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Eric Voegelin e as religiões políticas

Quem é este que vos fala?

André Assi Barreto é professor de Filosofia das redes pública, particular e do Centro Paula Souza. Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Tradutor e assessor editorial. Associado da Linotipo Digital Editora.

Site: www.andreassibarreto.org

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The New England Primer

“In Adam’s fall We sinned all”.

João 16:33 “Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais paz; no

mundo tereis aflições”

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Eric Voegelin e as religiões políticas• Eric Voegelin (1901-1985):

filósofo e cientista político. Talvez o mais importante do século XX.

• Foi um verdadeiro scholar, estudou matemática, física e biologia. Viveu a grande Viena. Discípulo de Kelsen, amigo de Mises e outros.

• Reflexões Autobiográficas• Martim Vasques da Cunha:

https://www.youtube.com/watch?v=aJ8sXpZqtPs

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I) Propedêutica filosófica• Transcendente: a) aquilo que transcende a realidade humana

(histórica, poderíamos dizer). b) o que está para além – Tomás de Aquino afirmava que a teologia “transcende todas as outras ciências tanto especulativas quanto práticas, isso porque ela é mais certa e porque seus objetos “pela elevação, transcendem a razão” (S.T., I, q. 1, a. 5).

• Imanente: a) o motivo de existência da realidade humana está em seu próprio interior; não há nada além dela (que a transcenda). b) Em Aristóteles se referia às atividades e ações que têm seu fim em si mesmas. Em Espinosa = Deus é imanente, Deus = natureza.

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Conceituação filosófica• Teleologia: estudo sobre a finalidade das

coisas específicas (termo de Wolff), télos = fim. [Kant e a História universal].

≠• Escatologia: ciência sobre os fins do universo

e da humanidade (cf. A. Lalande). Na teologia: fim do mundo (nós: fim da História humana).

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II) Preâmbulo

• A distinção entre o sagrado e o profano é CIVILIZADORA.

• Mircea Eliade (1907-1986), estudo de antropologia religiosa:

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Sagrado e Profano• Para Eliade, a essência do comportamento religioso está no

“modo de diferenciar e separar aquilo que é sagrado daquilo que é profano”.

• Profano: controlável, SAGRADO: incontrolável (e que remete a sentimento de humildade e reverência).

• Mundo moderno = universo dessacralizado (porém, que não escapa a tabus e superstições – conforme dizia Chesterton, o problema não é não acreditar em Deus, o problema é acreditar em qualquer coisa).

• Mundo moderno: absorção do sagrado no profano; guarda-se os esquemas, repele-se o conteúdo transcendente.

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• As religiões políticas imanentizam o eschaton ou, poderíamos dizer, nos termos de Eliade, profanam o sagrado. Ou ainda: tratam o fim da História humana como um fato estritamente imanente, um dilema a ser resolvido na própria História (modernidade substitui a Teologia pela História);

• IMPORTANTE: a comparação não é trivial ou simplista. As religiões políticas copiam a estrutura das religiões tradicionais com o propósito de substituí-las – não se trata de termômetro de “radicalismo”.

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III A religião política

• Na “religião civil” (Rousseau, Hobbes e depois termo usado por Raymond Aron para se referir a nazismo e comunismo depois da 2ª Guerra Mundial) ou na “religião política”, há:• Fé Metastática: doença do espírito,

crença numa resolução humana, histórica e repentina para o “dilema humano”.

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• Cópia dos esquemas religiosos, esvaziados de seu conteúdo metafísico: Leszek Kolakowski observa no partido comunista os seguintes itens: Escatologia, Pecado Original, Redenção, Encarnação, conflito entre Fé e Razão, Natureza e Graça, Revelação e Mistério, Paraíso e Danação.

• Monenrot: “põem todas as suas esperanças no mundo” (Sociologia do Comunismo) – [daí que fracassem].

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• A solução está no mundo e o homem é perfeito (perfectibilidade da natureza humana – Rousseau).

• Por que isso se deu? The Heavenly City of the Eighteenth-century philosophers, Carl Becker:

A substituição do cristianismo – o inimigo da Razão iluminista – não deveria se dar em termos de oposição (física sim), mas de assimilação substitutiva.Primeiro caso: culto do Sol (Akhenaton) no Egito Antigo (VOEGELIN, As religiões políticas, p.33-42).

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Modernidade: o terreno para a imanentização do eschaton

• PRINCÍPIO: Thomas Hobbes: a necessidade de um Leviatã, um “deus mortal”, a necessidade de uma “religião civil”.– “a política e as leis civis fazem parte da religião; não

havendo assim lugar para distinção entre a dominação temporal e a espiritual” (Leviatã).

– “aquilo que o homem faz, diz ou quer, contra as razões da cidade, ou seja, contra a lei” = pecado (Do Cidadão).

