As agruras do personagem-escritor: a busca de si por meio da escrita no romance
Diário de um fescenino, de Rubem Fonseca1
Cloves da Silva JUNIOR2
Resumo
Este artigo propõe uma análise da escrita diarística no romance Diário de um fescenino,
de Rubem Fonseca. Inicialmente, apresenta alguns comentários sobre as inovações do
romance enquanto gênero inacabado e em constante evolução para, em seguida,
comentar a intervenção do diário nesse gênero e sua necessidade de teorização. O texto
apresenta também algumas perspectivas sobre a escrita diarística com o objetivo de
solidificar a análise da narrativa fonsequiana. Por fim, analisa o romance a partir dos
dilemas de um personagem escritor que encontra uma série de percalços para constituir
seu romance de formação paralelamente ao diário que mantém. Além disso, este texto
investiga se a escrita pode revelar o sujeito, a partir das análises sobre a teoria da
intimidade, levando em consideração a possibilidade de acesso ao espaço íntimo do
sujeito. Como se trata de uma pesquisa bibliográfica, são utilizados os pressupostos
teóricos de Barcellos (2004), Blanchot (2005), Picard (1981), Eco (1999), Pino (1996),
Lejeune (2008), dentre outros.
Palavras-chave: Escrita de si. Escrita diarística. Espaço íntimo. Rubem Fonseca.
Abstract
This article proposes an analysis of the journaling writing on the novel Diário de um
fescenino, written by Rubem Fonseca. Initially, the text presents some comments about
the innovations of the novel as an unfinished gender and in constant evolution, to then,
review the intervention of the journal in this genre and its need for theorizing. The text
1 Este artigo é produto do projeto de pesquisa Aspectos do romance brasileiro contemporâneo,
coordenado pela professora Dra. Renata Rocha Ribeiro, docente do Programa de Pós-Graduação em
Letras e Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. A pesquisa foi financiada
pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e pela Secretaria de
Educação, Cultura e Esporte do Estado de Goiás.
2 Mestrando em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da
Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. Professor efetivo da Secretaria de Educação do
Estado de Goiás. Goiânia-GO, 74.663-520. E-mail: [email protected]
also presents some perspectives about the journaling writing with the objective of
solidifying the analysis of fonsequiana narrative. Finally, it analyzes the novel from the
dilemmas of a character who is a writer and that finds a series of mishaps to constitute
his novel of formation alongside the diary that he keeps. In addition, this paper
investigates whether writing can reveal the subject, from the analysis of the theory of
intimacy, taking into account the possibility of accessing the intimate space of the
subject. As this is a bibliographic research, the theoretical assumptions by Barcellos
(2004), Blanchot (2005), Picard (1981), Eco (1999), Pino (1996), Lejeune (2008),
among others, are used.
Keywords: Writing oneself. Journaling writing. Intimate space. Rubem Fonseca.
Introdução
O romance, segundo Bakhtin (2010), é o único gênero ainda inacabado, que está
em processo de evolução, diferentemente dos demais que já possuem uma estrutura
engessada. “Um plebeu que vingou e que, em meio aos gêneros secularmente
estabelecidos e pouco a pouco por ele suplantados, continua parecendo um arrivista, [...]
um aventureiro” (ROBERT, 2007, p. 11). Nesse sentido, o romance permite a
manifestação de diferentes gêneros, a qual é ocasionada por sua consciência plurilíngue
a partir da diversidade de vozes/discursos que o constituem e que elabora um
macrodiscurso permeado por uma série de microdiscursos.
Esse gênero admite, em sua composição, diversos outros gêneros, tais como
cartas, bilhetes, diários, relatos de viagem, etc., os quais podem atuar como
complementares ao gênero predominante, ou estruturá-lo, como acontece quando o
romance assume a forma de um diário, de uma sequência de cartas, relato de viagens, os
quais trazem para o romance a sua forma própria de linguagem e estrutura, fazendo com
que o romance tome outras proporções e formas, daí a ideia de plurilinguismo.
Este artigo trata especificamente do romance-diário por meio da análise da obra
Diário de um fescenino, de Rubem Fonseca. A priori são apresentadas algumas notas
sobre a escrita diarística para em seguida proceder à análise da obra citada com vistas a
examinar os dilemas de um personagem-escritor que se vê no impasse de não conseguir
escrever seu romance de formação (Bildungsroman) e, paralelamente, registra em um
diário a sua história, insatisfações e anseios. Com isso, este texto levanta os seguintes
questionamentos, os quais serão solucionados na análise da obra: a escrita revela o
sujeito? É possível apreender todo o espaço íntimo do sujeito a partir do diário?
1. A escrita diarística: o espaço em que o eu se descobre
O diário íntimo é o espaço que se entreabre para que o sujeito se manifeste em
todas as suas configurações. É no contato entre o papel e a caneta que são extravasados
sentimentos e esperanças; um mergulho no eu que possibilita o conhecimento de si
mesmo e uma análise da existência sob o olhar acurado daquele que escreve.
