Do subsolo à memória: efeitos de sentidos provocados pela ironia em Memórias do
Subsolo de Dostoiévski
Glauber Rezende Jacob Willrich
(UFPR – Universidade Federal do Paraná)
Resumo: A ironia - mais do que mera figura de linguagem que diz o contrário do que se quer
dizer - pode se mostrar uma ferramenta bastante útil para ser analisada no que concerne às
formas de construções e arquitetura do texto literário. Considerando que, para além da
mecânica da ironia que envolve um locutor irônico, um receptor que capta a ironia e também
um contexto de enunciação compartilhado entre ambos; a ironia, de acordo com Hutcheon
(2000), lança brechas, ou “arestas” ao receptor de modo que os efeitos de sentido nele
provocados podem ser bastante diversos. Considerando também o papel do leitor (dentro do
quadro teórico da estética da recepção) na construção de sentidos do texto literário (e mesmo
sentido irônico), este trabalho propõe avaliar quais os efeitos de sentido que a ironia (ou
ironias), presente no texto Memórias do Subsolo de Dostoiévski, provoca. Como hipótese,
apontamos para o fato de que há uma aresta atacante e defensiva em jogo no texto, e que a
ironia se liga à polifonia e ao dialogismo proposto por Bakhtin como forma de manter em
equilíbrio posições divergentes e paradoxais ao mesmo tempo, ajudando assim na construção
do texto literário.
Palavras-chave: Ironia; narratologia; estética da recepção; realismo russo.
Abstract: The irony - more than a mere figure of language that says the opposite of what is
meant - can be a very useful tool to be analyzed with regard to the forms of construction and
architecture of the literary text. Considering that, in addition to the mechanics of irony
involving an ironic speaker, a receiver that captures the irony and also a context of enunciation
shared between both; the irony, according to Hutcheon (2000), throws loopholes, or "edges" to
the receiver so that the effects of sense in it can be quite diverse. Considering also the role of
the reader (within the reception aesthetics theories) in the construction of meanings of the
literary text (and even ironic sense), this paper proposes to evaluate the effects of meaning that
irony (or ironies), present in the text Notes from Underground Dostoevsky causes. As a
hypothesis, we point to the fact that there is an attacking and defensive edge at play in the text,
and that the irony is linked to the polyphony and the dialogism proposed by Bakhtin as a way
of keeping in balance divergent and paradoxical positions at the same time, thus helping in the
construction of the literary text.
Keywords: Irony; Narratology; reception aesthetic; Russian realism.
Introdução
A ironia é comumente conhecida como a figura de linguagem em que se diz o contrário
do que realmente quer dizer. A ambiguidade, os elementos opostos e contrários parecem ser as
marcas fundamentais desta figura de linguagem. Entretanto, um enunciador (seja ele literário
ou não) que lança um discurso que diz o contrário do que se afirma, diz mais ainda do que fica
expresso, já que este anuncia duplamente: sua mensagem com intenção real e a mensagem
aparente e momentaneamente falsa.
Para que ocorra uma comunicação irônica é necessário que pelo menos dois
interlocutores compartilhem do mesmo contexto (seja ele cultural, de fala, e de produção de
discursos) previamente estabelecido, e que o ironista (no caso, o locutor) lance brechas e
mesmo pistas para que seu interlocutor decifre tanto a mensagem irônica quanto a mensagem
real. É neste sentido que a utilização dessa figura de linguagem tão peculiar também cria grupos
discursivos de maneira seletiva, já que a falha nesse processo comunicativo pode resultar em
mal entendidos e embaraços.
Embora haja elementos básicos para uma comunicação irônica (locutor, enunciador e
contexto compartilhado), os objetivos, ou antes mesmo, os efeitos de sentidos provocados no
locutor estão longe de ter unanimidade: com a ironia podemos ir do riso e do humor à
autodefesa, dependendo do contexto de enunciação e com quais propósitos ela é utilizada.
Estudar a ironia em um texto literário implica, neste caso, estudar de que maneira a
mecânica dessa figura de linguagem funciona na relação leitor-narrador. É neste sentido que se
faz necessário evocar o quadro teórico da estética da recepção para melhor elucidar que
fenômenos ocorrem nessa relação. A proposta deste trabalho, então, é a de estudar quais efeitos
de sentido a ironia provoca na novela Memórias do Subsolo de Dostoiévski, se atentando
também para os postulados teóricos de Bakhtin em relação à obra do autor russo. Como
hipótese de trabalho, apontamos para o fato de que a ironia se liga ao conceito de dialogismo
e, mais do que mera figura de linguagem que serve para enfeitar o texto literário, ela passa a
ser um elemento que arquiteta a composição formal da obra.
