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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
DA ROÇA À UNIVERSIDADE: TRAJETÓRIAS DE MULHERES NO CURSO DE
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO DA UFMG
Lívia Tavares Froes1
Resumo: Apresento, nesse trabalho, análises iniciais de pesquisa de doutorado, em andamento, a respeito da trajetória
de mulheres do campo, inscritas no curso de Licenciatura em Educação do Campo, da UFMG. Trata-se de um curso de
formação de educadores vinculado e elaborado no bojo de demandas de movimentos sociais de luta pela terra, como o
MST, e demais entidades representativas da população camponesa. Organizado a partir da pedagogia da alternância, a
participação no curso exige o afastamento temporário dos locais de origem duas vezes ao ano, em Janeiro e Julho. Se
por um lado essa metodologia possibilita o acesso à formação superior sem o abandono do local de moradia, por outro,
os distanciamentos periódicos afetam a rotina de atividades e das relações, pessoais e profissionais, anteriormente
estabelecidas. Alterações que são diferencialmente sentidas conforme gênero, estado civil, geração etc. Diante disso,
alguns questionamentos centralizam minhas preocupações de pesquisa: de modo geral, como as mulheres se percebem e
avaliam esse processo de formação, que é ao mesmo tempo política e acadêmica? No caso das mulheres casadas e com
filhos, como organizam e avaliam a atuação delas no curso, e os consequentes distanciamentos, diante das
responsabilidades da vida familiar e conjugal? A análise apresentada baseia-se em trabalho de campo realizado em
julho de 2015, maio e julho de 2016, que agrega observação participante de eventos, aulas e plenárias, além de
entrevistas gravadas.
Palavras-chave: Mulheres do campo, educação do campo, trajetória
Introdução
A inserção atual de mulheres do campo a posições sociais ocupadas fora do espaço
doméstico, especialmente quando comparadas às gerações de mulheres mais velhas, é, ainda que
penosa e cheia de desafios, crescente. Além dos reconhecidos ‘lugares tradicionais da mulher
camponesa’ relacionados ao domínio da produção e reprodução familiar e de convivência
comunitária, diversas autoras como Heredia e Cintrão (2006), Butto e Dantas (2011), Bruno et al
(2013), Neves e Motta-Maués (2013), têm destacado as transformações ocorridas na vida das
mulheres do campo e como elas vêm, gradativamente, conquistando e lutando por outros espaços de
atuação.
A participação ativa em espaços sociais diferenciados, como na feira municipal
comercializando a própria produção, em reuniões do sindicato e associações, em protestos e
mobilizações articuladas a movimentos sociais de luta pela terra (como o MST) ou de mulheres do
campo (como o MMC e o MMTR-NE), em grupos produtivos organizados por elas próprias, não
necessariamente provoca rupturas dos papéis familiares e conjugais tradicionais relegados às
mulheres. Contudo, é inegável que o engajamento nesses espaços pode desencadear outros tipos de
aprendizados que levam à ampliação de universos sociais, incorporação de outros saberes,
1 Doutoranda em Antropologia do PPGA/UFF, Niterói, Brasil.
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habilidades, competências, diversificação de percepções e visões de mundo, como discutido em
Neves (1999), Maneschy e Almeida (2002), Fischer (2006), Bruno et AL (2013), Froes (2012 e
2015).
A alteração na organização da vida familiar e nas formas de participação dos membros que
compõem esses grupos domésticos conectam-se, das mais variadas formas, a processos
socioeconômicos mais amplos. Relacionam-se tanto aos efeitos perversos de inúmeros “programas
de desenvolvimento” e da modernização agrícola, quanto a um conjunto de programas públicos
elaborados e direcionados à população camponesa que visam promover melhorias nas condições de
vida deste grupo.
Diante de diversos movimentos e pressões populares que contribuíram para a criação de
políticas e programas públicos, em especial aqueles que dizem respeito às mudanças nas condições
de vida da população do campo, chamo atenção para o Movimento Por Uma Educação do Campo2.
