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  • DIREITO AO SOSSEGO

    Flvio Pereira Lima

    I - Introduo

    Quase no se pode dormir. Em So Paulo no se dorme nem se

    repousa. Nossos nervos so mantidos dia e noite numa dolorosa

    excitao. No estado de viglia, cada hora que passa um prego

    que nos espeta o crnio. L fora est travado o irritante dilogo

    dos automveis. Os bondes passam abalando tudo e ao lado do

    estrondo do camaro antidiluviano, que rola aos trancos, h

    tambm o grito lancinante dos trucks nas curvas e o martelar

    frentico, timpnico, de estrdulas sinetas. Deve-se acrescentar o

    prego dos jornais, o russo das prestaes, o comprador de roupa

    velha, a matraca dos mascates, o grito lamentoso dos ambulantes,

    sem esquecer o homem dos espanadores, o apito das

    locomotivas, o mugido das fbricas, o trepidar das oficinas, o rdio

    em todas as casas e o disco em todas as lojas, as carroas com

    aros de ferro sobre paraleleppedos mal unidos, o vendedor de

    bilhetes, a metralhadora dos motociclistas com escapamento

    aberto. barulho demais! Socorro! Chamem a Assistncia! ...

    No. melhor no chamar, ela viria fazer ainda maior barulho com

    o retinir daquela campainha que extirpa nervos sem anestsico!

    Eu necessito de silncio como de po! (A Cidade do Barulho,

    por Afonso Schmidt, em O Estado de So Paulo, janeiro de

    1931)

  • Como bem retratado por Afonso Schmidt em 1931, o conflito entre a modernidade das grandes cidades e o direito ao sossego dos cidados vem sendo

    objeto de estudos jurdicos desde o comeo do sculo.

    Ao longo desses anos, o direito ao sossego vem sendo abordado no

    mbito do direito administrativo, penal e, tambm, como restrio ao direito de

    propriedade, no campo dos direitos reais.

    Entretanto, o direito ao sossego modalidade de direito da personalidade,

    apesar de sua tutela estar garantida por normas de ordem pblica e de ordem

    privada.

    Assim, procuraremos no presente trabalho analisar o direito ao sossego,

    sob a tica dos direitos da personalidade, bem como suas conseqncias na vida

    em sociedade.

    II - Os Direitos da Personalidade

    Antes de definirmos direito da personalidade, faz-se necessria a

    verificao do que , juridicamente, a personalidade.

    Isto porque, a pessoa, seja fsica, seja jurdica, como sujeito de deveres e

    obrigaes, protagoniza, sem nenhuma dvida, o espetculo das relaes

    jurdicas. a idia de pessoa, para o Direito, um conceito primordial. Um

    verdadeiro ponto de partida. Um ncleo de disperso. Prova disso o fato de que

  • o Livro I do Cdigo Civil de 1916 est dedicado, precisamente, s pessoas e aos

    aspectos que a elas mais diretamente se referem.1[1]

    Para GOFREDO DA SILVA TELLES JNIOR, personalidade o conjunto dos caracteres prprios de um determinado ser humano. o conjunto

    dos elementos distintivos, que permite, primeiro, o reconhecimento de um

    indivduo como pessoa e, depois, como uma certa e determinada pessoa2[2].

    No mesmo sentido, MARIA HELENA DINIZ, ensina que a personalidade consiste no conjunto de caracteres prprios da pessoa. A personalidade no um

    direito, de modo que seria errneo afirmar que o ser humano tem direito

    personalidade. A personalidade que apoia os direitos e deveres que dela

    irradiam, objeto de direito, o primeiro bem da pessoa, que lhe pertence como

    primeira utilidade, para que possa ser o que , para sobreviver e se adaptar s

    condies do ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critrio para aferir,

    adquirir e ordenar outros bens.3[3]

    Pode-se concluir, portanto, que a personalidade um conjunto de

    caracteres prprios da pessoa fsica ou jurdica. A personalidade no o direito,

    mas o objeto do direito, ou seja, os atributos da pessoa (vida, nome, honra,

    imagem, liberdade, etc.).

