Download - Eternizadas dez__16
Carlos Drummond de Andrade – Fazedor de homens
William Shakespeare – Coletânea escolhida
Giuseppe Guiaroni – A palavra querida
Manuel Bandeira – O inútil luar
Manuel Bandeira – Vou-me embora pra Pasárgada
Raquel de Queiroz – Telha de vidro
Giuseppe Guiaroni – A máquina de escrever
Giuseppe Guiaroni – Dia das mães
Carlos Drummond de Andrade - Resíduo
J. G. de Araújo Jorge – O verbo amar
J. G. de Araújo Jorge – Existo
Carlos Drummond de Andrade – Declaração em juízo
Vicente de Carvalho – Cair das folhas
Vicente de Carvalho – Velho Tema II
Álvares de Azevedo – Tristeza
Olegário Mariano – O enamorado das rosas
Olegário Mariano – As duas sombras
Mário de Sá Carneiro – Quase
Mário de Sá Carneiro - Dispersão
José Saramago – Não me peçam razões
Olavo Bilac - Remorso
Manoel Bandeira – Crepúsculo de Outono
J. G. de Araújo Jorge - Outono
Fernando Pessoa – Uma névoa de outono o ar raro vela
Cecília Meireles – Canção de Outono
Gregório de Matos – Coletânea escolhida – 9 (nove) poemas
Olavo Bilac – Velhas árvores
Jorge Luís Borges – El soneto Del vino
Fazedor de Homens
Todo homem é uma ilha... É bom ser uma ilha distante
tanto quanto é bom ser um homem.
Todo homem possui uma ponte pois é preciso sair da ilha, seguro.
A ponte de um homem é um braço estendido.
Todo homem é um mundo. O mundo roda no sistema egocêntrico
de suas realidades, pequenos alumbramentos,
medos e coragens.
E quando o homem encara o mundo e se depara - homem-mundo, mundo-homem,
volta à ilha: Todo homem ama sua ilha.
II
O homem faz o homem. E porque fez o homem, sem nem o
homem querer aufere direitos do homem. Diz a ele: Cresça!
E ele fica mais alto.
Diz ao homem: Trabalhe!
E ele usa o corpo. Diz ao homem: Viva! E ele respira e existe. Diz ao homem: Ame! E ele não sabe como.
Mas diz ao homem: Procrie! E ele faz homens.
Um dia ele morre.
Se a vida foi longa para viver - é curta para morrer -
porque o homem não fez, não escolheu, não pensou nada.
III
O que faz um homem diferente de outro homem é o que ele pensa.
O que o transforma, também, de um simples fazedor de homens,
num criador de homens.
Todo homem é uma vontade. E se deixa de ser vontade
teme a perda de sua posse. Todo homem é uma consciência.
Nela inclui o seu saber e a parte maior do não saber,
e se aceita o fato, é com ela que ele se entende.
Todo homem é seu corpo. E sabe dele em contraste com outro corpo,
tal é a sua medida. Como também, a medida de um homem é a sua carência:
porque é assim que ele se assume, porque é assim que ele se liberta.
Quanto mais ele precisa mais ele é maior. E dá.
Pede. Reivindica. Exige, quanto pode. Luta e sofre.
Todo homem quer deixar sua ilha.
Temeroso de ter que voltar um dia, entretanto, não destrói as pontes.
Enquanto isso, a ilha fica ali, só ilha. A ponte fica ali, só ponte.
E o homem fica ali, só homem.
Carlos Drummond de Andrade
Publicado no Jornal Última Hora (RJ) de 23/04/73
Título
Soneto 18 - Shakespeare
Devo igualar-te a um dia de verão? Mais afável e belo é o teu semblante: O vento esfolha Maio inda em botão,
Dura o termo estival um breve instante.
Muitas vezes a luz do céu calcina, Mas o áureo tom também perde a clareza:
De seu belo a beleza enfim declina, Ao léu ou pelas leis da Natureza.
Só teu verão eterno não se acaba Nem a posse de tua formosura;
De impor-te a sombra a Morte não se gaba Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura.
Enquanto houver viventes nesta lida, Há-de viver meu verso e te dar vida.
Se Nada Há de Novo
Se nada há de novo e tudo o que há já dantes era como agora é,
só ilusão a criação será: criar o já criado para quê?
Que alguém me mostre, sobre um livro antigo como quinhentas translações astrais, a tua imagem, na inscrição, no abrigo
do espírito em seus signos iniciais. Que eu saiba o que diria o velho mundo
deste milagre que é a tua forma; se te viram melhor, se me confundo,
se as translações seguem a mesma norma. Mas disto estou seguro: antigos textos
louvaram mais com bem menores pretextos.
William Shakespeare, in "Sonetos" Tradução de Carlos de Oliveira
A Noite não me Deu nenhum Sossego
Como voltar feliz ao meu trabalho
se a noite não me deu nenhum sossego?
A noite, o dia, cartas dum baralho
sempre trocadas neste jogo cego.
Eles dois, inimigos de mãos dadas,
me torturam, envolvem no seu cerco
de fadiga, de dúbias madrugadas:
e tu, quanto mais sofro mais te perco.
Digo ao dia que brilhas para ele,
que desfazes as nuvens do seu rosto;
digo à noite sem estrelas que és o mel
na sua pele escura: o oiro, o gosto.