Entretanto, a conquista desse espaço íntimo não é antiga. Entre os séculos XI e
XIII, como afirmam Duby e Braunstein (2004), os indivíduos não cultivavam essa
espécie de análise existencial, visto que não havia privacidade individual no seio
familiar. As informações eram compartilhadas com todos os membros da família, não
havia espaço físico privado, enfim, não havia meios de enclausurar-se em si mesmo,
pois a todo o momento as pessoas eram acompanhadas por todos os espaços no interior
das casas e fora delas. Até mesmo nas viagens, aquele que não estivesse acompanhado
era considerado insano.
Nos séculos seguintes – XIV e XV –, Duby e Braunstein (2004) afirmam que
começa a se desenhar o espaço íntimo a partir da difusão da escrita no final da Idade
Média, principalmente nas grandes cidades, o que permitiu que uma minoria da
população começasse a se preocupar em moldar uma imagem de si mesmo para a
posteridade. Assim, as primeiras anotações diarísticas eram realizadas em cadernos de
registro de bens imóveis, organização da economia doméstica, lembretes de prazos e
obrigações, com a finalidade de deixar um legado – construção de um ethos – que
permitisse que as próximas gerações soubessem administrar seus bens e sua vida a partir
dos modelos deixados por meio dessas anotações diárias.
E no final do século XV, sub repticiamente, começa a emergir a necessidade de
separar os assuntos anotados nos cadernos de registro em função da variedade do
conteúdo ali disposto. Para isso, criaram-se livros especializados a fim de diferenciar o
livro dos negócios do livro privado, dando início à possibilidade de análise do espaço
íntimo e, posteriormente, de construção da própria identidade de acordo com as
vivências e análises do eu.
A partir daí começou a se delinear o processo de utilização do diário íntimo para
que o sujeito pudesse refletir sobre seus atos e anotar aquilo que acontecia no cotidiano.
E uma simples, silenciosa e fria folha de papel tornava-se uma compreensível e
atenciosa confidente que não disseminaria aquilo que lhe era confiado diariamente, a
não ser que alguém descobrisse a localização do diário e revelasse seus mistérios. Logo,
o diário constituiu-se como um documento que possui em seu conteúdo apenas a
veracidade das coisas.
E, na literatura, com as inovações do romance mencionadas no início deste texto,
o diário penetrou nesse gênero e inseriu sua linguagem própria. Como exemplo dessa
intervenção na literatura brasileira a partir do século XX, temos os romances Memorial
de Aires (1902), de Machado de Assis; O amanuense Belmiro (1937), de Cyro dos
Anjos; Crônica da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso; Informação ao
Crucificado (1961), de Carlos Heitor Cony; A rainha dos cárceres da Grécia (1976), de
Osman Lins; Em liberdade (1981), de Silviano Santiago, Mongólia (2003), de Bernardo
Carvalho; Diário de um fescenino (2003), de Rubem Fonseca – corpus de análise desta
pesquisa – dentre outros.
Nesses romances, com exceção das obras de Bernardo Carvalho e Lúcio
Cardoso, o diário atua como estruturante da narrativa, uma estratégia textual utilizada
pelo autor para tentar prender o leitor nas sequências narrativas que se instauram no
romance de forma não linear, exigindo, desse modo, certa habilidade do leitor para se
embrenhar nas malhas do texto.
E com a intervenção do diário na estrutura do romance houve a necessidade de
teorizar esse gênero, considerando sua liberdade de formas. Nesse sentido, um dos
autores que se destacam no assunto é o francês Philippe Lejeune com sua obra O pacto
autobiográfico: de Rousseau à Internet (2008), que apresenta uma teoria que estabelece
a tentativa de demonstrar os limites da escrita autobiográfica e seus gêneros vizinhos
como a memória, biografia, romance pessoal, poema autobiográfico, diário, autorretrato
e ensaio, bem como evidenciar as fronteiras entre autobiografia e biografia ao
mencionar a complexidade desses gêneros.
De acordo com esse autor, a autobiografia é uma “narrativa em prosa que uma
pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em
particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p. 14). E, no texto de
ficção, a escrita autobiográfica se manifesta no narrador-personagem dada a existência
ficcional na obra da qual faz parte, e tece a narrativa apresentando sua história e
deixando entrever sua personalidade por meio dos relatos e materialização de seus
pensamentos, o que possibilita a construção de um ethos desse personagem, além de
descrever apenas os fatos que lhe interessam com o fim de manipular o leitor.
O diário, enquanto gênero textual, é livre de formas, isto é, não existe um
modelo rígido a ser seguido, considerando também que, inicialmente, não pressupõe
outro leitor que não seja o próprio diarista. No entanto, mesmo apresentando essa
liberdade de formas, o diário “é submetido a uma cláusula aparentemente leve, mas
perigosa: deve respeitar o calendário. [...] O calendário é seu demônio, o inspirador, o
compositor, [...]” (BLANCHOT, 2005, p. 270). Nessa perspectiva, o diarista se vê
motivado a escrever regularmente de acordo com o que ocorre em determinado
momento de sua existência, atento para que os detalhes que deseja registrar não lhe
escapem da memória, fazendo com que a escrita diarística seja fiel ao que o sujeito
deseja transmitir para si mesmo, o que contribui para o caráter de verossimilhança do
texto.
