir ao exercício do poder. O poder é assim responsável pela fabricação
de uma verdade sobre o sujeito. Pelo processo de subjetivação, o sujeito se
constitui produzindo uma identidade que lhe é própria, resistindo às verda-
des que lhes são construídas pela objetivação.
Para Orlandi (1996),
O espaço de interpretação no qual o autor se insere com seugesto – e que o constitui enquanto autor – deriva da sua relaçãocom a memória (saber discursivo), interdiscurso. O texto é essapeça significativa que, por um gesto de autoria, resulta da rela-ção do “sítio significante” com a exterioridade. Nesse sentido, oautor é carregado pela força da materialidade do texto, mate-rialidade essa que é função do gesto de interpretação (do tra-balho de autoria) na sua relação determinada (historicamente)com a exterioridade pelo interdiscurso. O sujeito, podemos dizer,
Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes/O discurso ecológico nos quadrinhos de Chico Bento
118
é interpretado pela história. O autor é aqui uma posição na fi-liação de sentidos, nas relações de sentidos que vão se consti-tuindo historicamente e que vão formando redes queconstituem a possibilidade de interpretação (ORLANDI,1996, p.15).
Com efeito, podemos dizer que a posição-autor se faz na relação com
a constituição de um lugar de interpretação definido pela relação com o outro
(o interdiscurso) e o outro (interlocutor). O autor se produz pela possibilidade
de um gesto de interpretação que lhe corresponde e que vem de fora. O lugar
do autor é determinado pelo lugar da interpretação. O efeito-leitor repre-
senta, para o autor, sua exterioridade constitutiva (memória do dizer, repeti-
ção histórica). Dissertando sobre a função-autor, Foucault assim se posiciona:
Desde o século XVII, esta função não cessou de se enfraquecer,no discurso científico: o autor só funciona para dar um nome aum teorema, um efeito, um exemplo, uma síndrome. Em con-trapartida, na ordem do discurso literário, e a partir da mesmaépoca, a função do autor não cessou de se reforçar: todas asnarrativas, todos os poemas, todos os dramas ou comédias quese deixava circular na Idade Média no anonimato ao menos re-lativo, eis que, agora, se lhes pergunta (e exigem que respon-dam) de onde vêm, quem os escreveu; pede-se que o autorpreste contas da unidade de texto posta sob seu nome; pede-seque revele, ou ao menos sustente, o sentido oculto que os atra-vessa; pede-se-lhe que os articule com sua vida pessoal e suasexperiências vividas, com a história real que os viu nascer. Oautor é aquele que dá a inquietante linguagem da ficção suasunidades, seus nós de coerência, sua inserção no real (FOU-CAULT, 2006, p. 27-28).
Pode-se dizer ainda, que é no discurso que o homem produz e reproduz
a realidade, os sentidos, pois o discurso é efeito de sentido entre locutores,
que ocorre através da memória discursiva, isto é, do interdiscurso, este é de-
finido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. É
essa memória – o interdiscurso − que, juntamente com o domínio do saber,
dizeres já ditos ou possíveis apoiam toda e qualquer formulação, ou seja, a
forma como os dizeres se presentificam e dão ilusão de evidências, o que dá
visibilidade ao modo como o sujeito se significa em uma determinada for-
mação discursiva.
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 119
Pela noção de interdiscurso, estabelece-se a relação necessária entre
língua e história, condição para que os sentidos se historicizem, permitindo
a inscrição do acontecimento na estrutura. Dessa forma, entende-se porque
tanto os sujeitos quanto os sentidos são determinados historicamente o que
nos leva a pensar, num processo de significação, sobre as condições de pro-
dução, dado que a língua para significar inscreve-se na história. Isto não equi-
vale afirmar que os sentidos permanecem desde sempre os mesmos,
tampouco, que podem ser quaisquer uns. É porque se historicizam que os
sentidos não permanecem iguais, mas é, também, pela mesma razão, que
continuam como possíveis.
Assim, os sentidos se repetem, mas se deslocam, deslizam. Portanto,
não se trata da repetição concebida no nível da empiria, ou seja, não se trata
de uma repetição conteudística, mas linguístico-histórica, pois pela noção de
memória podemos pensar em um espaço do dizível que permite um lugar de
partida, de um já dito que ressurge.
Ao longo do percurso por nós empreendido tentamos explicar as nos-
sas reflexões teóricas e situar o lugar de onde pretendíamos fazer a leitura de
uma prática discursiva para verificar o seu funcionamento concreto. Consi-
deramos a prática discursiva dos quadrinhos, que num recorte do gênero
(uma história em quadrinhos deMaurício de Sousa) subsidiou as nossas aná-
lises, tomando a questão ecológica como “pano de fundo” para as nossas re-
flexões.
Na história analisada Construindo um novo homem observamos um
jogo de significados se atentarmos para o fato de que Amilton é dono de uma
construtora e, que pretendia construir uma hidrelétrica, mas quem termina
passando por um processo de construção é ele próprio.
Notas
1 - Professora Adjunto III do Curso de Comunicação Social da Universi-
dade do Estado do Rio Grande do Norte -UERN, [email protected].
2 - Esses conceitos são discuHdos com profundidade no livro Arque-
ologia do saber.
3 - A gag é uma construção visual esHlizada que se faz presente nos
Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes/O discurso ecológico nos quadrinhos de Chico Bento
120
quadrinhos, principalmente os infanHs, com intenção cômica.
4 - O conceito de ecologia é uHlizado como as relações entre os seres
vivos e omeio ou o ambiente em que vivem, bem como as suas recíprocas in-
fluências. Estuda a estrutura e o desenvolvimento das comunidades humanas
em suas relações com o meio ambiente e sua conseqüente adaptação a ele,
assim como novos aspectos que os processos tecnológicos ou os sistemas de
organização social possam acarretar para as condições de vida do homem.
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Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes/O discurso ecológico nos quadrinhos de Chico Bento
122
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Inicialmente, queremos ressaltar que, na atualidade, ver e exibir cons-
titui aspectos vitais do ambiente cultural em que nos encontramos. Este pro-
cesso de produção fascina irresistivelmente cada vez mais pessoas e tem
como uma de suas contrapartidas o crescimento dos programas de televisão
no formato reality show, no qual intimidades são visíveis e consumidas de
forma ávida pelo público.
No contexto da comunicação contemporânea, sabemos que existem di-
versas maneiras na tradicional arte de narrar. [...] “A narrativa é definidamuito
estritamente pela narratologia recente como conjunto de significantes, cujos
significados constituem uma história” (AUMONT, 1995, p. 244).
Percebemos que a narrativa se torna indispensável ao sucesso das mí-
dias, especialmente na televisão que abriga estruturas antigas comparadas a
outras artes, mas revitalizadas por novas formas de produção e veiculação. O
avanço dos estudos da narrativa deve-se, sobretudo, à semiótica, teoria geral
dos signos, que tem o texto como objetivo de estudo, entendido como pro-
cedimento estruturante de um todo de sentido.
A partir deste panorama esboçado, fazemos a análise, com base na se-
miótica francesa desenvolvida por Algirda Julien Greimas, do texto-programa
BBB 3, que adota estratégias narrativas, por vezes contraditórias e incon-
gruentes, porém fundamentais para selarem o vínculo com o telespectador.
A narrativa do BBB é trabalhada com esmero, tanto no que se refere à
tessitura plástica, quanto às soluções técnicas de cenografia, iluminação, fo-
tografia, edição, para a construção do sentido. A trama, sob a forma de edi-
ções diárias, assume formato de narrativa seriada, estruturada em segmentos
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 123
Estratégias narraHvas doBBB 3: Do anonimato à fama
Mirian Moema Pinheiro1
de 20minutos, com emissão ao vivo, contendomais dois grandes segmentos:
um de 60 minutos e outro de 45 minutos, que vão ao ar respectivamente às
quintas-feiras e aos domingos.
Ao longo da programação acontece várias chamadas do BBB 3, gravadas
em vts de 15 minutos que funcionam como anúncio do produto programa.
Conforme Machado, chamamos de serialidade
[...] a apresentação descontínua e fragmentada do sintagma te-levisual no caso específico das formas narrativas, o enredo e ge-ralmente estruturado sob a forma de capítulos ou episódios,cada um deles apresentados em dia ou horário diferente e sub-divididos em bolos menores, separados uns dos outros poranúncios comerciais (MACHADO, 2000, p. 83).
Vimos, portanto, que a narrativa BBB 3 se encaixa na categoria seriali-
zada, pois dispõe dos requisitos indicados diante do conceito a que fazemos
referência, além do que é possível, com os mesmos atores, cenário, figurino
e única situação dramática produzir diversos episódios.
Durante o programa, verificamos a formação de pequenos grupos com
atuações as mais variadas, pois os jogadores sentem-se pressionados na dis-
puta pelo prêmio estipulado pelo programa. Vemos aí, um exemplo de mo-
delo atuacional proposto por Greimas, composto com base na relação central
sujeito/objeto.
Outro aspecto que destacamos na narrativa é o da constituição de uma
relação estabelecida entre os participantes (sujeitos das ações) e seu objeto
de desejo, instante em que se estruturam micros universos de valores que,
em geral, revelam a própria cultura em que se inserem. A outra relação é a
dos integrantes na competição daquilo que é socialmente valorizado (di-
nheiro, fama, poder, felicidade), disputando um mesmo objeto.
A narrativa do BBB 3 oferece várias possibilidades para a seleção de se-
quências atuacionais que exercem destaque sobre as outras numa visível de-
terminação manipuladora, demarcando uma posição de convencimento
sobre o telespectador. A presença do saber e poder como modalizações da
competência do emissor na construção das narrativas midiáticas são obser-
váveis. O microuniverso refletido na história do BBB 3 constitui-se de seres
Profª Ms. Mirian Moema Pinheiro/ EstratégiasnarraHvas do BBB 3: Do anonimato à fama
124
que respaldam os padrões culturais da sociedade.
O nível fundamental do texto do Big Brother 3 expõe a oposição mí-
nima entre anonimato e fama, traduzida pelos termos de “esquecimento e re-
conhecimento” e manifestada na negação do primeiro e na afirmação do
segundo. A transformação narrativa de esquecimento em reconhecimento
pressupõe um percurso de busca que se desdobra “em paixões” (GREIMAS,
1989, p. 280): na paixão simples de querer ter (dinheiro posição social e
poder) e nas paixões complexas de querer ser (aceito, admirado e amado).
Durante toda a narrativa, somos confrontados com as impressões dos
jogadores, que a cada episódio parecem produzir nos telespectadores uma
forte sensação de estranhamento, espanto, conforme o jogo de cada um e o
jogo entre eles. Utilizando sequências curtas e grande número de planos, cor-
tes e ângulos, o BBB 3mostra de forma dinâmica como cada um constrói seu
relato.