A mobilização envolve atores sociais vinculados aos diversos movimentos sociais de luta pela terra,
como o MST, Escolas Famílias Agrícolas, sindicatos rurais, federações de trabalhadores rurais e
agricultores familiares, entidades de assessoria e também universidades. Impulsionados pela
insatisfação e indignação referente ao modo como, historicamente, a educação formal tem sido
direcionada aos camponeses3.
Assim, a Educação do Campo é um termo portador de significados específicos que aglutina
interações, articulações, disputas, tensões e conflitos que mobilizam atores variados vinculados a
instituições e entidades diversas, conforme já pontuei.
As lutas pela demanda a uma educação diferenciada, valorizadora de práticas e
conhecimentos gerados pela população camponesa desencadeou a implantação da Política Nacional
de Educação do Campo – PRONACAMPO – e do Programa Nacional de Educação da Reforma
2 Em resumo, tal designação configura-se como uma definição deliberada e um esforço contínuo, por parte dos
demandantes em evidenciar a distinção de atribuição entre educação do campo e educação no campo ou educação
rural. De acordo com o texto base para a Primeira Conferência Nacional “Por Uma Educação Básica do Campo” a
decisão do uso da expressão campo ao invés de rural, tinha como objetivo incluir no processo da Conferência uma
reflexão sobre o sentido atual do trabalho camponês e das lutas sociais e culturais dos grupos que buscam garantir a
sobrevivência deste trabalho (MANÇANO ET AL, 2011, p. 25). Nesse sentido, a preposição “do” se constitui, portanto,
como marcador de uma especificidade e evoca uma formação pedagógica que envolva aspectos e dimensões políticas, e
não somente de formação dedicada à inserção no mercado de trabalho. Visa contrapor-se, portanto, a uma formação
meramente técnica, conforme analisou Rocha (2009). Para marcar essa especificidade conceitual, Educação do Campo
será grafada sempre em maiúsculas. 3 O conjunto de livros e textos que abordam e analisam a trajetória de luta da Educação do Campo é extremamente
vasta. Dentre as autoras e autores que tenho me beneficiado para problematizar meu conhecimento a respeito gostaria
de destacar: Roseli Caldart, Mônica Molina, Bernardo Mançano, Miguel Arroyo, Maria Isabel Antunes-Rocha e Maria
de Fátima Almeida Martins. Uma publicação central a respeito do assunto é O Dicionário da Educação do Campo
(CALDART et al, 2012).
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Agrária – PRONERA, institucionalizados por meio do Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010
vinculado ao Ministério da Educação. A Política dispõe, em resumo, de dois eixos simultâneos de
reivindicação: a) a constituição de espaços escolares e garantia de ensino compromissado com tal
educação diferenciada e; b) a formação de educadores capacitados para atuar a partir de tal
educação contextualizada. A demanda por formação de educadores fomentou a criação de cursos de
Licenciatura em Educação do Campo, proporcionando, assim, o acesso ao ensino superior a uma
parcela da população que historicamente tem sido recorrentemente associada a altos índices de
analfabetismo.
Organizado pelo regime da alternância4, o ingresso ao curso pressupõe distanciamentos
periódicos dos locais de moradia por parte dos estudantes. Assim, os períodos das aulas e demais
atividades curriculares acontecem tanto no espaço físico da universidade, durante o Tempo Escola,
TE, quanto nos locais de residência dos estudantes, Tempo Comunidade, TC.
Na Faculdade de Educação da UFMG, instituição escolhida para a realização de minha
pesquisa, o Tempo Escola é condensado de 30 a 35 dias e realizado nos meses de janeiro e julho5.
Se por um lado essa metodologia possibilita o acesso à formação superior sem o abandono do local
de moradia, por outro, os distanciamentos periódicos afetam a rotina de atividades e das relações,
pessoais e profissionais, anteriormente estabelecidas.
Interessada por compreender processos que contribuem para a instauração de espaços,
perspectivas e posições diferenciadas de atuação de mulheres do campo6, trago, nesse texto, alguns
questionamentos: Como as mulheres vêm percebendo e avaliando a participação delas nesse
processo de formação? No caso das mulheres casadas e com filhos, como organizam e avaliam a
atuação delas no curso e os conseqüentes distanciamentos, diante das responsabilidades da vida
familiar e conjugal?