    Por essa razo, GOFREDO DA SILVA TELLES acentua que os direitos da personalidade so, estes sim, direitos subjetivos: so os direitos de defender

    1[1] Jos Antnio de Paula Santos Neto, em Direitos da Pessoa e Direitos da Personalidade ou Estado da Pessoa, Direitos de Estado, Direito ao Estado e Direitos da Personalidade, RT 719/37 2[2] Homenagem a Miguel Reale: uma reviso dos conceitos de personalidade, dos direitos da personalidade e do direito de autor, pg. 584. 3[3] Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 1, pg. 83

  • essa primordial propriedade humana, esse particular bem do homem, que se

    chama personalidade.4[4]

    Seguindo a linha do Grande Mestre, verifica-se que o direito da

    personalidade um direito subjetivo excludendi alios, ou seja, o direito de exigir

    um comportamento negativo de todos.

    Nesse sentido, ORLANDO GOMES esclarece que sob a denominao de direitos da personalidade, compreende-se direitos considerados essenciais

    pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza e disciplina, a fim de

    resguardar a sua dignidade.5[5]

    Direito de personalidade, para PAULO MOTA PINTO, o conjunto de direitos subjetivos que incidem sobre a prpria pessoa ou sobre alguns

    fundamentais modos de ser, fsicos ou morais, dessa personalidade, e que

    inerem, portanto, pessoa humana - so direitos das pessoas que tutelam bens

    ou interesses da sua prpria personalidade. Tais direitos so, portanto, essenciais,

    uma vez que a prpria personalidade humana quedaria descaracterizada se a

    proteo que lhes concedem no fosse reconhecida pela ordem jurdica.6[6]

    Como se v, trata-se da tutela de bens que existem antes mesmo da

    existncia do prprio direito, que compem a personalidade das pessoas, e, desta

    forma, o que se resguarda o direito de fazer com que todos respeitem esses

    bens jurdicos.

    4[4] Ob. cit., pg. 585

    5[5] Introduo ao Direito Civil, Forense, 1.995, pg. 149

    6[6] O Direito Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, Boletim da Faculdade de Coimbra n 69, 1.993, pg. 482

  • Assim sendo, os direitos da personalidade possuem as seguintes

    caractersticas:

    a) absolutos - posto que so oponveis contra todos (erga omnes);

    b) extrapatrimoniais - insusceptveis de valorao econmica;

    c) intransmissveis - por ser inerente prpria pessoa, no possvel que outrem exera o direito do titular;

    d) indisponveis - pressupe a exclusividade do titular, ou seja, somente possvel o uso e o gozo pelo titular do direito, ao que no se faculta a

    disposio;

    e) irrenunciveis - no podem ser renunciados, embora o titular possa deixar de exerc-los;

    f) impenhorveis - conseqncia da extrapatrimonialidade;

    g) imprescritveis - posto que essenciais existncia da personalidade e no se extinguem pelo no uso;

    h) vitalcios - em regra, terminam com a morte do sujeito do direito.

    Quanto classificao dos direitos de personalidade, a grande dificuldade dos juristas foi a de propor esquemas que permitissem o enquadramento de todos os direitos de personalidade numa classificao lgica.

    Para PONTES DE MIRANDA, por exemplo, os direitos da personalidade podem ser classificados em: a) o direito vida; b) o direito integridade fsica; c)

    o direito integridade psquica; d) o direito liberdade; e) o direito verdade; f) o

    direito igualdade formal (isonomia); g) o direito igualdade material, que esteja

  • na Constituio; h) o direito de ter nome e o direito ao nome, aquele inato e esse

    nato; i) o direito honra; j) o direito autoral de personalidade.7[7]

    J ORLANDO GOMES optou por classificar os direitos da personalidade em duas grandes categorias, quais sejam: a) direitos integridade fsica,

    compreendendo o direito vida e o direito sobre o prprio corpo; e, b) direitos

    integridade moral, compreendendo o direito honra, liberdade, ao recato,

    imagem, ao nome e ao direito moral de autor.8[8]

    Segundo o saudoso CARLOS ALBERTO BITTAR, os direitos de personalidade podem ser distribudos em: a) direitos fsicos; b) direitos psquicos;

    c) direitos morais; os primeiros referentes a componentes materiais da estrutura

    humana (a integridade corporal, compreendendo: o corpo, como um todo; os

    rgos; os membros; a imagem ou efgie); os segundos, relativos a elementos

    intrnsecos da personalidade (integridade psquica, compreendendo: a liberdade, a

    intimidade; o sigilo) e os ltimos, respeitantes a atributos valorativos (ou virtudes)

    da pessoa na sociedade (o patrimnio moral, compreendendo: a identidade; a

    honra; as manifestaes do intelecto).9[9]

    De todas as definies apresentadas, porm, a que procurou ser mais

    especfica foi a do Professor LIMONGE FRANA, que, cientificamente, dividiu os aspectos fundamentais da personalidade da seguinte forma:

    1) direito integridade fsica:

    1.1) Direito vida: a) concepo e descendncia (gene artificial,

    inseminao artificial, inseminao de proveta, etc.); b) ao nascimento (aborto); c)

    7[7] Tratado de Direito Privado, Tomo VII, 3a ed., 1.971, ed. Borsoi, pg. 8.

