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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JLIO DE MESQUITA FILHO
FACULDADE DE CINCIAS E LETRAS CAMPUS DE ARARAQUARA
ISABELLEREGINA DEAMORIM
UUMMAAPPOOTTIICCAADDAADDUUAALLIIDDAADDEE::
IIDDEENNTTIIDDAADDEEEEIINNTTEERRTTEEXXTTUUAALLIIDDAADDEENNOOTTEEAATTRROODDEE
JJOOSSRRGGIIOO
Araraquara, 2006
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JLIO DE MESQUITA FILHO
FACULDADE DE CINCIAS E LETRAS CAMPUS DE ARARAQUARA
ISABELLEREGINA DEAMORIM
UUMMAAPPOOTTIICCAADDAADDUUAALLIIDDAADDEE::
IIDDEENNTTIIDDAADDEEEEIINNTTEERRTTEEXXTTUUAALLIIDDAADDEENNOOTTEEAATTRROODDEE
JJOOSSRRGGIIOO
Dissertao apresentada ao Programade Ps-Graduao em Estudos
Literrios da Faculdade de Cincias eLetras da UNESP, campus deAraraquara, para obteno do ttulode Mestre.Orientao: Prof Dr Renata SoaresJunqueira.
Araraquara, 2006
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ISABELLEREGINA DEAMORIM
UUMMAAPPOOTTIICCAADDAADDUUAALLIIDDAADDEE::
Identidade e Intertextualidade no Teatro de Jos Rgio
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos
Literrios da Faculdade de Cincias e Letras da UNESP para ser submetida apreciao da
seguinte Banca Examinadora:
Orientadora:
______________________________________________________________________________________________________________________Prof. Dr. Renata Soares JunqueiraDepto. de Literatura FCL UNESP Araraquara
Examinadora:
______________________________________________________________________________________________________________________Prof. Dr. Zina Maria BellodiDepto. de Literatura FCL UNESP Araraquara (aposentada)
Examinadora:
________________________________________________________________________________________________________________________Prof. Dr. Marlise Vaz BridiDepto. de Letras Clssicas e Vernculas FFLCH USP So Paulo
Araraquara, 10 de abril de 2006.
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minha Me que sempre lutou muito para que
eu estudasse e chegasse at aqui;
Ao meu Pai que, de l de cima, deve estar
orgulhoso;
minha Irm pelo incentivo e ajuda constante;
Ao meu Irmo pela contagiante determinao;
Ao meu Namorado, agora Esposo, pela
pacincia.
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AGRADECIMENTOS
A Deus.
minha Orientadora pela amizade, contribuio intelectual e preciosas correes.
s amigas do curso de Letras que acompanharam o comeo de tudo.
Aos meus familiares, sempre prximos, que nunca me desencorajaram.
Obrigada por tudo!
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Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentropara fora, outra que olha de fora para dentro...
Machado de Assis
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Um galo sozinho no tece uma manh:ele precisar sempre de outros galos.
Joo Cabral de Melo Neto
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Resumo
Esta Dissertao de Mestrado prope uma reflexo sobre a produo dramtica dopresencista Jos Rgio, observando a temtica do sujeito duplo que se infiltra nas suas
personagens, figuras que parecem viver, sempre, um mesmo drama: o drama da identidade.
Constatamos que os protagonistas regianos encontram-se perturbados por no saberem quem
realmente so e por no conseguirem compreender as suas angstias ntimas, que esto em
constante conflito com as suas aparncias exteriores. Tais personagens sofrem com a sua
dupla natureza (aparncia e essncia) que se materializa no palco, e este acaba se tornando um
espao apropriado para uma luta interior. A investigao sobre o tema do indivduo duplo
acabou por constituir, enfim, o suporte para estudarmos a produo teatral do autor. Contudo,
notamos que a questo da duplicidade no se manifesta apenas no conflito ntimo das
personagens, mas tambm no modo de composio teatral das peas de Jos Rgio. Com a
leitura da sua obra dramtica notamos que os textos de Rgio, em dilogo com outros textos
da tradio literria, histrica e de cultura crist, sugerem sentidos dbios (duplos, no
mnimo), sendo a intertextualidade o recurso usado pelo autor para a elaborao das suas
peas. Com efeito, quando lemos os dramas de Rgio somos reportados a um universo onde
as coisas tm sentidos mltiplos e a duplicidade/dubiedade se instaura em tudo. Deste ponto
de vista, percebemos que o teatro regiano construdo tendo como base dualidades, tanto na
sua temtica dominante quanto na sua construo formal. Analisando, pois, as peas Jacob e o
Anjo (1940) e Mrio ou Eu-Prprio O Outro (1957), procuramos definir uma espcie de
potica para a dramaturgia regiana, qual denominamos potica da dualidade.
Palavras-chave: Jos Rgio, dramaturgia moderna, teatro portugus, duplo, intertextualidade.
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Sumrio
APRESENTAO...........................................................................................................................8
I Parte
1JOS RGIO E A LITERATURA DRAMTICA NO CONTEXTO DA PRESENA.................................15
2ARTICULAES DO DUPLONA LITERATURA DRAMTICA E NO ESPETCULO...........................27
3OMITO DO DUPLO:HISTRICO E MANIFESTAES...................................................................36
4 O CONHECIMENTO DE SI PELA FIGURA DE OUTREM: A EXPERINCIA DA FRAGMENTAO EMMRIO OU EU-PRPRIOOOUTRO............................................................................................54
5 A IDENTIDADE HUMANA E O MEDO DA MORTE: A QUESTO DA DUPLICIDADE EM JACOB E OANJO..........................................................................................................................................70
II Parte
6 A INTERTEXTUALIDADE OU O MOVIMENTO DUPLO DA LINGUAGEM PERMEANDO ALITERATURA MODERNA..............................................................................................................86
7A INTERTEXTUALIDADE COMO ASPECTO ESTRUTURAL NA PEAMRIO OU EU-PRPRIOOOUTRO........................................................................................................................................97
8ODILOGO INTERTEXTUAL MTICO EMJACOB E OANJO........................................................121
III Parte
CONSIDERAES FINAIS:TENDNCIA PARA UMA POTICA DA DUALIDADE..............................134
REFERNCIAS...........................................................................................................................148
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APRESENTAO
Este trabalho prope uma reflexo crtica sobre a produo dramtica do
modernista portugus Jos Rgio, com nfase na relao que se estabelece, nessa obra, entre o
tema da identidade fragmentada que caracteriza quase todas as personagens criadas pelo
autor e a construo formal das peas, baseada em dualidades obtidas atravs do recurso da
intertextualidade.
Com efeito, o teatro de Rgio trata da duplicidade do ser apresentando, num plano
temtico, personagens cindidas, que vivem em conflito consigo mesmas; e, a par disto, noplano formal, o texto dramtico regiano dialoga sistematicamente com vrios outros textos,
sugerindo assim um sentido que tambm , no mnimo, duplo. Pensando nisso, propomos, e
procuraremos demostrar, que o teatro de Rgio envolvido por uma atmosfera de dualidades
que se estebelecem tanto no nvel temtico como no da elaborao textual.
Os protagonistas do teatro de Rgio parecem viver um mesmo drama: o drama da
identidade. Eles encontram-se perturbados por no saberem quem realmente so e por no
conseguirem compreender as suas angstias interiores, que se confrontam com as suas
aparncias fsicas. Nos textos regianos, tais figuras se desdobram em outras aparentemente
dspares, mas que no deixam de ser as mesmas, como se representassem duas faces de uma
mesma moeda. Estas personagens sofrem com a sua dupla natureza (aparncia e essncia),
que se materializa no palco tornando-se este, desta forma, o espao apropriado para um
conflito que , em ltima anlise, de foro ntimo.
Em congruncia com o sentimento de crise existencial de que sofrem os artistas do
tempo de Rgio como considera Nicole Fernandez Bravo, a dissoluo do eu, que se perde
num conjunto mais vasto, a realidade do sculo XX (Bravo, 2000, p. 284) a moderna
temtica regiana do ser cindido, dissociado em mltiplos fragmentos, a questo mais
explorada em toda a produo artstica deste fundador da Presena. De resto, trata-se de uma
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problemtica que perfaz a dialtica fundamental de toda a poesia moderna, dentro e fora de
Portugal: o homem dilacerado o prprio reflexo do seu mundo moderno um mundo
tambm fragmentado, marcado pela multiplicidade, pelo estilhaamento da Verdade.
Contudo, no teatro de Jos Rgio, especificamente, percebemos que no apenas os
indivduos so duplos, mas a prpria composio textual das peas tambm sustentada por
dualidades, na medida em que o mecanismo da intertextualidade, proporcionando ao texto
uma multiplicidade de leituras e interpretaes, cuidadosamente explorado pelo autor. Nos
dramas de Rgio assim como ocorre em grandes obras da modernidade , o dilogo
intertextual explcito e recorrente. Cabe ressaltar que a intertextualidade no um fenmeno
novo na literatura; todavia, a partir do sculo XIX, que esse inter-relacionamento [de
discursos] aparece como algo sistemtico (Moiss, 1978, p. 59).
A intertextualidade evocando duplos, mltiplos sentidos para o texto
atualizada nas produes dramticas regianas quando nestas percebemos um dilogo com
textos de uma certa tradio literria e histrica de formao crist. Este mecanismo de
elaborao textual, bastante produtivo na poca moderna, como dissemos, instaura no teatro
regiano um universo ambguo em que os vrios sentidos se misturam e a dubiedade dos
significados torna-se evidente em todas as peas.
Acreditamos, enfim, que em Rgio a infiltrao de outros textos literrios nas
entrelinhas dos seus prprios textos reflete, formalmente, o mesmo procedimento que institui,afinal, todas as suas personagens: seres dilacerados, dissociados, tensionados pela moderna
dialtica do eu e do outro. Do nosso ponto de vista, alis, a peculiaridade de Jos Rgio como
dramaturgo reside, principalmente, nessa ambigidade que constitui a sua obra teatral. Tais
dualidades to frutferas na dramaturgia do autor, bom lembrar , fazem-se presentes
tambm em toda a sua produo artstica. Tanto as suas peas, como os seus romances e
poemas tm como leitmotiv uma tenso que se manifesta na elaborao lingstica e na
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temtica, conferindo obra regiana um carter essencialmente dramtico, como j observou o
estudioso Luiz Francisco Rebello:
[...] o drama , sem dvida, a expresso para que tende a obra de Rgio, que
toda ela um dilogo incessante (e infindvel) entre o que poder definir-se
esquematicamente por matria e esprito, corpo e alma, ou, com mais
propriedade, entre o que no homem eterno (ou votado eternidade) e o que
transitrio (ou condenado a desaparecer), entre o que o atrai para Deus (se
assim quisermos chamar ao absoluto, ao infinito, ao inapreensvel) e o que o
prende terra ( sua condio temporal e humana). Da o tom oratrio,
imprecativo, apostrofante, da sua mais caracterstica poesia, que, lida,
irresistivelmente evoca no s a voz do actor que a declame, como o
interlocutor que lhe responda e uma audincia que a escute. (REBELLO,
1971, p. 221).