Mas dia a dia alonga-se a jornada
e cada noite a noite é mais fechada.
William Shakespeare, in "Sonetos"
Tradução de Carlos de Oliveira
Meus Olhos Veem Melhor se os Vou Fechando
Meus olhos veem melhor se os vou fechando.
Viram coisas de dia e foi em vão,
mas quando durmo, em sonhos te fitando,
são escura luz que luz na escuridão.
Tu cuja sombra faz a sombra clara,
como em forma de sombras assombravas
ledo o claro dia em luz mais rara,
se em sombra a olhos sem visão brilhavas!
Que benção a meus olhos fora feita
vendo-te à viva luz do dia bem,
se a tua sombra em trevas imperfeita
a olhos sem visão no sono vem!
Vejo os dias quais noites não te vendo,
e as noites dias claros sonhos tendo.
William Shakespeare, in "Sonetos (43)"
Soneto 107
Medos, nem alma capaz de prever
Medos, nem alma capaz de prever
Os sonhos de porvir do mundo inteiro,
Podem o meu amor circunscrever,
Nem dar-lhe fado triste por certeiro.
A Lua seu eclipse superou,
Os agourentos de si podem rir,
A incerteza agora se firmou,
A paz proclama olivas no porvir.
Com o orvalho dos tempos refrescado
O meu amor a própria morte prende
E em meus versos vivo consagrado,
Enquanto as tribos mudas ela ofende.
Aqui encontrarás teu monumento,
E o bronze dos tiranos vai com o vento.
Soneto 54
Oh, como a beleza parece mais bela
com o doce ornamento que a verdade produz! A rosa tão bela, mas mais bela a julgamos
Pelo doce aroma que nela seduz.
As rosas silvestres têm a cor tão profunda Quanto a tintura das rosas perfumadas,
Têm os mesmos espinhos e brincam tão vivamente Quando o sopro do verão expõe os botões velados;
Mas exibem-se apenas para si mesmas, Vivem esquecidas e murcham obscuras; Morrem sozinhas. As doces rosas, não;
De suas doces mortes surgem as mais doces essências.
e assim também a ti, a bela e adorável mocidade, Fenecido o frescor, revela em versos tua verdade.
Soneto 73
Em mim tu vês a época do estio
Em mim tu vês a época do estio
Na qual as folhas pendem, amarelas,
De ramos que se agitam contra o frio,
Coros onde cantaram aves belas.
Tu me vês no ocaso de um tal dia
Depois que o Sol no poente se enterra,
Quando depois que a noite o esvazia,
O outro eu da morte sela a terra.
Em mim tu vês o brilho da pira
Que nas cinzas de sua juventude
Como em leito de morte agora expira
Comido pelo que lhe deu saúde.
Visto isso, tens mais força para amar
E amar muito o que em breve vais deixar.
William Shakespeare
Resumo
William Shakespeare foi um poeta e dramaturgo inglês, tido como o maior escritor do idioma inglês e o mais
influente dramaturgo do mundo. É chamado frequentemente de poeta nacional da Inglaterra e de "Bardo do
Avon" (ou simplesmente The Bard, "O Bardo").
Nasceu em 26 de abril de 1564 em Stratford-upon-Avon onde também foi criado.
Foi um poeta e dramaturgo respeitado em sua própria época, mas sua reputação só viria a atingir o nível
em que se encontra hoje no século XIX. Os românticos, especialmente, aclamaram a genialidade de
Shakespeare, e os vitorianos idolatraram-no como um herói, com uma reverência que George Bernard
Shaw chamava de "bardolatria". No século XX sua obra foi adotada e redescoberta repetidamente por
novos movimentos, tanto na academia e quanto na performance. Suas peças permanecem extremamente
populares hoje em dia , e são estudadas, encenadas e reinterpretadas constantemente, em diversos
contextos culturais e políticos, por todo o mundo.
William Shakespeare morreu em 23 de Abril de 1616, mesmo dia de seu aniversário.É bem conhecida a
coincidência das datas de morte de dois dos grandes escritores da humanidade, Miguel de Cervantes e
William Shakespeare, ambos com data de falecimento em 23 de Abril de 1616. Porém, é importante notar
que o Calendário gregoriano já era utilizado na Espanha desde o século XVI, enquanto que na Inglaterra
sua adoção somente ocorreu em 1751. Daí, em realidade, Miguel de Cervantes faleceu dez dias antes de
William Shakespeare.
Título
A palavra Querida...
Giuseppe Ghiaronni
A palavra "querida", está para a garganta, como o mel para a boca e a mulher para o olhar. Quando um santo do céu, se dirige a uma santa,
de face imaculada e expressão comovida, é assim, penso, que ele a deve chamar:
oh!querida!
Querida é um substantivo espiritual, é um nome. É um fio emocional de um ouro cristalino,
que se estende e que atrai um destino e um destino... Que alinhava e que enleia uma vida e uma vida.
Não é somente um modo de tratar, é um nome,
Assim como Izabel, Marina, Margarida... No entanto é mais que isso, é um nome divino,
que em si define um sonho, um sentimento e um bem.
Querida, não é só uma palavra, é alguém, alguém que tem a vida em nossa própria vida. Querida quer dizer eu mesmo e mais alguém...
oh! querida!
Querida é um adjetivo estranhamente feito de carinho, ciúme, adoração, ternura.