Desse modo, “toda escrita de diário pressupõe a intenção de escrever pelo menos
mais uma entrada que, por sua vez, convocará a seguinte, e assim sucessivamente, [...]”
(LEJEUNE, 2008, p. 270), em um movimento que provoca no diarista a necessidade de
dar vazão àquilo que o sufoca, reprime, alegra, inquieta, e que contribui para a
regularidade da escrita, mesmo quando há ausência de registro durante semanas ou
meses; caso o diarista ache necessário, pode recapitular aquilo que lhe pareceu
importante e que não foi registrado nas datas em que aconteceram por motivos diversos.
Isso acontece, por exemplo, em grande parte dos romances citados e se torna uma
constante na escrita diarística. “O eu narrador não está reconstituindo o mundo narrado
através da memória. O fato, acontecido em passado recente, encontra-se próximo à sua
enunciação, pelo narrador, e essa proximidade assegura a presença da verossimilhança”
(BARCELLOS, 2004, p.115).
Outro ponto a ser comentado é a incoerência, característica desse gênero, o que
torna a escrita não linear. Não existe o compromisso de narrar sequencialmente os fatos
na ordem em que aconteceram: é o sujeito quem seleciona aquilo que deve ser
registrado no diário de acordo com a importância que atribui ao ocorrido. Além do que,
na maioria das vezes, a descrição do cotidiano e as reflexões dessas vivências se
intercalam e seguem o rumo do pensamento do diarista, o qual pode tratar de diversos
assuntos ao mesmo tempo.
Assim, “[...] cada um inventa seu próprio caminho nesse gênero do qual existem
talvez modelos, mas nenhuma regra. É claro que os diaristas têm, apesar de tudo, em
comum, o gosto pela escrita e a preocupação com o tempo” (LEJEUNE, 2008, p. 258).
Pensando nisso, percebe-se que, ao escrever, o diarista, principalmente o ficcional, entra
em contato com sua língua materna e tenta, de acordo com seu nível de formação e
experiência na arte de escrever, se assemelhar ao ourives que lapida pedras preciosas
para dar as formas que lhe convêm. Sobre isso, é interessante tomar como exemplo os
personagens diaristas que se preocupam em manipular as palavras e dispô-las de forma
que a composição se mostre bem elaborada, com escolha vocabular pertinente para cada
caso, como acontece com os diaristas Graciliano Ramos, do romance de Silviano
Santiago, e Belmiro, de Cyro dos Anjos.
Lejeune (2008) também aponta as possíveis funções que o diário pode assumir,
de acordo com as necessidades do diarista. Segundo ele, o diário pode ter a função de
conservar a memória ao fixar o tempo por meio do registro das vivências; sobreviver,
isto é, uma possibilidade de ser lembrado pela memória coletiva; desabafar, expurgar
aquilo que incomoda e sufoca; comunicar-se e conhecer-se; deliberar sobre fatos
vividos e possibilitar decisões que não sejam precipitadas; resistir à pressão social e à
vida; refletir sobre o que ocorre ao seu redor ou sobre um processo de escrita, por
exemplo; e, sentir prazer em escrever, em selecionar as palavras para que se configurem
as representações que deseja formar.
Em vários casos, o diário não possui uma data limite para que possa ser
encerrado. Observa-se que o início da escrita diarística é motivado pela necessidade de
desabafar, conhecer-se, de “administrar a si mesmo, com seu próprio setor de
contenciosos e seus próprios arquivos” (LEJEUNE, 2008, p. 259). É por meio da análise
do eu, daquilo que foi vivenciado no cotidiano, com os erros e acertos, que o sujeito
consegue se administrar, levando em conta os aprendizados que carrega consigo.
Todavia, outros diários já nascem com data de encerramento, como é o caso do
diário de pesquisa e diário de navegações, ou seja, assim que a pesquisa ou viagem
acaba, não há mais a necessidade de manter o diário, pois ele foi criado para um fim
específico.
E quando o diário se insere no contexto ficcional, perde seu caráter de autêntico
documento, mas contribui, ao mesmo tempo, para criar a ilusão de se tratar de algo
verdadeiro, mesmo num texto ficcional, já que o texto autobiográfico, como aponta
Lejeune (2008), pressupõe a veracidade dos fatos, o compromisso com a realidade.
Sua carência de forma, sua fragmentação, sua falta de coerência, o
caráter provisório e espontâneo, suas formulações abreviadas, o feito
de estar livre de ação, de contexto de barreiras estilísticas e de
fronteiras temáticas, sua relação com o mundo, com a vida, todas
essas propriedade do uso privado do diário [...] são vistas agora como
procedimentos literários desejáveis, porque tais propriedades são as
que fazem possível o discurso da obra e da “mentira” do ficcional [...]
(PICARD, 1981, p. 04-05).
Ao mencionar que o diário ficcional perde sua autenticidade como documento,
pode-se explicar esse fenômeno pelo fato de que, no texto ficcional, o diarista manipula
a sequência narrativa com um fim específico: construir no leitor uma imagem que lhe
favoreça, que afaste más impressões, por exemplo. E isso pode provocar um conflito de
ideias, um jogo entre mentira e verdade: ao mesmo tempo, a identidade do narrador-
personagem pode se chocar com as verdades ali inseridas.