Deste modo, o teatro de Rgio revela-se, surpreendentemente, representativo do
seu modo de fazer literatura, j que toda a sua produo se define por uma tendncia ao
conflito dramtico, provocado por um dilogo incessante entre o eu e o outro, Deus e o
Diabo, a essncia e a aparncia, o finito e o perene, etc. Essa nfase no conflito, prpria do
gnero dramtico, se configura, ao analisarmos a prosa regiana, no embate entre as
personagens que, no relacionamento com os seus respectivos alteregos, revelam-se como
figuras em crise de conscincia e de identidade; j na obra potica do autor, tal dialtica se
apresenta de forma potencial, visto que os seus poemas apresentam um tom oratrio que
sugere sempre um virtual interlocutor.
Essa tendncia dialgica, que a obra de Jos Rgio assume sistematicamente,
levou-nos a querer saber como o conflito dramtico que se manifesta, ressaltamos, em toda
a produo artstica do autor se configura, especificamente, no seu teatro. Deste modo, o
nosso objetivo primordial, neste trabalho, investigar as dualidades que se apresentam,
temtica e formalmente, nas peasJacob e o Anjo(1940) e Mrio ou Eu Prprio O Outro
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(1957), nas quais o embate entre as personagens duplas e o dilogo entre textos (a
intertextualidade) d-se de maneira precisa e evidente.
Em Jacob e o Anjo existe um Rei que, muito apegado ao poder e aos bens
materiais, acaba vivendo apenas de aparncias; quando se encontra com o seu duplo um
Bobo/Anjo , a majestade acaba percebendo que no s de exterioridade vive o homem, mas
de uma complexa subjetividade que no se resigna s convenes sociais da vida de
aparncias. No plano formal, esta pea dialoga com o episdio bblico explicitado pelo ttulo e
tambm com um texto da historiografia portuguesa: a crnica do rei Afonso VI, que inspira a
personagem do Rei na pea de Rgio.
J em Mrio ou Eu-Prprio O Outro (1957), temos uma fictcia reviso dos
ltimos momentos vividos pelo poeta de Orpheu, Mrio de S-Carneiro. O personagem
regiano, Mrio, um poeta que planeja suicidar-se depois de ter escrito o seu epitfio. Ao
deparar-se com o seu alterego, aqui chamado simplesmente o Outro, Mrio trava com ele
uma discusso e acaba revelando o seu tdio de viver. No final da pea, o Outro mostra a
Mrio que o que faz dele um gnio a essncia criativa que reside no mais profundo do seu
prprio ntimo e que supera orgulhosamente todas as suas limitaes fsicas que tanto o
incomodam assim como S-Carneiro, a personagem regiana desdenha da sua prpria
aparncia fsica, da sua figura de papa aorda. Nesta pea, quase todas as falas do
protagonista dialogam com a produo literria do artista de Orpheu, revelando umaintertextualidade explcita e sistemtica.
A escolha destas duas peas deve-se ao fato de nelas existirem dualidades muito
evidentes. No entanto, temos conscincia de que o duplo se instala tambm,
sistematicamente (em forma e contedo), em outros textos dramticos do autor.
A par disso, no corpus em anlise, a idia de dualidade atinge tambm os
elementos cnicos que nos prprios textos dramticos se apresentam virtualmente como
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procuraremos ainda mostrar , o que torna o teatro de Jos Rgio muito rico tambm do ponto
de vista das artes cnicas. Com efeito, outra caracterstica relevante do teatro regiano a sua
linguagem que, nas rubricas com precisas indicaes sobre o cenrio, figurino, msica e tom
de voz dos atores , aparenta ter sido cuidadosamente elaborada para orientar a construo do
espetculo. Infelizmente, a censura salazarista afastou durante muito tempo dos palcos
portugueses a maioria das peas de Rgio.
Com este trabalho, enfim, queremos tambm chamar a ateno dos pesquisadores
para a relevncia da dramaturgia de Rgio, que tem sido pouco valorizada, principalmente no
Brasil, onde, quando se fala em Jos Rgio, pensa-se apenas no poeta e no crtico literrio.
Poucos, ainda hoje, tm conhecimento profundo da produo dramtica regiana e do
envolvimento deste autor com o teatro cumpre lembrar que Rgio apresentava pessoalmente
os seus textos a encenadores, seus contemporneos, e no se cansava de ressaltar o seu desejo
de dar plenitude cnica s suas peas. Alm de sete importantes textos dramticos, o autor
tambm escreveu reflexes crticas sobre a arte teatral, como podemos ler, por exemplo, no
ensaio intitulado Vistas sobre o Teatro(1967).
Em Portugal, Rgio bastante estudado e, ultimamente, o seu teatro tem merecido
mais espao nas publicaes acadmicas. Entretanto, nas pesquisas brasileiras essa parte da
produo do escritor presencista parece ainda estar envolta em penumbra: difcil encontrar
artigos sobre o drama regiano em publicaes nacionais.Para uma melhor organizao desta Dissertao, dividimo-la em trs partes. Na
primeira, procuramos chamar a ateno sobre a importncia de Rgio como dramaturgo, alm
de refletirmos sobre a duplicidade que envolve o gnero dramtico, e ressaltarmos a
problemtica do sujeito cindido, que est no cerne da temtica das peas regianas.
A segunda parte d enfoque no mais temtica, mas ao modo de composio
formal das obras que compem o nosso corpus. Estudando a intertextualidade nos dramas do
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autor, notamos que a sua linguagem elaborada de maneira a convocar duplos sentidos, tendo
o seu modo de construo textual baseado na ambigidade.
Na terceira e ltima parte, como concluso do trabalho, procuramos definir a idia
de uma potica da dualidade, que nos parece estar na origem no apenas da elaborao das
peas de teatro de Jos Rgio, mas, de forma geral, de toda a sua produo literria.
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IIPPAARRTTEE
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1JOS RGIO E A LITERATURA DRAMTICA NO CONTEXTO DA
PRESENA
Este captulo introdutrio no traz uma investigao biogrfica ou bibliogrfica de
Jos Rgio, pois estudos deste tipo so comuns nos manuais de literatura portuguesa e j
foram bastante aprofundados pelo crtico Eugnio Lisboa, entre outros.
O que propomos aqui salientar alguns aspectos da vida de Rgio, os quais
julgamos ter importncia para a anlise de seu texto dramtico. Alm disso, nosso intuito
aprimorar e fortalecer os estudos sobre o escritor como dramaturgo visto que sua produo
dramtica , ainda hoje, pouco conhecida no Brasil e ressaltar a relevncia de sua arte teatral
no contexto da moderna dramaturgia portuguesa e mundial.
Jos Maria dos Reis Pereira viveu em Portugal de 1901 a 1969 e teve importncia
histrica na literatura portuguesa durante a primeira metade do sculo XX. Jos Rgio como
conhecido no ambiente literrio marcou poca e lembrado pela histria literria
primeiramente por ser o fundador e principal terico da revista Presena a qual fundou em
Coimbra, em 1927, com mais dois companheiros de gerao: Joo Gaspar Simes e
Branquinho da Fonseca ; depois, por proclamar, na sua obra, uma nova maneira de retratar o
homem de seu tempo: um ser que sofre uma aguda e permanente crise de identidade.
A revista Presena, que tem o subttulo de folha de arte e crtica e que
considerada por alguns crticos dentre eles, Fernando Pessoa como uma continuao da
revista Orpheu (lanada em 1915), prope fundamentos tericos sobre a arte; traz ensaios
crticos sobre autores do chamado Primeiro Modernismo Portugus, como Almada
Negreiros, S-Carneiro e Fernando Pessoa; pe em relevo nomes ascendentes da literatura
moderna mundial, como Dostoivski e, alm disso, tambm divulga o trabalho literrio de
artistas portugueses de seu tempo, a chamada Gerao da Presena ou Segundo
Modernismo Portugus.
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A Presena, como um rgo favorvel total liberdade de expresso do artista,
no obedecia a qualquer orientao poltica, religiosa ou outra, e era aberta a todas as
tendncias literrias. Contra a literatura livresca e retrica, esta revista tornou-se um
instrumento de livre pensamento que, como dissemos, divulgou os valores do Primeiro
Modernismo e, alm disso, acolheu os melhores nomes do Neo-Realismo portugus, levando
a cabo um trabalho pedaggico sobre a literatura em geral, aspecto, este, que era ausente no
Primeiro Modernismo:
Dotada de uma forte e decidida personalidade, a um tempo criadora e crtica,
a Presenaia revelar-se altura de uma tarefa que o Orpheuiludira. [...] o
Orpheu no mostrou possuir vocao pedaggica. Pessoa, Almada, S-
Carneiro, atropelavam e fugiam sorrindo em itlico. Os brados rficos
apossaram-se do pblico como quem pratica estupro chocarreiro. Veio a
caber ao grupo coimbro conquistar, atravs de uma meditada dialctica
persuasiva, um pblico, primeiro traumatizado, depois esquecido. (Lisboa,
1977, p. 42).
Jos Rgio, com certeza, o grande nome dessa gerao. So dele os principais
artigos-manifestos da revista coimbr, nos quais o autor defende o valor de uma arte sincera
e original, fruto da parte mais ntima da natureza humana. Por causa desta concepo sobre
a arte e o artista, Rgio foi muito incompreendido em sua poca. A ele e Presena foram
lanadas duras crticas dos que concebiam a literatura apenas como um retrato da realidade
social.