Ninguém dirá "querida" a uma mulher impura,
pois parte da expressão fica em ecos no peito daquele que a usou...
A expressão querida não é bem para ser falada, nem ouvida. É para que uma alma pense e outra a sinta.
Sempre será maldita uma mulher que minta, em silêncio atendendo a alguém que assim a chama,
se não se ouviu chamar, antes que ele falasse, por um tic no peito e um carinho na face,
se não é profundamente a querida que o ama!
Que cruel, que infiel esta mulher fingida, que se deixa chamar de querida e, não ama,
oh!querida!
Querida, quer dizer a que eu amo e estremeço, a que é a minha amante, a minha amiga e irmã,
conheço-a mais que a mim e a tudo que conheço, e com ela eu esqueço o ontem e o amanhã.
A palavra querida é a articulação do primeiro vagido instintivo e inconsciente.
É Deus na nossa boca e o céu na nossa frente,
é ter mundos no olhar, ter estrelas na mão, é ser um fio d´água e uma constelação...
é partilhar da grande Vida Universal, é viver, mas viver como anjo e animal, é encontrar o espaço e resumir a vida, é trilhar confiante uma senda perdida é ser quase divino é ser quase brutal,
é ter uma utopia entre a sala e o quintal é prender-te, sentir-te integrada, diluída em meus braços, em mim,
infiltrada em meus poros, depois que eu derrubei os gigantes e os toros da floresta do mundo e a transpus triunfante!
É te chamar "querida" e ver o teu semblante
transtornado de luz, uma luz comovida...
É chegares o ouvido ao meu peito anelante e ouvir meu coração dizer de instante em instante:
Oh! querida... querida...
Título
Manuel Bandeira
O inútil luar
É noite. A Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna Melancolia...
Dormem as sombras na alameda
Ao longo do ermo Piabanha. E dele um ruído vem de seda
Que se amarfanha. . .
No largo, sob os jambolanos, Procuro a sombra embalsamada.
(Noite, consolo dos humanos! Sombra sagrada!)
Um velho senta-se ao meu lado. Medita. Há no seu rosto uma ânsia . . .
Talvez se lembre aqui, coitado! De sua infância.
Ei-lo que saca de um papel . . . Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E pensativo, a olhar o anel, Faz umas contas . . .
Com outro moço que se cala, Fala um de compleição raquítica. Presto atenção ao que ele fala:
— É de política.
Adiante uma senhora magra, Em ampla charpa que a modela, Lembra uma estátua de Tanagra.
E, junto dela,
Outra a entretém, a conversar: — "Mamãe não avisou se vinha.
Se ela vier, mando matar Uma galinha."
E embalde a Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna Melancolia . . .
Título
Manuel Bandeira
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive
E como farei ginástica Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo É outra civilização
Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der
Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Título
Telha de Vidro
Por Rachel de Queiroz
Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha! Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura de sua treva e de sua única portinha...
A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...
Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda, tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que — coitados — tão velhos só hoje é que conhecem a luz doa dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.
Que linda camarinha! Era tão feia! — Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria, sem um luar, sem um clarão...
Por que você na experimenta?
A moça foi tão vem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!
Título
Giuseppe Ghiaroni
A Máquina de Escrever
Mãe, se eu morrer de um repentino mal, vende meus bens a bem dos meus credores:
a fantasia de festivas cores que usei no derradeiro Carnaval.
Vende ese rádio que ganhei de prêmio por um concurso num jornal do povo, e aquele terno novo, ou quase novo,
com poucas manchas de café boêmio.
Vende também meus óculos antigos que me davam uns ares inocentes.
Já não precisarei de duas lentes para enxergar os corações amigos.
Vende , além das gravatas, do chapéu, meus sapatos rangentes. Sem ruído
é mais provável que eu alcance o Céu e logre penetrar despercebido.
Vende meu dente de ouro. O Paraíso requer apenas a expressão do olhar.
Já não precisarei do meu sorriso para um outro sorriso me enganar.
Vende meus olhos a um brechó qualquer que os guarde numa loja poeirenta,
reluzindo na sombra pardacenta, refletindo um semblante de mulher.
Vende tudo, ao findar a minha sorte, libertando minha alma pensativa
para ninguém chorar a minha morte sem realmente desejar que eu viva.
Pode vender meu próprio leito e roupa para pagar àqueles a quem devo.
Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa esta caduca máquina em que escrevo.
Mas poupa a minha amiga de horas mortas, de teclas bambas,tique-taque incerto. De ano em ano, manda-a ao conserto e unta de azeite as suas peças tortas.
Vende todas as grandes pequenezas que eram meu humílimo tesouro,
mas não! ainda que ofereçam ouro, não venda o meu filtro de tristezas!
Quanta vez esta máquina afugenta meus fantasmas da dúvida e do mal,
ela que é minha rude ferramenta, o meu doce instrumento musical.
Bate rangendo, numa espécie de asma, mas cada vez que bate é um grão de trigo. Quando eu morrer, quem a levar consigo
há de levar consigo o meu fantasma.
Pois será para ela uma tortura sentir nas bambas eclas solitárias um bando de dez unhas usurárias
a datilografar uma fatura.
Deixa-a morrer também quando eu morrer; deixa-a calar numa quietude extrema,
à espera do meu último poema que as palavras não dão para fazer.