– Rompimento nítido e definitivo com a concepção cristã/agostiniana.

• “Deus está morto”: morte de toda a transcendência.Nietzsche chamará o Estado moderno de “Novo Ídolo”.

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Leviatã

• Ecclesia intramundana: Leviatã. Reprodução simbólica.

• “Ele vê tudo que é alto; é rei sobre todos os filhos da soberba” (Jó, 41:34).

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• Consequência: só há o aqui e o agora. As alternativas: o ressentimento e o pessimismo niilista OU a criação de um sentido imanente e histórico (mudança na concepção de História).

• Exemplos: Kant (a “paz perpétua”), Vico, Comte (sociedade positiva, lei dos três estados – há “religião civil” em Comte), Hegel (“fim da História”), Rousseau (a democracia plebiscitária), Marx (o comunismo), Fukuyama (a democracia liberal). Pontos finais (históricos) da História humana.

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A política como salvação

• Com o estilhaçar do cristianismo a partir da Reforma surgem os “milenarismos” de seitas cristãs. É o Apocalipse acelerado por meio da revolução política.

• Exemplo: Thomas Müntzer, teólogo e pastor profético protestante que liderou a chamada “Revolta dos Camponeses”, ocasionando cerca de 100 mil mortes.

GRAY, John. Missa Negra. p. 41.• As religiões políticas são cosmovisões (daí que gerem

totalitarismos).

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• Segundo Becker, nas religiões políticas:(1) O homem não é mau por natureza;(2) A finalidade da vida é a vida mesma, a boa vida

na terra em vez da vida beatífica após a morte (o bonum communis no lugar do summum bonum);

(3) O homem é capaz, guiado apenas pela luz da razão e da experiência, de aperfeiçoar a boa vida na terra;

p. 102 e 103.

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IV ERIC VOEGELIN

• O que Eric Voegelin faz é reconstruir historicamente o fenômeno das religiões políticas desde uma perspectiva filosófica (LEHMANN, 1985, p. 17).

• Elementos da Filosofia de Voegelin:– Ideias e símbolos. Ideias políticas evocam símbolos

(ícones?). – Símbolos religiosos de Israel e da filosofia grega

(História e Nova Ciência).– Ordem da sociedade é reflexo de ordem do cosmos

(analogia, também em Eliade) – cosmion.

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Abertura da Alma

• O indivíduo faz parte de uma ordem social e a sociedade faz parte de uma ordem cósmica.

• Platão promove então uma “abertura da Alma”, superando o princípio cosmológico: a verdade independe da sociedade.

• Através da percepção de sua psique, o indivíduo, atinado, harmonizado com Deus conhece a verdade. Deus é a medida, não o homem ou a sociedade.

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A questão: o gnosticismo• Logo: a realidade histórica não é e não pode ser

medida de si mesma (imanência), mas apenas por valores transcendentes, acessíveis à alma do filósofo.

• Imperium e Ecclesia: simbologia que evoca o dinamismo da relação entre o sacro e o profano sem confundi-los.

• Gnosticismo: 1) atitude que busca secularizar o transcendental ou a revelação (LEHMANN, p. 112).

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• 2) gnose: “conhecimento” (porém, ≠ da episteme e da phronesis). Conhecimento que precisa ser acessado; a-gnóstico.

• Surge como heresia cristã. Alguns iluminados que têm alguma espécie de conhecimento privilegiado que lhe fora revelado especialmente (sábio autoproclamado).

• Gnosticismo: traço eminentemente moderno, “a natureza da modernidade” (cap. IV de A Nova Ciência da Política).

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• Em que crê o gnóstico?• O universo é hostil.• Esse quadro de hostilidade pode ser corrigido e

revertido (por meio do conhecimento obtido pelo gnóstico).

• Ou seja: o gnóstico crê que uma mudança radical na ordem da realidade é tanto possível quanto desejável.

• Isso tudo se dará repentinamente: “tudo será mais belo” A. Gramsci.

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“Wissenschaft, Politik und gnosis”

• (1) Está insatisfeito com sua situação atual.• (2) Os problemas do mundo se devem a sua

organização ruim.• (3) A salvação desse mundo mal organizado é

possível.• (4) De (3) segue que a ordem do ser terá de

ser alterada num processo histórico. De um mundo malévolo um outro bom deve emergir.

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• (5) Uma mudança na ordem do ser é possível no reino da ação humana, este ato de salvação é possível por meio do esforço humano.

• (6) O conhecimento (gnose) da alteração da ordem do ser é a preocupação central do gnóstico, ele é capaz de elaborar a fórmula capaz de salvar o homem e o mundo

(Cf. HENNINGSEN, 1984, p. 297-8; vol. V. do “Collected Works”).O pecado original é o mar, o gnosticismo um barco que rema contra ele. Scruton e a definição de conservador.