Na sua narrativa linear, os encadeamentos da edição parecem produzir
parte do desenvolvimento da história na qual os fatos não falam por si mes-
mos. A construção da realidade intermediada pelos sentimentos e vivências
individuais são traços interessantes do programa. Mais que biografias, o que
está sendo ressaltado no programa são as relações que os participantes tra-
vam entre si.
A forma de narrar do programa vem se colocando plenamente, trazendo
marcas diferenciais de outros programas do gênero. Posiciona as lentes das
câmeras e as lentes do olho e, com elas, capta a “realidade”, reconstruindo-
a e também criando outra realidade, a do próprio meio. Faz, assim, o duplo,
em seu “jogo de fingir” que a brevidade da vida de celebridade (o vencedor)
possibilita a garantia de sua ascensão social.
Pouco a pouco uma rede de opiniões e apreciações vai sendo tecida no
curso dos episódios e o receptor é convidado a se posicionar a favor ou con-
tra, elegendo aquele que é percebido como correto.
A estrutura do programa BBB 3 se estabelece com base nas estratégias.
Selecionamos cinco, para análise neste estudo, assim nomeadas:
- Começa o 3° Grande Espetáculo.
- Na Casa: O Show da Vida.
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 125
- Ações e Reações.
- Exclusão do Jogo.
- O Grande Vencedor.
2 COMEÇA O 3° GRANDE ESPETÁCULO
A largada para o terceiro grande espetáculo do BBB 3 foi dada no dia 14
de janeiro de 2003, momento em que os participantes receberam o sinal
verde para a disputa dos 500mil reais. A partida dos concorrentes ao jogo do
estrelato teve início com a apresentação dos integrantes ao público, mo-
mento em que os selecionados surgiram pela primeira vez diante das câme-
ras de TV, na saída do confinamento provisório, no qual se encontravam num
hotel de luxo, localizado na zona sul do Rio de Janeiro.
Seguiram todos em carreata, num desfile pelas principais ruas de acesso
à casa do Big Brother Brasil, perfazendo o percurso até chegar ao cenário
montado na Central Globo de produção. As pessoas comuns, contudo, que
queriam conhecer de perto os novos rostos do BBB 3, se posicionaram diante
do hotel, esperando para aplaudi-los.
Diante da plateia, expostos, e ao mesmo tempo carregados de seus
medos, os participantes conseguem alimentar seus sonhos de tornarem-se
celebridades. Partem confiantes em busca do palco (casa do BBB), a fim de
conquistar a credibilidade do público receptor na tentativa de conseguir rea-
lizar a transposição tão desejada, passando do anonimato à fama.
Os 14 participantes chegavam à casa do Big Brother e eram recebidos
pela louvação do público que ocupava as arquibancadas na área externa da
mansão bigbrodiana. Para receber os novos moradores, lá estava a repórter
Renata Capucci que, em rápidas palavras, dava as boas-vindas aos concor-
rentes de mais um espetáculo televisivo.
A entrada na casa aconteceu por grupos, sendo o primeiro composto
por Emílio, advogado, treinador de mergulho; Joseane, ex-miss Brasil; Alan,
jogador de basquete; Samantha, personal trainer; e Jean, massoterapeuta;
que inauguraram a casa e correram para escolher os aposentos e obviamente
o melhor quarto coletivo com as camas mais confortáveis.
Em seguida, chegaram Dílson, mais conhecido como Mad Max, advo-
Profª Ms. Mirian Moema Pinheiro/ EstratégiasnarraHvas do BBB 3: Do anonimato à fama
126
gado e lutador de jiu-jitsu; Paulo, fotógrafo; Sabrina, ex-dançarina do Pro-
grama do Faustão; e Dhomini, assessor parlamentar; que trataram de se apre-
sentar aos BBBs que já ocupavam a casa. O terceiro grupo é formado por
Marcelo, DJ; Andréa, publicitária; Elane, professora do Ensino Fundamental;
Juliana, estudante de Serviço Social da UFRJ; e Viviane, advogada, que foram
recebidos carinhosamente pelos recém-chegados a casa. Após as acomoda-
ções, os integrantes do programa-jogo se reuniram na sala para um brinde co-
letivo de boas-vindas, preparado pela produção, com petiscos e bebidas
variadas e músicas dançantes que alegravam os jovens participantes da ter-
ceira edição do BBB.
3 NA CASA: O SHOW DA VIDA
Hoje, temos o entendimento de casa, como sendo um edifício ou parte
dele, destinado à morada humana. Ela nasce de desenhos e tecnologias de
construção para ser ocupada com prazer. Apresenta-se como espaço/forma
que busca estar adequada a ser resposta ao modo de vida de seus habitan-
tes. A casa possui um valor econômico que varia de acordo com a localização,
qualidade do material empregado, sua estética e os espaços propostos.
A unidade casa é resultante de um complexo processo, no qual con-
fluem fatores sociais, técnicos e econômicos. Ela seria uma edificação vazia
com seus muros imaculados, faltando a vitalidade oriunda de seus morado-
res. É abrigo, invólucro protetor, parte integrante do sítio onde se integra e
que acolhe a todos. A casa em si é uma distribuição espacial que dá ao
homem seu sítio sobre a terra. Simbolicamente, é um castelo, fortaleza, lugar
de defesa contra as agressões externas.
Porém, a casa quando habitada vai adquirindo uma condição de lar,
numa concepção complexa que integrammemórias, imagens, passado e pre-
sente. Constitui-se numa composição de ritos pessoais e rotinas cotidianas
que refletem valores de uso, convivência e entrosamento familiar. São refle-
xos de moradores aí incluídos, sonhos, esperanças e dramas que transfor-
mam o vazio do espaço composto de paredes, esquadrias, móveis e quadros
em um universo construído de singularidades que reproduzem os valores so-
ciais. São os habitantes que dão sentido à existência da casa, formando uma
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 127
unidade básica de sociedade, e, portanto, a unidade primária de qualquer
forma de agregação, núcleo primeiro, a partir do qual experimentamos o sen-
timento de “pertencimento”.
Amansão, cercada de janelas envidraçadas, adquire um sentido, se per-
cebermos o caráter central da casa. A janela é o olho aberto lançado para o
horizonte, para omundo que se apresenta emoldurado, estabelecendo um li-
mite entre o fora e o dentro. Os moradores bigbrodianos lançam, através das
janelas, olhares esperançosos na realização de seus sonhos.
Para o ser sonhante dessa morada, a casa representa muito mais, talvez
o verdadeiro abrigo das fantasias, sonhos e esperanças. Contudo, participar
dessa casa é o sonho dos jovens que almejam sucesso e ascensão social.
Nesse sentido, a casa BBB 3 torna-se o espaço privilegiado para a sedimen-
tação das histórias de vida, servindo então de polo atrativo de uma luta per-
manente que é o afrontamento das diferenças.
Desse modo, a casa do BBB, diferentemente da casa natal, nasce para
funcionar como palco, no qual as pessoas se mostram em performances que
expressam os interesses de um mercado que potencializa, cada vez mais, o
fluxo das trocas e dos produtos; o dinheiro impõe que, também no campo do
cultural, haja uma difusão de tudo – valores e práticas sociais – o que trans-
forma em ameaças as singularidades e identidades.
Podemos dizer que, na casa do BBB, as pessoas mantêm com as outras
relações de dependência, afinidade, cumplicidade, hostilidade, afetividade,
amizade e paixão.
4 AÇÕES E REAÇÕES
A condição de confinados, a que se submetem os jovens, acaba tor-
nando-se geradora de tensões e conflitos, o que desencadeia agressões, in-
trigas, reações originadas pelos desequilíbrios emocionais provocados
principalmente pela repressão, que tolhe o que é natural no ser humano, o
prazer de comunicar-se com o mundo.
O isolamento causamal-estar, pois cala o grito do prazer de desfrutar de
sua “liberdade” de ir e vir, o que provoca uma ânsia de superar rapidamente
essa situação. Nesse caso, torna-se evidente que as relações humanas não se
Profª Ms. Mirian Moema Pinheiro/ EstratégiasnarraHvas do BBB 3: Do anonimato à fama
128
constituem apenas de unidade, mas, “são compostas de concordância e tam-
bém de discordância e competição, gerando conflitos” (SIMMEL, 1983, p.
123).
As hostilidades despontam em detrimento da aceitação, compreensão,
afeição mútua, em vista do interesse pela “vitória” que motiva os membros
do grupo a mobilizar uma disputa acirrada. Vivenciam uma dualidade que se
apresenta a cada momento com diversidades e uma multiplicidade de osci-
lações contraditórias.
Armam-se as tramas paralelas marcadas pelas relações de poder, insti-
tuídas pelas composições semânticas, segundo o diagrama de Greimas e
Courtées (apud BARROS; DIANA, 1988, p. 55), como: verdade versus men-
tira, vaidade versus humildade, belo versus feio, simpatia versus antipatia,
capacidade versus incapacidade, bom versus ruim, vitória versus derrota.
Vimos então que, de acordo com as ações individuais e as trajetórias traça-
das, gera-se como um espelho, mini-histórias e consequentemente outras
tantas mini-histórias contrárias.
As relações pessoais no BBB 3 passam a desenvolver-se em condições
duvidosas de sentimentos, pautadas quase sempre pela “competição”. As
partes envolvidas mantêm um relacionamento perfilado pela agudeza das
contraposições, em situações de confrontos, motivados pela vontade de pos-
suir ou controlar algo.
Todas as ações no programa revelam um estilo “contemporâneo”, mar-
cado pela estética da competição, na qual as armas do jogo se encontram, em
suamaioria, no corpo. Os jogadores colocam, no condicionamento do corpo,
os movimentos e a forma atlética de que dispõem, a serviço da utilidade, do
desempenho na disputa entre eles.
Vencer é o lema desse jogo, que implica também responsabilidade. Só
um ego forte suporta a carga da vitória, que, na visão de Távola (1985), en-
volve três elementos importantes: “qualidade, voracidade e sorte”. Os dois
primeiros (qualidade e voracidade) são classificados pelo autor de objetivos
e o terceiro (sorte) é considerado como subjetivo (TÁVOLA, 1985, p. 299).
Este, porém, inalcançável, mas perceptível e presente no jogo, na vida e no
acaso. O jogo, segundo o autor, “é uma relação inaprisionável entre esses ele-
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 129
mentos” (TÁVOLA, 1985, p. 300). Devolve ao homem sob forma simbólica e
lúdica a sua impossibilidade de aprisionar o real.