Ironia... ironia...
Dada a definição inicial de ironia – figura de linguagem que diz o contrário do que se
quer dizer – se faz necessário, antes, se ater às origens do termo e averiguar quais conceitos
específicos servem à análise literária, uma vez que a ironia é estudada não só na literatura, mas
também na psicanálise, na antropologia e na filosofia.
Em suas origens, o termo eiron/eironia aparece na República de Platão. Lá, o filósofo
parece aplicar o conceito a algo como uma forma lisonjeira e abjeta de tapear as pessoas.
Entretanto, é anteriormente em Sócrates que vemos o desenvolvimento do que se pode chamar
comportamento irônico, graças às técnicas desenvolvidas por este filósofo que consistia em
transformar uma frase assertiva em interrogativa com a finalidade de propor ao interlocutor um
desconhecimento, ou antes, provocar a ausência de determinada convicção em relação a
determinado tema tratado no diálogo.
Em Aristóteles o termo passa a designar também um comportamento do homem: este
classifica a eironia no sentido de simulação (simulatio) autodepreciativa, contendo a qualidade
superior a seu oposto – a alazonia, ou dissimulação jactanciosa. Posteriormente, na tradição
latina – se observarmos particularmente Cícero e Quintiliano – a ironia se torna uma figura de
retórica cujo objetivo era vencer o oponente em um debate.
Na era clássica, então, deriva-se dois conceitos distintos de ironia: uma relacionada à
linguagem, figura de retórica, e outra relacionada a determinado comportamento e atitude do
ser humano. São esses dois conceitos que vão gerar, grosso modo, na era moderna, aquilo que
conhecemos como ironia romântica e ironia retórica. A primeira tem suas influências no
idealismo alemão, e coloca como concepção a estratégia de distanciamento do objeto artístico
para mostrar seu caráter de efemeridade, de ficcionalidade e de provisoriedade diante da
realidade. Já a segunda tende a ser um sistema fechado, e tem a preocupação de revelar as
incongruências de determinado objeto, e ao mesmo tempo defender determinada posição diante
da ambiguidade apresentada. Ela se caracteriza, então, pela valorização do receptor na
mensagem, pelo reconhecimento da capacidade de se receber uma mensagem cifrada e de se
perceber a falsidade do enunciado estabelecido, bem como seu sentido contrário. Ela se
preocupa com o conteúdo do dito, da diegese, e pode ser ilustrada com aquele típico exemplo
de alguém que diz “que dia bonito!” diante de um dia feio e chuvoso.
Esse simples exemplo nos mostra que a ironia – mais do que figura de linguagem –
revela uma visão de mundo a ser apresentada, afinal, conceitos como beleza são subjetivos e
variáveis em função dos valores individuais que cada um carrega. Duarte (2006, p. 45) nos
mostra que esse tipo de ironia busca estabelecer verdades que interessam a determinada
perspectiva. Neste sistema fechado há uma luta de partidos em oposição, de sentidos contrários,
cujo objetivo – por parte do locutor que vê e apresenta algo como irônico – é definir
determinada posição diante de um conflito estabelecido no processo enunciativo.
É esse tipo de ironia que parece ter um lugar peculiar na literatura ocidental: de
Cervantes a Saramago, os exemplos são inúmeros e seria exaustivo elencá-los todos aqui. O
que é preciso ter em mente é que, para além da literatura ocidental, também a encontramos na
literatura oriental, especificamente na obra de Dostoiévski. No caso de Memórias do Subsolo
temos um narrador em primeira pessoa que se utiliza constantemente da ironia como forma de
brincar com os sentidos do texto e mesmo de polemizar com um suposto interlocutor implícito
no texto.