Rgio, todavia, no se opunha a uma arte comprometida, mas quela cuja nica
inteno era propagar um iderio poltico qualquer, sem, contudo, dar testemunho do que
realmente consome e atormenta o ser humano, o que para o autor essencial em uma obra de
arte. Sobre esta questo, o autor argumenta no artigo Presena Reaparece:
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A arte pela qual a presenaluta portanto hoje, como h doze anos, uma
arte humana. Orgulha-se a presena de quase ter ensinado esta expresso aos
rapazes portugueses. Simplesmente, essa arte humana pela qual a presena
lutou e lutar no tem o significado ridculo que lhe do os que s a siprprios e s suas prprias opinies julgam humanos.Arte humana para a
presenatoda arte em que o homem se revela e exprime, seja atravs de que
seu aspecto for: A realidade humana muito mais rica do que a fazem
quaisquer espcies de fanticos, principiando pelos fanticos do real. (Rgio,
1932 apud Lisboa, 2001, p. 35-6, grifo do autor).
Jos Rgio jamais se prostrou frente s crticas recebidas. Alis, ele foi o nico
autor que continuou na revista at a sua extino, em 1940, defendendo com extremo afinco o
projeto terico e esttico inicial da Presena. Rgio, inclusive, leva os pressupostos
presencistas para a sua prpria produo literria, como observa o estudioso Fernando
Mendona:
Se voltarmos o olhar para a produo literria [de Jos Rgio] e nos
lembrarmos um pouco do contedo da mesma, o que nela vemos uma
teimosa fidelidade aos princpios da revista coimbr. (MENDONA, 1973,
p. 85).
Jos Rgio tambm acompanhou as teorias psicolgicas de Freud que chegavam a
Portugal e anunciou o estudo do psicanalista nas pginas da Presena, no artigo intitulado
Elogio do sculo em que estamos. Sculo XX, publicado em 1928, no nmero 9 da revista.
Freud, desvendando os mistrios da mente humana, revolucionou a concepo que
se tinha sobre o ser e seus preceitos serviram de pano de fundo para a literatura,
principalmente do incio do sculo XX, que via o modelo realista-naturalista desintegrado e
que buscava uma nova compreenso do homem: agora no mais preocupada apenas com as
patologias sociais influenciando o indivduo, mas com o psicologismo deste ser que era
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abafado num contexto onde as relaes sociais eram tidas como as nicas responsveis pela
constituio do indivduo.
Sob influncia da psicanlise, grande parte das obras artsticas, a partir de ento,
passaram a retratar um sujeito cuja mente fundamenta a formao tanto do seu carter, como
das aes realizadas por este em seu convvio com a coletividade. Deste ponto de vista,
podemos dizer que no apenas o meio que influencia o ser, mas este, com toda a sua
complexidade psquica, que modifica o ambiente. O pensamento de Freud foi bem acolhido
pelos membros da Presenae estes acabaram, em suas produes, refletindo tambm sobre os
mistrios da mente humana.
Rgio, por meio da revista coimbr e juntamente com alguns poucos
representantes da Orpheu, como Almada Negreiros, foi ainda um dos primeiros autores
portugueses do sculo XX a salientar publicamente em Portugal a importncia da arte teatral
na literatura portuguesa e mundial, citando nomes expressivos da dramaturgia como Gil
Vicente, Raul Brando, Ibsen, Strindberg, Pirandello, Bernard Shaw, Claudel e Cocteau, os
quais eram considerados por Jos Rgio como os mais originais homens de teatro e
portadores, portanto, de uma importncia singular no contexto da dramaturgia mundial.
Poucos crticos ressaltam o mrito da Presenaem divulgar tambm a arte teatral.
Todavia, de relevncia destacar que Rgio, mesmo em meio a um perodo de ditadura
visto que a revista Presenanasce no mesmo ano em que instituda a censura prvia dosespetculos, com a fiscalizao da Inspeco dos Espectculos , d espao especial em sua
revista para a arte dramtica, j que so publicados na mesma fragmentos e at peas inteiras
de autores vrios, entre eles Branquinho da Fonseca, Almada Negreiros e Raul Leal, alm de
produes teatrais de sua prpria autoria.
Alm disso, os pressupostos tericos defendidos por Jos Rgio em seus artigos,
clamando por uma literatura voltada para a individualidade do ser humano com todos os seus
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conflitos ntimos, so colocados em evidncia tambm com relao arte teatral. No nmero
9 da Presena, por exemplo, Jos Rgio comenta sobre dois grandes dramaturgos da literatura
mundial:
Strindberg ou Ibsen alargam os palcos, sobem os panos, fazem nascer gua
das rochas pintadas... E v-se nas suas peas-poemas o Homem batalhar com
a Verdade, o Espanto, o Mistrio, a Fatalidade, o Sonho. Ao lado do
Homem, na parede, a sua sombra maior do que ele. (RGIO, 1928 apud
SIMES, 1977, p.110).
Nestas poucas linhas de anlise de Strindberg e Ibsen, Rgio, implicitamente,
ressalta na dramtica destes autores o que ele considera importante em sua prpria produo
teatral, ou seja, este mesmo homem atormentado por sua sombra dominadora de que fala
Rgio pode ser tido como um protagonista de todas as suas peas.
Esta questo ser tratada mais adiante quando nos referirmos temtica regiana e,
mais detalhadamente, ao fazermos a anlise de algumas peas do autor. Por ora, voltemos
nossa ateno para a importncia que o escritor portugus d arte teatral e, para isso,
notemos que o enfoque de Jos Rgio sobre o teatro estende-se das pginas da Presena sua
prpria produo como ensasta literrio, que Rgio tambm foi. Diga-se de passagem que
Jos Rgio , ainda nos dias de hoje, mais lembrado por seus textos sobre Florbela Espanca e
S-Carneiro do que por seus ensaios sobre a arte dramtica, os quais se estendem desde o
Posfcio do seu Primeiro Volume de Teatro (1940), ao Prefcio pea El-Rei Sebastio,
escrito em 1948, culminando no seu estudo Vistas sobre o Teatro (1967), que quase um
tratado esttico sobre o teatro e, infelizmente, praticamente desconhecido no Brasil.
Em Vistas sobre o Teatro, Rgio postula que, alm de o teatro ser o grande
revelador de almas, j que desnuda com profundidade os labirintos interiores da humanidade,
a arte dramtica a mais propcia reflexo sobre o ser humano, pois ela s se realiza
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completamente por meio do prprio homem, no complexo teatral. Isto porque, argumenta
Rgio, o prprio ser humano que, servindo-se de si atravs do actor, interpreta as suas
prprias expresses humanas (Rgio, 1967, p.120).
Para Jos Rgio, o teatro s se torna completo e uno com a sua subida ao palco.
Suas peas, alis, so predispostas a isso, j que elas possuem uma especificidade teatral bem
definida; quando lemos, difcil no imaginar a cena toda posta, com msica, iluminao,
arrumao espacial do cenrio, figurino, etc. Tudo isto j disposto antecipadamente no texto
literrio, visto que tendncia para o espectculo, eis, pois, o que antes de mais define como
teatral um texto literrio (Rgio, 1967, p.111).
No ensaio Vistas sobre o Teatro, Jos Rgio considera que o texto literrio
dramtico pr-existe ao espetculo teatral; todavia, segundo o autor, no s o texto constitui o
teatro, mas a Arte Teatral aquela que se serve da literatura e conjuga-a a outras artes como a
msica, a arquitetura e a pintura.Tais artes unificadas que constituem a Arte Teatral, a qual,
para a realizao em espetculo artstico, tambm no pode dispensar o encenador e nem,
claro, o ator. Sem esta associao, como aponta Rgio, o texto no passaria de literatura e a
encenao de mero entretenimento para o pblico.
O autor dramtico tambm no se realiza pessoalmente e no se exprime por
inteiro sem ter a sua pea representada num espetculo,
[...] pois no unicamente atravs do texto literrio e sua interpretao
histrinica se exprime o autor teatral, seno que tambm atravs de todos os
mais elementos do espetculo. Ao poeta dramtico no basta a palavra, ou
no ser ele um autor teatral. A autenticidade do espectculo teatral por ele
sonhado (embora no s por ele realizado) precisamente se afirma na
necessidade interna de todos quantos elementos o dito espectculo ponha em
jogo. (RGIO, 1967, p. 114).
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A produo dramtica de Jos Rgio compreende oito peas que foram escritas
entre aproximadamente os anos de 1930 e 1957. Em agosto de 1930, Rgio escreve na
Presena um texto que pode ser considerado o germe da sua obra-prima dramtica o
mistrioJacob e o Anjo, o intitulado Jacob e o Anjo, Histria do Rei e do Bobo, escrita
em seis dilogos, aumentados de cenrios, dum monlogo do Rei e de um eplogo. Em 1937,
esta pea aparece em fragmentos naRevista de Portugal, de Vitorino Nemsio, e ela s sairia
por completo e na verso que conhecemos hoje em 1940, no livro Primeiro Volume de Teatro,
juntamente com a fantasia dramtica Trs Mscaras, pea que tambm foi trazida pela
Presena, em 1937.
Em 1947, Jos Rgio publica o seu dramaBenilde ou a Virgem-Me; dois anos
depois, em 1949, surge em livro El-Rei Sebastio, seu poema espectacular; em 1953, sai a
segunda edio de Jacob e o Anjo(agora sozinha em um volume) e em 1954 publicada a
tragicomdiaA Salvao do Mundo.
J em 1957, no volume Trs Peas em um Acto, so publicadas as peas Trs
Mscaras(agora em segunda edio) e as inditas O Meu Caso, uma farsa, e o episdio
tragicmicoMrio ou Eu-Prprio o Outro.
Outra pea de Rgio, Sonho de uma Vspera de Exame, escrita em 1935 quando o
autor ainda lecionava em Portalegre, considerada de menor importncia literria. Ela foi
elaborada com o propsito de ser representada pelos alunos do escritor, o que ocorreu em1936. Este texto s foi publicado postumamente, em 1989.
Rgio foi, de certa forma, incompreendido no s no que se refere a alguns
pressupostos tericos defendidos por ele na Presena, mas tambm ao que toca sua
produo dramtica. Benilde ou a Virgem-Mefoi a sua nica pea que recebeu apreciao
pblica ainda antes de sua publicao. Ela foi encenada pela primeira vez em 1947, em
Lisboa, no Teatro Nacional D. Maria II, um pouco antes de ser impressa.
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Jacob e o Anjo, publicada em livro em 1940, s subiu aos palcos pela primeira vez
no ano de 1952 (ou seja, doze anos depois), em Paris, na verso Jacob et LAnge,
representada pelo Studio des Champs Elyss, porm numa adaptao infeliz, como
considerou Jorge de Sena (1977, p.157). Esta pea s conheceu o palco portugus em 1968,
quando foi encenada por um grupo de amadores que formavam a Companhia do Teatro
Popular.