    8[8] Ob. cit., pgs. 153-54

    9[9] Direitos da Personalidade, 2a ed., Forense Universitria, Rio, pg. 17

  • ao leite materno; d) ao planejamento familiar (limitao de filhos, esterilizao

    masculina e feminina, plulas e suas conseqncias); e) proteo do menor (pela

    famlia e sociedade); f) alimentao; g) habitao; h) educao; i) ao

    trabalho; j) ao transporte adequado; l) segurana fsica; m) ao aspecto fsico da

    esttica humana; n) proteo mdica e hospitalar; o) ao meio ambiente

    ecolgico; p) ao sossego; q) ao lazer; r) ao desenvolvimento vocacional profissional; s) ao desenvolvimento vocacional artstico; t) liberdade; u) ao

    prolongamento artificial da vida; v) reanimao; x) velhice digna; z)relativos ao

    problema da eutansia;

    1.2. Direito ao corpo vivo: a) ao espermatozide e ao vulo; b) ao uso do

    tero para procriao alheia; c) ao exame mdico; d) transfuso de sangue; e)

    alienao de sangue; f) ao transplante; g) relativos a experincia cientfica; h) ao

    transexualismo; i) relativos mudana artificial do sexo; j) ao dbito conjugal; l)

    liberdade fsica; m) ao passe esportivo;

    1.3. Direito ao corpo morto: a) ao sepulcro; b) cremao; c) utilizao

    cientfica; d) relativos ao transplante; e) ao culto religioso.

    2) Direito integridade intelectual: a) liberdade de pensamento; b) de autor; c) de inventor; d) de esportista; e) de esportista participante de espetculo

    pblico.

    3) Direito integridade moral: a) liberdade civil, poltica e religiosa; b) segurana moral; c) honra; d) honorificncia; e) ao recato; f) intimidade; g)

    imagem; h) ao aspecto moral da esttica humana; ao segredo pessoal, domstico,

    profissional, poltico e religioso; j) identidade pessoal, familiar e social

    (profissional, poltica e religiosa); l identidade sexual; m) ao nome; n) ao ttulo; o)

    ao pseudnimo.10[10]

    10[10] citado por Maria Helena Diniz, no Curso de Direito Civil Brasileiro, 1 vol., 13a ed., 1.997, pg. 101

  • III - O Direito ao Sossego

    Na vida em sociedade no podem haver direitos absolutos, irrefutveis,

    vez que, freqentemente, se verifica a coliso entre dois direitos, havendo a

    necessidade de que esse conflito seja composto. Da a mxima: o direito de um

    cidado se estende at onde comea o direito do outro.11[11]

    Se assim no fosse, como ensina MARIA HELENA DINIZ, se os proprietrios pudessem invocar uns contra os outros seu direito absoluto e

    ilimitado, impossibilitados estariam de exercer qualquer direito, pois as

    propriedades se aniquilariam dessa forma.12[12]

    Por essa razo, o sossego que se tutela, juridicamente, o sossego

    relativo. Com efeito, o sossego a relativa tranqilidade, que permite a

    normalidade da vida, com as horas de atividade e as de descanso, que ho de ser

    especificamente distintas, pois o rudo mximo que se tolera noite no o rudo

    mximo que se tolera de dia.13[13]

    Sossego, portanto, no quer dizer ausncia de barulho, mas o sossego

    que pode se reclamar em circunstncias normais.

