Considerações sobre memória, silêncio e esquecimento
Recordo-o [...] com uma escura flor-da-paixão na mão, vendo-o como ninguém o
viu, embora o avistasse do crepúsculo do dia até o da noite, toda uma vida. Recordo-
o, o rosto taciturno, indiático e singularmente distante, por trás do cigarro. Recordo
(creio) suas mãos afiladas de trançador. Recordo perto dessas mãos um chimarrão,
com as armas da Banda Oriental; recordo na janela da casa uma esteira amarela,
com uma vaga paisagem lacustre. Recordo claramente sua voz; a voz pausada,
ressentida e nasal do antigo homem dos subúrbios, sem os silvos italianos de agora.
Mais de três vezes não o vi.
(Personagem narrador, sobre suas lembranças acerca de Funes)
Mais recordações tenho eu sozinho que as que tiveram todos os homens desde que o
mundo é mundo. [...] Meus sonhos são como a vigília de vocês. [...] Minha
memória, senhor, é como despejadouro de lixos. 1
(Irineu Funes, sobre sua falta de capacidade de esquecer)
Refletir sobre o esquecimento, sobre o tipo de esquecimento que necessariamente
articula-se com as categorias tempo e memória, esquecimento que pode vir a ser produzido
pelo silenciamento que, nesses casos, está ligado aos silêncios que possuem seus sentidos
carregados de ideologia e historicidade, pode, por diversos caminhos, fazer-nos lembrar de
Funes, o memorioso, o complexo personagem de um dos contos do argentino Jorge Luis
Borges.
Talvez um olhar sobre Funes, o homem que percebia tudo e não conseguia
esquecer-se de nada, de nenhum detalhe daquilo que vivenciava, possa nos auxiliar a iniciar o
percurso do complexo caminho que nos leve a refletir sobre os elementos acima elencados.
Talvez o Funes de Borges, ao ser agenciado em certos momentos de nossas discussões, possa
nos ajudar a pensar sobre alguns dos elementos componentes das experiências sobre memória,
lembrança e esquecimento, advindos não apenas das análises oferecidas por estudos
especializados, mas também, do senso comum.
O que pretendemos nesse ensaio é refletir sobre a produção dos esquecimentos, e
sobre a necessidade de sua existência em nosso mundo. Partiremos dos esquecimentos que
1 BORGES, Jorge Luis. Funes o Memorioso. In: ________. Ficções. Porto Alegre: Globo, 1969.
podem nascer nas memórias individuais para que reflitamos, em seguida, sobre a produção
coletiva de memória e esquecimento nos e para os grupos sociais.
Para cumprir tal tarefa, percorreremos caminhos heterogêneos, porém, não
dissonantes, na medida em que discutiremos o esquecimento, primeiramente, a partir de sua
articulação elementar com uma fenomenologia da memória, em seguida, pelas formas de
silêncio detectadas a partir dos preceitos da análise de discurso para, enfim, refletirmos sobre
as relações entre literatura e esquecimento2, ou melhor, sobre as narrativas literárias e seu
potencial de, ao circularem e serem consumidas, auxiliarem na produção/manutenção de
memórias compostas tanto por enunciações quanto por silenciamentos3.
Como essa discussão deve auxiliar, mais adiante, a pensarmos a questão dos
esquecimentos acerca das cidades sertanejas enquanto componentes constituintes e
significantes da própria noção de sertão, nosso foco principal não estará voltado para todos os
tipos de esquecimento, mas, para aqueles advindos dos silenciamentos socialmente e
politicamente produzidos pelos discursos circulantes – chegaremos a eles. Mas, comecemos
por um primeiro olhar sobre a história de Funes.
***
Rapaz de dezenove anos, morador da pequena cidade de Fray Bentos no Uruguai
oitocentista, Irineu Funes, protagonista do conto concluído por Borges em 1942, nos é
apresentado desde o início como figura excêntrica, conhecida por não dar-se bem com
ninguém e por saber as horas sem precisar consultar um relógio. Após sofrer uma queda de
cavalo que supostamente lhe provocou um trauma singular, o rapaz ficou paralítico, porém,
teve a motricidade perdida compensada por uma “sobrenatural” potencialização de suas
capacidades de percepção e memorização. Após o acidente, Funes passou a ser capaz de
2 No presente trabalho, apresentado como requisito da disciplina Seminário de Tese, apenas a discussão do
esquecimento a partir da fenomenologia da memória será apresentada. Por questões de cronograma e número
de páginas definidas para o presente trabalho, as discussões sobre o esquecimento pela análise de discurso e
pelas narrativas literárias serão apresentadas na ocasião da conclusão do primeiro capítulo desta Tese. Os
tópicos referidos nessa introdução de capítulo estão descritos em detalhes no sumário apresentado no final
desse trabalho. 3 A noção de silenciamento como esquecimento produzido pelos sentidos que os silêncios imputam aos
discursos será detalhadamente discutida no tópico 1.2. deste capítulo.
perceber e memorizar tudo à sua volta. Não apenas o presente passou a ser percebido e
registrado em sua memória com uma riqueza ímpar de detalhes, como o seu passado, desde o
nascimento, emergiu de modo a poder ser rememorado e classificado com uma exatidão
cronológica incrível. O Funes construído por Borges era capaz, por exemplo, de comparar o
formato das nuvens que viu na manhã de trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois, com
“os veios de um livro encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas da espuma
que um remo levantou no Rio Negro na véspera da batalha do Quebracho”4. Ele também era
capaz de reconstituir em pensamento um dia inteiro, segundo a segundo, mesmo que para isso
fosse preciso utilizar o tempo de outro dia inteiro. Essas lembranças não eram apenas
imagéticas: “eram carregadas de sensações térmicas, musculares, etc”5.
Ocorre, no entanto, que o estado de rememoração constante vivido por Funes
colocava-o no paradoxo de viver para não pensar, apenas lembrar e lembrar. A capacidade de
lembrar-se de tudo, sem nenhuma perda de detalhes, sem a possibilidade de nenhum tipo de
“negociação” da memória entre o que precisava ser lembrado e o que deveria ser esquecido
para, talvez, poder ser relembrado em momento propício, fazia com que o dom de lembrar-se
de tudo sempre, se convertesse num tipo de imobilidade tão rara e inusitada quanto o seu
dom. Essa imobilidade consistiria muito mais na falta de capacidade de deixar de lembrar, de
esquecer, do que necessariamente em sua condição de paralítico. Sua habilidade de perceber
tudo, de registrar tudo, interferiria inclusive na capacidade de pensar ou de refletir
criticamente certos elementos à sua volta. O próprio autor do conto, que se coloca como
personagem e narrador em primeira pessoa, relata sua suspeita de que o protagonista, que
havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim, não fosse, contudo,
muito capaz de pensar6.
Talvez como forma de criar um contraponto narrativo às excepcionais habilidades
de Funes, o “personagem narrador”, faz questão de realçar aspectos de sua própria memória
que, ao contrário daquela que encontramos no protagonista, é comum, convencional, falível,
capaz de vivenciar, esquecer e rememorar.
De maneira provavelmente intencional, o narrador do conto utiliza-se
recorrentemente de tempos verbais tais como “recordo-me” ou “lembro-me”, como quem
4 Borges, Jorge Luis. Op. Cit., p. 55. 5 Ibid., p. 55. 6 Ibid., p. 57.
necessite reafirmar-se, demarcando constantemente os momentos em que esforça-se para alçar
mão do recurso de rememorar, ou seja, de reativar suas memórias pela reconstrução de suas
lembranças. A partir de argumentações do tipo “minha primeira lembrança sobre Funes é
muito perspícua”, ou de expressões como “recordo (creio)”, o narrador coloca em questão a
sua própria capacidade de lembrar as coisas com exatidão ao mesmo tempo em que contrapõe
o que seriam as operações de memória de alguém “comum” com aquelas encontradas em
Funes.
Na condição de pessoa convencional, comum, o narrador nos permite perceber,
ainda que não explicitamente, que suas memórias operam a partir de jogos que giram entre o
lembrar e o esquecer, a partir da seleção, consciente ou não, daquilo que deve ser elencado,
organizado e enunciado para compor lembranças, e aquilo que pode ou deve ser silenciado.
Assim como ocorre não apenas com as memórias individuais, mas também, com aquelas que
se constituem coletivamente, as memórias do personagem narrador são construídas e
apresentadas a partir de seleções que envolvem algumas enunciações e muitos silenciamentos:
“Lembro-me da bombacha, das alpargatas, lembro-me do cigarro no duro rosto, contra o
nuvarrão já sem limites”.
Borges também nos lembra (sem trocadilhos) de que as nossas memórias podem
ser (re)ativadas pelas memórias de terceiros, ou ainda, que as enunciações baseadas nas
memórias de outrem podem auxiliar na produção das nossas imagens de memória: “sou tão
distraído que o diálogo que acabo de contar não me teria chamado a atenção se não o
houvesse repetido meu primo [...]”.