Outra pea que Rgio assistiu em vida foi Mrio ou Eu-Prprio o Outro, em
1958, representada pelos estudantes da Universidade de Coimbra; dois anos aps a morte do
autor, ou seja, em 1971,A Salvao do Mundofoi representada pelo Teatro Municipal de So
Lus, em Lisboa.
Jos Rgio, entretanto, teve obras teatrais que at hoje vivem apenas como
literatura, j que no chegaram a subir ao palco. Esta falta de considerao pelo teatro do
autor , com certeza, um forte indcio da m interpretao que sua produo dramtica
sofrera, visto que a obra de Rgio, quando nela se fala, invariavelmente vista ou tida quase
que exclusivamente como a do poeta que ele eminentemente foi (Lisboa, 2001, p. 70); j o
seu teatro, este sempre fora pouco apreciado em especial no Brasil, onde, at algum tempo
atrs, Rgio era praticamente desconhecido como dramaturgo.
Jos Rgio, que herdou do pai o gosto pelo teatro (que, segundo alguns crticos,
trabalhava nas horas vagas, como amador, na rea) e marcou toda a sua produo artsticacom indicaes significativas de teatralidade visto que era, alis, o drama a forma a que
naturalmente tendia a sua obra (Rebello, 1979, p. 65) , sentiu-se frustrado devido s
sucessivas e fracassantes tentativas de conferir existncia cnica s suas peas. Luiz Francisco
Rebello, um estudioso e admirador da dramaturgia regiana, comenta:
Considerava Rgio [...] o teatro a parte mais original, e consequentemente
mais incompreendida da sua produo literria o que a sua (escandalosa)
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ausncia quase total dos palcos nacionais parece confirmar. (REBELLO,
1971, p.221).
A dramaturgia regiana, como a consideramos, apesar de toda a marginalizao
que sofrera tanto dos crticos literrios quanto das companhias de espetculo e do prprio
Estado portugus, os quais a privavam de representaes cnicas, possui especial relevo no
contexto da dramaturgia moderna mundial, pois, alm se ser uma obra que eminentemente
tende para o espetculo, ela trata, em sua temtica, de questes relativas humanidade e,
portanto, universais e atuais em qualquer tempo.
A luta entre o bem e o mal, o esprito e a carne, Deus e o diabo, a verdade e a
mentira, a comunicao e a incomunicabilidade, a sinceridade e a falsidade, o passado e o
presente, a vida e a morte, o sonho e a realidade, enfim, o embate incessante que atormenta o
homem e que, ao mesmo tempo, faz parte de sua existncia o tema principal do teatro de
Rgio, e , inclusive, o que torna tal produo to perene, colocando o autor ao lado de
importantes nomes da dramaturgia mundial.
O homem, com seus conflitos mais ntimos, o centro da esttica regiana e este
apelo ao ego, alm de ser uma marca da influncia da psicanlise sobre a literatura da poca,
pode tambm ser analisado no contexto da prpria modernidade. Com o avano expressivo e
progressivo da cincia e a modernizao do sistema fabril, a sociedade se transformou. As
cidades incharam devido ao grande nmero de pessoas que deixaram o campo para procurar
emprego nas fbricas urbanas e o meio social ganhou um novo ritmo: agora mais acelerado,
mecanizado e pragmatizado. Nesta sociedade s tem valor o que til de imediato e as
profisses mais valorizadas so aquelas que trazem um retorno tambm imediato sociedade.
Neste contexto, o artista, o grande pensador do homem e de seu mundo, perde
espao. Ele se sente marginalizado, desprezado e sem lugar. O literato, em especfico, em
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vista desta extrema valorizao do objetivo, do cientfico, percebe que o ser humano est
ficando de lado, j que ficou reduzido a uma mera mercadoria.
Em virtude da sua relativa excluso pela sociedade moderna, o artista, em
contrapartida, procura valorizar em suas obras justamente este ser marginal, ou seja, o prprio
homem. Assim, a literatura passa a dar as costas s preocupaes de ordem social e excluir,
de alguma forma, tambm esta sociedade que tanto despreza o que humano.
O artista moderno do incio do sculo XX na Europa e em Portugal
especialmente os integrantes da Gerao da Presena busca, deste modo, retratar no mais o
que objetivo, mas, ao contrrio, tudo o que subjetivo e, neste mbito, o ntimo do ser
humano o protagonista.
Esta nova maneira de retratar o homem contrape-se aos preceitos tradicionais
que vigoravam at ento e, como observa Anatol Roselfeld (1993), isso revolucionou a
literatura e o teatro, em especfico:
Paralela ou subsequntemente segunda revoluo industrial e expanso
da tcnica, s novas pesquisas cientficas (sobretudo no campo da fsica,
sociologia e psicologia), ao abandono do positivismo na filosofia e ao surgir
de enormes metrpoles, verificam-se nos fins do sculo passado [XIX] e nos
incios deste sculo [XX] transformaes radicais nas vrias artes. Nesta
revoluo artstica manifesta-se um novo sentimento de vida, uma nova
conscincia de realidade, uma nova viso do homem e da posio do homemno universo e na sociedade.
As novas concepes, os novos temas e problemas rompem as formas
tradicionais das artes e, entre elas, as do teatro. Os limites do realismo e do
naturalismo j no conseguem abarcar as novas experincias. No teatro
impe-se a negao do ilusionismo cnico, isto , a recusa da tentativa de
reproduzir no palco a iluso da realidade emprica e do senso comum [...]. O
teatro moderno, de um modo geral, j no pretende imitar a realidade
emprica. Confessa-se teatro teatral, disfarce, fico, poesia, sonho,parbola. Visando atingir os nveis mais profundos da realidade (exterior e
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interior), de acordo com as novas concepes, desfaz-se o espao
euclidiano e o tempo cronolgico do palco tradicional. (ROSENFELD,
1993, p. 107-8).
Uma das tendncias da literatura do incio do sculo XX a recusa do que
lgico e racional em favor da expresso imediata do pensamento e do desejo advindo do
inconsciente, sem, portanto, qualquer deformao racional. Neste contexto, os artistas desse
perodo intensificam o trabalho j iniciado pelos simbolistas, buscando expressar as camadas
mais profundas da alma humana. Assim, podemos dizer que as bases da literatura do comeo
do sculo XX esto amparadas, de certo modo, na literatura simbolista. A produo literria
de Rgio, em especfico, guarda caractersticas do movimento do fin de sicle, como lembra
Jorge de Sena: a obra de Jos Rgio recolhe, com pessoal originalidade, a herana do
simbolismo que quase no houve em Portugal (Sena, 1977, p. 127).
O teatro de Jos Rgio dotado de algumas das caractersticas apontadas por
Rosenfeld, na medida em que ele recusa o princpio de extrema fidelidade ao real em suas
peas. O dramaturgo da Presena ignora as bases cientificistas e racionalizantes do teatro
naturalista e, em sua dramaturgia, procura trazer cena figuras fantsticas e at absurdas que
rompem com os pressupostos defendidos pela esttica realista-naturalista, a qual ainda
dominava a produo teatral da sua poca. Os temas abordados por Rgio em suas obras
teatrais vo de encontro a esta nova abordagem, visto que, para ele, o homem e os valores
humanos necessitam de uma reviso, de um novo olhar que d destaque ao que atormenta o
ntimo do indivduo.
Alm dessa literatura voltar sua ateno predominantemente para a intimidade do
ser humano, ela tambm procura refletir sobre si prpria: j que a sociedade industrial no
encontra utilidade na obra de arte e, por isso, a despreza, esta, como forma de relutncia
contra o meio que a exclui, introjeta-se em si mesma, rejeitando, de alguma forma, o meio
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social. Neste sentido, a literatura moderna, alm de buscar refgio nas questes mais
nebulosas da mente humana, encontra sustento para a sua sobrevivncia no prprio texto
literrio. Com efeito, uma das suas grandes fontes de alimentao encontra-se no
procedimento da intertextualidade.
A intertextualidade, uma das marcas da literatura da modernidade, vista como a
relao dialgica entre textos. Quando um texto literrio reporta-se a outro e tira dele
elementos para a sua construo discursiva, ele acaba refletindo sobre a prpria literatura, que
agora considerada como um emaranhado de fragmentos que, no espao textual, ganham
significados plurais.
A literatura dramtica de Jos Rgio tambm dialoga e se constitui a partir de
outros textos e, neste sentido, consoante ao modelo esttico de composio das produes
da modernidade.
Depois de destacados, ainda que sumariamente, todos os elementos que
compreendem tanto a concepo regiana sobre o teatro, quanto os principais temas e o modo
de composio dramticos do autor, propomo-nos, com este estudo, contribuir para uma
reflexo mais aprofundada sobre as peas de Rgio, que ainda so pouco estudadas no Brasil.
A dramaturgia de Jos Rgio, em congruncia com o perodo em que foi
elaborada, retrata o ser humano de seu tempo, o qual sofre de conflitos que atormentam a sua
existncia; por outro lado, o texto dramtico do autor, seguindo a tendncia esttica doprincpio do sculo passado, recusa o modelo cientificista para retratar o ser humano e fazer
literatura. Neste aspecto, julgamos que o teatro de Rgio merece uma reavaliao, uma
melhor apreciao da crtica literria e tambm uma maior divulgao nos meios acadmicos
do Brasil, que ainda hoje pouco descobriram sobre esta produo dramtica.
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2 ARTICULAES DO DUPLO NA LITERATURA DRAMTICA E
NO ESPETCULO
A concepo de homem duplo, composto por partes antagnicas que se chocam a
todo instante no ntimo do indivduo, fortalece-se a partir, principalmente, do movimento
romntico, num perodo em que o ser toma conscincia de sua inevitvel ciso com o mundo
e de sua profunda crise de identidade. O sujeito moderno duplo, nestes termos, nasce no
conturbado perodo em que o Romantismo se difunde na Europa.
difcil falar de Romantismo sem lembrar do famoso Prefcio de Cromwell,
escrito por Victor Hugo em 1827. Neste texto, o autor faz uma reflexo sobre a relao do
grotesco e do sublime no drama. Victor Hugo contempla a histria da criao literria,
dividindo-a em trs fases: a primitiva, a antiga e a moderna, as quais, segundo o autor,
correspondem aos momentos de desenvolvimento do ser humano: o nascimento, a
adolescncia e a vida adulta.Nos tempos primitivos, a sociedade era composta por famlias nmades; os
valores que imperavam eram os de liberdade, eternidade e sonho. Neste momento nasce a ode
e o primeiro homem o poeta lrico.