    Afinal, ningum, sem dvida, pode pretender, sob invocao do direito ao

    descanso, que tudo, em derredor, se imobilize e cale. Tem, todavia, cada indivduo

    11[11] Direito ao Sossego, Rui Celso Reali Fragoso, em Justitia, 139/122

    12[12] Curso de Direito Civil Brasileiro, Direito das Coisas, Saraiva, 4 vol., 9a ed., pg. 180 13[13] Pontes de Miranda, ob. cit., Tomo XIII, pg. 303

  • direito a impedir que os outros o incomodem em excesso, com rudos

    insuportveis, emanaes prejudiciais sua sade e odores nauseabundos. Muito

    importa, outrossim, ter em conta a natureza dos lugares, distinguindo uma cidade

    da outra, cada bairro segundo o seu destino e, sobretudo, no esquecer a pr-

    ocupao, ou seja a anterioridade da posse.14[14]

    Para se saber quando h perturbao ao sossego, suscetvel de proteo

    da lei, preciso considerar vrios fatores, entre os quais:

    a) o grau de tolerabilidade, pois se o incmodo for tolervel o juiz despreza a reclamao da vtima, j que a convivncia social, por si s, cria a

    necessidade de cada um sofrer um pouco;

    b) a invocao dos usos e costumes locais, afinal no se pode exigir o silncio da vida campestre em uma megalpole como So Paulo, pois, nesse

    caso, h uma perda do sossego em detrimento dos benefcios dos grandes

    centros;

    c) a natureza do incmodo ao sossego; e,

    d) a pr-ocupao, mas a anterioridade no um critrio absoluto para verificar o uso nocivo da propriedade.

    Assim, somente o rudo anormal, fora dos parmetros regulares de

    suportabilidade e que seja nocivo a outra pessoa que recebe o apoio da lei.

    Convm salientar, ainda, que no s nas relaes de vizinhana em que

    se verifica a violao ao sossego.

    Com efeito, CAPELO DE SOUZA, afirma, com acerto, que nas relaes de trabalho, em que h relao hierrquica pode haver violao ao sossego do

    14[14] 4a Cm. Civ. do TJSP, j. em 25/9/1935, em RT 103/600

  • inferior hierrquico, passvel de indenizao. Afirma o professor portugus que

    Injrias ou agresses a colegas de trabalho podero originar o despedimento,

    para alm das sanes civis gerais. Tambm so ilcitas as situaes de assdio

    sexual, maxime, de cerco prolongado no trabalho, movido por um superior

    hierrquico (seja homem ou mulher, hetero ou homosexual) a um inferior

    hierrquico, contra a vontade deste, com vista obteno de relaes sexuais,

    determinadas pelo receio de represlias laborais. violado o direito geral de

    personalidade do inferior hierrquico (particularmente, nas reas de

    autodeterminao afetivo-sexual, de liberdade de movimentos, do sossego, da

    sade mental, da honra e do bom nome), sendo o assediante responsvel

    civilmente pelos prejuzos efetivamente causados, nomeadamente, a nvel da

    honra, do bom nome do assediado, das perturbaes psquicas sofridas e dos

    incmodos.15[15]

    IV - O Conflito entre o Direito ao Sossego e o Direito de Propriedade

    Um dos elementos constitutivos da propriedade o direito de usar o bem

    recebido. Esse jus utendi, entretanto, sofre limitaes quanto intensidade do

    exerccio do direito de propriedade.

    Limita-se o direito do proprietrio em razo do princpio geral que probe ao indivduo um comportamento que venha a exceder o uso normal de seu direito, causando prejuzo a algum, conforme disposto nos artigos 554 e 555 do Cdigo Civil brasileiro de 1916.

    Ora, justamente a possibilidade de causar prejuzo outrem que regula

    a nocividade ou no do uso, uma vez que o terceiro atingido tem o direito ao

    sossego, sade e segurana.

    15[15] Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1.995, pg. 450/51

  • Esse aspecto muito importante para demonstrar que o direito ao

    sossego direito de personalidade, pois o que a lei determina a absteno da

    prtica de atos nocivos a terceiros. Note-se, o que a lei probe a prtica de atos

    nocivos e no de atos ilegais ou abusivos.

    No caso do sossego, particularmente, qualquer das pessoas atingidas

    pelo incmodo insuportvel poder exigir que o vizinho se abstenha de praticar

    esse ato incomodativo.

    Pouco importa se a pessoa atingida pelo incmodo proprietria,

    locatria, usufruturia, posseira, empregado do imvel vizinho, bastando, para ter

    direito de exigir a obrigao de no fazer do vizinho, que sofra os incmodos ao

    seu sossego alm dos limites tolerveis.

    Se, entretanto, a questo envolvesse apenas direitos de propriedade entre

    vizinhos, a nica preocupao do legislador e do magistrado seria a de verificar a

    ilicitude ou abusividade do uso e no sua nocividade.

    Por essa razo, o que se pode concluir que o artigo 554 do Cdigo Civil

    de 1916, inserido na Seo V - Dos Direitos de Vizinhana, do ttulo II - Da

    Propriedade, procura tutelar um direito de personalidade e no um direito de

    propriedade.