Do ponto de vista do programa, as relações pessoais acontecem em
clima de excitação e muita expectativa, marcada pela competição, na qual
todos os participantes acionam com mais vigor seus esquemas de ataque e
aomesmo tempo de autodefesa, numa luta demarcada pelas atuações numa
perspectiva individualista. Talvez, por isso, possamos dizer que é em um sis-
tema de relações pessoais que o BBB 3 constrói sua narrativa.
Assim, as tensões dramáticas foram trazidas à trama pelas relações pes-
soais dos participantes. A produção, como uma forma de ressaltar e reforçar
simbolicamente as tensões enfatizava nas edições as identidades opostas,
como: a bondade (sublinhando a compreensão) e a perseguição (reconhe-
cida como desagregadora e perigosa). Assim sendo, vejamos, a partir daqui,
algumas das ações e reações dos jogadores do BBB 3.
Ora, pelo que apresentamos tudo leva a crer que a história dos partici-
pantes vivendo numa casa, como se a realidade ali fosse verdadeira, deve-se
a uma prática cultural de ficcionalização do drama de todos os dias, adotada
pelos meios de comunicação, especialmente pela televisão na contempora-
neidade.
5 EXCLUSÃO DO JOGO
A exclusão do jogo apresenta-se como o processo pelo qual os partici-
pantes do programa BBB são sistematicamente impedidos (pelas regras) a
continuar compartilhando da experiência na casa. São inquiridos a ceder às
posições que não lhes permitiram a mudança de vida.
Consiste num conjunto de ações e movimentos de cada jogador, como
se uma teia invisível estivesse sendo cuidadosamente tecida, a partir da qual
uma “verdade” vai sendo aos poucos revelada aos telespectadores – não
tanto pelo que eles dizem, mas, fundamentalmente pela maneira como vão
se posicionando em relação aos sistemas de alianças, articulações, lealdades
ou em relação às hostilidades criadas. O próprio grupo exclui entre si. Os ex-
cluídos, conforme seus comportamentos (ou o comportamento solicitado
pelo programa) procuram inventar maneiras de superar, através de diferen-
Profª Ms. Mirian Moema Pinheiro/ EstratégiasnarraHvas do BBB 3: Do anonimato à fama
130
tes mecanismos, a possibilidade de serem indicados a deixar o jogo.
Nos confessionários eletrônicos desses programas, os jogadores reve-
lam-se numa ambiguidade de causar aflição. Delatam os melhores amigos,
prevalecendo, na selva televisiva, a lei do mais forte, do mais esperto, numa
imitação do jogo da vida. Procuram justificar suas traições, invocando fatos
banais ou simplesmente não sabem o que dizer no momento de proceder à
indicação do candidato ao paredão, de dar razões para a escolha que fizeram
no jogo. Parecem repetir a lógica dos gladiadores romanos, eliminando o ad-
versário a qualquer preço e se exibindo a uma plateia ávida por emoções for-
tes e bizarras.
Nessa estratégia, o programa convoca o telespectador a participar do
jogo, decidindo, por votação semanal, qual dos participantes será indicado
pelos parceiros de jogo, ao paredão, devendo deixar ou permanecer na casa.
Percebemos, portanto, que nessa escolha, mesmo contando com a honesti-
dade da emissora, na apuração dos votos o telespectador pode sofrer uma
série de manipulações: edição fragmentada, interferência do apresentador,
falta de transparência nas votações, falta de fiscalização na apuração dos
votos.
É importante que compreendamos que a exclusão funciona a partir de
um jogo de interesses que se ordenam, combatendo-se. Os participantes, sa-
bendo disso, prosseguem a marcha do jogo preconizando a máscara, mos-
trando claramente que aquilo que chamamos de “autenticidade” é apenas
um disfarce para escapar da dureza da vida.
6 O GRANDE VENCEDOR
O jovem vencedor do jogo representa a força, a destreza, energias ne-
cessárias ao ser humano para enfrentar as dificuldades da vida e conseguir su-
perar o anonimato. Funciona como a significação do bem, da elevação, da
ascensão social, com as quais o homem se identifica.
O jogador vencedor é aquele que, ao longo do programa, padroniza um
modelo de ser, embora sentenciado a cada comportamento, ainda assim é
considerado como aquele que apresenta maior tolerância associada à es-
perteza e à sagacidade. Enfim, é o que muito perde, mas, no final, consagra-
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 131
se campeão do jogo.
Para conquistar a vitória, os concorrentes passam a exercer a função de
interlocutores fictícios da televisão, contribuindo para a manutenção do es-
petáculo, animando o telespectador a continuar acompanhando o jogo, tor-
nando-se reféns do próprio meio, pois precisam dele para se promover.
Verificamos que a partir do momento que se instala a ideia de que só a vitó-
ria lhes garante segurança, uma espécie de sentimento de superpoderio,
grandeza e força emerge, passando a dominar os atos e determinar as rea-
ções de cada jogador.
As pessoas entram no programa como anônimas e saem famosas,
porém esvaziadas de suas subjetividades, porque aprisionado o desejo, fica
apenas o estilo de vida editado pelo programa. É tanto que no processo de
seleção dos participantes para integrarem o elenco do programa, é nítido que
a identificação do candidato não é a do indivíduo real, mas uma imagem for-
jada pela Rede Globo de Televisão. Em outras palavras, não é que ela crie,
mas escolhe de acordo com seus padrões e critérios aquela pessoa que
atende a suas expectativas, uma vez que utiliza “olheiros”.
O ganhador deixa a casa e ganha a rua, participa de novos espaços so-
ciais; a rotina cotidiana prossegue agora por caminhos esculpidos sob as luzes
dos refletores de TV, revistas, jornais, internet. Transformado em celebridade,
reverenciado por todos, incorporando novos discursos, assume o papel de
representante fiel da cultura midiática comandada pela lógica da visibilidade.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conhecendo as possibilidades da televisão, podemos dizer que nesse
formato de programa coexistem diferentes tipos de realidade associados a
elementos ficcionais. O reality show BBB 3 é tratado e lapidado como ficção,
através do desenvolvimento da história, valores atribuídos aos jogadores, pe-
ripécias, noções de causa e efeito e presença do casal romântico. O fenô-
meno do reality show, especificamente o BBB está mais próximo da novela,
acima de tudo por dois componentes: TRAMA E PERSONAGENS PARTICIPAN-
TES.
Assim, como nas novelas, os acontecimentos são sequenciados em for-
Profª Ms. Mirian Moema Pinheiro/ EstratégiasnarraHvas do BBB 3: Do anonimato à fama
132
mato de episódios diários, compondo “a narrativa seriada” (MACHADO, 2000,
p. 83). De determinado programa que se espalha ao longo de meses, anos,
sob a forma de edições diárias, semanais ou mensais.
Percebemos dois principais trabalhos de dramaturgia no BBB: primeiro
o de edição do que acontece naquela casa cenário. Como torná-lo um espe-
táculo com começo, meio e fim, com plot points (pontos de virada), um
evento ou incidente que “engancha” na ação e reverte noutra direção, ou
melhor, dizendo, ele move a história adiante, com desenvolvimento e reso-
lução.
NOTA
1 - Mestre em Ciências Sociais, Doutoranda em Estudos da Linguagem,
professora do Departamento de Comunicação Social da UFRN.
REFERÊNCIAS
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Vozes, 1975.
Profª Ms. Mirian Moema Pinheiro/ EstratégiasnarraHvas do BBB 3: Do anonimato à fama
134
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os desafios da comunicação no ciberespaço defrontam-se com aspec-
tos éHcos e morais da sociedade que se manifestam virtualmente no século
XXI. As relações sociais tendem a se distanciarem do contato humano inte-
grando, cada vez mais, o cidadão no espaço virtual. Pensar a hospitalidade
com o propósito de esHmular a reflexão educaHva no senHdo de formar o
caráter hospitaleiro tem como referência a temáHca da comunicação virtual
no ciberespaço por abranger vastamente as relações entre os sujeitos que se
deslocam virtualmente nas civilizações modernas.
Percebe-se que são muitos os campos de aHvidade acadêmica que
podem estabelecer uma base de pesquisa para os ritos da hospitalidade, do
acolhimento e do vínculo humano. As inovações nos meios de comunicação
e suas tecnologias estão caminhando em conjunto na direção de um mundo
sem fronteiras, commercados diversificados em organizações, comunidades,
pessoas, bens e serviços. Assim, a informação está ao alcance de todos e a
redemundial de computadores pode ser acessada para prestação de serviços
em tempo real e para disseminação de informações que contribuem para a
formação e a educação do cidadão virtual.
Dentro desse cenário tecnológico, o conceito de hospitalidade deve ser
ampliado para além das aHvidades turísHcas propriamente ditas. A relação
que o processo de comunicação (BERLO, 1999) virtual estabelece com o imag-
inário dos sujeitos turísHcos gera valiosas contribuições e possibilidades de es-
tudos da hospitalidade e da comunicação e da educação das comunidades
envolvidas. De acordo com Grinover (2002, p. 34), “oferecer e receber uma
informação é ummecanismo de hospitalidade”. As questões interdisciplinares
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 135
Comunicação e Hospitalidadeno Ciberespaço
Ronaldo Mendes Neves1
e as discussões em outros campos de conhecimento devem ser abordadas
por meio de focos de interesse em cada área, sempre caracterizando o sen-
Hdo da formação e da educação do cidadão, visitante ou anfitrião:
Hoje, o conceito de hospitalidade estende-se para além dos li-mites de hotéis, restaurantes, lojas e estabelecimentos de en-tretenimento [...] até recortes específicos, não apenas daantropologia, da sociologia, da história, da geografia, da eco-nomia, da política etc., mas também das ciências e tecnologiasaplicadas à administração, à educação, à comunicação, à arqui-tetura, ao urbanismo, ao planejamento ambiental, aos recursosnaturais etc. (GRINOVER, 2002, p. 27).
Para o autor, o estudo da hospitalidade se insere num contexto
abrangente que envolve questões sociais e culturais enquanto se criam e im-
plementam relações já existentes. Grinover (2003, p. 25) sugere que essas
relações podem se expressar em vários contextos, pois “realizam-se trocas
de bens e serviços materiais e simbólicos entre receptor e acolhido, anfitrião
e hóspede, sendo que a noção de hospitalidade se emprega em diferentes
contextos”. Essa terminologia permite ampliar as possibilidades de campos
cienIficos para o estudo de técnicas e práHcas pedagógicas que venham elab-
orar aHvidades gestoras da hospitalidade com desdobramentos para as insH-
tuições de ensino no senHdo demediar a transmissão do conhecimento para
o cidadão. Desta forma, a hospitalidade é considerada uma troca humana:
contemporânea, voluntária e mutuamente benéfica e se apresenta dentro
de um conjunto de bens e serviços (LASHLEY, 2004).