4 Metodologia que se fundamenta nas experiências das Escolas Famílias Agrícolas, as EFA’s. No Brasil, elas foram
iniciadas no estado do Espírito Santo, em 1968, por meio do MEPES – Movimento de Educação Promocional do
Espírito Santo. A primeira EFA foi apoiada pela Pastoral da Igreja Católica e de lideranças comunitárias do município
de Anchieta. Para maiores informações sobre as EFA’s pesquisar em: http://www.unefab.org.br/. 5 Atualmente, no Brasil, sessenta e duas instituições de ensino superior, entre universidades e institutos federais,
distribuídas pelo território nacional oferecem o curso. Cinco delas localizam-se em Minas Gerais: IFNM, UFMG, UFV,
UFJM e UFTM. Todos os cursos são fomentados pelo Procampo – Programa de Apoio às Licenciaturas em Educação
do Campo. Na UFMG, a oferta regular do curso ocorre desde 2011. Anualmente, são disponibilizadas 35 vagas para
concorrência por meio de edital de concurso. Para inscrição ao processo seletivo deve-se atender a três requisitos: a)
Conclusão do Ensino Médio; b) Residir e/ou trabalhar no campo; c) Estar inscrito no Exame Nacional do Ensino Médio
– ENEM. 6 Ao considerar “mulheres do campo’ deixo claro que não estou pressupondo essências engessadoras em torno dessa
categoria. Estou atenta às singularidades dos percursos biográficos de cada uma sem, contudo, apartá-las da
compreensão de um quadro social mais amplo que relacione as transformações das condições de vida desses grupos
frente à implantação de políticas e programas públicos, no caso em voga, o acesso ao ensino superior por meio de
Licenciaturas em Educação do Campo.
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Levantamento quantitativo do número de mulheres e homens inscritos no curso, tendo em
vista o período de 2012 a 2016, mostra que aproximadamente 70% do corpo discente é composto
por mulheres e 30% de homens7. Essa disposição parece comprovar a feminização usual no trabalho
docente na educação básica, em especial na educação infantil. Entretanto, apesar de reconhecer a
correlação que o tipo de ocupação profissional e a expectativa de papéis de gênero podem acarretar,
direciono minha inquietação de pesquisa a fim de compreender outros possíveis aspectos que essa
formação pode representar na vida dessas pessoas. Sem pretender responder, neste momento, essas
questões, pergunto-me se a formação como educadora é uma possibilidade tão óbvia e naturalizada
para essas mulheres. Além disso, para mim, é central entender questões relativas ao processo de
acesso ao ensino superior, por meio de um curso vinculado a movimentos sociais cujo princípio é
justamente a valorização das pessoas do campo e não sua negação ou inferiorização.
As considerações apresentadas, de uma pesquisa que se encontra em curso, baseiam-se em
trabalho de campo realizado em julho de 2015, maio e julho de 2016 e janeiro de 2017 e agrega
etnografia de eventos, aulas e plenárias, além da gravação de entrevistas do tipo narrativa8.
Caminhos da pesquisa
Ao privilegiar o momento e espaço de ocorrência do TE como lócus principal do meu
trabalho de campo, participei do maior número possível de atividades: aulas, serões de estudo,
palestras, bancas de qualificação, defesa de TCC, formaturas, reunião dos monitores.
Presenciei aulas de disciplinas das quatro áreas de formação do LeCampo: Ciências Sociais
e Humanidades - CSH, Ciências da Vida e da Natureza - CVN, Linguagem, Artes e Literatura -
LAL e Matemática. Foram momentos privilegiados de observação dos debates levantados, da
interação entre os próprios estudantes, entre eles e os professores.