    Trata-se de conflito entre o direito de propriedade do causador do dano e

    o direito de personalidade da vtima, consistente no direito de qualquer pessoa de

    ter momentos de sossego, a bem de sua sade e tranqilidade.

    Em verdade, o direito de propriedade sofre uma limitao no que diz

    respeito ao uso quando o exerccio desse direito atinge a esfera mais ntima dos

    vizinhos, consistente no direito ter momentos de sossego.

    A esse respeito, CAPELO DE SOUZA ensina que no caso de conflito entre um direito de personalidade e um direito de outro tipo (v.g. um direito real,

    um direito de crdito, um direito familiar ou um direito pblico da Administrao),

  • face sobretudo ainda mais acentuada diversidade de bens tutelados e

    freqente ocorrncia de contraposies entre bens pessoais e bens patrimoniais,

    verifica-se normalmente um diferente peso jurdico em tais direitos. A respectiva

    avaliao abrange no apenas a hierarquizao entre si dos bens ou valores

    nsitos nas proposies normativas referentes aos direitos conflituantes, adentro,

    ..., do conjunto de bens ou valores do ordenamento jurdico na sua totalidade e

    unidade, mas tambm a deteco e a ponderao de elementos preferenciais

    emergentes do circunstancialismo fctico da sujectivao de tais direitos, maxime,

    a acumulao, a intensidade e a radicalizao de interesses concretos

    juridicamente protegidos. Tudo o que dar primazia, nuns casos, aos direitos de

    personalidade ou, noutros casos, aos com eles conflituantes direitos de outro

    tipo.16[16]

    Assim, conclui com preciso o professor portugus, quando num prdio

    de habitao seja montado um estabelecimento em que habitualmente haja

    produo de rudos ou de cheiros susceptveis de incomodar gravemente os

    habitantes do prdio, o direito ao sossego, ao ambiente e qualidade de vida

    destes deve considerar-se superior ao direito de explorao de actividade

    comercial ou industrial ruidosa ou incmoda. Mas, j o direito ao sossego,

    tranquilidade e ao repouso dos moradores no prevalece sobre o direito de

    propriedade alheio, face aos rudos normalmente provocados pelas vozes de aves

    domsticas legitimamente mantidas em quintais.

    Para compor esse conflito entre o direito de personalidade e o direito real,

    CAPELO DE SOUZA, ensina, com acerto, o seguinte: para a hiptese de coliso de direitos desiguais ou de espcie diferente, determina o n 2 do art. 335 do

    Cdigo Civil que prevalece o que deva considerar-se superior. As partes no

    esto agora em posies conflituais idnticas ou equiparadas, pois a maior carga

    axiolgico-jurdica do direito superior postula uma correspondente e adequada

    eficcia jurdica, mais ampla ou mais intensa do que a do direito inferior e, se

    16[16] ob.cit., pg. 547

  • necessrio, com detrimento desta. Por exemplo, nos casos referidos acima de

    prevalncia do direito ao sossego, ao ambiente e qualidade de vida de

    moradores de prdio habitacional sobre o direito de explorao de actividade

    comercial ou industrial, no mesmo prdio, com produo habitual de rudos e

    cheiros incomodativos, o proprietrio de um estabelecimento onde se exerciam

    estas actividades foi judicialmente obrigado a efectuar obras que evitassem tais

    incmodos e a no exercer suas actividades durante os perodos normalmente

    destinados ao descanso das pessoas.

    Alerta, entretanto, o renomado jurista, para o fato de que mesmo o direito

    inferior deve ser respeitado at onde for possvel e apenas deve ser limitado na

    exata proporo em que isso exigido pela tutela razovel do conjunto principal

    de interesses. Inclusivamente, caso sejam possveis e adequados vrios modos

    de exerccio dos direitos superior e inferior, a soluo legal do conflito impe que

    as partes adoptem modos alternativos de exerccio que respeitem a diferena

    axiolgico-jurdica em causa e se mostrem no colidentes entre si ou, se isso no

    for possvel, impe que o titular do direito predominante adopte o modo de

    exerccio mais moderado ou menos gravoso, que limite no mnimo o direito

    secundrio.17[17]

    Como se v, muito embora esteja inserida no campo dos direitos reais, a

    proteo do sossego alheio pelo uso nocivo da propriedade constitui o critrio

    adotado pelo Cdigo Civil para compor o conflito entre o direito real (usar a

    propriedade) e o direito de personalidade (sossego).