Conserva-a, minha mãe, no velho lar, conservando os meus íntimos instantes,
e, nas noites de lua, não te espantes quando as teclas baterem devagar.
Título
Giuseppe Ghiaroni
Dia das Mães
Mãe! eu volto a te ver na antiga sala
onde uma noite te deixei sem fala dizendo adeus como quem vai morrer.
E me viste sumir pela neblina, porque a sina das mães é esta sina: amar, cuidar, criar, depois... perder.
Perder o filho é como achar a morte. Perder o filho quando, grande e forte,
já podia ampará-la e compensá-la. Mas nesse instante uma mulher bonita, sorrindo, o rouba, e a velha mãe aflita
ainda se volta para abençoá-la
Assim parti, e nos abençoaste. Fui esquecer o bem que me ensinaste,
fui para o mundo me deseducar. E tu ficaste num silêncio frio,
olhando o leito que eu deixei vazio, cantando uma cantiga de ninar.
Hoje volto coberto de poeira e te encontro quietinha na cadeira,
a cabeça pendida sobre o peito. Quero beijar-te a fronte, e não me atrevo.
Quero acordar-te, mas não sei se devo, não sinto que me caiba este direito.
O direito de dar-te este desgosto, de te mostrar nas rugas do meu rosto
toda a miséria que me aconteceu. E quando vires e expressão horrível da minha máscara irreconhecível,
minha voz rouca murmurar: ''Sou eu!"
Eu bebi na taberna dos cretinos, eu brandi o punhal dos assassinos, eu andei pelo braço dos canalhas.
Eu fui jogral em todas as comédias, eu fui vilão em todas as tragédias,
eu fui covarde em todas as batalhas.
Eu te esqueci: as mães são esquecidas. Vivi a vida, vivi muitas vidas,
e só agora, quando chego ao fim, traído pela última esperança,
e só agora quando a dor me alcança lembro quem nunca se esqueceu de mim.
Não! Eu devo voltar, ser esquecido. Mas que foi? De repente ouço um ruído;
a cadeira rangeu; é tarde agora! Minha mãe se levanta abrindo os braços
e, me envolvendo num milhão de abraços, rendendo graças, diz: "Meu filho!", e chora.
E chora e treme como fala e ri, e parece que Deus entrou aqui,
em vez de o último dos condenados. E o seu pranto rolando em minha face quase é como se o Céu me perdoasse,
me limpasse de todos os pecados.
Mãe! Nos teus braços eu me transfiguro. Lembro que fui criança, que fui puro.
Sim, tenho mãe! E esta ventura é tanta que eu compreendo o que significa: o filho é pobre, mas a mãe é rica!
O filho é homem, mas a mãe é santa!
Santa que eu fiz envelhecer sofrendo, mas que me beija como agradecendo
toda a dor que por mim lhe foi causada. Dos mundos onde andei nada te trouxe,
mas tu me olhas num olhar tão doce que , nada tendo, não te falta nada.
Dia das Mães! É o dia da bondade
maior que todo o mal da humanidade
purificada num amor fecundo.
Por mais que o homem seja um mesquinho,
enquanto a Mãe cantar junto a um bercinho
cantará a esperança para o mundo!
Título
Resíduo
Carlos Drummond de Andrade
De tudo ficou um pouco Do meu medo. Do teu asco. Dos gritos gagos. Da rosa ficou um pouco Ficou um pouco de luz captada no chapéu. Nos olhos do rufião de ternura ficou um pouco (muito pouco). Pouco ficou deste pó de que teu branco sapato se cobriu. Ficaram poucas roupas, poucos véus rotos pouco, pouco, muito pouco. Mas de tudo fica um pouco. Da ponte bombardeada, de duas folhas de grama, do maço - vazio - de cigarros, ficou um pouco. Pois de tudo fica um pouco. Fica um pouco de teu queixo no queixo de tua filha. De teu áspero silêncio um pouco ficou, um pouco nos muros zangados, nas folhas, mudas, que sobem. Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana, dragão partido, flor branca, ficou um pouco de ruga na vossa testa, retrato. Se de tudo fica um pouco, mas por que não ficaria um pouco de mim? no trem que leva ao norte, no barco, nos anúncios de jornal, um pouco de mim em Londres, um pouco de mim algures? na consoante? no poço? Um pouco fica oscilando na embocadura dos rios e os peixes não o evitam, um pouco: não está nos livros. De tudo fica um pouco. Não muito: de uma torneira pinga esta gota absurda, meio sal e meio álcool, salta esta perna de rã, este vidro de relógio partido em mil esperanças, este pescoço de cisne, este segredo infantil... De tudo ficou um pouco: de mim; de ti; de Abelardo. Cabelo na minha manga, de tudo ficou um pouco; vento nas orelhas minhas, simplório arroto, gemido de víscera inconformada, e minúsculos artefatos: campânula, alvéolo, cápsula de revólver... de aspirina. De tudo ficou um pouco. E de tudo fica um pouco. Oh abre os vidros de loção e abafa o insuportável mau cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível, fica um pouco, e sob as ondas ritmadas e sob as nuvens e os ventos e sob as pontes e sob os túneis e sob as labaredas e sob o sarcasmo e sob a gosma e sob o vômito e sob o soluço, o cárcere, o esquecido e sob os espetáculos e sob a morte escarlate e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros e sob os gonzos da família e da classe, fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
Título
O verbo amar JG de Araujo Jorge
Te amei: era de longe que te olhava e de longe me olhavas vagamente...