Em relação às mulheres entrevistadas, convidei, inicialmente, as que eu havia me
aproximado anteriormente, em outras ocasiões, durante o TE em Belo Horizonte, nos anos de 2015,
2014 e 2013. Nos momentos anteriores, a aproximação com as futuras entrevistadas ocorreu
principalmente devido às visitas, de ordem pessoal, nas dependências da UFMG e no alojamento
dos estudantes, que eu realizava a uma interlocutora de pesquisa do mestrado, Didi. Camponesa do
norte de Minas Gerais, ela havia ingressado no LeCampo em 2012, para cursar Matemática. Por
7 Informação teve como base a contagem manual da lista de presença dos estudantes durante os TE’s. 8Em janeiro de 2017, registrei em áudio mais sete entrevistas gravadas que estão em processo de transcrição e análise.
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meio da mediação dela, fui apresentada ao curso, aos colegas, posteriormente aos professores e
coordenadores do curso.
Dessa forma, com exceção de uma estudante, todas as que foram entrevistadas em julho de
2016, eram da mesma turma de Joana e estavam prestes a concluírem o curso. O que ocorreu em
janeiro de 2017. Deste primeiro grupo, de um total de seis, três eram casadas e três solteiras. Cinco
encontravam-se na faixa dos 21 aos 23 anos, e uma dos 44 anos. Das solteiras, duas tinham
namorados. Entre as casadas, duas tinham filhas pequenas e uma, filhos adolescentes e adultos.
Entre elas, duas comentaram aproximação com movimentos sociais por meio de participação em
reuniões de associação de assentamento e em sindicatos rurais.
Elas no curso, o curso nelas – Perspectivas e projeções em transformação
Apesar de residirem em municípios diferentes, todas tinham como origem o norte e nordeste
de Minas Gerais. Ainda que, cada município, cada localidade possua suas especificidades,
impossíveis de serem aqui devidamente consideradas, essas mesorregiões do estado foram
constituídas por processos de ocupação do espaço agrário bastante semelhante, nos quais a
desigualdade social e a expropriação do camponês marcaram e marcam profundamente as relações
sociais, conforme analisado em Moura (1988), Silva (1999), Brito (2006).
Assim, as famílias de origem dessas mulheres são compostas de pequenos agricultores e
antigos meeiros que atualmente tiveram a posse reconhecida pelo INCRA. Todas entrevistadas
informaram que os pais, em algum momento do ciclo de vida, se inseriram como trabalhadores
rurais em fazendas de proprietários da região, no qual recebiam pelo dia trabalhado ou por
empreitas. A aposentadoria dos pais inaugurou melhorias nas condições materiais possibilitando,
principalmente, que algumas mães auxiliassem as filhas nas compras de material escolar,
vestimentas etc.
No geral, as interlocutoras, das mais jovens às mais velhas, relataram uma infância dividida
entre escola, afazeres domésticos, trabalho na lavoura e, quando possível, brincadeiras. Para
algumas, a lembrança da escola é marcada por situações de preconceito e maus tratos por parte dos
colegas de sala e, em alguns casos, inclusive de educadores. A maioria já havia iniciado a atuação
como docente, por meio de concurso ou de contrato temporário, em escolas da própria comunidade
ou de comunidades vizinhas.
Para todas, o ingresso na UFMG, por meio do LeCampo, significava a superação dos
inúmeros entraves socioeconômicos que pessoas de origem popular e campesina poderiam enfrentar
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para acessarem o ensino superior em uma universidade pública e de prestígio. Todavia, os desafios
enfrentados por essas pessoas não cessam com conclusão do curso.
Conforme ponderam Leite Lopes & Heredia (2014, p. 27), a
institucionalização das questões públicas e problemas sociais não significa o
encerramento de um processo e perdura numa continuidade de criação e recriação
de categorias e variações de movimentos.
Durante o III Encontro Mineiro de Educação do Campo, realizado em julho de 2015, houve
a exposição, durante as plenárias, de diversos impasses enfrentados pelos egressos para que
tivessem a formação legalmente reconhecida nas secretarias regionais de educação e de fato
exercessem o cargo. A dificuldade de reconhecimento do título dos egressos demarca o que Leite
Lopes e Heredia (2014, p. 27) assinalaram como o não encerramento do confronto social após a
institucionalização de demandas.