    V - O Direito ao Sossego como Direito da Personalidade

    17[17] ob.cit., pg. 549

  • Alguns autores j inseriram, especificamente, o direito ao sossego como

    uma das espcies de direito de personalidade, como LIMONGE FRANA, que classificou o sossego como um dos desmembramentos do direito vida.

    A Constituio Federal de 1.988, importantssima no que diz respeito aos

    direitos de personalidade, j no caput do artigo 5, assegura a inviolabilidade do

    direito vida.

    O direito vida compreende o direito sade e ao sossego, como bem

    classificado por LIMONGE FRANA. O sossego e a sade esto intimamente ligados, uma vez que a perturbao do sossego causa, diretamente, perturbao

    sade das pessoas envolvidas.

    Deveras, o barulho perturba as operaes intelectuais mais simples:

    constitui um embarao notvel ao trabalho cerebral, exagera a fadiga, j grande,

    dos centros de colaborao, perturba o sono, tornando-o menos reparador, e

    assim viola uma das leis fundamentais da fisiologia - a do ritmo da atividade dos

    rgos; a fase de dispndio, de catabolismo, exagerada, a fase de reparao, de

    anabolismo, diminuda.18[18]

    Alm disso, os efeitos do rudo sobre o organismo so mltiplos.

    Realmente, leses auditivas do ouvido surgem por vezes de modo brutal (ruptura

    do tmpano, depois de uma deflagrao, por exemplo), mas mais freqente

    surgirem progressivamente, com uma perda da percepo das freqncias dos

    sons mais agudos para os mais graves, podendo-se chegar surdez. ...

    Actualmente, est-se a verificar um envelhecimento precoce da audio nos

    adolescentes e, nas cidades, a maior parte das pessoas que ultrapassaram os

    cinqenta anos j no ouvem muito bem. As perturbaes comeam, em geral,

    por uma fadiga auditiva que impede que se mantenha uma conversao; depois

    de uma estadia num local em que o nvel de rudos muito elevado, s se

    18[18] S. Silva Barreto, em O Mau Vizinho, Revista Justitia n 44, pg. 70

  • recupera a audio normal umas horas mais tarde. Por outro lado, os rudos

    originam uma elevao do ritmo cardaco e uma vasoconstrio dos vasos, o que

    provoca hipertenso. Podem-se manifestar perturbaes gstricas em indivduos

    submetidos durante longas horas a ambientes barulhentos. Verificam-se,

    igualmente, perturbaes na viso das cores e na apreciao das distncias. Os

    rudos perturbam as funes hormonais, criando, em particular, um estado de

    stress (atravs da descarga de adrenalina).19[19]

    E no s. O sistema nervoso particularmente afectado e as

    perturbaes precedentes esto-lhe ligadas. Segundo a Academia de Medicina, o

    rudo a causa de 50% das doenas nervosas. A fadiga nervosa acumula-se

    progressivamente. No existe adaptao ao rudo, mesmo que este no seja

    percebido continua a lesar o organismo. O sono pode ser perturbado ou tornar-se

    mesmo impossvel. A exposio prolongada ao rudo origina falta de coordenao

    das idias, irritabilidade, instabilidade ou neuroses.20[20]

    Convm ressaltar, ainda, que o sossego no perturbvel apenas pelo

    som. Tambm o pela luz, pelo cheiro, por apreenses e choques psquicos, ou

    outros motivos de inquietao.21[21] Tambm nesses casos a violao ao direito

    ao sossego causa srios danos sade das vtimas do incmodo.

    Como se v, a violao ao direito ao sossego causa graves danos sade

    das vtimas e, por essa razo, est compreendido, como bem definiu LIMONGE FRANA, no direito vida, que o mais importante dos direitos de personalidade, pois nenhum outro bem pode ser concebido separado do direito vida.

    19[19] Dicionrio de Ecologia e do Meio Ambiente, traduo do Prof. Dr. Carlos Almaa, Lello & Irmo Editores, Porto, pg. 237 20[20] Dicionrio de Ecologia e do Meio Ambiente, citado, pg. 237-239

    21[21] Pontes de Miranda, ob. cit., pg. 305

  • Por todas essas razes, verifica-se que o direito ao sossego um direito de personalidade, que preenche todas as caractersticas inerentes aos bens jurdicos por estes tutelados, a saber:

    a) absoluto (oponvel erga omnes) - De fato, assim como nos direitos reais, qualquer pessoa pode exigir que todos se abstenham de praticar atos que

    violem o seu direito, ou seja, que lhe incomodem o sossego juridicamente

    protegido.