2. Os dilemas do processo de escrita no romance Diário de um fescenino
Rubem Fonseca, conhecido por suas criações voltadas para a narrativa de cunho
policial, inova-se no romance Diário de um fescenino ao utilizar-se dessa obra a fim de
discorrer, entre outros assuntos, sobre o processo de escrita literária a partir dos
registros de um diário. A experiência com personagens escritores ocorre em outras
obras do autor, como O caso Morel (1973), seu romance de estreia. Suas marcas
registradas como o erotismo, a violência e o tom policial que lhe são comuns se fazem
presentes nessa obra, porém, de forma mais branda.
O romance gravita em torno do narrador-personagem-escritor Rufus, que se vê
no impasse de não conseguir escrever um romance de formação à maneira dos grandes
escritores que são referência para a literatura mundial. Então, a partir da ausência de
inspiração/ideias para a criação do que seria sua obra-prima, Rufus passa a registrar seu
cotidiano e suas reflexões em um diário mantido em seu computador.
Rufus é um personagem efêmero, ateu e extremamente insatisfeito com a vida e
com as mulheres, transmitindo a imagem de um ser incompleto que sobrevive em meio
a uma transição de identidades, o que é comum na contemporaneidade: um sujeito que
não possui uma identidade única, mas é formado por várias identidades imbricadas.
Sobre a prática da escrita diarística, é importante salientar que Rufus é um
diarista moderno, já que não registra suas anotações em cadernos ou livros destinados
para esse fim: utiliza um arquivo contínuo que permanece salvo em seu computador, um
dos símbolos da tecnologia e, consequentemente, da modernidade. E, por esse motivo,
surge uma inquietação: pressupõe-se que aquilo que foi registrado nas páginas de um
diário não pode ser alterado, a não ser que o diarista volte atrás ou reformule algo que
foi dito em outra entrada do diário. E por utilizar um editor de textos, pode-se pensar na
possibilidade de modificação do texto. No entanto, Rufus afirma que não faz questão de
ler o que já escreveu, e para isso utiliza um recurso de seu computador: “quando abro o
arquivo e o texto inicial entra na tela do monitor, imediatamente eu clico as teclas
control+end e vejo apenas as últimas palavras do arquivo aberto” (FONSECA, 2003, p.
81).
De forma geral, paralelamente à escritura do romance de formação, Rufus
registra em seu diário determinados momentos que lhe são importantes, como os
relacionamentos bígamos que mantém, em momentos distintos, com Henriette e Lucia,
e depois com Clorinda e Virna, filha e mãe, respectivamente; ou seu desejo sexual que
só é saciado quando se envolve com duas mulheres de personalidades distintas, de
modo que uma complete a outra.
Não é fácil empulhar simultaneamente duas mulheres ciumentas e
possessivas. As mentiras ficam cada vez mais complexas, como um
jogo de xadrez, [...]. Sinto-me exausto quando penso nas manobras
ardilosas que preciso realizar, mas por outro lado duas mulheres
mantêm o fogo aceso, e eu obtenho uma certa satisfação com a minha
astúcia (FONSECA, 2003, p. 38).
Além disso, os registros diarísticos também apresentam seu envolvimento na
investigação sobre os pais de Clorinda; as denúncias de abuso sexual levadas a termo
por Virna quando descobre que Rufus se relacionava com sua filha; o aparecimento do
pai de Clorinda, Leandro; a prisão do narrador-personagem; e o início de um novo ciclo
de vida.
Por ser um narrador-escritor, Rufus se vê em meio a alguns problemas quando se
relaciona com pessoas que são leitoras de seus livros. As mais perspicazes afirmam que
os personagens de suas obras, na verdade, revelam o próprio autor, e para auxiliar nessa
discussão, Rufus relembra um personagem de Philip Roth e dá origem à Síndrome de
Zuckerman. “Sempre preferi que as pessoas que conheço não leiam o que escrevo,
principalmente após descobrir que sou uma irrecuperável vítima da síndrome de
Zuckerman” (FONSECA, 2003, p. 16). Em seguida, após mais algumas entradas, Rufus
explica melhor em que consiste essa síndrome.
Zuckerman é um personagem de Philip Roth que decide escrever um
livro. Quando o livro é publicado, o inferno de Zuckerman começa.
Os leitores, ao se encontrarem com ele, fazem-lhe as piores acusações:
Zuckerman, como você foi dizer aquela coisa horrível da sua santa
mãe, Zuckerman você é um homem mau, chamar o seu melhor amigo
de ladrão; [...] Os leitores acreditavam que o personagem do livro era
o alter ego do autor e que tudo o que ele dizia no seu livro se aplicava
a ele e aos seus amigos e parentes, [...] (FONSECA, 2003, p. 148).