Não somente o acesso ao ensino superior foi valorizado, mas especialmente a formação
política presente no curso. Formação essa, que para muitas, não foi o motivo principal que as
levaram a se inscreverem, mas sim, a possibilidade de estudarem gratuitamente e sem necessitarem
abandonarem o local de origem. Porém, mesmo que entre essas não houvesse a clareza inicial da
Educação do Campo enquanto demanda e mobilização de movimentos sociais, foi unânime o
reconhecimento, construído posteriormente, do vigor dessa relação. Isso porque, ao lado da
formação técnica específica, a proposta pedagógica possibilita que os estudantes de todas as
habilitações estudem disciplinas “do eixo integrador”, no qual são destacados temas como o
histórico de luta pela reforma agrária, o processo de constituição da política de Educação do
Campo, a formação da sociedade brasileira, a pedagogia da alternância etc. Além disso, o LeCampo
possui uma forma de organização9 muito específica que busca referência nas práticas dos
movimentos sociais para a constituição de um processo pedagógico de fato diferenciado. A noção
de organicidade, originada no seio de tais práticas, orienta os procedimentos do curso organizado
não somente em momentos de sala de aula, mas também, e considerados igualmente importantes,
em: Assembléias das turmas, plenárias, conselho de turma, representantes de turmas, grupos de
trabalho por turma e temáticos (como os GT’s Cuidado, Comunicação, Mística, Disciplina, Cultura
e Finanças). Assim, os educandos são socializados em processos de gestão e de posicionamento
público, uma vez que são convocados a assumirem uma postura mais participativa e protagonista, a
9 Para maiores informações a respeito do funcionamento do LeCampo/UFMG consultar: ANTUNES- ROCHA &
MARTINS, 2009, ANTUNES-ROCHA et AL (2011), ROSENO (2010).
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encaminharem resoluções para eventuais problemas surgidos, a exporem publicamente insatisfações
e críticas.
Entre as estudantes que mencionaram a não familiaridade com a linguagem e aos modos de
presença dos movimentos sociais passaram por uma transição gradual do estranhamento inicial das
palavras, gritos de ordem, do desconhecimento de bandeiras de luta, das místicas, à incorporação e
domínio dessas práticas e símbolos.
Dessa forma, elas comentaram como, após o ingresso no curso abriram a cabeça,
ocasionando uma mudança de percepção e problematização de questões sociais, da posição
ocupada por elas, das diversas injustiças sociais. Algumas mencionaram o próprio preconceito
direcionado aos militantes do MST enquanto bandidos, e de pessoas que ocupavam a terra dos
outros. Perspectiva modificada, graças, segundo elas, o curso. Nos relatos, elas destacaram essa
ampliação de ponto de vista e de maior acirramento nos questionamentos perante notícias e matérias
veiculadas na mídia. Essa mudança de percepção levou-as a mudanças de comportamentos no
sentido de se sentirem mais seguras a falarem, debaterem, se apresentarem em público, impactando
diretamente a posição ocupada por elas nas localidades. Uma delas relatou, por exemplo, que
assumiu o cargo de presidência da associação de moradores após o ingresso no curso. Apontou que
os aprendizados nele foram cruciais para que se sentisse confiante em desempenhar a função.
De forma semelhante, mas partindo de um cenário distinto, universitárias do curso de
Serviço Social da UERJ, Barros (2004, p.371) menciona como as experiências de vida fora do
espaço doméstico ou da vizinhança favorecem a comparação de suas vidas antes e depois da
universidade reorientando os próprios significados da vida familiar. Ainda que a pesquisa da autora
parta da análise de um contexto urbano o curso de Serviço Social era, naquele momento, realizado
majoritariamente por mulheres de origem de camadas populares. A maioria, como no caso das
educandas e educandos do LeCampo, era o primeiro integrante da família a acessar o ensino
superior. Conforme demonstra Barros (2004, p. 372) e em consonância ao que tenho observado:
Apesar de terem de enfrentar dificuldades geradas pelas próprias desvantagens de suas
condições sociais, econômicas e culturais, as mulheres jovens têm em suas mãos novas
ferramentas para moldar suas trajetórias, com possibilidades de um futuro diferente das
mães e das avós (BARROS, 2004).