    Adquire-se esse direito de exigir o comportamento de outrem pela mera

    aquisio da personalidade.

    Ademais, nos conflitos de vizinhana o que interessa a nocividade e

    no a ilicitude do ato praticado.22[22] Verifica-se, portanto, que o bem jurdico a

    ser protegido em casos que tais o direito ao sossego inerente existncia de

    todas as pessoas.

    necessrio esclarecer, porm, que o direito de defender o sossego

    absoluto, ilimitado e tem eficcia erga omnes. Todavia, o sossego que protegido

    pelo Direito aquele normal, atentando para todos os fatores acima citados.

    Assim, protege-se de forma absoluta e ilimitada o direito ao sossego

    relativo, relativa tranqilidade que permite a normalidade da vida.

    b) extrapatrimonial - O sossego no suscetvel de valorao econmica, embora sua ofensa possa ser pressuposto de obrigao de indenizar,

    ainda quando se trate de puro dano moral23[23];

    c) intransmissvel - O sossego inerente prpria pessoa, no sendo possvel que outrem exera o direito em lugar do titular.

    22[22] Rui Celso Reali Fragoso, ob. cit., pg. 126

    23[23] Orlando Gomes, ob. cit. pgs/ 152/153

  • Realmente, na prtica, essa questo de fundamental importncia no

    caso de conflito de vizinhana em que a pessoa que sente seu sossego

    perturbado pelo vizinho vende o imvel onde reside e muda-se de cidade. Assim

    ocorrendo, no poder o adquirente prosseguir na ao, por ser, o direito ao

    sossego, direito personalssimo, inerente pessoa do vendedor do imvel.

    Poder, contudo, promover nova ao fundada na defesa de seu sossego.

    por isso que no pode ser aceita a opinio de Capitant no sentido de

    que o relacionamento de vizinhana se resume em obrigaes propter rem, sendo

    que dessas obrigaes resultariam, porm outras de no fazer; e a violao

    dessas obrigaes eram regidas pelos preceitos sobre responsabilidade

    civil.24[24]

    Como se v, tratando-se de direito de personalidade, o direito ao sossego

    intransmissvel.

    d) indisponvel - assim como todos os direitos de personalidade, somente pode ser exercido pelo titular, com exclusividade, no sendo admissvel a

    disposio do direito ao sossego;

    e) irrenuncivel - a ningum dado o direito de renunciar ao sossego, mas o titular, tendo seu sossego perturbado, pode deixar de exercer o seu direito

    de fazer com que a pessoa que lhe incomoda se abstenha de praticar tais atos;

    f) impenhorvel - o sossego de algum tambm no pode ser penhorado, posto que esse direito est fora do comrcio, conseqncia da

    extrapatrimonialidade;

    24[24] cit. por Jos de Oliveira Asceno, Responsabilidade Civil e Relaes de Vizinhana, RT 595/25

  • g) imprescritvel - assim como nos demais direitos da personalidade, o direito ao sossego no se extingue pelo no uso, uma vez que essencial

    existncia da personalidade; e,

    h) vitalcio - o direito ao sossego somente termina com a morte do sujeito.

    VI - A Tutela do Direito ao Sossego, enquanto Direito de Personalidade, no mbito do direito civil

    Os direitos de personalidade, como vimos, destinam-se a resguardar a

    dignidade humana, mediante sanes, que devem ser suscitadas pelo ofendidos.

    Essa sano, como ensina MARIA HELENA DINIZ, deve ser feita atravs de medidas cautelares que suspendem os atos que desrespeitem a integridade fsica,

    intelectual e moral, movendo-se, em seguida, uma ao que ir declarar ou negar

    a existncia da leso, que poder ser cumulada com ao ordinria de perdas e

    danos a fim de ressarcir danos morais e patrimoniais.25[25]

    A respeito dessa ao que pode ser promovida pelo ofendido em seus

    direitos de personalidade, o Cdigo de Processo Civil autoriza, no artigo 287, que

    se o autor pedir a condenao do ru a abster-se da prtica de algum ato, a

    tolerar alguma atividade, ou a prestar fato que no possa ser realizado por

    terceiro, constar da petio inicial a cominao da pena pecuniria para o caso

    de descumprimento da sentena.