Percebe-se que, no romance de Philip Roth, como mencionado por Rufus, os
leitores dos livros de Zuckerman não conseguem desvincular a imagem do autor de seus
personagens e conceber a ideia de que esses personagens são seres independentes com
existência ficcional na obra em que estão inseridos. E essa confusão também se faz
presente por meio dos livros de Rufus, o qual é acusado de poder ser decifrado a partir
de seus livros, principalmente por preferir escrever na primeira pessoa, o que facilita
essa visão zuckermaniana. Na passagem a seguir, Lucia se revolta com os discursos de
Rufus que, segundo ela, são vozes dos personagens de suas obras: “Seus livros dizem
tudo. Você me diz uma coisa que me deixa encantada e de repente vejo que está num
dos seus livros, igualzinho, faz parte do seu arsenal de torpedos velhos. Eles não
explodem mais, entendeu?” (FONSECA, 2003, p. 62).
Tal fato traz uma importante discussão acerca da concepção do texto literário.
De acordo com os pressupostos de Umberto Eco (1999), ao tratar da representação da
realidade, o texto literário é um parasita do mundo real, visto que o escritor utiliza
elementos vinculados à realidade circundante e acrescenta sua imaginação ao manipular
as palavras para criar a obra literária. Logo, é possível que haja semelhanças de
personalidade entre personagem e autor, ou entre qualquer personagem e um ser real, se
é levado em consideração o que foi dito por Eco (1999), o qual aponta como o leitor
deve lidar com uma obra ficcional quando está diante dela:
A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o
leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge
chamou de “suspensão da descrença”. O leitor tem de saber que o que
está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve
pensar que o escritor está contando mentiras. De acordo com John
Searle, o autor simplesmente finge dizer a verdade. Aceitamos o
acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu
(ECO, 1999, p. 81).
Desse modo, faz-se necessário que o leitor encare a obra literária como verdades
ficcionais que existem a partir de personagens, tempo e espaço ficcionais, que podem
ser concebidos a partir de resquícios da realidade, mas que devem ser vistos como
criações imaginárias. O que não acontece com os leitores de Rufus, os quais insistem
em afirmar que ele utilizava seus livros para extravar seus pensamentos e desejos
escondidos. E, por meio da análise do fragmento a seguir, percebe-se que Rufus
comunga das ideias de Eco (1999).
Quanto a mim, se não uso a minha imaginação, como neste instante, e
falo apenas da realidade, estou sendo simplesmente o rabiscador de
um diário, um registrador cotidiano e fidedigno de uma jornada de
ocorrências, experiências e observações. Não sou um verdadeiro
autor, ao escrever este diário. Literatura é imaginação (FONSECA,
2003, p. 158).
Assim, é perceptível que Rufus conceba um valor literário ao diário que
mantém, ao mencionar que usa a imaginação para registrar fatos e reflexões sobre o
cotidiano, fazendo com que o gênero perca a sua autenticidade, já que não há
compromisso com a realidade imediata. Em função disso, o leitor está diante de
construções imaginárias, não apenas descrições exatas da realidade. O autor está, a
partir do diário, construindo um texto literário.
Bakhtin (2010, p. 400) aponta que a romancização dos outros gêneros ocorre,
dentre vários fatores, quando “são largamente penetrados pelo riso, pela ironia, pelo
humor, pelos elementos de autoparodização”. E por meio da autoparodização, percebe-
se que Rufus, além de se valer suas anotações para refletir e deliberar sobre o que fazer,
também utiliza o diário para satirizar uma de suas funções essenciais e que, pode-se
dizer, seja a função que indique o início ou necessidade de manter um diário: o
conhecer-se.
O Barthes diz que o que um diário postula não é a trágica pergunta do
louco “Quem sou eu?”, mas a cômica pergunta do desnorteado:
“Sou?”. Um comediante, é isso que é o sujeito que escreve um diário.
[...] Quero deixar claro que não estou, à maneira de Kierkegaard,
buscando um caminho para atingir a serenidade espiritual através de
Deus, eu sou ateu, [...]. O que sinto é uma consciência de mim mesmo
[...]. Isso será causado por eu estar escrevendo este meu autorretrato
disfarçado de diário? Estarei, inconscientemente, escrevendo este
diário para descobrir quem sou, trazer à tona os crimes que cometi,
[...], para encontrar um sentido para a minha vida? O mesmo impulso
que leva o poeta a escrever poesia? (FONSECA, 2003, p. 200).
Ao retomar as palavras de Barthes, Rufus utiliza os recursos do humor e da
ironia para apresentar a ideia de que o diário seria uma forma de o sujeito descobrir se
realmente é quem pensa ser, uma inquietação indubitavelmente mais complexa do que
tentar descobrir quem esse sujeito é. Nessa linha de raciocínio, o narrador-personagem
ainda considera o diarista – e a si próprio, já que igualmente mantém um diário – um
comediante em função dessas inquietações.
Além disso, Rufus deixa claro que seu propósito de manter um diário não é
atingir a serenidade espiritual, considerando-se que é ateu, bem como não escreve de
acordo com nenhuma filosofia existencialista.