Outro relato interessante foi de uma jovem que passou a questionar a forma diferenciada e
inferiorizada como as mulheres eram pagas pelo dia trabalhado nas fazendas da região. Ao perceber
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que ela mesma, já tinha passado por essa situação inúmeras vezes juntamente com sua mãe, passa a
reivindicar condições igualitárias de pagamento.
Além de assumirem uma postura questionadora, comentaram a respeito de como mudaram a
forma como elas idealizavam o próprio futuro e as oportunidades que concebiam como acessíveis a
elas, conforme os trechos de entrevista demonstram a seguir:
Minha visão era trabalhar numa casinha de família, fiz ensino médio, agora vou
trabalhar, casar. Então o máximo que eu imaginava era eu trabalhando, casada,
cuidando de casa.
Porque antes era ser empregada, agora não, posso lecionar. E eu tenho muita
vontade, eu sei que é difícil, mas eu tenho vontade de desenvolver projetos no
campo, que ajude os jovens a ficar (23 anos, solteira, entrevistada em 24/07/2016).
O próprio fato delas se ausentarem temporariamente para irem estudar na UFMG serve de
exemplo e inspiração para que outras mulheres das localidades, principalmente entre as jovens,
consigam vislumbrar, projetarem-se neste caminho. Relataram ter ouvido de mães de vizinha
“Olha, ela ta estudando, por que você não vai também?”.
É extremamente importante frisar que vislumbrar outras possibilidades de atuação não
significa abandonar o campo ou negar este vínculo. Muito pelo contrário. Todas comentaram a
respeito do desejo em atuarem em escolas e projeto no campo.
A seguir, apresento algumas considerações a respeito de como as mulheres mães e/ou
casadas se organizam diante das responsabilidades acumuladas.
Serviço, estudo e coisas de casamento – Dilemas e desafios das estudantes mães e casadas
As semanas e dias que precedem a partida para Belo Horizonte são marcadas por uma
organização e sobrecarga emocional e de tarefas. Além de aprontarem a mala, ato que é realizado
sempre por último, verificarem se todos os trabalhos foram entregues elas precisam deixar a casa
organizada. Organizam documentos que filhos e companheiros possam precisar, monitoram as
datas de contas a pagar, deixam prontas as bolsas de passeio das filhas pequenas, informam onde
estão os medicamentos ou determinada roupinha. Precisam lidar ainda com a angústia que precede
o afastamento dos filhos pequenos. Coincidentemente ou não, elas relataram o adoecimento deles
exatamente nessas semanas. Esforçam-se por explicar os motivos de sua ausência, o que é pouco
compreendido por eles, devido à tenra idade. Contaram momentos em que, ao presenciarem as mães
organizando as malas, iam, em protesto, tirando as roupas e colocando-as de volta nas gavetas,
seguido as vezes por choros e perguntas “Mas por que a senhora precisa ir?”.
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Nesse sentido, para as mulheres casadas e com filhos pequenos, o apoio da família extensa e
do companheiro é crucial para cumprirem as tarefas e enfrentarem os períodos de distanciamento
durante o TE. Elas enfatizam que sem esse apoio, não só moral, mas de compartilhamento de
responsabilidades, principalmente relacionado ao cuidado dos bebês e da casa seria impossível
concluírem o curso. Essa partilha de atribuições se faz essencial não somente nos períodos de
afastamento, mas também nos períodos de presença, quando precisam se dedicar aos trabalhos,
leituras, planejamento de aulas dos estágios etc. Um dos fatores essenciais na constituição desse
projeto de escolarização são o suporte e o incentivo dos companheiros. O que vai de encontro à
análise de Guichard-Claudic (1998, p.225) ao afirmar que realização de projetos pessoais depende
tanto de recursos obtidos quando ao “eco”, ou seja, o acolhimento e apoio que se encontra junto ao
parceiro. A discordância do cônjuge pode levar ao abandono do curso ou até mesmo evitar que
jovens casadas se inscrevam, conforme me foi relatado, temem perder o casamento devido os
períodos de afastamento exigido.