Com o aumento do nmero de famlias e de membros destas famlias, houve a
necessidade dos indivduos fixarem-se em determinados lugares. Os nmades primitivos
passaram a povos e depois a naes. No entanto, o aglomerado de naes acabou por se
chocar e se ferir: eis que surge a guerra entre os povos e, com ela, a epopia. Nos tempos
antigos, o poeta pico vem para solenizar a histria e cantar os grandes feitos e combates.
Nestas duas pocas, primitiva e antiga, a literatura estava sempre ligada ao belo e
proclamava, por um lado, a liberdade e a fantasia com a ode e, por outro, a histria com
a epopia.
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A adolescncia um momento conturbado da vida humana e assim tambm o ,
segundo Victor Hugo, a fase antiga. A epopia se desgasta ao mesmo tempo em que o
cristianismo ganha fora, superando o paganismo:
Uma religio espiritualista, que supera o paganismo material e exterior,
desliza no corao da sociedade antiga, mata-a, e neste cadver de uma
civilizao decrpita deposita o germe da civilizao moderna. Esta religio
completa, porque verdadeira; entre seu dogma e seu culto, ela cimenta
profundamente a moral. E de incio, como as primeiras verdades, ensina ao
homem que ele tem duas vidas que deve viver, uma passageira, a outraimortal; uma da terra, a outra do cu. Mostra-lhe que ele duplo com o seu
destino, que h nele um animal e uma inteligncia, uma alma e um corpo.
(HUGO, 1988, p. 20-1).
A religio crist concebe o homem como um ser duplo, dividido entre matria e
esprito. A literatura, com o advento do cristianismo, passa a representar este ser dual, e a
forma literria que mais perfeitamente consegue abarcar as contradies do homem dessa vida
adulta , segundo Victor Hugo, o drama.
O drama uma das expresses artsticas mais completas e acabadas para
representar o homem, um ser complexo, dividido entre os seus sonhos e a realidade que a vida
civilizada lhe impe; para o ser humano da modernidade, a crena em Deus j no tem a
mesma importncia como tinha para o homem do sculo XVII, na medida em que o indivduov-se diferente e ao mesmo tempo parte Dele. um indivduo duplo. A literatura dramtica
aquela capaz de pensar o sujeito em toda a sua totalidade, pois o drama nasce exatamente da
ambigidade trazida ao ser pelos postulados cristos, como conclui o autor:
Do dia em que o cristianismo disse ao homem: Voc duplo, voc
composto de dois seres, um perecvel, o outro imortal; um carnal, o outroetreo; um prisioneiro dos apetites, necessidades e paixes, o outro levado
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pelas asas do entusiasmo e da fantasia: aquele, enfim, sempre curvado para a
terra, sua me, estoutro lanado sem cessar para o cu, sua ptria; desde
este dia foi criado o drama. [...] A poesia nascida do cristianismo, a poesia de
nosso tempo , pois, o drama; o carter do drama o real; o real resulta dacombinao bem natural de dois tipos, o sublime e o grotesco, que se cruzam
na vida e na criao. Porque a verdadeira poesia, a poesia completa, est na
harmonia dos contrrios. (HUGO, 1988, p. 41-2).
O drama, segundo Victor Hugo, inaugura a poca moderna e est intrinsecamente
associado concepo crist do universo. Com ele, a viso de mundo se amplia e a arte
passa a contemplar no s o belo, o sublime, mas tambm o feio, o grotesco. Alis, para
Hugo, os artistas de seu tempo no mais concebem a separao entre a beleza e a feira; eles,
ao contrrio, tomam o universo como um amlgama entre o gracioso e o disforme, a luz e a
sombra, o bem e o mal, a tragdia e a comdia. O drama a expresso literria que contempla
os opostos e, por isso, ela a mais apropriada para cantar a vida e o homem na sua profunda
essncia, que tambm contraditria.
O Prefcio de Victor Hugo apresenta uma teoria sobre o drama amparada na
dualidade, a qual est nas bases de grande parte da literatura dramtica ocidental a partir do
Romantismo.
Como podemos perceber, existe uma relao estreita entre o indivduo moderno,
concebido como duplo, e a expresso literria dramtica. Sob este ponto de vista, nosso
interesse em estudar as manifestaes do duplo no drama de Jos Rgio justifica-se
plenamente.
____________________________
Para Victor Hugo, no ensaio citado, a idia de poca moderna e arte moderna esto ligadas concepo de que, com o advento do cristianismo, o artista moderno passa a recusar a esttica que
vigorava desde a Antigidade Clssica.
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Alis, como o prprio Rgio considera, no palco, seu lugar prprio, se manifesta
verdadeiramente uma obra teatral (Rgio, 1967, p. 106). O drama s se realiza
completamente no espetculo teatral; a literatura dramtica ganha vida com a sua subida ao
palco e, como consideramos, o espetculo, assim como o drama, tambm um frutfero
cenrio para a manifestao do duplo em sua concepo de representao da natureza
heterognea do homem e do universo. Contudo, o teatro dividido entre o drama literrio, de
um lado, e o espetculo artstico de outro difcil de conceber, principalmente pensando no
teatro do sculo XX que rompeu totalmente com a concepo aristotlica de que a encenao
era uma prtica suprflua que desviava a ateno do pblico das belezas literrias do texto
dramtico.
O teatro no s verbo, mas verbo e cena conjugados. O autor dramtico aquele
que escreve a pea, imagina-a no palco e sente necessidade de v-la encenada, pois ela
escrita para isso. Neste sentido, a separao entre gnero literrio e prtica cnica no pode
ser pertinente para o teatro, visto que, como comenta Jos Rgio (1967), a literatura dramtica
pede, por ela prpria, sua representao, e da unio entre texto e cena surge o Teatro:
Comea ento o Teatro onde, independentemente da inteno ou vontade do autor, obra
literria se possa ajuntar um espetculo que a prolongue, enriquea ou complete. (Rgio,
1967, p. 115).
O teatro (arte dramtica-literria e espetacular) uma entidade dupla; ela rene aescrita com a fala, texto e cenrio, literatura e espetculo, rubricas e dilogos. S uma arte
complexa como o teatro capaz de captar e representar a mais profunda essncia do ser
humano: um indivduo tambm duplo que, assim como a arte teatral, dividido entre a
realidade e a imaginao.
No teatro, as personagens tomam forma concreta com a expresso do ator e este
tambm , incontestavelmente, um indivduo duplo. O ator algum capaz de se
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metamorfosear (Rosenfeld, 1996) em outro e emprestar o seu corpo e a sua voz a um ser
fictcio que, num momento de total entrega corporal, acaba brotando de seu mais profundo
ntimo. Esse se transformar em outro, em alguns casos, aparenta ser to real que a platia que
assiste ao espetculo pode confundir a pessoa do ator com a personagem que ele representa e
acreditar, pelo menos por alguns instantes, que aquela histria protagonizada pelo sujeito
atuante seja realmente verdica. Alis, exatamente isto que todo ator deseja: que a
personagem por ele articulada ganhe vida e envolva o pblico espectador este tambm o
intuito do artista que compe uma obra literria, o qual almeja que seus leitores entrem na
histria e vivam-na junto com as personagens.
Anatol Rosenfeld, em O Fenmeno Teatral (inserido em Texto/ContextoI,
1996), destaca a importncia do ator como fundador e criador do teatro como espetculo. O
ator como criador manifesta no palco uma interpretao sua sobre a personagem literria que
ele representa, e d-lhe um significado at diverso do que a mesma teria se fosse apenas lida.
Alm disso, o ator cria em sua mente um mundo simblico no qual a sua personagem ir
atuar, tornando-se, deste modo, um co-autor para determinada situao; o desempenho do
ator uma criao imaginria, espiritual, como a de todo artista, conclui Rosenfeld (1996, p.
31).
O ator, por outro lado, funda o teatro, pois, por meio dele, a literatura dramtica
arte essencialmente temporal materializa-se num domnio de arte espao-temporal; nesteambiente, a personagem fictcia literria ganha um corpo, uma voz e gestos que so reais. O
ator, neste aspecto, capaz de fazer a ponte entre a imaginao e a realidade, revelando, em
seu disfarar-se em outro, a natureza dual que existe no ser humano que , ao mesmo tempo,
fantasia e verdade , e no prprio ato cnico que, por meio de figuras reais, consolida uma
situao inventada.
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O ator, no exerccio de metamorfose quando consegue colocar em evidncia a
capacidade do ser de deixar transparecer uma outra faceta que vive escondida em seu ntimo e
d a esta uma forma cnica , incorpora uma situao que no sua; o sujeito deixa de ser ele
mesmo para ser um outro e este exerccio de sair de si para tomar o lugar de outrem
proporciona ao homem o seu auto-conhecimento, pois somente pelo disfarce, pela
metamorfose, ele alcana a sua mais profunda essncia: o homem s se torna homem graas
sua capacidade de separar-se de si mesmo e de identificar-se com o outro. (Rosenfeld,
1996, p. 38).
Quando o ator compe a personagem e a incorpora, ele torna-se um outro sujeito;
o ator encontra um ser na originalidade de seu prprio ntimo e molda-o sua maneira para
traz-lo cena. Ele vai s profundezas de sua essncia e l se depara com um homem
diferente dele, mas que, paradoxalmente, vive em sua intimidade. Neste sentido, o ator v-se
como um sujeito duplo e, com o exerccio de metamorfose, ele procura reconciliar-se com o
outro, tambm seu, para deixar transparecer no palco a voz desse outro indivduo. Neste
processo, o ator consegue alcanar o mais profundo conhecimento de si, pois, da unio com o
seu duplo, cria-se a personagem artstica, fruto do auto-conhecimento e da auto-realizao do
homem.
Pelo trabalho do ator, a mscara (persona) torna-se ao mesmo tempo maquiagem
e revelao. O ator, para bem desempenhar seu papel, precisa encobrir as suasparticularidades cvicas e sociais e deixar de ser o sujeito cidado real para, vestindo a
mscara dramtica, proporcionar o transparecimento da verdadeira condio humana, seja ela
trgica ou cmica, segundo a qual a personagem fictcia deseja revelar-se este um outro
aspecto da duplicidade do ator.