A contraposição das formas de memórias dos dois personagens acima citados nos
permite pensar, ainda que metaforicamente, na relação entre os mecanismos de
funcionamento das memórias individuais ou coletivas das pessoas e grupos sociais (aqui
representadas pelas lembranças do narrador) e os arquivos documentais (presentes,
simbolicamente, metaforicamente, na maneira sistemática e organizada com a qual Funes
registra os acontecimentos do passado para poder consultá-los quando desejar). Nesse
sentido, Funes poderia ser uma grande metáfora à obsessão moderna por salvaguardar as
memórias a partir do recurso de arquivar, registrar, organizar e escrever sobre as experiências
humanas, produzindo formato às memórias e esquecimentos em disputa, a partir aquilo que
Michel Pollak chamaria de “moldura” ou “enquadramento” 7.
O nosso “Funes-arquivo”, talvez por sua condição extremamente singular de
existência no mundo, parece rejeitar qualquer função para o ato de esquecer. Ele, sentindo-se
preenchido, quase completo, por suas percepções e operações de reconstituição de suas
experiências, ensimesmava-se e exaltava o não esquecimento, maravilhando-se com ele,
embora reconhecendo a sua excepcionalidade e sua “quase” impossibilidade. Assim como
podemos encontrar em algumas concepções advindas do senso comum – falaremos mais
adiante sobre isso – Funes considerava o esquecimento uma perda, uma derrota pela qual não
precisaria mais passar. Ele reclamava que antes do acidente, quando era uma “pessoa
comum”, “havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de
tudo, de quase tudo”8.
Nossa principal intenção em elencar aqui alguns dos ricos elementos desse conto
de Jorge Luis Borges, reside na pretensão de, antes mesmo que comecemos qualquer
problematização baseada em preceitos teóricos mais formais, levarmos o leitor a uma primeira
reflexão – a ser desenvolvida nas páginas que se seguem – acerca dos elementos memória,
silêncio, lembrança e esquecimento. Mesmo que ainda não tenhamos começado a construir
argumentações mais aprofundadas sobre o funcionamento desses elementos e suas respectivas
importâncias para a existência humana, é possível que o leitor seja tocado por certo
estranhamento (ou até, maravilhamento) quando posto diante das inusitadas habilidades de
Funes. Ao mesmo tempo, essa breve reflexão inicial nos permite um olhar sobre a forma
“normal”, “convencional”, que caracteriza as maneiras de vivenciar, esquecer-se e lembrar-se
do personagem narrador. É possível que o leitor sinta-se provocado a, desde já, refletir acerca
de como nos identificaríamos com as formas de memória e esquecimento apresentadas por
essa breve discussão introdutória. A partir desse ponto, dessas provocações, gostaríamos de
convidar o leitor a nos acompanhar na busca por respostas a indagações que consideramos
essenciais para o desenvolvimento desse trabalho. Indagações tais como: em quais medidas o
esquecimento torna-se necessário à dinâmica das operações de memória das pessoas e grupos
sociais? Como e por que o esquecimento se produz?
7 POLLAK. Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: vol. 2, n. 3, 1989, p. 13. 8 Borges, Jorge Luis. Op. Cit., p. 55.
Talvez o próprio Funes nos forneça uma primeira pista a essas questões ao afirmar
que sua memória é como um “despejadouro de lixo”, retendo de uma só vez tudo o que
poderia ser lembrado ou esquecido, selecionado, silenciado ou descartado. Desse ponto em
diante, pedimos licença para prosseguirmos por caminhos mais bem embasados, que nos
ajudem a discutir o esquecimento em suas relações com a memória e com as diversas formas
de silêncio.
1.1. Memórias e esquecimentos
Saber esquecer! É antes uma sorte do que uma arte. [...] A
memória não é apenas rebelde porquê nos deixa na mão
quando mais precisamos dela, mas também é insensata, pois
chega correndo quando não é hora.
(Baltazar Gracián, moralista espanhol – 1601 – 1685)
Paul Ricoeur, no livro A memória, a história e o esquecimento9 oferece-nos
discussões que culminam no esquecimento como elemento-chave para que se estabeleçam
compreensões acerca das relações entre a memória e a história. A partir de profundas análises
que colocam em diálogo várias filosofias (Platão, Aristóteles, Agostinho, Husserl, Bergson),
Ricoeur constrói pressupostos para uma fenomenologia da memória, ao mesmo tempo em que
nos apresenta uma densa epistemologia da história. É a partir de análises acerca das relações
dialógicas entre história, memória e esquecimento que o autor nos oferece reflexões sobre
como esses elementos constituem-se indispensáveis na dinâmica de vida dos indivíduos e dos
grupos sociais.
As análises de Ricoeur culminam na possibilidade de se relacionar as noções de
esquecimento e perdão naquilo que resultaria o que ele denomina uma memória apaziguada.
Considera-se esse apaziguamento pela possibilidade existencial de uma “memória feliz”,
constituída a partir de uma vitória da fenomenologia da “memória normal” sobre as
“patologias da memória”. Essa perspectiva, que desenvolveremos mais detalhadamente nas
próximas páginas, coloca o esquecimento em relação dialógica com a memória e com a
história. Antes, porém, sugerimos percorrermos o caminho proposto pelo autor para a
9 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas SP: Editora UNICAMP, 2007.
compreensão dos mecanismos e elementos constituintes das noções de esquecimento e
memória.
Primeiramente faz-se pertinente compreendermos que, pelo senso comum, o
esquecimento costuma ser tomado, majoritariamente, por seus sentidos negativos. O
esquecimento seria como um dano (fraqueza, lacuna) à confiabilidade da memória. A
memória, nessa perspectiva, seria confundida com a própria capacidade de rememoração
(“fulano possui boa memória”) e, nesse caso, se definiria como luta contra o esquecimento.
Paradoxalmente, o mesmo senso comum tende a afastar a ideia de uma “memória total”, que
não se esqueceria de nada, análoga àquela representada pela figura de Funes e, nesse caso,
tida como monstruosa, perturbadora, anormal. A memória seria, então, constituída por
negociações cabíveis com o esquecimento, mas, nesse ponto, vale perguntar: haveria medida
entre o que deve ser esquecido e o que pode ser lembrado? Levemos em conta ainda, que,
como escreveu Harald Weinrich em seu criterioso Lete10 (analisaremos em detalhes essa obra
nos próximos tópicos), parte do problema nos usos e concepções que se fazem da noção de
memória estaria na polissemia da palavra esquecimento. A solução seria a elaboração de uma
análise baseada em grau e profundidade do esquecimento. Prossigamos...
O estudo realizado pela perspectiva da profundidade do esquecimento faz-se,
primeiramente, a partir da noção de rastros de memória. Desde o início de sua análise,
Ricoeur propõe trabalhar com três tipos de rastros: o escrito, do campo da historiografia, do
rastro documental; o psíquico, impresso na memória sob a forma de imagens de memórias,
representações acerca do evento marcante, rastro mnemônico; o cortical, cerebral, tratado
pelas neurociências, rastro mnésico. A problemática do esquecimento de Ricoeur se dá pela
justaposição entre as formas psíquica e cortical dos rastros e, para tanto, o autor trabalha com
a polaridade existente entre três formas de esquecimento: o apagamento de rastros, o
esquecimento de reserva e, derivado deste último, o esquecimento manifesto.
Apagar, passar a borracha, passar a esponja, deletar. Essas seriam, segundo
Weinrich, metáforas modernas para o tipo de esquecimento que se daria de forma
irremediável, irreversível, irrecuperável11. Mas, em que medida os rastros de memória podem
ser apagados sob essa forma tão radical?
10 WEINRICH, Harald. Lete: Arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2001. 11 Ibid., p. 23.
Ricoeur argumenta que, pelas ciências neuronais, o esquecimento e os rastros
mnésicos são evocados nas proximidades das disfunções que levam a pensar os tipos de
apagamento residentes na fronteira incerta entre o normal e o patológico.
Ainda assim, o autor nos adverte que o ato de “lembrar” pode ser analisado por
duas abordagens distintas: a primeira cognitiva, que buscaria representar fielmente o passado;
a outra, pragmática, ligada às operações, exercícios e usos da memória. Buscar compreender
o esquecimento convida à releitura das duas problemáticas pela perspectiva dos níveis de
profundidade aos quais o esquecimento é submetido.
Do ponto de vista cognitivo, o esquecimento se dá como fator que desafia a
memória pela capacidade de lembrar. Nesse momento entra na discussão a noção de que a
memória opera pela impressão de imagens-representação do passado, produzidas enquanto
este ainda era presente e estava sendo vivido no campo da ação. Essas representações não
desafiariam a memória apenas por suas presenças ou ausências plenas e contínuas,
definitivas, mas, pela perspectiva do seu distanciamento. Uma primeira noção de
esquecimento a ser desenvolvida, portanto, sugere que, o que foi esquecido, não lembrado,
pode ocorrer não necessariamente pelo apagamento total da representação, mas pelo
distanciamento que possibilita, no momento certo, sua reativação, ou, “o relembrar”, aquilo
que Ricoeur chama de “milagre da memória feliz”.