Observa-se que, na primeira entrada do diário, com a data de 1º de janeiro,
Rufus menciona a decisão de escrever um diário e afirma que não reconhece os motivos
que o levaram a isso. E em seguida, confere aos registros um tom metaficcional ao
escrever que “um diário, como o nome indica, é um registro cotidiano de experiências,
observações, sentimentos e atitudes do seu autor e das suas interações com aqueles que
o cercam. Pode ser que fique algum dia sem nada escrever aqui, [...]” (FONSECA,
2003, p. 14). Ou seja, diz para si mesmo como deve ser utilizado o seu diário, o que
escrever e a regularidade das anotações que possuem alguns lapsos temporais, visto que
o diarista nem sempre consegue anotar o que lhe interessa na data dos acontecimentos.
Um exemplo disso acontece no momento em que Rufus interna-se na Casa de
Repouso Belvedere com o objetivo de ajudar Clorinda a desvendar seu passado e
descobrir se a personagem Virna é sua mãe – e não irmã, como afirma. E, nesse curto
período de tempo em que permanece internado, Rufus escreve seus registros diários em
um caderno pautado para que possa reservar os momentos mais significantes dessa
passagem pela clínica.
Estou escrevendo num caderno pautado. Detesto escrever à mão,
sempre escrevi batendo em teclados, no início em máquinas de
escrever, depois no computador. Escrever à mão me irrita, me sinto
burro. Mas tenho que fazer isso, não quero ser notado pelos outros,
um sujeito escrevendo num caderno pode muito bem passar por
maluco. Depois vou transcrever tudo para o computador (FONSECA,
2003, p. 93).
De certa forma, ao anotar suas primeiras impressões sobre o lugar e a
necessidade de encontrar Virna, Rufus utiliza essas anotações como meio de reflexão e
de deliberação, duas funções do diário apontadas por Lejeune (2008), para que a escrita
oriente-o qual caminho seguir: “Devia começar logo a procurar por Virna, [...]? Será ela
uma residente bem-comportada? [...] Qual dessas mulheres? [...] Que tipo de abordagem
devo usar?” (FONSECA, 2003, p. 94). E, por meio desses questionamentos, o
personagem constrói um fio de raciocínio estratégico que o ajude a encontrar quem
deseja. Um eu que entra em contato com outro eu a fim de analisar os prós e os contras
da situação para que a melhor decisão seja tomada, livre de erros que o impeçam de
continuar seu plano.
A respeito do assunto, Carlos Castilla del Pino (1996) ao desenvolver sua teoria
da intimidade, comenta que “las actuaciones humanas son representaciones de un yo3
(PINO, 1996, p. 15, grifos do autor), isto é, as ações que executamos no cotidiano
exigem uma dada imagem/personalidade que construímos para atender determinadas
situações de acordo com a necessidade instaurada em cada contexto.
Si las actuaciones humanas son representaciones de un yo, se puede
afirmar, más precisamente, que para cada actuación/representación se
construye un yo. Dado que podemos llevar a cabo muy varias
actuaciones, todos poseemos múltiples yos. Llamo sujeto al «órgano»
que construye el yo para cada actuación, o recupera o restaura un yo,
previamente construido, […]4 (PINO, 1996, p. 15, grifos do autor).
3 As ações humanas são representações de um eu (tradução nossa).
4 Se as ações humanas são representações de um eu, pode-se afirmar, mais precisamente, que para
cada ação/representação se constrói um eu. Uma vez que podemos realizar várias ações, possuímos múltiplos eus. Chamo de sujeito o "órgão" que constrói, recupera ou restaura um eu, previamente construído, para cada ação, [...]. (tradução nossa).
Como o sujeito, ao longo do dia, executa muitas ações, vários eus são
construídos e acessados de acordo com as demandas das representações estabelecidas
pelo próprio sujeito, o qual é considerado pelo autor um eu principal, uma instância que
organiza e controla os eus. Além disso, armazena e registra os módulos de eus forjados
com antecedência e os dispõe para seu uso.
No contexto da obra de Fonseca é perceptível que Rufus se configura como o eu
principal que reorganiza ou restaura os outros eus a partir das situações instauradas na
narrativa. Por exemplo: quando se encontra com suas namoradas, coloca em evidência o
eu fescenino que se relaciona com duas mulheres ao mesmo tempo e que precisa disso
para se sentir potente/homem; em outro momento, o narrador-personagem acessa o eu
detetive a fim de tentar descobrir informações sobre o passado de Clorinda, utilizando
conhecimentos específicos dessa área, à moda do personagem Mandrake, do romance A
grande arte (1983), também de Fonseca.
Noutro momento, Rufus recupera um eu filosófico e passa a refletir sobre a
natureza das coisas, a vida, as mulheres, e a literatura, buscando possíveis respostas para
suas inquietações, e o diário tem um papel importante nesse diálogo interior. E em outra
situação, quando está diante de seu computador, o narrador-personagem resgata o seu eu
escritor que não consegue escrever seu romance de formação e se frustra por isso,
colocando em evidência suas preocupações relativas ao assunto e a cobrança feita por
seu editor, J. S., o qual está ávido por uma nova obra que traga muitos lucros.