É sabido, entretanto, que o locutor, ao lançar mão do recurso da ironia, não tem controle
sobre a recepção do mesmo no interlocutor. É nesse sentido que a ironia também pode ser
perigosa, causar mal entendidos e provocar ambiguidades. Há, portanto, no contexto da
comunicação irônica, relações de carga afetiva estabelecida entre interlocutores. É nesse
sentido que Hutcheon (2000, p. 146) discorre sobre o conceito de arestas da ironia. Para ela -
pensando também nos efeitos de sentidos que podem ocorrer com o interlocutor da mensagem
irônica - o ironista lança brechas, ou antes, arestas para que o interlocutor consiga captar o
sentido da comunicação irônica, mediante um contexto previamente compartilhado entre
ambos. Essas arestas, por sua vez, se relacionam às funções, ou antes, aos efeitos de sentidos
que podem ser provocados no interlocutor, e vão desde uma função lúdica e amigável até uma
função atacante e distanciadora, passando também pela função autoprotetora, e mesmo
opositora.
Pensar nos efeitos de sentidos que a ironia pode provocar na leitura de um texto literário
constitui material importante para pensar tanto na construção do texto e em sua arquitetura,
quanto na recepção do mesmo. Neste caso, à estrutura básica “locutor-interlocutor-contexto”,
devemos ter em mente as figuras do narrador, leitor e contexto de realização da leitura.
Evocamos, então, as proposições teóricas da estética da recepção, particularmente aquelas
fundadas nos trabalhos de Jauss (1979), Iser, e Eco.
Umberto Eco (1994, p. 54) nos mostra que o leitor precisa aceitar tacitamente um
acordo ficcional, fingir que o que é narrado de fato aconteceu naquele mundo ficcional.
Entretanto, quando temos um narrador que se utiliza da ironia põe-se em cheque aquilo que
está sendo narrado, deixando o leitor de certo modo desconfortável e exigindo dele uma
participação ativa na construção do sentido do texto, ao mesmo tempo em que o deixa
desconfiado das verdades aparentes narradas naquele plano que fora traçado com uma intenção
ficcional.
Wolfgang Iser (1979), por sua vez, discorre sobre a leitura como um jogo, na medida
em que a construção de sentidos realizada pelo leitor (a parte subjetiva da recepção) é
construída como um jogo em que estão presentes as peças texto-narrador-leitor. A ironia
presente em um texto literário, neste caso, mexe e joga mais ainda com o leitor na construção
de sentidos do texto.
Bakhtin: dialogismo e polifonia
Parece ser impossível estudar a obra de Dostoiévski sem nos depararmos, em algum
momento, com as proposições teóricas de Bakhtin (2010). Diante de seu extenso quadro teórico
dois conceitos são fundamentais para melhor compreender a obra do romancista russo:
dialogismo e polifonia. Este – termo especificamente tomado emprestado do campo da música
– se refere a uma forma de composição narrativa em que o narrador orquestra e rege as
diferentes vozes existentes na obra. Já aquele se refere às diferentes relações dialógicas que os
discursos dentro de uma obra estabelecem entre si. Nesse sentido, a polifonia está acima do
dialogismo, e é preciso ter em mente, para melhor compreender estes conceitos, que na obra
de Dostoiévski a focalização narrativa – embora por vezes esteja na teceria pessoa – se dá
internamente ao personagem. O autor, neste caso, não fala do personagem, como se este fosse
um objeto fixo e acabado, mas sim fala com o personagem, estabelece um diálogo com ele na
medida em que lhe dá poder de voz para se manifestar livremente.
Nas obras de Dostoiévski, então, todos (personagens, autor e narrador) têm poder de
voz, e há a representação artística das ideias colocadas nas diferentes vozes dentro da
organização narrativa. Neste sentido, conhecemos o personagem através de sua ideia
representada em uma consciência que produz determinado discurso; conhecemo-lo a partir do
que ele tem a dizer, a partir de sua concepção de mundo.
Bakhtin (2010), em Problemas da Poética de Dostoiévski, realiza uma extensa análise
da obra do romancista russo, e dedica um capítulo especial aos diferentes discursos existentes
na obra. Especificamente em relação a Memórias do Subsolo, ele o classifica como discurso
bivocal de orientação vária, Ich-Erzählung do tipo confessional com traços de polêmica aberta
e velada e discursos com evasivas. De fato, o narrador de Memórias do Subsolo realmente
apresenta um discurso ao leitor altamente recheado de polêmicas (apresentadas de forma
aberta, externada em seu discurso, ou mesmo fechada, ou seja, apenas pensada em sua
consciência, mas não falada abertamente) a respeito de determinadas problemáticas de sua
época, cujo sentido é recuperado pelo leitor se se atentar para a pressuposição de um
interlocutor implícito naquele contexto histórico em que a obra está inserida.