Dimensões da hospitalidade (LASHLEY, 2004, p. 203)
MSc. Ronaldo Mendes Neves/ Comunicaçãoe Hospitalidade no Ciberespaço
136
Os constantes conflitos sociais e hosHlidades que aHngem a civilização
contemporânea estão além das questões políHcas e administraHvas. Trata-se
demudanças no próprio perfil do cidadão e de suas relações com a realidade
virtual, na busca do conhecimento, valorizando a educação e a troca de in-
formações. A comunicação e a hospitalidade virtual podem ser pensadas
como uma forma de criar alternaHvas que possibilitem a formação do caráter
hospitaleiro (LASHLEY, 2004).
Nas pesquisas realizadas em nível de mestrado em administração abor-
dando a hospitalidade comercial em empreendimento de lazer, Neves (2006),
uma lacuna nos estudos interdisciplinares entre comunicação e hospitalidade
foi verificada, especificamente na educação e nas práHcas pedagógicas, visto
que a demanda pela informação é cada vez mais crescente no século XXI.
Nessa sociedade interaHva e virtual, o excesso de informação disponível rev-
ela a necessidade de formar o caráter hospitaleiro através da comunicação
entre os povos.
O primeiro contato do usuário virtual no ciberespaço é estabelecido
através de uma relação de comunicação. Nesta troca desordenada de esI-
mulos, a comunicação e a hospitalidade afloram o vínculo humano existente
entre emissor e receptor e podem ser considerados como elementos essen-
ciais para organizar uma cultura hospitaleira através do acolhimento dasmen-
sagens virtuais, conforme apresentado no quadro a seguir:
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 137
A apresentação do espaço virtual da hospitalidade se torna essencial-
mente necessária para estabelecer e incluir nos meios de comunicação re-
cursos pedagógicos que direcionem para o desenvolvimento educacional e
do caráter hospitaleiro de visitantes e visitados. Páginas da internet e os con-
tatos eletrônicos demonstram o quanto é significante receber e enviar men-
sagens hospitaleiras, ou seja, mensagens acolhedoras que não agridam e que
vão de encontro aos interesses do receptor. É di3cil imaginar a comunicação
no ciberespaço sem a hospitalidade como pano de fundo, no senHdo de en-
viar, receber e responder mensagens cordiais. O instante que envolve a re-
cepção de mensagens virtuais é tênue e precisa de acompanhamento
constante para prestar serviços de hospitalidade aos sujeitos turísHcos. Desta
maneira, Camargo (2004) descreve os quatro tempos da hospitalidade ligados
à esfera da comunicação social e ao caráter hospitaleiro: domésHca, pública,
comercial e virtual.
Virtual – Embora perpasse e seja quase sempre associada espa-cialmente às três instâncias anteriores, já se vislumbram carac-terísticas específicas dessa hospitalidade, notadamente aubiquidade, na qual emissor e receptor da mensagem são res-pectivamente anfitrião e visitante, com todas as consequênciasque essa relação implica (CAMARGO, 2004, p. 54).
As pessoas chegam e partem virtualmente. A representação da ubiq-
uidade é configurada como caracterísHca parHcular da hospitalidade virtual,
pois se refere à condição superior de estar em toda parte ao mesmo tempo.
A onipresença do emissor e do receptor da mensagem eletrônica delimita
suas inter-relações de anfitrião e visitante simultaneamente. Este mercado
se torna virtual à medida que se consHtui uma relação especializada entre
dois protagonistas, aquele que recebe e aquele que é recebido e que, quase
nunca, estão nomesmo local ao mesmo tempo. Esta capacidade de estar em
vários lugares aomesmo tempo, representada pela informação virtual, é con-
hecida como ubiquidade. A mulHplicidade de portais na internet demonstra
a constante e crescente presença da ubiquidade, o que torna necessário am-
pliar o debate da hospitalidade e da convivência cordial e educadora no
ciberespaço. O enviar e receber mensagens virtualmente remete aos critérios
MSc. Ronaldo Mendes Neves/ Comunicaçãoe Hospitalidade no Ciberespaço
138
de polidez e eHqueta com suas maneiras de comportamento e formas de
tratamento: a net-hospitalidade (CAMARGO, 2003).
Não basta incluir o cidadão no ciberespaço. As regras de bom compor-
tamento virtual iniciam nas aHtudes hospitaleiras dos visitantes e anfitriões.
Dessa maneira, a net-hospitalidade é sugerida para consHtuir o caráter hos-
pitaleiro nas relações virtuais de comunicação e educação.
Tendo em vista o aumento generalizado de inovações tecnológicas, as
páginas na web estão cada vez mais interaHvas e procuram receber os visi-
tantes com atrações e links diversificados, buscando prestar um melhor
serviço informacional aos cidadãos. A hospitalidade é uma troca humana de
cordialidades que tem por objeHvo, aumentar o bem-estar, a qualidade da
informação e obter bene3cios mútuos tanto para o anfitrião como para o vis-
itante.
Para Lévy (2000, p. 47), é considerada virtual “toda enHdade desterrito-
rializada, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes mo-
mentos e locais determinados, sem, contudo, estar ela mesma presa a um
lugar ou tempo em parHcular”. O autor explica e adverte que não se pode
fixá-lo em nenhuma coordenada espaçotemporal, o virtual é real e afirma
que o virtual existe sem estar presente. Assim, caracteriza-se o processo de
virtualização onde a comunicação conInua representa a ubiquidade da in-
formação.
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 139
O ciberespaço encoraja um estilo de relacionamento quase in-dependente dos lugares geográficos e da coincidência dos tem-pos [...] ubiquidade da informação, documentos interativosinterconectados, telecomunicação recíproca e assíncrona emgrupo ou entre grupos: as características virtualizante e dester-ritorializante do ciberespaço fazem dele o vetor de um universoaberto. Simetricamente, a extensão de um novo espaço univer-sal dilata o campo de ação dos processos de virtualização (LÉVY,2000, p. 49).
Diante do amplo desafio de invesHgar um campo no qual se desenrola
um processo de comunicação (BERLO, 1999) tecnológico em permanente
feedback entre o visitante e o visitado, a interação mediada pela hospitali-
dade virtual revela que uma nova relação de aHtudes educaHvas presente na
troca de mensagens da sociedade no ciberespaço. A análise da comunicação
virtual apresenta novos modelos de práHcas pedagógicas que permitem que
indivíduos transmitam suas mensagens para outros, dispersos no tempo e no
espaço, o que caracteriza a expansão da educação à distância. Esse ponto de
vista leva a considerar o caráter hospitaleiro como base para estruturar uma
civilização que se comunica no espaço virtual, assim sendo:
Não se trata aqui de usar as tecnologias a qualquer custo, massim de acompanhar consciente e deliberadamente uma mu-dança de civilização que questiona profundamente as formasinstitucionais, as mentalidades e a cultura dos sistemas educa-cionais tradicionais e sobretudo os papéis do professor e dealuno (LÉVY, 2000, p. 172).
Conforme relata o autor, a principal questão não é o momento de pas-
sagem da educação presencial à educação à distância e nem da escrita e da
oralidade para os meios mulHmídia e sim, a transição para um intercâmbio de
conhecimento e informações. É, justamente, a transformação de uma edu-
cação e uma formação estritamente insHtucionalizadas (a escola, a universi-
dade) para um sistema de troca generalizada dos saberes, o ensino da
sociedade por ela mesma, de conhecimento autogerenciado e móvel. Esse
sistema proposto pressupõe a presença constante do processo de comuni-
cação e da interferência direta da hospitalidade virtual para consHtuir a cul-
tura do caráter hospitaleiro no ciberespaço. Para tanto, o vínculo humano
MSc. Ronaldo Mendes Neves/ Comunicaçãoe Hospitalidade no Ciberespaço
140
conHnua sendo indispensável para manter a cordialidade e a reciprocidade
nas relações de comunicação para bene3cio mútuo dos sujeitos turísHcos, de
acordo com a proposta sugerida pelo professor Lévy (2000, p. 173): “Permi-
Hr a todos um acesso aberto e gratuito a midiatecas, a centros de orientação,
de documentação e de autoformação, a pontos de entrada no ciberespaço,
sem negligenciar a indispensável mediação humana do acesso ao conheci-
mento”.
Na obra de referência universal, “Pedagogia da autonomia”, Freire (1996)
aborda a perHnência da inter-relação do trabalho educaHvo com osmeios de
comunicação quando expressa a seu pensamento com relação aos meios de
comunicação, pois para o educador, pensar a mídia em geral é pensar num
processo impossível de neutralidade. Torna-se evidente que, se o ambiente
de comunicação virtual não é neutro, a convergência entre a comunicação e
a educação é imprescindível e posiHva para a formação do caráter hospitaleiro
no cidadão. Segundo Marques de Melo (2008, p. 54), com a “telemáHca”, os
meios de comunicação tendem a fragmentar a produção simbólica prior-
izando a imaginação e a emoção. “E busca nas teorias da informação os fun-
damentos para a criação de uma realidade virtual, de um ciberespaço”. Nesse
contexto, a comunicação e a educação produzem a circulação virtual da livre
expressão de ideias e contribui diretamente para o desenvolvimento social e
cultural do ser humano. O autor ainda acrescenta a importância histórica que
os processos educaHvos têm sobre a evolução da mídia: “É importante lem-
brar que, historicamente, a mídia dependeu da expansão da educação com
vistas à alfabeHzação para a formação demercados e públicos consumidores”.
Contudo, pode-se afirmar que as aHvidades educacionais realizadas com
o suporte midiáHco se desenvolvem no ciberespaço e gera a tecnocultura,
destaca Marques de Melo (2008, p. 55), “os processos de educação e comu-
nicação, amparados sobretudo na oralidade e na imagem que recebemos e
reelaboramos a cultura: a cultura dos outros, dos nossos ancestrais; a nossa
cultura”. A parHr dessa proposição, considera-se fundamental a necessidade
de interagir comunicação, educação e ciberespaço: a tecnocultura. Para o
professor Marques de Melo (2008, p. 58), o maior desafio da educação con-
temporânea esteja no fato de como uHlizar os meios de comunicação no
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 141
ciberespaço. “IncenHvar o uso das tecnologias digitais, e, ao mesmo tempo,
não permiHr que o conhecimento se forme fragmentado, supérfluo e vazio.