    E, ainda, no artigo 461, o Cdigo de Processo Civil determina que na

    ao que tenha por objeto o cumprimento de obrigao de fazer ou no fazer, o

    juiz conceder a tutela especfica da obrigao ou, se procedente o pedido,

    25[25] Curso de Direito Civil, vol. 1, pg. 102

  • determinar providncias que autorizem o resultado prtico equivalente ao do

    adimplemento.

    No pargrafo quarto do mesmo artigo, especifica que o juiz, sendo

    relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficcia do

    provimento final, poder impor multa diria ao ru, independentemente do pedido

    do autor, se for suficiente ou compatvel com a obrigao, fixando-lhe prazo

    razovel para o cumprimento do preceito.

    Esses dispositivos, que modificaram a antiga ao cominatria,

    normalmente so aplicados em casos de violao ao direito ao sossego e

    permitem que qualquer pessoa exija que seja respeitado o seu direito de

    personalidade, permitindo-se, inclusive a imposio de multa diria, liminarmente,

    para que o causador do dano cesse a prtica nociva.

    O mesmo ocorre no Direito portugus. Realmente, CAPELO DE SOUZA salienta que tambm podem ser judicialmente ordenadas providncias

    preventivas de violaes de personalidade que probam e sancionem a colocao

    ou ulterior utilizao de maquinismos ou fontes produtores de rudos, cheiros,

    fumos e outros poluentes prejudiciais ao repouso, sade, ao sossego ou a

    qualidade de vida de vizinhos.26[26]

    Alm das aes que visam impedir a continuidade da prtica do ato

    nocivo, admissvel a condenao em danos morais pela violao a esse direito

    de personalidade.

    De fato, com bem disse RUI CELSO REALI FRAGOSO, todo e qualquer dano causado a algum ou a seu patrimnio deve ser indenizado. O dinheiro

    26[26] ob.cit., pg. 475

  • possui um valor permutativo podendo no s abrandar o prejuzo moral, como,

    tambm servir de desestmulo de atos abusivos ou excessivos.27[27]

    Como vimos, os danos causados sade das vtimas pela perturbao do

    sossego so serssimos e possuem, no s conseqncias materiais, mas

    principalmente, morais. A Constituio Federal, a esse respeito, assegura,

    expressamente, a indenizao pelo dano material e moral, conforme disposto no

    inciso X, do artigo 5.

    Atualmente, encontra-se superada a controvrsia a respeito da

    indenizao pelo dano moral e, portanto, estando comprovada a existncia da

    perturbao do sossego e os malefcios que dela decorreram, pode o causador do

    dano ser condenado a indenizar o dano moral causado.

    VII - Concluso

    Aps essa anlise da natureza jurdica do direito ao sossego, verificamos

    que se trata de espcie de direito de personalidade, que pode ser classificado

    como modalidade do direito vida e que sua violao fere, tambm, o direito

    sade, tendo em vista os inmeros danos causados ao organismo das pessoas

    atingidas.

    Assim, o artigo 554 do Cdigo Civil de 1916, muito embora esteja

    elencado como restries ao uso da propriedade, no campo dos direitos reais,

    tutela direitos de personalidade, como a sade, o sossego e a segurana.

    Ademais, verificamos que os conflitos entre o direito ao sossego, enquanto

    direito de personalidade, e direitos de outras espcies, como o direito de

    27[27] ob.cit., pg. 128

  • propriedade, devem ser resolvidos, sobrepondo o direito de personalidade nos

    casos de uso nocivo da propriedade.

    Verificamos, ainda, que esses conflitos existem em outras relaes, que

    no s de vizinhana, como no caso das relaes hierrquicas de trabalho em que

    o chefe abusa de seu direito para incomodar o sossego de seu funcionrio.

    Conclui-se, portanto, que todos devem respeitar esses bens jurdicos inerentes a cada indivduo, sendo assegurada ao titular desses direitos individuais a defesa contra violaes praticadas terceiros e, finalmente, constatamos que o conflito entre o direito ao sossego e o progresso das cidades , de fato, importantssimo para a aferio da normalidade da perturbao ao sossego.

    Quanto s limitaes ao sossego causadas pelos rudos, odores,

    poluentes inerentes s grandes cidades, notamos que causam inconformismos

    desde 1931. Contudo, esse combate aos malefcios do progresso estimula as

    atitudes da sociedade para criar mecanismos jurdicos e administrativos para que

    nossa cidade seja transformada em um local mais aprazvel, acomodando, assim,

    o conflito existente entre o direito ao sossego e o progresso.


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