Mais ainda: o discurso é considerado bivocal e de orientação vária, pois em uma mesma
consciência que fala, que produz discurso, ressoam outros discursos sejam eles advindos de
pensamentos do próprio narrador, sejam eles antecipando uma possível resposta a um
interlocutor ausente. Nesse sentido, o discurso do narrador de Memórias do Subsolo então,
adquire várias ressonâncias a partir da reflexão do discurso do outro em seu discurso, e daí
nasce também um tom e estilo marcadamente irônicos. As polêmicas travadas em seu discurso
têm intima relação com a aresta atacante e defensiva da ironia, na qual comentamos
anteriormente: o narrador se utiliza da ironia tanto para se defender de determinada posição
quanto para atacar seu interlocutor que o considera como seu oponente no debate.
Por fim, a evasiva no discurso do narrador de Memórias do Subsolo, se refere
especificamente ao recurso utilizado para a flexibilização da autodefinição do herói. O
narrador, invariavelmente, exige uma réplica, mesmo que o negue; mas, ao exigir uma réplica
e ao mesmo tempo antecipar uma possível resposta da palavra do outro, o narrador cria aquilo
que é chamado de discurso com evasivas. Neste sentido, tudo aquilo que o narrador anuncia é
apenas a penúltima palavra sobre si, é apenas um ponto condicional e não um ponto final. Isso
se dá com o intuito de que o outro lhe dê uma palavra, lhe dê uma réplica, mesmo que o narrador
negue conscientemente.
É especificamente esse jogo provocado pela tensão entre o exigir a palavra do outro e
negá-la que constitui, por si só, uma situação irônica, e que se transforma em elemento formal
de composição da obra. Para representar tais contradições vividas pelo personagem em uma
narrativa, no reino da prosa especificamente, há que se ter, de fato, um discurso irônico em
uma rede de discursos dialógicos entre si.
Ainda em relação ao quadro teórico desenvolvido por Bakhtin (2010), é importante
ressaltar que o teórico russo não tira suas conclusões de maneira abstrata e as imprime na obra
do romancista, mas sim as realiza através de minuciosas observações de fenômenos literários
desde a literatura antiga. Neste sentido, também em Problemas da poética de Dostoiévski, o
teórico russo faz uma extensa digressão histórica e nos mostra que os gêneros antigos
(especificamente os gêneros derivados do sério-cômico, como a sátira menipeia e o diálogo
socrático) influenciam a formação da particularidade do gênero em Dostoiévski.
Averigua-se, então, a influência dos diálogos socráticos, bem como os diálogos de
Platão e Xenofonte, além da concepção de que a verdade nasce entre os homens, e por isso,
todos devem ter poder de voz em um diálogo. Além disso, tem-se como concepção de que a
ideia a ser defendida se combina com a imagem do homem que representa essa ideia, e nesse
sentido, nasce a comunicação dialógica na literatura.
Além destes gêneros, está também a influência da carnavalização na literatura. Bakhtin
(2010) toma o carnaval como uma manifestação sociocultural que possui uma linguagem
própria, e uma cosmovisão carnavalesca do mundo. A transposição dessa linguagem própria
para a literatura é chamada de carnavalização, e o caráter do relato carnavalesco na literatura
antiga é de teor realista: pretendia-se a representação do homem em dada realidade social e
histórica. Em Dostoiévski, esses três elementos – carnavalização, sátira menipeia e diálogo
socrático – influenciam sua obra de modo que nasce, posteriormente, o que Bakhtin chama de
romance polifônico.
Ironia, dialogismo e polifonia em Memórias do Subsolo
Memórias do Subsolo parece estar recheada de ataques polêmicos com teor irônico no
decorrer do texto. Antes de elucidarmos com alguns exemplos, se faz necessária uma breve
explicação do contexto específico à qual a obra está vinculada. A obra é uma pequena novela
do gênero memórias (ou seja, o leitor espera encontrar, enquanto horizonte de expectativas,
uma narrativa conduzida em primeira pessoa no presente que retoma suas memórias do
passado, embora não é isso o que acontece, o que por si só já constitui uma situação irônica)
dividida em duas partes: a primeira (que teria sido escrita em 1863 e publicada na revista Época
editada pelo próprio Dostoiévski) é um monólogo do qual o narrador não só relembra fatos do
passado, como também divaga sobre questões filosóficas e morais das quais lhe servem de
interesse e servem também para provocar polêmicas a um interlocutor ausente. A segunda
parte, uma novela propriamente dita em que o narrador nos conta fatos de seu passado e
introduz outros personagens no relato, fora publicada somente em 1864 integralmente junto
com a primeira parte, na mesma revista.