Enquanto filósofo, Ricoeur confronta a ciência dos rastros mnésicos, a neurologia,
com a fenomenologia da memória, balizada pela dialética da presença, da ausência e do
distanciamento, ou ainda, da representação presente do passado ausente. O autor argumenta,
porém, que, diante da heterogeneidade verificável entre os trabalhos do neurologista e do
filósofo, não se deva transformar dualismo de referências em um dualismo de substâncias, ou
seja, as visões das neurociências e da filosofia não se excluem, aliás, elas se complementam.
O nível cortical (aonde se situa o campo das neurociências), que coloca o cérebro
como um órgão funcional, de ação, serve de parâmetro ao filósofo que trabalha acima deste,
“na ordem das ciências (neuro)cognitivas, da psicologia do comportamento, da etnologia, da
psicologia social, transpondo (alegremente) o passo entre o rastro cortical e o rastro
cultural”12. Como as neurociências estudam o cérebro em seus elementos funcionais, seus
12 RICOEUR, Paul. Op. Cit., p. 425.
estudos contribuem para a compreensão, majoritariamente, nos casos das disfunções do
órgão.
Seguindo pelos passos das neurociências e de seu campo basicamente circunscrito
à ação, ao funcionamento dos órgãos biológicos e às suas disfunções e patologias, Ricoeur
elaborou uma taxonomia da memória funcional, onde se pôde concluir que a noção de rastro
de memória só existe, de maneira presente e perceptível, na forma de signo que simboliza um
referente passado, ou seja, a noção de rastro, em relação ao tempo corrido, se opera de forma
semiótica.
Nesse sentido, as metáforas da borracha que “apaga”, da esponja que “limpa”, da
lousa ou da tábula de cera, que armazenam informações de formas efêmeras, não resolvem a
questão da função mnemônica do esquecer e do lembrar. Esta só se resolve pela relação da
representação com o tempo, pela dialética da presença, ausência, distância. Apenas o
discurso sobre o mental explica isso. Nesse sentido as neurociências só explicam aquilo que
faz com que as pessoas pensem, seus mecanismos e funcionamentos, o que não é tudo.
Embora disfunções e distorções da memória existam e não devam ser
desprezadas, o esquecimento não ocorre a partir desse campo13. O esquecimento estaria
associado muito mais às estratégias da memória ou àquilo que Weinrich chama de ‘ars
oblivionis’14. O esquecimento estaria tão estreitamente confundido com a memória que
poderia ser considerado uma de suas condições. Essa estreita relação explicaria o silêncio das
neurociências em relação ao que poderia ser chamado de “esquecimentos comuns”.
Se retornarmos por mais um momento à fábula de Funes, poderíamos, por
analogia, propor que a condição excepcional do protagonista, dadas, inclusive, as
circunstâncias em que se efetivaram, estariam muito mais próximas das disfunções e
patologias da memória do que daquilo que Ricoeur chama de memória comum. O caso de
Funes seria, nesse contexto, composto por uma condição anormal, patológica, inversa àquela
da amnésia definitiva ou do apagamento total de rastro (primeira forma de esquecimento
analisada por Ricoeur). A memória comum, aquela que efetiva jogos de negociações entre o
13 Nessa perspectiva a noção de apagamento contrapõe-se à de esquecimento na medida em que a primeira designaria o tipo específico de esquecimento que promove a preda definitiva do rastro, enquanto a segunda, refere-se ao esquecimento pelo rastro distante, latente, mas passível de retornar como lembrança. 14 Expressão latina que se refere às artes do esquecimento em oposição às ars memoriae (artes da memória ou mnemotécnicas). Segundo Weinrich, uma arte da memória “significa um objeto de saber sujeito a regras e por isso mesmo bom de aprender, de uma certa complexidade, que pede considerável esforço e paciência para ser aprendido” .WEINRICH, Harald. Op. Cit., p. 30.
lembrar e o esquecer, não pelo apagamento definitivo mas pelo distanciamento circunstancial
do rastro, estaria muito mais próxima das memórias perceptíveis no personagem narrador do
conto. Essa memória comum é primordial para a compreensão da segunda forma de
esquecimento proposta por Ricoeur.
Efetivamente, para o presente trabalho, a forma de esquecimento mais importante
a ser discutida e compreendida, para que possa ser operada junto às fontes nas
problematizações que se seguirão, é aquela que Ricoeur denomina esquecimento por
persistência de rastros, aquilo que nos levaria à noção de esquecimento de reserva. Essa
forma de esquecimento não está ligada aos outros dois tipos “externos” de rastro, o cortical e
o arquivo, ou seja, o biológico e o institucional, historiográfico, mas sim, ao terceiro tipo, o
psicológico, cognitivo, simbioticamente perpassado pelas operações de registro e persistência
de imagens dos acontecimentos que deixaram marcas afetivas permanentes, não no cérebro
enquanto órgão funcional, mas, “no espírito” 15.
Ricoeur toma como base os estudos do filósofo Henri Bergson, apresentados na
obra Matéria e memória, para discutir os esquecimentos de reserva a partir de quatro
pressupostos:
o princípio básico dos mecanismos de memória é a sobrevivência e a tentativa do não
apagamento do rastro;
os obstáculos à recordação existem e são verificáveis, portanto, entendê-los auxilia a
compreender os processos que envolvem o esquecer e o recordar;
não há contradição entre os rastros corticais e os existenciais;
e, por fim; o esquecimento de reserva é fruto da sobrevivência de imagens e essas
fazem parte da chave para a compreensão do esquecimento.
Se voltarmos àquilo que, linhas atrás, denominamos de “milagre da memória
feliz” poderemos finalmente discutir os jogos entre memória e esquecimento que resultam no
esquecimento de reserva. Para Ricoeur, o reconhecimento é o principal elemento de
experiência a balizar a hipótese da sobrevivência da lembrança. Esse reconhecimento pode,
15 RICOEUR, Paul. Op. Cit., p. 436.
também, apoiar-se num suporte material ou figurado, como uma foto ou um poema, na
medida em que esse induza ao reconhecimento da coisa representada em sua ausência.
A resposta ao “enigma do reconhecimento” está na justaposição entre uma
imagem que agora se apresente, no campo da ação – que só se manifesta no presente – e
aquela produzida no passado, em uma primeira impressão na memória. O reconhecimento
ocorre por essa justaposição. Mesmo que esse reconhecimento se dê de forma equivocada
(aquele que reconheço por me fazer lembrar, não corresponde exatamente ao referente
primeiro), ainda assim ele produz o “lembrar”. Ora, “se uma lembrança volta, é porquê eu a
perdera; mas se, apesar disso, eu a reencontro e a reconheço, é que sua imagem
sobrevivera.”16
Uma imagem me acode ao espírito; e digo em meu coração: é ele sim, é ela
sim. Reconheço-o, reconheço-a. Esse reconhecimento pode assumir
diferentes formas. Ele já se produz no decorrer da percepção: um ser esteve
presente uma vez; ausentou-se; voltou. Aparecer, desaparecer, reaparecer.
Nesse caso, o reconhecimento ajusta — ajunta — o reaparecer ao aparecer
por meio do desaparecer. (RICOEUR, 2008, p. 437.)
Reconhecimento e sobrevivência, não são apenas os dois pilares centrais da obra
Matéria e memória, de Bergson, mas também, servem como base para a problemática do
esquecimento de reserva de Ricoeur. É preciso que sempre levemos em conta que o cérebro é
um órgão de ação, enquanto a memória, um elemento de representação. O reconhecimento
ocorre pela combinação desses dois modelos de memória. Haveria, portanto duas
modalidades de reconhecimento imbrincadas: a primeira, pela ação e a segunda pelo espírito,
que busca no passado as melhores imagens que se ajustem ao presente.
Se colocarmos o mecanismo do esquecimento de reserva – do esquecer-se e do
lembrar-se – no formato de cadeia explicativa, podemos chegar ao seguinte resultado:
reconhecer uma lembrança é reencontrá-la; reencontrá-la é presumi-la acessível, até
disponível (esperando a recordação), mas não ao alcance das mãos; se não está ao alcance
das mãos é porque a impressão primeira foi colocada em estado de latência; essa latência
indica a sobrevivência da imagem que, ao retornar, pelo reconhecimento, pela justaposição
com uma imagem da ação presente, configura-se como lembrança.
16 Ibid., p. 438.
Se tentarmos explicar essa operação por outro formato argumentativo, podemos
dizer que o rastro cortical registra, por ação do cérebro (ação vivida), a imagem presente que,
imediatamente, se torna passado. Essa imagem, inconsciente e impotente, precisa ser
contraposta com seus referentes significantes no presente para poder tornar-se recordação. O
estado de latência, a sobrevivência, ocorre no entreposto entre a ação vivida junto aos
registros corticais e a justaposição significante de imagens (presente-passado) que reverte o
estado de latência pela produção do reconhecimento (lembrança).