Ah, quanta coisa nesse tempo a gente sente, que a alma da gente faz escrava.
Te amava: como inquieto adolescente, tremendo ao te enlaçar, e te enlaçava
adivinhando esse mistério ardente do mundo, em cada beijo que te dava.
Te amo: e ao te amar assim vou conjugando
os tempos todos desse amor, enquanto segue a vida, vivendo, e eu, vou te amando...
Te amar: é mais que em verbo é a minha lei,
e é por ti que o repito no meu canto: te amei, te amava, te amo e te amarei!
(Poema de JG de Araujo Jorge do livro -Bazar de Ritmos- 1935)
Título
"Existo" JG de Araujo Jorge
Seu amor me fez real, e me deu sentido da alegria de ser, total, completamente...
Fez de um pobre poeta em sonhos consumido alguém que tem nas mãos um mundo! e sofre, e sente!
Seu amor foi a vida a irromper da semente de um velho coração cansado e ressequido, o verde que voltou ao ramo nu, pendente, a imprevisível flor, o fruto inconcebido...
Seu amor foi milagre a cantar pelo chão como a água, no agreste, a acenar ao viajante
a esperança, o prazer, a vida, a salvação...
Passo a existir, quem sabe ? apenas porque amei... E ela existe talvez, a partir deste instante
porque ela e o seu amor... em versos transformei!
Título
Declaração em juízo
Carlos Drummond de Andrade
Peço desculpas de ser o sobrevivente.
Não por longo tempo, é claro, tranquilizem-se.
Mas devo confessar, reconhecer que sou sobrevivente.
Se é triste/cômico ficar sentado na plateia
quando o espetáculo acabou e fecha-se o teatro,
mais triste/grotesco é permanecer no palco, ator único, sem papel,
quando o público já virou as costas e somente baratas circulam no farelo.
Reparem: não tenho culpa. Não fiz nada para ser
sobrevivente. Não roguei aos altos poderes
que me conservassem tanto tempo. Não matei nenhum dos companheiros.
Se não saí violentamente, se me deixei ficar ficar ficar, foi sem segunda intenção.
Largaram-me aqui, eis tudo, e lá se foram todos, um a um, sem prevenir, sem me acenar,
sem dizer adeus, todos se foram. (houve os que requintaram no silêncio).
Não me queixo. Nem os censuro. Decerto não houve propósito
de me deixar entregue a mim mesmo, perplexo, desentranhado.
Não cuidaram que um sobraria, foi isso. Tornei, tornaram-me
sobre - vivente. Se admiram de eu estar vivo, esclareço: estou sobrevivo. viver, propriamente, não vivi
senão em projeto. Adiamento. Calendário do ano próximo. jamais percebi estar vivendo
quando em volta viviam quantos! Quanto. Alguma vez os invejei.
Outras, sentia pena de tanta vida que se exauria no viver enquanto o não viver,
o sobreviver duravam, perdurando. e me punha a um canto, à espera,
contraditória e simplesmente, de chegar a hora de também viver.
Não chegou. Digo que não. Tudo foram ensaios,
testes, ilustrações. a verdadeira vida sorria longe, indecifrável. Desisti.
Recolhi-me cada vez mais, concha à concha. Agora sou sobrevivente.
Sobrevivente incomoda mais que fantasma. Sei a mim mesmo
incomodo-me. O reflexo é uma prova feroz.
Por mais que me esconda, projeto-me, devolvo-me, provoco-me. não adianta ameaçar-me.
Volto sempre, todas as manhãs me volto, viravolto
com exatidão de carteiro que distribui más notícias. O dia todo é dia
de verificar o meu fenômeno. Estou onde não estão
minhas raízes, meu caminho onde sobrei,
insistente, reiterado, aflitivo sobrevivente
da vida que ainda não vivi, juro por deus e o diabo, não vivi.
Tudo confessado, que pena me será aplicada, ou perdão? Desconfio nada pode ser feito
a meu favor ou contra, nem há técnica de fazer, desfazer
o infeito infazível. Se sou sobrevivente, sou sobrevivente. Cumpre reconhecer-me esta qualidade
que finalmente o é. Sou o único, entendem?
De um grupo muito antigo de que não há memória nas calçadas
e nos vídeos. Único a permanecer, a dormir,
a jantar, a urinar, a tropeçar, até mesmo a sorrir
em rápidas ocasiões, mas garanto que sorrio, como neste momento estou sorrindo
de ser - delícia? - sobrevivente. É esperar apenas, está bem?
Que passe o tempo de sobrevivência e tudo se resolve sem escândalo
ante a justiça indiferente. Acabo de notar, e sem surpresa:
não me ouvem no sentido de entender, nem importa que um sobrevivente
venha contar seu caso, defender-se ou acusar-se, é tudo a mesma
nenhuma coisa, e branca.
Fonte: Blog Café Brasil 01.11.2011
Título
CAIR DAS FOLHAS
Vicente de Carvalho
“Deixa-me, fonte”! Dizia
A flôr, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Cantava, levando a flor.
“Deixa-me, deixa-me, fonte!””
Dizia a flor a chorar:
“Eu fui nascida no monte...
“Não me leves para o mar”.
E a fonte, rapida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria, Corria levando a flôr.