É importante ressaltar que Dostoiévski estava envolvido com polêmicas literárias e de
cunho ideológico de seu tempo e com seus contemporâneos: o romance Pais e Filhos de
Turguiênev fora publicado em 1862 no jornal O mensageiro russo. Lá já começam a aparecer
os primeiros resquícios de uma dualidade que será a tônica dos romances russos da década de
1860: o estreito racionalismo defendido pelos Ocidentalistas, de um lado, e todos aqueles
sentimentos e valores considerados conservadores de determinada tradição, defendido pelos
eslavófilos de outro.
O romance de Turguiênev, que já causara polêmicas no ano de sua publicação, serviu
de motor para suscitar uma réplica da parte de Tchernichevski, com a publicação do romance
Que fazer? em 1863. Dostoiévski, que por sua vez era rival ideológico de Tchernichevski e não
compartilhava com suas ideias de cunho determinista, escreve a primeira parte de Memórias
do Subsolo como uma possível resposta à altura daquele. É tendo esse contexto histórico
específico em mente que o leitor já se depara, nas primeiras páginas da novela, com um tom
irônico nas palavras do narrador: este afirma que é “um homem doente... um homem mau”1, e
que crê que “sofro do fígado2”. Entretanto, algumas linhas abaixo ele próprio se desdiz
afirmando que, mesmo que sofra uma enfermidade, não procura ajuda médica, mas “respeita a
medicina e os médicos3” já que é “supersticioso ao menos o bastante para respeitar a
medicina4”. Logo de cara o leitor se depara, então, com um discurso que brinca e que joga com
os significados reais e latentes de determinadas palavras. Afinal, como pode um homem ser
supersticioso e acreditar na medicina, esta considerada o oposto da superstição e calcada na
racionalidade?
Não bastassem essas brincadeiras, o narrador também dialoga com o leitor, sempre
dizendo algo e se desdizendo em seguida:
Fui um funcionário maldoso, grosseiro, e encontrava prazer nisso. [...] Mas
sabeis, senhores, em que consistia o ponto principal de minha raiva? O caso
todo, a maior ignomínia, consistia justamete em que, a todo momento,
mesmo no instante do meu mais intenso rancor, eu tinha consciência, e
de modo vergonhoso, de que não era uma pessoa má, nem mesmo
enraivecida; [...] Menti a respeito de mim quando disse, ainda há
pouco, que era um funcionário maldoso. Menti de raiva. [...] Não vos
parece que eu, agora, me arrependo de ter algo perante vós, que vos peço
perdão? [...] estou certo de que é esta a vossa impressão.
(DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 15, grifos nossos).
Aqui é perceptível que o narrador também brinca com o jogo entre a necessidade da
palavra do outro e a negação da mesma, já que este parece prever a impressão do outro diante
de seu discurso, e antecipa em sua própria fala essa possível reação. Estabelece-se assim um
1 Dostoiévski, F.M. Memórias do Subsolo, Trad. Bóris Schnaiderman. São Paulo: Ed. 34, 2009, p. 15. 2 Idem 3 Ibid. 4 Ibid.
jogo de ressonâncias dialógicas, onde em uma mesma fala, em um mesmo discurso proferido
por uma consciência (a do narrador), ressoam discursos outros refletidos em seu próprio
discurso, e ganham assim um tom irônico.
Processo semelhante ocorre algumas páginas seguintes quando, após ter dito algo com
teor de humor – e possivelmente fazer o leitor rir - o narrador nos diz, “pensais acaso, senhores,
que eu queira fazer-vos rir? É um engano”5. Além disso, por vezes, no alto de suas divagações,
o narrador também imagina um diálogo com um interlocutor ausente (influência do gênero
antigo solilóquio) e separa o discurso do possível interlocutor, dando a impressão de que há,
de fato, alguém lhe respondendo.