Restar-nos-ia, sobre o esquecimento de reserva, indagar sobre os critérios da
memória no tocante a como e o quão profundo as imagens devem ser guardadas. Bergson
afirma que o cérebro contribui para recordar aquilo que ele denomina “lembrança útil” e
para afastar provisoriamente todas as outras. Ricoeur diz que “o esquecimento designa o
caráter despercebido da perseverança da lembrança, sua subtração à vigilância da
consciência”17. Ambas as afirmações se complementam.
A noção de esquecimento de reserva até aqui discutida nos serve de base para
pensarmos algumas modalidades de esquecimentos reveladas pela prática conjunta entre este
e a memória. Ricoeur analisa essas modalidades a partir do que considera os usos e abusos
da memória e do esquecimento. Para isso, o autor propõe uma tipologia do esquecimento
manifesto, formulada a partir de três modalidades perpassadas por esses usos e abusos:
a relação entre o esquecimento e a memória impedida;
o esquecimento e a memória manipulada;
e, por último, o esquecimento comandado: a anistia.
Nesse momento torna-se importante colocarmos em pauta outro conceito até aqui
não explorado diretamente por Ricoeur: as memórias coletivas. Vale-nos a noção de que,
assim como as memórias individuais constituem-se, dinamicamente, pelas tensões e jogos
entre o que deve ser esquecido e lembrado, essas mesmas memórias, ao serem enunciadas e
compartilhadas com membros da família, da comunidade, do grupo social ao qual se faça
parte, auxiliam em sua constituição identitária a partir da identificação conjunta de elementos
que conferem aos sujeitos envolvidos no processo, a noção de pertencimento.
17 RICOEUR, Paul. Op. Cit., p. 448.
No campo coletivo, a memória é aquilo que o grupo “se lembra” conjuntamente,
tendo-se ou não vivenciado individualmente e diretamente cada acontecimento. Mas também
é aquilo que, por complexos processos e diversas naturezas de motivação, o grupo silenciou e
relegou ao esquecimento em nome de sua própria sobrevivência. Assim, as memórias
individuais apoiam-se umas nas outras formando uma rede de enunciações e silenciamentos,
lembranças e esquecimentos reconhecíveis como necessários à manutenção da identidade e
da integridade do grupo.
Num jogo de escalas, uma vez que somos seres sociais, podemos afirmar que as
memórias coletivas são formadas e são formadoras das memórias individuais. Ora, tanto
quanto as memórias individuais, as memórias dos grupos sociais são constituídas a partir de
relações necessárias (ou até abusivas) com o esquecimento. Ocorre que no campo coletivo,
mais até do que no individual, o entendimento das relações entre memória e esquecimento
deve dar-se pelo imbrincado e complexo jogo entre esses dois campos e a história. Ricoeur
argumenta e adverte:
De um lado, as anotações sobre o esquecimento constituem, em grande
parte, um simples anverso daquelas que dizem respeito à memória; lembrar-
se é, em grande parte, não esquecer. De outro lado, as manifestações
individuais do esquecimento estão inextricavelmente misturadas em suas
formas coletivas, a ponto de as experiências mais perturbadoras do
esquecimento, como a obsessão, somente desenvolverem seus efeitos mais
maléficos na escala das memórias coletivas. (RICOEUR, 2008, p. 45)
Em Memória, História, silêncio, Michael Pollak nos oferece importantes
problematizações voltadas às compreensões das memórias coletivas. Tomando como ponto de
partida trabalhos oitocentistas de Maurice Halbwachs e Durkheim, Pollack ressalta a
importância de elementos tais como monumentos, estilos arquitetônicos, paisagens, narrativas
construídas acerca de personagens históricos, em seus papéis de constituição e manutenção de
memórias que “ao definir o que é comum a um grupo e o que, o diferencia dos outros,
fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras socioculturais”18.
Halbwachs defendia que, longe de ser necessariamente uma forma de dominação ou de
violência simbólica, a memória coletiva comum desempenharia a positiva função de “reforçar
18 POLLAK, Michael. Op. Cit., p. 03.
a coesão social, não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo”19. Ainda segundo
Halbwachs, Pollak argumenta:
Em vários momentos, Maurice Halbwachs insinua não apenas a seletividade
de toda memória, mas também um processo de "negociação" para conciliar
memória coletiva e memórias individuais: "Para que nossa memória se
beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam seus testemunhos: é
preciso também que ela não tenha deixado de concordar com suas memórias
e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para que a
lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base
comum." (POLLAK, 1997, 1-2)
Interessado nos processos e atores que intervém no trabalho de formação e
constituição das memórias coletivas, Pollak utilizou-se da História Oral para produzir uma
análise das memórias dos excluídos, dos marginalizados, das minorias. Essa tomada de
perspectiva permitiu que o autor detectasse e tipificasse a ocorrência daquilo que ele
denomina memórias subterrâneas, operadas em oposição às “memórias oficiais”. Em
argumentação que pode ser reforçada com a noção de esquecimento de reserva até aqui
discutido por nós, Pollak questiona a visão “apaziguadora” de formação de memórias
coletivas de Halbwachs, defendendo que as memórias subterrâneas produzem seu trabalho de
manutenção subversiva no silêncio e de maneira quase imperceptível, porém, afloram em
sobressaltos bruscos e exacerbados, nos momentos de crise20.
Ampliando a brecha em direção a fenômenos atribuíveis ao grande alcance do
plano da memória coletiva e suas relações com a história, Ricoeur discute, pela via da
psicanálise, os usos e abusos tributados às relações entre o esquecimento e as memórias
impedidas. Por essa denominação o autor designa aqueles mecanismos de memórias que se
produzem inconscientemente a partir de situações que levem ao esquecimento de reserva, ao
retorno do que foi esquecido e à sua prelaboração21. Baseando-se em trabalhos de Freud22,
Ricoeur conclui que, a exemplo do que ocorreria com as memórias subterrâneas apresentadas
19 Ibid., p. 03. 20 POLLAK, Michael. Op. Cit., p. 03. 21 O termo prelaboração, desenvolvido por Freud e amplamente utilizado pela literatura ligada à psicanálise, pode ser definido como uma forma rememoração ou recapitulação que implica em revisões e reelaborações que ajustem o passado ao presente, levando-se em conta as relações com as perdas e demais sentimentos relacionados ao que se está rememorando. 22 Ricoeur analisa os trabalhos de Freud: “Rememoração, repetição, perlaboração”, “Luto e melancolia” e “Psicologia da vida cotidiana”.
por Pollak, nos casos de situações crise, situações traumáticas (individuais ou coletivas), o
trauma permanece na memória, mesmo quando tornado inacessível por um processo de
esquecimento de reserva, portanto, em momentos que se façam propícios, porções inteiras do
passado, esquecidas e reputadas, podem voltar. Esse retorno acontece a partir de processos de
prelaboração, onde o rememorar não se dá sem o trabalho de luto “pelo qual nos
desprendemos dos objetos perdidos, do amor e do ódio”23 enquanto reelaboramos as
lembranças, ajustando-as ao presente.
Seriam exemplos de memórias impedidas, casos como os de substituição de
nomes esquecidos e substituídos por outros, capazes de preencher o vazio e o incômodo
causado pela incapacidade de rememoração correta, também, os casos das lembranças
encobridoras, que criam, por exemplo, com certa confiança, noções de realidade a partir das
interposições entre nossas lembranças infantis e as narrativas que delas fizemos (ou fizeram
por nós), ou ainda, os casos de esquecimentos de projetos, onde inconscientemente deixamos
de lembrar algo que de fato nos caiba naquele momento, em detrimento de outros fatores e
elementos que se façam necessários serem lembrados por hora24. A evocação a tais tipos de
esquecimentos, alinhados às intenções inconscientes, leva-nos à reflexão sobre a vida
cotidiana nos grupos sociais. Segundo Ricoeur, “esquecimentos, lembranças encobridoras,
atos falhos assumem na memória coletiva, proporções gigantescas, que apenas a história, e
mais precisamente, a história das memórias é capaz de trazer à luz” 25.
Mas é na modalidade que Ricoeur denomina como memória manipulada que a
história terá seu papel mais contundente e intrinsecamente ligado ao esquecimento. Num nível
horizontal, distribuído entre um polo de passividade e outro de atividade, a memória
manipulada articula a memória e o esquecimento com as identidades e com a manipulação
ideológica das memórias. Nessa modalidade os abusos da memória são, de saída, abusos do
esquecimento, só possíveis devido à função mediadora das narrativas.