[...] o sujeito do “discurso” pode permitir que a fragmentação de sua
identidade se mostre plenamente ao optar por uma ou outra
identidade, assim como expõe Stuart Hall, ao diagnosticar que o
sujeito “está se tornando fragmentado; composto não de uma única,
mas de várias identidades.” Diante dessa “liberdade de exposição”, o
sujeito pode escolher qual perfil destacar ou enfatizar através de sua
escrita diarística (BARCELLOS, 2004, p.118).
Ainda sobre a teoria da intimidade, Pino (1996) discorre sobre a existência de
um eu íntimo, que é acessado apenas pelo sujeito que o constrói; um eu suposto, aquele
que é visto, imaginado; e um eu mostrado, que se caracteriza como aquele que o eu quer
que seja visto pelos outros. Nesse sentido, pressupõe-se que o diário revela o íntimo,
entretanto, até que ponto uma ação é inteiramente real? Chega-se a conclusão de que em
várias situações o sujeito projeta um eu mostrado, que não é real, mas que tem um
propósito para determinada ocasião: uma imagem construída para chamar a atenção ou
impressionar alguém, por exemplo.
E na história de Rufus há um jogo bastante dinâmico entre esses três eus:
primeiramente, há a presença de um eu suposto, isto é, como as pessoas caracterizam e
imaginam Rufus de acordo com suas ações e personagens de suas obras; de outro lado,
o eu mostrado, a partir da imagem que o narrador-personagem se esforça para
apresentar à sociedade, negando qualquer possibilidade contrária. Aqui, pode-se
levantar uma hipótese: Rufus não estaria manipulando, por meio do diário, a imagem de
um sujeito pacífico, já que o diário pressupõe uma autenticidade ao se esperar que o
sujeito confidencie em suas páginas aquilo que não compartilha com as pessoas? E, por
fim, o eu íntimo que não pode ser acessado pelo leitor.
El escenario íntimo posee la propiedad de ser observable sólo para el
sujeto. […] La comunicación de lo que imaginamos es, todo lo más, la
verbalización de lo imaginado, pero no la mostración de lo
imaginado. Lo íntimo puede decirse, no mostrarse. […] El escenario
de las actuaciones privadas es necesariamente observable, porque,
aunque se hagan a solas, son actuaciones exteriorizadas. […] El
escenario público, en contraste con el privado y aún más con el
íntimo, se dispone de forma tal que las actuaciones sean precisamente
observables5 (PINO, 1996, p. 19-20, grifos do autor).
O cenário, tomado como um contexto, situação ou ambiente físico é um espaço
elaborado para a representação das ações constituídas pelo sujeito e preparado pelos
agentes (personagens) na medida em que agem, se transformando incessantemente.
Assim, um mesmo lugar físico atua como diferentes ambientes. Uma prova disso é o
relacionamento entre Rufus e Clorinda/Virna: quando se encontravam na casa de Rufus
ou na casa delas para satisfazerem seus desejos sexuais, a primeira era mais centrada,
delicada, ou seja, se portava de forma donzelesca; já a segunda possuía um fogo sexual
insaciável, gostava de falar palavrões e outros impropérios que levavam Rufus à
loucura. Logo, o mesmo espaço físico se transformava segundo a situação e os
personagens que nele estavam.
5 O cenário íntimo possui a propriedade de ser observável apenas para o sujeito. [...] A comunicação do
que nós imaginamos é, no máximo, a verbalização do que se imaginava, mas não a apresentação do que
se imaginava. A intimidade pode ser dita, não mostrada. [...] O cenário das ações privadas é
necessariamente observável, porque, embora sejam isoladas, são ações exteriorizadas. [...] O cenário
público, em contraste com o privado e ainda mais com o íntimo, se dispõe de tal forma que as ações são
precisamente observáveis (tradução nossa).
No tocante ao romance de formação (Bildungsroman) que Rufus tenta escrever,
percebe-se que o personagem conhece uma variedade considerável de técnicas de
criação literária, baseando-se naquelas utilizadas por grandes autores da literatura
mundial, porém, não consegue desenvolvê-las, talvez por cobrar tanto de si o
desenvolvimento dessas técnicas em seu texto, o que de certa forma elevaria o valor
literário de sua obra, é claro, na visão do personagem.
Esse meu novo livro não terá, como os outros que escrevi,
personagens infelizes enredados nas vicissitudes cotidianas. Será
inflado com detalhes de um episódio importante da história universal,
terá muitas páginas – os leitores gostam de romances grossos, nem
que seja para apenas colocar na estante [...]. O oposto do que estou
escrevendo aqui neste diário chinfrim (FONSECA, 2003, p. 44).
Nesse trecho, vê-se que o narrador-personagem está preocupado em escrever
uma obra de que afete os leitores de qualquer forma, pois não considera aquilo que
deseja imprimir ao texto, mas o que público gosta, como uma literatura de encomenda.
Além disso, Rufus faz questão de inferiorizar o diário, assim como o senso comum
estabelece na sociedade, como se esse gênero fosse algo desnecessário e sem utilidade
para o sujeito. Em seguida, menciona: “estou treinando a forma dialogada de escrever.
Tenho um bom ouvido, acho que estou indo bem, mas depois, na minha ficção,
pretendo usá-la com extrema parcimônia. O diálogo é sabidamente um recurso de
escritores medíocres” (FONSECA, 2003, p. 19).