– ha, ha, ha, mas essa vontade nem sequer existe, se quereis saber! –
interrompeis-me com uma gargalhada. – A ciência conseguiu a tal ponto
analisar anatomicamente o homem que já sabemos que a vontade e o chamado
livre-arbítrio nada mais são do que...
– Um momento, senhores, foi justamente assim que eu mesmo quis
começar. Cheguei até a me assustar, confesso. Ainda agora, quis gritar que a
vontade depende diabo sabe do quê, e talvez se deva dar graças a Deus por
isto, mas lembrei-me da ciência e... me detive. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 39,
grifos nossos).
Novamente é perceptível, na atitude do narrador, a antecipação da reação do outro
fazendo com que isto se torne um discurso refletido em seu próprio discurso, constituindo assim
um caso de ironia. Mais do que isso, as palavras do narrador diante da resposta que este dá a
seu interlocutor ausente também carregam arestas de ironia já que brincam com os termos
diabo, Deus e ciência. Afinal, como pode a vontade de gritar depender “do diabo sabe do quê”,
e ao mesmo tempo dar graças a Deus a essa dependência que pertence ao diabo, mas sua ação
ser detida em função da ciência?
Em outros momentos, é o tom de seu discurso que ganha um ar irônico modelado diante
do discurso do outro que se reflete em seu próprio discurso:
diante do impossível, como eu já disse, eles imediatamente se conformam. O
impossível quer dizer uma pedra? Mas que muro de pedra? Bem,
naturalmente as leis da natureza, as conclusões das ciências naturais, a
matemática. Quando vos demonstram, por exemplo, que descendeis do
macaco, não adianta fazer careta, tendes que aceitar a coisa como ela é.
Se vos demonstram que, em essência, uma gotícula de vossa própria gordura
vos deve ser mais cara do que cem mil de vossos semelhantes, e que neste
5 Dostoiévski, Op. Cit. p. 17.
resultado ficarão abrangidos, por fim, todos os chamados deveres, virtudes e
demais tolices e preconceitos, deveis aceitá-lo mesmo assim, nada há a
fazer, por que dois e dois são quatro, é matemática. E experimentai
retrucar. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 24-25, grifos nossos).
Neste trecho parece nítido o fato de que o narrador está polemizando com as ideias de
cunho determinista, racionalista, e utilitarista propostas por Tchernichevski. A maneira como
o narrador lança a polêmica contra seu interlocutor se caracteriza justamente no fato de afirmar
determinada ideia e ainda dizer que é um dever aceitá-la tal como ela é. De maneira contrária,
Dostoiévski, e mesmo o homem do subsolo, nos mostra que não concorda com a concepção de
que as “leis da natureza”, ou antes, a razão instrumental – tida como algo externo ao indivíduo
– seja determinante de todo ao ser humano. Para além de leis e da razão, existe vida e existe
beleza, e o homem não deve jamais abrir mão de seu livre arbítrio para exercer sua própria
vontade. Nas palavras do homem do subsolo:
Pensai no seguinte: a razão, meus senhores, é coisa boa, não há dúvida, mas
razão é só razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto
o ato de querer constitui a manifestação de toda a vida, isto é, de toda a vida
humana, com a razão e com todo o coçar-se. E, embora a nossa vida, nessa
manifestação, resulte muitas vezes em algo bem ignóbil, é sempre a vida e
não apenas a extração de uma raiz quadrada. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.
41, grifos nossos).
É perceptível, novamente, o fato do narrador se dirigir a um determinado interlocutor
ausente, como se estivesse conversando com ele. Entretanto, aqui, diferentemente de outras
partes da narrativa, o tom de seu discurso muda novamente e assume um caráter de tomada de
opinião diante de um assunto anteriormente apresentado e discutido.
Ao longo da narrativa o homem do subsolo trava outras várias polêmicas a respeito de
assuntos anteriormente debatidos no romance de Tchernichevski, como por exemplo, a vontade
humana, o Palácio de Cristal de Londres como o símbolo máximo do desenvolvimento
capitalista, e mesmo a “vantagem mais vantajosa” para o homem, que consiste, na opinião do
narrador - na qual ressoa uma opinião própria de Dostoiévski - no pleno exercício da liberdade
e do livre arbítrio, estando este exercício acima de qualquer lei calcada na racionalidade e
exterior ao indivíduo.