Vale-nos a noção de que, assim como a memória não pode lembrar-se de tudo, a
narrativa não pode narrar tudo. A ideologização das memórias só é possível pela mediação
das narrativas que, por abuso ou, antes, por uso, é essencialmente seletiva. Os elementos em
23 RICOEUR, Paul. Op. Cit., p. 453. 24 RICOEUR, Paul. Op. Cit., p. 454. 25 Ibid., p. 455.
jogo aqui seriam: memória, narratividade, testemunho e representação figurada do passado
histórico. Ricoeur argumenta:
As estratégias do esquecimento enxertam-se diretamente nesse trabalho de
configuração: pode-se sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando
as ênfases, refigurando diferentemente os protagonistas da ação assim como
os contornos dela. Para quem atravessou todas as camadas de configuração e
refiguração da narrativa desde a constituição da identidade pessoal até as
identidades comunitárias que estruturam nossos vínculos de pertencimento, o
perigo maior, no fim do percurso, está no manejo da história autorizada,
imposta, celebrada, comemorada – da história oficial. (RICOEUR, 2008, p.
455.)
Impostas por meio da intimidação ou da sedução, sempre com a cumplicidade dos
atores envolvidos, a composição de narrativas canônicas utiliza-se do esquecimento como
recurso fruto do silenciamento (aquilo que, como discutiremos mais adiante, Eni Orlandi
designa por silêncio político26). A natureza seletiva da narrativa faz com que memórias sejam
constituídas, paulatinamente, a partir de acordos entre o lembrar e o esquecer, que recordam e
enunciam certos acontecimentos e contextos em detrimento muitos outros que serão
silenciados e cairão no esquecimento. O que Ricoeur chama de esquecimento de fuga, por
exemplo, seria a expressão de um esquecimento por estratégia de “evitação” motivada pela
vontade ou necessidade de não informar, de um querer-não-saber (ou que se saiba).
Podemos encontrar nos estudos de Pollak, casos que servem como exemplo de
constituição de memórias a partir negociações com o esquecimento e da mediação das
narrativas. Um caso significativo dessas “memórias em disputa” pode ser verificado no
processo de reescrita da história promovida pela dinâmica de destalinização russa,
principalmente durante o período da Glasnost e da Perestroika, a partir da emergência de
memórias subterrâneas que, por força do contexto coercitivo do Estado Stalinista e seus
efeitos posteriores, encontravam-se silenciadas por mais de cinquenta anos. Segundo Pollak o
contexto de abertura vivido pelos soviéticos gerou um movimento intelectual imbuído de
reabilitar alguns dissidentes atuais e outros, já falecidos, dirigentes nos anos de 1930 e 1940,
todos alegadamente vítimas do terror estalinista.
26 ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP: Editora Unicamp. 2007. 6ª ed. p. 29.
A possibilidade de reativação de memórias há muito distanciadas pelos
mecanismos de esquecimento de reserva, resultou em um amplo movimento popular que,
além de promover um paulatino processo de revisão da “história oficial”, organizou-se em
torno do projeto de construção de um monumento em memória das vítimas do período
estalinista. Segundo esse emblemático caso, Pollak acrescenta:
Essa memória “proibida” e portanto “clandestina” ocupa toda a cena
cultural, o setor editorial, os meios de comunicação, o cinema e a pintura,
comprovando, caso seja necessário, o fosso que separa de fato a sociedade
civil e a ideologia oficial de um partido e de um Estado que pretende a
dominação hegemônica. (POLLAK, 1997, p. 3-4)
A memória manipulada, mediada pelo processo de construção de narrativas,
articula-se ainda com a terceira modalidade de uso e abuso elencada por Ricoeur: o
esquecimento comandado, que teria como maior expoente a questão da anistia. Essa
modalidade designa abusos da memória, no sentido da memória imposta, obrigada,
comandada. Se tomarmos como exemplo desse tipo de uso os pactos de anistia passíveis de
serem analisados ao longo do tempo, concluiremos que esse é um tipo radical de pacto de
esquecimento mútuo onde ambos os lados envolvidos em um conflito, são postos a esquecer
dos acontecimentos traumáticos a fim de trazerem à tona apenas as lembranças que levem à
formação de um imaginário positivo de futuro e paz. As dores e as mágoas dos conflitos, ao
serem silenciadas, deverão ser esquecidas, guardadas nas profundezas da memória de reserva
para, talvez, emergirem num momento oportuno. Quem quebra a anistia pode ser considerado
um contraventor da paz. Essa seria a “ambição de fazer calar o não-esquecimento da
memória”.27
Ocorre que a anistia que deveria produzir amnésia social, não a produz de fato.
Imposta pelo Estado, ela desloca as lembranças traumáticas para as memórias subterrâneas
que tem sua manutenção nas memórias familiares e comunitárias. Dessa forma a anistia teria
sentido, apenas, como terapia social emergencial, sob o signo da utilidade em um dado
momento.
Um elemento, porém, o silêncio, necessita a partir desse momento adentrar em
nossas análises a fim de que possamos estender o escopo das compreensões sobre o
27 RICOEUR, Paul. Op. Cit., p. 461.
esquecimento à literatura e à produção de discursos que esta pode ajudar a consolidar.
Prossigamos, portanto, por outros caminhos...
1.2. A literatura, o discurso e o esquecimento, produzidos pelo não-dito
Bem distante desses, numa torrente lenta e quieta, Lete
o rio do esquecimento corre seu labirinto de águas, do
qual quem bebe imediatamente esquece seu antigo
estado de ser, esquece alegria e dor, prazer e
sofrimento.
(John Milton – Polemista – Paraíso Perdido – 1667)
Iniciemos esse ponto de nossa discussão a partir de um caso contemporâneo,
relativamente recente.
Em 2010, Araquém Alcântara, renomado fotógrafo pertencente à National
Geographic Society, lançou um livro cuja proposta seria mostrar, a partir da combinação entre
imagens fotográficas e legendas em texto escrito, aquilo o que seria “o verdadeiro sertão”
brasileiro, o sertão clássico, o sertão tantas vezes representado pela literatura do século XX 28.
As noventa belíssimas fotos em preto e branco publicadas em seu livro, foram
cuidadosamente escolhidas pelo fotógrafo que, em matérias jornalísticas decorrentes do
lançamento da obra, afirmou terem sido produzidas ao longo de dois anos de planejamentos e
andanças pelas terras sertanejas. As fotos do belo livro embrincam-se aos textos das legendas
que as acompanham e parecem buscar demonstrar não apenas os elementos ligados ao
ambiente natural do sertão, mas, principalmente, sua gente, seus modos de ser e de viver, a
partir das práticas sociais definidoras de uma “identidade sertaneja”.
Alcântara declara ter escolhido andar “somente por estradas de terras, em busca
dos vestígios de um mundo perdido no tempo”29. Também explicitou sua intenção em
transformar em imagens “ a aridez tantas vezes cantada por Guimarães Rosa, Euclides da
Cunha, Graciliano Ramos, Ariano Suassuna e João Cabral de Melo Neto”30. No texto de
divulgação da obra, o autor ainda nos explica:
28 ALCÂNTARA, Araquém. Sertão sem fim. São Paulo: Editora terra Brasil, 2010. 176 p. 29 Dados fornecidos por revista eletrônica local, disponível em: < www.portalimprensa.com.br/noticias/pontodevista/40207/ > Acesso em: 15 abr 2017. 30 Idem.
"Escolhi mapear o sertão como espaço geográfico o mais desabitado
possível, a partir do norte de Minas e depois os interiores de Sergipe,
Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte, Bahia e Ceará,
lugares que não estão no mapa, esquecidos pela civilização, mais que ainda
mantém uma natureza primordial e intocada. No livro está o sertão de terra
dura, ocre, agreste, banhado pelo sol escaldante, de estradas empoeiradas,
lajedos e pedras calcinadas... Pobreza, fome, seca, fadiga, o amor e o sangue,
a possessão das terras, as lutas pelas cabras e carneiros, a vida e a morte,
tudo que é elementar no homem está presente nesta terra perdida"
Na citação acima, a argumentação inicia-se acertadamente pela conjugação verbal
“escolhi” e busca legitimar as escolhas do autor através de expressões como “o mais
desabitado possível”, ou ainda, por adjetivações tais como “terra perdida”, terra formada por
um ambiente de sol escaldante, de estradas empoeiradas, lajedos e pedras calcinadas, pobreza,
fome, seca, fadiga, vida e morte. Essas escolhas evocam velhas tradições constituídas
historicamente e consolidadas a partir de visibilidades e dizibilidades que ajudaram a
cristalizar um imaginário hegemônico acerca do que seria o sertão.
Evocando essas velhas tradições, a partir de escolhas que buscam, inclusive, a
produção e/ou a manutenção de uma “estética sertaneja”, as imagens apresentadas nas páginas
do livro de Alcântara foram registradas em equipamento análogo ao utilizado há mais de 40
anos: “uma câmera Leica, totalmente manual, três lentes e incontáveis rolos de filme Tri-X
Pan, um clássico em p&b da Kodak”31.