Melhor, que ele nem sequer ocorra”. E ainda alerta para violência virtual, in-
terpretada comomá educação virtual, no senHdo de expor os conflitos entre
as culturas oral, escrita e imagéHca. Segundo descreve Marques de Melo, a
violência do imaginário é capaz de afetar todas as modalidades do laço social,
o que descaracteriza a ação de qualquer esHlo de hospitalidade. Assim sendo,
reforça-se a necessidade vital de implementar uma cultura da hospitalidade
que eduque por meio da comunicação, sempre desenvolvendo e apri-
morando o caráter hospitaleiro para estancar a violência do imaginário na
tecnocultura.
E assim, o ciberespaço se apresenta como poder simbólico (THOMPSON,
1998), em um ambiente de visitação pública e universal, necessitando de ser
inundado de aHtudes hospitaleiras na troca de informações e serviços virtu-
ais. Ao enviar mensagens para pessoas nos contextos distantes, conforme
deduz Thompson (1998, p. 106) “a mídia modela e influencia o curso dos
acontecimentos, cria acontecimentos que poderiam não ter exisHdo em sua
ausência”. O incremento das novas tecnologias da informação na fase con-
temporânea da sociedade sustenta o imaginário coleHvo e, nesse senHdo, in-
serem-se as perspecHvas educacionais e práHcas pedagógicas para a
formação do caráter hospitaleiro nas relações de comunicação entre visi-
tantes e visitados no ciberespaço. Assim, na sociedade da informação inter-
aHva, é comum dirigir ações de comunicação para um receptor distante no
espaço e no tempo, representando a ubiquidade da informação com conse-
quências que ultrapassam os limites de seus contextos e localizações.
O desenvolvimento de novos meios de comunicação não con-siste simplesmente na instituição de novas redes de transmis-são de informação entre indivíduos cujas relações sociais básicaspermanecem intactas. Mais que isso, o desenvolvimento dosmeios de comunicação cria novas formas de ação e de intera-ção e novos tipos de símbolos nas relações sociais (THOMPSON,1998, p. 77).
A ideia de tempo e espaço na hospitalidade apresenta novas vivências e
MSc. Ronaldo Mendes Neves/ Comunicaçãoe Hospitalidade no Ciberespaço
142
experiências para jusHficar os deslocamentos virtuais da sociedade contem-
porânea, conforme revela Baccega (2008, p. 3): “criam-se novas sensibili-
dades, novos modos de se relacionar, maneiras diferentes de estar junto com
outras pessoas, de circular pelas cidades, de circular pelomundo e pelos mun-
dos”. A autora ainda acrescenta que toda a informação circula e representa
o poder simbólico presente na informação: “As imagens parecem ocupar o
lugar do concreto. Através delas, os objetos, mágicos e atraentes, oferecem-
se para serem adquiridos”. Essas imagens são alguns dos exemplos que ex-
pressam a hospitalidade virtual desses locais e ultrapassam os limites dos
seus contextos e localizações: a ubiquidade. Mensagens eletrônicas informa-
Hvas e publicitárias são enviadas por agências de viagem e localidades turís-
Hcas para promoverem o desHno por meio do ciberespaço: o Cristo Redentor
percorreu omundo depois do recente anúncio do Rio de Janeiro como cidade
vencedora para sediar os jogos olímpicos de 2016.
Um exemplo da representação espaçotemporal da comunicação e da
hospitalidade virtual aconteceu com a transmissão da parHda de futebol da
seleção Inglesa realizada na Ucrânia. A transmissão foi responsável pela maior
audiência no Reino Unido de um evento vendido pelo sistema pay-per-view
e transmiHdo ao vivo pela internet. Segundo informação do portal terra
(2009), a iniciaHva de transmiHr o jogo pela internet foi de uma organização
que comprou os direitos de transmissão, mas decidiu não aceitar nenhuma
proposta para exibir o jogo na televisão. O ingresso virtual para assisHr ao
confronto foi vendido a cerca de 250mil espectadores virtuais. EsHma-se que
meiomilhão de pessoas acompanhou a parHda na tela de um computador, re-
sultado da audiência total. "Somado a isso, do ponto de vista de um serviço
para o consumidor, da produção e distribuição, nós senHmos que isso acon-
tecerá de forma suave", acrescentou o portal. O entretenimento virtual se de-
senvolve de acordo a evolução dos meios de comunicação: dos folheHns de
jornais, revistas, passando pelo rádio, pela televisão, pela mulHmídia e a in-
ternet. De acordo com confirmação do professor Camargo (2004, p. 66), at-
ualmente “o entretenimento virtual é o campo mais poderoso do lazer do
ponto de vista econômico. Envolve, aproximadamente, mais de 40% do
tempo livre dos indivíduos.”
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 143
Portanto, evidencia-se a categoria da hospitalidade virtual para consHtuir
o vínculo da comunicação humana no intuito de formar o leitor cidadão e
consHtuir o caráter hospitaleiro na comunicação entre visitantes e anfitriões,
sujeitos turísHcos do ciberespaço. Enfim, estabelecer uma reflexão educaHva
nos pensadores da comunicação e da hospitalidade conHda na reciprocidade
humana através das trocas demensagens para gerar o bem-estar dos sujeitos
turísHcos envolvidos nesse processo virtual descrito como cibercultura (LÉVY,
2000).
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerar e estudar a temáHca da hospitalidade e a comunicação virtual
leva a uma reflexãomaior a respeito de questões como a educação e a cidada-
nia, a reciprocidade através da integração dos povos, a inclusão social e resta-
belecimento do vínculo humano.
A caracterização da valorização dos processos de relações humanas ev-
idencia a necessidade de desenvolver e aprimorar o caráter hospitaleiro nas
ações recíprocas de visitantes e visitados no ciberespaço: net-hospitality. Ex-
atamente por este moHvo, a missão de recepcionar e acolher os visitantes
virtuais se torna uma práHca pedagógica de fundamental importância para a
construção de uma comunicação virtual hospitaleira e educada.
Os atos de hospitalidade se configuram, especialmente nas transações
virtuais, como uma função geradora de conhecimento coleHvo para o de-
senvolvimento humano e profissional de visitantes e anfitriões. A organização
dos processos comunicaHvos de informação, lazer e entretenimento tem
muito a colaborar para a formação de um suporte social de apoio que permita
a inclusão e a aceitação do outro.
Avaliar as relações da comunicação e a educação com os atores sociais
envolvidos no ciberespaço se torna uma exigência da mídia e de suas ino-
vações tecnológicas, uma vez que a transmissão de informações virtuais traz
contribuições fundamentais para o desenvolvimento educacional dos sujeitos
turísHcos envolvidos no processo de virtualização da hospitalidade. As possi-
bilidades de reflexão sob o foco da comunicação, da hospitalidade e da edu-
cação são infinitas considerando a convivência éHca e moral de sujeitos no
MSc. Ronaldo Mendes Neves/ Comunicaçãoe Hospitalidade no Ciberespaço
144
ciberespaço.
NOTA
1-Mestre em Administração, professor do Departamento de Comunicação
Social da UFRN.
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MSc. Ronaldo Mendes Neves/ Comunicaçãoe Hospitalidade no Ciberespaço
146
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Compreender a estrutura comunicativa da interface de hipermídia re-
quer, primeiramente, situar o termo em uma das suas linhas teóricas que a
definem entre suas relações de interatividade e interação. A primeira a de-
screve como meio de transmissão de informação não linear originada pela
convergência entre diferentes mídias (FERRARI, 2007, GOSCIOLA, 2000;
PINHO, 2000). Já a segunda é vista como um sistema aberto, infinito e pluris-
significativo no qual a narrativa circula com alto grau de interconexão (NE-
GROPONTE, 1995; VOUILLMOZ, 2000).
A ampliação da convergência midiática na Internet nos permite ampliar
as visões dessas duas linhas teóricas e compreender a interface de hipermí-
dia como um sistema de informação ou meio computacional virtual ou digi-
tal, no qual se fixam linguagens verbais e não verbais, que se interconectam
de forma não linear. Essas linguagens circulam hibridizadas na interface entre
os hipertextos virtuais, imagens, vídeos, animações, hiperlinks, ícones, cores,
sons e gráficos vetoriais, e passam a representar os elementos de hipermídia.
Nessa linha, cunhamos o termo hipermídia como um sistema ou inter-
face computacional virtual ou digital, formado por linguagens verbais e não
verbais, hibridizadas em hipertextos virtuais, cores, sons, animações, gráfi-
cos vetoriais, imagens, vídeos, hiperlinks e ícones, que se interconectam in-
terativamente e promovem navegação não linear.
As interfaces de hipermídia integram os sistemas de mídias móveis, de
jogos, de portais de comércio eletrônico, de notícias e de ambientes virtuais
de aprendizagem. Seu uso na Internet revela inúmeras experimentações,
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 147
A comunicação gráfica nainterface de hipermídia eseus atributos de usabilidade
Taciana de Lima Burgos1
porém, os atributos de usabilidade criados até então são direcionados, em
sua maioria, para interfaces de comércio eletrônico e de notícias, já que são
os tipos de páginas virtuais mais populares na web.
Devemos compreender que uma interface de hipermídia é, acima de
tudo, ummeio de transmissão de informações e que, para cumprir seu papel,
necessita transmitir para seu público a mensagem de maneira eficaz, de
acordo com o seu objetivo de uso e comunicação. Visando essas metas, em-
pregamos os atributos de usabilidade, que são parâmetros ergonômicos para
aplicação de ferramentas, mídias e tecnologias, que foram testadas e
definidas, com o objetivo de gerar acessibilidade e comunicabilidade para in-
terfaces de hipermídia. A aplicação de atributos de usabilidade reduz a pos-
sibilidade de erro que um usuário, cursista ou leitor terá ao utilizar um sítio
virtual/digital.
Para Krug (2006) criar um novo modelo de atributo de usabilidade em
substituição aos já existentes, como o redesenho de um hiperlink, de um
ícone ou reestruturar a sequência de um hipertexto virtual, só é re-
comendável se ele for suficientemente autoexplicativo, de forma a não exigir
muito esforço cognitivo do leitor para entender, navegar e intercambiar
dados, ou se for uma ideia que acrescente valor às suas experiências.