Interessante mencionar que mesmo entre os companheiros aparentemente mais sensíveis e
participativos ao compartilhamento de determinadas tarefas domésticas e de cuidado com as
crianças há sempre a concepção que essa, deveria ser, inicialmente, uma atribuição da mulher.
Assim, ouvi repetidas vezes “Ele lava as vasilhas pra mim, passa pano na pia, na mesa”, “Ele
olha minha filha pra eu poder estudar”.
A observação da rotina do TE me proporcionou o acesso à “dinâmica do distanciamento” ou
seria à “dinâmica da aproximação”? A comunicação com os entes queridos eram constantes. Era
comum saírem da aula para atenderem ao telefone, resolverem problemas. Monitoram o estado dos
filhos, fiscalizam se o companheiro está cuidando devidamente. Ouvi, numa certa ocasião no
corredor: “Se depender do seu pai, ele não vai levar pra vacinar, meu deus!”.
Saudades e preocupações com os familiares são sentimentos constantes entre os estudantes.
Entre as mães, as preocupações geralmente giram em torno da possibilidade dos filhos adoecerem
ou se acidentarem durante a ausência delas. Quando possível tal apreensão é amenizada por meio de
ligações, chamadas de vídeo pelo celular, trocas de inúmeras mensagens durante o dia.
Entretanto, fui surpreendida ao ouvir de uma delas que aquele momento era o único tempo
para si. Assim, o aparente cansaço decorrente da intensidade de atividades durante o TE pode
representar, para algumas, o único momento, mesmo que coordenem a gestão do lar a distância, de
alívio das diversas responsabilidades atribuídas a elas.
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Considerações finais: Apenas o início
Como mencionei no início do texto, a participação ativa em espaços sociais diferenciados
nem sempre leva a rupturas de papéis tradicionalmente atribuídos à mulher relacionados ao domínio
da produção e reprodução familiar. Além disso, o exercício da docência, majoritariamente feminino
principalmente na educação básica, também não rompe com os padrões e expectativas esperadas em
torno de profissões possíveis de serem ocupadas por mulheres.
Porém, a pesquisa tem indicado transformações interessantes que se referem não somente à
experiência individualizada das mulheres no curso, quando, por exemplo, elas reconhecem uma
ampliação no quadro de possibilidades disponíveis antes e depois do curso, mas ao transbordamento
desses aprendizados nas interações comunitárias nos locais de origem dessas mulheres. Sem dúvida,
abriu-se, para a população camponesa, em especial para as mulheres outra possibilidade de projeção
de futuro.
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From the peasant life to the university: Women's trajectories in the Graduation of Educação
do Campo (Education for and by the countryside) at UFMG
Abstract: I bring up, in this paper, initial analysis from my doctorate research, in development,
about peasant women trajectories, matriculated in the Graduation of Education for and by the
countryside, at UFMG. It's a teaching formation course directly connected with the main demands
of land struggle social movements, such as Brazilian Landless Workers Movement (MST), and
further civil organizations that supports peasant population. Organized by alternation pedagogy, the
participation on the course requires being far away from home twice a year, in the months of
January and July. By one hand this methodology enables the access of higher education without
abandoning the place of living and the identitary references as a peasant person, on the other hand,
the periodic aloofness affects the activities and personal and professional relationships routine,
primarily established. This process is differently felt according to gender, marital status, age etc. In
the presence of the conditions cited, some questions centralize my research worries: in general, how
they notice themselves and evaluate this process of education, which is both political and academic?
In the case of married women and with children, how they organize and evaluate their performance
in school considering family and conjugal responsibilities? The analysis presented is based on july
of 2015, may and july of 2016 fieldworks, that joins participant observation of events, classes and
assemblies, and recorded interviews.
Keywords: Peasant women, educação do campo, rural education, trajectory