Nas fotos podem ser contemplados lindos campos de caatinga com sua vegetação
única e sua secura peculiar. Também estão representados vaqueiros encourados campeando o
gado na caatinga, moradias solitárias tão esparsas que parecem estar longe de tudo e de todos,
gente de fé, rezando em altares domésticos, currais onde o gado é ajuntado e ferrado.
O que não existe entre as imagens do lindo livro, produzido, lembremos, nesse
início de século XXI, são cidades. Dentre as fotos não estão representadas imagens urbanas,
nenhuma prática social ligada às urbes do sertão, mesmo que elas existam e possuam
relevância na vida e na história de muitos dos sertanejos. Essa ausência, esse silêncio, não são
mero acaso.
Podemos constatar e afirmar que o “esquecimento” das cidades como
componentes do ambiente sertanejo, é fruto de um processo de silenciamento desenvolvido
31 Dados fornecidos por revista eletrônica local, disponível em: <
www.portalimprensa.com.br/noticias/pontodevista/40207/ > Acesso em: 15 abr 2017.
socialmente e historicamente. Silenciamento que, ao longo de décadas, esteve tão presente na
literatura em prosa ou verso, na música, nas artes plásticas, no cinema, entre outras formas de
expressão e arte, que contribuíram com a consolidação de um imaginário hegemônico acerca
de um sertão, onde as cidades não constituem-se como instância espacial importante para
representá-lo. Guardemos, por ora, o caso do livro de Araquém Alcântara, para que possamos
retomá-lo mais adiante...
***
Interessa-nos uma forma específica de esquecimento: aquela na qual este se
produz e se efetiva a partir do silenciamento, ou melhor dizendo, a partir do conjunto de
disputas discursivas que, em determinado tempo histórico, “põem em silêncio” determinados
elementos em detrimento de outros, que disciplinam esse silêncio a partir daquilo que é
narrado. Interessa-nos, portanto, o esquecimento que se consubstancia a partir do não-dito.
Interessa-nos entender como o esquecimento negocia com as memórias e como
essas negociações conferem sentidos aos silêncios em variados momentos da história do
homem.
Interessa-nos, principalmente, discutir acerca de como a literatura, ao circular e
ser consumida, ao sobreviver a vários tempos e ser ressignificada a partir desses tempos,
consegue ajudar a dar vida a esses silêncios e, consequentemente, consolidar seus
esquecimentos.
Ao buscar construir uma história cultural do esquecimento, Halard Weinrich nos
auxilia em parte da nossa busca, na medida em que nos oferece rica e criteriosa discussão
acerca daquilo o que significaria o esquecimento em diversas produções literárias, concebidas
em variados tempos da história do Ocidente.
O Lete é o elemento mais recorrente em suas reflexões e, de certa forma, o fio
condutor das discussões apresentadas por esse autor. Na mitologia grega, Lete é o nome de
um rio do submundo, uma torrente mítico-poética que confere esquecimento às almas dos
mortos. O esquecimento estaria aqui simbolicamente mergulhado no fluir do elemento
“líquido” das águas desse rio que permite aos mortos esquecerem-se de suas duras
lembranças, que seriam “liquidadas” como forma de renovarem suas almas.
Mas, partindo dos sentidos conferidos ao Lete pelos antigos gregos, verifica-se
que este rio mítico foi elencado muitas outras vezes ao longo da história da literatura
ocidental, por obras que buscaram discutir o esquecimento a partir dos contextos
sociohistoricos aos quais seus autores estiveram ligados. A percepção das ressignificações
construídas para este elemento literário ao longo dos tempos nos permite trabalhar com uma
conclusão já bastante conhecida, porém, crucial para a pesquisa ora em curso: a literatura,
assim como outras formas de expressão humana, não poderia constituir-se senão a partir das
demandas sociais de seu tempo histórico.
O Lete é, por exemplo, representado na Divina Comédia (Aliguieri, 1304-1321)
em, pelo menos, dois momentos importantes dessa epopeia poética pré-renascentista.
Primeiramente, quando Dante está sendo conduzido ao “funil infernal” por Virgílio, o poeta –
que precisará lembrar-se de tudo, não esquecer-se de nada de sua jornada, a fim de contá-la
aos viventes após seu retorno – queixa-se por ainda não ter visto o Lete. Usando-se mais de
silêncios do que de explicitações, Virgílio argumenta a Dante que ele ainda verá o rio do
esquecimento, porém, isso só acontecerá no momento propício. Muito posteriormente Dante
encontra-se com o Lete e este situa-se na saída do Purgatório, porta de entrada para os belos
campos do Paraíso.
Uma vez que as águas do rio do esquecimento possuem a propriedade de apagar
as lembranças dos pecados cometidos em vida, no Inferno e no Purgatório de Dante não faria
sentido que as almas fossem presenteadas com esse esquecimento. Já os que conseguem
chagar ao Paraíso bebem das águas do Lete, mas também do Eunoë (boa memória), rio gêmeo
cujas águas funcionam como antídoto para o esquecimento, apenas para as lembranças das
boas ações na vida terrena e para que as almas entrem no céu com todos os bons sentidos.
Para esses, merecedores, somente os pecados, as angústias, as agonias, são esquecidos.
Por um lado, apenas em um dado lugar da narrativa (topos) é permitido ao leitor
da Divina Comédia perceber que Dante não poderia, antes do “momento propício” ter contato
com o Lete, não somente por este se fazer presente apenas aos que merecem o esquecimento
reconfortante do Paraíso, mas, também, porque Dante é na Comédia aquele que representa a
memória em si, aquele que deve lembrar-se do que viu para poder contar. Por outro lado,
Virgílio ao ser indagado acerca do Lete, opta pelo silêncio quando poderia explicar ao
visitante os motivos da ausência desse rio. Esse silêncio perpassado pelo jogo de palavras
serve para enunciar aquilo que ganha sentido a partir do que não será dito.
Vale nesse caso dedicarmos algum espaço à relação entre o dito e o não-dito,
entre o enunciado e o silêncio, a partir de noções fornecidas pelos estudos de Eni Orlandi,
onde se argumenta que as palavras combinadas na composição de narrativas estão repletas de
silêncio.
Orlandi nos apresenta que na literatura em prosa ou em verso, assim como ocorre
no cinema ou na música, entre outras artes, os silêncios são tão fundamentais quanto o que se
escolhe dizer. Ao se decidir narrar algo a partir da enunciação de determinados elementos,
incontáveis outros elementos são silenciados. As intencionalidades imbrincadas nessas
escolhas carregam de sentidos tanto o que é dito quanto o que se escolheu definir pelo não-
dito.
Em qualquer narrativa que se apresente, o silêncio não é um “complemento da
linguagem”, não é tampouco aquilo que está “implícito”, muito menos é “um nada”, “um
vazio”. O silêncio é o “elemento fundante”, aquele que já existe quando se escolhem palavras
para formar uma narrativa. Nessa perspectiva, oriunda dos preceitos da análise de discurso32,
o homem teria criado a linguagem a fim de reter e disciplinar o silêncio, por si só carregado
de sentidos, uma vez que este sempre está inserido em um contexto sociohistorico.
Podemos afirmar que as palavras em uma narrativa são perpassadas por silêncio.
O silêncio pode não falar, mas ele significa. Ele só pode ser observável a partir das fissuras e
rupturas em relação de sentidos entre o que é dito e a história.
Assim, o silêncio é justamente o elemento que dá movimento aos sentidos que as
palavras buscam estabilizar. O jogo de palavras que compõe o que é narrado confere sentido
não apenas àquilo que é enunciado, mas, principalmente, a tudo o que decidiu-se por não
enunciar, por se manter em silêncio (lembram-se das cidades que Araquem de Alcântara
escolheu silenciar em suas fotos?). É assim que o silenciado e o explicitado fazem sentido e
compõe, ambos, facetas indissociáveis das narrativas que se convertem em discurso.
O discurso por sua vez, carregado de palavras e silêncios, não se dá pelo
significado das palavras em si (caso assim fosse, o silêncio que perpassa as palavras seria um
nada). Sob a perspectiva da análise de discurso este se consubstancia pelo jogo de palavras,
pelos sentidos metafóricos desse jogo e pelas imagens que ele pode produzir. O discurso se
32 Orlandi baseia-se na perspectiva de análise de discurso produzida pela Escola Francesa a partir das teorizações de Pêcheux, que trata o discurso como constructo e lugar de contato entre a língua e a ideologia.
opera pela relação entre o real, o imaginário e o simbólico, conferindo materialidade aos
sentidos produzidos por essa relação.
Na análise de discurso, o real, o imaginário e o simbólico dão-se em um campo
específico: em relação à ideologia e à determinação histórica. Nesse caso talvez seja
importante lembrar que, como já vimos anteriormente, na psicanálise isso se dá em relação ao
inconsciente. Nessa perspectiva, o discurso não é a narrativa em sí, mas, o processo de
produção de efeitos de sentidos que só é possível ocorrer entre interlocutores. Já a formação
de sentidos entre interlocutores é necessariamente regulada a partir do momento
sociohistórico que esses vivenciam.