Já próximo de finalizar seu monólogo na primeira parte da novela, o narrador, após ter
concluído suas observações e ter se posicionado a respeito de várias questões por ele colocadas,
inicia uma série de discursos autoirônicos, investidos contra si mesmo, ao mesmo tempo em
que conversa com o leitor e contesta o estatuto da narração. Vejamos o seguinte trecho:
E aliás, quereis saber uma coisa? Estou certo de que a nossa gente do subsolo
deve ser mantida à rédea curta. Uma pessoa assim é capaz de ficar sentada
em silêncio durante quarenta anos, mas quando abre uma passagem e sai para
a luz, fica falando, falando, falando... (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 50).
Em outro momento da parte final, o narrador também indaga se o leitor é capaz de ser
crédulo a ponto de imaginar que ele, o narrador, vá publicar um dia tudo isso que havia escrito.
Como resposta possível, ele nos mostra que
Eu escrevo unicamente para mim, e declaro de uma vez por todas que, embora
escreva como se me dirigisse a leitores, faço-o apenas por exibição, pois
assim me é mais fácil escrever. Trata-se de uma forma vazia, unicamente de
forma vazia, e eu nunca hei de ter leitores. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 53).
Novamente o leitor se depara com gracejos e caprichos do narrador, desta vez
questionando o próprio fazer literário, o que nos permite caracterizar, neste caso, como traços
de ironia romântica: o narrador se distancia de seu próprio fazer narrativo, é consciente do que
faz, mostra que aquilo é provisório e ainda emite juízo de valor diante do objeto distanciado.
Na segunda parte da novela – denominada “a propósito da neve molhada” – já
encontramos um caso de ironia no próprio título: se o leitor espera encontrar algum relato sobre
a neve molhada6 certamente se frustrará. Se a primeira parte nos soa agressiva, com um ritmo
frenético que se aproxima de um caso de neurose, e é recheada de polêmicas, a segunda parte
é mais doce, mais leve, com um tom quase folhetinesco e recheado de paródias literárias que
por vezes beiram ao patético, ao burlesco e ao caricatural. Essa parodização de estilos literários
também constitui um elemento motor para a ironia, embora de maneira diferente da que
encontramos na primeira parte.
Aliás, diferentemente da primeira parte em que temos casos de ironia especificamente
em um discurso que serve para atacar e se defender de um interlocutor ausente, na segunda
6 O termo fora bastante utilizado pelos escritores da Escola Natural dos anos 1840 na Rússia para se referir à neve
úmida e à paisagem árida de São Petsburgo no período de verão. Dostoiévski, no caso, se utiliza deste termo
para recuperar – ironicamente, fazendo referência ao movimento da Escola Natural ao qual também pertencera
– um cenário dos anos 1840 em sua narrativa, fazendo uma contraposição com o cenário dos anos 1860, período
em que está vinculada a obra Memórias do Subsolo.
parte temos acontecimentos que são relatados pelo narrador e que nos revelam uma situação
irônica. Entre estes acontecimentos podemos citar: o episódio com o atrito com o oficial de
rua, no qual o narrador se sente ofendido por ele e tem a necessidade de se por em pé de
igualdade, e para isso calcula a cena perfeita – incluindo pensar em um traje específico para a
ocasião - para que se esbarre diante dele na rua.
Além deste episódio está também aquele em que o homem do subsolo se encontra em
um jantar com seus antigos colegas de escolas e estes lhe passam a perna ao marcarem
determinado horário sem ter avisado o homem do subsolo de antemão. O homem do subsolo
se sente ofendido, ele quer se vingar, mas, próximo de concluir seu ato heroico, recua. Há uma
discrepância, então, entre seu pensar e seu agir, o que condiz com seu posicionamento na
primeira parte no qual este se declara um “homem de pensamento”, que está acima do “homem
de ação” e não é capaz de agir.
Outro caso de ironia que é perceptível de maneira sutil na segunda parte da novela diz
respeito à dialética entre a rejeição e negação do olhar do Outro diante de si. O homem do
subsolo sabe conscientemente que precisa do olhar do Outro para poder existir, mas ao mesmo
tempo o rejeita. Ele quer afirmar sua existência, mas ao mesmo tempo a indiferença por parte
do Outro lhe dói. Mais especificamente, podemos dizer que o homem do subsolo até aceita a
rejeição do outro, já que esta ao menos lhe oferece prova de sua existência. O que ele não
aceita, na verdade, é a negação de sua existência que difere da rejeição no sentido que o
primeiro nega a existência do homem do subsolo enquanto sujeito, enquanto ser humano
dotado de psique.