Rufus utiliza o diário para ponderar e escrever um rol de recursos estilístico-
literários que podem ser utilizados em seu romance de formação, e talvez o romance
não esteja efetivamente sendo escrito justamente porque o personagem-escritor se ocupa
em descrever, listar e classificar categorias de recursos textuais em vez de utilizá-los no
texto. E o diário atua como um meio de deliberar sobre o que fazer, assumindo a forma
de um rascunho do que seria o romance, ou melhor, um projeto de texto interminável
que na verdade não ajuda a elaborar o texto em si.
Em outra passagem, o narrador-personagem explica: “gostaria de narrar tudo
através de diálogos; quando estivesse sozinho dialogaria comigo mesmo. No fundo é o
que os escritores fazem, quando não têm interlocutor, falam consigo mesmos, ou, como
se dizia antigamente, ‘falam com seus botões’” (FONSECA, 2003, p. 100). Mais uma
vez, o diário atua como esse interlocutor que recebe os desabafos dos escritores, nesse
caso os desabafos de Rufus, e permite que ele fale com seus botões.
Sequencialmente, durante a narrativa, Rufus faz questão de evidenciar que não
consegue escrever seu romance de formação, e até menciona o escritor espanhol Vila-
Matas, autor do romance Bartleby e companhia, que narra a história de Bartleby,
empregado em um cartório de Nova York que se mostrava muito ativo na execução dos
trabalhos, mas que é tomado de uma paralisia que o impede de fazer quaisquer serviços.
Vila-Matas, o espanhol, fala na síndrome de Bartleby, um sintoma
mórbido de inspiração melvilliana que paralisa os escritores, fazendo-
os renunciar à literatura. Eu não me incomodaria de sofrer dessa
doença que acomete tantos dos meus colegas, fazendo-os desistir de
escrever. (FONSECA, 2003, p. 148).
E Rufus não se importaria em sofrer dessa doença, visto que seria uma válvula
de escape que poderia ser utilizada para exemplificar os motivos pelos quais ele não
conseguiu findar seu romance de formação, fazendo-o desistir de escrever. “O diário
pode ser uma forma de expurgar culpas, [...], um relato subjetivo sobre um processo de
escrita paralelo à escrita do próprio diário. Nele, ficariam gravadas as dificuldades, a
contabilidade de erros e acertos na geração de uma outra narrativa” (BARCELLOS,
2004, p.117).
Nesse sentido, essa válvula de escape não serviria, senão, para o próprio Rufus
aceitar sua possível inabilidade para escrever tal gênero literário; uma confirmação da
qual ele necessitava, mas que o acometesse na forma da síndrome de Bartleby para que
ele próprio não reconhecesse essa falta de competência enquanto escritor.
E, no final do romance, na última entrada, datada de 31 de dezembro, Rufus
conta que ficou preso por noventa e sete dias e faz um resumo dos principais
acontecimentos desse período em que esteve preso. Ainda nessa entrada, o narrador-
personagem dá indícios de que um novo ciclo se inicia a partir daquele momento. E, nas
linhas finais, Rufus reconhece o quanto aprendeu com tudo que escreveu no diário, e
termina dizendo: “Bildungsroman: que coisa mais boba” (FONSECA, 2003, p. 148).
Considerações finais
O mérito do romance Diário de um fescenino é desvelar e refletir sobre o
processo de escrita da obra literária e, de modo geral, da função e uso do diário, o qual
pressupõe um compromisso com a verdade imediata. E, nesse labirinto em que se
constrói o processo de escrita, percebe-se a tentativa que Rufus estabelece para
desvincular-se de seus protagonistas. Desse modo, a escrita revelaria o sujeito?
Com base nos postulados de Pino (1996) é evidente que a escrita diarística
revela o sujeito até certo ponto, visto que existe um espaço íntimo que só pode ser
acessado pelo sujeito, mesmo quando ele verbaliza o que pensa; o leitor, como já foi
dito, se insere no espaço privado, onde as ações são apenas observáveis.
Além disso, o diário pressupõe a manipulação de um eu que escreve. É
perceptível que Rufus manipula uma imagem de um sujeito sossegado, mesmo com as
relações conturbadas que incita em seu cotidiano. E essa imagem tranquila é reafirmada
quando se interna numa casa de repouso apenas para descobrir a mãe de Clorinda, ou
quando trata das acusações de estupro de forma natural. Existe, é claro, um desejo de
resolver os problemas relativos a esse suposto crime, mas Rufus não faz questão de se
exaltar por isso, ou pelo menos, isso não é revelado/descrito no diário.
Ao longo do diário, o narrador-personagem seleciona e organiza os fatos que
deseja mostrar ao leitor no momento em que lhe convém, de acordo com a impressão
que deseja causar. E, sobre o romance de formação, percebe-se que o diário, na verdade,
cumpriu essa lacuna: de uma forma ou de outra, o diário assumiu a função de um
romance de formação ao deixar entrever a personalidade do narrador-personagem, suas
escolhas, seus dilemas, suas insatisfações e reflexões, bem como os seus prazeres.
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