O desenho gráfico de uma interface de hipermídia exige a aplicação dos
atributos de usabilidade para cada elemento que a compõe (hipertextos vir-
tuais, cores, sons, animações, gráficos vetoriais, imagens, vídeos, hiperlinks e
ícones). Apesar de cada um desses elementos possuírem uma função singu-
lar no leiaute, a sua convergência com os outros itens que formam a interface
gera uma modificação na arquitetura da informação, na navegação, na co-
municabilidade e na estética do leiaute. O hipertexto virtual, por exemplo,
quando aplicado como hiperlink, torna-se um ícone, pois é somado aos grá-
ficos vetoriais, às cores e às animações. Os sons podem ser transmitidos em
players, ícones ou podcasts, acompanhar imagens para criar diferentes sen-
sações de presença e intimidade. A cor, além de ser utilizada como plano de
fundo e descrever o conceito abordado na interface, pode também indicar a
marcação de hiperlinks, demarcar áreas de prioridade e diferenciar botões
de tarefas, ou seja, cada mídia pode ser usada de um modo mais ou menos
Dra. Taciana de Lima Burgos/ A comunicação gráficana interface de hipermídia e seus atributos de usabilidade
148
convergido, fato esse que exige do leitor diferentes letramentos e esforços
cognitivos em suas ações de navegação emmotores de busca, portais de notí-
cias e blogs, já que cada suporte possui um maior ou menor grau de con-
vergência em sua arquitetura da informação e ferramentas de interação e
interatividade.
De acordo com Burgos, TL (2006), as páginas virtuais de hipermídia pre-
cisam ser fáceis de navegar (ler) para promover uma navegação ergonômica
(ato de movimentar-se aleatoriamente na interface), e isso se dá no instante
em que se estabelece uma relação de usabilidade entre conteúdo veiculado,
composição gráfica da página e suporte.
Com vistas ao aprofundamento sobre a comunicação gráfica em inter-
faces de hipermídia, apresentaremos a seguir os atributos de usabilidade para
seus elementos constitutivos, considerando os aspectos da acessibilidade e
usabilidade.
2 OS ATRIBUTOS USABILIDADE NOS ELEMENTOS DE HIPERMÍDIA
2.1 O hipertexto virtual
A utilização de hipertextos virtuais em uma interface gráfica transmite
um conceito que ultrapassa o seu significado textual, já que os conteúdos es-
critos podem acompanhar cor, gráficos vetoriais, ícones, sons, hiperlinks e
animações. A escolha da fonte deve corresponder às características do su-
porte, do tipo de leitor a qual se destina e ao tema abordado. A tipografia
em um leiaute gráfico, analógico ou virtual envolve a seleção de tipos, a es-
colha do formato da página e a composição das fontes (letras) de um texto.
Tudo isso, com o objetivo de transmitir uma mensagem de modo mais eficaz
possível, gerando no leitor destinatário significações pretendidas pelo desti-
nador (NIEMEYER, 2003).
A aplicação de famílias tipográficas emmonitores de computador sofre
a influência direta da existência dos pixels (menor unidade ou ponto em um
monitor de vídeo cuja cor ou brilho pode ser controlado), já que a composição
da imagem da tela é responsável pela deformação das serifas dos tipos,
quando estas são aplicadas em tamanhos reduzidos (menor que corpo três
nos editores HTML e doze em editores de texto convencionais). Assim “B” ou
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 149
“R” passam a ser lidos como “P”; “M” torna-se “N” e “Q” é visto como “O”
(BURGOS, TL 2006).
Nielsen (1995, p. 108) afirma que, para ser bem visualizado pelo leitor,
o hipertexto virtual deve ser aplicado em corpo de 10 a 12 pontos, ou 40 a 60
caracteres por linha, para monitores com resolução de 800 x 600 pontos por
polegada; em no máximo duas famílias tipográficas, como Verdana, Arial ou
Tahoma, aplicadas com a variação entre caixas alta e baixa, com o itálico ape-
nas para citações e destaque no corpo do texto. Essas fontes são indicadas por
não possuírem serifas e estarem integradas aos sistemas operacionais mais
populares.
O autor também afirma que devem ser evitados hipertextos virtuais
com efeito intermitentes de brilho e luminosidade, uso do hífen e de alin-
hamentos à direita, já que este se apresenta oposto ao sentido de leitura oci-
dental. Para Radfahrer (1995, p. 115), os grupos de hipertextos devem ser
pequenos, independentes entre si, mas com elementos semânticos e gráficos
comuns. Gomes (1999) acrescenta que a apresentação formal do texto na
web devemos ajustar a régua do editor de texto de 2,5 a 12,5 cm, pois im-
pedirá que o texto ocupe uma largura maior que 16,5 cm na tela. Para isso,
sugerimos parágrafos de textos compostos por até 20 linhas, com umamedia
de 200 a 250 palavras, subdivididas em parágrafos com nomáximo 5 ou 6 lin-
has e cerca de 40 a 70 caracteres. Para ampliar ainda mais a legibilidade cada
parágrafo deve ser separado por espacejamento duplo e descrever uma ideia,
exceto quando o tema tratado justificar a junção de outros assuntos.
Na aplicação dos hipertextos virtuais como hiperlinks, devemos utilizar
os mesmos desenhos gráficos para todos que marcarem conexões para out-
ras páginas ou seções. O padrão gráfico soma ao hipertexto virtual os gráfi-
cos vetoriais, as cores e os mapas de conexões, que quando aplicados nos
modelos “breadcrumbs” e “abas” permitem ao leitor uma melhor usabili-
dade.
Para promovermos uma leitura eficiente em hipertextos virtuais torna-
se primordial a construção de interfaces que reduzam o esforço visual e cog-
nitivo do leitor, para, que possamos assim, estabelecer relações, levantar
hipóteses, adquirir novos conceitos e apresentar soluções às indagações que
Dra. Taciana de Lima Burgos/ A comunicação gráficana interface de hipermídia e seus atributos de usabilidade
150
surgirem diante de si.
2.1.1 As cores
A cor influencia na navegabilidade e na estética da página virtual, dev-
ido às suas qualidades comunicativas e sinestésicas. Seu uso está associado
a planos de fundo, aos gráficos vetoriais, aos ícones, aos hipertextos virtuais
e aos hiperlinks.
Como elemento comunicativo na interface de hipermídia a cor tem
como função realçar itens que devam atrair a atenção do leitor, indicar áreas
ativas ou já acessadas em hiperlinks e demarcar grupos temáticos. Farina
(2002) afirma que, para facilitar o emprego das cores, é imprescindível con-
hecer suas associações positivas e negativas, pois quando usada sem corre-
lação temática com o assunto tratado no leiaute, ou fora dos padrões de
marcação para hiperlinks, a cor pode gerar um sentido negativo ou distrair o
leitor. Essa importância é enfatizada também pela cor ser, depois da aplicação
do hipertexto virtual, o elementomais utilizado e o quemais gera conflito de
usabilidade, já que em muitas ocasiões a empiria e o gosto pessoal prevale-
cem em oposição ao uso dos atributos de usabilidade, e isso reduz a intera-
tividade com a interface, confunde significados, dispersa ou irrita o leitor.
De acordo com Parizotto (1997) a utilização de elementos cromáticos
em páginas de hipermídia deve evidenciar o significado de cada cor no seu
contexto cultural, comunicativo e funcional, assim como a sua relação de
equilíbrio e contraste em diferentes gradações. Assim, na relação entre hiper-
texto virtual e cor, devemos atentar para a utilização de nomáximo duas cores
nas famílias tipográficas, uma para o título e outra para o corpo do texto. Nas
interfaces com maior volume de hipertexto virtual, nas áreas de postagem
de arquivos, de preenchimento de formulários, nas seções de informações
ou instruções e de adição de login e senha, devemos aplicar parágrafos na
cor preta e reservar as cores quentes, como vermelho e amarelo, apenas para
os marcadores. A redução da incidência de brilho e contraste torna-se essen-
cial para evitar que o leitor fique ofuscado.
Já no leiaute, devemos evitar substituir a função de um elemento de
hipermídia por uma cor, por exemplo, aplicar um hiperlink somente adicio-
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 151
nando à cor a um hipertexto virtual sem a adição do gráfico vetorial, em
forma de linha, para sublinhá-lo e retângulo como botão. Nos hiperlinks, o
uso da cor está relacionada ao atributo de acessibilidade (aplicação do efeito
rollover, que corresponde a mudança cromática de um hiperlink ao ser aces-
sado: azul para amarcação de áreas ativas, que se torna vermelho ao primeiro
click do mouse e roxo para as já acessadas).
Para os planos de fundo, devemos utilizar cores neutras, como o cinza-
claro ou pérola que reduzem a incidência do brilho na interface. Em planos es-
curos, devemos aplicar hipertextos virtuais na cor verde para facilitar a
percepção dos demais conjuntos cromáticos, já que os tons escuros pro-
duzem a sensação de redução do tamanho da página, enquanto os claros in-
duzem a amplitude de superfícies. A cor ao ser reunida aos hipertextos e aos
elementos gráficos, como item de demarcação de áreas temáticas e boxes,
deve ser empregada em apenas um tom e seu conjunto de gradações. Para
essa mesma função devemos evitar o uso do azul ou a sua proximidade com
o vermelho, pois essa combinação gera fadiga para o leitor. Da forma con-
cordante, o uso de contrastes entre vermelho-verde, azul-amarelo, verde-
azul e vermelho-azul geram vibrações, ilusões de sombras e de imagens
sobrepostas.
2.1.2 Os ícones
Na interface de hipermídia o uso dos ícones não representa apenas um
adorno gráfico, mas a reunião de elementos verbais e não verbais como um
guia estético e funcional, já que um ícone pode representar um hiperlink, um
conceito, hierarquizar títulos ou seções e demarcar áreas temáticas. Utilizá-
los representa ultrapassar a limitação idiomática de um hipertexto virtual,
uma vez que o seu desenho ajuda a estabelecer outros elos semânticos. Eles
devem ser facilmente diferenciados entre si, estar adequadamente rotula-
dos, ser aplicados apenas com a função de recurso redundante à barra de
menu. Por representaremmetáforas domundo real é comum identificarmos
a sua utilização de ícones como uma opção para a redução da poluição visual
da página e para indicar objetos ou tarefas (DIAS, 2007).
O projeto de criação de ícones deve ser iniciado a partir da seleção dos
Dra. Taciana de Lima Burgos/ A comunicação gráficana interface de hipermídia e seus atributos de usabilidade
152
temas nos quais a página virtual abordará, para, em seguida, haver a seleção
de cores, gráficos vetoriais, imagens ou animações que representem esses
temas. De acordo com Robertson (1993), devemos projetar as ações de nave-
gação e ícones como substantivos para que seja mais fácil representá-los em
gráficos vetoriais, cores, imagens e animações de modo minimalista. Seu de-
senho deve utilizar signos comuns aos leitores da interface, ou seja, o ícone
deve ser associado a um objeto do mundo real, para assim facilitar o seu re-
conhecimento e a identificação da sua função.
Assim, os ícones em interfaces de hipermídia devem apresentar o
mesmo padrão de estilo gráfico e cromático, possuir aparência simplificada,
medir três centímetros de tamanho mínimo para garantir a sua legibilidade,
ser gráfico vetorial para se tornar mais leve que imagens e acompanhar mar-
cador ALT.