O ator tambm precisa seduzir e persuadir o espectador para despertar o
imaginrio do pblico, visto que o seu trabalho s ser bem realizado quando os receptores do
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espetculo identificarem-se com a personagem vivida por ele. O pblico, nesse sentido, sofre,
da mesma forma, um processo de metamorfose, na medida em que o cidado, no momento em
que assiste ao espetculo, esquece-se de seus afazeres, de seus problemas domsticos, de seu
trabalho e, dominado pela imaginao, capaz de cindir-se, de colocar-se no lugar da
personagem e descobrir, por meio da fragmentao, a sua prpria identidade, como argumenta
Rosenfeld:
[O ator] Ao distanciar-se de si mesmo, celebra o ritual da identificao com
a imagem do outro, isto , do seu tornar-se ser humano. [Com isso, ele]
Convida-nos a participar desta celebrao; incita-nos a reencontrar-nos mais
amplos, mais ricos e mais definidos ao voltarmos a ns mesmos.
(ROSENFELD, 1996, p. 33).
No teatro, o homem v-se por completo. Ele encontra as suas angstias, medos e
sonhos nas personagens que assiste e, analisando o conflito encenado, capaz de refletir sobre
os seus prprios atos, sentimentos, enfim, sobre a sua vida. O ser humano, envolvido pelo
teatro, encontra-se, identifica-se com as figuras em cena e sente como se fossem seus os
conflitos delas. O homem transforma-se num ente fictcio quando mergulha no espetculo
e, ao regressar a si com o final da encenao, sente-se renovado, pois se projetando num
outro, o sujeito espectador tambm alcana o seu prprio auto-conhecimento.
O teatro, conclumos, uma arte propcia para se pensar o ser humano, porque
alm de ser dupla (literatura e espetculo num nico complexo), a arte teatral fundamenta-se
essencialmente na figura de um ser humano que essencialmente duplo, o ator:
no teatro [...] o prprio ser humano que, servindo-se de si atravs do actor,
interpreta as suas prprias expresses humanas. [...] do seu prprio corpo se
serve o actor, elemento indispensvel do espectculo teatral, para
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intencionalmente o fazer repetir, em cena, o que espontaneamente faria na
vida. (RGIO, 1967, p. 120).
Com o teatro, a vida humana colocada em cima do tablado e, vista de uma certa
distncia pelo pblico espectador, considerada, num primeiro instante, como fictcia;
entretanto, com a performance do atuante, o espectador imagina-se naquela vida em cena e a
considera como sua. O que era fico passa a um estatuto de realidade na mente do sujeito
observador e do ator que a incorpora. Neste aspecto, o teatro a expresso artstica que
melhor conjuga ser humano e personagem fictcio, realidade e imaginao, num amlgama
que no pode ser dissolvido, pois o teatro a mais pura expresso do homem feita pelo
homem.
Jos Rgio, considerando a complexidade da arte teatral (cf. Vistas sobre o teatro,
1967), cria peas de teatro com especificidades teatrais evidentes e indicaes cnicas
precisas. Alm disso, suas personagens so enfocadas de maneira a colocar mostra os
conflitos da condio humana, seu tema principal. A literatura dramtica de Rgio mergulha
nas profundezas do homem por meio de suas personagens e procura mostrar o que de mais
original existe na intimidade do ser. No drama regiano, o homem se revela e se encontra ao
mesmo tempo, pois suas personagens, convivendo com os duplos que as atormentam, acabam
por encontrarem-se a si prprias, no apenas como personagens, mas como figuras vivas, pois
no ambiente criado pelo autor, os seres fictcios ganham o estatuto de reais: seus medos,
paixes, vcios so prprios dos humanos e, nestas figuras, o homem v-se desnudado.
O desejo de levar ao palco as suas personagens foi explicitado por Rgio em
vrias ocasies, como j atestamos anteriormente. Alm de artigos proclamando a necessidade
de se conjugar as letras e a cena no teatro artstico, o autor procurou, ele mesmo, fazer com
que suas peas fossem encenadas, apresentando seus textos a encenadores e a companhias de
teatro que pouco se importaram em represent-los a no ser grupos de universitrios que,
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como amadores, deram existncia cnica a algumas de suas peas. Isso tudo sem contar que
suas obras teatrais tambm sofreram com a censura estabelecida pelo governo portugus da
poca.
Hoje em dia, os dramas criados por Jos Rgio vm sendo redescobertos.
Estudiosos da literatura e companhias de espetculo voltam seus olhares para uma obra que
est a cada momento colocando-nos em suas pginas e ns, mais e mais, nos identificamos
com ela. A arte dramtica de Rgio, por tratar de questes que afligem o homem, atualmente
consagra-se, ao nosso ver, como uma das preciosidades da dramaturgia moderna mundial.
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3 OMITO DO DUPLO:HISTRICO E MANIFESTAES
O tema do duplo, ou melhor, do sujeito que possui sua identidade dividida em
partes contrastantes, bastante recorrente na literatura de Jos Rgio. Seus personagens so
seres que vivem em conflito consigo mesmos e testemunham a tenso entre o homem e sua
conscincia, o temor da vida frente morte, o mistrio na relao com Deus e com o Diabo,
etc.
Essa nfase s questes que dizem respeito s angstias do ser humano uma das
maneiras que o artista encontrou para refletir sobre a sua prpria condio humana, visto que
na modernidade o indivduo sente que perdeu o sentido de unicidade e sua existncia se
resume em um amontoado de fragmentos.
A fragmentao do sujeito pode ser entendida tambm como um reflexo do
prprio mundo moderno: um ambiente em que as mquinas substituem o valor humano, a
verdade est a cada momento sendo questionada pela filosofia e pela cincia e as informaes
chegam de maneira mais e mais rpidas com o avano das tecnologias de comunicao.
Uma das formas encontradas pelo artista para manifestar esse sentimento de
diviso do eu e do mundo que o atormenta materializada na literatura pelo uso das mscaras,
as quais representam o antagonismo entre a realidade e o que ela encobre. As mscaras
escondem a natureza ntima do indivduo em favor de uma aparncia, a qual geralmente est
relacionada com o cargo ou a funo social que esse indivduo ocupa na sociedade. A queda
da mscara significa libertar o ser das convenes sociais que reprimem a sua interioridade
e colocar em evidncia no o seu eu-social, mas o seu eu-profundo.
A literatura do incio do sculo XX em Portugal encontrou no tema do duplo uma
rica fonte de criao. Na gerao do Orpheu, por exemplo, Fernando Pessoa explorou ao
mximo essa questo e fez da fragmentao da personalidade o seu prprio estilo de
composio, ou seja, o seu drama em gente, explorado na to conhecida heteronmia. Mrio
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de S-Carneiro, companheiro de Pessoa, ilustrou esta temtica no fenmeno da disperso de
um eu em outro(s). J na gerao seguinte, a gerao presencista, a diviso do ser ganha
espao especial tambm na arte dramtica e, neste mbito, Jos Rgio e Branquinho da
Fonseca so os principais expoentes.
Nas peas de Branquinho da Fonseca a dialtica do eu e do outro expressa na
relao conflituosa entre suas personagens, como explica Luiz Francisco Rebello:
o deuteragonista sempre um alter ego, o que ele diz destina-se a
completar, a iluminar, a descobrir a verdadeira e mais secreta personalidade
do protagonista, mascarada pelas convenes sociais, pelo compromisso que
viver com os outros implica, mas teimosamente viva l no fundo de cada
indivduo. Assim os protagonistas do teatro de Branquinho da Fonseca
apoiam-se nos seus interlocutores que geralmente no so mais do que
uma projeco, um reflexo, um desdobramento deles prprios. (REBELLO,
1974, p. 28).
No teatro de Jos Rgio, a temtica do homem plural concretizada por meio de
personagens que se desdobram e que travam dilogos conflituosos consigo mesmos, mas que
no final constatam que a rivalidade a nica forma de relacionamento possvel entre partes
dspares e complementares de um mesmo ser. Rebello considera que
exprime-se no teatro de Rgio uma tenso dialtica entre o Eu e o Outroque no mesmo indivduo coexistem, dividindo-o no seio da sua prpria
condio terrena, entre os limites que esta lhe impe e a sua recusa em
aceit-los, a sua nsia em transcend-los. (REBELLO, 1971, p. 222).
O tema da diviso/fragmentao do homem, to presente na fico regiana, pode
ser entendido ainda como um aspecto que o artista encontrou para distinguir-se da sua pessoa
fsica e civil, visto que quem assina as suas obras no Jos Maria dos Reis Pereira, mas o
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pseudnimo Jos Rgio. Com isso, fica evidente a preocupao do autor em diferenciar a sua
personalidade social de sua personalidade artstica, criativa. Alm deste pormenor, cabe
destacar que Jos Rgio encontrava na fragmentao o seu prprio modo de compor, pois ele
dividia-se na criao de vrias obras ao mesmo tempo, como confidencia o autor em uma de
suas cartas a Branquinho da Fonseca:
Penso fazer sair agora o meu 1 volume de Teatro, escrevi um caderno
Inqurito que est nas mos do Salgueiro, arrasto nas horas vagas muito
raras, a trpega Velha Casa, passo a limpo alguns fados do Fado, que esperofazer sair numa espcie de colaborao com o meu irmo; e, alm de estar
comeando uma nova pea, escrevo interiormente vrias outras coisas que
seria ocioso citar. (RGIO, 1940 apud LISBOA, 2001, p. 47).
A temtica sobre o homem duplo, to explorada pelos artistas da modernidade,
sempre esteve presente na cultura ocidental e suas manifestaes variam, principalmente, de
acordo com o momento histrico e com o pensamento filosfico. Na mitologia, por exemplo,
o ser humano era composto pelos gmeos masculino e feminino. A diviso e,
conseqentemente, a imperfeio e o enfraquecimento provm de o sujeito ter perdido a sua
unidade devido a um castigo dos deuses, como explica Ana Maria Lisboa de Mello:
Em muitos mitos, o homem interpretado como um portador de uma dupla
natureza, masculina e feminina ao mesmo tempo. A idia da diviso, como
conseqncia do castigo divino, e a busca da outra metade, com aspectos
benficos e malficos, coexistem na crena da perda da unidade original.
(MELLO, 2000, p. 111).