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Marxismo

• É reducionista e trata tudo como “ideologia”.• Ideologia: véu de ideias que encobre a

realidade; marxismo: fórmula que descobre a realidade desse véu; com o materialismo dialético se atinge a camada “verdadeira” da realidade.

• Quer reforma radical da realidade a ponto de criar um “novo homem”, o homo sovieticus de Trotsky.

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• Imbuído de fé metastática: o advento de uma revolução é o estopim para o estabelecimento do paraíso terreno, Marx em A Ideologia Alemã:

“...na sociedade comunista, onde cada um não tem atividade exclusiva, mas pode aperfeiçoar-se no ramo que lhe apraz, a sociedade regula a produção geral, dando-me assim a possibilidade de hoje fazer tal coisa, amanhã outra, caçar pela manhã, pescar à tarde, criar animais ao anoitecer, criticar após o jantar, segundo meu desejo, sem jamais tornar-me caçador, pescador, pastor ou crítico” (MARX e ENGELS, 1986: 47).

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• Basta que a revolução seja deflagrada, que a burguesia seja assassinada imediatamente para que nos encaixemos na trilha do estabelecimento do paraíso. A autoridade religiosa do mal.

• O mesmo para o nazismo: uma mudança radical na ordem do real, a eliminação dos “empecilhos” para isso e teremos instalado um paraíso mundano.

• Raciocínios imbuídos de gnosticismo que rompem nitidamente com a concepção agostiniana.

• Cheque em branco para o futuro: caridade só amanhã. “Filantropia telescópica” (Dickens em Bleak House).

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Fé metastática• Os gnósticos são movidos a fé metastática, que é uma

DOENÇA DO ESPÍRITO característica da nossa época.• Voegelin em Ordem e História – Israel e a revelação:• “do problema metastático (...) verá imediatamente que a

concepção profética de uma mudança na constituição do ser está na base de nossas crenças contemporâneas na perfeição da sociedade, seja mediante o progresso ou uma revolução comunista” (VOEGELIN, 2009, p. 31) e segundo Voegelin, esta fé metastática é “uma das grandes fontes de desordem, se não a principal, no mundo contemporâneo” (idem).

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• Ao “amputado transcendental” só resta Hitler, Stalin e Che Guevara confirmando a profecia de Max Scheler, em O eterno no Homem (1921) onde afirmou que “O homem acredita quer num deus, quer num ídolo. Não há terceira opção”.

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V Objeções. “Objeções”.

• 1) As observações de Voegelin vão contra a direção da política por valores religiosos. Justificação de uma “indiferença com os pobres”.

• 2) “Ideologia burguesa”, tentativa de convencer os pobres que sua condição miserável é normal e deve ser aceita porque “não tem jeito”.

• 3) Há religião política “de direita”? John Gray.

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Referências• AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. Partes 1 e 2. São Paulo: Vozes de Bolso, 2012. • ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras,

2012.• . Compreender: formação, exílio e totalitarismo. São Paulo:

Companhia das Letras, 2008.• BARBUY, Heraldo. Marxismo e Religião. São Paulo: Convívio, 1977.• BECKER, Carl L. The Heavenly City of the Eighteenth-century philosophers.

Massachusetts: Yale Paperbound, 1962.• CHIROT, Daniel; MCCAULEY, Clark. Why not kill them all? Princeton: Princeton

University Press, 2006. • ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.• GRAY, John. Missa Negra. São Paulo: Record, 2009.• HENNINGSEN, Manfred. The Collected Work of Eric Voegelin, vol. V. Missouri:

University of Missouri Press, 1984.

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• JOHNSON, Paul. Tempos Modernos. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990.• KOLAKOWSKI, Leszek. Main Currents of Marxism. 3 volumes. Oxford:

Clarendon Press, 1978.• ROTHBARD, Murray. “Karl Marx as religious eschatologist”. Ludwig von Mises

Institute. Disponível em: http://mises.org/daily/3769. Acesso em: 05/09/2014.• SILVA, Nelson Lehmann da. A religião civil do estado moderno. Brasília:

Thesaurus, 1985.• VOEGELIN, Eric. As religiões políticas. Lisboa: Vega, 2002.• . A Nova Ciência da Política. Brasília: UnB, 1982.• . Ordem e História: Israel e a Revelação. vol. I. São Paulo:

Loyola, 2009. • . Reflexões Autobiográficas. São Paulo: É Realizações, 2008.• WEBB, Eugene. Filósofos da Consciência. São Paulo: É Realizações, 2013.

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T.S. Eliot (citado por Russell Kirk)

The Sword of Imagination“Se não quisermos Deus (ele é um Deus

ciumento), devemos reverenciar Hitler ou Stalin”.


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