2.1.3 Os hiperlinks
Os hiperlinks são ligações entre hipertextos virtuais, de mesma corre-
lação semântica ou funcional, que são ativados por meio de um ponto ân-
cora/barra de menu (BURGOS TL, 2006). São elementos físicos e lógicos que
interligam os computadores em rede, com os endereços de páginas, pon-
teiros (vínculo ou link) de hipertexto ou palavras-chave destacadas em um
texto, que, quando clicadas, nos levam para o assunto desejado, mesmo que
este esteja em outro arquivo ou servidor.
Quando um hiperlink é selecionado o cursor do periférico de entrada
externo, popularmente conhecido como "mouse", muda seu formato de seta
para mão (hand hyperlink) e um salto é feito para o endereço associado à lig-
ação. Esse pode ser uma palavra, ícone, frase ou nó domesmo documento ou
de outro endereço de domínio, que traduz uma relação de elo temático entre
dois sítios virtuais. Além dessa associação, o hipertexto virtual como hiperlink
deve acompanhar marcações cromáticas, gráficos vetoriais e itálico, ou
negrito, para as ligações no corpo do texto.
Em relação ao tipo de ligação um hiperlink pode ser:
− Unidirecional: ligação de navegação linear que leva à passagem para
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 153
um único destino e /ou retorno ao ponto inicial de acesso. Como exemplo,
temos omodelo "migalhas de pão” ou “breadcrumbs” e o “avançar” e “retro-
ceder”.
− Bidirecional: indica a característica mais comum dos links hipertextu-
ais, pois permite ao leitor navegar de forma não linear nomesmo documento,
área de conteúdo ou nó.
Quanto aos seus tipos podemos classificar os hiperlinks como:
a) Grupo de palavras para um destino: hiperlink formado por um grupo
de palavras que leva a uma identificação semântica mais precisa entre o seu
conteúdo, origem e o destino da navegação, já que o leitor conta com o auxílio
de um conjunto de palavras que o descrevem. Exemplo: título dematéria jor-
nalística de um webjornal;
b) Âncora: hiperlink que abriga outras ligações internamente. Eles se
unem a partir de uma correlação temática direta entre dois oumais assuntos.
É um tipo de hiperlink elaborado, que exige um maior planejamento em sua
arquitetura, já que para o leitor identificar suas ligações internas deve
primeiro compreender o que se apresenta como âncora. Exemplo: menu de
uma seção dos portal de notícias;
c) Um link para múltiplos links: disponibiliza o acesso a vários conteú-
dos, subdivididos em seções temáticas ou em hiperlinks indexados. Exemplo:
área de login, menu de portal de comércio eletrônico;
d)Múltiplos links para um link: hiperlinks localizados em diferentes pági-
nas do sítio virtual que direcionam o leitor para um único ponto específico.
Exemplo: os hiperlinks dos produtos de um sítio de comércio eletrônico que
direcionam para página comprar;
e) Plurissemântico: corresponde a uma ou as várias palavras-chave dig-
itadas nos campos de busca. Elas ligam a outros hiperlinks, onde a correlação
temática depende da especificidade semântica da palavra digitada pelo leitor.
Exemplo: caixas de busca.
Outro recurso, que mencionamos aqui para facilitar a compreensão,
refere-se à utilização dosmarcadores ALT em cada hiperlink. Este recurso per-
mite que o leitor obtenha mais pistas sobre o conteúdo do respectivo hiper-
link, no momento em que aproxima o cursor do item desejado. Esse modelo
Dra. Taciana de Lima Burgos/ A comunicação gráficana interface de hipermídia e seus atributos de usabilidade
154
pode ser perfeitamente integrado a todos os hiperlinks das interfaces com-
erciais, noticiosas e dos ambientes virtuais de aprendizagem.
2.1 4 As animações, os sons e os vídeos
As animações assumem diferentes papéis em um interface de hipermí-
dia. Elas podem orientar a comunicabilidade ao indicar as áreas de naveg-
ação, ao destacar os infográficos, ao assinalar o início ou término de uma
seção ou ao acompanhar os hiperlinks .
A sua aplicação ganhou popularidade nas interfaces da Internet, na dé-
cada de 1990, com o software Macromedia Flash. Suas ferramentas facili-
taram o desenho de animações para barras demenu, hiperlinks, hipertextos,
gráficos e suas convergências com o som, mas por outro lado, o software
exigiu e exige que seus usuários tenham instalados em seus computadores
diferentes “plugins” para que seja possível a visualização das animações.
O uso de sons e vídeos também são componentes recentes nas inter-
faces virtuais, já que a tecnologia “streaming” facilitou o acesso aos conteú-
dos sonoros, permitindo assim que o som fosse reproduzido
simultaneamente com o seu download. Sem essa tecnologia era necessário
que o arquivo de áudio fosse inteiramente transferido para o computador do
leitor, para depois ser incorporado a um “player” e ouvido. Os podcasts tam-
bém auxiliaram na difusão e armazenamento dos arquivos de áudio e vídeo,
como em seus usos em diversas áreas e na educação.
O emprego de animações e de sons não envolve somente o seu sen-
tido e funcionalidade, pois no ambiente virtual a largura de banda disponível
impedirá ou facilitará a reprodução dos arquivos de áudio e de vídeo. O
mesmo sentido se aplica às interfaces off-line, na qual a velocidade de proces-
samento do computador e a qualidade dos hardwares de som e vídeo inter-
ferem na sua qualidade e reprodução.
As animações, os sons, e os vídeos devem estar diretamente relaciona-
dos ao conceito criativo e navegabilidade do sítio, já que o excesso desses
itens deve ser evitado para abstrairmos as distrações, irritações e demora no
carregamento da página.
Na interface de hipermídia a aplicação de animações obedece aos
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 155
seguintes atributos: não inserir animações semelhantes a anúncios; utilizar
barra carregamento progressiva, acompanhada de contagem numérica de
zero a cem para as páginas que exigem mais de dez segundos para o down-
load da sua barra de menu; fixar as animações de maior tamanho nas pági-
nas internas do sítio; utilizar versões de softwares anteriores as mais atuais
para garantir o acesso a “plugins” já popularizados; evitar animações inter-
mitentes, já que elas distraem e causammonotonia. As animações commais
de cinco segundos, devem ser reproduzidas apenas uma vez e a sua repetição
deve ser acionada em um hiperlink à parte. Quando elas integrarem mini sí-
tios, splash pages ou páginas iniciais da interface, devem ser aplicadas com
um hiperlink para a sua reprodução ou não. Logotipo, slogan ou o título prin-
cipal não devem ser animados (SAUCIER, 2000).
Ao observarmos a utilização do som nas interfaces de hipermídia iden-
tificamos que a sua aplicação, vai além do intercâmbio de arquivos demúsica
e, também se materializa nas veiculações das interações em tempo real vis-
tas em salas de bate-papo, videoconferências, podcasts, matérias jornalísti-
cas, catálogos de produtos on-line, e-books, jogos, efeitos de som conceituais
em interfaces, web rádios, web telefonia e tutoriais educacionais.
A aplicação de arquivos sonoros na Internet está associada ao uso de
“players”, comoWindowsMédia Player, Real Player, Quick Time Player, Itunes
e Winamp, e ao popular formato MP3. O MPEG-1/2 Audio Layer 3 ou MP3
que corresponde ao formato de compressão de áudio de alta densidade uti-
lizado com padrão na Internet. Seumétodo de compressão de áudio consiste
em retirar da vibração sonora todos os níveis de som que o ouvido humano
não consegue perceber, e desse modo o tamanho do arquivo de áudio é re-
duzido em torno de 90% do seu tamanho. Outros formatos de áudio podem
ser incorporados às interfaces, tais como: wav, .sam, .aif, .vox, .au, .smp, .mp1,
.mp2, .asf, .svx, .iff, .v8, .voc, .pat, .ivc, .snd, .sds, .sfr, .dig, e .sd. Estes pos-
suem qualidade de som distintas e podem ser reproduzidos em diferentes
“players” ou integrados a softwares, comoMacromedia Flash, Adobe Photo-
shop, Adobe Premiere e Adobe Director.
O uso de atributos de usabilidade é primordial para as aplicações sono-
ras, pois um arquivo de som, mesmo com curta duração, pode levar à dis-
Dra. Taciana de Lima Burgos/ A comunicação gráficana interface de hipermídia e seus atributos de usabilidade
156
tração, erros ou ao abandono da interface. Os atributos de usabilidade para
aplicação sonora em hipermídia descrevem: os sinais sonoros como mar-
cadore de erro, de ações de sistema, para solicitar permissões ao leitor, para
acompanhar e confirmar a digitação de senhas, para a realização ou finaliza-
ção de uma tarefa; para formalizar o início ou encerramento de softwares e
sistemas operacionais; para marcar a abertura, a maximização, a minimização
e o fechamento de janelas; para acompanhar o acionamento de hiperlinks, de
botões e de downloads. Sons agudos são para informar erros e alertas e os
graves para as demais ações (NIELSEN, 2003).
Para os sons aplicados como plano de fundo da interface, devemos adi-
cionar botões para que os leitores definam seus padrões de controle, inten-
sidade e gênero, tais como: a adição de botão para ligar e desligar o áudio,
aumento e redução de volume e para a seleção de diferentes gêneros musi-
cais.
As aplicações sonoras não devem integrar ferramentas de interação ou
de interatividade como os únicos elementos comunicativos, já que podem
ou não ser ouvidas, se o volume de saída estiver baixo, se os alto-falantes es-
tiverem desligados ou desinstalados, ou se houver poluição sonora no ambi-
ente. O som não direciona a atenção do cursista para um ponto específico da
tela, mas assume sua excelência quando acompanha a execução de ações
conjugadas entre teclado, mouse e áreas de login (ROBERTSON, 2003).
Na última década, o aumento do acesso via banda larga e a con-
vergência de câmeras de vídeo em aparelhos de telefonia celular con-
tribuíram para a criação e popularização dos sítios de compartilhamento de
vídeos. A tecnologia para a distribuição de arquivos de vídeo on-line, a
“stream”, está madura, mas as técnicas para a sua produção, edição e rotu-
lação de vídeos, específicos para os suportes web, ainda estão em processo
de desenvolvimento. Novas soluções tecnológicas procuram incluir o espec-
tador no processo de criação das peças de vídeo, o que gera novas possibili-
dades de interlocução com o conteúdo (NIELSEN, 2005).