No mbito religioso, a questo do duplo est significativamente presente. Segundo
a tradio judaico-crist, Deus cria o universo para nele se refletir. No Gnesisexiste o relato
de que o primeiro homem, Ado, surge sendo um, at Deus biparti-lo para fazer surgir a
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figura feminina de Eva. Desta ciso surgem as dualidades bem x mal, esprito x carne, vida x
morte, corpo x alma, as quais amparam grande parte das imagens e concepes bblicas.
Esta temtica, especificamente na literatura, bastante recorrente na fico
moderna, porm, como explica Nicole Fernandez Bravo (2000, p. 263-4), a questo da
duplicidade aparece na arte literria desde a Antigidade, quando o mito do duplo fazia
refletir a concepo unitria do mundo que era prevalecente. Nesse contexto, o duplo
simbolizava o homogneo e era representado por duas personagens com semelhanas fsicas
tais como o ssia, o irmo, o gmeo, as almas gmeas, etc. Na dramaturgia Antiga, para
citarmos um exemplo, a problemtica do ser cindido bem trabalhada na peaAnfitrio(201-
207 a.C.), de Plauto, a qual traz ao palco a metamorfose de duas divindades, Jpiter e
Mercrio, nas figuras terrenas de Anfitrio e do escravo Ssia, que tm suas identidades
roubadas pelos deuses numa visita Terra.
Neste perodo apontado por Bravo (2000) em que o duplo simbolizava o
homogneo, a literatura apresentava personagens duplicadas, metamorfoseadas ou que
tiveram suas identidades usurpadas, tais como emAnfitrio; todavia, no desfecho das histrias
elas voltavam a ser como eram antes da duplicao, isto porque a tendncia filosfica
dominante no almejava discutir a questo especfica da multiplicidade da personalidade
(como um dos objetivos da crtica posterior), mas, ao contrrio, queria-se reafirmar o
sentido de unidade do ser e do universo que sobressaa no pensamento mitolgico, religioso efilosfico predominante at fins do sculo XVI.
A partir do sculo XVII o homem percebe que o Universo no guiado por uma
nica fora, mas que o ser humano tambm tem um grande poder de dominar a natureza. A
idia de unidade da conscincia e da identidade do sujeito e do mundo passa a ser
questionada; o homem v-se como o centro do universo e no mais como a sombra de uma
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divindade que o subjuga. Nesse contexto, a temtica do duplo, que at ento era manifestada
pelo idntico, tende a ser explorada tendo em vista o heterogneo, o disforme.
Bravo (2000, p. 267-8) destaca que um marco da literatura durante a passagem da
representao do duplo como expresso do homogneo para o heterogneo o romance D.
Quixote (1605-1615), de Miguel de Cervantes, obra que pertence ao momento de transio
entre estas duas maneiras distintas de se entender o homem e o mundo. Quixote, o
personagem principal, , num primeiro momento, encarado como um sujeito imitador: ele
deseja igualar-se a um heri dos romances de cavalaria, ou seja, ele pretende transformar-se
num duplo idntico do heri medieval. Para isso, Quixote cria em sua mente um outro mundo:
um mundo de fantasias, o qual ele materializa usando vestimentas que no so suas e at um
nome que no seu. Quixote transforma em realidade um mundo por ele imaginado e o
inevitvel choque entre fantasia e realidade reproduzido na relao do protagonista com o
seu escudeiro Sancho Pana, um representante do real, contraposto ao heri, que a prpria
figura do imaginrio.
Sancho acaba se revelando como o duplo heterogneo de Quixote, na medida em
que sonho e realidade so planos que fazem parte da existncia do personagem principal.
Nesse sentido, instaura-se no romance a concepo de duplo como uma manifestao do
heterogneo, a qual ser predominante nas obras literrias posteriores.
O Romantismo o movimento literrio em que a temtica do duplo manifestadapelo heterogneo emerge com grande fora. Alis, o termo duplo Doppelgnger, em
alemo , cunhado por Jean Paul Richter, em 1796, foi consagrado pelo movimento
romntico e significa aquele que caminha ao lado, o companheiro de estrada.
Durante o conturbado momento histrico e poltico da Revoluo Francesa
antecessor do movimento romntico , o homem v-se em descompasso com o mundo em que
vive. As promessas da Revoluo de liberdade, igualdade e fraternidade para todos caram por
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terra; a tomada de poder da burguesia acabou por acentuar a pobreza, a misria, e o indivduo
encontra-se num momento de profunda crise de identidade, incertezas e angstias. Neste
universo, a tendncia que prevalece a da valorizao da subjetividade e das questes que
atormentam o mais profundo ntimo do ser, como o caso da fragmentao. Bravo comenta
que
Numa poca de convulso poltica, em que as hierarquias no se mantm,
em que a autoridade do Estado e da Igreja posta em discusso, a
problemtica da identidade pessoal torna-se crucial [...]. O mundo umaduplicata: tudo no passa de aparncia, a verdadeira realidade est fora,
noutro lugar; tudo o que parece ser objetivo na verdade subjetivo, o mundo
no seno o produto do esprito que dialoga consigo prprio. (BRAVO,
2000, p. 269-70).
Durante o Romantismo o indivduo torna-se o centro das atenes; tudo visto
sob o ponto de vista do sujeito e tudo por ele controlado isso contribui para ofortalecimento do tema da duplicidade do eu na literatura. Com a promoo do pensamento
sobre a experincia da subjetividade neste perodo, o gnero que mais se destaca o fantstico
e por meio dele que o tema da diviso do ser manifesta-se com mais vigor:
O tema da duplicidade do Eu mostra uma afinidade particular com um
gnero literrio o fantstico , tendo alcanado o apogeu no Romantismo,momento em que se consolida a explorao do tenebroso e do irracional na
fico, tendncia que faz face ao paradoxismo do racionalismo ocidental. A
imagem do desdobramento, como a revelao do lado desconhecido do
homem, muito explorada pelos romnticos [...]. no Romantismo alemo
que esse tema do ser cindido em dois, do encontro com o Outro estrangeiro
ntimo que habita o homem ganha ressonncias trgicas e fatais: ele torna-
se o adversrio, o inimigo que nos desvia do caminho certo e que preciso
combater. (MELLO, 2000, p. 117).
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A estudiosa Selma Calasans Rodrigues, em seu trabalho O Fantstico (1988),
comenta importantes formas de representao do duplo em personagens da literatura
fantstica. Dentre elas, destacam-se: personagens iguais ou parecidos que se relacionam entre
si por telepatia, fazendo com que tenham conhecimentos e sentimentos em comum;
personagens que se identificam to fortemente com outros que acabam ficando em dvida
sobre qual o seu verdadeiro eu; personagens que atravs de diversas geraes acabam
carregando as mesmas caractersticas de seus antepassados, e personagens que se desdobram
em seres diversos e opostos.
A expresso do duplo nas ltimas dcadas do sculo XIX e incio do XX na
Europa passa a enveredar por uma via que pretende compreender o ser humano em sua
complexidade psquica. Neste sentido, a arte literria antecipa, de certa forma, o que ser
fundamentado com as investigaes psicanalticas posteriores, pois o sujeito freudiano
dividido aparece na literatura antes de ser teorizado (Bravo, 2000, p. 276).
A maior parte dos estudos literrios sobre o duplo no sculo XX privilegia o vis
psicolgico. O duplo, ou as personagens desdobradas, correspondem ciso existente na
mente do prprio homem, que dividida entre consciente e inconsciente, partes contrastantes
de um mesmo ser.
O nome mais importante desta linha Freud. Sua teoria do inconsciente e sua
interpretao dos sonhos repercutiram mundialmente e inclusive Jos Rgio chega a salientara importncia do psicanalista em um de seus artigos publicados na Presena.
Freud postula que a mente humana constituda por trs instncias psquicas, o
Id, o Ego e o Superego, que, no inconsciente do indivduo, esto em constante confronto.
Podemos dizer que oId a esfera que compreende as mais selvagens e violentas pulses e as
representaes inconscientes do desejo recalcado: no Id residem os sentimentos de desejo,
destruio, morte que fazem parte da mente do ser. O Superego, por sua vez, a parte da
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mente responsvel por uma espcie de censura s reivindicaes do Id; ele pode ser
aproximado imagem de um juiz ou de uma voz moral que tambm habita a mente do
homem, a qual ainda a fonte do sentimento de culpa que toma o ser. J o Ego a estrutura
psquica que mantm um certo contato com a realidade extra-psquica; ele, de alguma forma,
faz a ponte entre o Id, o Superegoe as exigncias do mundo exterior. Estas entidades do
inconsciente, como dissemos, esto em contradio umas com as outras e, por isso, nossas
faculdades mentais implicam um estado de guerra permanente, principalmente quando nosso
desejo do Id insiste em aflorar e esbarra na lei imposta pelo Superego; o espao de embate
entre essas duas foras psquicas o Ego.
Com a teorizao sobre o inconsciente, Freud argumentou que o ser humano no
uno, mas, ao contrrio, nele vivem foras que se chocam a todo instante. O indivduo, neste
sentido, um ser fracionado e possui mltiplas identidades. A psicanlise, deste modo,
mostrou que o heterogneo faz parte da prpria condio humana.
A teoria psicanaltica colaborou para uma nova abordagem sobre o homem, um
ser que j se sentia dividido, agora pde obter uma explicao sobre muitas questes que o
atormentavam. A literatura tambm encontrou na psicanlise uma rica fonte de criao; as
obras literrias do princpio do sculo XX (momento em que Freud divulga seus
fundamentos) so bastante influenciadas pela concepo psicanaltica do indivduo e o apelo
literrio por temas que abarquem a problemtica interior do ser evidente.Sigmund Freud chega, inclusive, a publicar, em 1919, o ensaio Das Unheimliche
(O Estranho), no qual trabalha com a questo do ser humano duplicado a partir da anlise de
um texto literrio, o conto O homem da areia(1816), de Hoffmann. Em O Estranho, Freud
relaciona a estranheza com o fenmeno da duplicidade do ser. O estranho aquela categoria
do assustador que remete ao que conhecido, de velho, e h muito familiar (Freud, 1969, p.
238) provoca medo, horror e, ao mesmo tempo, agradvel e familiar ao sujeito. Tal
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com a mscara, mais o indivduo vai ser o que ele aparenta e isto representa o mximo de
adaptao sociedade e o mnimo de adaptao prpria individualidade (Jung, 1979, p.
154).