Voltando ao exemplo do esquecimento representado na Divina Comédia, notemos
que na relação entre o Lete, que faz esquecer, e o Eunoë, que devolve as lembranças boas,
aquelas que não torturam, que não incomodam, podemos encontrar o esquecimento sendo
representado como prêmio àqueles que merecem entrar no paraíso. Metaforicamente, esse
prêmio não se dá por um esquecimento qualquer, aleatório, mas sim, pelo resultado de
negociações com a memória que, de forma um tanto análoga às relações entre esquecer e
lembrar discutidas no tópico anterior, promovem o esquecimento em detrimento daquilo que
precisa ser lembrado.
Passariam-se séculos desde a publicação da obra-prima de Dante Alighieri, para
que Freud nos apresentasse o esquecimento como algo que não se opera por “apagamento”33,
mas sim, sendo direcionado ao inconsciente, aonde aquilo que foi “guardado” continuaria
agindo sem que se perceba. Freud nos lembra que aquilo que foi esquecido a partir da
experiência traumática, do “inconsciente penoso”, pode ser reativado, inclusive na forma de
sonho ou ato falho.
Muito antes dos estudos de Freud ou Bergson as relações entre o lembrar e o
esquecer já eram representadas pela literatura. É o que se pode verificar, só para citar mais um
exemplo, em Dom Quixote, obra-prima de Cervantes.
Segundo as análises de Weinrich, na obra de Cervantes os jogos entre o
esquecimento e a memória dão-se na composição e na relação estabelecida entre seus dois
principais personagens: Dom Quixote, o cavaleiro melancólico, alto, magro, “seco”, montado
33 WEINRICH, Harald. Op. Cit., p.187.
em um cavalo e Sancho Pança, seu fiel escudeiro, baixo, gordo, “úmido”, viajando sobre um
burro34.
Dom Quixote seria por definição o cavaleiro do esquecimento. Melancólico e
dotado de grande intelecto, o cavaleiro da Mancha seria capaz de espantosas ações mentais,
não por fazer uso da memória, mas sim, de uma transbordante fantasia que o habilitava aos
mais fantásticos feitos, justamente por sua capacidade de esquecer-se dos duros elementos
que compõe a realidade.
Se para os padrões da época a melancolia poderia levar a um temperamento
delirante e fantasioso, típico de quem esquece-se da realidade, Quixote teria esse
temperamento potencializado pela “droga” que seria o excesso de leituras de cavalaria.
Quixote representa o esquecimento na medida em que, ao enfiar-se na leitura fantasiosa,
“ressecou” seu cérebro e esqueceu-se deliberadamente do mundo, tornando real e “material”,
toda a fantasia na qual mergulhava. A genialidade de Quixote dar-se-ia pela “loucura” que o
esquecimento pernite e pela forma como a lacuna do esquecimento abre espaço para a
imaginação, mesmo que ao problematizarmos a natureza dessa “loucura” possamos perceber
representadas no enredo algumas das formas como a literatura possui o poder de construir
realidades junto aos seus leitores (materialidade do discurso).
Sancho Pança, camponês simples, “simplório inteligente”, fleumático, é dotado de
pouco intelecto, porém, está igualmente protegido dos delírios que podem levar à loucura.
Pança assemelha-se ao animal que cavalga, segundo concepções da época – resistente, pouco
inteligente mas dotado de ótima memória. Pança é na obra de Cervantes o homem da
memória, aquele que conduz-se irreflexivamente pelas tradições dos provérbios populares que
memorizou: “sei mais refrões do que um livro e vem tantos juntos à minha boca quando falo
que brigam por sair uns com os outros. Mas a língua vai lançando fora os primeiros que
encontra, ainda que não sejam exatos.”35
34 Segundo Weinrich, Cervantes é influenciado pelas noções aristotélicas acerca daquilo que seria o engenho humano e sua relação com os conceitos de memória e lembrança. Até os detalhes fisionônicos dos personagens de Cervantes seguem arquétipos que definem Dom Quixote como melancólico e Sancho Pança como Fleumático. O temperamento melancólico de Quixote é determinado, segundo preceitos pós-aristotélicos do século XIV, por certa mistura de sucos corporais (humores) que dominariam sua intelectualidade e imaginação, configurando o personagem a partir da magreza, da secura (corporal e cerebral). Já Sancho Pança é determinado, a partir dos mesmos conceitos da época, por seu físico redondo, seu cérebro úmido, características que remetiam à ideia de pouco intelecto e boa memória. 35 WEINRICH, Harald. Op. Cit., p. 79.
Se os jogos da memória entre o lembrar e o esquecer, tanto no âmbito individual
quanto no coletivo, podem ser problematizados quando pensados a partir dos silêncios,
incluindo-se aqueles que compõe as narrativas literárias, podemos afirmar que algumas
formas específicas de silêncio estariam mais próximas da produção de esquecimento. Esse é o
caso da forma de silêncio que Orlandi denominou de silenciamento, ou para usar outra
expressão, silêncio político.36
Algumas demandas sociais, em determinadas épocas, evocaram e evocam
silêncios aptos a provocar certa “amnésia social”, capaz de consolidar realidades tidas como
necessárias pela maioria dos sujeitos envolvidos nessa produção. É esse o caso do tipo de
esquecimento produzido pelos processos de anistia, onde se determina que os antigos eventos
traumáticos, as ofensas e desavenças sejam silenciadas por todas as partes envolvidas a fim de
que se alcance certo equilíbrio evocado em nome da “paz”. A operação proposta nesses casos
consiste em pôr em silêncio aquilo que se pretende que, com o tempo, caia no esquecimento.
Seria esse o tipo de silenciamento encontrado em Luiz XVIII quando, em 1814, no contexto
da Restauração, promete “unidade e esquecimento” na Constituição do mesmo ano: “Todas as
pesquisas por opiniões e posições de antes da restauração são proibidas. O mesmo
esquecimento é recomendado aos tribunais e aos cidadãos”37.
Se retomarmos o caso abordado no início desse tópico, poderemos perceber que
as operações de produção de esquecimentos que vemos nos silenciamentos políticos
adequam-se ao caso contemporâneo das cidades não enunciadas nas fotos do artista que
escolhe, politicamente, (re)construir “seu” sertão a partir de elementos – já tradicionais – que
para ter a visibilidade adequada, pretendida, deverão ser enunciados em detrimento do
silenciamento das cidades sertanejas. Nesse jogo de escolhas o que é enunciado e o que é
silenciado estão igualmente carregados de sentidos e materialidade discursiva.
Dizendo de outra forma, podemos afirmar que através de mecanismos análogos
aos ora discutidos, mesmo que acionados por motivações diferentes daquelas que vemos nos
casos de anistias ou censuras, o silenciamento deliberado, politicamente ajustado ao não-dizer
que precisa auxiliar na constituição de uma dada noção de realidade, pode ser constatado na
forma como, a partir de um longo processo, historicamente verificável, os sertões do atual
Nordeste brasileiro tiveram as suas cidades silenciadas em detrimento daquilo que já há
36 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit., p. 29. 37 WEINRICH, Harald. Op. Cit., p. 137.
bastante tempo, vem se cristalizando a partir da visibilidade dada àquilo que se escolheu
definir como o “verdadeiro sertão”.
Levemos em conta que muitas cidades situadas nos sertões da atual região
Nordeste, tem suas histórias relacionadas aos processos de implantação das grandes fazendas
ligadas ao ciclo do gado. Esse processo de formação e consolidação sociocultural do sertão da
pecuária, que tornou-se efetivamente forte a partir das primeiras décadas do século XVIII,
permitiu que as grandes fazendas de gado e todo um conjunto de práticas sociais existentes
em torno delas, dessem origem a vilas que ascenderam, com o tempo, à condição de cidades.
Cidades como Patos, Teixeira, Santa Luzia, Princesa Isabel, no alto sertão
paraibano, ou ainda, Caicó, Currais Novos, Jardins de Piranhas, Serra Negra do Norte, na
região sertaneja do Seridó norte-rio-grandense, pertencem a um elenco bastante numeroso de
cidades nascidas a partir da ordem social que se desenvolveu em decorrência da pecuária
sertaneja.
Nas primeiras décadas do século XX boa parte dessas cidades já estava bem
consolidadas enquanto tal. A cidade de Patos, por exemplo, originou-se de uma sesmaria,
próxima ao leito do rio Espinharas, concedida no final do século XVIII à família dos Oliveira
Ledo. João Pereira de Oliveira fundou ali os currais que se tornariam a Fazenda Patos (nome
dado em referência à Lagoa dos Patos que ficava próxima aos currais). No início do séc. XIX
as várias fazendas que coexistiam na região do Espinharas, orbitando em torno da Fazenda
Patos, contribuíram para a formação do Povoado dos Patos que, entre março de 1830 e maio
de 1833, desmembrou-se do município de Pombal, tornando-se assim a Imperial Vila dos
Patos. Segundo dados fornecidos pela prefeitura da cidade, na última década do século XIX,
Patos contava com 800 habitantes e 138 prédios urbanos. Já em 1950, segundo o Censo
Nacional realizado nesse ano, o número de habitantes da cidade contabilizava 49.540 almas38.