“Ai, balanços do meu galho,
“Balanços do berço meu; “Ai, claras gotas de orvalho
“Caídas do azul do céu!...”
Chorava a flor, e gemia, Branca, branca de terror,
E a fonte sonora e fria,
Rolava, levando a flor.
“Adeus, sombra das ramadas,
“Cantigas do rouxinol;
“Ai, festa das madrugadas, “Doçuras do pôr do sol;
“Caricia das brizas leves
“Que abrem rasgões de luar... “Fonte, fonte, não me leves,
“Não me leves para o mar!...”
*
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor...
POEMAS E CANÇÕES
(SEGUNDA EDIÇÃO)
Porto: Livraria Chardon, 1909
250 p. 18 cmx 12 cm.
(Conservamos a ortografia antiga, original)
*Vicente Augusto de Carvalho, o "Poeta do Mar", nasceu em Santos (SP), em 05/04/1866, lá faleceu no dia 22/04/1924. Poeta, contista, advogado,
jornalista, político e magistrado. Foi grande artista do verso, da fase criadora
do Parnasianismo. Ocupou a Cadeira 29 da Academia Brasileira de Letras,
tendo sido eleito em 1º de maio de 1909, na sucessão de Artur Azevedo.
Título
Velho Tema II
Vicente de Carvalho
Eu cantarei de amor tão fortemente
Com tal celeuma e com tamanhos brados
Que afinal teus ouvidos, dominados,
Hão de à força escutar quanto eu sustente.
Quero que meu amor se te apresente
- Não andrajoso e mendigando agrados,
Mas tal como é: risonho e sem cuidados,
Muito de altivo, um tanto de insolente.
Nem ele mais a desejar se atreve
Do que merece: eu te amo, e o meu desejo
Apenas cobra um bem que se me deve.
Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;
E vou de olhos enxutos e alma leve
À galharda conquista do teu beijo.
Título
TRISTEZA
Álvares de Azevedo*
Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto o poente caminheiro;
Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
Como um desterro de minha alma errante, Onde o fogo insensato a consumia...
Só levo uma saudade — é desses tempos Que amorosa ilusão embelecia.
Só levo uma saudade — é dessas sombras Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada, Que por minha tristeza te definhas!
Descansem o meu leito solitário Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz — e escrevam nela: Foi poeta, sonhou e amou na vida...
(Do livro: "Antologia Nacional", Livraria Francisco Alves, 1963, RJ)
*Álvares de Azevedo (1831-1852) foi um poeta, escritor e contista, da segunda geração
romântica brasileira. Suas poesias retratam o seu mundo interior. É conhecido como "o
poeta da dúvida".A figura da mulher aparece em seus versos, ora como um anjo, ora
como um ser fatal, mas sempre inacessível. Álvares de Azevedo é Patrono da cadeira nº
2, da Academia Brasileira de Letras.
Título
O enamorado das rosas
Olegário Mariano*
Toda manhã, ao sol, cabelo ao vento,
Ouvindo a água da fonte que murmura,
Rego as minhas roseiras com ternura,
Que água lhes dando, dou-lhes força e alento.
Cada um tem um suave movimento
Quando a chamar minha atenção procura
E mal desabrochada na espessura,
Manda-me um gesto de agradecimento.
Se cultivei amores às mancheias,
Culpa não cabe às minhas mãos piedosas
Que eles passassem para mãos alheias.
Hoje, esquecendo ingratidões mesquinhas,
Alimento a ilusão de que essas rosas,
Ao menos essas rosas, sejam minhas.
*Olegário Mariano Carneiro da Cunha, poeta, diplomata, deputado federal e constituinte, nasceu no Poço da
Panela, arrabalde da cidade do Recife, estado de Pernambuco, no dia 24 de março, no mesmo ano da
Proclamação da República, em 1889. Segundo os biógrafos da Academia Brasileira de Letras, da qual foi
membro, “sua poesia lírica é simples, correntia, de fundo romântico, pertinente à fase do sincretismo
parnasiano-simbolista de transição para o Modernismo. Ficou conhecido como o "poeta das cigarras", por
causa de um de seus temas prediletos e considerado o último poeta romântico brasileiro.
Título
As duas sombras
Olegário Mariano
Na encruzilhada silenciosa do Destino,
Quando as estrelas se multiplicam,
Duas sombras errantes se encontram .
A primeira falou : - Nasci de um beijo.
De luz, sou força, vida, alma, esplendor.
Toda a ânsia do Universo...Eu sou o Amor.
O mundo sinto exâmine a meus pés...
Sou Delírio...Loucura...E tu, quem és?
Eu nasci de uma lágrima. Sou flama.
Do teu incêndio que devora...
Vivo, dos olhos tristes de quem ama,
Para os olhos nevoentos de quem chora.
Dizem que ao mundo vim para ser boa.
Para dar do meu sangue a quem queira.
Sou a saudade, a tua companheira
Que punge, que consola e que perdoa...
Na encruzilhada silenciosa do Destino
As duas sombras se abraçaram.
E desde então, nunca mais se
separaram.··.
Título
QUASE
Mário de Sá carneiro*
Um pouco mais de sol — eu era brasa.
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d'espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo... e tudo errou...
— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou, mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Título
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Dispersão
Perdi-me dentro de mim Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto. É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar, Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
Para mim é sempre ontem, Não tenho amanhã nem hoje: O tempo que aos outros foge Cai sobre mim feito ontem.