Os atributos para o uso de vídeos envolvem: a adequação do vídeo ao
conceito veiculado na interface; a adição de recursos interativos para web-
cam; informações sobre o formato e o tamanho do arquivo antes do down-
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 157
load; criação e edição de conteúdo de vídeo com linguagem e técnicas ex-
clusivas para a sua publicação na web; “players” com controles de avanço e
regresso e que reproduzam arquivos com diversas codificações e resoluções.
O uso de vídeos na web está diretamente relacionado ao seu áudio, já
que aquele é reproduzido em telas pequenas, assim é importante que o áudio
explique a imagem veiculada por meio de legendas ou texto em sinopse.
Os vídeos produzidos para a Internet devem iniciar sua reprodução um
segundo depois do acionamento do botão play (tocar) e no caso do seu car-
regamento (buffer) deve ocorrer no início da exibição do vídeo. Para os vídeos
commais de cinco minutos de duração émais apropriado substituí-lo por se-
quências de imagens animadas (slide show) ou dividi-los em diversos seg-
mentos, com legendas, para identificar o assunto principal de cada sequência.
No tocante as suas tecnologias de composição visual o vídeo passa a
ter características peculiares que determinam o seu ritmo, enquadramento,
conceito e duração, tais como: pouca variação dos movimentos e mudanças
nos ângulos de câmera; máximo de cinco minutos de duração; uso do en-
quadramento em close-up com luz natural ou laterais suaves; ambiente si-
lencioso e uso de microfone externo; planos de fundo monocromáticos;
cortes secos com encadeamento dinâmico, commenos de cinco segundos, e
menor frequência de áudio, 11.025 KHz/8-bit mono, para reduzir o tamanho
dos arquivos. Devem ser evitadas imagens pixelizadas ou com outros meios
de compactação que interfiram na leitura (LYNCH; HORTON, 2002; AVILA,
2004; LINDSTROM, 1995).
2.1.5 As Imagens
As imagens compõem um dos elementos de maior destaque em uma
interface de hipermídia, isso graças às características do suporte web e de
sua instantânea comunicabilidade. Elas ampliam a usabilidade da interface,
em relação à concatenação semântica entre hipertextos, hiperlinks e ícones,
e a aplicação dos atributos de usabilidade auxilia em sua ergonomia.
Em relação à convenção dos seus formatos podemos empregar o
Graphic Interchance Format – GIF (ideal para publicação de fontes, gráficos e
imagens animadas, com no máximo 256 cores, e que preserva a sua
Dra. Taciana de Lima Burgos/ A comunicação gráficana interface de hipermídia e seus atributos de usabilidade
158
transparência quando em formato indexado), o Joint Photographic Experts
Group – JPEG (permite a alta compressão de imagens sem o comprometi-
mento de sua qualidade, mas é inadequada para gráficos, pois destaca ruídos
nas superfícies de tom contínuo ou chapado), o Portable Network Graphics
– PNG (maior gama de profundidade de cores, alta compressão e plano de
fundo de transparente) e o Tagged Image File Format – TIFF (formato flexível
para edição vetorial e em mapa de bits, escalas CMYK, RGB e LAB e cores in-
dexadas em gradação e transparência (MCCLURG-GENEVESE, 2005; NIELSEN
2007).
O número de imagens, seu tamanho e o seu posicionamento diante do
parágrafo de hipertexto determina sua concatenação semântica e o tempo de
carregamento da página. Assim, devemos evitar imagens de adorno, ou de
plano de fundo, e posicioná-las à esquerda dos parágrafos de hipertexto.
Manter o equilíbrio entre o contraste das imagens em primeiro plano e a cor
do leiaute gera profundidade, valoriza a informação mais importante e os
ícones que acompanham hipertextos virtuais (CARRION, 2008).
Para os leiautes que necessitam da publicação de um número elevado
de imagens devemos empregá-las como “thumbnails”, que sãominiaturas de
grupos de imagens. Elas devem possuir resolução entre 72dpi a 100dpi, ser
fixadas após a página inicial do sítio e quando acessadas permitir a sua visu-
alização na mesma página (MCCLURG-GENEVESE, 2005).
As imagens como ícones de um hiperlink devem ser acompanhadas por
marcadores ALT, e quando em “players” de vídeo ser descritas por legendas
ou sinopses.
2.1.6 Os Gráficos vetoriais e o Leiaute
Na interface de hipermídia os gráficos vetoriais demarcam a arquite-
tura da informação de todos os elementos que irão compor o leiaute. Eles
representam as formas geométricas (círculos, quadrados, polígonos, linhas
etc.) que são criadas a partir da união de pontos (nós) definidos por objetos
matemáticos, os quais são manipuláveis, enquanto forma gráfica, pelas Cur-
vas de Bézier.
Os leiautes compostos por gráficos vetoriais sãomais leves do que os de
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 159
mapa de bits, já que o código vetorial repete o padrão descrito em seus nós
e não armazena dados em pixel. Essa particularidade justifica a sua facilidade
de redimensionamento, pois é a resolução do monitor que determina o
número de pixels usados para a veiculação de um vetor. Sua função na inter-
face envolve a demarcação de áreas temáticas, de hipertextos, de hiperlinks
e a criação de ícones. A forma com que se organiza a informação em gráficos
vetoriais pode contribuir para a transmissão de uma mensagem ou deixar o
leitor confuso e sobrecarregado, como afirma Dondis (1997).
As formas gráficas possuem características específicas, e a cadauma se atribui uma grande quantidade de significados, algunspor associação, outros por vinculação arbitrária, e outros, ainda,através de nossas próprias percepções psicológicas e fisiológi-cas. Ao quadrado se associam enfado, honestidade, retidão, es-mero e masculino; ao triângulo, ação, conflito e tensão; aocírculo, infinitude, calidez, proteção e feminino. A partir de com-binações e variações infinitas dessas três formas básicas, deri-vamos todas as formas físicas da natureza e da imaginaçãohumana (DONDIS, 1997, p.63).
Dentre os gráficos vetoriais o ponto é a mais simples e mínima unidade
de comunicação visual. Na natureza esse é o elemento mais observado, ao
contrário da reta ou do quadrado, que constituem uma raridade. Quando uti-
lizados unicamente servem para marcar ou destacar itens, mas ao ser apli-
cado em continuidade a outro ponto dirige o olhar e podem gerar uma linha.
Já em grande número e justapostos criam a ilusão de tom ou de cor (DONDIS,
1997).
As linhas são consideradas pontos em movimento, que quando hori-
zontalizadas promovem a sensação de espaço e amplitude, sendo assim apli-
cadas entre os parágrafos de hipertexto ou em seções da interface para
organizar grande quantidade de conteúdo. De forma oposta estão as linhas
verticais, que diminuem e preenchem os espaços, sendo utilizadas nos planos
de fundo para gerar continuidade à barra de rolagem vertical em interfaces
commais de duas dobras. A junção das linhas horizontais e verticais gera uma
atmosfera rude ou inflexível (CARRION, 2008).
Na Internet, os formatos vetoriais mais comuns são: o SVG, padrão ve-
Dra. Taciana de Lima Burgos/ A comunicação gráficana interface de hipermídia e seus atributos de usabilidade
160
torial recomendado pela W3C, o CDR (Corel Draw), o EPS e o AI (Adobe Illus-
trator).
Por fim, apresentamos o leiaute. Ele representa o espaço no qual se
convergem os elementos de hipermídia em um determinado suporte. Se-
gundoMullet e Sano (1995) para organização e composição dos elementos vi-
suais em um leiaute de hipermídia, devem ser aplicados os seguintes
atributos:
a) Hierarquia da informação: disposição da informação baseada em sua
importância relativa com os outros elementos visuais. O resultado dessa re-
lação afeta todos os outros princípios de organização e composição de um
leiaute e determina que informação o leitor verá e que tarefa ele é encorajado
a realizar primeiro. Para utilizar este princípio, é importante, que se pense
em qual informação é mais importante para o leitor ou quais são as suas pri-
oridades em um sítio, como também qual o tipo de conteúdo ele deseja ou
é levado ver em primeiro, segundo e terceiro lugar.
b) Foco e ênfase: auxilia o designer na demarcação de itens prioritários.
Para determinar o foco devemos identificar a ideia central e o ponto focal do
sítio. Determina-se a ênfase escolhendo os elementos que devam ser proem-
inentes no foco, isolando-os de outros ou destacando-os.
c) Estrutura e equilíbrio: representa um dos atributos mais importantes
em um projeto visual, já que a ausência de uma arquitetura equilibrada leva
à falta de ordem e de legibilidade, além de comprometer todas as outras
partes do projeto visual.
d) Relação de elementos: a adição de um elemento visual estabelece
uma relação/conexão específica entre os sítios ou entre os itens que com-
põem o leiaute.
e) Unidade de integração: promove a navegabilidade e comunicabili-
dade entre os sítios ou os elementos de hipermídia, já que uma unidade in-
tegrativa leva à socialização de um mesmo conceito gráfico e funcional.
Como vimos, os atributos de usabilidade fundamentam a aplicação e
concatenação dos elementos de hipermídia em um leiaute gráfico, como são
fundamentais para as relações de interatividade e interação entre hipermídia,
suporte e leitor.
Comunicação, Linguagem e Inovações MidiáHcas 161
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A aplicação de atributos de usabilidade em uma interface de hipermí-
dia representa a evolução tecnológica e a convergência de mídias no leiaute
web, já que promove a ampliação do diálogo interativo entre os sujeitos e as
interfaces. Nesse sentido, buscamos mostrar nas linhas acima como se orga-
niza a comunicação gráfica em um leiaute de hipermídia, a partir de explici-
tação dos seus atributos de usabilidade, das características funcionais e
comunicativas específicas, quando aplicados isoladamente ou em conjunto.
Nessa relação, os atributos de usabilidade colaboram, na interface, para a fa-
cilidade de leitura, execução de tarefas, postagem de arquivos, comunicação
instantânea e navegação entre os conteúdos, que podem estar dispostos em
um ou diferentes suportes e propor diferentes usos e objetivos. Dessa forma,
torna-se imprescindível que tenhamos a ciência desses atributos, de como
concatená-los no leiaute gráfico das interfaces de hipermídia, para que assim,
possam selecionar e distribuir os conteúdos verbais e não verbais, demaneira
ergonômica, para diferentes fins comunicativos e educativos.
NOTA
1 -Mestre e doutora em Estudos da Linguagem, professora do Departamento
de Comunicação Social da UFRN.
REFERÊNCIA
ÁVILA, R. N. P. Streaming: crie sua própria “Rádio” web e TV digital, São
Paulo: Editora Brasport, 2004.
BURGOS, T.L.O hipertexto eletrônico demeio ambiente na sala de aula: prá-
ticas de navegação e estratégias de leitura. Dissertação deMestrado, UFRN:
inédito, 2006.
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