Outro acontecimento que nos revela uma situação irônica está na parte final da segunda
parte, com o episódio da prostituta Lisa. Em um primeiro momento o homem do subsolo a
conhece e tenta convencê-la a abandonar o mundo da prostituição. Ao sair do bordel o homem
do subsolo lhe deixa seu endereço na expectativa de ajudá-la de alguma maneira. O que o
homem do subsolo não esperava é que ela fosse realmente até sua casa, e, mais do que isso, lhe
visse como realmente o é: um ex-funcionário da aristocracia, com roupas gastas e vivendo na
mediocridade. Lisa, de fato, vai a seu encontro, e o vê tal como ele é. Mas, ao lado da vergonha
experimentada pelo homem do subsolo, Lisa lança seus olhares de paixão desinteressada ao
homem do subsolo. Enfim, alguém que reconheça a existência plena do homem do subsolo
através do olhar desinteressado calcado numa ideia de amor de compaixão. Entretanto, a isso
o homem do subsolo também não consegue suportar, e sua reação é a recusa, da qual faz suas
investidas maldosas contra Lisa. A justificativa de seu ato, a recusa do amor desinteressado
oferecido por Outro, se dá na medida em que temos a ideia corrente de Dostoiévski a respeito
da purificação através do sofrimento como desculpa para um sadismo moral-espiritual
experimentado pelo homem do subsolo. É nesse sentido que – e ironicamente – Lisa parece
nos mostrar que a única saída para o egocentrismo faceiro e a decadência da humanidade levada
a cabo pelas ideias utilitaristas e racionais se dá através do amor desinteressado, ideia que flerta
com uma concepção cristã ortodoxa na qual Dostoiévski compartilhava.
Após o desfecho trágico da narrativa, o homem do subsolo chega à conclusão – novo
caso de ironia! – de que tudo isso, todas as teorias ocidentais, todas as “leis da natureza”, no
fim não valem nada: “Deixai-nos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos confusos,
vamos perder-nos; não sabemos a quem aderir, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o
que desprezar” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 146).
Conclusão
A partir da análise por nós proposta pudemos observar que, em vários momentos, o
narrador de Memórias do Subsolo se utiliza da ironia com o intuito de atacar e se defender de
seu interlocutor ausente e imaginado como um adversário ideológico. Ele o faz através do
recurso da evasiva e da emancipação da palavra do outro, imaginando, neste caso, a possível
resposta que seu interlocutor lhe poderia dar, e assim modula seu discurso em função do
discurso do outro. É esse mecanismo de modulação discursiva que é considerado como relação
dialógica entre discursos.
O narrador também vive mergulhado em suas contradições internas, ele rejeita o olhar
do outro, embora saiba que necessita do mesmo para existir. Nesse sentido, a própria situação
em que o personagem se encontra pode ser considera irônica. Mais do que situações que se
apresentam como irônicas ao leitor, se olharmos em sentido amplo para a obra, é mister inferir
que a ironia, mais do que mera figura de linguagem que serve para enfeitar o texto com certos
caprichos de linguagem, torna-se ela um elemento de composição formal da obra, arquitetando
toda a tessitura da linguagem com suas relações dialógicas, e suas ressonâncias ambíguas entre
si. A ironia e as relações dialógicas servem, assim, para dar conta de manter posições
divergentes em equilíbrio, para representar, através da linguagem, o “homem no homem” tal
como Dostoiévski queria, ambíguo, contraditório em si mesmo, e cujo valor mais importante
lhe seria a vida e o exercício da liberdade, e que, mais do que qualquer lei comprovada pela via
da razão, existe o fator humano, existe vida. Neste caso, Dostoiévski cumpre bem seu papel ao
fazer da literatura o espaço para o ensaio e para a resposta de questões outras que tangem a
esfera do humano.
Referências
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Janeiro: Forense Universitária, 2010.
DOSTOIÈVSKI, F. M. Memórias do Subsolo. Trad. Bóris Schnaiderman. São Paulo: Editora
34, 2009.
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ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.
FRANK, J. Dostoiévski 1680 a 1865 – os efeitos da libertação. Trad G. G. Souza, 1ª Ed. São
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HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Trad. Julio Jeha. Belo Horizonte: Ed.
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