(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:
Porque um domingo é família, É bem-estar, é singeleza, E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).
Pobre moço das ânsias... Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismastes nas ânsias.
A grande ave doirada Bateu asas para os céus Mas fechou-se saciada
Ao ver que ganhava os céus.
Como se chora um amante, Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante Que se traiu a si mesmo.
Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo: Se me olho a um espelho, erro Não me acho no que projeto.
Regresso dentro de mim Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada, Sequinha dentro de mim.
Não perdi a minha alma, Fiquei com ela, perdida. Assim eu choro, da vida,
Eu nunca vi... mas recordo
A sua boca doirada E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido Que vem na tarde doirada.
(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei. Ai, como eu tenho saudades Dos sonhos que sonhei!... )
E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total — Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.
Vejo o meu último dia Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia Em sombra e além me sumo.
Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas... Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas. . .
Tristes mãos longas e lindas Que eram feitas pra se dar Ninguém mas quis apertar
Tristes mãos longas e lindas
Eu tenho pena de mim, Pobre menino ideal... Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!
Desceu-me n’alma o crepúsculo; Eu fui alguém que passou. Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
Álcool dum sono outonal Me penetrou vagamente A difundir-me dormente Em, uma bruma outonal.
Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço... A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço ..
.
*Mário de Sá Carneiro foi poeta, contista e ficcionista português, um dos grandes expoentes do modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu. Nasceu em Lisboa no dia 19 de Maio de 1890 e faleceu em Paris, em 26 de Abril de 1916. Época /Gênero literário: Modernismo Magnum opus¹: Céu em Fogo ¹Magnum opus, em latim, significa grande obra. Refere-se à melhor, mais popular ou
renomada obra de um artista
Título
Não me Peçam Razões
José Saramago
Não me peçam razões, que não as tenho, Ou darei quantas queiram: bem sabemos Que razões são palavras, todas nascem Da mansa hipocrisia que aprendemos.
Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito, Este estar mal no mundo e nesta lei: Não fiz a lei e o mundo não aceito.
Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir: Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.
José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"
Título
Remorso
Olavo Bilac
Às vezes, uma dor me desespera... Nestas ânsias e dúvidas em que ando. Cismo e padeço, neste outono, quando
Calculo o que perdi na primavera.
Versos e amores sufoquei calando, Sem os gozar numa explosão sincera...
Ah! Mais cem vidas! com que ardor quisera Mais viver, mais penar e amar cantando!
Sinto o que desperdicei na juventude;
Choro, neste começo de velhice, Mártir da hipocrisia ou da virtude,
Os beijos que não tive por tolice,
Por timidez o que sofrer não pude, E por pudor os versos que não disse!
Título
Crepúsculo de Outono
Manoel Bandeira
O crepúsculo cai, manso como uma benção. Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito...
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam As feridas que a vida abriu em cada peito.
O outono amarelece e despoja os lariços. Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar
O terror augural de encantos e feitiços. As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.
Os pinheiros, porém viçam, e serão breve Todo o verde que a vista espairecendo vejas, Mais negros sobre a alvura unânime da neve,
Altos e espirituais como flechas de igrejas.
Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio Do rio, e isso parece a voz da solidão.
E essa voz enche o vale...o horizonte purpúreo... Consoladora como um divino perdão.
O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos, Flocos, que a luz do poente extática semelha A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.
A sombra casa os sons numa grave harmonia. E tamanha esperança e uma tão grande paz
Avultam do clarão que cinge a serrania, Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.
Título
Outono
J. G. de Araújo Jorge
O outono já chegou - aos arrufos do vento as folhas num desmaio embalam-se pelo ar...
- vão caindo... caindo... uma a uma, em desalento e uma a uma, lentamente, vão no chão pousar...
O céu perdeu o azul - vestiu-se de cinzento e envolveu na neblina a luz baça do luar... - na alameda onde vou, de momento a momento, há um gemido de folha a cair e a expirar...
O arvoredo transpira as carícias dos ninhos, e o vento a cirandar na curva das estradas eleva o folhareu no espaço em redemoinhos...
Há um córrego a levar as folhas secas em bando... - e à aragem que soluça entre as ramas curvadas, parece que o arvoredo em coro está chorando!...
Título
Uma névoa de Outono o ar raro vela
Fernando Pessoa
(5-11-1932)
Uma névoa de Outono o ar raro vela, Cores de meia-cor pairam no céu. O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.
Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono. Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono. De sentir é só a janela a que eu assomo.
Amanhã, se estiver um dia igual, Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal, E será como esta.
Título
CANÇÃO DE OUTONO
Cecília Meireles
Perdoa-me, folha seca, não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo, e até do amor me perdi.
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão, se havia gente dormindo sobre o próprio coração?
E não pude levantá-la! Choro pelo que não fiz. E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz. Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão velando e rogando aqueles
que não se levantarão...
Tu és a folha de outono voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade - a melhor parte de mim. Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento, menos que as folhas do chão...
Título
COLETÂNEA ESCOLHIDA DE GREGÓRIO DE MATOS
Inconstância dos bens do mundo Gregório de Matos
Nasce o Sol e não dura mais que um dia, Depois da Luz, se segue a noite escura, Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas, a alegria.
Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo, enfim, pela ignorância,
Pois tem, qualquer dos bens, por natureza
Firmeza somente na inconstância.
Soneto Sobre a Bahia Gregório de Matos
A cada canto um grande conselheiro.
que nos quer governar cabana, e vinha, não sabem governar sua cozinha, e podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um frequentado olheiro, que a vida do vizinho, e da vizinha
pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, para a levar à Praça, e ao Terreiro. Muitos mulatos desavergonhados,
trazidos pelos pés os homens nobres, posta nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados,
todos, os que não furtam, muito pobres, e eis aqui a cidade da Bahia
Buscando a Cristo Gregório de Matos
A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.
A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lágrimas abertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.
A vós, pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, p'ra chamar-me
A vós, lado patente, quero unir-me,
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.
Epílogos Juízo anatômico da Bahia
Gregório de Matos
Que falta nesta cidade?................Verdade
Que mais por sua desonra?...........Honra
Falta mais que se lhe ponha..........Vergonha.
O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
numa cidade, onde falta
Verdade, Honra, Vergonha.
Quem a pôs neste socrócio*?..........Negócio
Quem causa tal perdição?.............Ambição
E o maior desta loucura?...............Usura.
Notável desventura de um povo néscio, e sandeu,
que não sabe, que o perdeu
Negócio, Ambição, Usura.
Quais são os seus doces objetos?....Pretos
Tem outros bens mais maciços?.....Mestiços
Quais destes lhe são mais gratos?...Mulatos.
Dou ao demo os insensatos,
dou ao demo a gente asnal,
que estima por cabedal
Pretos, Mestiços, Mulatos.
Quem faz os círios* mesquinhos?...Meirinhos
Quem faz as farinhas tardas?.........Guardas
Quem as tem nos aposentos?.........Sargentos.
Os círios lá vêm aos centos,
e a terra fica esfaimando,
porque os vão atravessando
Meirinhos, Guardas, Sargentos.
E que justiça a resguarda?.............Bastarda
É grátis distribuída?.....................Vendida
Que tem, que a todos assusta?.......Injusta.
Valha-nos Deus, o que custa,
o que El-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.
Que vai pela clerezia?..................Simonia*
E pelos membros da Igreja?..........Inveja
Cuidei, que mais se lhe punha?.....Unha.
Sazonada caramunha*!
enfim que na Santa Sé
o que se pratica, é
Simoni*, Inveja, Unha*.
E nos frades há manqueiras*?.........Freiras
Em que ocupam os serões?............Sermões
Não se ocupam em disputas?.........Putas.
Com palavras dissolutas
me concluís na verdade,
que as lidas todas de um Frade
são Freiras, Sermões, e Putas.
O açúcar já se acabou?..................Baixou
E o dinheiro se extinguiu?.............Subiu
Logo já convalesceu?.....................Morreu.
À Bahia aconteceu
o que a um doente acontece,
cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, Subiu, e Morreu.
A Câmara não acode?...................Não pode
Pois não tem todo o poder?...........Não quer
É que o governo a convence?........Não vence.
Que haverá que tal pense,
que uma Câmara tão nobre
por ver-se mísera, e pobre
Não pode, não quer, não vence.
*Interpretação de alguns vocábulos:
Socrócio – emplastro, alivio, bálsamo ( o poeta usou-o no sentido antitético, irônico).
Círios – sacos de farinha (a grafia correta é sírios).
Simonia – venda de coisas sagradas.
Unha – roubalheira, avareza, tirania, opressão.
Caramunha – lamentação experiente.
Manqueiras – vícios, defeitos.
********************
1. Gregório de Matos Guerra (Salvador, 23 de dezembro de 1636¹
– Recife, 26 de novembro de 1695),
alcunhado de Boca do Inferno ou Boca de Brasa, foi um advogado e poeta do Brasil colônia. É considerado o maior poeta barroco do Brasil e o mais importante poeta satírico da literatura em língua portuguesa, no período.
¹Por haver divergências a respeito da data de nascimento de Gregório de Matos, foi adotado a utilizada pelo pesquisador Fernando da Rocha Peres, no livro de sua autoria Gregório de Mattos e Guerra: Uma Revisão Biográfica e em nota biográfica publicada no site da
Universidade Federal da Bahia/UFBA (http://www.ufba.br/~gmg/gregorio.html)
Título
Velhas Árvores
Olavo Bilac
Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores novas, mais amigas:
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...
O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas
Vivem, livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.
Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo! Envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem:
Na glória da alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!
Olavo Bilac, in "Poesias"
Título
Soneto del vino
Jorge Luis Borges*
¿En qué reino, en qué siglo, bajo qué silenciosa conjunción de los astros, en qué secreto día
que el mármol no ha salvado, surgió la valerosa y singular idea de inventar la alegría?
Con otoños de oro la inventaron. El vino fluye rojo a lo largo de las generaciones
como el río del tiempo y en el arduo camino nos prodiga su música, su fuego y sus leones.
En la noche del júbilo o en la jornada adversa exalta la alegría o mitiga el espanto
y el ditirambo nuevo que este día le canto
otrora lo cantaron el árabe y el persa. Vino, enséñame el arte de ver mi propia historia
como si ésta ya fuera ceniza en la memoria.
*Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (Buenos Aires, 24 de agosto de 1899 — Genebra, 14 de
junho de 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino.
Título