Neste aspecto, segundo o estudioso, a persona uma personalidade que o indivduo
cria e ostenta para adaptar-se s convenes em seu convvio em sociedade. Contudo, essa
adaptao nem sempre feita de uma maneira tranqila; muitos no aceitam ou no entendem
as regras impostas pelo meio social e acabam tornando-se seres extremamente confusos ou,
em certos casos, margem desse ambiente.
Neste mbito, eis que surge a fragmentao do sujeito, dividido entre vrios eus: o
homem no consegue ter a conscincia de quem realmente , j que para adaptar-se a esse
universo em comunidade, a cada situao que vive, tem de vestir uma mscara e comportar-
se de acordo com o exigido pelo meio. Tal mscara esconde a verdadeira essncia do
indivduo e este passa a viver mostrando uma aparncia que nada tem de pura e individual. A
existncia da persona, ou mscara social, no entender de Jung, faz com que o indivduo
simule um determinado papel perante os outros indivduos e, por outro lado, faz com que ele
oculte a sua verdadeira natureza ntima, na qual residem os seus sonhos, medos, fantasias e
desejos; tudo isso para selar tal obrigao para com a sociedade.
A problemtica do eu cindido expande-se do mbito da psicanlise e alcana as
reflexes sobre a teoria literria. Octvio Paz, no captulo A outra margem (pertencente a Oarco e a lira, 1956), apresenta importantes apontamentos sobre a questo da duplicidade do
ser humano e do poeta em especial, a qual se faz sentir no momento da criao.
O fazer potico, segundo Paz, proporciona ao artista uma sensao de ruptura e,
ao mesmo tempo, de mudana de natureza. O poeta, notando o abismo que existe dentro de si,
capaz de dar um salto mortal em seu prprio ntimo e dali tirar o que h de mais original,
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trazendo para a outra margem, ou seja, para um outro lado de sua existncia, a poesia, que
, na concepo de Paz, um produto desta experincia do sobrenatural.
Octavio Paz acredita que o poeta o ser que consegue entender que sua condio
no una, que habita um outro desconhecido dentro dele e, relacionando-se com sua
alteridade, o artista capaz de transformar a sua natureza que at ento estava conturbada
pelo dilaceramento e reconciliar-se com o seu duplo. Desta unio com o que o autor chama
de sobrenatural nasce a poesia.
Encontrar o outro causa-nos sensaes contraditrias, pois a presena da
alteridade provoca assombro, estupefao, repulsa e ao mesmo tempo alegria, prazer e
atrao, isto porque esse outro tambm eu (Paz, 1982, p. 161), ou seja, o alheio uma
parte profunda de nossa natureza que, quando a encontramos parece-nos estranha, nos
paralisa, causa repugnncia, mas tambm nos fascina e enfeitia completamente. O que o
homem mais busca vencer estas foras opostas e unir-se ao seu outro, ao seu duplo, pois s
assim ele estar encontrando-se a si mesmo e libertando-se da solido que aflige o seu ser.
Como considera Octavio Paz (1982),
Os estados de estranheza e reconhecimento, de repulsa e fascinao, de
separao e de unio com o Outro, so tambm estados de solido e
comunho conosco mesmos. Aquele que realmente est a ss consigo,
aquele que se basta em sua prpria solido, no est s. A verdadeira solido
consiste em estar separado de seu ser, em ser dois. Todos estamos ss porque
somos dois. O estranho, o outro, nosso duplo. s vezes tentamos segur-lo.
s vezes ele nos escapa. No tem rosto nem nome, mas est sempre ali,
encolhido. A cada noite, l pelas tantas, volta a se fundir conosco. A cada
manh separa-se de ns. [...] intil fugir, atordoar-se, enredar-se no
emaranhado das ocupaes, dos trabalhos, dos prazeres. O outro est sempre
ausente. Ausente e presente. H um buraco, uma cova a nossos ps. O
homem anda desamparado, angustiado, buscando esse outro que elemesmo. E nada pode faz-lo tornar a si, exceto o salto mortal. (PAZ, 1982,
p. 161-2).
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O homem comum vive em profunda solido, pois sente-se separado de seu duplo;
j o poeta, ao contrrio, consegue mergulhar dentro dele prprio (dar o salto mortal) e
fundir-se com o outro de tal maneira que ele acaba ficando indistingvel de seu duplo. A
unio to completa e perfeita que o artista sente-se como se tivesse morrido e nascido de
novo e com essa transformao surge a arte como uma imagem original, com vida prpria e
auto-sustentada, pois ela , de acordo com Octavio Paz, a exata revelao que o homem faz de
si e para si.
A idia da multiplicidade de personalidades do indivduo tem espao na arte
literria, como dissemos, h muito tempo. Seu apogeu deu-se com o movimento romntico e,
posteriormente, na passagem do sculo XIX para o XX, o tema do duplo ganhou fora com o
desenvolvimento de teorias psicanalticas. Passados esses dois auges de representao da
duplicidade, o sculo XX, com o seu transcorrer (e o sculo XXI, em seu iniciar, toma a
mesma linha), continua contemplando a problemtica do eu, que ganha novas feies.
A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) trouxe mudanas significativas para o
ser humano e para todas as sociedades de uma maneira geral. O cotidiano tomado por cenas
de violncia, massacres e injustias. Neste conturbado momento histrico, a temtica do ser
dividido passa a ser manifestado na literatura, num primeiro momento, por meio de
personagens fantasmagricas, assassinos e criminosos que perseguem seus duplos, as vtimas
inocentes.Num outro momento, passado o choque inicial que a Guerra causou ao ser
humano, a questo do duplo proporciona uma reflexo sobre os estragos que a Guerra
deixou para o indivduo e a sociedade. Nos pases mais pobres, a misria aumenta ainda mais
e as obras literrias animam-se por manifestar uma preocupao social e moral. O duplo,
neste contexto, utilizado como uma metfora capaz de transformar o sujeito, motivando-o a
integrar-se sociedade. Com o trmino da Primeira Grande Guerra, o tema do duplo se
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manifesta na arte majoritariamente pelo uso das mscaras, pois seu intuito chamar a ateno
para a personalidade ntima do ser que est totalmente desintegrada e para o indivduo que
no encontra espao para manifestar os seus desejos mais profundos num meio tomado pelo
materialismo. Contrapondo a aparncia que o sujeito deve assumir para o convvio em
sociedade e a sua maneira ntima de ser que deve permanecer escondida, as mscaras
manifestam o dualismo do indivduo dividido entre os papis sociais e o desejo de libertao
das fantasias interiores, que abafado pelo meio social. Uma srie de artistas deste momento
sugerem que o homem abandone a mscara e d voz ao seu ntimo, s assim ele poder viver
melhor e ter foras para lutar contra a sociedade que o massacra e exclui.
A temtica do indivduo duplicado continua presente na literatura ainda aps a
Segunda Guerra Mundial. Em meados do sculo XX o duplo torna-se o smbolo da alienao
do sujeito numa sociedade massificada. Com o fortalecimento da chamada cultura de massa,
as indstrias culturais promovem na sociedade uma avalanche de produtos padronizados que
escondem uma ideologia dominante, segundo a qual os indivduos para se integrarem ao
meio social dominado pelo consumo devem absorver: comportando-se, vestindo-se a at
falando de forma idntica, constituindo, assim, uma massa de fcil manipulao. Desta
maneira, com uma sociedade consumista uniforme, os promulgadores da ideologia dominante
podem difundir as suas idias que esto camufladas em seus produtos e influenciar os
indivduos que, por no pensarem criticamente, se encontram alienados e sem identidadeprpria. Tal concepo sobre o duplo tem sido bastante explorada pelos autores mais
contemporneos.
O duplo tambm um dos temas preferidos da fico cientfica e, alm da
literatura, a duplicidade dos seres bastante presente na arte cinematogrfica. A evoluo das
tecnologias computacionais proporciona ao cinema de hoje efeitos muito sofisticados e o
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duplo, um tema que se tornou universal, pode expressar-se de maneiras jamais imaginadas
pelo homem antigo.
Como podemos perceber, a representao do duplo pelas produes artsticas
alcana uma abordagem bem ampla no decorrer dos sculos. O duplo pode ser um fantasma,
uma sombra, um confidente ou qualquer outra figura que tenha inexplicveis afinidades com
o protagonista. Dentre estas representaes cabe destacar, ainda, o duplo assumindo a forma
de figuras autmatas que tomam vida, tais como bonecos, manequins, esttuas e retratos que
atormentam a existncia do sujeito dissociado. Na verdade, esses objetos so projees da
mente de seus donos/criadores que acabam ganhando vida e espao na sociedade. Pode
ocorrer de estes seres assumirem a personalidade do sujeito possuidor de tal maneira que
chegam a usurpar completamente o papel social de seus donos/criadores; com isso, o homem
perde as suas especificidades humanas e, massacrado pelos objetos, acaba ele-prprio se
tornando uma criatura inanimada e sem valor.
Outra manifestao do duplo a do mensageiro da morte. O duplo pode assumir
uma aparncia angelical ou diablica e trazer a morte para o sujeito. Este tipo de articulao
do ser duplicado simboliza o terrvel medo da morte que o homem, consciente ou
inconscientemente, enfrenta durante todos os dias de sua vida. mais uma problemtica
universal abordada pela literatura por meio da questo da fragmentao do ser.
Edgard Morin faz um estudo sobre o tema do duplo em culturas arcaicas econstata que, em civilizaes antigas, a idia do sujeito dividido estava sempre ligado morte
e sua presena era constante durante a vida do homem primitivo. O autor destaca:
O duplo o mago de toda a representao arcaica que diz respeito aos
mortos.
Mas esse duplo no tanto a reproduo, a cpia conforme post mortemdo
indivduo falecido: acompanha o vivo durante toda a sua existncia, duplica-
o, e este ltimo sente-o, conhece-o, ouve-o e v-o, por meio de uma
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experincia quotidiana e quoti-nocturna, nos seus sonhos, na sua sombra, no
seu reflexo, no seu eco, no seu hlito, no seu pnis e at nos seus gases
intestinais (MORIN, 1970, p. 126, grifos do autor).
Segundo o autor, o duplo ou o contedo individualizado da morte uma figura
de potencial divindade que est prxima do sujeito vivo em todos os seus dias e a ele no
resta outra alternativa a no ser aprender a lidar com a presena da morte, que ao mesmo
tempo o aterroriza e provoca um sentimento de respeito devido aos poderes mgicos