Atualmente a cidade de Patos compõe uma espacialidade relevante na vida social, política,
econômica e cultural de toda a região que a orbita.
Um segundo exemplo pode ser encontrado na cidade de Caicó, no Rio Grande do
Norte, que nas primeiras décadas do século XX, destacava-se por seu grau de
desenvolvimento diferenciado em relação aos seus municípios vizinhos, fato que, aliado ao
conjunto de memórias enunciadas, tradições e identidades construídas ao redor de sua
38 Dados fornecidos por revista eletrônica local, disponível em:< www.patosemrevista.com/histórico.html>. Acesso em: 01 out 2014.
existência, fazia com que essa fosse e ainda seja considerada a “capital” da região sertaneja do
Seridó.
Ocorre, porém, que, se por um lado essas e outras cidades foram fruto de
processos históricos intimamente ligados à formação do sertão da pecuária, por outro, esses
mesmos processos contribuíram com o desenvolvimento e com o estabelecimento de outras
instâncias espaciais componentes desse mesmo sertão. Essas espacialidades concorreram com
as cidades em termos de potencial de representatividade para a composição daquilo que
deveria ser tomado como sertão. Expliquemos: além do espaço do município, o sertão da
pecuária agregou em sua composição, espaços significativos, do ponto de vista sociocultural,
tais como, os campos abertos da caatinga e a própria fazenda da qual diversos municípios se
originaram.
Esses espaços constituíram-se historicamente, ganharam importância e
visibilidade devidos não apenas às práticas sociais que neles se estabeleciam, mas também,
aos poderes que passaram, em decorrência dessas práticas, a existir e travar no e para o
espaço sertanejo suas relações, concorrências e disputas.
A fazenda configurar-se-ia em local aonde ocorriam as apartações de boi e os
rituais de vaquejada. Lugar que, nesses momentos, agregava sertanejos de todas as esferas
sociais. Esse espaço representava simbolicamente o poder econômico dos poderosos
proprietários de terras, mas também, servia ao papel de “ajuntar” gente sertaneja, em torno de
práticas como ritos religiosos e festas típicas.
Já a caatinga, constituiu-se socialmente e culturalmente como espaço de
passagem, errância, privação e provação, onde a natureza austera e os sentidos simbólicos a
ela atribuídos legitimavam os valores de resistência, coragem e fé de seus habitantes, muito
embora, também, esse tenha se constituído como espaço de beleza e fartura, de paisagens
bucólicas, de convivências em torno da expectativa pela chegada do inverno, da chuva. Esse
era tido e representado como espaço de gente honesta, comida simples, porém, farta, espaço
repleto de histórias que eram cantadas por violeiros e cantadores que enalteciam os valores da
sua terra.
Ao longo de sua formação histórica, o espaço sertanejo, suas instâncias espaciais e
seus principais tipos sociais têm sido recorrentemente agenciados por representações advindas
de diversas vertentes de produção cultural, capazes de auxiliar na construção ou atualização
do sertão enquanto espaço socialmente e culturalmente constituído.
Tipos sociais que se converteram em tipos literários, tais como, o retirante, o
coronel fazendeiro, o vaqueiro, o romeiro ou o beato messiânico, o cangaceiro, fazem parte do
elenco de representações sertanejas circulantes a partir da música, dos filmes, das produções
fotográficas, dos romances em prosa, dos versos populares, que se consubstanciavam em
cantorias, modas de viola, repentes e, principalmente, em poemas que ao serem, a partir do
final do século XIX, materializados em suporte de papel, passaram a compor a literatura de
cordel brasileira.
Desde pelo menos a segunda metade do século XIX, perpassando todo o século
XX e esse início de XXI, a grande maioria das narrativas que buscam representar o sertão
como uma espacialidade dotada de características, homogeneizadas – “sertão”, assim, no
singular – tenderam a silenciar as cidades. Há muitas décadas, ao ser representado, o sertão
vem sendo imageticamente reformulado a partir de cenas que, majoritariamente, reconstroem
acontecimentos nos campos de caatinga ou nas grandes fazendas.39
Partindo, portanto, da constatação da existência material de tantas cidades
sertanejas significativamente importantes, constatamos a presença do processo de
silenciamento que pode nos levar a questionar os motivos pelos quais, grande parte das
narrativas que tem por objetivo representar o sertão, o espaço sertanejo, seus tipos sociais e
seus elementos ambientais, não produzem imagens de acontecimentos ocorridos no espaço
urbano das cidades sertanejas.
Não se está aqui afirmando que as cidades nunca eram (ou são) enunciadas em
representações sobre o sertão. O que se questiona, busca chamar atenção para o fato de que
em grande parte das representações que tem como foco o sertão, praticamente inexistem
imagens construídas a partir do espaço da cidade, ou melhor, imagens construídas a partir de
cenas urbanas nas cidades sertanejas.
Notemos, porém, que a simples constatação desse processo de silenciamento não
é suficiente para que saibamos em detalhes seu percurso histórico, suas intencionalidades e
seus mecanismos de consolidação em termos de produção de discursos. Esses elementos
merecem ser levantados e problematizados em pesquisa que se proponha ao enfrentamento
dessas questões.
39 A afirmação apresentada nesse parágrafo é fruto de alguns dos resultados e conclusões obtidos a partir das pesquisas decorrentes da dissertação de mestrado desse autor.
Ainda assim, vale perceber que esse silêncio, ou mais especificamente, a
recorrente presença dessa ausência, termina por compor formas peculiares de discursos
capazes de ressignificar o espaço sertanejo, uma vez que auxilia na construção e naturalização
de um (equivocado) imaginário social, no qual o sertão é formado apenas por seus campos
abertos de caatinga, suas estradas desertas ou margeadas por casas de taipa pertencentes a
famílias de moradores sertanejos, feitas para ligar lugares (não necessariamente municípios) e
seus espaços de fazenda para criação ou, em menor escala, plantação.
Ao lançar seu livro em 2010, ao optar por percorrer apenas os campos ermos da
caatinga, as “estradas empoeiradas”, ao escolher buscar o sertão de Guimarães Rosa, Euclides
da Cunha, Graciliano Ramos, Ariano Suassuna e João Cabral de Melo Neto, Araquém
Alcântara ao mesmo tempo atualiza e reafirma tradições que se construíram baseadas em um
imaginário sobre o sertão onde as cidades são postas em silêncio e, portanto, com o tempo,
caem no esquecimento.
O deliberado silenciamento sobre as cidades sertanejas no livro de Alcântara é
apenas mais um entre muitos exemplos que podem ser verificados em obras sobre o sertão
que o antecedem desde muitas décadas atrás. Logicamente, como já afirmamos, esses
silenciamentos não se dão ao acaso. Sua persistência e recorrência ao longo dos anos também
não ocorrem necessariamente sempre pelos mesmos motivadores ou veículos de produção de
discurso. Cada tempo, cada demanda social por visibilidade, poderá definir o que deve ser
silenciado ou enunciado, ou ainda, o momento de se optar pela permanência ou ruptura em
relação aos silêncios que produzem certos esquecimentos.
Das discussões acerca das memórias individuais ou coletivas, das reflexões sobre
os jogos entre o lembrar e o esquecer, das formas como a literatura e outras artes produzem
representações sociais a partir das escolhas entre o que deve ser enunciado e silenciado, das
maneiras como os silêncios, carregados de sentidos, podem compor discursos que
contribuirão com a produção de esquecimentos, podemos nos servir de um cardápio de
elementos capazes de nos auxiliar em problematizações e compreensões acerca de como as
noções de realidade a nossa volta se consolidam. Nesse “cardápio” memória, silêncio e
esquecimento são os ingredientes principais e, notemos, fazem-se presentes nos mais variados
“pratos”, produzidos a partir de uma enorme diversidade de “receitas” que com o tempo,
tenderão a sempre ser alteradas, modificadas, atualizadas. A temática aqui abordada é imensa
em possibilidades e é imensamente complexa em operações e elementos.
Nesse breve ensaio, alguns desses elementos, desses “ingredientes e receitas” são
apresentados e postos em diálogo a partir de exemplos e discussões que, não sem seus
próprios silenciamentos e visibilidades, devidamente escolhidos, selecionados, talvez possam
– esperamos que sim – auxiliar ao leitor interessado na temática da produção do
esquecimento.
REFERÊNCIAS
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CHARTIER, Roger. Inscrever e apagar: cultura, escrita e literatura (séculos XI-XVIII)
GINSBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia. Das
Letras, 1989. 2ª ed.
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WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Editora Civilização
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www.patosemrevista.com/histórico.html Acesso em: 01 out 2014.
www.portalimprensa.com.br/noticias/pontodevista/40207 Acesso em: 15 abr 2017